Conselho Editorial Conselho Consultivo

Abílio da Costa Rosa Adilson Odair Citelli (USP) Álvaro Santos Simões Junior Antonio Castelo Filho (USP) Ana Claudia Inocente Garcia Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP) Carlos Alberto Sampaio Barbosa Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN) Ciro Cesar Zanini Branco João Ernesto de Carvalho (UNICAMP) Eduardo José Afonso José Luiz Fiorin (USP) Gabriela Kvacek Betella Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP) Gustavo Henrique Dionísio Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN) Juliana De Oliveira Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ) Karin Adriane H. Pobbe Ramos Sandra Margarida Nitrini (USP) Karina Anhezini de Araujo Temístocles Cézar (UFRGS) Lucia Helena Oliveira Silva Lucineia dos Santos Marcio Roberto Pereira Maria Laura Nogueira Pires Paulo Cesar Gonçalves

Pitágoras da Conceição Bispo Faculdade de Ciências e Letras de Assis Rozana Ap. Lopes Messias Sandra Aparecida Ferreira Sílvio Yasui Vania Aparecida Marques Favato Zélia Lopes Da Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP

Encontro do CEDAP (7.: 2014: Assis, SP) E56a Anais do 7 Encontro do CEDAP: culturas indígenas e identi- dades, Assis, SP, 23 a 25 de abril de 2014 [ recurso eletrônico] / Zélia Lopes da Silva (Org.). Assis: UNESP - Campus de Assis, 2014 324 p. : il.

Vários autores ISBN: 978-85-66060-09-6

1. Índios. 2. Índios na literatura. 3. Cultura. 4. Imagem. 5. Etnologia. I. Silva, Zélia Lopes da. II. Título. CDD 301.2 572

Zélia Lopes da Silva (Org.)

Anais do VII Encontro do Cedap – Culturas indígenas e identidades

Período: 23 a 25 de abril de 2014

ISBN : 978-85-66060-09-6

Unesp Assis Câmpus de Assis 2014

Apoio: CAPES

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Marilza Vieira Cunha Rudge Vice-Reitora no Exercício da Reitoria da Unesp

Pró-reitora de Extensão Universitária Mariangela Spotti Lopes Fujita

Faculdade de Ciências e Letras de Assis Ivan Esperança Rocha Diretor Ana Maria Rodrigues de Carvalho Vice-diretora

Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Profª Drª Anna Maria Martinez Corrêa – Cedap Zélia Lopes da Silva Supervisora

Karina Anhezini de Araújo Vice-supervisora

Anais do VII Encontro do Cedap – Culturas indígenas e identidades

Período: 23 a 25 de abril de 2014

Zélia Lopes da Silva (Org.)

Conselho Científico

Dr. Alvaro Santos Simões Junior Dr. Benedito Antunes Drª Karina Anhezini de Araújo Profª Drª Silvia Maria Azevedo Profª Drª Tania Regina de Luca Profª Drª Zélia Lopes da Silva

Equipe de trabalho

Preparação dos originais Renato Crivelli Duarte - Cedap

Capa e diagramação Lucas Lutti

Unesp Assis 2014

Apresentação

Os textos reunidos nestes Anais são resultantes das apresentações de pesquisadores que se inscreveram nos Simpósios Temáticos ocorridos nos dias 23 a 25 de abril de 2014, durante o VII Encontro do Cedap que discutiu o temário “Culturas indígenas e identidades”.

Os autores, ora apresentados por ordem alfabética, são discentes da Pós- Graduação das áreas de História e de Letras, bem como professores que integraram os diferentes fóruns de debates no decurso do evento e trouxeram para os demais participantes os resultados de suas pesquisas. Essa sistemática de organização dos Anais levou em consideração a multiplicidade de assuntos desses registros acadêmicos, ressaltando-se que apenas nove dos vinte e oito textos discutem questões sobre os povos indígenas.

Para a organização desses Anais, os trabalhos aqui reunidos foram submetidos aos professores membros do Conselho Científico e que organizaram os simpósios temáticos que, nessa fase, passaram a ser os responsáveis pelo exame dos textos visando sua publicação.

Alguns dos escritos, como já assinalado anteriormente, abordam diferentes facetas referentes aos povos indígenas, mas existem aqueles que enfocam temas variados cujas fontes são as imagens fixas e em movimento — fotografia, documentário, caricatura —, a imprensa, a escrita epistolar, a produção literária (romance), que são os suportes para as reflexões de seus criadores que evidenciam os conhecimentos resultantes de suas investigações.

No primeiro bloco de discussão, evidencia-se a multiplicidade de temas envolvendo os povos indígenas que vão das inspirações para as formulações da identidade do país, a sua música, as suas práticas escultóricas, os projetos voltados para as práticas escolares destinadas a esses povos, até os que capturam o imaginário criado em torno da libertação do corpo nos dias dedicados a Momo, sob aquela inspiração. Os demais textos dividem-se entre os que abordam dimensões da produção literária, veiculadas na imprensa diária ou no formato ficcional, o periodismo e suas múltiplas facetas — literária, política, científica, etc. —, as redes de sociabilidade do mundo acadêmico, as folias de reis e seus fundamentos, o estrangeiro e suas múltiplas significações, os excluídos no Asilo-colônia Aimorés. Enfim, esses trabalhos exibem aos leitores um caleidoscópio de metódicas e de considerações teóricas que corroboram os caminhos seguidos pelos autores que esperamos sejam instigantes para futuras pesquisas.

Zélia Lopes da Silva Assis, 4 de julho de 2014 SUMÁRIO

Da pré-colonização à independência: Análise do “Canto à Independência do Brasil”, de José Maria Velho da Silva. 07 Adriana DUSILEK

A representação do índio na construção da memória nacional brasileira. Aline Rafaela Portílio LEMES 16

Humor e crítica nas narrativas epistolares de O Pirralho. Beatriz RODRIGUES 28

Refazendo a história, preservando tradições: Inspiração indígena na produção cerâmica de Mestre Raimundo Cardoso. Camila da Costa LIMA 39

Modernidade e trabalho no filme de divulgação Asilo-colônia Aimorés. Carla Lisboa PORTO 48

Monteiro Lobato nos Estados Unidos e as primeiras negociações envolvendo o processo siderúrgico Smith. Celso CARVALHO JUNIOR 60

A abordagem da imprensa nas Copas do Mundo de Futebol de 1934 e 1938 no Brasil. Cibele Cordeiro CARRARA 73

De Curitiba à Paris e vice-versa: Amizade e relações acadêmicas na troca de correspondências entre pesquisadores de história. Daiane MACHADO 90

“Indígenas” nos carnavais de rua do (1939 e 1964). Danilo Alves BEZERRA 104

A personagem Peninha em Reinações de Narizinho, de Lobato. Denise Maria de Paiva BERTOLUCCI 115

Helena, de Machado de Assis: do Brasil para o mundo e para os brasileiros. Ederson Murback ESCOBAR 125

As fantasias indígenas e a sensualidade feminina nos carnavais das décadas de 1960 e 1970. 136 Ellen Karin Dainese MAZIERO

Figurações do índio na literatura juvenil: Uma análise da obra Lendas e mitos dos índios dos índios brasileiros, de Waldemar de Andrade e Silva. Eliane Aparecida Galvão Ribeiro FERREIRA e 145 Penha Lucilda de Souza SILVESTRE

Imagens da Revolução: Imprensa e comunismo visual nas páginas do El Manchete (México, 1920-1930). Fábio de Souza SOUZA 156

A imprensa como objeto de estudo da História: Problemas e possibilidades. Fábio Alves SILVEIRA 166

A “Revista da Associação Tipográfica Baiana” e a história do trabalho. Humberto Santos de ANDRADE 179

Biografia e política: Panteonização e iconoclastia em narrativas de Raimundo Magalhães Junior. 190 João MUNIZ JUNIOR

Um plano civilizacional para os indígenas na formação do Estado Nacional brasileiro. 204 Jucelino PEREIRA NETO

Imigração italiana, religião, política e os espaços de diversão no Brasil na obra “Anarquistas graças a Deus”. 214 Kassiana BRAGA

Brô Mc's: música indígena intercultural. Laura Cristhina Revoredo COSTA e Edgar Cézar NOLASCO 224

Interculturalidade e o Ensino de História Indígena: Os avanços e entraves das políticas públicas na temática indígena. Lilian Marta Grisolio MENDES 238

Documentos e memória na escrita do “Fundamento Histórico” de Cláudio Manoel da Costa. Marcela Verônica da SILVA 247

José Verissimo: Experiência e Valores. Marcio Roberto PEREIRA 257

As representações dos indígenas nas propostas curriculares de História do sudeste brasileiro. Maria Cristina Floriano BIGELI 270

Fotografias do Brasil em Amando Fontes. Natália de Souza MARTINS 279

A imagem fotográfica como fonte histórica: possibilidades e dificuldades. Rafaela Sales GOULART 289

Um olhar sobre a Revista O Ocidente-Revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro. 299 Rita de Cássia Lamino de ARAUJO

Revista brasileira de Psychanalyse (1928): a primeira tentativa de difusão da ciência psicanalítica no Brasil. Roger Marcelo Martins GOMES 310

7

DA PRÉ-COLONIZAÇÃO À INDEPENDÊNCIA: ANÁLISE DE “CANTO À INDEPENDÊNCIA DO BRASIL”, DE JOSÉ MARIA VELHO DA SILVA

Adriana DUSILEK1

O “Canto à Independência do Brasil”, de José Maria Velho da Silva (1811-1901), foi publicado na 404ª edição da Revista Semana Ilustrada, em 6 de setembro de 1868, ocupando quase todo o número do periódico2. Na apresentação, o Dr. Semana, pseudônimo e personagem que aparece em todas as edições da Revista, e é considerado o “alter ego” do editor alemão e também caricaturista Henrique Fleiuss (1824-1882), parabeniza os leitores porque ao “inspirado cantor da pátria” é cedido o espaço das colunas “Pontos e vírgulas” e “Chronica para-lamentar”3. Afirma Dr. Semana:

Quase à última hora disse-nos o poeta: “Eu cantei a aurora da nossa liberdade, eu saudei o sol de 7 de setembro; aqui está o canto; aqui está a saudação”. Venha a inspirada lira do mestre; solte aos quatro ventos o hino da pátria livre: as livres florestas lhe respondem, e os livres corações o aplaudem (DR. SEMANA, 06 set.1868, p. 3226).

Esse estilo laudatório do editor na apresentação ao Canto pode ser vinculado à amizade existente entre Henrique Fleiuss e o Imperador, já que o poema exulta os heróis da pátria e a monarquia. A Semana Ilustrada, apesar de ser uma revista caricatural, cujo lema é “Ridendo castigat mores”4, é acrítica ao governo, deixando transparecer um tom conservador, e colhendo, por sua opção ideológica, terminantes juízos de outros periódicos. Sua posição, porém, não o impedia de fazer ferozes críticas aos costumes sociais. Como escreveu Herman Lima (1897-1981), no segundo volume da História da Caricatura no Brasil:

O lápis habilíssimo de Henrique Fleiuss ensinou-nos, como Santo Agostinho, a amar e poupar os homens para somente criticar os costumes sociais, rindo-nos com eles dos nossos próprios defeitos. Era a grande

1 Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Normalmente a Revista conta com 8 páginas, sendo 4 de ilustração (nas primeiras, quartas, quintas e oitavas páginas). Nesse número, há 10 páginas, com mais duas ilustradas, como Suplemento da Semana. O poema “Canto à Independência do Brasil” ocupa a maior parte da segunda página, além da terceira, da sexta e a maior parte da sétima página da edição 404. Além do canto, fazem parte da edição, afora as ilustrações, a apresentação do Dr. Semana ao Canto e um poema curto intitulado “A desaparição de uma estrela”, a respeito da atriz Aimée, que após 4 anos no Brasil, no elenco do Alcazar Lírico, volta à França. 3 “Pontos e vírgulas” é assinado por Dr. Semana, e “Chronica para-lamentar” é subscrito por “Agnus Populi”. 4 Molière (1622-1673) teria colocado essa frase em Tartufo, mas essa máxima parece ter sido cunhada pelo poeta francês Jean de Santeuil (1630-1697) a propósito da máscara de Arlequim, cujo busto decorava o proscênio da Commédie Italienne, de Paris. Essa ideia de divertir e instruir ao mesmo tempo já estava, porém, na Arte Poética, de Horácio (65 a.C- 8 a.C). 8

máxima do Diligite homines interficite errores – aplicada à caricatura. (LIMA, 1963, p.746).

Ainda na apresentação ao poema, Dr. Semana comenta sobre o tema da independência e a fama do poeta: “Assunto é este que faz heróis e faz poetas. Se o Dr. Velho da Silva não gozasse de há muito a pública estima, agora a conquistara” (DR. SEMANA, 06 set. 1868, p. 3226)5. Termina a recomendação de forma não menos elogiosa: “Quem, ao escutar o CANTO À INDEPENDÊNCIA DO BRASIL não exclamará: ‘Conheço esta voz; conheço-a: vem do Pantheon’” (DR. SEMANA, 06 set. 1868, p. 3226). Em sentido literal, acreditaria Dr. Semana que o poeta entraria no cânone dos grandes poetas. Claro está, porém, que tal expressão sugere apenas uma exagerada gentileza do editor. Segundo a Enciclopédia de Literatura Brasileira, organizada por Afrânio Coutinho e José Galante de Sousa, o poeta José Maria Velho da Silva, autor deste Canto, foi ainda romancista, autor de obras didáticas, orador, doutor em Medicina, professor de poética e literatura, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), cavaleiro da Ordem da Rosa e da Ordem de Cristo (1989, p. 1247)6. Como informa Roberto Acízelo de Souza em O império da eloquência: retórica e poética no Brasil oitocentista (1999), o nome de José Maria Velho da Silva quase foi excluído de seu livro em razão da redundância de seu compêndio em relação aos demais. Acízelo, no entanto, optou por incluí-lo porque: “[...] como esse médico e catedrático do Colégio Pedro II também teve seu livro inscrito entre os oficiais daquele estabelecimento acabamos concluindo que merecia tratamento idêntico ao dispensado aos outros autores” (SOUZA, 1999, p. 79). Afirma ainda o crítico que o nome de Velho da Silva, com exceção de Laudelino Freire (1923, p. 187-189), só é mencionado de forma brevíssima por Sílvio Romero (1888), José Veríssimo (1916), Nélson Werneck Sodré (1938), Afrânio Coutinho (1955-59) e Antônio Cândido (1959), e que sua tese para a cátedra de retórica, poética e literatura nacional não passa de uma apresentação simplória de um ponto do programa escolar. Sustenta ainda que Velho da Silva também seria um poeta menor, e só não seria tão insignificante como professor, decorrendo de sua notoriedade no magistério a adoção de suas Lições de retórica pelo sistema de ensino.

5 Não se sabe o porquê da estima pública ao Dr. Velho da Silva: se como médico ou poeta e professor. O que se sabe é que até 1868 ele ainda nada publicara, e inclusive na Semana Ilustrada só há mais duas referências a ele, e posteriores a 68: em 9/01/1876 noticia o romance Gabriela, como “interessantíssimo” e “bem escrito”, transcrevendo as considerações preliminares do autor (Semana Ilustrada, p.6295, “Publicações”); e em 16/01/1876, também em “Publicações”, entre outros anúncios comenta em três linhas O Silabário, “livrinho para a primeira infância”. “Recomendamo-lo” é o que o editor escreve a respeito (Semana Ilustrada, p. 6303). 6 Há algumas confusões quanto à biografia de José Maria Velho da Silva, pois há algumas informações de que este teria sido também mordomo da casa imperial, de 1846 a 1854. No entanto, são pessoas diferentes. Há o mordomo e conselheiro, nascido em 1795 e falecido em 1860, e o escritor, médico e retórico, autor deste poema. Outro equívoco também acontece: este escritor não é filho do outro José Maria, como informam algumas fontes. Há uma informação de que o engenheiro José Maria da Silva Velho seria filho do médico e amigo íntimo do imperador, e neto do conselheiro e mordomo. Mas o conselheiro teve um filho advogado e uma filha. E pelas datas de nascimento de ambos, o conselheiro não poderia ser pai do escritor, professor e médico José Maria. Importante para o esclarecimento dos fatos foi o Esboço biográfico do Conselheiro José Maria Velho da Silva (1861), este, sim, o mordomo da casa imperial. 9

Sobre a classificação do poeta dentro da poesia brasileira, Roberto Acízelo expõe:

Sílvio Romero, sem lhe conceder maior atenção, o instala no grupo do que chama poetas de transição, entre classicismo e romantismo (1888, v.3, p.774-5); Afrânio Coutinho o cita entre os pré-românticos (1955-59, v.2, p.20); Péricles Eugênio da Silva Ramos o situa como epígono da primeira geração (1965, p.16), sendo contudo o único autor contemporâneo de antologias a distingui-lo com um lugar no seu Poesia romântica. (SOUZA, 1999, p. 80).

Cita ainda José Veríssimo, que depois de mencionar vários poetas secundários, entre eles Velho da Silva, emitiria o seguinte juízo:

Publicistas, políticos, diplomatas, advogados, médicos, funcionários públicos, poetas o são apenas ocasionalmente, inconsequentemente, mais de recreio que de vocação, e a sua obra de amadores sobre escassa, o que lhes revê a inópia do estro, é em suma insignificante. (1916, p. 162 apud SOUZA, 1999, p. 80).

Roberto Acízelo não deixa dúvidas quanto ao lugar de José Maria Velho da Silva na história da literatura brasileira: ao contrário do que diria Dr. Semana, o poeta nem de longe poderia fazer parte do panteão dos grandes poetas; a não ser que fosse um outro tipo de panteão: o panteão dos ilustres desconhecidos, já que na própria Semana Ilustrada é possível encontrar outras espécies de panteões, como, em tom galhofeiro, se menciona o “Pantheon dos maridos dedicados” (DR. SEMANA, 27 mar. 1864, p. 1374). Galhofas à parte, é mister não confiar em sentença alheia, mas sempre rever os pareceres dados, principalmente se estes foram feitos há muito tempo. Embora tudo indique que os críticos estejam corretos, é importante situar o contexto de tais medíocres produções, ou mesmo apontar o porquê da exatidão e da atualidade de tais juízos. O “Canto à Independência do Brasil” é a primeira obra que se tem notícia do poeta. Dividido em três partes, o poema narra desde a época anterior à vinda dos portugueses ao Brasil, até a comemoração da independência, com elogios aos heróis da pátria e ao Imperador. Tendo ao todo 57 estrofes, a composição é muito desigual, não apenas na estrutura, como na abordagem. A primeira parte é constituída por 14 quartetos hendecassílabos, em rimas pobres e alternadas7. Logo no início, aparece a imagem do “gigante que dorme”.

I. Incauto, tranquilo, dormia o gigante À sombra dos cedros das matas que tem; Nem cuida imprevisto, nem pensa um instante

7 O poema abre com a seguinte epígrafe, de John Sanderson: The memory of those eminent personages who proclaimed the Independence of America, by the memorable events and haperishable records, to which their names are associated, is secure from the injuries of time. 10

N’ardente cobiça dos povos d’além. (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3226).

Essa imagem do “gigante que dorme” e do “gigante que acorda”, e que estará presente ao longo do poema, refere-se ao próprio país. Assim, o Brasil é “gigante pela própria natureza” e está “deitado eternamente em berço esplêndido”, como consta na letra definitiva do Hino Nacional Brasileiro, de 1922. Ou seja, não apenas o país é extenso, mas está situado num berço esplêndido, numa terra cheia de riquezas naturais. E essa ideia do “país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza”, contida ainda na música de Jorge Ben, faz parte do mito fundador da identidade nacional brasileira. O Brasil era representado como o próprio paraíso perdido, o Jardim do Éden. Essa imagem, repetida desde a carta de Caminha, e confirmada por outro símbolo nacional, a bandeira do Brasil, aparece amiúde nesse poema. A representação do “gigante dormindo” também remete à mitologia grega. Por terem se rebelado contra Zeus, os gigantes foram por este aniquilados e transformados em montanhas, ilhas e montes. Dessa forma, a declaração de que o gigante acordou relaciona- se, ao mesmo tempo, com a volta ao estado anterior do gigante/natureza, e, num sentido figurado e metonímico, com o povo habitante dessa natureza, que passa a ter uma consciência mais crítica. As manifestações populares no Brasil em junho de 2013 são um exemplo dessa última acepção. Voltando ao poema de José Maria Velho da Silva, na primeira estrofe da primeira parte do poema o gigante dorme tranquilo e nem pensa “na cobiça dos povos d’além”; na segunda estrofe novamente ele “nem sonha que raças estranhas“ “demandem seus ínvios palmares”:

Em torno vigiam-lhe altivas montanhas Os rios, os campos, as selvas, os mares, Por isso nem sonha que raças estranhas Afoitas demandem seus ínvios palmares; (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3226).

E após duas estrofes de descrição da rica natureza que esconde “tesouros sem fim”:

Os plainos, os vales, as serras erguidas, Os bosques frondosos, as límpidas fontes, O ouro das terras, as gemas luzidas, Seu sol que matiza seus púrpuros montes,

O centro das matas, as brenhas sombrias, As grutas que guardam a opala e o rubim; O dorso alteroso de mil penedias, Que escondem no seio tesouros sem fim. (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3226). 11

Mais uma vez aparece o gigante que “jaz indolente” e que “nem sonha que a terra lhe venham tomar”:

Incauto o gigante, lá jaz indolente Zombando das fúrias das águas do mar; Das selvas incultas na vida inocente Nem sonha que a terra lhe venham tomar. (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3226).

Mais seis vezes aparecerá a imagem do gigante: no fim da primeira parte, após resumir o que aconteceria aos índios, que de “filho das matas, outr’ora feliz” passa a definhar nos “ferros de vil servidão”, desperta o gigante “do sono maldito”, não gosta do que vê e volta a adormecer; na primeira estrofe da segunda parte, em que o gigante teria dormido “a longa noite de 300 anos”, sem saber o que eram “liberdade e porvir e nome e glória”; na segunda estrofe da segunda parte surge o verso: “os gigantes do bosque, ei-los por terra”, sugerindo a devastação da natureza para exploração de riquezas e para o surgimento de povoados; já na terceira parte, na primeira estrofe, em vez de “gigante” o poeta usa o termo “colosso” para se referir à transformação do país: “Em áureo pedestal que afronta as eras/um colosso se ergueu [...]”; já na 26ª estrofe o gigante é o próprio D. Pedro I, proclamando a Independência:

E gigante se ergueu dos céus n’altura, E com a voz do trovão pelas montanhas Soltara o brado – Independência ou morte – Independência ou morte – muito tempo Reboou nas abóbadas do espaço. (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3231).

Por fim, na estrofe seguinte, novamente o gigante se confunde com a natureza, que acorda e também grita a independência:

O gigante acordou, ergueu-se, ergueu-se E sobre o Equador, bradara aos polos – Independência ou morte – o rio, a serra De espaço a espaço o brado repetiam Como quem d’um letargo abrira os olhos Sonhando prantos, despertando em risos. (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3226).

Algo que chama a atenção na leitura desse extenso poema é a mudança de tom que nele há, com contradições e oscilações, tanto estruturais quanto ideológicas. Começando com as contradições e oscilações ideológicas, é possível observar que, num primeiro momento, o índio é retratado, na primeira parte, como inocente, filho das 12

matas, outr’ora feliz, que com a invasão dos povos d’além passa a definhar “nos ferros de vil servidão”. É inofensivo, arredio, e passa a vaguear sem pátria, medroso, “ou verga entre ferros, cativo, a gemer”. E ao retratar a vinda dos portugueses fala em “ardente cobiça”, “gente atrevida”, “voraz ambição”. Na segunda parte, após falar da devastação da natureza para exploração da terra, e do surgimento de povoações, ao se referir ao índio agora usa o adjetivo “ignavo”, que quer dizer “preguiçoso, indolente, covarde”:

Nos entresseios das florestas virgens Onde repousa em paz o índio ignavo, Foi astuto chatim sorver-lhe o ouro E em troco os ferros lhe lançou de escravo (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3227).

Apesar de criticar o modo como tudo aconteceu, há a seguir o elogio do português, homem de ação, em contraste com a inércia do índio. Além disso, faz a apologia da catequização indígena:

Só é grande o Levita!...a unção nos lábios, Na dextra o breviário, e a cruz erguida, Co’a doutrina demove e arranca às trevas Da humana raça à geração perdida; (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3227).

Mártir da fé, afoito afronta as setas, Desarma as tribos co’a palavra santa; Dos ídolos a um Deus, do erro à verdade, Da terra ao céu, os bárbaros levanta; (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3227).

Chamando, assim, aos índios não-cristãos de “geração perdida” e “bárbaros”, justifica a imposição da fé ocidental. Também contrapõe a morada e a cultura do índio ao povo civilizado:

Sobre os destroços das extintas selvas Templos se alçaram, ruas se estenderam, Às tabas do gentio inculto e rude Populosas cidades sucederam;

Dispersados os íncolas da terra, Das mantilhas do berço ergueu-se um povo Repleto de vigor, sonhando as glórias Do ridente porvir d’um mundo novo. (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3227).

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Além disso, ao falar do brado retumbante de D. Pedro, dá a entender que tal brado só acontece após a interferência do anjo do Brasil. Sendo assim, apesar de querer elogiar o Imperador, tira-lhe o mérito. Sejam vistas as estrofes 5 a 16 da terceira parte:

Entre a augusta família, inda na infância um herói do porvir, príncipe egrégio, era a arca santa de propícios fados, em cujo seio, próvidos arcanos, o anjo das nações guardado havia como o germe em crisálida formosa, que em flórido jardim se apraz de aromas e após longo torpor, o seio abrindo, deixa livre adejar em torno às flores, borboleta gentil que ao sol doideja.

Em nuvem, como um trono recamado De telas iriantes que balouçam Da brisa ao perpassar, em tarde estiva; Envolto em roçagantes, soltas vestes De verde esmeraldino e listras d’ouro, E uma esfera armilar na dextra, erguida, O anjo tutelar de nossos fados, Circundado de luz; do céu baixara E do leito do Príncipe acercando-se, Da noite na mudez, por voz do Eterno Em fatídico sonho, assim lhe fala:

“Sabe, que guardo os términos famosos Da vasta região que a nau demanda, Dessa Terra da Cruz, que a insânia do homem Por falace ambição – Brasil – chamara.

Ali num céu d’anil sereno e puro Um sol animador dá vida aos prados. À noite a lua prateando os lagos Empresta às águas dardejantes lumes. Milhões de estrelas lúcidas recamam Vasto manto d’azul sem mancha leve. O bosque, o monte, o prado, os arvoredos De roupagens virentes se adereçam De estação a estação floridos sempre.

Do seio das montanhas pont’agudas, Que se banham no mar e o céu devassam Tolhendo ousadas o voar das nuvens; Brotam torrentes que espumando rolam Bramindo de furor e após se adunam Em rios colossais, que em vastos leitos Rompem as terras, disputando aos mares, Em luta de leões, domínio e força.

Seus tesouros vastíssimos reparte Com generosa mão, provida a terra, Quando seus ferros sotopostos cofres, Da guardada riqueza à cópia cedem; Dos fechos de diamantes incendidos Rebentam-se os firmais, fende-se o solo 14

E correm como areia entre fraguedos Em veios perenais, regatos d’ouro.

O lúcido brilhante, o ametisto, O topázio, o rubim, a vária opala, Como estrelas de rubidos fulgores Dardejam luz nas furnas das montanhas.

Ali os homens são leais e crentes, Dóceis por gênio, bravos por instinto; Amar a Deus, ao rei, à pátria, à glória É-lhes dogma, é-lhes lei, preceito e crença Da independência o amor ferve-lhes n’alma Como a lava em vulcão, ardendo oculta Enquanto na expansão não rompe os diques.

Um dia surgirá, almo e risonho, D’um povo nos anais, fastoso dia! Seu Gênesis será: o livro sacro De sua criação. Só vive um povo Quando rompendo a rígida tutela Livre caminha e glorioso alcança Direitos, nome e pátria e liberdade. Tal será o país que vos confio Nesse dia feliz que o céu destina.

Esta esfera, meu símbolo de glória; As cores deste manto, hei de entregar-vos; Elas serão os nobres, respeitáveis, Vividouros troféus de um povo ilustre. Eternos lhe serão, Deus lh’os outorga E promessas de um Deus jamais faltaram”:

Disse, ergueu-se e voou, após deixando Longo esteiro de luz, que desde os mares Se ia engastando n’amplidão do espaço.

De um êxtase divino arrebatado O Príncipe desperta, e após instantes Entre raios de luz divisa ainda Do manto as cores, a armilar esfera Que a celeste visão tão alto erguera. Desde então no sacrário de seu peito, Do anjo a predição guardou-se inteira. (VELHO DA SILVA, 06 set. 1868, p. 3227-3228).

Palavras difíceis são aqui bastante empregadas como prova de erudição, mas não funcionam na composição, que também carece de harmonia. É possível ver no poema o professor de retórica, que nem de longe possuía o engenho e a arte de Castro Alves, que, no mesmo dia 7 de setembro de 1868, estava fazendo uma apresentação pública de “Tragédia no mar”, que depois ganharia o nome de O Navio Negreiro (1869). O poeta, com as oscilações que há entre métrica, rimas e estrofes, quis certamente compor três movimentos que, num crescendo, terminaria com a apoteose do louvor à independência, mas o resultado não foi o esperado, pois que ecoa truncado e desarmônico. 15

Assim como Roberto Acízelo considerou os manuais de Velho da Silva apenas uma repetição de livros anteriores, o poeta, mais do que da Silva, soa Velho. Sobrando clichês e faltando talento, José Maria Velho da Silva deve ser estudado mais histórica que poeticamente.

Referências

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DR. SEMANA. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, n.404, p. 3226, 06 set. 1868.

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VELHO DA SILVA, José Maria. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, n. 404, p. 3226-3231, 06 set. 1868. 16

A REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NACIONAL BRASILEIRA

Aline Rafaela Portílio LEMES1

Todas as nações buscaram e buscam se afirmar por meio da criação de uma memória nacional. A construção dessa memória visa homogeneizar a população em torno do conceito de nação, apagando quaisquer tipos de diferenças que possam existir de fato. Muitas vezes esse trabalho é bem sucedido, e mitos nacionais perpetuam-se. A utilização do índio, no caso brasileiro, é exemplar. Após a emancipação política de Portugal, especialmente em meados do século XIX, ocorrem acaloradas discussões entre os homens de letras imperiais a respeito do nacional. A obra de José de Alencar é profundamente permeada por essas questões, em especial seus romances indianistas. À vista do exposto, realizaremos reflexões iniciais a respeito dos conceitos de memória e nação para, em seguida, pontuar algumas questões a respeito da utilização do índio na construção da memória nacional brasileira.

Memória e identidade nacional

A memória é um elemento presente em todos os indivíduos, seja na sua forma pessoal de memória individual, seja na sua forma social de memória coletiva. Como a primeira, imprescindível para a construção do indivíduo, a memória coletiva é indispensável à constituição da identidade de determinado grupo, formando um vínculo. Segundo Araújo,

Os indivíduos compartilham da construção da memória coletiva, sentem-se parte do mesmo grupo, pois têm a mesma história, uma memória comum a todos, composta por acontecimentos vivenciados ou que lhes foram contados como se fossem suas, passando então, a fazer parte do seu imaginário. Vê-se que a memória coletiva, assim como a identidade social, é composta por dados objetivos e subjetivos. Uma memória também é preenchida por fatos criados a partir de interpretações que o grupo faz da realidade, cujo resultado permanece na memória. Todavia, ela não é composta por toda a realidade objetiva, ou seja, por todos os acontecimentos vividos pelo grupo. Alguns deles são preteridos na composição da memória e a escolha do que será privilegiado ou não pela memória está ancorada nos critérios subjetivos do grupo (1997, p. 204).

1 Mestranda - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 17

A memória coletiva, portanto, não se relaciona apenas com a realidade objetiva, mas também com as representações coletivas de determinado grupo. Segundo Le Goff (1990), a memória, propriedade de conservar determinadas informações, remete em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas. Assim, seu estudo abarca áreas como a psicofisiologia, a neurofisiologia e a biologia. Certos aspectos do estudo da memória nessas ciências podem evocar problemas relacionados à memória histórica e à memória social. Podem se estabelecer diálogos, portanto, entre o estudo da memória na sua esfera psicológica e na sua esfera das ciências humanas e sociais. Interessante pensar essas relações também por meio da amnésia, que pode relacionar-se à “[...] falta ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações” (LE GOFF, 1990, p. 425).

[...] os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento [...], nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1990, p. 426).

Le Goff realiza uma diferenciação entre as sociedades de memória essencialmente oral e as sociedades de memória essencialmente escrita, ressaltando também as fases de transição da oralidade à escrita. Segundo o autor, o aparecimento da escrita relaciona-se a uma profunda transformação da memória coletiva. Primeiramente, a memória transforma-se por meio da comemoração, da celebração por meio de um monumento comemorativo ou um acontecimento memorável – assumindo a forma de inscrição. Por outro lado, a memória transforma-se, por meio do documento escrito, em um suporte especialmente destinado à escrita. A escrita, no entanto, convive com a memória oral, e não é “[...] pura coincidência o fato de a escrita anotar o que não se fabrica nem se vive cotidianamente, mas sim o que constitui a ossatura duma sociedade urbanizada” (LE GOFF, 1990, p. 433). Essa transformação da memória relaciona-se a um aspecto da organização de um poder novo. Assim, é valendo-se da escrita que Le Goff localiza a instituição do mnemon e o desenvolvimento das mnemotécnicas. Extrapolando essas reflexões, Pierre Nora (1981) afirma a obsessão pela memória ser característica de uma sociedade na qual ela não existe mais, de uma sociedade marcada pela aceleração da história.

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A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular da nossa história. Momento de articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória. (NORA, 1981, p. 7).

Nora opõe, então, uma “memória verdadeira” à história:

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado [...]. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une [...]. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA, 1981, p. 9).

A crítica histórica destrói, para Nora, a memória espontânea – ela a dessacraliza. Se a história conserva “museus, medalhas e monumentos” (um arsenal necessário ao seu trabalho), ela os esvazia daquilo que os faz lugares de memória. O ato de “historiografar” determinado acontecimento significa que não nos identificamos mais completamente com sua lembrança.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais [...]. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. (NORA, 1981, p. 13).

Ocorre o que Nora chama de uma “metamorfose contemporânea”, na qual a necessidade de memória é, na realidade, uma necessidade da história. É uma memória que não é mais memória, e sim história; possui a necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis – daí a obsessão pelo arquivo. Não mais uma prática social, mas uma memória que nos vem do exterior e é interiorizada como uma obrigação.

À medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar prova em que não se sabe que tribunal 19

da história. O sagrado investiu-se no vestígio que é sua negação. (NORA, 1981, p. 15).

É uma memória arquivo, dever e distância: “O passado nos é dado como radicalmente outro, ele é esse mundo do qual estamos desligados para sempre” (NORA, 1981, p. 19). É colocada em evidência toda a extensão que dele nos separa. Não se busca mais uma gênese, mas destaca-se a diferença, “[...] o deciframento do que somos à luz do que não somos mais” (NORA, 1981, p. 20). “A nação-memória terá sido a última encarnação da história-memória” (NORA, 1981, p. 12). A expansão da memória coletiva, segundo Le Goff, ocasionada na Renascença pela imprensa – já que “[...] não só o leitor é colocado em presença de uma memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de fixar integralmente, mas é freqüentemente colocado em situação de explorar textos novos” (LE GOFF, 1990, p. 457) – explode na Revolução de 1789. O século XIX assiste a uma explosão do espírito comemorativo. A comemoração surge como uma necessidade de se alimentar, por meio da festa, a recordação da revolução. Com isso aparece também a manipulação da memória, bem como a aceleração do movimento científico destinado a fornecer à memória coletiva nacional seus monumentos de lembrança – não é ao acaso que a preocupação com a definição de políticas para a salvaguarda dos bens que conformam o “patrimônio cultural” remonte a essa época.

A comemoração apropria-se de novos instrumentos de suporte: moedas, medalhas, selos de correio multiplicam-se. A partir de meados do século XIX, aproximadamente, uma nova vaga de estatuária, uma nova civilização da inscrição (monumentos, placas de paredes, placas comemorativas nas casas de mortos ilustres) submerge as nações européias. (LE GOFF, 1990, p. 464).

Ocorre, no século XIX, portanto, uma significativa proliferação de mitologias revolucionárias que criam um determinado tipo de memória social. Isso não acontece apenas na Europa, mas também aparece de maneira significativa na América, em decorrência das revoluções que deram origem a novas nações. Assim,

Os novos grupos governantes precisam fazer com que essas grandes convulsões sociais e políticas pareçam naturais, heróicas, legítimas e justas para permitir que a população em geral extraia algum sentido de suas experiências de guerra interna, desorganização social e morte. As práticas e instituições sociais pós-revolucionárias [...] colaboram para deixar a marca da inevitabilidade no violento desaparecimento do antigo regime e surgimento do novo. (YOUNG, 2008, p. 267).

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Isto é, há a necessidade de construção de uma memória social que vise legitimar o novo regime. Isso implica, por outro lado, a seleção de determinados elementos e o silenciamento de outros:

[...] o ato da recordação criativa implica também o esquecimento seletivo. Caminhos políticos não trilhados são apagados dos mapas da história oficialista, vozes dissidentes daquela época são silenciadas, grupos sociais inconvenientes são eliminados do quadro ou suas ações são reconfiguradas para entrar em harmonia com um cenário idealizado, mais perfeito. (YOUNG, 2008, p. 268).

A construção de uma memória nacional pode ser um dos exemplos mais significativos de como se opera um projeto que visa harmonizar elementos diversos e por vezes contraditórios, numa teleologia da revolução nacionalista. Se podemos afirmar como fato a construção de uma memória nacional, os conceitos de nação e nacionalismo são mais controversos. Se Benedict Anderson (2008) descreve a nação como uma comunidade política imaginada, intrinsecamente limitada e soberana, e o nacionalismo como o nascimento de uma nova subjetividade, não é possível afirmar que tais sentimentos estivessem presentes no momento da emancipação política dos países americanos. Abordando especificamente o caso da independência mexicana, Young defende que, se é possível encontrar tal sentimento no discurso político da elite, o mesmo não ocorre com as visões subalternas da política. Isto é, o autor diferencia o “movimento nacionalista” – programa de um segmento muito restrito da população – do nacionalismo em si, entendido como uma identificação cognitiva e afetiva praticamente universal. Young argumenta que não havia uma subjetividade nacionalista no grosso populacional mexicano na década de insurreição na Nova Espanha, que resultou na independência mexicana em 1821. A crença no papel histórico do Estado-nação constituiu um ponto de convergência entre o pensamento da elite crioula e o pensamento revolucionário mais amplo do mundo Atlântico, dentro do qual as ideias dos insurretos mexicanos crioulos em parte se formavam. Isso, no entanto, estava totalmente ausente das ideias políticas populares e das formas de identificação de grupos. O lugar central no pensamento das massas rurais mexicanas seria ocupado pela lealdade à comunidade natal e à realeza mística com matizes messiânicos.

Do mesmo modo que com as formas constitucionais, porém, há poucos indícios comprobatórios de que as idéias crioulas sobre a nacionalidade, a soberania popular, a mexicanidade emergente ou a cidadania tivessem qualquer repercussão, a não ser as mais imperceptíveis, nos conceitos populares de identidade pessoal ou de comunidade. (YOUNG, 2008, p. 278).

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A respeito dos Estados Unidos, Jack P. Greene (2008) mostra que a identidade que unia os colonos norte-americanos girava em torno de sua ligação com o Estado nacional da Grã-Bretanha. O povo predominantemente inglês que criou e organizou todas as colônias britânicas na América carregava consigo vínculos profundos com a cultura britânica e com a identidade nacional implícita nela.

[...] um sentido de identidade nacional nítido e bem articulado foi um produto final da era elisabetana e início da jacobina, o período exato em que ingleses estavam começando a formar as primeiras colônias inglesas na América. O protestantismo e, cada vez mais durante o final do século XVII e o XVIII, a lenta expansão da superioridade comercial e marítima da nação inglesa eram componentes significativos dessa identidade. Muito mais significativo, porém, era o sistema inglês de justiça e liberdade. (GREENE, 2008, p. 100).

Essa identidade compartilhada com os britânicos, no entanto, sempre foi mediada por um conjunto de “identidades coloniais”, que possuíam bases locais e sociais. Tais identidades foram determinantes quando as diversas medidas litigiosas entre as colônias e a Grã-Bretanha entre 1764 e 1776, aliadas a uma variedade de condições que há tempos já dificultavam as relações (tais como a distância física e os contrastes culturais e sociais), acabaram por gerar o que veio a ser conhecido como a Revolução Americana.

[...] quando os colonos abandonaram sua ligação formal com a Grã- Bretanha, não se tratou tanto de eles terem renunciado a sua identidade britânica nacional, mas de reafirmarem sua adesão aos principais componentes daquela identidade, bem como seu uso como exemplo. Na segurança de suas diversas identidades provinciais, os líderes da resistência colonial podiam abandonar sua ligação com a Grã-Bretanha e transformar colônias em unidades políticas republicanas, sem medo de perder seu arraigado e psicologicamente importante sentido de si mesmos como povos protestantes, nascidos em liberdade, herdeiros legítimos das tradições britânicas do governo consensual e do Estado de direito. (GREENE, 2008, p. 103).

Assim, os líderes revolucionários não buscavam romper com a tradição cultural do mundo britânico; pelo contrário, reiteravam a continuidade de sua identificação com tal universo cultural mais amplo, do qual se sentiam como genuínos repositórios. Por muito tempo a identidade nacional americana permaneceu embrionária e superficial, ao passo que a importância central residia nas identidades provinciais. Greene demonstra, então, como tais identidades representaram um desafio para aqueles que aspiravam criar uma união nacional durável.

A união contingencial e orientada para a guerra que foi composta às pressas em 1775-76 pouco fez para promover uma profunda identidade nacional que rivalizasse com ela, e a Constituição de 1787 proporcionou 22

uma estrutura na qual as identidades dos estados poderiam facilmente coexistir com um emergente sentido de identidade nacional americana e até mesmo manter boa parte de sua vitalidade. (GREENE, 2008, p. 122).

O índio e a construção da memória nacional

O que nos interessa nas discussões mencionadas anteriormente é observar que a formação das nações não parte, necessariamente, de reivindicações étnicas ou nacionalistas. O caso da independência dos países americanos é impossível de ser explicado se partirmos desse pressuposto. As nações americanas possuíam um problema particular: criar uma nova nação a partir de uma antiga colônia europeia. Mais do que em ideias etnonacionalistas, a emancipação política dos países americanos baseou-se em queixas e interesses. Isso se torna claro quando observamos que a língua, as leis, as religiões e os costumes das novas nações americanas vieram, predominantemente, de suas antigas metrópoles europeias. Assim, na América – e, especialmente, na América Ibérica – o patriotismo e o nacionalismo tomaram rumos específicos.

Já na época da independência, o nacionalismo desenvolvia-se como um subproduto do Iluminismo e buscava uma liberdade fundada em direitos universais (e teoricamente concedida por eles). Ele procurava o reconhecimento e a defesa desses direitos mas jamais os fundamentou em reivindicações de uma identidade especial. O modelo era o da Revolução Francesa, não o chauvinismo napoleônico, mas um nacionalismo cívico subjacente. O nacionalismo característico de Simón Bolívar, por exemplo, carecia de referências a dimensões étnicas ou culturais; e tornava de natureza política o critério máximo da nacionalidade. (DOYLE; PAMPLONA, 2008, p. 22).

No entanto, a etnicidade é de suma importância para a formação da memória nacional. Isso pode ser observado no fato de que, uma vez formados os Estados-nação americanos, eles trataram de criar uma identidade nacional unificadora, ainda que se constituíssem por populações multiétnicas de indígenas, africanos, europeus e, mais tarde, asiáticos.

Escreveram histórias heróicas e homenagearam heróis nacionais. Construíram memoriais para as vitórias da nação e lamentaram suas derrotas. Procuraram comprovação de uma cultura nacional distinta em sua literatura, música e culinária. Na realidade, a necessidade de construir uma identidade nacional comum era exatamente tão premente nas sociedades de imigrantes multiétnicas das Américas quanto em outros países, mas as nações de imigrantes pós-coloniais tiveram de trabalhar com materiais diferentes. (DOYLE; PAMPLONA, 2008, p. 24).

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As tentativas de construção de uma identidade nacional não ocorriam a partir de uma exclusão da cultura europeia, mas baseavam-se nela. No caso brasileiro, particularmente, os relatos de viajantes e naturalistas europeus foram fundamentais para o escrever da nação. Eles elaboraram uma imagética a respeito dos costumes e hábitos da população brasileira, realizando um amplo inventário e ordenando as gentes pelo teor étnico e pelos costumes, perpassando sempre pela localidade. Assim criaram-se categorias como o paulista, o mameluco, o tropeiro, o homem dos pampas, entre outras. Parte considerável dessas memórias luso-brasileiras foi reeditada ao longo da primeira metade do século XIX, na forma de livretos ou em periódicos, circulando junto com uma acepção romântica de literatura nacional. Essas memórias também circulavam dentro do IHGB:

No IHGB valorizava-se esse gênero de escrita – memória –, porque subsidiava a história na ausência do documento – como testemunho – sobre o fato, o personagem, o lugar, ou para preencher suas lacunas [...]. Essa acepção e uso das memórias coadunavam-se com a grande e imprescindível tarefa que o próprio IHGB se impunha de ordenar e fundar uma história válida e totalizante para o país, ao colligir e methodizar os documentos e ao definir o modo de escrevê-la. (SCHIAVINATTO, 2003, p. 627-628).

A natureza e a gente do Brasil eram os assuntos preferidos desses viajantes. Não por acaso, portanto, serão também os dois grandes temas utilizados pelos homens de letras imperiais para explorar a construção de uma nacionalidade brasileira. Uma característica interessante da prosa alencariana é que a natureza empresta qualidades ao homem:

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. (ALENCAR, s/d, p. 12). O índio será também um dos principais temas do romantismo brasileiro, constituindo- se como reação política, social e literária contra Portugal e proporcionando um “retorno à verdadeira fonte do Brasil”, signo de brasilidade.

Se para Montaigne era uma faceta da curiosidade humanista, ou ainda uma peça que utiliza para dar o xeque-mate na Inquisição, se para Anchieta era uma necessidade para a catequese, se para os viajantes [...] um desejo de divulgação, se para Rousseau o achado com que, mentalmente, poderia combater o faraísmo da sociedade parisiense [...], se para Chateaubriand finalmente uma abertura de fronteiras, o exotismo, – para o romântico brasileiro é uma bandeira político-social, é nacionalismo. Para o europeu, a 24

fuga; para nós, a afirmação final. Depois da independência política, a literária. (SANTIAGO, 1965, p. 57-58).

Juntamente com a reação política, a reação filológica. Uma das características mais marcantes dos romances indianistas de Alencar é o manejo peculiar da língua portuguesa e a utilização de modismos brasileiros ou palavras indígenas. É inegável que Alencar possuísse conhecimentos de tupi-guarani, bem como a importância que o escritor dava a tais línguas. Essa ênfase pode ser comprovada pelas notas de rodapé presentes nos seus romances indianistas, que ilustram a preocupação do autor em realizar um retrato verossímil dos costumes indígenas e brasileiros. Demonstra, também, a importância estética que a língua indígena possuía para Alencar. Alencar possui consciência-estética do processo que desenvolve. Ele manipula conscientemente duas línguas que possuem uma estrutura diferente: a indígena, língua aglutinante, isto é, os vários afixos trazem significado quando se juntam ao formarem palavras; e a portuguesa, língua flexiva, na qual os afixos são meros condutores de conceitos. Se, por um lado, o índio e sua cultura possuem um papel determinante na prosa alencariana, são interessantes algumas observações a respeito de Iracema, romance publicado pela primeira vez em 1865. De caráter extremamente alegórico, o próprio subtítulo da obra – Lenda do Ceará – é revelador: o livro apresenta uma estrutura muito mais simplificada se o compararmos com o primeiro romance indianista de Alencar, O Guarani, publicado em 1857.

[...] o filho de Iracema e Martim será “o primeiro cearense”, e o próprio nome de Iracema [...] mal disfarça um anagrama de América. Iracema era assim a alegoria do mundo virgem conquistado, fecundado e, de certa maneira, também destruído pela civilização, já que deste contato só sobrevivem o europeu, imutável ao longo do romance, e o seu filho, símbolo da nova raça, mas não Iracema/América, virgem que acolhera ao primeiro e gerara o segundo. Esta fora de fato aniquilada, e o que se via ao fim da história era já um mundo novo que, apesar de sua origem e natureza próprias, pertencia definitivamente à civilização. (CANO, 2001, p. 190-191).

Iracema finaliza, então, com a supremacia da “civilização” sobre a “barbárie”, que possuía como destino inevitável a extinção; o único vestígio seria Moacir, filho do sofrimento, fruto do desencontrado. Enfim, Alencar conclui: “A jandaia cantava ainda no ôlho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sôbre a terra” (ALENCAR, s/d, p. 80). É explícita, portanto, a tensão que envolveu a construção da nacionalidade brasileira. Como assinala Wilma Peres Costa,

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[...] no Brasil e em outras nações americanas a independência implicou um complexo equilíbrio de alianças e rupturas com metrópoles que eram fontes de identidade política e cultural. Essa situação envolveu um processo muito complicado de manutenção de alguns valores, destruição de outros e, ao mesmo tempo, reconstrução de novos laços com o mundo europeu e o sistema mundial de Estados-nação. Para conseguir isso, o Brasil, como outras novas nações americanas, teria de levar em conta referências que eram ao mesmo tempo distintas daquelas das antigas potências coloniais, mas que, ainda assim, precisavam permanecer ligadas à Europa e ser aceitas pelos padrões europeus. (2008, p. 299).

Assim, “O movimento de identificação nacional, portanto, ao mesmo tempo em que realça o exótico da terra brasílica, o faz por meio de um código marcado pela modernidade parisiense” (DECCA, 2002, p. 92). A origem da nação, tanto no discurso histórico como no literário, parte de um contato fundador entre o elemento branco e o aborígene americano, no qual o segundo desaparece e o primeiro tem a supremacia cultural. Podemos afirmar que esse é um dos traços determinantes de O Guarani: o amor de um ameríndio por uma europeia servindo de metáfora para o encontro das duas raças que constituirão a nacionalidade brasileira. Segundo Decca (2002), o Brasil buscou se diferenciar de Portugal de duas maneiras: falando exaustivamente de si e ressaltando tudo o que é exótico, e buscando novas referências na cultura parisiense, uma Europa marcada pelos signos da modernidade.

[...] vai se construindo uma tradição nacional a partir da figura do indígena, absolutamente degradado e destituído cultural e materialmente falando. No entanto, essa majestade é o elemento exótico mais importante de uma literatura que se pretende fundadora da nacionalidade. Nessa representação literária da realidade, o índio afigura-se ao mesmo tempo como tradição e como elo majestoso para uma modernidade a se instaurar distanciada da antiga identidade paterna, isto é, de Portugal. Os padrões estéticos parisienses que acabaram moldando as representações literárias e historiográficas brasileiras funcionaram como contrapontos à tradição lusitana. (DECCA, 2002, p. 96).

A representação do índio como um elemento do passado se torna extremamente útil para uma sociedade crescentemente interessada na questão de terras. Se a princípio é reconhecido o direito de primazia dos índios sobre suas terras, ocorre, ao longo do século XIX, um processo de espoliação gradual. Toda a sorte de subterfúgios será usada.

[...] começa-se por concentrar em aldeamentos as chamadas “hordas selvagens”, liberando-se vastas áreas, sobre as quais seus títulos eram incontestes, e trocando-as por limitadas terras de aldeias; ao mesmo tempo, encoraja-se o estabelecimento de estranhos em sua vizinhança; concedem- se terras inalienáveis às aldeias, mas aforam-se áreas dentro delas para o seu sustento; deportam-se aldeias e concentram-se grupos distintos; a seguir, extinguem-se aldeias a pretexto de que os índios se acham “confundidos com a massa da população”; ignora-se o dispositivo de lei que atribui aos índios a propriedade da terra das aldeias extintas e concedem- 26

se-lhes apenas lotes dentro delas; revertem-se as áreas restantes ao Império e depois às províncias, que as repassam aos municípios para que as vendam aos foreiros ou as utilizem para a criação de novos centros de população. Cada passo é uma pequena burla, e o produto final, resultante desses passos mesquinhos, é uma expropriação total. (CUNHA, 2012, p. 81-82).

Fica claro, assim, como a representação do índio na construção da memória nacional brasileira se constitui como um exemplo expressivo dos conflitos, silêncios e esquecimentos presentes no processo de construção da nação. Embora Peri e Iracema sejam glorificados por meio de uma imagem majestosa, eles pertencem ao passado e tem sua cultura em estado de ruína, necessitando abdicar dela para poder integrar-se à nova nação que estava se constituindo. Por um lado, os índios são reconhecidos como personagens do passado; por outro, é ignorada e silenciada sua atuação no presente.

Referências

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HUMOR E CRÍTICA NAS NARRATIVAS EPISTOLARES DE O PIRRALHO

Beatriz RODRIGUES1

Por meio de diferentes linguagens, O Pirralho publicou diversas seções de narrativas epistolares. As correspondências estiveram presentes durante a maior parte de existência do periódico, entre os anos de 1911 e 1917 e foram escritas em dialeto caipira, em macarrônico italiano e alemão. Numa ortografia quase fonética, os cronistas da cidade buscaram códigos alternativos que expressassem os acontecimentos do momento e que refletissem diretamente sobre a nova forma de vida da cidade de São Paulo. Com alto teor cômico e sarcástico, estes textos expressavam a integração do caipira e do imigrante na metrópole. Deste modo, propõe-se a análise das seções de correspondências de O Pirralho, destacando-se as que foram escritas em dialeto caipira. O Pirralho, periódico fundado em 1911 por Oswald de Andrade, possuía não somente um caráter humorístico como literário, social e até político, como afirma Brito Broca (2004, p. 311). Por meio de uma linguagem informal, ágil e pautada no humor, colocava em destaque o cotidiano da cidade de São Paulo. Circulando até o ano de 1917, procurou manter, em termos políticos e estéticos, um comportamento arrojado, o que na prática significou um embate contínuo, sobretudo entre figuras proeminentes do cenário político brasileiro. Ao percorrer as páginas irreverentes de O Pirralho, encontramos críticas artísticas e literárias, notas culturais, comentários políticos e esportivos, além de muitas caricaturas e fotografias. As seções de correspondências epistolares, que captavam as várias vozes presentes na metrópole em formação, eram não somente uma marca distintiva do semanário, mas também uma das melhores expressões e representações da belle époque paulistana. Para muitos autores, O Pirralho já antecipava muito do que seria proposto em termos ideológicos, estéticos e culturais pelo movimento modernista (CRESPO, 1990, p. 29). Calcado no humor, na ironia e na paródia, O Pirralho afastava-se do caráter sisudo e comedido de grande parte da imprensa da época. Poderíamos dizer que trafegou na contramão dos parâmetros estabelecidos pela norma letrada, na medida em que se utilizou

1 Mestranda - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Franca - Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP.14409-160 - Franca, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 29

de uma linguagem concisa, híbrida e irreverente.2 O próprio periódico assumia o caráter despojado e ironizava com os excessivos rebuscamentos e formalismos, como demonstra um de seus cronistas: “O Pirralho gosta muito de troça, de pagodeira. Apezar disso, frequenta tambem bôa sociedade, mesmo não tendo ainda educação suficiente, nem paciência p’ra’ essas coisas.” (O PIRRALHO..., 07 out. 1911, p. 07) De modo geral, havia por parte das revistas da época, a tentativa de acompanhar o movimento de expansão da imprensa, que sugeria que os periódicos tivessem uma escrita mais dinâmica. Houve uma crescente aproximação de conteúdos mais leves, de narrativas curtas, sintéticas, objetivas, contos-casos, textos-relâmpagos, caricaturas e textos humorísticos.

No lugar de descrições áridas e os pesados artigos de fundo, entram quadrinhas, historietas, diálogos curtos e a crônica mais afeita ao linguajar do dia-a-dia e ao gosto do novo público que procura cativar. Personalidades políticas, grupos sociais diversos, figuras típicas da cidade são alegorizados em personagens com falas próprias. A gíria da moda, os estrangeirismos franceses e depois yankees penetram a crônica, os falares dos imigrantes são traduzidos em fala macarrônica e a presença das populações interioranas mostra-se através dos dialetos caipiras. (CRUZ, 2000, p. 111).

O ritmo das mudanças na cidade transformava a própria linguagem dos periódicos e O Pirralho, por sua vez, promoveu aquilo que Paula Janovitch (2006, p. 184) denominou de “congestão de línguas”.3 Este aspecto se deve ao fato de ter trazido para dentro de suas páginas a sonoridade das ruas, numa ortografia quase fonética. Formado pela escrita dos imigrantes e dos caipiras recém-chegados, o linguajar das ruas era transplantado para o semanário através das diversas seções de narrativas epistolares. Em formato de cartas, publicavam-se textos em páginas inteiras, geralmente divididas em colunas, que teciam um panorama muito crítico e bem humorado da vida paulistana. Em linguagem macarrônica, misto de duas linguagens diferentes, que no caso brasileiro foi formada pela mistura do português com uma língua estrangeira, surgia uma profusão de correspondências.4 As correspondências macarrônicas de O Pirralho eram compostas pelo português falado no Brasil, misturado com italiano ou alemão. Pautadas por uma espécie de linguagem de transição, as correspondências misturavam diferentes linguagens que sintetizavam o momento peculiar da imigração pela qual a cidade passava.

2 É preciso salientar que apesar do despojamento de O Pirralho, o periódico contava com a colaboração de escritores bastante renomados no período, tais como Olavo Bilac, Emílio de Menezes, Afonso Celso, José do Patrocínio Filho, dentre outros. Olavo Bilac, por exemplo, “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, publicou diversas de suas poesias no periódico. 3 Ver: A força do macarrão, o poder misterioso da batata, o efeito líquido da cerveja e o que o milho tem a ver com isso!!! Uma congestão de línguas promovida por O Pirralho. In: JANOVITCH, Paula. 2000, p. 184-199. 4 Sobre a linguagem macarrônica, ver: CAPELA, Carlos Eduardo. S. “Entrevôos macarrônicos” em Travessia (Revista de Literatura), n. 39, jul-dez. 1999, Florianópolis, UFSC. JANOVITCH, Paula. Correspondências Macarrônicas. In: Preso por Trocadilho. São Paulo: Alameda, 2006, p. 160-184. SALIBA, Elias Thomé. A macarrônea dos desenraizados: humoristas em São Paulo. In: Raízes do Riso. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 154-215. 30

O correspondente alemão era Franz Kennipperlein5 e o italiano, Juó Bananére, sucessor de Annibal Scipione (Oswald de Andrade). Certamente Juó Bananére, pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, foi um dos maiores cronistas macarrônicos do Brasil, não apenas pela extensão do material que produziu, mas pela agudeza com que se utilizou deste recurso linguístico. Bananére escreveu as “Cartas do Abaix’o Pigues”, “O Rigalegio” e “O Féxa”, em uma mistura intencional de italiano e português, expondo a voz do imigrante italiano que vinha para o país. Sua forma de escrita se assemelhava ao falante não letrado de São Paulo, pois como dizia o próprio Bananére, “a artugrafia muderna é uma maniera di screvê, chi a genti escrive uguali como disse [...].” (BANANÉRE, 13 jul. 1912, não paginado) No interior de O Pirralho, ao lado das correspondências macarrônicas, encontramos várias narrativas epistolares em dialeto caipira. Aos olhos de hoje, o gênero carta pode despertar curiosidade. Porém, num tempo em que a comunicação era feita desta forma, nada mais esperado que ela fosse transplantada para o periódico em formato criativo. As colunas de cartas, com alto teor sarcástico e cômico, retratavam a inserção do caipira na cidade de São Paulo e o cotidiano na metrópole em formação. Os assuntos eram os mais variados possíveis: os fatos ocorridos ao longo da semana em locais públicos, os problemas relacionados à urbanização, a situação política, a vida do caipira na metrópole e assim por diante. De acordo com Paula Janovitch (2003, p. 214), estas cartas constituíam-se quase como crônicas da semana, já que se tratava de um estilo epistolar com teor de atualidades. Ao longo dos sete anos de circulação de O Pirralho, foram encontrados aproximadamente oito títulos distintos de cartas caipiras, sem levar em consideração a variação de nome que um mesmo título poderia sofrer. Tentar contabilizar ou qualificar estas cartas não é tarefa fácil tendo em vista que os cronistas não seguiram uma lógica de publicação. Algumas cartas eram sequenciadas, sendo publicadas diversas vezes no periódico, tais como Carta de um caipira e Correspondência da Xiririca, ambas assinadas por Fidêncio José da Costa, Cartas de Nho Vadô, assinadas por Vadosinho Cambará e Calta prus povo, assinada por Nastacio Figuêra. Outras, porém, apareceram apenas uma ou duas vezes no semanário. Neste trabalho, salientaremos os aspectos mais marcantes destas cartas de um modo geral. As cartas caipiras de O Pirralho eram encaminhadas para a própria redação do periódico ou para um personagem fictício que vivia no campo. Na maior parte das vezes, encontramos cartas que foram enviadas ao próprio semanário, iniciando-se com os dizeres: “Seo Redatô do Pirraio” ou “amigo seo redatô”. Nos casos em que as cartas eram enviadas a um amigo distante, não encontramos, ao menos em O Pirralho, casos de resposta. Este fato é compreensível se pensarmos que o intuito destas cartas era refletir sobre a realidade

5 Em virtude da grande utilização de pseudônimos em O Pirralho, não é possível afirmar o verdadeiro autor do macarronismo alemão. Paula Janovitch (2000, p. 185) acredita que pela proximidade com o macarronismo italiano, é provável que se tratasse do próprio Oswald de Andrade ou de Alexandre Marcondes Machado. 31

urbana e não rural. Eram cartas escritas na cidade, pelo homem do interior que lá vivia ou que por lá estava de passagem e que contava ao amigo suas experiências. Por este motivo, são “conversas” afetuosas: “Querida Cumade Zinha - pra principiá – Sodação – Ansim é que a gente hoje desabafa o coração. Já vai indo pra dois meis, que mudei pra capitá [...]”

(CAMBARÁ, 04 abr. 1916, não paginado) Em geral, o caipira não está sozinho na cidade, mas acompanhado pelos familiares. Nas cartas, os membros da família acabam se tornando personagens e os leitores adentram na lógica do grupo. O autor da carta é geralmente o protagonista e representa o pai e o marido do núcleo familiar. Existem, em poucos casos, pseudônimos femininos, mas eles não aparecem em O Pirralho.6 As mulheres que aparecem ao longo das cartas são apenas personagens coadjuvantes, como mostra o fragmento: “Sua afiada Jeroma mais os menino e a muié, que nunca aqui poz os pé, ficaro cheio de intriga co aquelle mundão de povo que parecia formiga [...].” (CONCEIÇÃO, 09 jun. 1912, não paginado). As seções de cartas caipiras publicadas no início do século XX estão fortemente interligadas às Cartas de Segismundo, publicadas no Diário de São Paulo no final do século XIX, sobretudo nos anos de 1865, 1872 e 1873. Estes textos foram publicados no mínimo uma vez por mês em uma seção de “publicações pedidas”, parecida com a seção de cartas de leitores que encontramos nos jornais e revistas atuais (FREHSE, 2000, p. 101-102). As Cartas de Segismundo eram assinadas por Segismundo das Flores, pseudônimo de Pedro Taques de Almeida Alvim.7 Segismundo era um roceiro que estava de passagem pela cidade e é por meio das cartas publicadas que ele descrevia aos seus colegas do interior, o dia a dia na capital. Por meio do deslocamento de Segismundo era possível perceber as distinções entre a vida urbana e rural e os primeiros sinais da modernização na cidade.8 A narrativa epistolar era utilizada como uma forma de representar o cotidiano. Todavia, há que se mencionar que as Cartas de Segismundo eram fictícias, ou seja, Segismundo descrevia uma cidade imaginária. De qualquer forma, as cartas funcionavam como contraponto crítico às transformações urbanas. O escritor fazia o leitor refletir sobre a vida na cidade, considerada polida, civilizada, inovadora e moderna, em relação à vida no campo, selvagem, rústica e simples. É preciso ressaltar que, embora houvesse estes contrapontos críticos, não havia naquele momento, diferentemente do contexto das cartas do início do século XX, uma diferença muito arraigada entre a vida na cidade e a vida no campo.

6 É o caso por exemplo do pseudônimo “Purcheria do Sabará”, que escrevia as “Cartas de Nhá Pulcheria” em A Cigarra no ano de 1917 e em O Sacy em 1926. 7 Pedro Taques de Almeida Alvim participava de diversas atividades culturais e políticas do período. Era poeta e advogado, conhecido como um dos primeiros jornalistas campineiros a trabalhar em São Paulo. 8 Para Fraya Frehse (2000, p. 102), a provisoriedade da passagem de Segismundo, própria de um “viajante”, dotava o personagem de um olhar do estrangeiro em trânsito. Entre dois mundos, o interior e a capital, Segismundo situava-se também entre dois espaços: a roça e a rua. 32

Embora as Cartas de Segismundo indiquem a utilização do estilo epistolar em colunas e se utilizem do dialeto caipira já no século XIX, verificamos que as cartas publicadas nas primeiras décadas do século XX, em O Pirralho, guardam especificidades bastante relevantes. A primeira distinção entre as duas publicações diz respeito à maneira como as cartas foram escritas. As Cartas de Segismundo eram “contidas”, as expressões e as palavras ainda não sofriam uma mudança ortográfica tão acentuada em direção ao dialeto caipira, diferentemente das publicações posteriores que, de maneira proposital, achincalhavam com a maneira correta da escrita. A linguagem fonética das cartas ia à contramão dos “cânones” literários e Cornélio Pires, do qual falaremos adiante, afirmava em um de seus textos que suas “mal traçadas linhas” eram propositais: “Preparando os meus artiguetes a facão, escrevendo-os a maião, naturalmente não percuro fazer-bunitu; por via das duvidas ahi fica essa declaração.” (PIRES, 09 maio 1913, não paginado) Este aspecto demonstra que o autor estava mais interessado na aproximação com o público e na provocação do riso do que com a norma culta da escrita. Além do aspecto linguístico, há que se mencionar que as cartas foram publicadas em momentos diferentes. As Cartas de Segismundo foram publicadas nas décadas de 1860 e 1870, já as cartas caipiras posteriores foram publicadas sobretudo nas três primeiras décadas do século XX.9 A cidade de São Paulo passava por profundas transformações, a população paulistana mudara em razão dos grandes deslocamentos do interior para a capital, bem como do fluxo imigratório europeu. Estas mudanças faziam com que o mundo urbano e o rural não estivessem mais tão afastados quanto antes e o narrador das cartas do início do século XX não teria como objetivo principal a representação dos costumes do homem do campo, mas sim os da cidade. Este aspecto se torna evidente, na medida em que constatamos que o distante caipira tornara-se um dos novos habitantes da cidade. De acordo com Antonio Cândido, (2001, p. 279-280) a industrialização, a diferenciação agrícola, a extensão do crédito e a abertura do mercado interno, ocasionaram uma nova e mais profunda revolução na estrutura social de São Paulo. Por causa dos recursos modernos de comunicação, do aumento da densidade demográfica e da generalização das necessidades complementares, os caipiras acharam-se frente a frente com os homens da cidade. Então, tipos rurais e urbanos, sitiantes e fazendeiros, assalariados agrícolas e operários se reaproximaram no espaço urbano. Na maior parte dos casos, o caipira fica encantado quando chega à cidade e nutre esperanças de uma vida menos austera. Ele atribui importância significativa à educação, sendo comum encontrarmos registros em que o narrador da carta, e também pai, envia seu filho à cidade para a realização dos estudos. Ter um filho estudando na “capitá” era ter

9 As cartas caipiras compreenderam sobretudo os anos entre 1910 e 1922. Em O Pirralho, aparecem nos anos de 1911, 1912, 1914 e 1916. 33

prestígio. O caipira se assusta com o mundo novo, com a iluminação, com a tecnologia, com os automóveis e com o cinema, mas sente certa admiração e euforia pelo que encontra no meio urbano, como demonstrado em um registro em que o caipira e sua família chegam à cidade de São Paulo: “Quando cheguemo na Luz e que nós dezembarquemo, quase idiota fiquemo olhando a inluminação que tem pro dentro e pro fora desta bonita estação.” (CONCEIÇÃO, 09 jun. 1912, não paginado) A iluminação elétrica estava sendo implantada em São Paulo desde o início do século XX.10 Para o caipira, porém, ainda era algo que o deixava maravilhado. O brilho da cidade, ao mesmo tempo que fascinava, atemorizava o caipira. Os cronistas sabiam trabalhar muito bem com estes valores e atribuíam um excesso de “caipirismo” nos personagens, que na realidade, tinha um “significado” específico. Eles tendiam a representar a gente do campo como não tendo o mesmo aspecto nem o mesmo valor, quando separadas das pessoas, das coisas, dos lugares que lhes definiam. É como se o deslocamento do meio nativo produzisse no caipira uma espécie de simultâneo desbotamento do que se era no campo e embotamento do que se viria a ser na cidade. Este tipo de representação sinaliza a ideia de uma metrópole que tira as coisas do lugar de onde elas guardam seu sentido. É como se o mundo moderno avançasse de modo “obsceno” na vida do campo, retirando-lhe toda a pureza e inocência. A representação da cidade designa um objeto de reflexão deveras privilegiado nas cartas caipiras de O Pirralho. De maneira bastante simplificada, poderíamos dizer que o matuto, por meio da sua aparente ingenuidade, teceu virulentas críticas à realidade paulistana, especialmente no que diz respeito a seu processo de urbanização. As cartas questionaram os ideais modernos almejados por muitos e declararam as ambiguidades deste processo. De modo frequente, o caipira desprestigia as construções, os valores, os costumes, o funcionamento e a organização da cidade. Nastacio Figuêra, autor de Calta prus povo, registrou em uma de suas cartas, a chegada à capital. Embora tivesse nascido em São Paulo, Nastacio havia deixado o lugar ainda criança e desde então, só havia voltado para a cidade natal uma única vez, aos dezesseis anos. O caipira não gostava de visitar a cidade, pois tinha medo das invenções dos estrangeiros, que para ele, pareciam “obra de cuisaruim”. Porém, como seu pai havia falecido, precisava visitar o advogado para tratarem do inventário. Nastácio registra o que vê na cidade e suas mudanças:

[...] que deferencia! É um mundo di rua qui não caba mais; é um’ror di casaria qui atrepa plôs morro mais arto i qui desci nas ribaucera, nas grota, nus grotão mais perigoso! / É bondi sem sê puxadu plos burro cumo danti era, uns bondi da moda, carritia, corrê-currendu, nus trio i nus fio! É gente nas rua principá qui nem furmiga quen quen di correição é um diluvio di

10 No ano de 1905 são instaladas as primeiras lâmpadas elétricas na cidade de São Paulo, na rua Barão de Itapetininga, contratadas pela “The São Paulo Tramway, Light and Power Company Ltda”, mais conhecida como Light. 34

carro coto, nambi, sem cavalo, sem zarrêio, sem tirante, desses carro qui chama, cum peldão da palavra, tumóvi; é pinhano di veldadi, qui toca só c’os pé du tocadô, vae mais adiante agente topa cuns grito, umas cauturia, umas versaiada, u diabo! Qui dá de sahi de umas caxetas, qui trais a mó qui uma corneta, i a mó que uma rodela qui fala. Esse não si astrevo di dizê u nomi, é... neim sei mêmo! ... a mó qui fonógrifo. (FIGUERA, 22 jan. 1916, não paginado).

Um recurso muito utilizado pelas cartas caipiras de O Pirralho, aliás, por toda a imprensa do período, foi o emprego de pseudônimos. Além das cartas que foram escritas e assinadas por Cornélio Pires, encontramos um total de nove pseudônimos ao longo da circulação da revista. Com exceção da Correspondência da Xiririca que recebia três pseudônimos distintos (Fidêncio da Costa, Bernardino Lope e Pompeo Amará), as cartas eram assinadas por um mesmo nome. Não é possível identificar o nome dos verdadeiros autores em todos os casos. De fato, sabemos que Cornélio Pires foi autor de grande parte das cartas e que se utilizou de pseudônimos com muita frequência, já que apenas alguns textos foram assinados com seu próprio nome. Os dois pseudônimos do autor que mais apareceram no periódico foram: Fidêncio José da Costa e Vadosinho Cambará.11 Cornélio Pires foi autor de diversas cartas em dialeto caipira espalhadas pelos periódicos paulistanos. Nasceu na cidade de Tietê, interior de São Paulo, no dia 13 de julho de 1884. Foi escritor, compositor, conferencista, jornalista, contador de “causos”, poeta e folclorista. Como escritor de contos, prosas e poesias, publicou, no total, vinte e dois livros, além de produzir músicas, narrativas caipiras, filmes e realizar apresentações humorísticas, principalmente públicas, chamadas de cafés, concerto ou shows humorísticos. Cornélio Pires colaborou em diversos jornais e revistas com textos caipiras e muitos deles em formato de cartas. Sua maior produção encontra-se em O Pirralho, mas podemos encontrar seus textos em outros periódicos da época, tais como A Farpa, O Sacy, A Cigarra, A Gargalhada e O Malho. Embora o intuito não seja investigar minunciosamente cada pseudônimo encontrado nas cartas de O Pirralho, é interessante refletir sobre sua utilização, tendo em vista que se tratava de um costume da imprensa no período. Podemos refletir sobre os motivos que levaram os escritores a utilizar nomes fictícios. Em primeira instância, há que se pensar que havia uma espécie de censura ou de cerceamento da palavra na época. Ainda que a censura formal não estivesse organizada, a irreverência nunca fora bem vista. Não é a toa que um dos segmentos que melhor se especializou na crítica ao governo foi à revista de

11 Sabemos que o pseudônimo Fidêncio da Costa pertencia a Cornélio Pires em virtude da publicação de O Pirralho confirmando sua autoria em Cartas de um caipira na edição nº 50. Quanto ao pseudônimo Vadosinho Cambará, baseamo-nos no estudo de Arlete Fonseca de Andrade. Ver: ANDRADE, Arlete Fonseca. Cornélio Pires: tradição e modernidade na cultura paulista. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, XIV., 2013, São Paulo. Anais do XVI Congresso Brasileiro de Sociologia. São Paulo: PUC, 2013. 35

humor. Aliás, a situação política na época conduzia a imprensa em geral a optar por algum caminho, que quase sempre os levava a decidir entre a aceitação, o confronto ou o humor. Podemos selecionar uma carta caipira que consideramos comprometedora do ponto de vista político. O texto é publicado com o título Cartas d’um caipira e é assinada por Chico do Butiá. Nela, o autor, é bastante irônico e tece a crítica à política militarista, em especial ao Marechal Hermes da Fonseca, militar e, na ocasião, presidente da República; e a José Gomes Pinheiro Machado, mais conhecido como Pinheiro Machado, braço direito de Hermes. Além da crítica à constante instauração de um estado de sítio, o escritor ironiza com a situação do jogo do bicho, loteria que foi criada em 1892 pelo barão João Batista Viana.12 O impasse entre legalidade e ilegalidade manteve-se por décadas desde que o jogo fora popularizado na República. Foi apenas por meio da lei de contravenções penais (decreto-lei nº 3.688), de três de outubro de 1941, que se considerou efetivamente proibido os jogos de azar no Brasil. Na carta, o escritor acusa Pinheiro Machado e Hermes da Fonseca de defensores do jogo, já que era algo rentável para os donos do negócio e isso se refletia diretamente no apoio político aos dois. Além disso, “aconselha” O Pirralho a não ficar publicando críticas ao jogo do bicho porque corria o risco de o Hermes decretar estado de sítio em São Paulo. Dizia a carta: “Quem mexe com o bicho o Marechá conta logo pro Pinhero e o Pinhero que é cabra bão meismo manda logo o Chico prende o redactó na ia das cobra ou nos navio de guerra da marinha e assuspende a pubricação do jorná.” E adiante, prosseguia com a ironia:

O que eu não comprendo é pruqué que chama estado de sítio uma coisa que o Governo invento que a gente não tem socego. Quarqué coisinha tão pegando na gente e levando pro xilindró! Lá em Santo Amaro no meu sitio não há isso. Quando eu quero socego võ pra lá, cuida das couve, dos repoio, das galinha, dos porco e de tudo e ninguem não vem fetuá prisão. No sitio do Marechá porem o Chico não deixa ninguem aassocegá. O cabra ainda bem não cochilou já tá grudado com dois sordado e pensando na ia das Cobra e no bataião navá. (BUTIÁ , 06 Jun. 1914, não paginado).

A crítica é sarcástica e contundente. O escritor ironiza com a falta de liberdade de expressão no governo do Marechal e com a noção de criminalidade, muito tênue na República. A alusão à Ilha das Cobras, situada no Rio de Janeiro e que funcionava como prisão, fortalecia o tom de denúncia. Além disso, o escritor ironiza com o manejo de influências políticas e com a facilidade com que se decretava estado de sítio no Brasil. Diante desta carta, podemos pensar que os pseudônimos pudessem representar uma

12 A intenção do jogo era atrair mais visitantes para o zoológico do Rio de Janeiro. De início, os visitantes do zoológico recebiam a figura de um animal e no final do dia, o dono do bilhete com o animal sorteado, recebia um prêmio. A partir de 1894, os bilhetes passaram a ser vendidos, transformando o simples sorteio em jogo de azar. Ver: DAMATTA, Roberto e SOÁREZ, Elena. Águias, Burros e Borboletas: Um Estudo Antropológico do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 36

proteção relativa para seu autor ou pelo menos, uma diluição de responsabilidade entre os componentes da revista. A utilização de pseudônimos tinha também uma relação com a vida literária. Os pseudônimos ganhavam vida própria, eram quase personagens, “tipos” característicos da época. Este aspecto pode ser demonstrado por meio de dois personagens bastante conhecidos e já mencionados de O Pirralho. O primeiro deles, Fidêncio José da Costa ou simplesmente Fidêncio da Costa, que fora criado por Cornélio Pires, autor da Correspondência da Xiririca (1911) e da Carta de um caipira (1912). O outro, Juó Bananére, criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, autor das Cartas d’Abax’o Pigues. É interessante notar que os dois personagens ganhavam vida própria no periódico e eram até caricaturados por Voltolino,13 fato que contribuía para a caracterização de ambos. Por meio dos pseudônimos, a revista ia criando histórias e alimentando a curiosidade dos leitores. Era comum, por exemplo, que um personagem encontrasse o outro em algum evento da cidade e no dia seguinte, um dos dois ou ambos registrassem o ocorrido. Na carta abaixo, por exemplo, Fidêncio da Costa registra o encontro “infeliz” que teve com Bananére no cinema. Fidêncio estava nervoso porque o “italiano” estava com seu “cachimbo, pitano na cara dos outros”. Dizia ele enfurecido:

Eu virei disse p’ra elle, o catinguento animá! Num vê que aqui tem famia? Vire seu pito p’ra lá! – Num amolle – ele falô – Num sô pedra de amollá! Garremo na discussão, que quage dava im porquera, quano chegô-se um mocinho! Co seu jeito de capoera, e disse p’ro tar taliano, vá imbora Juó Bananera! (COSTA, 13 jul. 1912, não paginado).

Este tipo de jogo com o uso dos pseudônimos reforçava o interesse dos leitores pelos textos e despertava a impressão de realidade dos fatos. Com esta construção, os personagens pareciam menos fictícios e o leitor parecia não mais se lembrar de que Bananére era na verdade uma criação de Alexandre Marcordes Machado e que o engraçado Fidêncio da Costa era na verdade Cornélio Pires. Outra questão que deve ser mencionada a respeito dos pseudônimos diz respeito à atitude completamente anárquica com que os autores criavam seus nomes fictícios. Já que os escritores não queriam nenhum tipo de reconhecimento, eles brincavam com a criação dos pseudônimos. Este tipo de atitude fazia com que os escritores não assumissem nenhum compromisso com o leitor e com as personalidades que eram ironizadas nas publicações. Para termos ideia da balburdia, podemos citar um caso muito curioso que ocorreu em Cartas de um caipira (COSTA, 27 jul. 1912, não paginado). Ocorre que, na edição datada de 20 de julho de 1912, as tais cartas foram assinadas por “Fidêncio Jusé da Costa”, dando a

13 Voltolino era personagem de Lemmo Lemmi. Foi o caricaturista mais frequente e um dos mais brilhantes de O Pirralho, contribuindo com seu trabalho durante praticamente toda a existência do semanário. 37

entender que se tratava do próprio Cornélio Pires, que assinava Fidêncio José da Costa. Nesta edição, o cronista teceu virulentas críticas a diversas figuras ilustres do mundo da política e do mundo das “letras”, tais como Nho Barbibo, o Saturnino Barbosa e Jotta-Jota, o médico e político Joaquim José de Carvalho. Na edição seguinte, datada de 27 de julho de 1912, Fidêncio José da Costa escreve sua carta muito “furioso e danado”, alegando que a carta anterior não havia sido escrita por ele, até porque ele sofria de constipação naquele dia. O escritor afirma que alguém enganou O Pirralho e os eleitores e que o falsário “bulia com gente grossa”, que era por ele respeitada. É muito provável, neste caso, que a carta anterior tenha sido escrita pelo próprio Cornélio Pires, que estava por trás do pseudônimo Fidêncio Jusé da Costa. O jogo com a utilização das assinaturas fazia com que o escritor não assumisse a culpa das virulentas críticas que haviam sido realizadas. Ademais, o escritor se divertia e queria, ao mesmo tempo, levar diversão ao público leitor com a facécia que ele mesmo criara. O humor e a crítica foram os principais ingredientes das cartas caipiras de O Pirralho. Era por meio da linguagem estropiada do matuto que os autores provocavam o riso, ao mesmo tempo que incitavam os leitores a refletir sobre o cotidiano da cidade. Apesar da boa receptividade que as seções de correspondências tiveram e da maneira criativa com que conduziram suas críticas, elas nunca encontraram reconhecimento nos círculos literários da época. O português incorreto – por meio do macarronismo, do dialeto caipira ou da gíria das ruas – era visto como transgressão da norma culta e funcionava como uma forma de resistência ao linguajar rebuscado e, em alguns casos, “vazios” da elite letrada do país. A narrativa epistolar de O Pirralho, um dos periódicos mais engajados e criativos da cidade de São Paulo, constitui-se em uma das formas mais perspicazes de expressão da época. Muitas leituras do passado cultural da cidade deixam de lado certas manifestações ou personagens não diretamente engajados em um movimento literário ou artístico definido. Contudo, assim como no Império, o humor seria na República uma válvula de escape, funcionando como antídoto contra a censura vigente e tornando-se fonte preciosa de acesso ao passado. Quase esquecidas ao longo do tempo, as cartas caipiras de O Pirralho guardam valor inestimável ao historiador e a quaisquer outros que queiram adentrar no universo paulistano da belle époque de forma reflexiva, crítica e irreverente.

Referências

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SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 39

REFAZENDO A HISTÓRIA, PRESERVANDO TRADIÇÕES – A INSPIRAÇÃO INDÍGENA NA PRODUÇÃO CERÂMICA DE MESTRE RAIMUNDO CARDOSO

Camila da Costa LIMA1

Introdução

O presente trabalho aborda relações entre a produção cerâmica de Mestre Raimundo Cardoso e a dos povos indígenas que inicialmente habitavam o atual estado do Pará, especialmente a região da Ilha de Marajó – a cerâmica marajoara. Dentro deste cenário, dá-se destaque às reproduções realizadas pelo artista em um projeto iniciado na década de 1970, junto ao Museu Emilio Goeldi. Para tanto, serão abordados os processos, técnicas e estilos introduzidos por estes povos, que foram resgatados neste projeto e continuaram a ser desenvolvidos, favorecendo a preservação da cultura regional, o resgate das tradições e o fortalecimento da identidade cultural.

O Resgate De Uma Cultura – Cerâmica Marajoara De Belém - Pará

Os atuais estados brasileiros do Pará, Amazonas, Maranhão, Acre, Goiás, Roraima e Rondônia foram inicialmente habitados por povos que produziam objetos variados, incluindo peças em cerâmica. Entre as regiões ocupadas, estudos arqueológicos atestam diferenciações nos objetos localizados na Ilha de Marajó, no Pará. Durante o período de ocupação do território, iniciado aproximadamente em 980 a.C. e prolongado até 1820 d.C., foram realizados distintos estudos que resultaram em uma classificação por fases, com base na análise de objetos encontrados nos sítios arqueológicos. Entre estas civilizações, ressalta-se a Fase Marajoara (400 a 1350 d.C.), possuindo como destaque a rica produção cerâmica.

A “menina dos olhos” da arqueologia Amazônica é a fase Marajoara, cuja principal característica é a presença de vasos, urnas, peças com formas humanas, tangas, estatuetas, sempre com muitos detalhes de acabamento, seja com detalhes em baixo relevo ou aplicação de desenhos em alto relevo. As características de produção e a grande variedade de peças

1 Doutoranda - Programa de Pós Graduação em Artes – Instituto de Artes – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de São Paulo – Rua Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271, CEP: 01140-070 - São Paulo, SP. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 40

sugerem que ali vivia um grupo, ou grupos, com razoável grau de organização e de estratificação social. (SOUZA; PAPA, 1998, p. 89).

A produção cerâmica marajoara era realizada com o uso de técnicas elaboradas, com características ímpares, utilizadas principalmente para fins ritualísticos e domésticos. Com o passar dos anos, em virtude das ações de resgate de exemplares ou mesmo de cacos destas cerâmicas para pesquisas, foram sendo desenvolvidos projetos junto à museus e Universidades visando à preservação das culturas indígenas da Amazônia. A preocupação em analisar os vestígios da passagem de antigos povos por um local colabora com a intenção de resgate de um patrimônio, fato este que permite o reconhecimento de nossa própria história – partir do estudo das nossas origens para a compreensão da sociedade atual – como cita Lilian Bayma de Amorim (2010, p. 19): “Os vestígios materiais, objetos de estudo do arqueólogo, são depósitos de memória, material impregnado de informações à espera de uma interpretação, capaz de resgatar os pedaços de uma história perdida.”. São os objetos, instrumentos capazes de representar muito de uma época, local ou mesmo civilização, pois foram feitos com um material específico e para um determinado fim, obedecendo a critérios referentes à função para a qual foram produzidos. Deste modo, tornam-se “depósitos de memória”, guardam nas suas especificações muitos significados e é valendo-se do seu estudo que se pode alcançar respostas e novas informações, possibilitando a geração de conhecimentos. Neste cenário de resgate, análise e informação relacionados com a cultura Marajoara, o Museu Paraense Emílio Goeldi encontra-se envolvido com o desenvolvimento de pesquisas sobre a Amazônia, desde a ocupação humana na região, até a realização de projetos vinculados à conservação de sítios arqueológicos. O museu possui em seu acervo uma extensa coleção Marajoara composta por mais de dois mil objetos – inteiros e em fragmentos –, como tigelas, pratos, vasos, urnas funerárias, tangas, entre outros. É justamente por meio dos estudos e pesquisas realizados e incentivados pela instituição que se tem reconhecido e preservado aspectos da cultura regional. Ações como as desenvolvidas pelo Museu Emílio Goeldi ajudam, também, a manter tradições locais, além de incentivar nos moradores o desejo por conhecer elementos que estão presentes no seu cotidiano e influenciaram na sua formação. Por vezes, os habitantes de uma região desconhecem muito de sua cultura, apesar do envolvimento deles ser de suma importância para que se construa uma relação entre o passado e o presente. Tudo o que se vive hoje é resultado de algo iniciado ou ocorrido anteriormente, somos produto da história e nossas ações permitem que elas não acabem e que sejam formados novos saberes. Mediante a valorização da cultura regional e o resgate das tradições é possível preservar a identidade local, portanto, há necessidade de não se negar 41

as raízes e com base nelas, se construir o novo em um processo contínuo de resgate, pesquisa e desenvolvimento.

Mestre Raimundo Cardoso – Preservando Tradições

Raimundo Saraiva Cardoso, conhecido com Mestre Cardoso, atualmente é considerado um importante pesquisador e ceramista da cultura amazônica. Trouxe das origens de sua região, o Pará, e de sua família, a inspiração para suas criações e estudos em cerâmica. Sua produção pode ser considerada um retrato do resgate das tradições locais. Mestre Cardoso teve o seu primeiro contato com o barro ainda criança, por influência de sua mãe, uma experiente ceramista, descendente direta do povo Aruã2. Mantendo os costumes, ela produzia suas panelas, potes e pratos seguindo os mesmos métodos usados pelos povos indígenas, desde a retirada do barro, cuidados relacionados com a preparação da argila, modelagem, preparação e uso dos engobes3, processos de queima. O ceramista cresceu em meio a tradições, mas foi após uma visita ao Museu Paraense Emílio Goeldi, na década de 1960, que sua vida tomaria novas direções. O Mestre possuía contato com a cerâmica desde a infância, vivia em uma região com fartura de matéria-prima – fator que justifica a milenar produção desta técnica. Entretanto, foi o contato com as cerâmicas marajoaras e tapajônicas do Museu Goeldi que lhe despertou novos interesses. Raimundo Cardoso abandonou seu trabalho no comércio, se mudou para o Distrito de Belém, Icoaraci, para então se dedicar somente à cerâmica. Retornou diversas vezes ao Museu para a análise dos exemplares originais presentes no acervo, passou a estudar bibliografias específicas, a fim de aprofundar seus conhecimentos e, até mesmo, buscar na floresta Amazônica pigmentos naturais semelhantes aos inicialmente usados para o acabamento das cerâmicas. Esta busca por conhecimentos, materiais e entendimento profundo das técnicas fizeram com que as peças de Mestre Cardoso fossem se tornando, em muitos casos, idênticas às originais, mantendo nestas até mesmo rachaduras, marcas e sinais de desgaste. Sua produção era o resultado de uma somatória de saberes: os ensinamentos de sua mãe que reproduziam os métodos tradicionais da produção indígena, a pesquisa e o resgate da cultura regional e um talento específico para trabalhar com o barro.

2 Fase Aruã abrange de 1350 a 1820 d.C., período posterior à Fase Marajoara. 3 Engobes são corantes naturais fabricados a partir da mistura de terra com água e aplicados na argila antes do processo de queima. 42

Réplicas de Mestre Raimundo Cardoso: acima à esquerda Urna Antropomorfa, sem data, 39,5 cm. alt x 19,5 cm. larg x 19,5 cm. comp., acima à direita vaso com decoração por incisão e relevos, 1994, 13,8 cm. alt., x 10,5 cm. larg, x 10,5 cm. comp.. Abaixo à esquerda pote com decoração pintada, 2004, 16.8 cm. alt. x 20,6 cm. larg. x 22,5 cm. comp., abaixo à direita vaso com decoração por incisão e relevos, 1989, 17 cm. alt. x 29,5 cm. larg. x 27,5 cm. comp. Fonte: Camila da Costa Lima

A dedicação do ceramista estava voltada para a intenção de realizar réplicas perfeitas, semelhantes às peças originais e, para tanto, contou com o apoio do Museu Goeldi. A qualidade do trabalho de Raimundo Cardoso levou a instituição a se tornar sua parceira. Mestre Cardoso passou a contar com o apoio de pesquisadores da área de arqueologia e permissão para ter acesso aos exemplares da Reserva Técnica4. Suas peças alcançaram um tal grau de fidelidade às originais que chegaram a receber um selo de autenticidade:

No trabalho de reprodução Cardoso usou corantes vegetais extraídos de sementes e raízes e corantes minerais produzidos a partir da tabatinga –

4 Reserva técnica é o espaço da instituição museológica que abriga com segurança obras do acervo quando não estão em exposição. 43

argila arenosa que se apresenta em diferentes cores – empregada na pintura das peças. O artista também utilizou como desengordurantes das argilas o caraipé (carvão moído, feito da casca de uma árvore) e o chamote (pó de caco de cerâmica quebrada). O resultado foi a perfeição – tão grande que as réplicas mereceram certificados de autenticidade da equipe técnica do Museu Goeldi, nos quais se reconhece a fidelidade dos originais. É difícil, mesmo para os especialistas do museu distinguir as réplicas dos originais, que foram reproduzidos em suas formas, cores, grafismo e até defeitos. (DALGLISH, 1996, p. 10).

Mestre Cardoso possuía um intenso entusiasmo pela cerâmica arqueológica. Este interesse era impulsionado pelo desejo em preservar as características das produções de Belém do Pará trazidas pela mão do índio. Para tanto, o ceramista tinha alguns objetivos relacionados às suas ações, pretendia transformar o seu acervo de réplicas em uma fundação e, também, auxiliar na construção de uma escola cerâmica, voltada a atender principalmente adolescentes, ambos em Belém do Pará. Para Raimundo Cardoso, estas seriam possíveis maneiras de divulgar as técnicas cerâmicas, sua preservação e restauro, e, sobretudo, um modo de serem mantidas vivas as riquezas da produção da Ilha de Marajó. Alguns anos depois, uma das ambições de Mestre Cardoso começava a se concretizar, no ano de 1994 foi inaugurado, em Icoaraci, o Liceu/Escola Mestre Raimundo Cardoso, com a intenção de difundir na região o saber e a prática da cerâmica, além de outras técnicas também desenvolvidas na região como o trançado e trabalhos com madeira. O distrito de Icoaraci pode ser citado como um polo de referência da produção cerâmica indígena amazônica em razão da fartura e variedade de argila presente no local. Entretanto, mesmo com fartura de matéria-prima, até a década de 1960, eram realizados no distrito apenas telhas e tijolos. Foi a partir da chegada de Mestre Cardoso, que ocorreram modificações na relação entre a comunidade local e o barro. As pesquisas e a produção cerâmica de Raimundo Cardoso vieram a despertar interesse pela cerâmica amazônica nos artistas locais, mesmo naqueles que não haviam trabalhado com o barro em momento anterior. Muitos moradores acabaram se aventurando neste fazer, como cita o próprio Mestre (DALGLISH, 1996, p. 13): “Na febre da reprodução, perdeu-se a preocupação com a fidelidade em relação aos originais, simplificando-se a forma e o riscado, para facilitar a produção em série e o atendimento à demanda.” No entanto, as peças sem qualidade não despertavam interesse de compra, pelo contrário, aqueles que, como Raimundo Cardoso, produziam réplicas fiéis, tinham seu trabalho cada vez mais valorizado. A realização de réplicas de cerâmicas amazônicas na região de Icoaraci contou com a importante parceria do Museu Emílio Goeldi. Inicialmente, a instituição ofereceu suporte às pesquisas de Mestre Cardoso, mas com o crescimento nesta produção, passou a 44

desenvolver projetos que envolviam a comunidade. O museu promoveu treinamento aos artesãos possibilitando o contato com as peças originais do seu acervo, deste modo, eram adquiridas referências reais para serem trabalhadas – já que a intenção era a realização de réplicas, que estas fossem bem elaboradas, com base nos objetos originais e não nas réplicas, originando cópias de réplicas. A principal intenção envolvida nesta iniciativa era o fortalecimento da identidade e a preservação da história local. Atualmente, as peças de Mestre Cardoso compõem acervos de museus e coleções particulares no Brasil e exterior. O reconhecimento de seu talento não só auxiliou na preservação da cultura indígena amazônica, como também incentivou nos moradores o interesse por sua própria história e o orgulho em ser daquela região.

Tradição e Técnicas na Produção Cerâmica – Réplicas de Mestre Cardoso

As técnicas utilizadas por Mestre Cardoso para a realização de suas obras reproduzem processos antigos, originalmente presentes na produção cerâmica indígena da Amazônia. Os estudos realizados pelo ceramista e seu constante cuidado em manter os mesmos aspectos das obras originais em suas réplicas, possibilitou o resgate de métodos antigamente usados. Muito do processo e das técnicas cerâmicas empregadas por Raimundo Cardoso retomam ao tradicionalmente feito na região, incluindo as várias etapas envolvidas na produção cerâmica. O trabalho tem seu início com a coleta da argila em falésias próximas de Icoaraci, em virtude da fartura da matéria-prima nesta região, até nos dias atuais permanece a facilidade em obtê-la. Após a coleta da argila, segue o seu tratamento para a retirada de impurezas: a argila é colocada em um tanque com água para amolecer, depois, passada por uma peneira para retirada de detritos e disposta sobre uma mesa de madeira para que parte da água absorvida escorra. A argila, já sem excessos de umidade é então amassada e a ela são misturados casca de árvore e cacos de cerâmica, ambos anteriormente triturados em pilão – estes materiais são usados como desengordurantes e proporcionam uma melhor modelagem e queima. Após o tratamento descrito, a argila está pronta para ser modelada. A técnica tradicional indígena para modelagem é o acordelado, também conhecida como técnica de rolos ou pavio. Esta técnica consiste em realizar uma base de argila com a forma desejada e nas laterais desta serem colocados cordões modelados uns sobre os outros, até a altura pretendida. Dada forma pela sobreposição de cordões, estes são alisados com cuias ou pedras.

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Processo de modelagem pela técnica de acordelado: à esquerda, sobreposição de cordões e à direita alisamento com cuia. Fonte: (SOUZA; PAPA, 1998, p. 99)

Após a peça ter o seu tamanho e formato definidos, são acrescentados ornamentos e decorações. A cerâmica marajoara é bastante elaborada, apresentando pintura com engobes, além de decoração com incisões e relevos, elementos que caracterizam este estilo.

A pintura é, de modo geral, em vermelho ou marrom sobre um acabamento em argila líquida alaranjado claro, branco ou vermelho. Muitas vezes possui incisões, preenchidas com pigmentos mais escuros. A modelagem em relevo é, geralmente, antropomorfa. Os desenhos pintados ou incisos são geométricos ou antropomorfos muito estilizados. Os adornos das bordas, freqüentemente figuras de animais, são também usados para ornamentação. (RIBEIRO, 1987, p. 257).

Segue às etapas de modelagem e acabamentos, a queima. É durante este processo que a argila ganhará resistência, tornando-se durável – se há peças cerâmicas que pertenceram a civilizações atualmente extintas e foram localizadas, por vezes intactas, tornando-se instrumentos de pesquisas, foi por causa deste processo. A queima é uma etapa necessária para que a argila se torne cerâmica. Esta etapa envolve um processo de transformação, em que uma matéria inicialmente mole e frágil se torna resistente, mas também, nela se encerra um ciclo – após um longo trabalho, é na queima que estará finalizado. 46

Mestre Raimundo Cardoso em frente ao forno a lenha com suas peças recém-queimadas, década de 1990. Fonte: (DALGLISH, 1996, p. 39)

Para muitos povos, incluindo os indígenas da Amazônia, esta etapa do processo cerâmico era um ritual, com algumas restrições a serem seguidas, caso contrário, poderiam ocorrer quebras e rachaduras nas peças, comprometendo toda a produção. Alguns casos a serem citados são as queimas feitas somente por mulheres, as quais não podiam estar menstruadas. Ainda, a queima ocorrer longe da presença de pessoas estranhas e diante da lua na fase apropriada para se alcançar um bom resultado (DALGLISH, 1996, p. 11). As peças eram queimadas lentamente, a céu aberto, como em uma fogueira feita de gravetos e cascas de árvores. Mestre Cardoso procurava reproduzir todos os processos, mas haviam algumas exceções como a modelagem com uso de torno e a queima em forno a lenha. A queima descrita, de fogueira, não alcança uma temperatura muito elevada, já a realizada em forno a lenha, como utilizada pelo Mestre, atinge uma temperatura mais alta, fator que possibilita maior resistência às peças. O forno a lenha de Raimundo Cardoso foi construído junto ao terreno de sua casa, era geralmente ativado à noite e a queima das peças durava aproximadamente 8 horas, chegando a atingir 800º C. Os métodos de produção e queima de Mestre Cardoso eram compartilhados com sua esposa, Inês Cardoso e com seu filho, Levy Cardoso, ambos continuam até os dias atuais produzindo réplicas, assim como vários outros ceramistas de Icoaraci que traduzem nas suas peças a riqueza da cultura local. Cultura essa que é preservada ao mesmo tempo que se adapta à sociedade atual, reafirmando aspectos de uma identidade regional. 47

No distrito de Icoaraci, que reúne atualmente a maior parte dos ceramistas, nota-se que algumas técnicas estão sendo adaptadas, como por exemplo, o uso constante de torno para a modelagem, a queima a gás em substituição à lenha e o uso de tintas industrializadas aos engobes, deste modo, aspectos das cerâmicas vêm sofrendo alterações. Também, alguns ceramistas contratam auxiliares para realizarem etapas do processo de produção das peças, como para a modelagem em torno e mesmo a queima, se responsabilizando mais pela etapa de decoração. Estas opções são utilizadas para aumentar a produtividade e cumprir prazos de encomendas. Entretanto, terceirizando etapas da produção, a peça perde autoria e, por vezes, se distancia da proposta inicial – a realização de réplicas – surgindo um produto que ainda remete à cerâmica indígena amazônica, mas com uma linguagem diferenciada.

Referências

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DALGLISH, Lalada. Mestre Cardoso: A arte da cerâmica Amazônica. Belém: SEMEC, 1996.

RIBEIRO, Berta G. (Coord.). SUMA Etnologica Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1987. Volume 2.

SOUZA, Márcio; PAPA, Cleber. Brasil das Artes. São Paulo: São Paulo ImagemData, 1998. 48

MODERNIDADE E TRABALHO NO FILME DE DIVULGAÇÃO ASILO-COLÔNIA AIMORÉS – 1944

Carla Lisboa PORTO1

Introdução

Este artigo pretende discutir sobre os elementos de valorização do trabalho e do conceito de modernidade presentes no filme sobre o Asilo-colônia Aimorés, localizado em Bauru, no interior do estado de São Paulo. A película, produzida pelo então Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP), em 1944, foi uma das ferramentas de divulgação das ações adotadas para enfrentar a epidemia da lepra, naquele momento. Para além de uma análise do filme como documento histórico e do contexto de sua produção, serão apontados outros elementos importantes, como a valorização do conceito de modernidade no discurso construído para o filme sobre a instituição. Com o objetivo de conter a crescente endemia de lepra no estado de São Paulo, na década de 1930, adotou-se uma política de controle profilático, mediante o isolamento compulsório dos doentes, nos então chamados asilos-colônia. Foram criadas cinco unidades para receber a população de doentes de São Paulo e de estados vizinhos. Estes asilos- colônia foram construídos nas cidades de Bauru (Asilo-colônia Aimorés), Casa Branca (Asilo-colônia Cocais), Guarulhos (Asilo-colônia Padre Bento), Itu (Asilo-colônia Pirapitingui) e Mogi das Cruzes (Asilo-colônia Santo Ângelo). Todos eles eram administrados pelo Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL), órgão estadual, com sede na cidade de São Paulo. Para implantar esta estrutura isolacionista, desenvolvida no estado de São Paulo e que ficou conhecida como “modelo paulista” (MONTEIRO, 1995, p. 217), portanto, de exclusão social, foi preciso respaldo político e de setores da sociedade civil. Para isso, um programa com uma série de ações educativas foi desenvolvido para esclarecer sobre os riscos do contato com doentes e portadores da bactéria Mycobacterium leprae. Entre outras ações, foram produzidos alguns filmes sobre os asilos-colônia, cuja finalidade era informar (ou convencer) a sociedade sobre a necessidade e a eficiência desta medida, divulgando estes locais como parte da política de profilaxia da lepra. Para o presente trabalho, será analisado o filme Asilo-colônia Aimorés2, com duração de 9 minutos e 49 segundos, produzido em 1944, pelo Departamento Estadual de Imprensa

1 Doutoranda – Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antônio, 2100, CEP: 19806-900,l Assis, São Paulo. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 49

e Propaganda (DEIP3), órgão subordinado ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A película, dirigida por Almeida Fleming, além de apresentar as instalações do asilo- colônia, contém, em sua narrativa, elementos importantes que reproduzem o discurso de modernidade e de valorização do trabalho, tão caro ao então presidente, Getúlio Vargas. Ainda que o filme tenha como tema o asilo-colônia, estes elementos estão presentes e reiteram a sua importância. Não se pode, no entanto, deixar de lado as particularidades e o contexto histórico deste filme que, assim como outras películas, foi elaborado para atender necessidades bastante específicas: divulgar ações do governo e difundir valores e comportamentos. Serão apresentados, neste artigo, algumas discussões e debates historiográficos sobre o uso de filmes e suas particularidades na pesquisa histórica, seguidos de algumas considerações sobre o cinema como ferramenta ideológica, bem como sobre a valorização do trabalho durante o Estado Novo. O filme Asilo-colônia Aimorés será analisado com base nestas considerações preliminares.

A produção fílmica como documento histórico e alguns debates

Os debates e estudos sobre o uso de filmes como documentos históricos tornaram- se mais consistentes a partir das reflexões de Marc Ferro (1988, p. 199-202) e Pierre Sorlin (apud SOULET, 2009, p. 182). Em O filme, uma contra-análise da sociedade?, Marc Ferro apresenta suas reflexões para análise, do ponto de vista historiográfico, sobre este tipo de produção. O autor salienta que não considera o aspecto semiológico dos filmes em suas análises, tampouco sua estética ou, ainda, uma história do cinema, embora boa parte de suas análises se baseie em elementos de significação, portanto, no âmbito da semiologia. Apesar da importante contribuição para a pesquisa com este tipo de fonte, Eduardo V. Morettin (2003, p. 15) tece algumas críticas à obra de Marc Ferro sobre os aspectos semiológicos da análise fílmica, uma vez que, para Ferro, o filme é visto como um produto de significações. De acordo com esta ideia, o filme é um produto que possui elementos visíveis e invisíveis, que podem ser percebidos ao analisar suas imagens, a sonorização, sua narrativa, e seus outros elementos tais como cenografia, figurinos, roteiro, público, bem como seu contexto e circunstâncias de produção. Ou seja, valendo-se da análise de um conteúdo aparente, pode-se assinalar um conteúdo latente. Com esta observação, é

2 Asilo-colônia Aimorés. Direção: Almeida Fleming. DEPARTAMENTO DE IMAGEM E PROPAGANDA. São Paulo, 1944, SP. 35mm, (9min 50 seg.), son., BP, curta metragem/não ficção. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2013. 3 Os Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda foram criados, juntamente com o Departamento de Imprensa e Propaganda, pelo Decreto-lei de 27 de dezembro de 1939 e ambos foram extintos pelo Decreto lei de 25 de maio de 1945, com o fim do Estado Novo, dando lugar aos Departamentos Estaduais de Informação (DEI). Os referidos decretos encontram-se disponíveis em: . Acesso em: 11 abr. 2014; . Acesso em: 11 abr. 2014. 50

possível, de acordo com o historiador, descobrir uma zona de realidade não visível, (FERRO, 1988, p. 207). Morettin (2003, p. 15) também questiona a validade destes elementos, considerados por ele como dicotômicos (aparente-latente, visível-invisível, história-contra-história), para analisar as relações entre cinema e história. Este tipo de produção possui tensões próprias, que não podem ser pensadas como dualidades, por oposição. As imagens apresentam nuances diversas e, além disso, ao se considerar dois níveis de significado independentes, corre-se o risco de perder de vista seu caráter polissêmico. Contudo, apesar desta polissemia, não se pode afirmar que seja possível apreender todas as significações contidas em um filme. É possível identificar sentidos e significados diferenciados, considerando os aspectos ideológicos de quem assiste, como afirma Pierre Sorlin em Sociologie du cinéma (SORLIN, 1977). Em síntese, o olhar é guiado por uma ideologia, anterior ao olhar. Mesmo em face das observações e questionamentos apresentados por Morettin, não se pode negar a importância da contribuição de Ferro para os estudos sobre este tipo de produção, conquanto o debate historiográfico tenha se modificado desde a época da publicação. Ao expor estas questões, reafirma-se a importância do cinema como produção cultural e sua relevância como fonte para a pesquisa histórica, sem perder de vista suas especificidades. Embora a produção fílmica seja a representação de um aspecto da realidade, com imagens editadas para compor a narrativa pensada pelo diretor, Ferro reitera que, mesmo involuntariamente, aspectos da realidade e da temporalidade da produção fílmica aparecem. Eles podem ser percebidos, por exemplo, por meio dos gestos e do modo de falar dos atores, pela maneira de construir a narrativa da obra, ou por meio da montagem e edição das imagens, efeitos especiais, sonoplastia, trilha sonora e outros elementos inerentes a este tipo de produção. A própria escolha do tema e a sua maneira de abordá-lo carregam em si uma temporalidade, no caso, sobre as questões que são importantes (ou relevantes) para um grupo social, em um período determinado. Assim, temas que podem ser pertinentes numa determinada época, podem deixar de ser em outra. Além do mais, se for um filme que retrate uma outra época, diferentes temporalidades coexistem: a do filme e aquela descrita pelo seu enredo. Marc Ferro viu no cinema novas possibilidades de pesquisa, Pierre Sorlin, por sua vez, esboçou um método de análise em que “as obras audiovisuais são os reflexos de representações da realidade do meio cultural que os produz” (SORLIN apud SOULET, 2009, p. 182). Baseado no conceito de ideologia, definida por Sorlin como um “conjunto de explicações, de crenças e de valores aceitos e empregados numa formação social”, o autor destaca a noção de sistema de representação. Por meio dele é que uma ideologia toma forma e permite que um filme seja visto como “expressão ideológica particular”. Contudo, 51

duas características do cinema o distinguem de outras produções culturais: trata-se de uma criação que representa as ideias e a visão de mundo de um grupo específico, cuja difusão ocorre em grande escala (SORLIN apud SOULET, 2009, p. 183). Peter Burke (2004, p. 175-196) também faz observações quanto ao uso de filmes como documento histórico. Ele salienta a capacidade (e o perigo) de proporcionar ao espectador a sensação de testemunhar os fatos, o que ele afirma ser uma ilusão. Afinal, a experiência cinematográfica é construída pelo diretor, pelo roteirista, entre outros técnicos, que escolheram contar uma história, de maneira artística, sobre um acontecimento, reiterando, assim, as considerações de Pierre Sorlin. Não se trata, tão somente, de contar uma história, mas de contá-la com um sentido, abordagem, estética e linguagem definidas. Carregada de significados, portanto. Também interessado na produção cinematográfica como objeto de análise histórica, Rémy Pithon (apud SOULET, 2009, p. 201-202) distingue três tipos de abordagens, aqui descritas brevemente. A primeira privilegia o estudo “objetivo” de filmes, particularmente documentários e filmes de propaganda. A segunda possui um viés semiológico, a terceira, por sua vez, tem como objetivo ir além do conteúdo explícito, busca alcançar seus sistemas de representação sobre os problemas e as preocupações de uma época. Os pesquisadores desta linha buscam, em geral, elementos para compreender um fato histórico, ou ainda, um regime político. É neste contexto que se insere a análise do filme sobre o asilo-colônia Aimorés. Num primeiro nível de estudo, observa-se a sua finalidade: divulgar o local como um dos mecanismos de erradicação da lepra. No entanto, considerando o contexto e as circunstâncias de sua produção, existem outros elementos a serem observados. No Brasil, Sheila Schvarzman discute o panorama da produção historiográfica sobre este tipo de documento, propondo “dois movimentos”, com base no “tournant critique des Annales para a Nova História e sua abertura para novos objetos e abordagens” (SCHVARZMAN, 2005, não paginado). O primeiro contempla a busca pela sistematização da metodologia histórica, novas formas de abordagem, e novos objetos de pesquisa. O segundo, por sua vez, volta-se para a constituição de uma história do cinema, com suas ambiguidades, particularidades e características. Estes movimentos e debates apontam diferentes possibilidades de pesquisa: o cinema como objeto de estudo, a própria produção fílmica como modo de expressão sobre o mundo, sua estética, sua tecnologia, seus fatores econômicos e sociais, entre outros aspectos. Nos estudos sobre cinema de Schvarzman (2005), nota-se uma aproximação com as ideias de Sorlin, pois também considera a produção fílmica nacional, sobretudo durante o Estado Novo, como ferramenta ideológica dos ideais de valorização da nação e do trabalho, a partir da conjuntura do país naquele período, abordados a seguir.

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O cinema como veículo ideológico e o trabalho como um valor

Na década de 1930, o debate sobre a finalidade do cinema voltava-se para o seu uso como ferramenta complementar à educação e à afirmação de valores morais, como a importância da família, da pátria e do trabalho (ROSA, 2006). Na década seguinte, no entanto, estas produções também teriam a finalidade de difundir valores e comportamentos, colaborando na construção de uma identidade nacional. Deste modo, legitimariam as ações e ideias do Estado Novo4. Entre os materiais produzidos com este fim estão cartazes, panfletos informativos, jornais e revistas, além de outros veículos de comunicação. Programas de rádio, cinema, música, artes plásticas e teatro foram, também, veículos empregados, levando a produção cultural do período a ser considerada um elemento político (CAPELATO, 2003, p. 128-129). A quem se opunha a apoiar e divulgar as ações do governo e sua ideologia restava a censura e, em muitos casos, afastamentos e prisões (CAPELATO, 2003 p, 118). Em 1932, a produção de filmes no Brasil foi regulamentada por meio do decreto nº 21.240, sancionado por Getúlio Vargas, durante o governo provisório. Nele consta, além da censura, a obrigatoriedade na exibição de filmes nacionais. Deste modo, criaram-se mecanismos de controle sobre a produção fílmica, em especial sobre o que deveria ser filmado e de que maneira. Assim, diferenças regionais deixariam de existir para dar lugar à imagem de uma nação forte e moderna, que alcançaria seu ideal por meio do trabalho e do respeito ao líder. Para legitimar essa produção e conferir-lhe o caráter educacional desejado, o governo criou, em 1936, o Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), onde foram feitos filmes educativos cujas temáticas eram as mais diversas: biografias de “grandes personagens” da história do Brasil, as riquezas naturais do país, filmes sobre ciências, noções de higiene, música, entre outras produções. A variedade de temas tinha por objetivo “educar sem enfadar” (ROSA, 2006, não paginado) e, sobretudo, estimular no espectador o amor pela pátria, seja valorizando seus heróis e suas riquezas, seja mostrando o trabalho. Por meio do INCE, o governo federal assumiria, então, o papel de produtor direto de filmes para divulgar “conhecimentos acerca dos costumes e da cultura dos povos, promovendo a compreensão das suas mentalidades e das necessidades5”. Em seu quadro

4 Em O Estado Novo: o que trouxe de novo?, Maria Helena Capelato menciona uma subdivisão no período que corresponde ao Estado Novo. O primeiro, de 1937 a 1942, corresponde à implantação da nova constituição, a oficialização do regime, bem como das mudanças na legislação trabalhista, até a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. O segundo, de 1942 até 1945, apresenta as contradições do regime (a crise interna piorada pela guerra) e a tentativa de legitimá-lo por meio da propagando política, no populismo e no combate à oposição. Para mais detalhes, ver: CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: DELGADO, Lucília de Almeida Neves e FERREIRA, Jorge (Orgs.) O Brasil Republicano – v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 107-143. 5 Vale salientar que, mesmo com os mecanismos de controle sobre a produção de filmes no período, havia produções independentes, particulares. Diante deste cenário, havia uma série de discussões sobre quais caminhos a cinematografia brasileira deveria seguir. Para saber mais a respeito, ver: SCHVARZMAN, S. O livro das letras luminosas: Humberto Mauro e o 53

de funcionários, passaram diversos cineastas, entre eles, Almeida Fleming (diretor do filme que será analisado), ainda que por um curto período, e Humberto Mauro. No período de 1936 a 1947, fase em que houve a influência de Roquette Pinto na escolha de temas, Mauro produziu 239 filmes, dos quais 95 foram feitos para divulgação cientifica e técnica6 (SCHVARZMAN, 2002, não paginado). A frequência deste assunto indica a importância dada às novas tecnologias, sobretudo à contribuição de cientistas brasileiros. Em vigor desde 1937, a partir do golpe de Estado de Getúlio Vargas, o Estado Novo introduziu novas regras ao regime político, bem como ações para o crescimento econômico, industrial e tecnológico. Se estas regras e ações mudaram internamente o exercício da democracia e da representatividade política e civil, o contexto internacional também seria determinante sobre a nova conjuntura política do país, por causa da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Apesar da imagem de heróis da pátria atribuída aos soldados brasileiros, a participação do Brasil na guerra mostrou-se desastrosa, de acordo com Capelato (2003, p. 136), do ponto de vista econômico, fazendo piorar a carestia no país. Para não perder o apoio da população, uma série de ações com relação à política, à legislação e à previdência trabalhista foi posta em prática, até no âmbito sindical e na instituição de uma Justiça do Trabalho, bem como a criação do salário mínimo. Ângela Castro Gomes (1999, p. 55) aponta estas ações como uma política de ordenamento de mercado de trabalho, com base na qual se constrói “uma estratégia político-ideológica de combate à pobreza, que estaria centrada justamente na promoção do valor do trabalho”. Assim, ele não seria visto apenas como meio de satisfazer as necessidades individuais, mas antes, como meio de servir à pátria. Mais do que isso, o trabalho era o caminho para sair da pobreza e resolver os problemas econômicos e sociais, rumo ao progresso. Deste modo, tanto a ascensão social do trabalhador, como o progresso do país dependiam da intervenção do Estado. Neste contexto, a imagem construída para o trabalhador (homem bom e honesto) tem papel importante, pois situa este personagem como parte da “engrenagem”, ao atribuir-lhe uma identidade de alguém de valor, com direitos e obrigações.

Era o Estado, personificado na figura de Vargas, que possibilitaria o aceso dos trabalhadores aos instrumentos de realização individual e social. Desde então, no Brasil, a relação homem do povo/Estado, fundou-se, em grande medida, nessa mitologia do trabalhador como fonte de riqueza, felicidade e ordem social. (GOMES, 1999, p. 71).

Os internos no asilo-colônia, por sua vez, cumpririam seu papel dentro deste projeto de nação moderna por meio de regras de conduta estabelecidas para eles, por meio da

Instituto Nacional de Cinema Educativo. 2002. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2014. 6 Entre eles, O combate à lepra no Brasil, de 1945, e mais cinco curtas metragens/informativos abordando o tema, produzidos na mesma década. 54

disciplina e do trabalho. É valendo-se da compreensão deste contexto e conjuntura que os filmes educativos podem revelar, por meio de suas narrativas, parte destas estratégias, como se pode observar ao assistir ao filme Asilo-colônia Aimorés. Inicialmente, tem-se a ideia de que o filme seja um informativo para apresentar a instituição e seus recursos para receber e tratar dos portadores de hanseníase. No entanto, ao analisar as imagens e o discurso presentes em sua narrativa, observa-se outra finalidade: valorizar a estrutura clínica, a modernidade de suas instalações e o trabalho de cientistas brasileiros. Além disso, a valorização da disciplina e da ordem aparece por meio do valor do trabalho e do estabelecimento do espaço de cada um, bem como o respeito às regras de conduta. Este, aliás, é tido como um elemento imprescindível de civilidade, rumo à modernidade e ao desenvolvimento da nação. Por se tratar de um filme de divulgação de ações do governo, busca-se ressaltar estes elementos de valorização nacional como uma espécie de justificativa para a adoção de uma política de internação compulsória que, na prática, não se mostrava tão eficaz. Havia sérias limitações nestas ações, uma vez que havia uma série de problemas internos, entre os quais, reiteradas tentativas de fuga dos internos, por exemplo (CAMARGO, 1942, p. 139).

Asilo-colônia Aimorés, o filme

Ao estudar a estrutura deste tipo de filme, observa-se uma linguagem específica, ainda que os temas sejam diversos. Embora o filme analisado tenha sido produzido pelo DEIP e não pelo INCE, nota-se a presença de uma estrutura básica: introdução ou apresentação do tema, seu desenvolvimento e finalização, com música clássica como trilha sonora. A escolha da trilha sonora talvez se deva à intenção de dar um caráter solene e culto ao tema apresentado, de acordo com padrões da época. O locutor, com uma voz bem colocada e clara, apresenta-se, no caso do filme analisado, como cicerone de um passeio visual pela “agradável vila”, por meio da movimentação de câmera para apresentar as instalações do local. São apresentados, ainda no início do filme, os médicos responsáveis pela instituição, em alternância com imagens externas como praças, jardins, hortas e plantações, o que sugere uma tentativa de afastar a ideia de confinamento compulsório, que sequer é mencionado. São usadas muitas sequências de planos mais gerais, muitos deslocamentos de câmera para valorizar estes espaços, exaltando a modernidade representada por meio das instalações, calçamentos e projeto urbanístico do local e a civilidade representada pelo discurso que enfatiza o respeito às regras de conduta, a disciplina e a ordem. O encadeamento de imagens apresenta uma sequência linear, no qual o tempo é sempre 55

pontuado pelos afazeres que dão ritmo e ordenamento ao cotidiano local: o tempo do passeio, da escola, do esporte, do trabalho, do lazer, além da promessa de alcançar a cura, no futuro, por meio do trabalho científico. Serão transcritos, a seguir, alguns trechos extraídos da narração do filme que são relevantes no contexto deste estudo. Eles indicam, em seu discurso, alguns dos elementos de valorização do trabalho e do conceito de modernidade que se pretende investigar. Quando é apresentada, a modernidade das residências (aos 3 min. e 12 seg. do filme), os cômodos devidamente arrumados, limpos e decorados também mostram um elemento secundário: a valorização da ordem (organização dos espaços e seus usos), da disciplina (divisão entre moradores casados e solteiros) e do asseio (respeito às regras de convivência):

Nessas casas bigeminadas, em número de trinta e quatro, residem os casais da localidade. Em outros bangalôs, divididos em compartimentos, habitam os internados solteiros. Tanto na parte externa quanto interna dos prédios constatamos perfeito asseio e ordem. Um lar com todo o conforto de uma residência moderna. (ASILO..., 1944, 3’12”).

Residência na qual as pessoas não aparecem usufruindo de seu conforto, mas trabalhando: em uma das cenas, aparece, rapidamente, uma mulher fazendo serviços domésticos, demonstrando o asseio mencionado e apreciado (de 3’35” a 3’40”). Ainda que a criação do asilo-colônia fizesse parte das medidas adotadas para lidar com a endemia da lepra dirigidas aos doentes, o personagem principal do filme é o asilo-colônia. As imagens servem como ilustrações da narrativa do locutor, que não aparece no filme, o que lhe confere um caráter impessoal e (supostamente) mais científico. Mais importante do que informar sobre a doença7 (mostrar seus sintomas, ou abordar os meios de contágio, por exemplo), é valorizar o aspecto científico, a estrutura clínica, a atuação dos médicos. Pode-se notar esta mesma estética nas produções educativas do INCE:

O sujeito dos filmes é a Alavanca, a Balança, o sapo e seus músculos, que adquirem vida própria, autônoma em Músculos Superficiais do Homem. Não há interesse no gesto de quem faz o experimento ou a demonstração, mas o aporte científico em si. Se isso, por um lado reitera a intervenção do artifício cinematográfico, por outro provoca o efeito contrário. Tudo emana da imagem, como se a filmagem e seus responsáveis não existissem. O mundo da ciência se naturaliza uma vez mais por esse efeito de transparência criado pela câmera. (SCHVARZMAN, 2002, não paginado).

7 Em 1948, foi produzido um filme, chamado Onde a esperança mora, cuja abordagem contempla estas questões, ainda que a valorização da ciência seja a tônica do discurso. Este filme será analisado posteriormente. Nota da autora. 56

Esta semelhança de abordagem sobre os temas dos filmes se deveu ao objetivo do Estado de construir, por meio de diferentes veículos e instituições, uma imagem de país moderno, cuja produção científica era um elemento importante para alcançar o progresso. Embora Vargas não apareça neste filme, suas ideias e seu projeto de modernidade para o país estão muito presentes por meio da valorização do trabalho. Isso é perceptível aos 3’40” do filme, quando o narrador apresenta não só os espaços de trabalho, mas reforça seu valor ao mencionar a boa remuneração oferecida aos internos que ocupavam estes postos:

A parte industrial se destaca pela perfeição de suas oficinas otimamente montadas. Na mecânica, marcenaria e carpintaria encontramos perfeitos técnicos que são muito bem remunerados pelos seus trabalhos. (ASILO..., 1944, 3’40”).

Quanto aos internos, quando aparecem, ou estão longe o bastante para que suas feições não possam ser identificadas, ou de costas, ou ainda, com algum objeto escondendo seu rosto. Aparecem de longe, rapidamente, sempre em movimento, como “meros figurantes”. Não são vistos como indivíduos, pacientes e cidadãos que desfrutam dos benefícios do lugar, mas como um bloco único. É como se personagem e cenário mudassem de função: o cenário passa a ser o paciente e o personagem torna-se o asilo- colônia, mais uma vez, os aspectos científicos e a valorização do coletivo (a nação) se sobrepõem ao aspecto humano, ou seja, os indivíduos. E quando, finalmente, o paciente é mencionado, ainda que de maneira breve, nas atividades de lazer, é para destacar a importância das atividades físicas do ponto de vista fisiológico (o fortalecimento do corpo, não do indivíduo) para, em seguida, ressaltar a modernidade das instalações:

Neste lago podem os doentes praticar a natação e outros esportes aquáticos tão necessários à cura da moléstia e fortalecimento do corpo. A cidade é abastecida perfeitamente por este reservatório de água instalado de acordo com os preceitos higiênicos modernos. (ASILO..., 1944, 6’24”).

Os espaços destinados ao lazer também são apresentados de modo a ressaltar a modernidade, o progresso:

Uma maravilhosa tarde na atraente cidade jardim. Estamos novamente nos deliciando com as surpresas do progresso do Asilo-colônia Aimorés. Esse calçamento em mosaico português, somente usado nas localidades mais adiantadas do mundo, faz com que o visitante sinta o adiantamento desta gente operosa e feliz. (ASILO..., 1944, 6’47”).

E, mais uma vez, os internos são mencionados para ressaltar o progresso e a modernidade das instalações do lugar: 57

É dotada a localidade de um perfeito serviço de água e esgoto e de modelar usina de força elétrica. A população vive assim: o local próspero em todo o sentido, dentro de uma bem organizada sociedade. (ASILO..., 1944, 7’11”).

Os doentes moradores não eram vistos como indivíduos que usufruíam dos recursos oferecidos pela instituição para se tratarem. Eram descritos como uma população, que tinha, de acordo com este discurso, subsídios para viver na mais perfeita ordem e disciplina, ainda que não pudessem sair da instituição. Deste modo, mais uma vez, o aspecto coletivo sobrepõe-se ao individual. Restabelecer a saúde dos indivíduos doentes torna-se, neste contexto, algo secundário quando se considera o projeto de modernidade para a nação elaborado por Vargas.

Considerações finais

Num primeiro nível de análise, o filme teve por finalidade divulgar o asilo-colônia, parte de sua produção científica e suas instalações. As imagens privilegiam planos mais gerais, para realçar os espaços ao ar livre e valorizar a modernidade das instalações, calçamentos, bem como do projeto urbanístico do local. Observa-se, também, a importância dada à instituição e suas instalações, em detrimento dos doentes e suas necessidades, para quem, afinal, o asilo foi construído. A valorização do trabalho para alcançar o progresso e a exaltação do conceito de modernidade aparecem num outro nível de significação, que não se apresenta como oposição ao anterior, como pretende Marc Ferro, mas que é complementar a ele. Ao se considerar apenas o contexto, não é possível responder às questões que se colocam, pois a análise se limita à descrição das imagens. Se forem levadas em consideração as significações, sem um contexto, elas também não podem oferecer subsídios para a compreensão da conjuntura. Nota-se, também, a ideia de civilidade, definida neste contexto, como meio de atingir a modernidade, igualando-se às “localidades mais adiantadas do mundo”. O discurso do filme reitera, em diversos momentos, que ela se constitui por meio da disciplina, do ordenamento dos indivíduos e usos dos espaços, tais como os alojamentos destinados aos casais e aos solteiros, ou os locais de trabalho e de lazer, por exemplo. Ainda que de maneira sutil, a ideia de civilidade permeia o discurso da narrativa fílmica. Ela aparece por meio da valorização da disciplina, do asseio e da ordem, assim, os internos também poderiam contribuir para o engrandecimento da nação, ao seguir e respeitar estes valores. A ênfase da narrativa, portanto, recai sobre como o local recebe 58

estas pessoas e como o Estado (supostamente) cuida delas ao mostrar o asilo-colônia como local civilizado, organizado, disciplinado, apto a mantê-las ali, mesmo que à força. Do ponto de vista da investigação histórica, mesmo que houvesse falhas em sua formulação, as ideias de Ferro, para compreender este tipo de produto cultural como documento histórico, foram muito relevantes. Considerando sua pertinência quanto ao tema, foi alvo de debates e reformulações importantes para aprimorar as análises deste tipo de fonte. No caso do filme Asilo-colônia Aimorés, uma produção de divulgação política e ideológica, esses cuidados devem ser redobrados. Para analisar estas imagens, foi necessário considerar não só a conjuntura e as circunstâncias políticas e sociais da época da produção do filme, mas também os elementos que lhes conferem significados, a partir desta mesma conjuntura. Assim, não se pode descartar, na análise deste tipo de produção cultural, seus elementos semiológicos, uma vez que é por meio deles que se torna possível compreender os diversos recursos e elementos presentes no discurso contido em sua narrativa. Tendo em vista a riqueza deste tipo de fonte, outras questões podem ser formuladas, ainda que não sejam contempladas neste artigo, por fugirem ao seu escopo. Entre elas, está a possibilidade de mapear por onde estas ideias e valores, legitimados por meio de diversos mecanismos e instituições governamentais, circulavam. Embora requeira outros aportes teóricos, até sobre a recepção das ideias, um estudo sobre a circulação destas imagens e ideologias pode oferecer novos subsídios para a compreensão não só de seus significados, mas também de sua veiculação e sua importância. Deste modo, as pesquisas em que o cinema aparece, seja como fonte, veiculador de um discurso, seja como prática social, podem configurar novas dimensões de análise.

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MONTEIRO LOBATO NOS ESTADOS UNIDOS E AS PRIMEIRAS NEGOCIAÇÕES ENVOLVENDO O PROCESSO SIDERÚRGICO SMITH

Celso CARVALHO JR.1

Introdução

Monteiro Lobato entrou em contato com o mundo das grandes multinacionais nos Estados Unidos durante o período em que trabalhou como adido comercial no consulado brasileiro de Nova York, entre os anos de 1927 e 1930. Assim, pretendemos entender quais mudanças essa experiência provocou na trajetória profissional do escritor e como foi o início do seu envolvimento nos debates sobre a modernização econômica do Brasil, especialmente nas discussões sobre a necessidade de desenvolver a indústria siderúrgica em seu país. As cartas que Lobato escreveu dos Estados Unidos ajudam a entender sua inserção nesse debate, uma vez que revelam como gostaria de ser visto e reconhecido por seus interlocutores, quais eram seus interesses e como percebeu os acontecimentos que vivenciou. Por outro lado, as mesmas epístolas dão pistas das estratégias que utilizou para viabilizar seus projetos e dificuldades que enfrentou. Neste texto, apresento os resultados parciais da minha pesquisa de doutorado, intitulada A campanha do petróleo de Monteiro Lobato: sociabilidade e escritos autobiográficos. Na qual parto do pressuposto de que o escritor participou dos debates sobre o petróleo no Brasil num momento histórico bastante conturbado e deparou-se com dilemas e questões complexas. Assim, procuro questionar como um intelectual sem recursos financeiros, inexperiente na administração de empresas siderúrgicas e petrolíferas e com pouco conhecimento técnico nessas áreas conseguiu fundar companhias de petróleo e liderar uma campanha sobre o assunto que teve grande repercussão? Como os acontecimentos políticos, econômicos e sociais do período interferiram na formulação e reformulação das propostas de Lobato para o setor petrolífero? Quais posições políticas assumiu? Quais estratégias utilizou para viabilizar seus projetos e como as condições históricas da época favoreceram ou limitaram sua atuação? Quais foram as consequências pessoais dos investimentos feitos em tais projetos? Como suas ideias e atitudes foram recebidas por seus contemporâneos? Enfim, o que se pretende com essa pesquisa é

1 Mestre em História – Doutorando – Programa de Pós-graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Univ. Estadual Paulista, campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19.806-900, Assis, São Paulo-Brasil. E-mail: [email protected]

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entender como Lobato reagiu diante das adversidades e o que sentiu em tais momentos. Dessa forma, será possível explicar suas ideias, comportamentos e atitudes. E, consequentemente, repensar algumas interpretações sobre a história do petróleo no Brasil. Para atingir tal objetivo será utilizada como fonte a correspondência, ativa e passiva, de Monteiro Lobato que trata da campanha que organizou pela exploração do petróleo, entre os anos de 1927 e 1941. Dessa forma, será possível mapear a rede de sociabilidade que construiu por meio da troca epistolar, identificar as representações presentes nas cartas e realizar o cruzamento dessas análises com outros documentos e estudos históricos. Assim, será possível explicar atitudes e ideias contraditórias, confrontos, sucessos, fracassos e outros aspectos da campanha de Lobato. Isso se faz necessário porque durante a campanha de Monteiro Lobato o ato de escrever cartas se transformou em uma importante estratégia de luta política. Muito utilizada para conquistar o apoio de lideranças políticas, burocratas, militares, intelectuais, empresários e outros. Além disso, serviam para elaborar estratégias de ação, firmar pactos de aliança, combater adversários, solicitar favores governamentais e manter em contato os adeptos da causa. Nos momentos em que não havia liberdade de expressão, Lobato utilizou a carta para se manifestar e, por fim, muitas missivas foram apropriadas por seus biógrafos com o intuito de construir a memória da campanha. Especificamente neste texto abordo algumas questões tratadas no primeiro capítulo da tese, portanto, optei por iniciar a discussão tentando entender como Lobato, inicialmente, envolveu-se nos debates sobre o desenvolvimento industrial brasileiro e, em seguida, discuto as características do projeto siderúrgico que formulou nos Estados Unidos, nos anos de 1927 e 1928, e identifico as estratégias para viabilizá-lo.

A chegada de Lobato nos Estados Unidos e sua inserção nos debates sobre o desenvolvimento industrial brasileiro

Antes de embarcar para os Estados Unidos, Monteiro Lobato revelou, em carta ao amigo Godofredo Rangel escrita no dia 23 de março de 1927, suas expectativas e planos para a viagem:

Passei a manhã de hoje emançando cartas – como tenho cartas, meu Deus! Apesar do destroço que a cada mudança nelas faço, ainda as conservo às centenas; das que dizem algo interessante para a história da minha vida e da contemporânea, não me desfaço. Tuas, quantas e quantas! Conservo-as todas. Desta feita parto para longe. Estou a fazer a bagagem. A 27 de abril sigo de mudança para os Estados Unidos, para onde fui nomeado Adido Comercial. Verei se lanço lá a edição inglesa do Choque das Raças e estudarei a hipótese do transplante da nossa segunda empresa editora. Se for possível, chamar-se-à Tupy Publishing Co. e há de crescer mais que a 62

Ford, fazendo-nos a todos milionários – editores e editados. O Brasil é uma coisa perrengue demais para os planos que tenho na cabeça. Esses planos no Brasil permanecerão toda vida lêndeas: lá virarão piolhos do tamanho de iguanodontes. O cargo assegura-me subsistência e deixa-me liberdade de ação. Espero em dois anos dispensa-lo e ficar apenas chefe da Tupy Co. Que sonho lindo! Que maravilha! Morar e ter negócio na maior cidade do mundo, onde os homens se envenenam com o fedor de gasolina de 800 mil automóveis! America, a terra de Henry Ford, o Jesus Cristo da Indústria! Mandei-te meu livrinho em inglês, As Henry Ford is regarded in Brazil. Sabes que recebi dele uma carta, lá de Dearbon. (LOBATO, 1969, t. 2, p. 299-300).

Ao informar que está organizando sua correspondência, reconheceu que as cartas possuem um valor histórico e não apenas sentimental, além disso, revelou um esforço consciente de seleção e preservação das mesmas. E pelo critério que adotou – um subjetivo interesse histórico – as cartas que recebeu de Rangel mereciam ser guardadas. Ao ler o conjunto de missivas enviadas dos Estados Unidos e que resistiram ao tempo, percebemos que Lobato construiu uma imagem de si contraditória e múltipla, que alterava de acordo com o destinatário, as circunstâncias do momento e os seus interesses imediatos. Além disso, as ideias, projetos, valores e propostas expostos nas epístolas ajudam a entender sua atuação como adido comercial e as mudanças que a temporada do outro lado da América provocou em sua trajetória. Por meio do excerto citado, notamos que Lobato expôs ao amigo planos bem definidos, que objetivavam concretizar o sempre acalentado sonho de tornar-se milionário. Planejava lançar uma edição inglesa do livro O choque das raças ou O presidente negro2 e abrir editora nos Estados Unidos. Encara o cargo no serviço diplomático como temporário, que lhe asseguraria a subsistência e o deixaria livre para dedicar-se aos negócios. Uma vez consolidada a Tupy Publishing, pretendia deixar a função de adido. Ele apresenta visão pessimista do Brasil, além de otimismo exagerado em relação às oportunidades e possibilidades de enriquecer na América do Norte. Outro dado importante dessa correspondência é a tentativa de construir uma imagem de proximidade com a Ford, medida das suas pretensões. Lobato utiliza o pretexto de presentear o amigo para dizer que recebeu carta do magnata, sem entrar em maiores detalhes. Convém destacar que a admiração pelo desenvolvimento econômico dos Estados Unidos e pelas ideias de Henry Ford era antiga. Basta lembrar que, em 1924, Lobato traduziu para o português e editou os livros Minha Vida e Minha Obra e Hoje e Amanhã, escritos pelo empresário e, em 1926, publicou How Henry Ford is Regarded in Brazil, livreto que reúne artigos sobre o fordismo, originalmente escritos para O Jornal. Nos seus escritos,

2 Primeiramente o livro foi lançado como folhetim no diário carioca A Manhã, entre 5 de setembro e 1º de outubro de 1926. Em dezembro do mesmo ano foi publicado pela Companhia Editora Nacional com tiragem de 16 mil exemplares (AZEVEDO; CARMARGOS; SACCHETTA, 2001). 63

Henry Ford foi representado como exemplo a ser seguido por suas realizações e ideias a propósito da racionalização e eficiência do processo produtivo. Monteiro Lobato chegou nos Estados Unidos em 7 de junho de 1927 e suas expectativas foram largamente superadas, pois a cidade era maior do que imaginava e muito diferente do Brasil. Ele se esforça em compartilhar sua surpresa com os destinatários de suas cartas3, recorrendo aos números afirma que os turistas norte-americanos gastaram, com passagens para a Europa, 3.600.000 dólares. Apresenta cifras para demonstrar que o orçamento anual da prefeitura de Nova York ou o valor dos imóveis em Wall Street é superior ao orçamento do Estado brasileiro. Entusiasmado, assinalava que a cidade possuía mais de 800 teatros e outras centenas de cinemas, além de se admirar com os milhares de automóveis que circulavam pelo país, sem esquecer, o impressionante montante de estudantes universitários e o acervo gigantesco das grandes bibliotecas. Os Estados Unidos de Monteiro Lobato, grandioso e moderno, também era rico, como fez questão de afirmar ao cunhado, Heitor de Morais: “Sente-se em tudo a riqueza espantosa do país. Não há pobres, o pobre daqui equivale ao remediado daí” (LOBATO, 1970, p. 104). Nos escritos de Lobato, tal riqueza era associada aos elevados salários, que proporcionavam aos americanos acesso ao consumo. Na visão fascinada de Lobato, todos tinham carros, rádios e outros produtos que tornavam a vida mais fácil. A população lotava restaurantes, magazines, teatros e hotéis e, consequentemente, não existiria miséria na América de Lobato. Dessa maneira, os norte-americanos teriam superado as contradições e construído uma nova civilização, tão superior às anteriores que até as mulheres conquistaram liberdade para integrar o mercado de trabalho e participar da política. Na correspondência lobatiana deste período, o Brasil é representado como o oposto dos Estados Unidos: pobre, atrasado e indolente. Já a Europa era vista como decadente e, portanto, os brasileiros deveriam ignorar os paradigmas de civilização do Velho Continente e se inspirar no america way of life. Apesar do pessimismo, Lobato acreditava que, para superar os problemas de sua terra natal, era necessário seguir o exemplo norte-americano. Por isso, convidava seus destinatários a visitarem a “América” e defendia a aproximação política e econômica com os Estados Unidos. Nas missivas, Lobato apresentava-se como o adido comercial que tinha em mira facilitar o intercâmbio de mercadorias e serviços entre os dois países, mas também como um empreendedor, homem de negócios e capaz de imaginar oportunidades milionárias. Nas cartas de 1927, a intensidade dessas representações varia de acordo com o momento, o destinatário e os seus interesses. De qualquer forma, percebemos que Lobato sempre

3 Ver cartas dirigidas a Heitor de Morais (LOBATO, 1970, p. 104-105), Godofredo Rangel (LOBATO, 1969, t. 2, p. 301-305), Candido Fontoura e Artur Neiva (TIN, 2007, p. 320-321, 468-470) escritas entre junho e setembro de 1927. 64

defendia a ideia de que o Brasil deveria se tornar o principal aliado do imperialismo yankee, sob o argumento de assumirmos a liderança na América Latina4. Para familiares e amigos íntimos, Lobato revelava, em detalhes a expectativa de enriquecer na América do Norte. Assim, para o cunhado Heitor de Morais e a irmã Teca, ou para os amigos Candido Fontoura, Godofredo Rangel, Lino Moreira, Artur Neiva, suas primeiras cartas insistiam em atividades e negócios inovadores (e sempre milionários), que lhe permitiriam abandonar o serviço público. A primeira tentativa de tornar-se milionário na “América” foi esboçada ainda no Brasil e estava apoiada no lançamento do seu romance, “meio à Wells, com visão de futuro”, que tocava na polêmica questão racial norte-americana e que ele acreditava que se tornaria um best-seller, primeiro da editora que pretendia fundar. Três meses depois de desembarcar no porto de Nova York informou o seguinte ao amigo Rangel: “Meu romance não encontrou editor. Falhou a Tupy Company. Acham-no ofensivo à dignidade americana [...]. Os originais estão com o Issac Goldeberg, para ver se há arranjo. Adeus Tupy Company!...” (LOBATO, 1969, t. 2, p. 304, carta de 5 de setembro de 1927). Apesar do revés, Lobato descobriu outra oportunidade de negócio, o processo siderúrgico desenvolvido pelo engenheiro William H. Smith. Em carta de 17 de agosto a Godofredo Rangel (LOBATO, 1969, t. 2, p. 302) afirmava manter correspondência com um engenheiro da Ford, que desenvolveu um revolucionário processo siderúrgico perfeitamente adequado às condições brasileiras. Acreditamos que o interesse de Lobato pelo ferro e petróleo tem origem na sua admiração pela figura de Henry Ford. Em traduções e artigos, Lobato ajudou a divulgar o fordismo no Brasil e é provável que tenha sido esse trabalho a porta de entrada para chegar aos representantes da Ford nos Estados Unidos. A ausência de documentos não permite o estudo aprofundado dessa relação, no entanto, é plausível supor que a condição de divulgador do fordismo e o cargo de adido comercial – cuja função é justamente estreitar as relações econômicas entre Brasil e Estados Unidos – proporcionaram condições favoráveis para a aproximação entre Lobato e Smith. Nas cartas que abordam a questão do ferro, escritas por Lobato em 1927, percebe- se a ausência de um plano de negócios e ações concretas para viabilizar a instalação do método experimental no Brasil. O escritor limitava-se a defender a importância do processo Smith e revelar que comunicou o caso ao governo brasileiro, sem entrar em maiores detalhes. Tampouco fica claro se Lobato atuaria como um mediador entre o governo do Brasil e o engenheiro da Ford ou se pretendia criar uma empresa e conduzir as negociações

4 Cartas de Monteiro Lobado a Artur Neiva (TIN, 2007, p. 468-470, carta de 9 de setembro de 1927), Oliveira Viana (TIN, 2007, p. 438-440, carta de 10 de novembro de 1927), Lino Moreira (LOBATO, 1970, p. 107-108, carta de 18 de setembro de 1927) e Alarico Silveira (TIN, 2007, p. 109-113, cartas de 19 de setembro e 9 de novembro de 1927). 65

na condição de investidor, ou seja, pouco se pode afirmar a propósito da função do Estado e da iniciativa privada no desenvolvimento do processo Smith. Apesar das hesitações, Lobato não perdeu o entusiasmo pelo mundo dos negócios e nem a esperança de enriquecer: “Vou ganhar tanto dólar nesta terra que até... O diabo é que ainda não ganhei nem um. A falta de falar o inglês tem me atrasado muitíssimo, nem calculas. Mas ha de ir assim mesmo, porque não desisto de ter um arranha-céu em Manhattan.” (LOBATO, 1970, p. 111, carta de Lobato a Heitor de Morais de 26 de outubro de 1927). Por fim, cabe ressaltar que, além do negócio do ferro, Lobato auxiliava e aconselhava o amigo Candido Fontoura em ações de promoção do Biotônico Fontoura no Brasil e Estados Unidos5. Se, para os amigos e familiares, o que se destacava na correspondência era o empreendedor, o homem de negócios que estava prestes a enriquecer, nas missivas destinadas a Alarico Silveira, amigo e chefe do gabinete da presidência da República, o que chama a atenção é o adido comercial, representado como o trabalhador esforçado e preocupado com o desenvolvimento do seu país. A primeira carta destinada a Alarico data de 11 de agosto de 1927. Nela Lobato (1970, p. 106) afirma que está adaptado ao novo país e trabalhando no Consulado. Comunicou o envio de relatório ao Ministro das Relações Exteriores, Otávio Mangabeira, sugerindo a instalação de mostruário de produtos brasileiros em Nova York, com vistas a aumentar nossas exportações para os Estados Unidos. Em outras duas missivas, datadas de 19 de setembro e 9 de novembro, Lobato (1970, p. 109-113) sugeriu ao governo instituir programa de bolsas para jovens brasileiros estudarem em universidades norte-americanas, criticou a morosidade do governo federal em atender seus pedidos de informação e auxílio e, por fim, reafirmou sua crença de que os Estados Unidos tornar-se-iam um grande império. Defendeu a ideia de que nossa diplomacia deveria trabalhar para fazer do Brasil um dos principais parceiros político e econômico dos norte-americanos. Vê-se, portanto, que Lobato não tratou da questão do ferro nem de seus projetos pessoais nessas primeiras missivas remetidas a Alarico. Pelo contrário, forneceu sugestões para incrementar as relações entre o Brasil e os Estados Unidos. No que respeita ao ingresso de Monteiro Lobato no Itamaraty, foram respeitados os padrões da época. A história institucional do Ministério das Relações Exteriores indica que, até a primeira metade do século XX, o órgão foi um importante polo de atração de intelectuais. A presença deles é registrada desde os primeiros anos do Império e intensificou-se a partir da gestão do Barão do Rio Branco, já na República, o que se deve à natureza da atividade diplomática e consular na Primeira República, que não estava

5 Na correspondência de Lobato com Fontoura destaca-se duas iniciativas que não se concretizaram: a comercialização do Biotônico nos Estados Unidos e a produção de um filme sobre o Jeca Tatu para promover o fortificante no Brasil. Os dois assuntos aparecem em sete cartas escritas entre os meses de agosto e dezembro de 1927 (TIN, 2007, p. 321-361). 66

profissionalizada e estruturada numa carreira. Tal situação permitia ao Presidente nomear para os cargos do Ministério intelectuais ligados às oligarquias agrárias (GARCIA, 2006). Assim como outros escritores que aturam no Itamaraty no mesmo período, Lobato possuía o capital social necessário para ser nomeado adido comercial, na principal cidade do nosso maior parceiro econômico. Pois pertencia a tradicional família da oligarquia paulista; cursou a prestigiada Faculdade de Direito de São Paulo, era um intelectual conhecido e ligado ao grupo político do presidente da República. Tanto que sua designação para o cargo de promotor público no município de Areias, em 1907, deveu-se às boas relações de seu avô, o Visconde de Tremembé, com Washington Luís, na época Secretário de Justiça e Segurança Pública do Estado de São Paulo (ALMEIDA, 2005). A amizade entre Lobato e Alarico da Silveira também era antiga, visto que o último foi frequentador da redação da Revista do Brasil, e a boa relação estendia-se ao irmão, Valdomiro Silveira, que também pertencia ao círculo de intelectuais da revista e teve seu primeiro livro de contos editado por Monteiro Lobato em 1920. Antes disso, o autor de Os Caboclos publicou artigos do seu editor num jornal que dirigiu na cidade de Santos. Assim, a afinidade com o projeto político do presidente Washington Luís, manifestada até em artigos na imprensa, e a presença do amigo Alarico, na chefia da Casa Civil do governo eleito em 1926, foram decisivas para a indicação de Lobato ao Consulado. Cabe ressaltar que, no momento de sua nomeação, enfrentava graves dificuldades financeiras em razão da falência de sua editora e estava afastado dos debates literários. Portanto, a viagem aos Estados Unidos era uma boa oportunidade para superar as dificuldades. A atuação de Lobato no Itamaraty comporta semelhanças e diferenças em relação ao trabalho de outros intelectuais que passaram pelo Ministério das Relações Exteriores. Assim como outros escritores, Lobato rapidamente percebeu que o cargo no Consulado poderia proporcionar condições favoráveis para projetos culturais, como a publicação de um romance e a fundação de uma editora. E, ainda, esperava que, durante a estadia em Nova York, conheceria outras pessoas, formaria novos círculos de amizade e relações que poderiam abrir oportunidades. A diferença é que o autor das histórias do Sítio do Picapau Amarelo não se limitou em conciliar atividades diplomáticas e literárias, foi além, e também atuou no campo econômico, notadamente em empreendimentos siderúrgicos e petrolíferos. As atribuições do adido comercial e os contatos com representantes da Ford proporcionaram sua entrada no big business. A expectativa de alto lucro com o processo Smith, e depois com o petróleo, aguçou seu interesse pelo mundo empresarial. Por outro lado, Lobato entendia que tais iniciativas seriam decisivas para superar o subdesenvolvimento do seu país e, consequentemente, transformar o Brasil em uma nação tão moderna quanto os Estados Unidos. 67

Lobato deu atenção especial ao negócio do ferro e, apesar de em determinadas ocasiões afirmar que havia abandonado definitivamente a atividade literária, nunca cumpriu a promessa, tanto que colocou seu talento de escritor a serviço de suas empresas siderúrgica e petrolífera. No entanto, durante o período em que viveu nos Estados Unidos, fez investimento pessoal significativo na tentativa de implantar no Brasil a siderúrgica por meio do processo criado por William Smith. Na correspondência, percebemos que Lobato priorizava a constituição de relações sociais e vínculos com homens de negócio – notadamente os da Ford – em vez de artistas e intelectuais de diferentes partes do mundo, que transformaram Nova York em um importante centro cultural. O que se tem nas cartas são referências aos projetos industriais e siderúrgicos, muito mais frequentes do que questões culturais e diplomáticas, evidência da importância que Lobato conferia aos empreendimentos industriais.

O adido comercial e seu projeto siderúrgico

Até o momento, constatamos que as cartas escritas por Monteiro Lobato no ano de 1927 revelaram que a imagem construída pelo escritor variou em função dos seus interesses, identificamos seu encantamento pela modernidade norte-americana6 e pessimismo em relação ao futuro do Brasil. Além disso, acompanhamos a inserção do adido comercial no mundo dos negócios e sua expectativa de enriquecer com a constituição de uma companhia siderúrgica que ajudaria a superar o subdesenvolvimento brasileiro. No entanto, ao consultar as missivas do ano em questão, percebe-se ausência de um plano de negócio e ações concretas para viabilizar a instalação no Brasil de uma usina que utilizasse o processo Smith. Lobato limitava-se a defender a importância do novo método, mas não esclarecia sobre seu papel no negócio e nem detalhava como seria a participação do Estado e da iniciativa privada no empreendimento. Em 1928, esse cenário muda, as negociações amadurecem e torna-se possível identificar claramente os objetivos e as características do seu projeto siderúrgico. O principal responsável por essas mudanças foi Fortunato Bulcão, um investidor que nasceu em 1875, na cidade de Cabo Frio, e faleceu em 1942, aos 67 anos. Ao longo de sua vida ocupou cargos importantes, como o de diretor do Banco do Brasil e Associação Comercial do Rio de Janeiro, além disso, foi membro do Conselho Superior de Comércio e Indústria e, ainda hoje, é lembrado por ser pai do famoso artista plástico Athos Bulcão. O investidor fluminense obteve, durante o governo de Artur Bernardes, concessão, com incentivos fiscais, para montar uma siderúrgica e chegou em Nova York, em março de 1928,

6 A admiração de Lobato pelos Estados Unidos continuou inabalável durante o ano de 1928, como exemplo podemos citar as cartas a Oliveira Viana, de 15 de abril (TIN, 2007, p. 440-442) e 22 de dezembro de 1829 (TIN, 2007, p. 423-426). 68

em busca de capitais para concretizar o empreendimento. Nessa época conheceu Monteiro Lobato, que lhe falou de um novo processo siderúrgico e o apresentou a seu criador, William Smith. Bulcão entusiasmou-se com as possibilidades do negócio, por acreditar que o método em desenvolvimento era perfeitamente adequado às condições brasileiras, e resolveu implantá-lo no Brasil. Dessa forma, nasceu a parceria entre Lobato e Bulcão, que resultou da formulação de um claro e definido projeto siderúrgico para o país. Em duas cartas destinadas a Alarico Silveira7, Lobato explicou seus planos. Na primeira, comunicou que estava de partida para Detroit, em companhia de Fortunato Bulcão, com o intuito de conhecer a fábrica da Ford e as pesquisas de William Smith. Também revelou que estava na expectativa de que o investidor brasileiro e o engenheiro norte- americano se associariam para fundar uma empresa, com capital inicial milionário, destinada a implantar no Brasil o novo processo siderúrgico. De acordo com o adido comercial, as negociações seriam concluídas lá, comprometeu-se em relatar ao chefe da Casa Civil o resultado da viajem e solicitou sigilo sobre o negócio. Na missiva, o processo Smith é considerado revolucionário e inovador, por exigir um investimento inicial menor, dispensar o uso de carvão mineral e coque e ser mais eficiente do que os tradicionais métodos de produção de ferro gusa. Bulcão foi representado como um engenheiro especializado em metalurgia e um empreendedor inteligente, capaz e determinado. Lobato apresentou-se como um intermediário do negócio, ressaltou o fato de ter apresentado Bulcão a Smith e não demonstrou interesse em se associar à futura companhia. Na segunda epístola, Lobato (1970, p. 123-132) apresentou a Alarico os resultados da viajem, seu entusiasmo é patente desde a primeira linha, quando adverte: “Prepare-se para ler a carta mais importante que ainda foi escrita daqui para aí. Acabo de chegar de Detroit e vou atamanca-la a tempo de pegar a mala de amanhã”. Em seguida, fez uma análise econômica e social do Brasil, afirmava que nosso principal problema era a miséria e para superá-la precisaríamos produzir ferro e aço em grande quantidade, pois a consolidação do setor siderúrgico permitiria o crescimento industrial. O escritor acreditava que a industrialização proporcionaria desenvolvimento econômico-social, caracterizado por bem-estar e qualidade de vida, e destaque ao nosso país no cenário internacional. Assim, argumentava que a influência geopolítica e modernização da Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos resultaram das fábricas e, consequentemente, do ferro que possuíam. O Brasil era o oposto daquelas nações, não produzia e por isso importava manufaturas, e mesmo com grandes reservas de minério de ferro em seu território era incapaz de construir siderúrgicas. O adido comercial acreditou que o problema não tinha solução e, por isso, estávamos condenados ao atraso. No entanto, mudou de opinião ao conhecer o processo

7 Cartas de Lobato (1970) a Alarico Silveira, datadas, respectivamente, 26 de abril (p.121-122) e 3 de maio de 1928 (p. 123- 132). Ainda de acordo com essas missivas o escritor esteve em Detroit entre os dias 27 de abril e 2 de maio de 1928. 69

Smith, por entender que se tratava de um método adequado às necessidades brasileiras e capaz transformar o Brasil em uma nação industrializada. A inovação tecnologia que fez Lobato abandonar seu pessimismo em relação ao futuro do Brasil foi criada por William H. Smith e patenteada, em 1928, pela General Reduction Corporation. Trata-se de um método siderúrgico que, em tese, reduziria o minério de ferro a ferro esponja, por meio de reações químicas, em forno vertical com temperatura inferior ao ponto de fusão do metal. Após a redução, o ferro é magneticamente separado de outros materiais e, por fim, briquetado. O ferro esponja é considerado uma alternativa ao ferro gusa e ambos podem ser utilizados na produção de aço, no entanto, ainda hoje, muitos especialistas consideram mais vantajoso o uso do último8. Em seguida, Lobato enumerou as vantagens do processo Smith, argumentou que o método exigia instalações mais simples do que as usinas existentes. Principalmente se comparado com as grandes siderúrgicas integradas, que produziam ferro, aço e laminados numa única unidade. Sobre esse aspecto, cabe ressaltar que muitos defendiam a construção de usinas integradas no Brasil, no entanto, a concretização desses empreendimentos esbarrava na ausência de capital. Por isso, Lobato insistia na viabilidade econômica do negócio, destacando que seu projeto exigiria um investimento inicial bem menor. Além disso, afirmava que o método era perfeitamente adequado ao Brasil, já que, possuíamos grandes reservas de minério de ferro, mas não tínhamos carvão mineral e matéria-prima para produzir coque. Dessa forma, apresentava o processo Smith como uma solução a esses problemas, visto que, o mesmo propunha substituir o carvão mineral, como combustível do forno, e o coque, como agente redutor, por outras fontes de carbono disponíveis em nosso território, como: carvão vegetal, bagaço de cana, palha de café, babaçu etc. Além disso, tentou convencer Alarico, de que a técnica norte-americana tinha um custo de produção reduzido, por dispensar a necessidade de altas temperaturas, e elevada produtividade. Ainda nesta carta, Lobato vai direto ao ponto: “Mas a coisa não ficou por aí. Entramos no terreno pratico das realizações. Traçamos no chão as linhas do alicerce”, e detalha ao remetente o plano para construir no Brasil uma usina com o método Smith. Assim, segundo o remetente, ficou definido que seria criada uma companhia brasileira, totalmente privada e com capital nacional, que em parceria com a General Reduction Corporation construiriam a siderúrgica. A empresa dos Estados Unidos ficaria responsável por transferir a nova tecnologia aos brasileiros e oferecer assessoria administrativa e financeira. Para justificar a ausência do capital estrangeiro, utilizou o argumento de que a produção metalúrgica em uma nação independente deve permanecer sob o controle dos

8 Para mais informações sobre usinas e processo siderúrgicos, ver: ARAUJO, Luis Antonio de. Manual de Siderurgia. 2ª Ed. São Paulo: Arte & Ciência, 2008, 2 v.; MOURÃO, Marcelo Breda (Coord.) Introdução à siderurgia. São Paulo: ABM, 2007. 70

seus cidadãos por tratar-se de área estratégica. Informou que Fortunato Bulcão estava voltando para o Brasil com o objetivo de convencer o governo federal a apoiar o empreendimento, atrair investidores para o negócio, formalizar a fundação da companhia e iniciar a construção da usina. Solicitou ajuda a Alarico Silveira, para agendar uma reunião entre Bulcão e o presidente Washington Luis, e pediu segredo sobre o caso. Ainda nessa carta aparece a indicação de possíveis investidores:

Debati com o Dr. Bulcão o caso e por fim assentamos no seguinte grupo: Sampaio Correia, elemento técnico, inteligência de primeira ordem; Lage [Henrique Laje], que ficou assim, assim; Frontin [Paulo Frontin], elemento político-que-não-cai; Bulcão elemento força-convincente; Victor Konder, calor da mocidade e o líder da bacia carbonífera da sul; Macedo Soares [José Carlos de Macedo Soares], pelo comercio e industria de São Paulo; um Prado, porque a família Prado é pioneira e deve estar associada a todas as grandes iniciativas do Brasil; Navarro de Andrade, o Ford dos eucaliptos, o diretor natural do reflorestamento que a empresa vai necessitar para o futuro. O Dr. Bulcão ficou de ir conversar e expor o caso ao Dr. W. e aos homens indicados. (LOBATO, 1970, p. 130).

Monteiro Lobato também comentou sobre seus planos com os amigos9 Artur Neiva, Candido Fontoura e Godofredo Rangel, além do cunhado, Heitor de Morais10. A estratégia para viabilizar o negócio e as representações construídas sobre Bulcão, Smith e os Estados Unidos são muito parecidas com as que foram expostas a Alarico Silveira. No entanto, a principal diferença diz respeito à imagem que Lobato construiu de si e do governo brasileiro11. Na correspondência mais íntima apresenta-se como um empreendedor entusiasmado com a possibilidade de enriquecer com o negócio, bem como, demonstra intenção de associar-se a nova companhia e desejo de abandonar o serviço público e a literatura. Tanto que confidencia a Heitor: “Um sonho! E como estou sócio de Bulcão creio que não escapo de ficar milionário”. Os desdobramentos do negócio, ainda no ano de 1928, podem ser acompanhados nas cartas de Fortunato Bulcão destinadas a Monteiro Lobato, em 6, 12, 19 e 26 de junho e 11 de julho (BULCÃO apud NUNES, 1985, p. 28-31). Nas quais o destinatário expressa sua admiração pelo remetente e destaca a afinidade que existe entre eles – “Assim faz gosto trabalhar. Estamos separados por uma distancia de 12/14 dias, mas nos entendemos como

9 Ver cartas dirigidas a Artur Neiva (TIN, 2007, p. 473-474, 16 de maio de 1928), Cândido Fontoura (TIN, p. 327-328, 29 de maio de 1928) e Godofredo Rangel (LOBATO, 1969, t. 2, p. 309-316, datadas de 17 de agosto e 28 de novembro de 1928). 10 Cartas de Lobato (1970, p. 132-142) a Heitor de Morais. 11 Lobato (1970, p. 134-135, 4 de julho de 1928) trata da difícil relação com o governo em carta a Heitor de Morais: “Quanto a governo, presidente, ministros, etc., não pretendo agrada-los, porque não pretendo fazer carreira nem permanecer nesta humilhante posição de funcionário da coisa mais ridícula e cretina que se possa conceber – governo brasileiro. Chego a ter nojo de mim, quando penso que estou a fazer parte dessa maquina de tapear o pobre Brasil. E note-se que o governo atual tem a seu favor uma credencial – é honesto. Mas como é cretino! Sossega. Antes que me removam, removo-me eu para um business e mando-os todos aquela parte. Não nasci para escravo, decididamente. Tenho sido um mau escravo. Rebelde sempre, desrespeitador das ordens cretinas e muito independente nas minhas relações com o ministério para que eles me aturem por muito tempo.” 71

se estivéssemos no mesmo local” – principalmente no que diz respeito ao empreendimento siderúrgico e americanismo. Além disso, atestam que a missão de Bulcão no Brasil era conseguir o apoio do governo federal para o empreendimento e levantar o capital necessário junto aos investidores nacionais. Nas missivas, o sócio de Lobato informou sobre encontros com políticos importantes, como o ministro Victor Konder e o presidente Washington Luis, e sobre alguns desentendimentos. O principal teria acorrido com o senador Paulo Frontin, de acordo com Bulcão, o mesmo deveria ser afastado do negócio por ser antiamericano e preocupar-se apenas com seus interesses políticos. Há também menção a possíveis investidores que se destacavam no meio empresarial, como Henrique Lage, Guilherme Guinle, Navarro de Andrade e Paulo Prado. Bulcão também revelou a Lobato o medo de que Percival Farquhar atrapalhasse a concretização do negócio. Desde o início da década de 1920 o empreendedor norte-americano tentava viabilizar a construção de uma usina siderúrgica integrada e a exportação de grande quantidade de minério de ferro de . Assim, Farquhar também estava em busca de apoio político e investidores para seus empreendimentos e os missivistas temiam a concorrência por capitais. Outra preocupação era com a descrição, que deveriam pautar as transações para impedir críticas ao processo Smith, especulações e sabotagens. Portanto, assim como Lobato, Bulcão também evitava conceder declarações à imprensa. De acordo com a correspondência, apesar dos esforços, Bulcão não conseguiu cumprir sua missão no Rio de Janeiro e Lobato também não se saiu bem no esforço para concretizar a fundação da nova companhia siderúrgica. Apesar disso, o ânimo dos missivistas não se abateu durante o ano de 1928. Tanto que em dezembro formalizaram em contrato com a General Reduction Corporation a exclusividade de uso do processo Smith no Brasil e, ainda, ao longo do ano que estava terminando, traçaram um claro plano de negócios. Esse plano, como destacamos, caracterizava-se pela criação de uma empresa privada brasileira, formada com o capital de grandes investidores nacionais, apoiada pelo governo federal (que facilitaria empréstimos e concederia incentivo fiscal) e comandada pelos dois idealizadores do empreendimento. A estratégia para tanto, consistia em evitar polêmicas na imprensa e agir com descrição no trabalho de convencer líderes do governo e empresários da viabilidade do negócio, potencial de lucro e benefícios para o desenvolvimento brasileiro. Cabe ressaltar que, durante esse esforço de convencimento, Lobato recorreu de forma sistemática ao ato de redigir cartas. Estas atestam a expectativa frustrada do escritor de contar com o capital estrangeiro, especialmente o norte-americano, na constituição da nova empresa. Aliás, as dificuldades que enfrentou nos anos de 1929 e 1930 levariam o escritor a novamente reformular seus planos. Essas reformulações, a fundação da empresa siderúrgica em 1931 e o fracasso do empreendimento serão abordados em outra oportunidade. 72

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, João Gabriel Rosa de. O ingrato promotor de Oblivion: a memória da cidade de Areias acerca de Monteiro Lobato. Dissertação (mestrado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade do Estado de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

AZEVEDO, Carmen Lúcia de, CAMARGOS, Márcia, SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo: SENAC, 1997.

GARCIA, Eugênio Vargas. Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920. Brasília: Ed. Unb/FUNAG, 2006.

LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. 13ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1969, t. 2.

______. Cartas Escolhidas. 6º Ed. São Paulo: Brasiliense, 1970.

NUNES, Cassiano. Monteiro Lobato e Fortunato Bulcão: o sonho do aço brasileiro. Brasília: Thesaurus, 1985.

TIN, Emerson. Em busca do “Lobato das cartas”: a construção da imagem de Monteiro Lobato diante de seus destinatários. Tese (doutorado) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. 73

A ABORDAGEM DA IMPRENSA NAS COPAS DO MUNDO DE FUTEBOL DE 1934 E 1938 NO BRASIL

Cibelle Cordeiro CARRARA1

Introdução

O futebol chegou ao Brasil em fins do século XIX e, na década de 1930, já figurava como o esporte mais popular do país, chegando à profissionalização, que se tornou realidade a partir do ano de 1933. Nesse processo de afirmação do esporte, os meios de comunicação de massa desempenharam papel dos mais relevantes, com seções especializadas nos jornais. Foi justamente nesse momento que teve início as disputas intituladas Copas do Mundo de Futebol, e o Brasil é o único país que participou de todas as suas edições. O presente texto visa demonstrar de forma suscinta, as diferenças de abordagens da imprensa brasileira, restritamente os jornais Correio da Manhã do Rio de Janeiro e O Estado de S. Paulo de São Paulo, os dois maiores centros do futebol brasileiro, de uma Copa para outra, que ocorreram sob o mesmo governo, mas com características históricas singulares. O Estado de S. Paulo, fundado em 1875, com a denominação de A Província de São Paulo, por Júlio de Mesquita, desde o princípio comprometido com as ideias republicanas. Apresentou características singulares no quadro da imprensa brasileira e sempre se autoproclamou defensor dos postulados liberais, apresentando-se como órgão de oposição e guia de opinião pública (CAPELATO; PRADO, 1980, p. 95), apesar de nem sempre seguir essa linha, sobressaindo, em muitos momentos, sua postura conservadora e elitista. Em 1927, com a morte de seu pai, Júlio de Mesquita Filho assumiu a direção editorial do jornal, e a presidência da sociedade anônima coube a Armando Sales de Oliveira. Em 1929, a redação instalou-se na Rua Boa Vista, 186 (SODRÉ, 1999, p. 368). Com o golpe do Estado Novo, a situação do jornal complicou-se, pois sua oposição a Vargas era conhecida. Em 1940, foi ocupado e passou a ser dirigido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Já o Correio da Manhã, foi fundado em 15/06/1901, por Edmundo Bittencourt, seu primeiro número tinha seis páginas, sendo três de notícias e três de anúncios. A sua redação definitiva foi na Avenida Gomes Freire, 471, no centro do RJ, onde se localizava, igualmente, a sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Edmundo

1 Mestranda – Programa de Pós-Graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected] 74

Bittencourt lançou seu jornal para combater todas as atrocidades, pensou sempre em defender o povo, a linha editorial sempre foi de defesa da liberdade e da democracia, privilegiava a divulgação das ideias novas. O Correio da Manhã foi o jornal que fez oposição a todos os governos, e apoiou a todos, constitucionalmente (ANDRADE, 1991, p. 63) não era um jornal neutro, era um jornal de opinião (ANDRADE, 1991, p. 73). Foi um dos diários de maior destaque no Rio de Janeiro e distribuído, no final da primeira década de existência, a outras unidades da federação. A utilização de jornais como fonte se intensificou com as mudanças historiográficas de fins do séc. XX, cabendo destacar que, até a década de 1970, eram poucos os que tomavam jornais e revistas como fontes históricas (LUCA, 2011, p. 111-153). Entre os pioneiros no uso deste tipo de documentação está Gilberto Freyre que, por meio dos jornais, estudou a escravidão. A leitura dos discursos expressos nos jornais permite acompanhar o movimento das ideias que circulavam na época, mas os jornais, além de serem empresas, vendem um produto bastante particular, capaz de mobilizar, difundir ideias e visões de mundo. Assim, na década de 1930, proliferaram as notícias esportivas nos jornais, especialmente sobre futebol, temática que contribuía para aumentar o número de leitores e as vendas. Essa tomada da imprensa como fonte, permitiu novas perspectivas para a análise dos processos históricos. Não mais se concebe a imprensa como depositária de fatos e verdade, ela apresenta visões diferentes de um mesmo fato, o que contribui para repensar a história (NEVES; MOREL; FERREIRA, 2006). A imprensa é tomada, tal como assinalam Capelato e Prado (1980), como um instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social, não como mero veículo de informação. Cabe destacar que a utilização da imprensa periódica, que as análises dos conteúdos não sejam dissociadas das condições materiais e técnicas disponíveis, que se considere a quem os periódicos se destinavam, suas relações com o mercado, objetivos, atentando para os colaboradores mais assíduos e para a editoração. Também o título e os textos programáticos são muito importantes, explicitam intenções e expectativas, além de fornecerem pistas a respeito dos projetos compartilhados. Enfim, questões técnicas, aspectos ligados a diagramação, decisões editoriais, responsáveis, devem ser considerados de forma atenta (LUCA, 2011, p. 111-153).

Copa do Mundo de 1934

As Copas do Mundo de futebol se iniciaram no ano de 1930, no Uruguai, em que se sagrou campeão os donos da casa. A segunda delas, que aqui nos interessa, aconteceu na 75

Itália fascista de Mussolini, marcada por intensas propagandas governamentais, que resultou, novamente, na vitória do time local. No Brasil, a década de 1930 foi marcada por intensas transformações, tendo subido ao poder, como chefe provisório, Getúlio Vargas, após a Revolução de Outubro. O futebol não ficou de fora da onda de transformações, a principal delas foi a profissionalização do esporte. Em 1931, Vargas incluiu o jogador de futebol entre as profissões que deveriam ser regulamentadas pela legislação trabalhista, além disso, o Brasil perdeu vários jogadores para o exterior em busca de melhores condições, e com a inserção das classes menos favorecidas nesse esporte, a situação ficou insustentável. Porém a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidade máxima do futebol brasileiro e única reconhecida pela FIFA, continuava amadora, ao passo que a Federação Brasileira de Futebol (FBF), que reunia os melhores clubes, tornou-se profissional. Foi nesse clima de rivalidade que se efetuou a Copa do Mundo de 1934, a primeira pós-profissionalismo. Foi justamente na década de 1930 que essa prática esportiva entrou no cotidiano de diversos setores da sociedade e aqui reside sua significação mais profunda, que transformou o futebol num fenômeno de massas (FRANCO JUNIOR, 2007, p. 62), cujas representações podem assumir múltiplos significados (BARROS, 2005, p. 131). É nesse sentido que se compreende a importância da imprensa, então um dos principais veículos, ao lado do rádio, de informação e até mesmo de formação da opinião pública (ANTUNES, 2004, p. 20). Afinal, o futebol entrava na contabilidade dos donos de jornais que disputavam o mercado, não muito extenso, de leitores em potencial que poderiam aumentar suas vendagens. Em 1934, o torneio competia com as notícias sobre a Constituinte, que se reuniu, pela primeira vez, em novembro de 1933, e cujos trabalhos se estenderam até julho do ano seguinte, quando foi promulgada a nova Carta. Os rumos do país estavam sendo decididos pelos deputados, razão pela qual todas as atenções voltavam-se para as discussões em curso no Palácio Tiradentes. Somente em maio os matutinos começaram a demonstrar alguma preocupação com a formação do selecionado, tema acompanhado da questão do profissionalismo, que continuava a dividir opiniões. O Correio da Manhã se opunha ao profissionalismo, sob o argumento de que o futebol brasileiro não estava preparado para tal mudança. Argumentava-se que o objetivo da medida era conter o êxodo dos jogadores e gerar receitas, resultados que, segundo o matutino, não se efetivaram, pois muitas equipes estavam falidas (CRÔNICA, 1934a, p. 11). Raul Campos, presidente da LCF, liga profissional do Rio de Janeiro, em entrevista concedida ao jornal O Globo, rebateu as críticas dos amadores, alegando que os resultados esperados pelos profissionais, em termos de receitas, foram alcançados:

76

Os “amadoristas” consideram às rendas produzidas pelo torneio a que assistimos os últimos jogos, como um fracasso. Alguns chegaram a dizer que à renda dos tempos do amadorismo eram melhor. As cifras não dizem isso. O movimento da LCF foi superior a mil contos de reis, enquanto que o da AMEA, em 1932, apenas alcançava a metade. Como se vê, não há fracasso. (MAZZONI, 1950, p. 245).

Todos os clubes aumentaram a renda com o profissionalismo: o Fluminense quase que triplicou sua receita no primeiro ano do profissionalismo; o Vasco da Gama, que sempre figurou entre as equipes mais bem sucedidas financeiramente, conseguiu dobrá-la em 1933 e o Bangu teve os melhores resultados de sua história, o que se repetiu no (MAZZONI, 1950, p. 246). As negociações entre as ligas profissionais e amadoras para formar o selecionado não foram fáceis. Os times profissionais desconfiavam das ações da CBD e temiam que seus jogadores ficassem no exterior, razão pela qual solicitavam garantias. Afinal, mais importante que a vitória do Brasil era o investimento das equipes nos melhores jogadores. Mais do que a discordância entre profissionais e amadores, a questão expressava as próprias contradições do regime vigente. A antiga elite que dirigia o futebol brasileiro, encabeçada por Arnaldo Guinle, presidente da CBD entre 1916 e 1920, perdia lugar para membros que emergiram junto a Revolução de 1930, como Luís Aranha2 e João Lyra Filho, do Botafogo, que tinham influência junto à entidade dominante do futebol brasileiro (DRUMONT, 2009). O Correio da Manhã posicionava-se claramente contra o profissionalismo, imputando-lhe a culpa pela dificuldade de se estabelecer a união no futebol brasileiro: “Continuamos onde estávamos, dentro do nosso ponto de vista, coerentes com os nossos princípios que são, por índole, contrários a mercantilização do esporte. Essa convicção sincera que nos colocou em terreno oposto ao da maioria não se modificou [...].” (CRÔNICA, 1934b, p. 10). É importante ter presente que esse periódico havia apoiado a Revolução de 1930, mas seu proprietário desde o ano anterior, Paulo Bittencourt, defendeu a reconstitucionalização, manifestou-se a favor do movimento de 1932 em São Paulo e, mesmo com a convocação da Constituinte, acusou Vargas de manipular o processo político para manter-se no poder. Já o jornalista Costa Rego, importante figura do matutino, não poupava críticas ao governo. Irreverente, Costa Rego agradecia ao censor por ser seu leitor assíduo (REGO..., 2010).

2 Luís Aranha era membro do governo provisório desde a Revolução de 1930, a princípio tornou-se secretário particular de seu irmão, nomeado para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores, e um dos fundadores do Clube 3 de Outubro. Em 1931, tornou-se chefe de gabinete do Ministério da Justiça, funções que exerceu até 1934, ano em que chegou a ser convidado para chefiar a Casa Civil da Presidência, cargo que não aceitou. Para mais informações sobre Luís Aranha ver: ABREU, Alzira Alves et al. (dir.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. Rio de Janeiro: FGV. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb. Acesso em: 23 fev. 2014. 77

O prestigioso O Estado de S.Paulo, por seu turno, não se posicionou de forma clara acerca da ação da CBD de convidar os profissionais para integrar a seleção, sob o argumento de que se tratava de um ato digno, mas pouco sincero:

[...] os surpreendeu o gesto da Confederação Brasileira de Desportes convidando os clubes de sociedades dissidentes [...] a ceder os elementos que devem constituir a delegação que irá a Roma [...], desta feita, a Confederação Brasileira deu provas de tal superioridade que até despertou suspeitas em algumas rodas. A sua atitude não será um hábil golpe político, visando as agremiações profissionalistas? [...]. [...]. Nações com boas reservas de esportistas experimentados, como a Espanha, Itália e a própria Áustria, desde fins do ano passado trataram de adestrar os seus futebolistas. Ora, o Brasil está em pior situação que essas nações, pois há uma década que não organiza um quadro para que fosse realmente o expoente do nosso futebolismo. Porque aquele que foi ao Uruguai em 1930, de brasileiro só tinha o título, que arbitrariamente lhe emprestaram alguns mentores caprichosos [...]. (CAMPEONATO MUNDIAL, 1934, p. 6).

A desconfiança de O Estado de S. Paulo não era destituída de fundamentos, quando a Copa do Mundo terminou, a CBD agregou os jogadores profissionais em suas equipes, com exceção de Luizinho, que retornou ao São Paulo, ao passo que os demais foram para o Botafogo e foram premiados com uma excursão ao Norte do país em reconhecimento à fidelidade face à CBD (MAZZONI, 1950, p. 50), prejudicando assim as equipes profissionais. O jornal ainda insistia na falta de preparo da seleção brasileira, que não teve tempo suficiente de treino e preparação física, visto que as equipes europeias estavam se preparando há quase um ano. A seleção que disputou o mundial de 1930 foi formada apenas por jogadores de clubes do Rio de Janeiro, o que explica a ironia quanto à representatividade nacional da equipe, ressaltando as disputas regionais em curso, pois a CBD situava-se no Rio de Janeiro, e para OESP a sociedade ideal estava apenas em São Paulo (CAPELATO; PRADO, 1980, p. 115). Os periódicos foram unânimes em apresentar o futebol brasileiro como vítima de politicagens, com predomínio de interesses menores e sem que se desse atenção ao esporte que levaria o nome do país para o exterior e que atestaria o vigor físico e mental dos brasileiros. O jornal OESP foi um dos principais defensores da causa paulista, e seus dirigentes, Júlio de Mesquita Filho, Plínio Barreto e Armando de Sales Oliveira foram importantes articuladores da Revolução de 1932, contra os ideais tenentistas e de cunho fascistas defendidos por Lourival Fontes, então chefe da Delegação Brasileira. Assim, os comentários do jornal devem ser remetidos a esse contexto mais amplo e ao apontar a falta de preparação do selecionado, os interesses políticos que moviam os dirigentes da CBD, não deixa de criticar a ordem estabelecida, da qual fazia questão de mostrar-se distanciado. Luís 78

Aranha, um dos presidentes da CBD, irmão de Osvaldo Aranha, ambos foram revolucionários de 1930 e diretamente ligados a Getúlio. Já o chefe da delegação brasileira Lourival Fontes que, a 10 de julho de 1934, às vésperas da promulgação da Constituição, foi nomeado chefe do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), substituto do Departamento Oficial de Propaganda (DOP) e antecessor imediato do poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que Lourival dirigiu até 1942. O Correio da Manhã seguia a mesma linha e autodefinia seu jornal como favorável à democracia, “pelo bem público e contra a venalidade [...] contra a politicagem, desmoralizava um politiqueiro.” (ANDRADE, 1991, p. 87). A saída encontrada pela CBD foi o aliciamento aos jogadores profissionais, assim poderia-se formar uma equipe competitiva. Mas, os times profissionais tentavam impedir a participação de seus jogadores com medidas inusitadas, como retirar seus jogadores para uma fazenda no interior, medida adotada pelo Palestra Itália, e até expulsar das ligas os que integrassem a seleção. O Correio da Manhã bem pontuou que a causa maior das agremiações eram suas equipes e seus recursos financeiros e não o país. Este jornal assinalou que, mesmo com a má vontade dos profissionais, a CBD estava conseguindo formar uma grande equipe.3 Os editores do O Estado de S. Paulo não acreditavam que uma seleção, mesmo formada com bons nomes, mas às pressas e sem entrosamento, poderia ter bom desempenho e a culpa recaía nos dirigentes, que só se preocupavam com o divertimento, sem se importar com a situação delicada em que nos encontrávamos. E acrescentava: “Uma delegação clandestina, constituída à pressa, com elementos visceralmente heterogêneos, não pode superar adversário de valia. Acreditamos que, logo na partida inicial [...] contra os espanhóis, os brasileiros sejam derrotados [...].” (DELEGAÇÃO..., 1934, p. 9). Em face de várias desistências de outras equipes, o Brasil caiu direto na fase eliminatória e o primeiro jogo foi contra a forte equipe espanhola, uma das favoritas do torneio. Os problemas se acumulavam: pouca preparação, dificuldades para formar o time, cansaço da viagem, falta de tempo para a ambientação. A equipe viajou 12 dias até chegar à Itália e chegou apenas dois dias antes da primeira partida. Desse modo, num clima adverso, em termos de campo e estilo de jogo, teve que enfrentar um time forte. E mesmo com todas as dificuldades, o Correio da Manhã depositou confiança na equipe que disputou

3 Os jogadores foram: o goleiro Pedrosa, campeão carioca pela equipe do Botafogo em 1932 e 1933; zagueiros, Silvio que atuava no São Paulo e Luiz Luz considerado o melhor zagueiro do Sul; Tinoco, defensor do Vasco há 15 anos, integrou inúmeras seleções da cidade e algumas nacionais; Martin meio campista do Botafogo, jogou um ano na Argentina, foi campeão brasileiro em 1931, e herói da jornada dos brasileiros em Montevidéu; Canalli, campeão pelo Botafogo em 1932, e herói também em Montevidéu; Luizinho, campeão pelo São Paulo em 1931 e paulista em 1932; Waldemar, já com onze anos, segundo a bibliografia da época, já fazia furor na equipe do Imparcial, jogou em vários times até ingressar no São Paulo, foi vice-campeão paulista e campeão brasileiro; Armandinho jogador do São Paulo, onde sagrou-se campeão brasileiro; campeão nacional pelo Vasco, também foi herói em Montevidéu no 1932; e Patesko que atuava no Uruguai, companheiro de time de Domingos, e já no ano de 1929 brilhava como atacante do Paraná Clube; como reservas ainda havia, Germano, Otacílio, Ariel, Waldir, Atila e . In: MAZZONI, Tomás. História do futebol no Brasil – 1894-1950. São Paulo: Olympicus, 1950, p. 249. 79

o mundial, equiparando-a às demais equipes. O futebol é o esporte marcado pela imprevisibilidade, o que deixa o jogo emocionante, com circunstâncias da partida que podem alterar o resultado e contradizer o favoritismo. Dentro do campo a superioridade é sempre relativa e as possibilidades de vitória ou derrota estão abertas. Assim, o jornal defendia que não era somente a formação do selecionado que iria influenciar o resultado da partida, o Brasil não contava com todos os seus melhores jogadores, mas tinha uma equipe forte o bastante para vencer seus adversários. Já o jornal O Estado de S. Paulo mantinha-se imutável e continuava a criticar a composição da seleção, o pouco caso dos dirigentes, os interesses particulares, alegando que o aliciamento deveria ser resolvido nos tribunais comuns (MEDIDA..., 1934, p. 8). Além da oposição explícita em relação aos membros da Confederação Brasileira, percebe-se o peso do sentimento regional, patente no fato de se considerar o Botafogo e seus aliados como beneficiários da Confederação que, ao não adotar o profissionalismo de maneira correta, acabava por defender a AMEA, mas desrespeitando regras, razão pela qual se evocavam os tribunais. Apesar das desconfianças, e critica à CBD, o jornal ainda acreditava na vitória brasileira: “[...] contudo há esperanças de um possível êxito dos brasileiros. Esperanças nem todas destituídas de fundamento, a velocidade e a improvisação são apanágio dos brasileiros [...].” ( BRASILEIROS..., 1934, p. 8). Mas veio a derrota, apesar de os noticiários destacarem que o time jogara bem. O Estado de S. Paulo voltou ao ataque:

Mas que fazer? Certos esportistas, ou como tais considerados, não se compenetraram de que a representação de um povo, em reuniões internacionais, mesmo em se tratando de futebol, é coisa muito mais séria do que eles imaginam. Basta lembrar que, na Europa, os estadistas de renome têm interferido nos fatos esportivos. Dos nossos estadistas nada se podia esperar, porque eles infelizmente, não sabem o valor de iniciativas desta natureza. (OS GRANDES..., 1934, p. 9).

Mazzoni ressalta que, no segundo tempo do jogo, os brasileiros foram melhores, para este autor, se o Brasil tivesse vencido a Espanha, facilmente chegaria às semifinais, como chegou em 1938 (OS GRANDES..., 1934, p. 9). O Correio da Manhã também enfatizou a boa partida do Brasil, apreciada por todos, a despeito de todas as adversidades, mas ressaltou a briga entre os profissionais e amadores como causa da derrota, tema que ocupou uma página inteira (CRÔNICA..., 1934b, p. 10). A derrota do Brasil fez ressaltar os problemas que a seleção enfrentou. Enquanto o jornal O Estado de S. Paulo depositou toda a culpa da derrota aos mentores do esporte, especialmente aos membros da CBD, o Correio da Manhã defendeu os amadores, 80

atribuindo a culpa pela briga política aos profissionais, mas imputando a derrota brasileira a fatores circunstanciais do jogo, tal como Lourival Fontes. Apesar de a Copa chamar atenção do governo, a preocupação maior desse período era com a situação política vigente, com a Constituição em elaboração e com o novo período que se abria, tema frequente nos diários. A questão da eleição do novo presidente era uma preocupação constante do grupo no poder, o que explica o esforço despendido para assegurar a permanência de Vargas no Catete. A Copa atraiu a atenção apenas nos meses que antecederam o seu início, enquanto a Constituinte era acompanhada e noticiada diariamente durante todo o seu período de funcionamento. A liberdade de imprensa então vigente dava aos jornais possibilidade de apontar erros e fazer críticas, como foi o caso, sobretudo, de O Estado de S. Paulo. Tal situação mudaria drasticamente nos anos seguintes.

Copa de 1938

Em 1938, o Brasil vivia outra conjuntura. No ano de 1937 foi instaurado o Estado Novo, governo autoritário, cujo controle de Vargas sobre os meios de comunicação conheceu novos patamares, o que também se observa em relação à política nacionalista, isso num clima marcado pela ausência de partidos políticos e controle dos meios de comunicações. No futebol, as disputas entre profissionais e amadores estava findada, e o Brasil se tornara, em 1937, vice-campeão Sul-americano, o que trouxe grande empolgação para o país, mas o fato culminante foi a Copa do Mundo de 1938, que pela primeira vez foi transimitida pelo rádio, permitindo que chegasse a regiões remotas do Brasil, e quem não tinha o aparelho em casa poderia acompanhar em transmissões feitas em praças públicas, entre outros locais. A seleção foi apropriada como fator de unidade, os jogadores modelos físicos a serem seguidos, num momento em que a Educação Física era uma questão vista como estratégica para a qualidade dos seus habitantes, do que dependia o futuro do país. Os que regulamentaram o futebol tiveram na política e na cultura da época o modelo insperador, uma metáfora do mundo social, que se articula aos interesses dos grupos que as forjam (CHARTIER, 1990, p. 17). O pavilhão nacional e a imagem de Getúlio Vargas, obrigatoriamente presente em todos os prédios públicos, eram os símbolos mais difundidos no Estado Novo. Assim, as propagandas do governo em torno da seleção nacional, as conclamações ao povo brasileiro para torcer pelo Brasil, e o empenho para se formar um forte selecionado para ir à Europa, foram intensamente difundidos na imprensa, que contribuiu para criar um clima de expectativa em torno do evento. 81

O Correio da Manhã registrou a atenção dedicada à Copa: “Todas as atividades do futebol, notadamente, carioca e paulista, estão dependendo do campeonato do Mundo que se realizará, este ano em Paris [...] A taça do Mundo é que prende a atenção de todos” (A CBD..., 1938, p. 7). O leitor dos jornais da época depara-se, a cada página, com muitos textos de confiança e apoio. Porém, O Estado de S. Paulo, tal como fizera em 1934, atestava que a preparação do selecionado brasileiro não foi realizada com o necessário cuidado e tampouco com o tempo necessário de entrosamento, repetindo falhas de campeonatos precedentes (O PRIMEIRO..., 1938, p. 14), questões que eram minimizadas graças às propagandas positivas em torno da seleção. Este jornal, mesmo sob a vigilância do Estado Novo, continuou a fazer oposição e, antes da Copa, não poupou críticas aos dirigentes do esporte, que eram figuras importantes do governo, caso de Luís Aranha, dirigente geral da CBD. Apenas no dia 06 de abril foram escolhidos os vinte e dois jogadores,4 ou seja, dois meses antes do primeiro jogo da seleção, que ocorreu no dia 05 de junho. O jornal criticou, ainda, a escolha de Caxambú para a preparação da seleção, sob o argumento de que o clima dessa cidade era muito diverso do francês, o que não prepararia, de fato, os jogadores para as situações que encontrariam (A REPRESENTAÇÃO..., 1938, p. 5). O Correio da Manhã alertou que era hora de começar o preparo, lembrando que, em 1934, o Brasil o fez de última hora. Se o resultado do jogo fora grandemente influenciado pelo juiz, alertava-se que, para um time bem preparado, era difícil que enganos alterassem o resultado final (ESTÁ NA HORA..., 1938, p. 10). Entretanto, quanto mais a Copa se aproximava, mais as notícias exaltavam a equipe brasileira, a todo o momento apresentada como tendo grandes chances de vencer, pois tudo fora feito para que a seleção representasse dignamente o país. Os treinos aqui realizados lotaram os estádios da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, onde se realizou o último treino, em São Januário, a 28 de maio, quando o selecionado azul venceu o branco, partida decisiva para se decidir a escalação oficial. Antes mesmo da primeira partida, os jogadores já eram exaltados como heróis, de acordo com José Murilo de Carvalho (1990, p. 55): “Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos.” A propaganda foi tão intensa que a seleção já era vista como uma das favoritas antes de embarcar à França, expectativas que não se baseiam em fatos, nem probabilidades, já que o Brasil nunca havia ganhado nenhum torneio

4De acordo com Mazzoni (1950, p. 273), 10 da seleção que havia disputado a Sul-Americana, 7 de clubes que haviam pertencido à LCF mais 3 do Rio e 2 de São Paulo, a seleção ficou assim constituída: Seleção Azul (titular): Batatais, Domingos e Machado; Zeze Procopio, Martin e Afonso; Lopes, Romeu, Leonidas, Peracio e Hercules; Branco (reservas): Valter, Jaú, Nariz; Brito, Brandão, e , Roberto, Luizinho, , e Patesko. 82

internacional com seleções de fora da América do Sul. Além do mais, se apresentaria num campo estranho, com clima e estilos de jogos bem diferentes dos nossos. O Brasil desembarcou na Europa, em Cherburgo, no dia 17 de maio, e era tido como um dos favoritos, sendo considerado junto com a Argentina, que não compareceu à Copa, como as melhores seleções:

Paris, 17 (U.P) [...]. O Sr Jules Rimet [...] declarou a United Press a propósito da participação dos brasileiros: “A França sente-se particularmente grata em poder dar as boas vindas aos players brasileiros, os quais são considerados aqui os melhores jogadores, rivalizando com os argentinos. Os jogadores que representam o Brasil chegam com uma notável reputação, á qual é plenamente justificável pelos sucessos já alcançados.” [...]. O Brasil será um dos grandes favoritos dos jogos mundiais. (OS BRASILEIROS..., 1938, p. 7).

É interessante notar que o Brasil é taxado como um dos favoritos em virtude dos “sucessos já alcançados,” quando se sabe que a seleção brasileira, até então, não obteve nenhum resultado expansivo quando se trata de campeonatos mundiais, assim como a equipe argentina, a única exceção às equipes sul-americanas cabe à seleção uruguaia, campeã olímpica em 1924 e 1928 e mundial em 1930. À medida que o primeiro jogo se aproximava, aumentavam as declarações otimistas. O Correio da Manhã foi o que mais se esmerou na positividade, a exemplo da declaração de Carlos Volante, jogador argentino, que dizia confiar na derrota dos poloneses pelos brasileiros (TEM CONFIANÇA..., 1938, p. 10). Em seguida, o jornal publicou texto sobre o excelente preparo físico dos jogadores (AS ÚLTIMAS..., 1938, p. 7). Dois dias antes da primeira partida publicou o Correio da Manhã:

[...] jamais um acontecimento esportivo no estrangeiro alcançou superar o interesse despertado pela estréia do “scratch” brasileiro no Campeonato Mundial de futebol. O “match” de domingo [...] constitui desde algumas horas o fato do dia, assunto obrigatório de todos quantos sabem da existência de um esporte denominado futebol. (NA ANTEVÉSPERA..., 1938, p. 17).

Nada se equiparava a esse evento, nada prendia mais a atenção dos brasileiros, era o acontecimento a unir a nação. O otimismo era renovado a todo instante, bem como as qualidades inerentes ao homem novo, demonstrado por meio dos atletas da seleção. Todas as notícias evidenciam a propaganda feita em torno do selecionado brasileiro, o patriotismo, a intenção de unir o povo em torno de uma seleção que representa o Brasil no exterior. Demonstrar a grande possibilidade de vencermos, apresentar uma seleção forte, disciplinada, capaz de se equiparar e até superar qualquer outro país, valores que estavam em sintonia com os pregados pela política varguista no Estado Novo. 83

O Brasil venceu o primeiro jogo, pelo apertado placar de seis a cinco e ainda assim na prorrogação. Aqui a animação foi contagiante, a seleção considerada esplêndida, recebeu inúmeras felicitações. O Correio da Manhã salientou a importância do futebol Sul- Americano ser dignamente apresentado:

Paris, 5 (United Press): [...] estes mesmo elementos adversos, serviram para demonstrar a bravura indomável e um pugilo de sportman que numa terra distante da sua, escreveram a mais bela página dos primeiros jogos finais do campeonato do mundo. O selecionado do Brasil era para todos uma incógnita. O mistério está desvendado depois de 120 minutos de luta entre dois gigantes. Os brasileiros podem considerar-se lídimos representantes do futebol Sul- Americano, cujas tradições estiveram hoje bem longe de serem desmentidas [...]. O dia de hoje, todavia, parece ter sido o dia da América [...]. (O CAMPEONATO..., 1938, p. 5).

Até o jogo subsequente, o jornal continuou a publicar notícias positivas sobre o selecionado brasileiro. A vitória sobre a Polônia valeu manchetes que ocuparam toda a folha, seguidas de declarações otimistas, reprodução de telegramas enviados e sintetizou: “fulminado pela emoção intensa, falecera o chefe da delegação postal telegráfica. Sr. Dario Balesdente.” (TORCENDO..., 1938, p. 20). A propaganda, o incentivo, a exaltação, eram intensos. Os jornais também destacavam a competência da seleção polonesa, legitimando, ainda mais, a vitória brasileira. OESP, também com manchete de folha inteira, ressaltava que eram grandes as esperanças de o Brasil sair vitorioso. Salientava a surpreendente vitória brasileira, já que boa parte do jogo esteve com dois jogadores a menos, além da chuva torrencial, e insistia que o Brasil havia se tornado um dos favoritos ao título. Ressaltava o elogio que a imprensa francesa fez ao Brasil, afirmando que os maiores deles couberam a Leônidas da Silva, cognominado de Diamante Negro. O jornal relata a importância que o futebol exerce ao declarar que: “esses jogos, nos quais venceram o Uruguai em 1930, e a Itália, em 1934, vão demonstrar, uma vez ainda, o poder de atração que o futebol exerce, o quanto é extenso e importante a sua ação em todo o mundo.” (A SELEÇÃO..., 1938, p. 13). Mostrava, ainda, a função do esporte para o desenvolvimento mental e arrematava: “A inteligência vencerá sempre a força bruta. E os jogadores têm que aprender com o Campeonato Mundial.” (APOXY, 1938, p. 7). No segundo jogo contra a Tchecoslováquia, o Brasil jogou com o denominado selecionado azul, considerado o time titular, o mesmo que venceu a Polônia. Porém, o difícil jogo terminou empatado, Mazzoni (1950, p. 273) declarou que “somente por um milagre o Brasil não foi eliminado”, pois Machado e Zezé foram expulsos e o Brasil atuou com dois a menos praticamente todo o jogo, o autor destacava a bravura dos brasileiros. Para a 84

imprensa, essas expulsões foram errôneas, recaindo a culpa pelo empate glorioso do Brasil sobre o juiz, já que a equipe Tcheca, considerada uma das mais violentas, não perdeu nenhum jogador. Para o Correio da Manhã, o Brasil obteve a vitória moral (UMA VITÓRIA..., 1938, p. 6). O jornal O Estado de S. Paulo, mudou o discurso. Envolto com as questões raciais que assolavam a época, especialmente a Alemanha nazista, usou do futebol para alegar, que os mestiços brasileiros demonstraram que não há raça superior ou inferior. O jornal dedicou toda página para mostrar o grande feito dos brasileiros e o “roubo” do juiz, deixando claro sua aversão a exaltações exacerbadas (DEMONSTRANDO..., 1938, p. 8). Mesmo sendo um jornal de oposição, que criticou a forma como a seleção foi preparada, em meio à empolgação do campeonato, rendeu graças aos jogadores brasileiros. O jornal OESP considerava que a opinião pública era algo a ser formado, mas que poderia ser manipulada e seduzida, sendo a imprensa um dos instrumentos para tanto (CAPELATO; PRADO, 1990, p. 95), ou seja, o jornal empenhava-se na afirmação da nacionalidade mediante a formação da consciência nacional (CAPELATO; PRADO, 1990, p. 126). Para decidir quem passaria à próxima fase, foi necessário realizar um segundo jogo, que aconteceu dois dias depois. Sem ter tempo para o descanso, o Brasil entrou em campo com o time branco, considerado reserva, apenas o atacante Leônidas continuou na equipe, composta, na essência, pelos mesmos jogadores que participaram da Copa do Mundo de 1934 e do Sul-Americano de 1937, quando a CBD era amadora e não pôde contar com todos os jogadores que desejasse, em função do dissídio com a FBF, que era profissional. Desta vez, o Brasil venceu e, segundo Mazzoni (1950, p. 274) que acompanhou os jogos ao vivo, foi a melhor exibição dos brasileiros, o Correio da Manhã relatou que “[...] os brasileiros apresentaram hoje uma das mais belas pelejas de passes velozes que a Europa jamais assistiu” (OS TCHECOS..., 1938, p. 10), e afirmou que os tchecos jogaram melhor do que no primeiro jogo (OS TCHECOS..., 1938, p. 10). Este resultado mostra o quanto o futebol é imprevisível e que não se pode atrelar a apenas um fator o resultado negativo ou positivo de uma partida. Essa vitória brasileira aumentou ainda mais a confiança no título, o Brasil figurava na imprensa brasileira como o mais sério candidato ao título, como atestou o OESP, isso a despeito de se reconhecendo que a Itália, seleção que o Brasil enfrentaria na semifinal do campeonato, tinha duas vantagens: os jogadores estavam descansados, pois não precisaram participar de um segundo jogo, e não tinha atletas machucados. Apesar de o time branco ter vencido os tchecos, era o azul que enfrentaria a Itália, até mesmo pela questão do cansaço, mas desta vez Leônidas não jogaria, pois o excesso de jogo e a violência dos tchecos não lhe permitiam jogar. Os italianos eram tidos pela imprensa europeia como os favoritos, já que além de atuais campeões mundiais, venceram 85

a França, o time da casa, no jogo anterior e estavam descansados. Para o Correio da Manhã (OS ITALIANOS..., 1938, p. 16), esses comentários não passam de meros palpites. O jornal discordava do favoritismo italiano, considerava que os feitos do Brasil não permitiam afirmar a superioridade da outra equipe, o que ocorria em função da derrota da França pela Itália, e de forma fácil. Para a tristeza nacional, o Brasil foi derrotado pelo placar de 2x1. Esse jogo causou grande entusiasmo e o resultado contra a Itália foi tido como injusto. As notícias atrelavam a derrota a um erro do juiz, pois o segundo gol da Itália foi marcado de pênalti e, para todos os brasileiros, esse pênalti não existiu: o atacante italiano, Piola, e o zagueiro brasileiro Domingos, desentenderam-se e quando o zagueiro brasileiro deu um pontapé, com a bola fora de campo, o árbitro marcou a penalidade. Protestaram a imprensa e a delegação brasileira, que enviou ofício à FIFA pedindo a anulação da partida, o que não ocorreu. O Correio da Manhã relatou o jogo completo e publicou na manchete o protesto do Brasil, alegando que o erro da arbitragem culminou na derrota brasileira. O OESP foi menos enfático quanto ao lance do pênalti, preferiu salientar a técnica italiana, mas não se furtou a publicar o protesto da delegação brasileira e exaltou os jogadores brasileiros pelo feito, apesar de considerar que jogaram sua pior partida contra a Itália, especialmente pelo cansaço e pela ausência de Leônidas, mas não deixou de criticar o “speaker” brasileiro, a quem teria faltado imparcialidade ao narrar os jogos do Brasil (UMA FALHA..., 1938, p. 7). O Brasil ainda disputou (e ganhou) o terceiro lugar contra a equipe da Suécia, o que reforçava a ideia da injustiça, pois se não fosse o erro do juiz contra a Itália, o Brasil teria sido campeão, como publicou o Correio da Manhã (ENCERRADA..., 1938, p. 1): “se os nossos intrépidos jogadores não tivessem sido esbulhados em sucessivas arbitragens no campo da pugna, a Taça disputada lhes seria conferida pela superioridade do jogo de que deram provas.” Não se pode perder de vista que todas essas notícias exaustivas estavam em consonância com a ideia, cara ao regime, que colocava o esporte a serviço da nação, sendo o futebol o principal deles, pois era o que mais mobilizava pessoas. A Copa do Mundo atuou no sentido de disseminar a união nacional e de evidenciar que qualidades se esperava dos brasileiros. OESP manteve uma distância crítica, mesmo sem deixar de apoiar a seleção, não poupou críticas aos caminhos seguidos antes e depois da Copa. Não concordou com as escalações de Pimenta, com a organização da seleção e mesmo a respeito da disciplina:

A derrota do Brasil contra a Itália teve origem no segundo grande erro do Sr. : a preferência que deu a linha média azul [...]. O primeiro erro, também incompreensível, foi a inclusão de Leônidas na linha que atuou contra os tchecos, no segundo jogo. A nossa superioridade 86

havia ficado perfeitamente evidenciada e de todos era a certeza da vitória no jogo desempate. Ora, por que motivo fatigar ainda mais Leônidas, expô- lo a possíveis contusões, se estávamos nas vésperas da semifinal? (COM A REALIZAÇÃO..., 1938, p. 12).

O jornal reconhecia que os jogadores do Brasil eram excepcionais e que o Brasil chegou ao terceiro lugar por causa das qualidades individuais, mas o conjunto deixou a desejar, pois faltou preparação com a antecedência necessária, a exemplo do que aconteceu nos campeonatos anteriores. A indisciplina apontada pelo jornal é fator interessante, já que, a todo o momento, Pimenta exaltava a disciplina de seus jogadores, o que estava de acordo com a política varguista do Homem novo que, antes de tudo, deveria ser disciplinado. Ilustrativa foi a declaração do jogador Luizinho dada após o campeonato e que ressaltava o fato da propaganda em torno da seleção brasileira não se basear em fatos verídicos. A declaração expunha os limites da organização e a ineficiência da embaixada quanto ao planejamento da viagem, e também ressaltou a indisciplina dos jogadores (apud FRANZINI, 2003, p. 73). Com base na leitura dos jornais da época, percebe-se que a seleção em 1938 não foi tão melhor preparada assim. Ao que tudo indica, a maior vantagem foi poder convocar qualquer jogador, o que não causou diferença substancial em relação aos selecionados anteriores. Os jogadores não tinham o alto patriotismo alegado, não eram tão disciplinados e não foram tão bem preparados. A verdade é que a imprevisibilidade do futebol não permite que se atrelem derrotas a um único fator. Como diria Mário Filho (apud FRANCO JUNIOR, 2008, p. 289) “no futebol o milagre é quase cotidiano, a graça divina pode tocar qualquer um.” O Brasil fez uma bela campanha em meios a jogos dificílimos, venceu seus adversários com dificuldade e seu melhor jogo, como atestado, foi realizado com a equipe reserva, que praticamente formou a seleção brasileira enquanto o futebol era amador. Neste contexto, pode-se afirmar que muito mais que uma seleção superior a de 1934, se viu, em 1938, foi uma atenção e interesse muito maiores, tanto da imprensa quanto do governo. O presidente da República, que tinha como projeto a busca da harmonia social, a eliminação de conflitos e que se punha como o líder de um povo que precisava ser moldado e que carecia de uma identidade nacional definida, ideia compartilhada por grande parte da imprensa e da intelectualidade, o futebol, esporte mais popular do país, foi um importante instrumento para evidenciar que a seleção, representante da nação no exterior, tinha jogadores munidos das melhores qualidades, como disciplina, vigor físico e mental, inteligência, e que nada devíamos para os grandes países europeus. O Brasil foi derrotado em 1934 por lances fatídicos, como pênalti, gols anulados, cansaço da viagem, o mesmo que aconteceu contra a Itália. Mas a preocupação 87

central em 1934 era a Constituinte, o governo provisório não tinha meios de propagandear a seleção como fez em 1938.

Referências

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UMA VITÓRIA moral. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 6, 14 jun. 1938. 90

DE CURITIBA À PARIS E VICE-VERSA: AMIZADE E RELAÇÕES ACADÊMICAS NA TROCA DE CORRESPONDÊNCIA ENTRE PESQUISADORES DE HISTÓRIA1

Daiane MACHADO 2

Este texto volta-se a um tipo de escrita específica, a escrita epistolar praticada por pesquisadores acadêmicos. Nosso objeto de estudo são as cartas que Antunes dos Santos (1943-2013), Sergio Odilon Nadalin (1943-) e Jayme Antônio Cardoso ([19--]-) enviaram a Cecília Westphalen (1927-2004) entre 1974 e 1977. Todos eles historiadores de ofício e professores de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi a destinatária em comum que articulou os contatos acadêmicos necessários para que seus remetentes fossem realizar o curso de Doutorado em Paris. Na correspondência, exploramos as relações de amizade, cumplicidade e orientação acadêmica estabelecidas entre os remetentes e a destinatária e analisamos o ambiente acadêmico francês, ou seja, o cotidiano dos seminários, os descobrimentos e ganhos teórico-metodológicos, as dificuldades e as frustrações expressas nas cartas.

“Prezada Professora Cecília”

Escritas para uma interlocutora preestabelecida, supondo, talvez, que seu alcance limitar-se-ia ao círculo mais íntimo, as cartas que Carlos Roberto Antunes dos Santos, Sergio Odilon Nadalin e Jayme Antônio Cardoso endereçaram a Cecília Westphalen atualmente encontram-se no Arquivo Público do Paraná à disposição de quaisquer leitores que se desloquem com esse fim. Nesse “local de memória”, foram encontradas 39 cartas, considerando os descartes deliberados, os extravios, as perdas decorrentes do processo de triagem da doação, esses são os registros que Westphalen optou por guardar no transcurso da vida (ARTIÈRES, 1998, p. 9-34). Por meio deles é possível inquirir o passado, interpenetrando público e privado temos vestígios de um determinado cotidiano de experiências acadêmicas. As cartas vindas de Paris fornecem um quadro analítico de parte da vida universitária francesa e brasileira e nos permitem figurar a destinatária em comum,

1 Este texto resulta das reflexões empreendidas em minha pesquisa de doutorado intitulada Por uma “ciência histórica”: o percurso intelectual de Cecília Westphalen, 1950-1998. 2 Doutoranda - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 91

pois, com as palavras criamos imagens, numa narrativa repleta de gestos, sentimentos, lacunas e silêncios (PEREIRA; FELIPPE, 2008, p. 488). A destinatária, Cecília Westphalen, construiu sua carreira profissional na UFPR. Em 1950, tornou-se bacharel e licenciada em Geografia e História e, no ano seguinte, já integrava o corpo docente da referida universidade, como assistente de ensino. Foram anos de ritmo intenso, já que concomitantemente cursava Direito na instituição e lecionava no ensino secundário. Direcionando-se progressivamente à História, ela buscou conhecer sociedades de historiadores com caráter universitário, o que não existia no meio brasileiro. Foi assim que, numa atitude que denota sua vontade de explorar outras possibilidades historiográficas, se associou às seguintes instituições: American Historical Association (1954); The Historical Association (1955); Société Marc Bloch (1955); e Société d’Histoire Moderne (1958). Esse desejo se concretizaria após a sua aprovação no concurso de cátedra para História Moderna e Contemporânea, quando defendeu a tese Carlos V, 1500/1558: seu império universal (1957). Em 1958, a tese é impressa em forma de livro e Westphalen imediatamente providencia a sua circulação, criando um nicho de leitores ideais. A obra é enviada às associações citadas e a instituições estrangeiras de ensino e pesquisa. Em resposta ao presente oferecido, ela recebia promessas de resenhas ou notas bibliográficas (VENANCIO, 2001, p. 23-47). Fernand Braudel, especialista do século XVI, agradeceu prometendo providenciar uma resenha na revista Annales e dizendo que faria uma leitura atenta do texto, pois Carlos V seria objeto de estudo em seu Seminário no Collège de France (BRAUDEL, Paris, 28 mar. 1955). Carlos V ocuparia tal espaço no seminário não só por ser um personagem relevante do século XVI, mas também por ocasião das comemorações do IV centenário de morte do imperador. Carlos V foi o objeto certo no momento certo. Tornando-se a única brasileira especialista do monarca espanhol, nesse período europeu de comemorações, Westphalen participou dos congressos sobre Carlos V realizados em Madri e em Colônia (Alemanha Ocidental). Esses eventos foram oportunidades essenciais de fala, de se fazer conhecer pelo trabalho intelectual e, assim, construir redes de contato (OFFENSTADT, 2010, p. 86- 91). Essa engenharia das relações sociais lhe assegurou bolsa de estudo para as especializações na Universidade de Colônia3 e na VIª. Seção da École Pratique des Hautes Études (EPHE), em Paris. Foi nesse momento que houve uma inflexão em seus planos de pesquisa. Na EPHE, Westphalen frequentou o Seminário de Fernand Braudel e tomou contato com as pesquisas desenvolvidas no Centre de Recherches Historiques (CRH), lócus de produção da história

3 Na ocasião frequentou os Seminários de Theodor Schieder e Richard Konetzke. 92

econômica e social (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2012, p. 205-206). Braudel, Ernest Labrousse, Pierre Chaunu, Ruggiero Romano, Frédéric Mauro, Louis Henry, entre outros, estudando o passado em forte diálogo com a economia, a geografia, a demografia e a estatística, representavam o que havia de mais elevado na historiografia francesa desse período. Imersa nessa atmosfera historiográfica e extasiada pela concepção braudeliana de história, Westphalen não hesitou diante da orientação de Braudel: estudar temas brasileiros, explorando o material que estava ao seu alcance (WESTPHALEN, 1985, p. 33-42). Ela, então, iniciou seus estudos sobre a história econômica do Porto de Paranaguá, compreendendo-o na estrutura de longa duração do Atlântico e do mundo atlântico. Essa narrativa foi evocada por Westphalen em diversas circunstâncias e isso na tentativa de demarcar a gênese do seu pensamento e a sua filiação historiográfica. No retorno ao Brasil, em 1959, passa a divulgar e aplicar essa prática historiográfica. Para tanto, em conjunto com Brasil Pinheiro Machado e Altiva Pilatti Balhana, promove seminários de revisão da historiografia paranaense – escrita até então praticada eminentemente por autodidatas –, formula planos de ação e implanta Projetos de Pesquisas “objetivando reconstituir um quadro tanto quanto possível completo da sociedade e da economia paranaenses” (BALHANA, 1983, p. 12). Os projetos que obtiveram maior destaque foram: Levantamento e Arrolamento de Arquivos; História Demográfica no Paraná; e Quantificação das atividades econômicas paranaenses nos séculos XIX e XX. Carlos Roberto Antunes dos Santos, Sergio Odilon Nadalin e Jayme Antônio Cardoso, tanto como alunos quanto como docentes, atuaram nesses projetos e, valendo-se dessas experiências, escolheram seus temas de estudo. Com a disciplinarização que a Reforma Universitária de 1968 impôs aos cursos de Pós-Graduação, na década posterior surgiram os níveis de Mestrado e Doutorado. A UFPR, logo em 1972, iniciou o Mestrado com duas áreas de concentração, História Econômica e História Demográfica. Orientado por Westphalen, Santos, estudando o preço dos escravos a partir das escrituras de compra e venda (1861-1887), optou pela História Econômica. Nadalin escolheu explorar registros de casamentos de uma comunidade luterana em Curitiba (1870-1969), e Cardoso incursionou pelo perfil da população votante dessa cidade (1853-1881). Estes dois inseriram-se na História Demográfica e foram orientados por Balhana, companheira intelectual de Westphalen. Eles, então, iniciaram no ofício por uma linha de compreensão francesa de se fazer história econômica e social e foi por meio dos contatos mobilizados pela “Prezada Professora Cecília” – código de tratamento que demarca a relação entre eles – que os três fizeram o voo Curitiba/Paris.

93

Os orientadores

Na década de 1970, o campo historiográfico universitário brasileiro encontrava-se relativamente amadurecido em relação à profissionalização da pesquisa histórica. Havia uma década que os pesquisadores conquistaram um lugar para dialogar –referimo-nos ao papel aglutinador da Associação Nacional de Professores Universitários de História (ANPUH) – e buscavam sofisticar o currículo universitário.4 Um dos objetivos da regulamentação dos cursos de Pós-Graduação era dar impulso à capacitação docente. Nessa esteira, para estruturar o seu programa de Pós-Graduação, o Departamento de História (DEHIS) da UFPR apostou nos intercâmbios acadêmicos, investiu na vinda de docentes à instituição e no envio de alunos e professores a centros no exterior, com clara preferência pela capital francesa. Assim, ao lado do interesse pessoal em aprofundar o domínio intelectual na especialidade escolhida estava uma estratégia departamental. Os três “enviados” a Paris retornariam com a marca do lugar, a École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) 5 – como já dito, centro de referência da historiografia francesa. O primeiro a partir foi Santos, em 1974 instalou-se com a família na Rue du Javelot. No ano seguinte, as famílias Nadalin e Cardoso mudaram-se para o mesmo endereço e então “a tour Athènes” transformou-se “em sub-séde do Dehis” (CARDOSO, Paris, 17 jan. 1977). As cartas insinuam uma relação harmônica entre eles, no cruzamento da correspondência nota-se o hábito de fazer breves relatos quanto ao bem-estar familiar e ao estágio da pesquisa do outro. Para fraternizar um ambiente culturalmente estranho, transformaram-se em uma família temporária, compartilhavam os obstáculos de aculturação, as angústias da pesquisa, confraternizavam nas datas festivas e juntos faziam as viagens de “vacances” (férias). Esse ambiente de bom convívio pode ser estendido ao relacionamento com os orientadores e suas famílias. Frédéric Mauro era o orientador de Santos, Nadalin e Cardoso eram orientandos de Louis Henry. Os “rendez-vous” (encontros) entre eles foram narrados com entusiasmo e em tom elogioso. Pode-se dizer que a cordialidade já havia sido plantada, pois os orientadores cruzaram o Atlântico para lecionar no Mestrado em História da UFPR. O politécnico Louis Henry foi o responsável pelo sucesso da demografia histórica entre os historiadores que buscavam conhecer as populações do passado. (ROSENTAL, 2003, p. 103-136). Com a possibilidade de reconstituir famílias valendo-se dos registros paroquiais, ele demonstrou que era possível quantificar os homens (DELACROIX; DOSSE;

4 Cecília Westphalen ocupou um lugar na história da criação da ANPUH, esteve entre os fundadores e obteve cargo na direção. 5 A partir da VIª. Seção foi criada a École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em 1975. 94

GARCIA, 2012, p. 201-202). Em 1974, Henry veio à UFPR divulgar essa perspectiva e ofereceu um curso de especialização em “Demografia Histórica”. No ano anterior, Mauro ministrara um curso sobre “Novas Perspectivas da História Econômica”, inaugurando um período de trânsito pela instituição. Estudioso da Europa Atlântica e Portugal, Brasil e América Latina, com projetos sobre as relações econômicas na Bacia do Rio da Prata (BRODER, 2002, p. 165-169; MARTINIÈRE, 1995, v. 34), Mauro esteve no Brasil em diferentes períodos e atuou em universidades em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, entre outras. Os orientadores também foram correspondentes de Westphalen, mas as trocas com Mauro tiveram um ritmo mais intenso e prolongado. A convite de Mauro, Westphalen presidiu uma das sessões do “Colóquio Internacional de História Quantitativa do Brasil 1800- 1930” (1971). Ele fez notas e resenhas das pesquisas de Westphalen sobre as transações comerciais no Porto de Paranaguá, pediu auxílio no levantamento de documentação para seus projetos de trabalho e que ela tutelasse os alunos que enviava ao Brasil. Estreitando a cordialidade acadêmica, também recebeu alunos de Westphalen que foram fazer suas teses de doutorado em Paris, como foi o caso de Santos. As cartas, então, evidenciam certa arquitetura do espaço acadêmico, se brechas são abertas convém preenchê-las. Há critérios silenciosos, ou subentendidos, em convites e aceites, além da competência científica está a marca das relações pessoais e a necessidade da retribuição de uma gentileza intelectual. É nessa complexa rede de sociabilidade (SIRINELLI, 2003, p. 231-269) que localizamos os moradores da Rue du Javelot.

O 3º Ciclo e o tempo acadêmico

A França pós-Maio de 1968 flexibiliza a hierarquia universitária, o clientelismo denunciado por Pierre Bourdieu, o crescimento da população discente e docente faz emergir uma série de rearranjos em sua estrutura universitária (BOURDIEU, 2011; PICARD, 2010, p. 140-152). O 3º. Ciclo (3ème cycle) tentava atender essa demanda, nele havia a possibilidade de realização de curso de Doutorado em dois ou três anos, caso ideal para os três professores que precisavam logo reassumir suas aulas no Brasil. No primeiro ano, o aluno deveria preparar o Diplôme d’Études Approfondies (DEA), para tanto teria que cursar um número de disciplinas e apresentar dossiês de cada uma.

Além disto, há um trabalho maior de encerramento da disciplina, e para a dominante, ou seja, o seminário do orientador, há isso e mais um estágio e por fim um exame escrito. Tanto para o curso do orientador como para os demais = tudo será no final examinado por um jury de três professores, que 95

acordarão a concessão do D.E.A. ou submeterão, de imediato, o candidato a uma entrevista, para a decisão final. (CARDOSO, Paris, 23 mar. 1976).

O nível de exigência para essa primeira etapa tomou de assalto os três, a reprovação significaria atraso, retardo no tempo. Cardoso e Nadalin, no primeiro ano, frequentaram os mesmos seminários e em suas cartas externaram um forte descontentamento quanto a essa estrutura. Também relataram a dose de pressão diária recebida pelos próprios professores: “estão com um ‘arzinho’ de que vão mostrar a todos que a coisa é para valer, nas nossas costas” (CARDOSO, Paris, 12 dez. 1975). Os exames finais para o DEA foram vistos como tortura psicológica. Com o tempo voltado para as disciplinas, pouco dele sobrava para a tese. De acordo com Santos, “[...] fazer cursos e tese de Doutoramento, tudo isso, no prazo de dois anos é, no mínimo, de deixar os franceses admirados (como sempre ficam, em face disso!)” (SANTOS, Paris, 16 jun. 1976). O tempo, ou melhor, a sua falta, passou a ter lugar em todas as cartas, ele foi evocado para justificar as ações que tomavam em relação aos trabalhos dos seminários e o prosseguimento da tese. O tempo impelia as decisões, as mudanças de planos, os cortes, a não realização. O tempo – o acadêmico – recebeu uma conotação ruim, estava associado à dificuldade. Cecília Westphalen foi o porto onde desaguaram os interesses, as dificuldades e se buscou auxílio. As cartas, que variam de 4 a 11 páginas, narraram todas as fases da pesquisa. Ao escreverem, eles faziam o exercício de organização das tarefas a serem executadas. Listavam as leituras realizadas e as que estavam por fazer, procuravam identificar as deficiências e as lacunas da documentação, com pormenores exprimiam a metodologia empregada e as etapas da redação da tese. Dentro desses relatos, pediam indicações bibliográficas e envio de fontes. Ao colocarem Westphalen a par das atividades de pesquisa, esperavam a sua avaliação, até mesmo insights, que porventura os problemas postos nas cartas pudessem suscitar. Convém, então, explorar essas relações com base nas impressões particulares dos remetentes.

Carlos Roberto Antunes dos Santos

Carlos Roberto Antunes dos Santos parece ter enfrentado rapidamente os desafios da aculturação, as cartas indicam que, até certo ponto, conseguiu conciliar a realização do DEA, a escrita da tese e a participação em eventos acadêmicos. 96

Pelo cotidiano relatado nas cartas, podemos supor que frequentou os Seminários de Frédéric Mauro, Emmanuel Le Roy Ladurie, Jacques Bertin e Fernand Braudel (SANTOS, Paris, 23 nov. 1975). Mauro, investigador da História Econômica do Brasil, despertava em seu seminário a atração de pesquisadores brasileiros. Ciro Cardoso e Nilo Odália foram alguns que por lá circularam. No seminário de Braudel, muitos pesquisadores foram convidados para fazer exposés. Santos pôde ouvir as pesquisas de Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Pierre Vilar, Immanuel Wallerstein, Gunder Frank, Maurice Aymard, Hermann Kellenberz (SANTOS, Paris, 16 jun. 1976). As memórias do seminário de Jacques Bertin remetem ao trabalho desenvolvido no Laboratoire de Cartographie. Com ele aprendeu os pressupostos da Semiologia Gráfica.6 Nesse seminário, Santos aprendeu a técnica do Fichário-Imagem (FI) e passou a explorá-la para tratamento gráfico dos dados relativos ao mercado de escravos no Paraná. Empolgado escreveu,

[...] existe uma nova metodologia para estudar o preço do escravo, isto é, tomando por base o período, local, condição física do escravo, estado civil, sexo, idade de origem, preço unitário e profissão. Isso é uma afirmativa também da Mª. Luiza Marcílio, M. Buescu, e mesmo da New Economic History, e de outros. [...] Com a técnica do Fichário de Imagem é possível fazer diversas manipulações com as diversas variáveis. (SANTOS, Paris, 7 jan. 1976).

Tomado pelo trabalho, ele saia de casa apenas para ir ao Laboratoire, seu cotidiano estava entrelaçado às manipulações das 1004 fichas elaboradas com base em 1004 atos de compra e venda de escravos. Esse foi o tema predominante de grande parte de suas cartas e isso porque a interlocutora poderia lhe ajudar diretamente na leitura dos FI. Em 1970, Westphalen frequentou o Laboratoire e, desde então, passou a fazer análises quantitativas do movimento do Porto de Paranaguá (fichário-imagem, leques de curvas) explorando o tratamento gráfico da informação à la Bertin. Braudel foi recorrentemente lembrado nas cartas, Santos sabia do interesse que Westphalen nutria quanto aos ensinamentos desse professor e quis informá-la de suas impressões sobre a postura de Braudel em relação ao campo historiográfico. Segundo ele, Braudel havia mudado um pouco: “Suas definições de capitalismo, liberdade, críticas quanto historiadores contemporâneos, e suas constantes aberturas de caráter metodológico, etc. mostram uma preocupação em atualizar-se”. Ele aceitava em seus cursos “a contribuição de

6 Bertin “foi o primeiro a lançar as bases de uma estrutura da linguagem gráfica, oferecendo teoria e instrumentos que revolucionaram a construção de gráficos e o tratamento gráfico de dados, a partir da linguagem visual”. (CARDOSO, Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2014). Cf. BONIN, nov. 2000. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2013. 97

todo os historiadores, sejam de marxistas, clássicos, liberais, etc., à todos tem suas críticas e elogios” (SANTOS, Paris, 16 jun. 1976). Algo de “novo” despertara o interesse de Santos, ele se referia diretamente ao grupo que coordenou a obra Faire de l’histoire (1974) e os tais “novos conceitos, novas concepções, novos horizontes”. Apesar de demonstrar entusiasmo, constatou que “Le Goff, Nora, etc.,” não pareciam até aquele momento “em condições de colocar em xeque o Prof. Braudel” (SANTOS, Paris, 16 jun. 1976). Atento à produção historiográfica francesa, Santos lhe enviava entrevistas, informes de publicações e comentava a repercussão de obras. Configurava-se, assim, um relativo sistema de trocas entre eles. As cartas de Santos têm tons distintos dos demais colegas no tocante à relação com Westphalen. É a sua experiência francesa que está sempre em primeiro plano na narrativa, são poucas as perguntas e considerações de cunho mais pessoal relativas à vida da destinatária. Em suas cartas, ele incita o debate sobre perspectivas historiográficas e acontecimentos econômicos e políticos. O tempo, para os demais assuntos (família, passeios, viagens, colegas), aparece como pausa, pequenos cortes no texto, que ocupam duas ou três linhas no máximo.

Jayme Antônio Cardoso

Dentro das possibilidades oferecidas pela EHESS e sondando as “possíveis ‘idiossincrasias’ pessoais” do orientador, Jayme Antônio Cardoso optou por fazer os seguintes seminários: Techniques d’analyse en démographie historique (dirigido por Louis Henry), Démographie historique (dividido entre Jacques Dupâquier e Jean-Pierre Bardet) e Semiologie graphique (dividido entre Jacques Bertin e Serge Bonin). (CARDOSO, Paris, 6 nov. 1975). A primeira vista ele estava totalmente inserido na linha que escolheu, a demografia histórica. Mas, o andamento das aulas revelou certas surpresas. O cotidiano dos seminários aponta experiências variadas, não se poupam elogios e críticas. Entre as críticas, está a organização do seminário de Dupâquier. Ele

Deu uma idéia geral da história demográfica do século XVII-XVIII, e agora vamos começar a estudar Malthus. Houve, para mim, um certo desencanto, pois os seminários foram sempre assim: um tema, ou melhor, um país ou uma região; em geral ele convidava um especialista, ou então êle ou o Bardet apresentavam o resultado de suas consultas a respeito [...] Ele parece meio desligadão. (CARDOSO, Paris, 23 mar. 1976).

Um dos convidados foi Maria Luiza Marcílio, “ela falou sobre a evolução da população brasileira. Quem estava lá era a Profa. Katia Mattoso. No dia seguinte, a convite 98

meu e do Sergio, elas estiveram aqui em casa, e mais o Carlos Roberto” (CARDOSO, Paris, 23 mar. 1976). As duas historiadoras brasileiras circulavam constantemente por Paris. Kátia Mattoso estudava a população negra na Bahia e fazia doutorado com Adeline Daumard. Marcílio fez o doutorado sob a orientação de Louis Henry e naquele momento divulgava sua tese de livre-docência. Além de sua participação nesse seminário, ela também realizou uma exposé na reunião da Société de Demographie Historique. Na percepção de Cardoso, a tese foi bem apresentada e bem recebida “algumas intervenções sem significado maior, exceto as do Prof. Henry, claro, e que também já aproveitou para comentar resultados do artigo sobre o Paraná, citando Mlle. Balhana” (CARDOSO, Paris, 8 fev. 1976). O artigo citado por Henry é “La populacion du Paraná depuis le XVIIIe siècle”, publicado na Population, a revista do Institut National d’Études Démographiques (INED). Com orgulho pela publicação, os três fizeram referências aos comentários elogiosos que recebiam os trabalhados desenvolvidos no Paraná. O seminário de Bertin e Bonin foi descrito como bom. Cardoso, ao contrário de Santos, não pôde incursionar pelos princípios da semiologia gráfica no desenvolvimento do trabalho com as listas eleitorais. Bertin aparecia nas cartas em razão da possibilidade de tradução do seu livro La Graphique.7 Cardoso já estava colaborando para a tradução final da obra de Louis Henry, Técnicas de Análise em Demografia Histórica, resultado das aulas ministradas por ele na UFPR. A relação com Henry evidentemente extrapolou o convívio do seminário. Os seminários realizados para o exame do DEA foram considerados “eminentemente técnicos”, a ponto de questionar-se sobre sua identidade de historiador. Conflitos surgiram no momento de definição dos rumos da tese, Henry opunha-se ao levantamento de renda e profissão, pois, segundo ele, “isso não é demografia” (CARDOSO, Paris, 5 jun. 1977). Na tabulação de seus dados deveria tratar de mortalidade e emigração. Aqui se percebe o horizonte estreito com que o historiador poderia operar, pois para pertencer ao campo, deveria respeitar as regras de escrita. O trabalho, então, seguia “em ritmo de demografia histórica, quer dizer, muito trabalho e uma tabelinha no final” (CARDOSO, Paris, 5 jun. 1977). E na primeira apresentação dos dados a Henry:

Depois de duas horas e alguns minutos de entrevistas eu saí com o título mudado, por sugestão dele, para ‘Essai d’utilisation des listes électorales dans l’étude de la population du Paraná vers 1870’; isso para o caso de se ter que provar que elas não podem ser utilizadas. E saí também, como suplemento, com a sensação terrivelmente esmagadora de ter trabalhado até o cansaço (e não me canso fácil) durante 5 meses para um resultado

7 O título completo é La graphique et le traitement graphique de l’information (1977). 99

tão inglório; para não dizer nulo. E a vontade de ‘se mandar’. [...] Veja, quis escrever mais ‘leve’ e acabei relatando ‘desilusões’ de pesquisa. Mas, se Deus quiser, tudo há de dar certo. (CARDOSO, Paris, 5 jun. 1977).

Foram muitos os relatos angustiantes sobre o andamento da tese, a pressão para o aprendizado da técnica conflitou com o tempo para a análise qualitativa dos dados: “Eu juro que é materialmente inconcebível vir fazer tese com tabulação ainda por ser feita, e em seguida planejar, calcular, escrever, bolar, desenhar mapas, gráficos, quadro, e tudo isso em um ano [...]” (CARDOSO, Paris, 21 dez. 1977). Westphalen enviava palavras de incentivo, as quais, na resposta, ele sempre agradecia. A palavra amiga era retribuída com favores. Os contatos que os remetentes realizavam poderiam ser ótimas oportunidades para diálogos futuros, enriquecendo o círculo de trocas acadêmicas. Nessa esteira, Cardoso foi o principal mensageiro de Westphalen, a ele foi confiada a entrega dos presentes a Fernand Braudel e Adeline Daumard. Outra “missão” foi levar cartas-convites a J.P-Berthe, Ladurie e à própria Daumard. Era intenção de Westphalen que eles fossem a Curitiba. As cartas de Cardoso são as mais amáveis. Ele despende maior tempo para com a destinatária, quer saber “como ela está”, manda lembranças ao seu pai e ao se despedir sempre recorda da “professora Altiva”. Aliás, algumas cartas têm, até mesmo, o destino partilhado, são endereçadas às duas.

Sergio Odilon Nadalin

A rotina familiar é um ponto importante nas cartas de Sergio Odilon Nadalin. Os problemas de adaptações dos dois filhos, a saúde constantemente atingida, a dor pelas perdas familiares, a carência familiar da esposa, foram fatores que influíram diretamente em seu cotidiano de doutorando. Em alguns momentos foi preciso interromper a análise dos dados e intercalar a escrita entre o cuidado com a família. O tempo da família e o tempo acadêmico nem sempre foram de fácil conciliação. Fatores que contribuíram para o sentimento de estranhamento cultural: “Para ser honesto, não posso dizer que cheguei a firmar os pés aqui neste país. Em todo o caso, sinto que tudo isso me sacudiu profundamente” (NADALIN, Paris, 22 jun. 1977). Nas cartas de Nadalin as dificuldades sobressaem-se aos ganhos. A demora na resposta, por vezes, era associada à sensação de “estar na fossa”. E isso, em parte, em razão dos problemas encontrados na compreensão das técnicas estatísticas que Louis Henry empregava em seu seminário.

Tive, porém, a chance de lhe dizer que eu tenho uma certa dificuldade em abstrair certas noções, em raciocinar em termos da técnicas que ele nos 100

ensina. Ele compreendeu o problema, e disse dos senões de nossa formação, demasiadamente ‘literária’. Em outras palavras, somos capazes de seguir a receita, mas, até que ponto somos capazes de inovar, ou de mudar critérios, em face de situações diferentes? (NADALIN, Paris, 21 abr. 1976).

A questão de Nadalin coloca em xeque a importação de modelos, o emprego de metodologias em contexto para os quais elas não foram forjadas sem o questionamento de suas possibilidades e limites. Assim como para Cardoso, seu colega de seminário, o problema acentuava-se em relação à rigidez da língua estatística, da mecânica demográfica. De outro lado, no seminário de Henry pôde aprimorar o conhecimento que tinha sobre a técnica de reconstituição de famílias, e assim confeccionou as fichas para explorar informações contidas nos registros paroquiais da comunidade luterana de Curitiba e construir suas séries estatísticas. Trabalho árduo e moroso, que lhe roubou o tempo de participação em encontros acadêmicos. Além do evento da Société de Demographie Historique, Nadalin assistiu parcialmente algumas exposés da Reunião da Société des Americanistes, que em termos de Demografia Histórica “foi fraquíssimo” (NADALIN, Paris, 13 set. 1976). Excetuando o desenrolar da tese, tema constante na correspondência foi o Projeto de Ensino em Estudos Sociais para o 1ª Grau, que coordenou com Westphalen. As cartas supõem os avanços, o caminhar, o peso do trabalho por fazer. Nadalin participou ativamente da construção dos conteúdos para a primeira experiência que, ao ser finalizada, foi publicada em 1976 com o título Estudos Sociais, a partir da longa duração. O título é sugestivo e quase explicativo, pois, partindo do artigo La longue durée (1958) de Fernand Braudel, elaborou um plano de ação no qual a história e a noção de longa duração estavam no centro. A História oferecia o conceito de multiplicidade do tempo, noção capaz de integrar as Ciências Sociais, que têm como objeto comum o estudo do homem em sociedade. Consciente da dinâmica estrutural do espaço em que atua, o aluno teria melhores condições para atender as “exigências da moderna sociedade brasileira em desenvolvimento” (WESTPHALEN et al., 1976, p. 275). Em síntese, essa era a aposta do projeto e Nadalin deveria apresentá-lo ao próprio Braudel. Nas cartas que seguiram não houve menção a entrega do projeto e ao desejado comentário de Braudel... Data de 22 de junho de 1977 a última correspondência encontrada no acervo de Westphalen. A carta transporta certa leveza quanto ao andamento da tese e é tomada pelo sentimento do retorno. A volta é vista como positiva, mas o remetente mostrava-se apreensivo quanto às incertezas políticas de seu país: “Estou um pouco preocupado, além de outras coisas, com a censura nos livros estrangeiros, pois, apesar de nada ter a 101

esconder, a verdade é que não confio na capacidade de um censor [...]” (NADALIN, Paris, 22 jun. 1977). O historiador da partida não era o mesmo do retorno, junto com os livros trazia na bagagem a experiência do cotidiano historiográfico francês. Mudanças também aconteceram em seu país e em seu local de trabalho, o DEHIS. Nadalin e Cardoso, em suas últimas cartas, expressaram o descontentamento em relação aos conflitos travados entre os professores do departamento. No centro do grupo opositor à Westphalen e Balhana estava Carlos Roberto Antunes dos Santos. O retorno dos ex-alunos de Paris parece ter provocado rupturas na lógica de reprodução e conservação do grupo.8

Considerações finais

As cartas trabalhadas neste texto nos apresentam algumas situações historiográficas. Seus autores, professores da UFPR, estavam inscritos na EPHE/EHESS, lugar onde a história econômica e social era praticada com técnicas da estatística e da demografia. A destinatária, Cecília Westphalen, filiando-se à história “analítica” francesa e à noção de tempo braudeliana pretendia fazer do Programa de Pós-Graduação da UFPR um polo de excelência dessa prática historiográfica. Assim, estrategicamente, contatos foram articulados e uma rede de estudos formou-se no tráfego de Curitiba a Paris e vice-versa. As cartas permitiram acompanhar o cotidiano de historiadores em formação. Ganhos existiram, e obstáculos também, estes se centraram principalmente nas queixas quanto à dureza da quantificação, da operação técnica de tratamento dos dados. As narrativas do andamento das teses, sobretudo as de Nadalin e Cardoso, evidenciam a dificuldade em equilibrar análise quantitativa e qualitativa num tempo acadêmico diminuto, sentido como opressor. Todavia, a dedicação à metodologia da pesquisa aproxima os remetentes das preocupações da destinatária. Para a “Professora Cecília”, era o trabalho com a metodologia a marca de distinção do historiador de ofício. Desse modo, perpassar essas três experiências acadêmicas de pesquisa, por meio da correspondência, permitiu-nos compreender algumas das expectativas de Cecília Westphalen em relação à produção do conhecimento histórico, bem como a configuração que passará a ter o Programa de Pós-Graduação em História da UFPR.

Referências

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8 Segundo Pierre Bourdieu (2011, p. 115), “o capital universitário se obtém e se mantém por meio da ocupação de posições que permitem dominar outras posições e seus ocupantes [...]”. 102

BALHANA, A. P. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Revista Brasileira de História, v. 3, n. 5, p. 11-19, 1983.

BONIN, S. Le développement de la graphique de 1967 à 1997. Dossiers, Colloque 30 ans de sémiologie graphique. Cybergeo: European Journal of Geography, nov. 2000. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2013.

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CARDOSO, J. A. Carta à Cecília Westphalen. Paris, 17 jan. 1977. Coleção Cecília Westphalen. Arquivo Público do Paraná, caixa 3.

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______. Carta à Cecília Westphalen. Paris, 23 mar. 1976. Coleção Cecília Westphalen. Arquivo Público do Paraná, caixa 3

______. Carta à Cecília Westphalen. Paris, 5 jun. 1977. Coleção Cecília Westphalen. Arquivo Público do Paraná, caixa 3.

______. Carta à Cecília Westphalen. Paris, 6 nov. 1975. Coleção Cecília Westphalen. Arquivo Público do Paraná, caixa 5.

______. Carta à Cecília Westphalen. Paris, 8 fev. 1976. Coleção Cecília Westphalen. Arquivo Público do Paraná, caixa 3.

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“INDÍGENAS” NOS CARNAVAIS DE RUA DO RIO DE JANEIRO (1939 E 1964)

Danilo Alves BEZERRA1

Os carnavais brincados no Rio de Janeiro durante o século XX ocorreram em espaços múltiplos, tais como: ruas, avenidas, salões, praias etc. Esses locais, com especificidades e foliões diversos, garantiram um rol de formas para homenagear Momo. Entre esses espaços, as ruas configuraram-se como locais privilegiados para que certas regras e tabus, que permeavam o cotidiano, fossem golpeados. Assim, foliões vestidos de indígenas e capturados pelas objetivas de periódicos como a revista O Cruzeiro, em 1939 e o jornal Correio da Manhã, em 1964 não só desnudavam seus corpos em homenagem aos primeiros habitantes do Brasil, como também quebravam com a sisudez cotidiana ao percorrerem as ruas e avenidas cariocas nessas fantasias. Os sentidos que o fantasiar-se (de indígena) abrange, bem como as particularidades e a cobertura jornalística em torno desses carnavais serão o objetivo dessas reflexões. Diabos, princesas, marinheiros, odaliscas, velhos, bruxas, bebês, baianas e malandros; o rol de fantasias que o folião carioca possuía não é possível de ser descrito nessas poucas linhas. Para brincar os dias de Momo, a criatividade ganhava os amplos salões, as ruas (do centro e dos bairros), as praias e as largas avenidas do Rio de Janeiro do século passado. Fantasiar-se, contudo, é uma ação que está sujeita a uma série de questões – muitas delas inconscientes – e escolher o que vestir e a quem homenagear no carnaval, para muitos não era tarefa fácil. Escolher “ser príncipe” ou “malandro” durante o carnaval não estava, para muitos, no âmbito da opção. Uma fantasia, dependendo de sua peculiaridade – tecidos, ornamentos, joias – e popularidade – baiana, odalisca – custava muito mais do que os foliões comuns poderiam pagar. A solução, para muitos, estava na escolha de fantasias simples, de fácil acesso e confecção. Entre as possibilidades mais populares – diabos, marinheiros, por exemplo – a fantasia de indígena era uma escolha financeiramente viável, confortável para o verão carioca e que permitia ao folião desnudar- se, ainda que parcialmente, durante os dias de festa. Pautado num cotidiano em que as interdições ao corpo eram muitas, vestir-se de indígena e dar vazão aos desejos reprimidos era, certamente, uma das motivações que

1 Doutorando – Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 105

levavam muitos foliões, principalmente nas ruas, a homenagear os habitantes primários do Brasil. Criando personagens diversos, relativos à ocasião em que se encontravam, os foliões cariocas ora forçavam os limites do interdito, ora se adaptavam à conjuntura e aos locais do acontecer festivo. Como se pode notar, fantasiar-se, especialmente de indígena, possui razões e condições diversas. Nesse texto, contudo, os sentidos que essa ação supõe estão restritos às imagens dos “indígenas” flagrados na cobertura carnavalesca da revista O Cruzeiro e no matutino Correio da Manhã, nos anos de 1939 e 1964.2 Periódicos de ampla circulação desse período, a revista O Cruzeiro3 e o matutino Correio da Manhã4, fizeram uma cobertura ostensiva desses carnavais, capturando foliões nos mais diversos recônditos festivos. Esses periódicos não se eximiam, contudo, de posicionar-se e de construir uma rede de significações aos tríduos. No caso do Correio, este ainda se esmerava na organização desses folguedos, promovia concursos, desfiles e criticava/homenageava associações, clubes e grêmios carnavalescos, além de registrar as ações do poder público quanto aos rumos carnavalescos. As colocações acima permitem desnaturalizar, portanto, o sentido neutro atribuído à imprensa, uma vez que ela escolhe, orienta e participa ativamente na publicação de notícias valendo-se de intenções as mais variadas e condizentes, muitas vezes, com relações de poder invisíveis ao olhar desatento. Essas considerações iniciais quanto ao status da imprensa serão retomadas, oportunamente, conforme as imagens – objetos dessa discussão – forem trazidas à baila desses carnavais e da sua produção de sentido. A conjuntura em que se encontra os carnavais é marcada, em fins de 1930, pelo aparelho repressor “estadonovista”, no qual a nacionalidade é lançada como valor supremo da sociedade e que reflete na sustentação do projeto de anulação das liberdades e da experiência individual em prol da nação. Pelo ideal de nacionalidade e defesa do território tudo que escapasse às prerrogativas da ordem era coibido pelo Estado e perseguido pela polícia.

2 O recorte em questão se sustenta nas fotografias de “indígenas” encontradas durante a pesquisa para a escrita da dissertação Os carnavais do Rio de Janeiro e os limites da oficialização e da nacionalização (1934-1945), e da pesquisa em andamento “Modernidade e Mediação cultural nos carnavais do Rio de Janeiro (1946-1964)”. 3 A revista empreendeu uma relação ambígua durante o primeiro governo Vargas, apoiando-o interessadamente em busca de empréstimos para sua expansão em momentos-chave, passando de perseguida pelo Estado Novo à interlocutora de sua plataforma política. A revista abriria “suas páginas à divulgação dos feitos de Vargas e do regime ditatorial, transformando-se em mais um veículo a serviço da propaganda do Estado Novo.” A década de 1940 assistiu à mudança editorial da revista encabeçada por Freddy Chateaubriand ao trazer o francês Jean Manzon que mudaria o aspecto editorial da revista. O Cruzeiro participou ativamente da conspiração contra João Goulart, contrariando o apoio concedido após a renúncia de Jânio Quadros, atacando Leonel Brizola de corrupto semanalmente nos artigos de David Nasser, seu principal redator e agora diretor. Chamou de “revolução” o golpe dos militares de abril de 1964, publicando capas com os “cérebros da revolução” como Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais e Castelo Branco. Ver: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós 1930 - Vol. II, p. 1727-1730. 4 Fundado por Edmundo Bitencourt em 1901, destacou-se na imprensa brasileira como um “jornal de opinião” cobrindo de perto a conjuntura política e sempre se posicionando de maneira aberta e clara. Nos pleitos eleitorais de 1946 a 1964, independente dos candidatos apoiados, o periódico manteve-se fiel ao princípio de legalidade do voto, mantendo o espírito liberal pautado no anticomunismo (Op. cit. p. 1628-1631). 106

Nessa seara, comunistas, liberais anticristãos, desocupados e toda atitude que causasse algum dano à moral e aos costumes, estavam inclusos (CANCELLI, 1993, p. 21, 26). Em relação aos desocupados, à “massa dos sem-trabalho”, o chefe policial Filinto Muller demonstrou “temor” em relação ao perigo que este “contingente” poderia representar ao espaço urbano. Elizabeth Cancelli atenta para os campos percorridos pelas incursões policiais:

O controle da malandragem, a vigilância das ruas com suas centenas de informantes anônimos e em potencial, a forte e ferrenha censura, o policiamento ostensivo das praias, o controle e tutela policiais das festas populares, como o carnaval, e a exaltação ao cidadão pacato, à família também faziam parte do cotidiano policial. (CANCELLI, 1993, p. 33).

Da fundação do Estado Novo, em novembro de 1937, até o seu término, em 1945, todos os atores do sistema político eram alvos de um discurso político-ideológico espraiado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, em que a construção de uma democracia social estava voltada às relações sociais, privilegiando formas de organização universais de todas as classes:

A relação direta homem/poder público é assim qualificada pelo trabalho como uma relação cidadão/Estado. Desta dinâmica adviria o sentido social profundo da fórmula política encontrada pelo Estado Novo. O cidadão desta nova democracia, identificado por seu trabalho produtivo, não mais se definiria pela posse de direito civis e políticos, mas justamente pela posse de direitos sociais. [...] Pelo trabalho o cidadão encontraria sua posição na sociedade e estabeleceria relações com o Estado; por esta mesma razão, o Estado se humanizaria, destinando-se a assegurar a realização plena dos cidadãos pela via de promoção da justiça social. (GOMES, 1992, p. 110, 127).

Combatendo o regionalismo, o individualismo e as atuações partidárias “anarquizantes”, a ditadura do Estado Novo propagandeava “uma comunidade nacional” harmoniosa que necessitaria apenas de um Estado forte para atingir o crescimento social e econômico. Essa política ostensiva de unificação nacional já tinha um território e personagens conhecidos nos anos anteriores ao projeto “estadonovista”. Alguns periódicos, entre eles o Correio da Manhã, consideram o carnaval, já na década de 1930, um “cartão postal” do Brasil, pois era capaz de arregimentar todas as classes sociais que, juntas, dançavam e cantavam em uníssono as maravilhas do país. Ao Estado Novo coube a verticalização desse projeto, com outros interesses que não o turístico ou financeiro (BEZERRA, 2012)5.

5 Na introdução e no primeiro capítulo da dissertação, encontram-se detalhados os projetos que envolviam os carnavais do Rio de Janeiro em torno de sua oficialização e projeção nacional. 107

Após o término do Estado Novo, os anos que se seguiram até 1964, ditos “redemocratizantes”, promoveram uma intensa modificação nos festejos carnavalescos. Querelas políticas tornaram as escolas de samba em campos de guerra; os locais em que os folguedos ocorriam se pluralizaram – do centro às periferias, com ou sem subvenção pública nas ruas, nos coretos ou nos bailes – e cresceram aos olhos do país e da imprensa do período. Envoltos num mercado consumidor que, impulsionado pelo aumento da mão de obra alavancava a oferta de produtos culturais diversos – teatro, rádio, televisão –, o Rio de Janeiro tornou-se, nas décadas de 1950 e 1960, um centro urbano moderno cada vez mais imerso no capitalismo internacional. A conjuntura acima abordada não ocorreu ao largo dos carnavais aqui estudados. Ao contrário, a classe média e a alta passaram a frequentar os barracões das escolas de samba, e a pagar para assistir aos seus desfiles – além de pagar para desfilar. Ademais, a mudança no perfil desses foliões, as inovações alegóricas, impulsionadas pelo luxo e pela mediação cultural com a Escola de Belas Artes, marcaram a entrada desses carnavais no mercado do consumo da cultura (GUIMARÃES, 2009)6. Entretanto, não cabe entrar nos meandros dessas modificações, pois esse não é o objetivo aqui pretendido. Cumpre agora voltar ao “indígena”, buscando as formas como esse foi representado em carnavais anteriores. Não se trata de estabelecer um histórico evolucionista dos carnavais dos últimos cem anos, mas sim de situar de que maneira essa fantasia se incorporou nos costumes dos foliões dos carnavais que antecederam os anos aqui abordados. Negros fantasiados de índios, dançando e tocando músicas africanas, segundo Eneida de Morais (1958, p. 120-121), ganhavam a cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Chamados de cucumbis, os negros trajavam círculos de penas em volta dos pulsos, joelhos, braços e cintura, além de cocares, colares e corais de dentes, objetos que remetiam, segundo o desfile desses foliões, ao universo indígena. A presença constante de silvícolas entre as fantasias recorrentes no carnaval carioca, bem como outras festas do Brasil e do mundo, advém de diversos fatores, entre eles, o fato do carnaval popular homenagear personagens periféricos da sociedade brasileira e, paradoxalmente, em razão do indígena habitar um território entre o popular e o erudito no

6 Sobre a questão política envolvendo as escolas de samba ver Guimarães (2009). Quanto à diversificação das ofertas de consumo da cultura “[...] o teatro, o cinema, o rádio, a televisão, o disco, a publicidade, as editoras, foram se estruturando como indústria de massa ao longo dessa década [de 50] para finalmente atingir, nas décadas seguintes, a configuração de uma indústria de bens culturais” (ABREU, 1996, p. 16). A vivência do que seria o moderno pode ser compreendido com Figueiredo (1998). Por fim, no tocante às mudanças nas ornamentações e à mediação com a Escola de Belas Artes, ver Guimarães (2006).

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Brasil imperial de referências europeias, em meio à selva descrita na literatura indianista de José de Alencar, com O Guarani, tocada nas orquestras (BORA, 2013, p. 111-113)7. O dualismo nessa representação chegou ao auge na literatura indianista, que transformou os índios antropófagos em vis, ferozes e selvagens. A suposta homenagem enveredou na humanização romântica dos não-antropófagos – salientando qualidades como a lealdade e o espírito guerreiro –, ao passo que os “‘bárbaros” figuravam como coadjuvantes. Entre as páginas da literatura e os índios das ruas cariocas o dualismo foi uma constante. No cordão, o índio que desfilava nas ruas do Rio, deixava de lado uma representação romântica literária, ao empunhar tacapes e vestindo saias e coroas de penas. Uma representação também idealizada, em razão do real desconhecimento do universo ali “homenageado”. O índio do cordão dos logradouros carioca era uma mistura das referências americanas e africanas (escudo e máscara), mostrando uma miscigenação de culturas que pouco caracterizava o indígena brasileiro (BORA, 2013, p. 116). As constantes homenagens que o Império promoveu aos indígenas, ainda que caricatas, cederam espaço para a esterilização eugênica que a conjuntura impôs ao carnaval. Na virada do século XIX para o XX, os cordões são perseguidos e os cucumbis foram expulsos da festa, que se higienizava à força. Aos moldes europeus, o “carnaval civilizava-se” na ampla Avenida Central, em 1908, que se enchia para ver as Grandes Sociedades de influência europeia desfilarem. Do início do século XX até meados dos anos 1930, outros personagens e manifestações foram trazidos às ruas, bailes, praias e avenidas do Rio de Janeiro. O samba, os blocos, o corso, os malandros e as baianas – nos bailes luxuosos e nas escolas de samba – vicejaram numa festa que se quis sempre múltipla, a despeito dos demandes públicos8. No intuito de se comunicar com o seu entorno, o investimento e a atenção despendidos pelos foliões variavam de acordo com suas possibilidades financeiras e com as prerrogativas do local da festa. Na década de 1930, os bailes que pretendiam garbo e distinção, usualmente não aceitavam qualquer fantasia. Em nota, o Centro dos Cronistas Carnavalescos disparava, “também serão aceitas as máscaras e fantasias, excepto as de marinheiro, apache, travesti e macacões, que em absoluto não serão toleradas. As

7 No caso O Guarani, de José de Alencar, se situa nessa perspectiva dualista em que o índio habita uma margem estreita entre o selvagem e o romântico. Segundo Bora, posteriormente, a literatura cederia espaço para o discurso oficial de D. Pedro II em que o indígena viraria um modelo de nobreza, ainda que historicamente fosse vítima do processo colonizador. 8 Não é objeto desse texto adentrar nas nuanças e modificações dos festejos carnavalescos, para um vislumbre dessas modificações na virada do século XIX até 1930 ver: Cunha (2001) e Vianna (2004). A primeira trata de como o carnaval possui uma função também social, no sentido de expor na efemeridade dos festejos toda a exclusão social e o não-pertencimento que muitos dos seus foliões viviam em seus cotidianos. O segundo, baseado em outro ponto de partida, rastreia um grupo de compositores do samba e de intelectuais para configurar de que forma o samba saiu de ritmo perseguindo um dos signos de brasilidade em pouco menos de trinta anos. 109

máscaras, segundo a portaria do chefe de polícia, podem ser usadas a partir do dia 1º de fevereiro” (NO LIMIAR..., 04 fev. 1938, p. 06). Ou seja, fantasias que habitavam a periferia da moral, como o travesti, ou eram correlatas às classes populares, como a de marinheiro, deveriam ser evitadas no baile que inaugurava a nova sede da instituição que organizava o carnaval carioca.9 Relevante é o fato da “instrução” também proibir o “apache”, pois essa fantasia era permitida em outros bailes, que se propunham à distinção dos populares. O Clube de Regatas do Flamengo trouxe, em 1939, um grupo de apaches. Na fotografia, todos os integrantes vestiam a mesma fantasia, formando um bloco. A fantasia, que cobria o corpo todo deixando somente os braços de fora, possuía ainda alguns bordados nas extremidades das mangas e da calça e estava muito mais próxima ao “índio americano” do que às caracterizações do silvícola brasileiro (“SOIRÉE”..., 18 fev.1939, p. 25). As ruas e os banhos de mar à fantasia – que agitavam o pré-carnaval – eram os lugares privilegiados para o desfile de silvícolas, em razão da condenação recorrente da fantasia de índio em bailes fechados e que buscavam alguma distinção. Das ruas, com a festa se aproximando e tomado pela alegria e entusiasmo, o cronista disseca a festa, que toma conta da cidade:

O carnaval deste anno é a mesma festa que reflete o caracter alegre do nosso povo. Nas ruas e nos salões, na cidade e nos subúrbios, nos bairros ricos e nos morros, haverá a mesma animação de todos os annos, o mesmo enthusiasmo, a mesma vontade de apagar com as canções populares os protestos da carestia e as difficuldades de hontem e de amanhã. [...] Os bailes promettem. Sociedades ricas e sociedades pobres abrem os seus salões para receber a massa dos foliões. Os ranchos aprestam-se para sair; os grandes clubs ultimam os preparativos para lançar à rua os seus préstitos, em busca da consagração popular. (QUASI..., 18 fev.1939, p. 07).

A igualdade descrita abrangeria todo e qualquer folião carioca que, seja do morro seja do centro urbano, segundo o cronista, é tomado pela alegria momentânea trazida pelo tríduo momesco. Essa dinâmica festiva que envolve os indivíduos contagiados pelo espírito de Momo é única, independente do lugar de comemoração, guardando apenas a respectiva condição geográfica e social. Independente das variantes, ela é correlata como uma necessária válvula de escape. Em meio ao certame festivo e envolto nas motivações patrióticas que cercam o tríduo, o desfile dos blocos no banho de mar à fantasia em Copacabana, um seleto grupo de foliões fantasiados de índios é capturado pelas lentes da revista O Cruzeiro.

9 O Centro dos Cronistas Carnavalescos (C.C.C.) foi uma importante organização, composta por jornalistas que organizavam junto à Prefeitura o carnaval do Rio de Janeiro. No Correio da Manhã, seu interlocutor recorrente foi Edgar Pilar Drumond, o “Fofinho”. 110

O Cruzeiro, 18 fev. 1939, p. 34

Na foto10 acima, um grupo de guerreiros indígenas é “flagrado” portando, além de arcos e flechas, um estandarte em referência ao samba. Os tipos criados por esses foliões jogam com a alteridade que a fantasia e a festa proporcionam. Com pouca roupa – a saia que cobre o corpo desses foliões, feita de papel crepom, desmanchava com o banho de mar – a fantasia de indígena abria metaforicamente para a possibilidade do desnudamento – ainda que parcial, pois embaixo eles vestem shorts – durante os festejos. Entre o real e o imaginado, entre o indígena romântico e o bárbaro, a fantasia em si propõe a criação de um personagem, no caso, os protoguerreiros acima, com arcos e flechas simbólicos, distantes da representação idílica da literatura do século XIX. Os sentidos que o fantasiar-se (de indígena) abrange, além da configuração de outra identidade, resvalam, também, segundo Zélia Lopes da Silva, na possibilidade de leitura dos costumes desses foliões, seus modos de pensar, os desejos contidos pelo cotidiano e que são extravasados no decorrer da folia. Considerando que alguns deles sinalizam para a possibilidade de quebra da regra em uma sociedade marcada por convenções sociais diversas, estabelecendo, portanto, um dos sentidos do carnaval (SILVA, 2008, p. 43-44). Na esteira da busca dos sentidos que as festas produzem, se encontra o fato dessas serem capazes de explicar o mundo na sua exceção, na fissura do cotidiano, na inversão e quebra da ordem. Entendidas por teóricos como Mikhail Bakhtin como representações culturais capazes de definir e dialogar com a sociedade que as promoveram, as festas vistas em relação à dinâmica com o tempo presente, possuem um potencial significativo de representação/ inversão da ordem e que ultrapassam a efemeridade do calendário que as situa (BAKHTIN, 1993).

10 Aqui assume-se a posição de que uma fotografia, além de ser um meio comunicacional relativo ao diálogo, é feita e está repleta de escolhas, “todas essas escolhas, todas essas manipulações são a prova de que se constrói uma fotografia e, portanto, sua significação” (JOLY, 1996, p. 128). 111

Exemplo evidente da conjuntura do período é a busca por um modelo nacional refletido pelo samba e pelo carnaval. Marcos Napolitano e Maria Clara Wasserman, num estudo feito com base, entre outras obras, no livro Na roda do samba (1933) de Francisco Guimarães (articulista também conhecido como “Vagalume”), detectaram que ele:

Delimitava um lugar social para o samba que fosse, ao mesmo tempo, garantia de uma marca estética indelével: o "morro" [...] como um território mítico, lugar da “roda” onde se praticava o “verdadeiro” samba [...], A "roda de samba" seria o lugar de uma fala musical coletiva, "pura", "espontânea", onde a criatividade daquele grupo social que estaria na origem do samba, era recolocada, quase como um rito de origem (NAPOLITANO; WASSERMAN, 2000, p. 169-170).

O samba adentra de vez na imprensa do período. Recebe o status de “patrimônio carioca”, por Orestes Barbosa (radialista do período), ao entender que a conjuração deste veio não somente do morro, mas também de cada região do Rio de Janeiro e que o rádio seria primordial para a propaganda no “novo” gênero. A entrada das escolas de samba na questão do samba, e com elas todos os grupos das diversas localidades cariocas catalisadas pelo rádio, requeria que esse processo fosse disciplinado, de modo que “o popular e o nacional [se tornassem] categorias de afirmação cultural e ideológica por excelência” (NAPOLITANO; WASSERMAN, 2000, p. 171). Segundo os autores acima citados, o papel que o Estado Novo teve no período foi o de equacionar a construção do projeto nacionalista – que tinha nas origens do “samba do morro” a autenticidade necessária para tal – aliado ao controle das forças do mercado. Ao tornar o samba um produto, o Estado Novo retirava dele sua “tradição purista, unívoca e linear”. Portanto, “o samba era o ponto de encontro das audiências e seu reconhecimento pelos intelectuais do Estado Novo, defensores da sua ‘domesticação’, representa o reconhecimento das forças do mercado sobre os projetos estético-ideológicos da elite” (NAPOLITANO; WASSERMAN, 2000, p. 179). Os espaços partilhados por segmentos sociais distintos também devem ser atentados para o reconhecimento dessa dinâmica ideológica social que resvala na organização dos festejos. Os estudos sobre os carnavais dos anos 1940 já sinalizam para uma descentralização11 dos festejos, processo que se acentuaria na década de 1950 (BEZERRA, 2012). Nesse período, a vida festiva nos diversos bailes dos clubes esportivos e das agremiações carnavalescas denotou uma modificação dos costumes dos foliões, até então acostumados a dirigirem-se às ruas centrais da capital da República. Ellen Maziero demarca que “[...] diferentemente do passado, em que todos os foliões precisavam se deslocar até as

11 Cabe ressaltar que as décadas de 1930 e 1940 apresentam um redirecionamento constante das batalhas de confete realizadas na Av. Rio Branco para as batalhas e bailes organizados nos bairros pelos próprios moradores. 112

principais avenidas da cidade para brincar o carnaval, na década de 50 muitas pessoas preferiam celebrar os festejos em seus próprios bairros e ruas” (MAZIERO, 2011, p. 54). Essa descentralização do desfile e, sobretudo, a organização de formas de lazer próprias, estão alocadas num contexto de industrialização e aumento exponencial da mão de obra operária do Rio de Janeiro (QUEIROZ, 1987, p. 723). Com o setor industrial empregando 171.643 assalariados (número quase três vezes maior em comparação com a década 1920), o aumento da população, deflagrado pela grande massa de imigrantes em busca dos serviços gerados pela indústria, saiu dos 2.337.451 habitantes, em 1950, para 3.307.163, em 1960. A elevada taxa de crescimento populacional, no entanto, não acompanhou a oferta de trabalho, “[...] gerando a desvalorização do preço da força de trabalho e o aumento da marginalização urbana” (MAZIERO, 2011, p. 24). Esse cenário serve para situar os nossos foliões “indígenas”. Se nos bailes só entrava quem podia pagar, e a fantasia de silvícola ainda não era das mais bem quistas, nas ruas e praias o investimento financeiro era baixo e a liberdade maior para que os arcos, as saias e as penas fossem incorporadas aos corpos, como das mulheres abaixo, que decidiam se esbaldar com Momo.

Correio da Manhã, 08 fev.1964, s.p.

Desfilando na Avenida Rio Branco, um dos principais redutos do carnaval popular carioca, o trio vestia fantasias bem mais ornamentadas do que o grupo de homens anteriormente analisado. Paradas pelo fotógrafo, todas de costas para a multidão que avançava no sentido contrário, tentavam se arrumar para posar para a foto. Desajeitadas, com grandes cocares de penas, cabaças, colares de miçangas e tecidos que remetiam ao selvagem, como a tiara “de onça”, o trio encontrou na representação do índio selvagem o melhor personagem para transformar-se naqueles dias de festa. 113

Certamente, essas quase três décadas acima descritas mereceriam uma análise pormenorizada, incorporando outros foliões e seus personagens. Ainda que os foliões (e seus tipos) não abusassem do nu completo, esta era uma prerrogativa subjetiva tanto à festa quanto às proibições que os cercavam. O carnaval, momento de extravasamento do corpo e da libido, opera de forma propícia para dar vasão aos desejos que o cotidiano encerra. Fantasiar-se de tipos selvagens – supostamente livres das amarras que o cotidiano social demarca –, e exóticos, do ponto de vista dos tipos comuns de saias longas e ternos bem cortados do cotidiano carioca é, certamente, uma forma de dar vazão ao desejo contido. Além de válvula de escape, a fantasia também operava como “homenagem” aos primeiros habitantes do Brasil. Prestando-lhes certa cidadania, ainda que tardia e particularizada, os “indígenas”, na História do carnaval, formam apenas um conjunto, entre outros, de temas que envolvem a festa que se tornou um dos signos de Brasil.

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114

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VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, UFRJ, 2004. 115

A PERSONAGEM PENINHA EM REINAÇÕES DE NARIZINHO, DE LOBATO

Denise Maria de Paiva BERTOLUCCI1

Introdução

A configuração da obra infantil Reinações de Narizinho vem a lume em 1931. Monteiro Lobato organiza o livro reunindo, remodelando e unificando histórias que já havia publicado anteriormente. Essas narrativas passam, então, a compor um volume único, harmonizando-se e constituindo-se em capítulos a partir daquele ano. Peninha surge no capítulo “A pena de papagaio”. É um ser invisível, detentor do conhecimento do uso do pó de pirlimpimpim e do manejo da “planta dormideira”, a qual possibilita uma fuga espetacular com as personagens do sítio. O intertexto instaurado com a obra Iracema, de Alencar, é inegável e surpreendente: Peninha encanta por essa possível filiação e pela beleza da transfiguração literária da criança indígena proposta por Lobato. Neste trabalho, objetiva-se tecer considerações sobre tal linha de interpretação.

A composição do livro Reinações de Narizinho e o episódio País-das-Fábulas

A obra infantil Reinações de Narizinho é fruto de reunião, reescrita e unificação de livros lançados nas décadas de 20 e 30. As Reinações de Narizinho, título original, publicado em 1931, traz onze capítulos2 distribuídos em 306 páginas ilustradas por Jean G. Villin. Na disposição dos onze capítulos formadores da obra, o autor obedece à ordem de publicação das histórias isoladas. Ao mesmo tempo independentes e determinantes do texto maior, os episódios são o meio pelo qual Lobato obtém a unidade de Reinações, pois é sempre Narizinho quem vive as aventuras, as quais se vão justapondo umas às outras, dando origem a uma grande história em que a menina é a protagonista. Nessas experiências, variam as personagens que são definidoras do assunto de cada episódio, mas Lúcia, a menina do nariz arrebitado, está acompanhada prioritariamente de Emília, Pedrinho, Rabicó, Visconde de Sabugosa, Dona Benta e tia Nastácia.

1 Docente - Faculdade de Tecnologia de Ourinhos, Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza - Avenida Vitalina Marcusso, 1400 - Campus Universitário – CEP: 19910206 - Ourinhos, SP – Brasil. E-mail: [email protected] 2 Narizinho Arrebitado, O Sítio do Picapau Amarelo, O Marquês de Rabicó, O Casamento de Narizinho, Aventuras do Príncipe, O Gato Félix, Cara de Coruja, O irmão de Pinocchio, O Circo de Escavalinho, A Pena de Papagaio, e O Pó de Pirlimpimpim. 116

A pena de papagaio é o título do livro isolado publicado por Lobato em 1930. Este dá origem ao capítulo homônimo de Reinações. É nessa história que a personagem Peninha é introduzida e nela se desenvolve o episódio que se pode intitular de País-das-Fábulas. Peninha surge na presença de Pedrinho enquanto o menino come goiabas, trepado no pé. É um ser invisível, e por isso assusta o neto de Dona Benta da primeira vez em que se comunicam. Afirma ter “mais ou menos” a mesma altura de Pedrinho e também “mais ou menos” a idade dele. Diz que está ali para ensinar um grande segredo a todos: o jeito de tornar uma pessoa invisível como ele. Em princípio, o menino acredita que se trata de Peter Pan, mas o menino invisível nega. Na conversa com Pedrinho, o ser invisível diz, ainda, que para aprenderem o referido truque, ele e a prima Narizinho precisam acompanhá-lo na viagem pelo mundo das maravilhas. Sendo o primeiro menino invisível do mundo, sente-se muito só e por isso precisa de companheiros. Mostra, então, o mapa desse mundo a Pedrinho, e quando o neto de Dona Benta quer saber o meio de irem até esse lugar, o ser invisível responde: “Não se preocupe com isso. Tenho jeitos para tudo. Guiarei você.” (LOBATO, 1956a, p. 255). Combinam de partir já no dia seguinte, de madrugada, e, ao se despedir, o menino invisível canta como um galo. Na hora estipulada, vão os primos, e também Emília e o Visconde de Sabugosa, ao pomar, para o encontro com o ser invisível. Feitas as apresentações, Emília amarra uma pena de papagaio na testa do menino invisível, de maneira que pudessem localizá-lo. Isso dá a ela a ideia de chamá-lo de Peninha e assim o batiza. Para que façam a viagem, Peninha dá a todos uma pitada de um pó mágico, chamado pó de pirlimpimpim. Chegam, então, ao País-das-Fábulas. Nesse lugar, o grupo de aventureiros encontra os fabulistas célebres La Fontaine e Esopo, e estabelecem contato com as personagens de suas fábulas. As crianças, porém, perdem-se de seu guia e acabam capturadas pelos guardas do rei Simão XIV, do país dos macacos. Emília é a única que consegue safar-se e pode, assim, ir ao encontro de Peninha e pedir ajuda. Ele liberta os prisioneiros enquanto os macacos dormem, pois adiciona forte dose de uma “planta dormideira” à água dos símios, o que permite a fuga, no lombo do burro de uma das fábulas.

A intrigante personagem Peninha e sua provável filiação

A aceitação inconteste de Reinações de Narizinho pelos públicos infantil e especializado já foi amplamente comprovada em estudos vários sobre o livro. Um dos mais recentes a indicar esse fato é o artigo presente em Monteiro Lobato, livro a livro (LAJOLO; 117

CECCANTINI, 2008, p. 187-198), “Reinações de Narizinho: um livro ‘estupendo’”, em que se apresenta sucintamente a fortuna crítica do livro desde seu lançamento até os anos 2000. Muito mais instigante, sem dúvida, do que acompanhar as palavras da crítica especializada é perceber a reação dos leitores preferenciais da obra em cartas endereçadas a Lobato. É um prazer ler as manifestações das crianças a respeito das personagens e suas características, bem como em relação a expectativas e preferências, como a que se reproduz abaixo, com as atualizações ortográficas já empreendidas:

Belo Horizonte 23 de junho de 1942 Monteiro Lobato Eu estava muito contente porque ia a São Paulo e ia conhecer você, mas mamãe não ficou boa da operação que fez por isto não fui. Fiquei muito triste porque desejava tanto conhecê-lo! Havíamos de conversar sobre Dona Benta, tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho e todas as personagens que foram ao sítio e sobre as asneirinhas tão engraçadas da Emília. Espero ansiosamente que escreva um livro mas não como a “Reforma da natureza” pois gosto mais da vida dos meninos. Os melhores que acho são “Reinações de Narizinho”, “Picapau Amarelo”, “Memórias da Emília” e outros. Já li 4 vezes “Reinações de Narizinho” 2 vezes “Picapau Amarelo”, 2 “Minotauro” e 3 “Memórias da Emília”. As outras têm muita ciência e eu não entendo, pois fiz 9 anos dia 18 de junho. Acho que já escrevi demais por isso mando um abraço bem apertado esperando que escreva outro livro. Ficaria muito alegre e agradecida se respondesse esta cartinha. Liliana B.V. de Guimaraens3

Na carta que se apresenta abaixo, a pequena redatora usa uma expressão surpreendente para se referir às personagens lobatianas, e impressiona pela desenvoltura na recepção de literatura infantil mundial:

Querido Sr. Monteiro Lobato Gosto muito de seus livros, principalmente de “Reinações de Narizinho”, “Novas Reinações”, “O saci”, “Viagem ao céu”, “História do mundo para as crianças” e “Peter Pan”. São os meus prediletos porque tratam de aventuras fantásticas cheias de seres sobrenaturais que no entanto fazem-me crer que existem realmente. Espero que o senhor logo escreva mais para nós. Estou lendo um livro alemão da coleção “Perthes Wunderbücher”, mas que foi tirado do inglês “Green Magic” por Julie Closson Kenly. Gostaria muito que o senhor o invertesse para o português, para que todas as crianças paulistas o possam apreciar também. Tenho dez anos. Gostaria tanto de conhecer o senhor pessoalmente. Queira, o Sr. Lobato, aceitar um grande abraço da amiguinha grata Tagea Björnberg4

3 Carta pertencente ao Dossiê Monteiro Lobato, Fundo Raul de Andrada e Silva, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 4 Carta pertencente ao Dossiê Monteiro Lobato, Fundo Raul de Andrada e Silva, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 118

Com relação à personagem Peninha propriamente, há uma missiva curiosíssima. A criança emissora utiliza para a redação um papel de carta em que se veem desenhos de quatro figuras humanas, e duas delas possuem adereços indígenas: penas enfeitando a cabeça, tanga, colares e tornozeleira de pedras. Justamente nesta carta, com as características apontadas e com as atualizações devidas, a criança se expressa da seguinte forma:

Monteiro Lobato Eu estava de caxumba e mamãe leu para mim todas as “Reinações”. Gostei muito. Mas quero saber quem é o Peninha? Mande dizer à Maria Victoria. (Maria Victoria mora na Rua Machado de Assis 35)5

A perplexidade da pequena leitora lobatiana justifica-se plenamente. Como a descrição do episódio apresentada no item de abertura deste artigo já antecipa, a constituição desta personagem é singular. Trata-se de um ser invisível, com “mais ou menos” a mesma idade e altura de Pedrinho, e possuidor do segredo de tornar uma pessoa com sua condição, ou seja, imperceptível ao sentido da visão. O segredo, porém, pode ser ensinado àqueles que assim o merecerem. Para adquirir esse merecimento, esse “dom das fadas”, como ele diz, há que se viajar em sua companhia pelo mundo das maravilhas. Mundo esse que ele tem todo esmiuçado num mapa, obtido por viajar “de lápis na mão”. A sabedoria que acumula vez por outra é demonstrada em falas como essa: “O mundo das maravilhas é velhíssimo. Começou a existir quando nasceu a primeira criança e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra.” (LOBATO, 1956a, p. 254). O ser invisível imita o canto do galo para indicar às crianças sua chegada ou partida. Ganha uma pena de papagaio, tirada da canastra de Emília, que é amarrada à testa dele para indicar a todos sua localização. É batizado, por esse motivo, de Peninha pela boneca. A personagem ainda é quem detém o conhecimento do uso do “pó mais mágico que as fadas inventaram”, o pó de pirlimpimpim. Sua administração permite a viagem pelo mundo das maravilhas e é usado pelos aventureiros, sob sua orientação, na partida do sítio rumo ao País-das-Fábulas. Seu conhecimento acerca da natureza é o que o motiva a contar aos amigos do sítio que “na floresta havia muito mais bichos do que ali [onde estavam os fabulistas La Fontaine e Esopo] – leões, tigres, macacos, ursos – todos os animais importantes” (LOBATO, 1956a, p. 274). Sua agilidade no trato com o elemento natural impede, também, que as crianças sejam atacadas pelo tigre-carrasco da fábula “Os animais e a peste”:

5 Carta pertencente ao Dossiê Monteiro Lobato, Fundo Raul de Andrada e Silva, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 119

Os olhos do tigre-carrasco brilharam. Estraçalhar animais era o seu grande prazer. Lambeu os beiços e armou o bote para lançar-se contra o trêmulo burro. Mas ficou no bote. Uma enorme pedra lhe caiu do teto da caverna bem no alto da cabeça – plaf! Grande berreiro! Correria! Desmaios das damas. Quem é? Quem foi? Fora obra do Peninha. (LOBATO, 1956a, p. 279)

A mesma destreza e familiaridade com os animais a personagem demonstra ao pular no lombo do burro que passa correndo por ele. O salvamento das crianças, feitas prisioneiras por Simão XIV, o rei do país dos macacos, confere-lhe ares de herói. A fuga facilitada pelo manejo da “planta dormideira”, ingerida com a água do poço por todos os macacos, inclusive os sentinelas, intensifica a construção de uma personagem conhecedora da condição original, natural, não civilizada do homem. A sabedoria genuína, inúmeras vezes associada à composição ficcional desta personagem, é típica de quem é natural do lugar em que habita e descende das raças que ali sempre viveram. Tudo isso a torna, destarte, afinada com o modo de vida que se pode vincular aos dos seres autóctones, ou seja, indígenas. A leitura que associa Peninha a Peter Pan faz sentido, uma vez que a história de James Barrie incorpora passagens com os índios peles-vermelhas, como é sabido. Há, no entanto, índices não desprezíveis que aproximam a composição de Peninha a de uma personagem icônica do indianismo brasileiro: Iracema. O que se depreende é, pois, um intertexto: ao conceber sua personagem, Lobato a dota de atributos que lembram os da lendária virgem dos lábios de mel. Para que se compreenda essa linha de interpretação, importa conhecer, na sequência, o referencial teórico que a sustenta. Para Julia Kristeva (1969 apud PERRONE-MOISÉS, 1990), “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos; ele é uma escritura-réplica (função e negação) de outro (dos outros) texto(s)”. Perrone-Moisés explica:

Para Kristeva, portanto, as “fontes” deixam de interessar por elas mesmas; elas só interessam para que se possa verificar como elas foram usadas, transformadas. As “influências” não se reduzem a um fenômeno simples de recepção passiva, mas são um confronto produtivo com o Outro, sem que se estabeleçam hierarquias valorativas em termos de anterioridade- posteridade, originalidade-imitação. (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94).

Na composição da personagem Peninha, portanto, Lobato transforma lindamente a fonte buscada em José de Alencar: enquanto a jovem índia Iracema “guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho” (ALENCAR, 1980, p. 40), a criança Peninha guarda o segredo de tornar uma pessoa invisível como ela. Das mãos da filha de Araquém, surge a bebida de Tupã, capaz de provocar os mais belos sonhos nos guerreiros tabajaras. Das mãos da criatura ficcional lobatiana, as crianças recebem o “pó mais mágico que as fadas inventaram”, o pó de pirlimpimpim, e viajam pelo mundo das maravilhas. 120

Se a formosa índia, manuseando o licor verde da jurema, consegue retirar seu amado das terras da nação tabajara e fugir com ele, enquanto os guerreiros de seu povo dormem, a não menos heroica criança, com o manejo de uma planta com as mesmas propriedades soníferas, viabiliza o salvamento de seus companheiros de aventuras e sua retirada do país dos símios:

– Estou estranhando o sono desta bicharia – disse a menina. Por mais barulho que se faça, nenhum acorda. – Pudera! – exclamou Peninha. Pus tal dose duma planta dormideira no poço onde eles bebem, que só amanhã lá pelo meio-dia poderão despertar. Que é de Pedrinho? (LOBATO, 1956a, p. 283).

Encanta acompanhar o diálogo que Lobato mantém com a obra-prima de Alencar numa produção voltada para a criança. Com os “achados” da história e da caracterização da personagem apontados anteriormente, confirma-se o que Perrone-Moisés salienta sobre o estudo do intertexto. Não basta identificar a influência, mas levar a efeito um “confronto produtivo” entre esses textos memoráveis e suas soluções ficcionais igualmente antológicas.

Peninha e a transfiguração literária da criança indígena

Em nenhum momento da história lobatiana, saliente-se, é explicitada a estirpe indígena daquele ser ficcional; no entanto, há inúmeros motivos ao longo da série de eventos narrados, como se viu, que suportam essa interpretação. O mistério da personagem não se liga apenas à sua condição de ser invisível, mas também ao(s) modo(s) como poderá ser recebida pela criança leitora. Não se pode imaginar algo mais apropriado ao pequeno leitor, nem mais sublime, aceite-se ou não a hipótese de Peninha ser o meio literário de o escritor paulista abordar a questão do índio. Sabe-se que Monteiro Lobato trata objetivamente do índio em obras como Hans Staden (1956b) e História do mundo para as crianças (1956c). Em nenhuma delas, entretanto, alcança a transfiguração artística da criança indígena como a obtém em Reinações de Narizinho, com a personagem Peninha. Reinações de Narizinho marca, pois, o aprimoramento no próprio percurso lobatiano rumo a uma escrita cada vez mais ajustada à criança. Tanto em termos de suas opções linguísticas e temáticas, como em relação a suas escolhas na criação de personagens, no desenvolvimento da linguagem narrativa ou mesmo na fusão real/maravilhoso, Lobato busca, nessa obra extraordinária, corresponder às necessidades mais profundas da infância, e nesse propósito, acredita-se, tem pleno êxito.

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Referências

ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Clube do Livro, 1980.

LAJOLO, Marisa ; CECCANTINI, João Luís (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: Obra infantil. São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1956a. (2a série das “Obras Completas de Monteiro Lobato”).

______. Caçadas de Pedrinho e Hans Staden. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1956b. (2a série das “Obras Completas de Monteiro Lobato”).

______.História do mundo para as crianças. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1956c. (2a série das “Obras Completas de Monteiro Lobato”).

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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Anexos

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HELENA, DE MACHADO DE ASSIS: DO BRASIL PARA O MUNDO E PARA OS BRASILEIROS

Ederson Murback ESCOBAR1

Este trabalho pretende entender a relação entre o romance Helena, de Machado de Assis, e o aparente intuito de posicionar esta obra num cenário internacional sem, no entanto, deixar de lado a “cor local”. Cada vez mais estudos abordam as obras de Machado de Assis pensando no diálogo que estas obras mantinham com obras estrangeiras. Certamente, a maioria destes estudos tem como base as narrativas machadianas posteriores a 1880, ou seja, as obras da chamada “segunda fase”. No trabalho o qual este resumo introduz, tentaremos entender como o romance Helena, sendo publicado três anos após o Instinto de nacionalidade, obedece aos preceitos que o próprio Machado de Assis instituiu neste texto crítico e em outros dois anteriores. Muito se tem estudado sobre a “universalidade” da obra de Machado de Assis. Também se tem pensado sua obra por um prisma relativamente inverso, e, nesse caso, a “cor local” é o que mais teria relevância nos textos machadianos. Além da própria obra deste autor, a maior prova de que Machado também pensava essas questões são seus textos críticos sobre o assunto. Muito antes de escrever suas obras mais apreciadas, em alguns casos antes mesmo de escrever seu primeiro romance, Machado de Assis já pensava a literatura nacional e internacional. “O passado, o presente e o futuro da literatura”, texto crítico de Machado publicado n’A Marmota, em 1858, é mais uma evidência de que o autor já pensava a literatura nacional e mundial com muito cuidado bem antes das Memórias póstumas de Brás Cubas. Além de “O passado, o presente e o futuro da literatura”, serão utilizados aqui mais dois textos críticos de Machado de Assis com a finalidade de entendermos a forma pela qual esse autor pensava a nossa literatura em relação à literatura do velho mundo. Também empregaremos o romance Helena, com a finalidade de verificarmos, na prática, algumas das questões abordadas nos textos críticos do autor. De certa forma, buscamos entender como o romance em questão obedece aos próprios preceitos que o autor instituiu nesses textos teóricos. Trabalhos que seguem uma linha parecida já foram feitos, entretanto, quase sempre se basearam em obras da chamada “segunda fase” machadiana. O importante de se levar em consideração, nesse contexto, uma obra publicada antes de 1880, seria

1 Mestrando - Programa de Pós-Graduação em Letras – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 126

entender como Machado de Assis colocou em prática, mesmo em suas obras menos prestigiadas, as questões que ele já vinha abordando em textos teóricos, e mostrar que obras como Helena já lidavam com questões complexas em relação ao Brasil e o mundo e às respectivas literaturas. Cronologicamente, começaremos com “O passado, o presente e o futuro da literatura”, texto escrito pelo jovem Machado de Assis de dezoito anos, não por isso imaturo nas questões políticas e literárias. Dizemos “políticas e literárias” porque Machado relaciona as duas coisas nesse artigo, entretanto, daremos atenção especial à literatura. Tratando de autores de gerações anteriores e se estendendo até a sua geração, Machado diz o seguinte:

A poesia de então tinha um caráter essencialmente europeu. Gonzaga, um dos mais líricos poetas da língua portuguesa, pintava cenas da Arcádia, na frase de Garret, em vez de dar uma cor local às suas liras, em vez de dar- lhes um cunho puramente nacional. Daqui uma grande perda: a literatura escravizava-se, em vez de criar um estilo seu, de modo a poder mais tarde influir no equilíbrio literário da América. Todos mais eram assim: as aberrações eram raras. Era evidente que a influência poderosa da literatura portuguesa sobre a nossa, só podia ser prejudicada e sacudida por uma revolução intelectual. Para contrabalançar, porém, esse fato cujos resultados podiam ser funestos, como uma valiosa exceção apareceu o Uraguai de Basílio da Gama. Sem trilhar a senda seguida pelos outros, Gama escreveu um poema, se não puramente nacional, ao menos nada europeu. Não era nacional porque era indígena, e a poesia indígena, bárbara, a poesia do boré e do tupã, não é a poesia nacional. O que temos nós com essa raça, com esses primitivos habitadores do país, se os seus costumes não são a face característica da nossa sociedade? (ASSIS, 2013, p. 62).

Nesse texto, pode-se perceber um Machado de Assis, além de muito preocupado com a nossa literatura, muito exigente quanto ao que pretendia para a literatura de seu país, principalmente se levarmos em consideração que nossa nação só estava emancipada do Reino Unido de Portugal há 36 anos, e que o poeta Gonzaga (Tomás Antônio Gonzaga), ao qual Machado cobra a cor local, mesmo tendo participado da Inconfidência Mineira (1789), não nasceu nem morreu no Brasil, embora seja considerado um “poeta e ativista luso- brasileiro”. (ASSIS, 2013, p. 62, nota de rodapé n. 45) E, mesmo tratando do poeta brasileiro Basílio da Gama, Machado não poupa sua crítica ao poema indígena, que ele não considera nacional, questão que retornará no último texto crítico do autor abordado aqui. Vale a pena destacar uma parte desta passagem citada acima para ligá-la a outra parte desse mesmo texto crítico. Como já foi dito, esse texto associa a literatura à política, “uma dupla púrpura de glória e de martírio” (2013, p. 61), “dois grandes princípios pelos quais sacrificava-se aquela geração” (2013, p. 63). Machado de Assis, vendo sua pátria 127

recém-emancipada, ressalta o “sacrifício heroico, admirável, e pasmoso” de D. Pedro I, e, ao mesmo tempo, nota que a literatura não acompanhou essa emancipação:

Mas após o Fiat político, devia vir o Fiat literário, a emancipação do mundo intelectual, vacilante sobre a ação influente de uma literatura ultramarina. Mas como? é mais fácil regenerar uma nação, que uma literatura. Para esta não há gritos do Ipiranga; as modificações operam-se vagarosamente, e não se chega em um só momento a um resultado. (ASSIS, 2013, p. 64).

Ainda no mesmo texto, Machado de Assis nos dá sua ideia para a solução deste problema, dizendo ser “evidente que a influência poderosa da literatura portuguesa sobre a nossa, só podia ser prejudicada e sacudida por uma revolução intelectual.” (ASSIS, 2013, p. 62). Essa revolução intelectual é seu desejo e sua estratégia literária, que ele põe em prática paulatinamente, analisando o que os outros autores fazem e tentando não repetir seus erros. Em “O Folhetinista”, texto publicado pouco mais de um ano depois de “O passado, o presente e o futuro da literatura”, a preocupação é semelhante, mas a relação entre a europeização ou não da literatura nacional não se estabelece mais com a política, mas com o folhetim, e o representante da Europa não é mais a ex-metrópole, mas a França; e a metáfora bem humorada de Machado aparece também neste texto teórico:

Uma das plantas europeias que dificilmente tem se aclimatado entre nós, é o folhetinista. Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da incompatibilidade do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade. Entretanto eu disse – dificilmente – o que supõe algum caso de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta exceção, vê já o leitor que nasceu enfezado e mesquinho de formas. O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal. Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de acomodar a economia vital de sua organização às conveniências das atmosferas locais. Se o tem conseguido por toda a parte, não é meu fim estudá-lo; cinjo-me ao nosso círculo apenas. (ASSIS, 2013, p. 83).

Aparentemente, no “nosso círculo”, o folhetinista não tem se aclimatado muito bem, segundo o que o texto nos diz. Esse texto não atinge todas as suas expectativas sozinho. Na verdade, ele é até um pouco reduzido em informações, se lido assim, de forma autônoma. Ele faz parte de um pequeno grupo de textos críticos que Machado publicou no Correio Mercantil e n’O Espelho, desde o início de 1859, e que tratavam de assuntos relacionados ao jornal enquanto poderoso meio de comunicação que dava seus primeiros e imperiosos passos no Brasil, e a relação desse meio com a literatura de uma maneira geral. De qualquer forma, para a nossa 128

proposta de trabalho, o texto serve justo, já que também questiona a europeização da produção literária no Brasil, ainda que dentro de um gênero criado na Europa. Sobre o que nos importa aqui, Machado diz o seguinte:

Na apreciação do folhetinista pelo lado local, temo talvez cair em desagrado negando a afirmativa. Confesso apenas exceções. Em geral o folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se um estilo estranho, e esquece-se nas suas divagações sobre o boulevard e Café Tortoni, de que estão sobre mac- adam lamacento e com uma grossa tenda lírica no meio de um deserto. Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é inútil dizer que degeneram no físico como no moral. Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil. Entretanto como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal à independência do espírito nacional, tão preso a essas imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade e iniciativa. (ASSIS, 2013, p. 86).

Novamente, notamos um Machado de Assis preocupado com os excessos de Europa nos nossos folhetins, e muito exigente de novo, sobretudo se levarmos em consideração que o folhetim “[...] nasceu na França, na década de 1830” (MEYER, 1996, p. 30), sendo que,

A década de 1840 marca a definitiva constituição do romance-folhetim como gênero específico de romance. Eugène Sue publica no Journal des Débats entre 1842 e 1843 Os mistérios de Paris. Em 1844 sai, do mesmo Sue, O judeu errante; de Dumas, Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo; de Balzac, a continuação folhetinesca de As ilusões perdidas, ou seja, Esplendores e mistérios das cortesãs. (MEYER, 1996, p. 63).

Ou seja, sabendo que “O Folhetinista” é de 1859, fazia somente quinze anos que as grandes obras francesas estavam sendo publicadas em folhetim, e isso não é muito se pensarmos nas condições de produção e divulgação de periódicos no século XIX. Ainda sobre esse assunto, José Ramos Tinhorão diz o seguinte:

Assim, quando a partir da década de 1830 os jornais brasileiros lançam a novidade das traduções dos romances de folhetins europeus, os candidatos a escritores no Brasil encontram a forma ideal de estrear na literatura dirigindo-se de maneira pessoal a um público em formação. (TINHORÃO, 1994, p. 27).

Pensando que, na década de 1830, os jornais brasileiros ainda começavam suas aventuras pela publicação de romances traduzidos, não seria de se estranhar que a nossa literatura seguisse os passos da literatura europeia, mas, para o exigente Machado, esse movimento era condenável. 129

De qualquer forma, Machado de Assis também se aproveitou da grande divulgação de obras europeias para lê-las incansavelmente, e também se utilizar delas em suas obras, mas não da forma passiva que ele criticava. Não precisamos procurar muito na sua obra para encontrarmos os diálogos estabelecidos entre seus textos e os textos de Dumas, Hugo, Feuillet, entre vários outros da França e do mundo. Além dos exemplos implícitos de textos estrangeiros que permeiam Helena, Daniela Mantarro Callipo (2011) aponta o diálogo explícito que o romance de Machado estabelece com Manon Lescaut, do Abade Prévost e Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-Pierre. Nesse trabalho, a autora demonstra “que a construção da personagem Helena se faz por meio de um diálogo intertextual com esses dois escritores do século XVIII.” Baseada na teoria da intertextualidade, Callipo observa a forma pela qual as duas obras francesas aparecem em Helena com a função de “despistar” o leitor. “Ao confrontar Helena com Manon, símbolo da cortesã infiel, e com Virginie, modelo de castidade” (CALLIPO, 2011), Machado cria, aos olhos do leitor, uma personagem ambígua, e leva o leitor a permanecer até o fim do romance com a dúvida: Helena é Manon ou Virginie? E, essa dúvida, é uma forma muito especial de agregar significação para sua obra fazendo uso do elemento europeu, sem, com isso, tornar a obra uma cópia. Dos textos que nos propomos a analisar aqui, o “Instinto de nacionalidade” é o mais complexo, talvez por ser o menos antigo (foi escrito quatorze anos após “O Folhetinista”), portanto, quem noticia o estado da literatura nacional é agora o Machado de Assis que já havia escrito seu primeiro romance, Ressurreição (1872), e também já tinha publicado os Contos Fluminenses (1870), além de muitos textos críticos, algumas peças teatrais, poesias e algumas traduções. Na época desse texto (1873), as preocupações do autor haviam mudado, a excessiva europeização não era mais o único problema, existia, então, o problema inverso, o excesso de nacionalidade, ou uma nacionalidade idealizada. Essa questão não era nova, conforme já mencionamos, mas agora ela tinha tomado proporções muito maiores. Além de reutilizar o autor Basílio da Gama como exemplificação, outra passagem de “Instinto de nacionalidade” se assemelha muito a uma parte de “O passado, o presente e o futuro da literatura”. Seguem as duas passagens, primeiro em “O passado, o presente e o futuro da literatura”:

[...] é mais fácil regenerar uma nação, que uma literatura. Para esta não há gritos do Ipiranga; as modificações operam-se vagarosamente, e não se chega em um só momento a um resultado. (ASSIS, 2013, p. 64).

Em seguida no texto “Instinto de nacionalidade”:

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[...] Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo. (ASSIS, 2013, p. 429).

Nessa última passagem, Machado parece prever que a questão da universalidade e da cor local na literatura brasileira ainda levaria muito tempo para ser assimilada, já que ela passou pelo século XIX, no século XX supostamente encontrou o que Mário de Andrade chamaria de “estabilização de uma consciência criadora nacional” e, mesmo no século XXI, ainda não sabemos o limite entre o que é “nosso” e o que veio de “fora”, talvez porque isso envolva questões sócio-históricas profundas, algumas delas abordadas por Antonio Cândido em seu trabalho “Literatura e subdesenvolvimento” (1989). Junto com os exemplos que se repetem, a preocupação com a crítica reaparece em “Instinto de nacionalidade”, mas agora em outra perspectiva:

Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás mal formada ainda, restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nessas questões de poesia e literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo amor próprio [...]. (ASSIS, 2013, p. 429-430).

À questão da crítica (ou da não existência de uma), que ainda será retomada no texto, junta-se a desaprovação de Machado em relação à juventude literária que, para o auto, “nem toda ela terá meditado os poemas de Uraguai e Caramuru com aquela atenção que tais obras estão pedindo; mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados e amados, como precursores da poesia brasileira. [...]” (ASSIS, 2013, p. 430). Ao mesmo tempo que critica a juventude literária e nota os pontos fortes da geração de autores que cita, Machado também pontua o erro desses autores, ao mesmo tempo que pensa a antiga e atual situação da literatura brasileira:

[...] As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existia ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora. (ASSIS, 2013, p. 430).

Sabiamente, Machado demonstra-se preocupado em entender todas as gerações que o circundam, já que, “[...] nem tudo tinham os antigos, nem tudo temos os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum” (ASSIS, 2013, p. 441). A essa passagem, podemos juntar outra, que mostra o tom bilateral que o texto assume:

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Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (ASSIS, 2013, p.432-433).

O “Instinto de nacionalidade” é um texto que propõe um balanceamento entre a universalidade e a cor local na literatura, como exemplo, se pergunta “[...] se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.” (ASSIS, 2013, p. 432). Com base nesses apontamentos, podemos interpretar, por meio do “Instinto de nacionalidade”, que Machado pretendia uma literatura ambivalente, que tratasse de assuntos nacionais sem deixar de lado questões universais e sem inventar uma nacionalidade não condizente com a realidade do Brasil. Também queria uma juventude literária ativa, que soubesse ler criticamente os clássicos e arrancar-lhes o melhor, e uma crítica que lhes desse um rumo a seguir. Essa questão da crítica prevalece em dois dos textos analíticos de Machado de Assis vistos aqui, embora com uma pequena mudança. Ela é a solução proposta pelo autor para os problemas da literatura levantados. Em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, Machado de Assis menciona que a “influência poderosa da literatura portuguesa sobre a nossa, só podia ser prejudicada e sacudida por uma revolução intelectual”, já em “Instinto de nacionalidade”, o problema tanto da excessiva europeização quanto do regionalismo utópico da época, seria a falta de uma “crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países.” (ASSIS, 2013, p. 433). Nos dois casos, o que falta é uma porção pensante da população, que se dedique à análise tanto da literatura quanto da relação desta com a política e com a sociedade de uma forma geral. Na falta dessa porção pensante, o próprio Machado assume esse posto crítico, junto com o de escritor de literatura, analisando a produção de seu tempo à medida que põe em prática seu aprendizado. Percebemos, pelo desenvolvimento desses textos críticos de Machado de Assis analisados aqui, que as preocupações do autor em relação à literatura nacional sofreram certa mudança de polo, ou uma junção balanceada entre os polos. Em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, o texto se movimenta pelo receio de que nossa literatura mantenha-se “escravizada” pela literatura portuguesa e mundial. Em “O Folhetinista”, essa preocupação retorna, mesmo num ponto de vista um pouco diferente. Nesse caso a preocupação não se dirige mais diretamente a Portugal, mas à França, berço do folhetim. Em “Instinto de nacionalidade”, a tônica se inverte, e a preocupação se direciona mais efetivamente aos excessos de uma nacionalidade idealizada na literatura brasileira. Essas 132

aparentes mudanças nas concepções sobre a literatura não ocorreram simplesmente porque o autor mudou de ideias. Na verdade, a sua crítica evoluiu de acordo com os problemas literários de cada época, assim como “o regionalismo foi uma etapa necessária, que fez a literatura, sobretudo o romance e o conto, focalizar a realidade local” (CÂNDIDO, 1989, p.159). No início, o maior problema era a excessiva europeização da literatura, que Machado combate em seus dois textos críticos inicialmente levados em conta aqui. Em seguida, percebendo o movimento dos autores nacionais de evitar uma “invasão” da literatura europeia enquanto tentam criar uma literatura nacional, movimento que culminou nos nacionalismos exagerados (ou regionalismos pitorescos, para usar a expressão de Antonio Cândido), Machado novamente se coloca contra a concepção desses autores em “Instinto de nacionalidade”. Portanto, tendo escrito Helena três anos depois do Instinto de nacionalidade, dezessete anos depois de “O Folhetinista” e dezoito após “O passado, o presente e o futuro da literatura”, fica difícil não acreditar que Machado de Assis tenha construído o romance tendo em vista os preceitos estéticos que ele mesmo estipulou em sua crítica literária. Ou seja, valendo-nos desse contexto, podemos rever Helena pensando sua nacionalidade e seu diálogo com a literatura mundial. Podemos notar a “cor local” desse romance na sua relação com a história do país, na crítica aos senhores de escravos representados pelo Conselheiro Vale e, em seguida, por Estácio, e na relativização do pensamento senhorial pela personagem Helena (CHALHOUB, 2003). Também se pode notar o tratamento das questões nacionais nas passagens em que o escravo Vicente, pajem da protagonista, aparece também como elemento relativizador das concepções imutáveis do senhor Estácio. A personagem Helena, assim como seu pai Salvador e Vicente, simbolizam os dependentes que vivem dos favores dos senhores donos de escravos, e essas relações, já analisadas por Schwarz em outras obras de Machado, também são muito importantes para o entendimento das relações sociais no Brasil oitocentista. Helena também era uma personagem que representava a mulher brasileira em sua diversidade. Ela é uma espécie de representação da nova mulher e símbolo de um movimento feminista que dava seus primeiros passos no Brasil. Era inteligente e tinha sua autonomia, além de desafiar sutilmente a autoridade de seu protetor Estácio, embora também tivesse habilidades (tocava piano, falava outras línguas, andava a cavalo etc.) que eram impostas às mulheres da época para que lhes servissem como dote em um casamento. Ela também era uma mulher com características românticas, o que pode estar 133

ligado a um intuito de identificação das leitoras da época com essa protagonista, pensando no público-alvo dos periódicos da época2. Mesmo tratando de questões locais, Helena também não foge aos padrões europeus em termos de trama, mas essa ligação não se baseia na cópia. Machado de Assis sabia quem eram seus leitores (ou leitoras), sabia o que eles liam, sabia o que eles queriam ler, portanto, não podia deixar de tratar de assuntos que fossem lugar-comum na literatura de uma forma geral, por isso não poupou seu romance de assuntos como casamento por interesse, posições e imposições sociais, amores impossíveis, arrependimento, morte, entre outros, por isso Helena tem o tom dos dramas europeus, embora com várias ressalvas que lhe fazem obra essencialmente nacional. Por isso, Helena

[...] foi objeto de comentários e elogios em várias publicações. No jornal A Reforma e na Imprensa Industrial, foi alçado à condição de modelo do bom romance nacional e contra-exemplo do que Camilo Castelo Branco criticava como livros sonolentos, escritos numa linguagem “a suspirar mimices de sutaque”, referências às obras de José de Alencar, em particular, e à literatura brasileira em geral. (GUIMARÃES, 2004, p. 154).

De qualquer forma, não podemos nos deixar levar por análises precipitadas da obra de Machado de Assis anterior a Memórias póstumas de Brás Cubas. Não podemos concordar com afirmações como as de Agripino Grieco que diz que “Helena é inteiramente estruturada à maneira de França. Ainda muito Feuillet. Nos seus passeios a cavalo e nas suas expansões íntimas, a heroína segue as amazonas do romancista de Saint-Lô”. (GRIECO, 1960, p. 41). Certamente a obra dialoga com os romances de Feuillet e de outros contemporâneos europeus, até mesmo porque era o que os leitores (ou as leitoras) de seu tempo buscavam nos folhetins, entretanto, Machado de Assis soube dar ao leitor o que este queria ler ao mesmo tempo que também dava o que o leitor deveria ler. Helena dialoga com obras internacionais e se coloca em posição de igualdade estética em relação às obras canônicas do mundo. Com essa proposta cosmopolita, a obra também aproveita os modelos europeus mais apreciados aqui para efeito de atração dos leitores brasileiros, mesmo assim, a obra não deixa de discutir a história e a política do Brasil oitocentista. Antes de terminar esta análise, citamos o que um dos maiores estudiosos de Machado de Assis diz sobre o assunto:

Em Machado, juntam-se por um momento os dois processos gerais da nossa literatura: a pesquisa dos valores espirituais, num plano universal, o conhecimento do homem e da sociedade locais. Um eixo vertical e um eixo horizontal, cujas coordenadas delimitam, para o grande romancista, um

2 Para mais informações sobre o público leitor dos periódicos oitocentistas, ver: AZEVEDO, Sílvia Maria. Machado de Assis: entre o jornal e o livro. O Eixo e a Roda, v. 16, 2008, p. 168. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2013. 134

espaço não mais geográfico ou social, mas simplesmente humano, que os engloba e transcende. (CÂNDIDO, 1981, p. 115).

Assim como Antonio Cândido, Roberto Schwarz também investiga essa importante questão da obra machadiana. Analisando o texto “O punhal de Martinha” (1894), crônica de Machado de Assis que se apresenta como uma representação do pensamento de inferioridade brasileira em relação ao cânone, Schwarz argumenta o seguinte:

A mescla das dicções interioriza e encena a crise, que se resolve nas linhas finais, pela derrota: depois de indignar-se com a “desigualdade dos destinos”, que só recolhe e transmite o que está nos livros canônicos e ignora o que existe na realidade — leia-se o Brasil —, o escritor joga a toalha e toma o partido do opositor, o beletrista amestrado que ele tem dentro de si. “Mas não falemos mais em Martinha”, quer dizer, não falemos do Brasil. A conclusão não é para ser acatada. O procedimento machadiano do finale em falso convida ao reexame crítico da persona que está com a palavra. (SCHWARZ, 2006, p. 74).

Esses apontamentos nos mostram que Machado continuou pensando essa questão por muito tempo. Juntou-se à sua preocupação com a literatura nacional e sua relação com a literatura mundial a ironia fina que o autor moldou durante os anos. Como resultado, temos um autor e uma obra nacionalista e cosmopolita ao mesmo tempo; uma obra preocupada com a “cor local” e, igualmente, um patrimônio universal.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Crítica literária e textos diversos. In: AZEVEDO, Sílvia Maria; CALLIPO, Daniela Mantarro; DUSILEK, Adriana; (Orgs.). São Paulo: Editora Unesp, 2013.

AZEVEDO, Sílvia Maria. Machado de Assis: entre o jornal e o livro. O Eixo e a Roda, v. 16, 2008, p. 168. Disponível em: . Acesso em: 13 agosto 2013.

CALLIPO, Daniela Mantarro. Entre Manon e Virginie, Helena: presença de Bernardin de Saint-Pierre e do Abade Prévost em Helena, de Machado de Assis. In: RAPUCCI, Cleide Antonia; CARLOS, Ana Maria (Orgs.). Cultura e Representação - Ensaios. Cultura e Representação. Assis: Triunfal Gráfica e Editora, 2011. v. 1, p. 19-33.

CÂNDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: ______. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 140-162.

CÂNDIDO, Antonio. Um instrumento de descoberta e interpretação. In: ______. Formação da literatura brasileira. 6. Ed. : Itatiaia, 1981, V.II, pp. 109-118.

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CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

GRIECO, Agripino. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Conquista, 1960.

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SCHWARZ, Roberto. Leituras em competição. In: Revista Novos Estudos, n.75, jul. 2006, p.61-79.

TINHORÃO, José Ramos, 1928. Os romances folhetins no Brasil: 1830 à atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994. 136

AS FANTASIAS INDÍGENAS E A SENSUALIDADE FEMININA NOS CARNAVAIS DAS DÉCADAS DE 1960 E 1970

Ellen Karin Dainese MAZIERO1

Considerando que as imagens são fontes de representações sociais e culturais, este artigo pretende analisar algumas fotografias veiculadas na revista Manchete, nas décadas de 1960 e 1970, a respeito da participação das mulheres nos festejos carnavalescos. As fantasias usadas pelas folionas neste período permitiam um maior desnudamento dos corpos, resultado da transformação dos trajes, da revolução sexual e do próprio papel da mulher na sociedade. Vestimentas pouco comuns em décadas anteriores, como as de indígenas, que revelavam partes do corpo normalmente encobertas no cotidiano, passaram a ser mais adotadas pelas folionas durante a realização dos folguedos. Por meio da análise das fotografias, será possível verificar a forma como as mulheres utilizaram o ambiente dos festejos para manifestar condutas mais jocosas e como se apropriaram de determinadas temáticas, como a indígena, para celebrar os seus corpos. As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por transformações econômicas, políticas e sociais, que provocaram mudanças no papel da mulher e no próprio modo de fazer o carnaval. A intensificação dos movimentos de emancipação feminina e a revolução sexual propiciaram o questionamento dos valores morais vigentes e a expansão das possibilidades de realização da mulher, para além das funções idealizadas de esposa, mãe e dona de casa. A maior inserção da mulher em diversos espaços públicos, os movimentos sociais e as lutas empreendidas pelos movimentos feministas, que reivindicavam o direito da mulher ao prazer, ao controle do próprio corpo e à sexualidade, contribuíram para que as mulheres conquistassem e construíssem novos valores morais e sociais. Assim, algumas mudanças significativas ocorreram, como a desvinculação entre sexualidade e maternidade, a menor importância atribuída à virgindade como valor moral a ser preservado, a maior aceitação do trabalho fora de casa e o desejo de autonomia financeira pela mulher. No entanto, até meados da década de 1960, as normas sociais e os padrões estabelecidos nas décadas anteriores continuavam ditando as regras de comportamento, de forma que as mulheres continuavam sob a mira da aprovação social e a sua profissionalização ainda era vista com restrições, tal qual a manifestação de sua sexualidade. Apesar da ampliação de visões que sinalizavam para mudanças quanto ao

1 Doutoranda - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected] 137

papel feminino, ainda era esperado que a mulher se casasse, tivesse filhos e pudesse se dedicar integralmente à família. Embora também sua participação no mercado de trabalho estivesse em ascensão, o papel de mãe, esposa e dona de casa continuava prioritário. A chegada da pílula anticoncepcional ao Brasil nos primeiros anos da década de 1960 contribuiu para a dissociação entre sexualidade e procriação, até então aceitos somente no âmbito da instituição matrimonial. A chamada “revolução sexual”, sentida mais intensamente no Brasil na década de 1970, promoveu uma flexibilização dos costumes, desse modo, comportamentos anteriormente condenados tornaram-se recorrentes. Casais não casados eram cada vez mais aceitos, já podendo circular publicamente, carícias generalizavam-se, beijos mais intensos passavam a ser sinônimo de paixão, a separação, antes motivo de crítica social, tornava-se solução para um casamento infeliz, e as mulheres começavam a poder desobedecer às normas sociais, parentais e familiares (PRIORE, 2012, p. 301-302). As revistas retratavam em suas páginas muitas das conquistas femininas e, assim, contribuíam para a construção de novas representações quanto aos papéis desempenhados pelas mulheres. A respeito das mudanças vivenciadas pelas mulheres no período, Joana Maria Pedro considera que talvez a maior conquista feminina tenha sido o reconhecimento de outras formas de ser mulher, para além das funções ditas “naturais” de esposa, mãe e dona de casa (PEDRO, 2012, p. 256). No entanto, muitas representações que prevaleceram em épocas anteriores, e pareciam superadas, insistiam em aparecer nas revistas nas décadas de 1960 e 1970. De acordo com Mary Del Priore, as revistas femininas continuaram a investir na figura da mãe e da dona de casa, embora enfrentassem o desmoronamento da figura da “rainha do lar”, tão forte nas décadas anteriores (PRIORE, 2012, p. 308). Apesar do reconhecimento de outras maneiras de ser mulher, os papéis tradicionais relacionados ao feminino ainda continuavam sendo apregoados no período. O carnaval – considerado um tipo de festejo naturalmente libertador das convenções sociais – cumpria um papel primordial na transgressão de hábitos e costumes tradicionais e na possibilidade de assunção pelas mulheres de sua sensualidade. Os festejos carnavalescos, por terem tal conotação, contribuíram igualmente para afirmação dos novos valores morais em construção na época. É importante ressaltar, contudo, que mesmo diante das conquistas alcançadas pelas mulheres no período abordado, suspeições quanto ao desnudamento do corpo feminino continuaram persistindo. O Brasil viveu, em grande parte do período selecionado, sob uma ditadura militar que colocava obstáculos à liberdade de expressão e à manifestação de comportamentos que pudessem significar uma afronta aos padrões morais e sexuais estabelecidos. O biquíni, por exemplo, cada vez mais usado nos festejos, tornou-se alvo de proibições da polícia nos anos de 1962, 1965, 1973 e 1975 138

(MOURA, 1986, p. 20-44), apenas para citar alguns, embora já fizesse parte da realidade das praias brasileiras desde a segunda metade da década de 1950. Outra tentativa de regular o corpo feminino era a quase exigência do uso da bata para as mulheres grávidas que quisessem frequentar as praias. À mulher não era ainda permitido, pelo menos no início da década de 1970, exibir a gravidez sem a bata que descia do biquíni e escondia a barriga grávida, sinal da prática da sua sexualidade. Um exemplo disso é o fato de a atriz Leila Diniz ter sido duramente criticada por posar grávida de biquíni na praia de Ipanema, em 1971. A atitude de Leila fora entendida como um atentado à sacralidade da maternidade, manifestado na roupa escolhida para as fotos, pouco condizente com a nobre missão de ser mãe. Este acontecimento é significativo das suspeições que ainda recaíam sobre o corpo feminino no início da década de 1970 (SANT’ANNA, 2012, p. 119). A vestimenta foi um dos principais canais pelos quais as mulheres manifestaram sua emancipação, e nas décadas de 1960 e 1970 a roupagem usada pelas folionas foi se tornando cada vez mais sumária, como resultado das transformações dos trajes e do próprio papel da mulher na sociedade. As fantasias luxuosas e ornamentadas, típicas dos festejos passados, cederam lugar, a partir da década de 1950, a roupas mais leves, como shorts, blusas tomara que caia, baby dolls e vestimentas que permitiam explorar a sensualidade por meio do desnudamento de determinadas partes do corpo, como as pernas e a barriga (MAZIERO, 2011, p. 35). Muitas foram as cartas enviadas pelos leitores à revista Manchete a respeito da cobertura dos festejos carnavalescos empreendida pelo periódico. Parte significativa das cartas criticava a nudez presente no carnaval carioca e, sobretudo, a ousadia da revista em publicar tais fotografias. Um leitor, por exemplo, em carta escrita em 1961, fazia críticas ao “nudismo parcial que é levado aos lares brasileiros” a ponto de mandar juntamente com sua carta o exemplar da revista comprada. Além disso, manifestava abertamente o desejo de que a revista entrasse “no caminho da boa leitura, aceita nos lares por todos” (O LEITOR..., 18 mar. 1961, p. 04). Apesar de o escrito ser pertencente a um período ainda notadamente conservador da sociedade brasileira – início da década de 1960 – em que prevaleciam regras de comportamento muito estritas, é possível encontrar comentários semelhantes a esse no final da década de 1960 e até mesmo na década de 1970. Em 1968, uma leitora indignada com as imagens vistas na revista Manchete, escreve para o periódico a fim de demonstrar o seu espanto com o carnaval praticado no Rio de Janeiro:

Faz 15 anos que deixei o Brasil. Fui criada em São Paulo e vivi sete anos no Rio. Amigos meus continuam a mandar-me a sua revista, que recebo com prazer. Fico, no entanto, horrorizada com as fotografias dos foliões 139

carnavalescos. Minha filha de nove anos estava ao meu lado quando eu folheava um desses números. Deixaram-me encabulada todos aqueles umbigos de fora. O que aconteceu com a tirolesa, o chinês, a espanhola? Estou interessada em saber se o nice clean fun de outrora desapareceu para ceder ligar a uma exibição de mau-gosto? (O LEITOR..., 16 mar. 1968, p. 135).

Em resposta à carta da leitora, Manchete argumenta que de fato muita coisa mudou, “não só aqui, e não só no carnaval”. No comentário da leitora fica perceptível que mesmo em se tratando de uma festa carnavalesca, determinados comportamentos e trajes eram vistos como inadequados. O desnudamento do corpo feminino (mesmo que parcial) não era entendido por muitos como forma de extravasamento e manifestação da sexualidade, mas somente como exibição, sem significação alguma. É importante frisar, como bem salientou Mary Del Priore, que os adultos dos anos 1960, e até mesmo dos anos 1970, foram educados por pais extremamente conservadores e regras de comportamento muito rígidas lhes deviam ter sido inculcadas (PRIORE, 2012, p. 302). Muitas mudanças, sobretudo as que se referem aos novos papéis sociais assumidos pelo feminino e a assunção pelas mulheres do seu corpo e da sua sexualidade, não foram aceitas tão facilmente como poderia se imaginar. Vestir-se de indígena durante os festejos momescos significava, portanto, para as mulheres, a possibilidade de evidenciar mais o corpo – comumente sujeito às diversas imposições – e ter o consentimento para tal atitude por estar trajando uma fantasia. Foi especialmente a partir da década de 1960 que as fantasias inspiradas em temas indígenas, pouco usadas pelos foliões em épocas anteriores por revelar partes do corpo normalmente encobertas no cotidiano, começaram a aparecer em maior número nos folguedos de salão. Resultado da transformação dos trajes, da revolução sexual e do próprio papel da mulher na sociedade, as fantasias, de forma geral, sofreram modificações, ganhando novas formas e significados. Dentro desse contexto, a escolha de trajes indígenas para brincar o carnaval não se dava por acaso, já que possibilitava às mulheres o desnudamento de seus corpos e a manifestação de sua sensualidade, tantas vezes objeto de regulações e proibições. O desnudamento parcial do corpo é perceptível nas imagens a seguir. Ambas as mulheres, trajando fantasias de inspiração indígena, demonstram alegria e descontração ao brincar o carnaval no famoso Baile das Estrelas, realizado no Hotel Glória. Este festejo, promovido todos os anos no mesmo local, era conhecido pelo clima de maior licenciosidade, manifesto nas atitudes e nos trajes mais ousados, bem como pela presença de mulheres bonitas. Na Figura 1, datada de 1963, a identificação da fantasia de indígena ocorre especialmente pelo imenso cocar usado pela foliona e pelas penas escolhidas para montar o seu traje carnavalesco. Já na Figura 2, igualmente de 1963, a mulher travestida de 140

indígena, mais próxima do estilo norte-americano, aparece em um clima de maior liberdade, divertindo-se sobre uma mesa e exibindo-se ao movimentar seu corpo.

Figura 1 – Foliona fantasiada de indígena no Figura 2 – “Indígena” sobre a mesa no Baile Baile das Estrelas do Hotel Glória. das Estrelas do Hotel Glória. (GLÓRIA..., 16 mar. 1963, p. 70) (GLÓRIA..., 16 mar. 1965, p. 70)

Nos festejos momescos da década de 1960 e especialmente nos da de 1970, as folionas que optaram pelas fantasias indígenas aderiram, de certa forma, à moda praiana, como é possível perceber na fotografia selecionada a seguir, tirada no luxuoso Teatro Municipal. A Figura 3, datada de 1965, apresenta uma mulher de biquíni com alguns adereços que fazem referência ao universo indígena como, por exemplo, o singelo cocar e as penas. É possível conjecturar que aquele tipo de “fantasia” se apresentava adequado para a manifestação da sensualidade feminina, embora a polícia tivesse rigorosamente proibido o uso do biquíni nos salões naquele ano. Esse dado, até mesmo evidencia a forma como as mulheres transgrediam normas de conduta e buscavam no carnaval formas mais explícitas para extravasar a sua sensualidade e colocar em xeque valores e costumes tradicionais. 141

Figura 3 – Mulher de biquíni de inspiração indígena no Baile do Teatro Municipal. (O BRASIL..., 13 mar. 1965, p. 19)

As revistas ilustradas, como a Manchete, procuravam publicar imagens e reportagens sobre o carnaval que pudessem atrair os leitores, ávidos em ter acesso a fatos inusitados e às melhores imagens dos festejos. Embora se saiba que, muitas vezes, essas fotos eram posadas e se reconheça a participação do jornalista na seleção da imagem, é possível afirmar que passou a haver uma maior disposição das mulheres em se deixarem fotografar em poses mais ousadas, e tais imagens serviam para a imprensa corroborar a ideia de carnaval como quebra da ordem. Já a década de 1970, período de ampliação das demandas do movimento feminista brasileiro, que propunha ir além da luta pela igualdade jurídica de direitos e por um maior espaço das mulheres no mercado de trabalho, para defender, entre outras coisas, o direito das mulheres em decidir sobre suas vidas e seus corpos, possibilitou ainda um maior desnudamento. Neste período, o biquíni já era amplamente usado nas praias cariocas, bem como nos folguedos carnavalescos. O polêmico traje de banho serviu como base para muitas “fantasias” vestidas pelas mulheres nos bailes de salão, mesmo em festejos de elite, como os do Teatro Municipal. Ainda assim, tornou-se alvo de atenções e proibições da polícia, como em 1973 e 1975, e objeto de controle pelos defensores da “moral e dos bons costumes”. O célebre dramaturgo Nelson Rodrigues, em entrevista para a revista Manchete, ainda em 1966, condenava o uso do biquíni nas praias cariocas. Segundo ele:

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O biquíni é uma solução suicida como roupa de banho, porque destrói, varre todo o suspense, todo o mistério que a nudez precisa ter para significar alguma coisa. Se não houver mistério, nem suspense, a nudez não significa nada. [...] A mulher que saí por aí, levantando o seu biquíni como um troféu, está dilapidando a sua nudez. E a consequência é que nunca a mulher foi tão pouco desejada quanto em nosso tempo. Nunca foi tão humilhada pela indiferença masculina. Eu diria que o amor hoje em dia começa pelo tédio. A origem desse tédio está na banalização da mulher. (DIÁLOGOS..., 19 mar. 1966, p. 96-98).

Em 1969, em entrevista à revista Veja, Nelson condenou igualmente o uso do biquíni pelas mulheres, mas agora se referindo também à sua utilização nos festejos carnavalescos:

O carnaval está morto pra burro. E o que mata o carnaval é o impudor. Antigamente, quando havia pudor, o carnaval era a festa mais erótica do mundo. Hoje, o pudor é um anacronismo intolerável. E, então, o carnaval está morto! [...] No tempo em que a nudez tinha mistérios, tinha suspense, era um dos mais altos bens da mulher. [...] O biquíni acabou com esse encanto [...]. Quer dizer, a nudez do biquíni tem a maior solidão da Terra: a mulher mais invisível do mundo é a mulher de biquíni. (ONDE..., 24 set. 1969, p. 64-65).

Nelson Rodrigues, que teve várias de suas peças rotuladas como imorais e obscenas, parecia não compreender a redefinição da moral e a liberação das mulheres e dos costumes. Em ambas as entrevistas, o dramaturgo vincula a nudez feminina à existência do desejo masculino, de forma a tornar ilegítima a nudez como pura manifestação da sexualidade da mulher, ou seja, sem estar necessariamente relacionada a um desejo prévio. As Figuras 4 e 5, captadas no carnaval realizado no Teatro Municipal em 1972, demonstram versões mais elaboradas de fantasias de inspiração indígena, embora também tivessem como base o polêmico biquíni. É importante ressaltar que bailes como os do Municipal eram voltados para as camadas mais elevadas da sociedade e contavam, na maior parte das vezes, com um sistema de segurança mais rigoroso, o que permitia a manifestação de comportamentos mais ousados por parte dos foliões, que encontravam nesses locais ambientes mais seguros. 143

Figura 4 – “Índia” no luxuoso Baile Figura 5 – Folionas ricamente trajadas de do Teatro Municipal. indígenas no carnaval do Teatro Municipal. (MUNICIPAL..., 26 fev. 1972, p. (MUNICIPAL..., 04 mar. 1972, p. 118) 102)

O biquíni, ora proibido ora liberado, tornou-se uma forma de resistência e transgressão das mulheres, que viam no carnaval uma forma de festejar o corpo e extrair o prazer que ele é capaz de proporcionar. No entanto, não era somente nos bailes fechados que o ousado traje de banho estava presente, mas também no carnaval de rua, como no desfile da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, de 1973. Neste ano, a escola prestou uma homenagem ao universo folclórico da jornalista e cronista Eneida e, para tanto, trouxe para a avenida um grande número de Iaras, botos e foliões fantasiados de índios. Abaixo, mulher trajada de indígena de inspiração amazônica, ajudou a contar o enredo da escola (Figura 6).

Figura 6 – Foliona no Desfile da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. (RIO..., 17 mar. 1973, p. 16) 144

Considerado um tipo de festejo naturalmente libertador das convenções sociais, o carnaval permitia a manifestação de tudo aquilo que devia ser ocultado no cotidiano, como a nudez feminina, a exibição da sexualidade, entre outros aspectos. Assim, comportamentos femininos já existentes, mas que ainda eram encarados como estigmas no meio social, encontravam nesse ambiente festivo espaço para a sua expressão. Portanto, as fantasias escolhidas, como as de indígenas, não serviam somente como vestimentas necessárias para a folia, mas também como forma de manifestar desejos e extravasar uma sensualidade tantas vezes sujeita a repressões.

REFERÊNCIAS

DIÁLOGOS impossíveis: Nelson Rodrigues e Guilherme Guimarães. Manchete, Rio de Janeiro, p. 96-98, 19 mar.1966.

GLÓRIA: onde sobem as Estrelas. Manchete, Rio de Janeiro, p. 70, 16 mar.1963.

MAZIERO, Ellen Karin Dainese. Mundo às avessas: mulheres carnavalescas na ótica dos filmes de chanchada e da imprensa na década de 1950. 2011.154f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2011.

MOURA, Roberto M. Carnaval: da Redentora à Praça do Apocalipse. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 20-44.

MUNICIPAL: o barato dos milhões. Manchete, Rio de Janeiro, p. 102, 26 fev. 1972.

MUNICIPAL superstar. Manchete, p. 118, 04 mar. 1972.

O BRASIL dos 400 anos. Manchete, Rio de Janeiro, p. 19, 13 mar. 1965.

O LEITOR em Manchete. Manchete, Rio de Janeiro, p. 04, 18 mar. 1961.

O LEITOR em Manchete. Manchete, Rio de Janeiro, p. 135, 16 mar. 1968.

ONDE está o biquíni? Veja, São Paulo, p. 64-65, 24 set. 1969.

PEDRO, Joana Maria. Corpo, prazer e trabalho. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 238-259.

PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

RIO: o Império encantado do samba. Manchete, p. 16, 17 mar. 1973.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Sempre bela. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 105-125. 145

FIGURAÇÕES DO ÍNDIO NA LITERATURA JUVENIL: UMA ANÁLISE DA OBRA LENDAS E MITOS DOS ÍNDIOS BRASILEIROS, DE WALDEMAR DE ANDRADE E SILVA

Eliane Aparecida Galvão Ribeiro FERREIRA1 Penha Lucilda de Souza SILVESTRE2

Introdução

Este texto tem por objetivo apresentar uma análise do livro Lendas e mitos dos índios brasileiros, escrito e ilustrado por Waldemar de Andrade e Silva, na qual se considera, com base nos fundamentos da Estética da Recepção, como se estabelece a dialogia com o leitor. Busca-se, ainda, observar como avultam as figurações do índio nesta produção contemporânea destinada ao público juvenil. Para tanto, parte-se do pressuposto de que a obra é atraente para o jovem, pois estabelece interações com ele tanto no plano verbal, quanto no não-verbal. Neste texto, constrói-se a hipótese de que a obra é emancipatória para o jovem, uma vez que o leva à reflexão acerca da importância da nossa cultura, por meio do reconhecimento do rico imaginário indígena que a compõe. Além disso, sua leitura faculta a esse leitor reconhecimento da memória cultural que compõe sua própria identidade. Na atualidade, segundo Andreas Huyssen (1997, p. 20), a valorização da memória é sinal potencialmente saudável de contestação, sobretudo, do hiperespaço informacional, e uma “[...] expressão da necessidade humana básica de viver em estruturas de temporalidade de maior duração.” Conforme Iser (1996), para que haja interação entre texto e leitor, uma obra precisa ser comunicativa. Por sua vez, para que a leitura resulte em interpretação, faz-se necessário que o leitor projete a expectativa e a memória uma sobre a outra. Para o estudioso (1996), o papel da leitura é o de promover sínteses que constituirão correlatos que, por sua vez, impulsionarão expectativas. Por meio desse processo, o receptor atualiza e modifica o objeto, desenvolvendo novas expectativas. Desse modo, alternando “[...] o ponto de vista de uma perspectiva de apresentação para outra, o texto se divide na estrutura de protensão e retenção [...]”. (ISER, 1999, p. 55). Nesse contexto, o leitor reconsidera seus conceitos prévios e amplia seus horizontes de expectativas. Uma obra é atraente para o leitor quando

1 Docente - Departamento de Linguística - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected] 2 Programa Nacional de Pós-Doutorado – Univ. Estadual de Maringá – Av. Colombo, 5790, Maringá, PR – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 146

suscita comunicação, ou seja, quando o convoca à participação pela projeção imagética e reflexão crítica. A obra Lendas e mitos dos índios brasileiros (1999) congrega 24 lendas e histórias indígenas sobre a criação do mundo, seus deuses e o surgimento entre os homens das dádivas destes, como a mandioca, o guaraná, o fogo, o fuso, entre outras. Justifica-se, então, o título do livro. Dessas histórias, 16 foram recolhidas e interpretadas pelo autor, e oito adaptadas do livro Xingu: os índios, seus mitos, de Cláudio Villas Bôas e Orlando Villas Bôas (1990). Desse modo, as narrativas que compõem a obra trazem um universo marcado pela magia, pela sabedoria e pelo mistério da existência humana, bem como pela constituição do mundo. O livro, dividido em duas partes, apresenta, na primeira, lendas e mitos pesquisados e interpretados por Andrade e Silva, com a indicação das respectivas tribos indígenas de origem: “Mundo novo: o paraíso terrestre” (Kaiapó); “Iguaçu: as cataratas que surgiram do amor” (Kaiangang); “Mandioca: o pão indígena” (Tupi); “Guaraná” (Maués); “Mumuru: a estrela dos lagos” (Munduruku); “Yara: a rainha das águas” (Tupi); “Thaina Khan: a estrela da amanhã” (Karajá); “Cervo Berá: o troféu do amor” (Tupi); “Irapuru: o canto que encanta” (Maués); “Potyra: as lágrimas eternas” (Tupi); “Tucumã: o surgimento da noite” (Tupi); “Coacyaba: o primeiro beija-flor” (Maués). “Poronominaré: o dono da terra” (Baré); “Xingu: a formação das tribos” (Kamaiurá); “Begorotire: o homem-chuva” (Kaiapó); “O menino e a onça: como os caiapós conquistaram o fogo” (Kaiapó). Na segunda parte, apresentam-se oito narrativas que também indicam as tribos indígenas de origem: “Mavutsinim: o primeiro homem” (Kamaiurá); “Mavutsinim: o primeiro kuarup, a festa dos mortos” (Kamaiurá); “Kuát e Iaê: a conquista do dia” (Kamaiurá); “Igaranhã: a canoa encantada” (Kamaiurá); “Arutsâm; o sapo astucioso” (Kamaiurá); “Sinaá: inundação e fim do mundo” (Kamaiurá); “Iamulumulu” (Kamaiurá); “Iamauricumás: as mulheres sem o seio direito” (Kamaiurá). Suas histórias apresentam relatos sensíveis e comoventes que explicam o surgimento do mundo e também questionam a ação nefasta do homem branco sobre a vida selvagem. Neste viés crítico, podemos ler o texto “Mundo novo: o paraíso terrestre”, o qual trata da nação indígena dos Kaiapós, habitantes de uma região “[...] onde não havia o Sol nem a Lua, tampouco rios ou florestas, ou mesmo o céu azul.” (ANDRADE E SILVA, 1999, p. 12). Um dia, um dos índios, ao perseguir um tatu durante uma caçada, adentra um imenso buraco cavado pelo animal na terra. Por meio dessa entrada, ele descobre o paraíso e relata as maravilhas ao seu povo. O pajé, então, permite que todos sigam o tatu e desçam pela cova ao paraíso terrestre, pois “Lá seria o magnífico Mundo Novo, onde todos viveriam felizes” (ANDRADE E SILVA, 1999, p.12). O texto mantém uma relação intertextual com a mitologia, como também dialoga com contos ou lendas populares. Suas ilustrações 147

primitivas são belíssimas e artísticas, por isto conferem tanto atmosfera ao relato como ampliam o imaginário do leitor, além de remeterem à cosmogonia. Além disso, pela riqueza de traços, exploração de cores e texturas, bem como interação com o leitor, elas são dialógicas, provocadoras e, por isso, ampliam as significações do texto verbal. A apresentação do livro fica sob a responsabilidade de Waldemar de Andrade e Silva que registra seus dados biográficos e relata que, em 1944, entra em contato com os irmãos Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Bôas, momento em que pôde acompanhar os trabalhos destes na missão Roncador-Xingu. Ambos pretendiam buscar a criação de povoamento civilizatório, visto que a preocupação com o índio estendia-se à pacificação das comunidades selvagens daquela localidade. Pelas experiências da infância e contatos com pessoas comprometidas com a condição do índio, Andrade e Silva o elege como mote para sua criação artística. Em 1971, passa a conviver com tribos indígenas no Xingu, observando a vida na sua condição mais íntima. Afirma que a vida “[...] no Xingu constitui um espetáculo de rara beleza. Logo ao amanhecer, quando o catipuruí canta na cumeeira das habitações de sapé, os índios, como que brotando da terra, levantam-se para viver um novo dia” (ANDRADE E SILVA, 1999, p. 8). Assim, o dia começa, cada índio, despreocupadamente, realiza o seu trabalho: o plantio, a colheita, a caça, a pesca, o jirau até a noite chegar. A noite chega como em quaisquer outros lugares do mundo, mas no Xingu ela surge misteriosa. Os índios permanecem no centro da aldeia e ao lado da fogueira contam histórias diversas, “[...] de magia e de heróis míticos. Elas envolvem o bem e o mal, vida e morte, dia e noite, água e fogo, Sol e Lua, terra e infinito, estrelas e cometas, além de florestas, trovões, relâmpagos, chuvas, homens, animais, pássaros, insetos, peixes, sonhos e espíritos” (ANDRADE E SILVA, 1999, p. 8). Essa enumeração de elementos que circulam as narrativas faz parte das criações artísticas e das festividades, como também dos rituais da tribo. A biografia do autor, disposta na apresentação do livro, confere-lhe discurso de autoridade pela sua busca constante da cultura indígena e seu empenho na produção primitivista. A introdução, escrita pela psicoterapeuta Joya Eliezer, é atraente para o leitor, pois justifica a produção do autor, bem como enfatiza o gosto que temos em nos depararmos com o “contador de histórias” que nos enreda e, no seu discurso, nos revela tanta beleza (ELIEZER, 1999, p. 10). Eliezer aborda a contação de histórias, descrevendo a magia que se incorpora na voz e no corpo do contador, e como os fios das palavras vão se entrelaçando e se constituindo em um universo fictício, que traz à tona uma série de fatos da vida, da existência e da relação do homem com a natureza em um estado primitivo e atemporal. Eliezer salienta a importância do trabalho de Waldemar, alegando que este 148

valoriza a estética das narrações indígenas e cuida do simbolismo de cada conto, sem perder de vista os aspectos artísticos, culturais e históricos. O prefácio, escrito por Orlando Villas Bôas, enaltece o trabalho artístico de Waldemar de Andrade e Silva, e desperta a curiosidade do leitor para as histórias dispostas no livro, produzindo atmosfera adequada à leitura:

Bem no centro do nosso país, na região cortada pelos formadores do caudaloso Xingu, lá onde as águas correm tranquilas nos remansos, se apressam nos rebojos, se batem nos pedrais das corredeiras, ou então volteiam nas praias brancas do rio, vivem duas dezenas de tribos indígenas. (VILLAS BÔAS, 1999, p. 11).

Villas Bôas, como conhecedor do Xingu em todos os seus âmbitos, escreve sobre a peculiaridade do Alto Xingu, pátria dos índios, considerada uma grande “ilha” que permanece isolada e “insensível à passagem dos séculos”. Ele explica que o tempo para o índio é diferente do tempo em que vivemos, pois não “[...] existem meses, anos, dias, semanas. Existe, isto sim, o fluir silencioso do tempo, e ele, integrado ao meio, vivendo o presente, deixa-se levar à deriva qual uma folha na correnteza.” (VILLAS BÔAS, 1999, p. 11). Nesse movimento, Waldemar capta as cores, interpreta e registra o universo de Xingu. Para tanto, apropria-se de cores e letras. E, nós, leitores, a partir dos textos introdutórios, somos levados a adentrar este mundo marcado pelo encanto e pela magia. Um mapa, ilustrado pelo autor, encerra as histórias, indicando, por meio de uma legenda com nomes e animais-símbolo, onde se localizam no Brasil cada tribo indígena. Após esse mapa, aparece um glossário com termos indígenas, empregados nas histórias, e técnicos, usados nos paratextos. Fecha a obra uma extensa bibliografia que revela as pesquisas do autor, bem como convoca o leitor a outras buscas sobre o assunto. Justifica-se a análise desta obra, pois possui excelente projeto gráfico-editorial, explora com consistência as possibilidades estruturais das histórias lendárias e míticas, bem como as amplia com a inclusão de ilustrações dotadas de trabalho estético. Assim, pela dialogia entre texto verbal e não-verbal, a obra propicia para o leitor uma experiência significativa de leitura autônoma ou mediada pelo professor. Além disso, ela se apresenta, em sua abordagem, como um meio de reconhecimento do rico imaginário indígena que compõe nossa cultura.

A identidade nacional e a memória popular: representações literárias do índio

O livro aborda tema recorrente na literatura, qual seja a questão da identidade nacional e da memória popular que guarda traços da constituição do nosso país. Justifica-se a classificação como recorrente para a temática, se lembrarmos as primeiras cartas de 149

Caminha escritas a bico de pena à moda portuguesa e enviadas ao reino de Portugal. De certo modo, há uma tentativa de registrar e documentar algo que caracteriza a identidade de um povo, sobretudo do povo indígena que aqui vivia tranquilamente em um espaço distante das grandes metrópoles e do desenvolvimento urbano, o qual se ampliava no mundo civilizado europeu. Assim, embora a história oficial e o retrato do país tenham se iniciado com o registro escrito nas letras portuguesas, a obra de Andrade e Silva (1999) demonstra que muitas histórias já perpassavam oralmente pelos territórios da terra de Santa Cruz. A história em registro escrito tem um marco para o mundo que se dizia civilizado. Entretanto, os habitantes das terras brasileiras viviam em um estado outro, diferente dos anseios do mundo europeu, pois a vida “[...] era uma tranquila fruição da existência, num mundo dadivoso e numa sociedade solidária” (RIBEIRO, 1995, p. 47). Assim, quando os europeus adentraram as terras brasileiras, os índios os perceberam “[...] como um grande acontecimento espantoso, só assimilável em sua mítica do mundo. Seriam gente de seu deus sol, o criador – Maíra –, que vinha milagrosamente sobre as ondas do mar grosso” (RIBEIRO, 1995, p. 47). Essa cena era de difícil interpretação para o olhar indígena. Posteriormente, a visão idílica que se instaurou com a chegada do colonizador dissipou-se lentamente, pois há uma anulação e reversão “[...] no seu contrário: os índios começavam a ver a hecatombe que caíra sobre eles. Maíra, seu deus estaria morto? Como explicar que seu povo predileto sofresse tamanhas provações? (RIBEIRO, 1995, p. 47). Muitos preferiam morrer a permanecer vivos diante dos espantosos acontecimentos. De um lado, o português não compreendia tanta beleza e tanta vida inútil: “Que é que produziam? Nada. Que é que amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só coubesse viver” (RIBEIRO, 1995, p. 45). De outro lado, “[...] aos olhos dos índios oriundos do mar oceano pareciam aflitos demais. Por que se afanavam tanto em seus fazimentos? Por que acumulavam tudo, gostando mais de tomar e reter do que dar, intercambiar?” (RIBEIRO, 1995, p. 45). Desse modo, podemos notar o quanto é necessário apreender a cultura de cada povo e em cada tempo. Os índios, conforme assinala Darcy Ribeiro (1995), conheciam a natureza e havia um espírito para cada coisa. Eles não sentiam necessidade de furtar objetos alheios. Para a aprendizagem dos fatos cotidianos ou dos grandes eventos, ou mesmo das passagens significativas experienciadas pelos sujeitos em diferentes fases da vida, evocava-se a presença dos mais velhos. Estes guardavam um modelo, uma herança e uma tradição. Essa tradição ou costumes podem ser percebidos tanto nos estudos da Sociologia, da Antropologia e da História, quanto na história da produção literária brasileira. Isso tanto com base nos estudos teóricos e críticos, como nas produções romanescas, uma vez que o Romantismo traz à tona esse caráter não apenas dos costumes e do passado, mas 150

sobretudo o valor mítico que emana das criações indígenas e da busca de identidade nacional. Dessa maneira, Cândido (1997, p. 20) assinala a importância significativa da utilização do tema indígena em meados do século XIX, visto que: “Nós aqui temos os nossos mitos: gênios dos rios, lagos, matas, montes e vales”3. E conclui numa tirada que revela o sentido de afirmação particularista do indianismo. Prossegue, ainda, que se tem “[...] em sobejo, só nos faltam os pincéis com que traçar os formidáveis quadros d’Ossian, Faust e Ivanhoé”. Os estudos voltados à produção literária para a infância e a juventude configuram-se como que paralelos a essas preocupações. Sendo assim, tanto na produção literária dirigida aos jovens leitores quanto na constituição da produção romântica, notamos que há uma valorização da cultura popular e do folclore em suas inúmeras formas de manifestações. Além disso, vale sublinharmos, de acordo com Regina Zilberman e Marisa Lajolo (2003), que a gênese da literatura infantil está intimamente ligada aos contos e aos mitos, visto que Charles Perrault, em 1697, lançou Contos da mamãe gansa, que tratava de histórias advindas da cultura popular. Essas histórias milenares atravessaram os séculos e permanecem no imaginário infantil, sendo recontadas conforme a organização social de cada comunidade, estado ou país. Zilberman e Lajolo (2003), em Literatura infantil brasileira: histórias & histórias, ao traçarem o panorama geral da vertente em pauta, assinalam os aspectos temáticos e históricos desde o início do século XIX até a produção contemporânea. Na década de 1940, as estudiosas observam que o índio desempenhou um papel auxiliar do aventureiro branco, mostrando-se cordial e colaborador, ajudando-o a alcançar os seus objetivos. Essa figura boa pode ser encontrada na personagem Pixuíra, no Roteiro dos Martírios, ou Saporé, no texto de Baltazar de Godói Moreira, intitulado Curumim sem nome. Luiz Gonzaga de Camargo Fleury também apresenta personagem indígena aliada aos portugueses nas obras O curumim do Araguaia e Araci e Moacir. Para Zilberman e Lajolo (2003, p. 107), na representação do índio “[...] se completa a imagem da conquista, cuja consolidação chocava-se com uma política que deveria se comprometer com a preservação das populações indígenas.” Daí a necessidade de contornar a situação sem provocar um ferimento nos sentimentos humanitários. Sendo assim, “Unicamente, pela desumanização do índio, que, desprovido de traços que possam identificar seu lado humano, dissolve-se na natureza. Dessa maneira, pode ser exterminado” (ZILBERMAN; LAJOLO, 2003, p. 107). Então, privilegiava-se o seu aspecto selvagem, por isso mostrava-se somente um lado agressivo em sua representação literária. Todavia, desconsideravam-se os aspectos culturais, os rituais e a explicação cabível das ações

3 “Citação de Carlos Miller, “Um fragmento do romance de A...”, BF, I, n. 21, p.7.” (CÂNDIDO, 1997, p. 20). 151

indígenas que eram assolados em seu próprio habitat natural. Jerônimo Monteiro, por sua vez, no texto Corumi (1956), desconstrói o estereótipo do índio violento e o representa em consonância com a natureza.

Representações dos índios na coletânea de Andrade e Silva

Ao refletirmos sobre as coletâneas ou livros que trazem narrativas folclóricas e histórias milenares, notamos que estes guardam o segredo da humanidade, atravessando gerações e gerações, sobretudo as narrativas míticas. Especificamente, o texto Lendas e mitos dos índios brasileiros (1999), de Waldemar de Andrade e Silva, não foge à regra. Ao lado deste, vale lembrarmos folcloristas como Câmara Cascudo e Sílvio Romero. No cenário atual, devemos considerar Ricardo Azevedo e Ciça Fitipaldi, entre outros escritores que se apropriam da cultura popular e trazem para o universo literário a magia e o encantamento das histórias vindas do passado. Nelly Novaes Coelho (1998) comenta a dificuldade de os filólogos, etnólogos, psicólogos, entre outros estudiosos, identificarem a origem dessas histórias milenares, pois elas se perdem na linha do tempo. O que importa, neste texto, é o fato de que traduzem uma forma de ver e sentir a existência do homem em diferentes momentos da sua história. Justamente, por isto, podem contribuir para o processo de humanização do leitor, como assinala Antonio Cândido (1995), ao afirmar que a literatura tem o poder de humanizar o homem no sentido mais profundo, seja na leitura de contos, anedotas, mitos seja em outras histórias. Salienta, ainda, que a literatura é “[...] uma manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.” (CÂNDIDO, 1995, p. 235). Assim, entendemos, neste texto, que o mito refere-se às narrativas primordiais que, alegoricamente, trazem uma explicação de forma intuitiva, marcada pela poesia, pela magia e pela religião, dos fenômenos basilares da existência humana diante da Natureza, como também da “Divindade ou do próprio homem. Cada povo da Antiguidade (ou os povos primitivos que ainda sobrevivem em nossos tempos) tem seus mitos intimamente ligados à religião ancestral, ao começo do mundo e dos seres e também à alma poética do Universo” (COELHO, 1998, p. 85-86). Desse modo, os mitos podem ser considerados, conforme Campbell em entrevista concedida a Bill Moyers, como “[...] pistas para as potencialidades espirituais da vida humana” (CAMPBELL, 1990, p.6). Já as lendas configuram-se como narrativas anônimas, sendo que a matéria pode ser verdadeira ou apenas uma hipótese histórica. Para o real e o imaginário não há limites, de tal maneira que se torna impossível delimitar a fantasia e a realidade. 152

“Thaina Khan: a estrela da manhã” e o processo de individuação

Na primeira parte da obra, intitulada “Pesquisadas e interpretadas por Waldemar de Andrade e Silva” (1999, p. 12-43), há o texto “Thaina Khan: a estrela da manhã” (1999, p. 24) que relata a história de Imaeru, uma índia Karajá muito linda e vaidosa, que desejava possuir a estrela Thaina Khan, conhecida como estrela d’alva. O Pajé, seu pai, entristecido com a angústia da filha, intercedeu a Tupã que permitisse a realização do desejo da bela índia. Porém, Tupã o alertou de que a estrela não poderia descer a terra em sua forma celestial, mas sim na forma humana. Em uma noite enluarada, a estrela chegou, porém Imaeru deparou-se com um velho e o rejeitou. Este não poderia mais voltar à sua condição de origem. No entanto, Danace, irmã de Imaeru e menos bela, sensibilizou-se com a situação, casou-se com o velho e viviam felizes. Um dia, o marido demorou-se para retornar a casa e a esposa foi procurá-lo na mata. Encontrou-o rejuvenescido e iluminado, pois Tupã o tornara belo como forma de reconhecimento da bondade da índia. Imaeru, ao perceber, o jovem marido da irmã, desejou-o. Porém, o laço entre Danace e Thaina Khan havia se fortalecido, ambos adentraram a mata. Então, a linda índia entristecida e inconformada adentrou a floresta e foi “[...] transformada por Tupã no pássaro urutau, que, em noites de luar, entoa um triste canto, lamentando haver perdido o amor de sua almejada estrela da manhã” (ANDRADE E SILVA, 1999, p. 24). A narrativa nos traz uma série de questões relativas à condição psíquica do homem – o desejo, a metamorfose, a maturidade, superar frustrações, dilemas edípicos –, como também dialoga com outros contos maravilhosos. Inicialmente, podemos assinalar a relação da filha e do pai. Este realiza performances que facultem à filha obter seu objeto de desejo, no caso, uma estrela. Por sua vez, a filha, quando soube que Tupã concordara em atender a seu desejo ficou radiante e, em uma noite, elevou “[...] seus olhos em direção aos astros, pediu a almejada estrela que descesse para desposá-la. Nesse instante, desceu do céu uma luz, surgindo a sua frente um velho: era Thaina Khan, que de lá viera para casar-se com ela” (ANDRADE E SILVA, 1999, p. 24). Decepcionada com a aparição do velho, rejeita-o e alega a impossibilidade deste de desposar uma jovem bela. Desse modo, o princípio do prazer não cede espaço ao princípio da realidade e a índia não aceita relacionar-se com Thaina Khan. Aparentemente, a personagem deixa traduzir um conflito interno e não quer experimentar a possível saída da casa paterna. O pai, por sua vez, providencia o encontro da filha com o outro. Há, pois, um cuidado paterno, mas ela ainda não amadureceu o suficiente para entregar-se de corpo e alma à figura masculina, pois sair do lar é uma ação 153

brusca e dolorosa, ou da infância para a vida adulta. A índia fica horrorizada com o velho que vê a sua frente. Além disso, o objeto idealizado é totalmente destruído. Ela sonhava com uma estrela brilhante, aquela que ficava no firmamento e, ao deparar-se com uma figura frágil e envelhecida, vem a frustração. Do mesmo modo, para que a estrela se transforme em homem, há necessidade de uma condição primeira, deixar as experiências da infância e vincular-se com a figura feminina, deparar-se com as diferenças e enfrentar as dificuldades que perpassam nas relações entre homem e mulher. A maneira como se dá a constituição das personagens abre espaço para o leitor vivenciar a ficção de forma peculiar. Temos uma índia formosa e outra índia extremamente sensível. Esta se revela apta a enfrentar a relação com o outro, somando-se à estrela. Seu enlace nos remete à simbologia do espírito, sobretudo do “[...] conflito entre as forças espirituais (ou de luz) e as forças materiais (ou das trevas). As estrelas transpassam a obscuridade; são faróis projetados na noite do inconsciente” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2003, p. 404). Desse modo, atemo-nos ao aspecto simbólico da história que não quer tratar apenas de uma escolha, mas dos processos inconscientes que determinam o momento de escolha e a passagem de uma situação para outra. A estrela da manhã tem um significado que nos remete ao crescimento e à conservação da espécie, seja humana seja animal. No texto, representa o homem que “[...] não pode mais regressar a sua forma original” (ANDRADE E SILVA, 1999, p. 24). E esta estrela não morre, ela aceita as condições que a realidade lhe oferece e procura um sentido para a sua nova forma de existência. A condição de Thaina Khan dialoga com o que Campbell, em entrevista a Moyers, afirma sobre a trajetória da vida humana. Para este estudioso, sempre estamos à procura de “[...] uma experiência de estar vivo, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos” (CAMPBELL, 1990, p. 5). Assim, Thaina Khan rejuvenesceu, transformou-se em um homem belo. Essa beleza vai além das questões físicas, estende-se à condição interna do sujeito que dá conta de uma travessia, da integração do seu ego e das relações edípicas. Já o pássaro noturno, urutau, permanece em outro estágio do seu processo de individuação.

Considerações finais

Podemos observar que a leitura de textos míticos ou lendas propicia ao leitor um mergulho em sua interioridade, uma compreensão acerca da condição humana em diferentes estágios da vida. A beleza de sua representação incide justamente no emprego da simbologia que ecoa no inconsciente do leitor. 154

Campbell, por exemplo, na mesma entrevista para Moyers, trata da importância da leitura de mitos para os jovens, porque a “[...] mitologia lhes ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre a própria vida. É um assunto vasto, excitante, um alimento vital. A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação” (CAMPBELL, 1990, p. 12), ou a passagem da infância para as responsabilidades da vida adulta. Seja esta a saída de casa para a universidade seja a mudança de estado civil. Conforme Campbell, a mitologia é poesia marcada pela metáfora. Para o jovem leitor, conhecer o imaginário indígena tanto fascina como liberta, pois o conduz à reflexão acerca desse imenso legado que compõe a nossa memória cultural. Além disso, as ilustrações da obra de Waldemar Silva ampliam esse imaginário, pois produzem atmosfera que faculta a imersão no universo representado. A mediação desta obra na formação do leitor se justifica, uma vez que permite a quebra de conceitos prévios do jovem leitor quanto à selvageria do índio ou à sua incompetência para representação social ou da individuação. Como se trata de uma obra composta por textos que suscitam interação com o leitor, pela necessidade de interpretação do texto verbal e da relação que este estabelece com o imagético, ela fornece prazer ao jovem, pois se revela comunicativa. Pela leitura dessa obra, combate-se a noção de “invisibilidade” atribuída ao índio, pois é considerado como distante dos centros de cultura. Pelo exposto, podemos deduzir que a hipótese de que a obra é emancipatória para o jovem é válida, já que sua leitura o leva à reflexão acerca da importância da cultura indígena, justamente porque reconhece o rico imaginário que a compõe e, por sua vez, nos constitui enquanto brasileiros.

Referências

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IMAGENS DA REVOLUÇÃO: IMPRENSA E COMUNISMO VISUAL NAS PÁGINAS DO EL MACHETE (MÉXICO, 1920-1930)

Fábio da Silva SOUSA1

O jornalismo sim é para a luta, a sua pena serviu bem à Revolução. (Anatoli Ribakov, Os filhos da Rua Arbat)

O presente texto tem como objetivo discorrer, panoramicamente, sobre a produção visual imprensa – charges, caricaturas, fotos, fotomontagens, entre outras – publicadas nas páginas do periódico El Machete2, que foi a principal publicação comunista mexicana das décadas de 1920 e 1930. Inicialmente, esse periódico, cujo título traduzido significa “O facão” – principal instrumento de trabalho dos camponeses mexicanos – foi fundado na primeira quinzena de março de 1924 pelo Sindicato de Obreros Técnicos, Pintores y Escultores de México (SOTPEM). Em 1925, foi “adotado” pelo Partido Comunista Mexicano (PCM), e, sob a sua direção, foi publicado até 15 de setembro de 1938. Sua coleção completa tem o total de 619 edições. Com diversas características que o diferenciam de outras publicações comunistas, como exemplo, o seu título e o fato de não ter sido fundado por um Partido Comunista, as imagens também foram um componente importante na trajetória editorial-ideológica dos 14 anos de existência do El Machete. Em sua autobiografia, o pintor muralista David Alfaro Siqueiros recordou os anos de militância no SOTPEM, além de sua experiência editorial no El Machete. Em suas palavras, a publicação de imagens seria um componente essencial e diferenciador da referida publicação do SOTPEM:

Casi sin plan previo, instintivamente y por razón de nuestra profesión, hicimos del órgano del Sindicato un periódico particularmente gráfico. <

1 Doutorando - Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras - Unesp - Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis - Av. Dom Antonio, 2.100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo, Brasil. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 2 O periódico El Machete foi publicado entre os anos 1924 e 1938, no México, primeiramente pelo Sindicato de Obreros Técnicos, Pintores y Escultores de México (SOTPEM) e depois pelo Partido Comunista Mexicano (PCM). Ao contrário de muitos periódicos comunistas editados nas duas primeiras décadas do século XX, o El Machete foi um caso sui generis, e, neste trabalho, discorreremos sobre uma característica peculiar de sua materialidade: o uso das imagens. Ao longo de suas 619 edições, o El Machete publicou fotos, fotomontagens, charges, caricaturas e edições especiais totalmente ilustradas, com imagens alusivas ao Comunismo Soviético, de críticas e de apoio ao governo mexicano. Nesse contexto, exploraremos algumas dessas imagens com o intuito de discutir e verificar se houve, ou não, a criação de um Comunismo Visual mexicano.

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dijimos – sino que los artículos ilustrarán los dibujos.>> Y éste fue el único pensamiento teórico de nuestro nuevo esfuerzo (ALFARO SIQUEIROS, 1977, p. 216).

Apesar dessa orientação apresentada pelo pintor muralista, o El Machete não se tornou um periódico ilustrado, salvo algumas edições especiais e comemorativas. Em seus primeiros números, poucas fotos foram publicadas no periódico. Contudo, em compensação, encontramos nas páginas do referido periódico, a publicação de charges, caricaturas e também de xilogravuras3, de Xavier Guerrero, Diego Rivera, José Clemente Orozco e outros artistas mexicanos. As xilografias apresentadas a seguir (Figuras 1 e 2), de autoria de Xavier Guerrero, revelam um discurso visual de alusão à doutrina comunista, com apresentação da foice e do martelo, símbolos da bandeira da União Soviética (URSS). Esses desenhos nos remetem tanto à posição ideológica do seu autor, Guerrero, quanto à plataforma de publicação de sua arte, ou seja, as páginas do El Machete. Podemos afirmar, nesse caso, que antes de sua incorporação ao PCM, em 1925, o El Machete já era um periódico de identificação com a ideologia Comunista:

Fonte: Hemeroteca Nacional Digital de México (HNDM) Figuras 1 e 2: Xilografias (Xavier Guerrero) El Machete, n° 6, 1ª quinzena de junho de 1924, p. 4. El Machete, n° 8, 1ª quinzena de junho de 1924, p. 4.

No caso das charges e caricaturas, sua origem remonta a tempos antigos. Segundo Alberto Gawryszewski (2008, p. 9), os primeiros indícios da caricatura podem ser verificados no Egito antigo, em pinturas rupestres; contudo, de acordo com

3 Aqui cabe uma diferenciação: charges são desenhos sobre fatos políticos, que podem ser apresentados de forma debochada e/ou irônica. Já as caricaturas são desenhos de retratos distorcidos e/ou deformados de personagens públicas e de políticos. Em alguns casos, um desenho pode unir elementos de charges com caricaturas. Já as xilogravuras, são desenhos entalhados em um pedaço de madeira, deixando em relevo a parte na qual se pretende reproduzir. Em seguida, pinta-se a parte do relevo do desenho, e, no terceiro passo, utiliza-se uma prensa para pressionar o pedaço de madeira e fixar o desenho no papel ou em outras plataformas. Cabe destacar, que o desenho no papel, sai ao contrário da imagem no pedaço de madeira.

158 especialistas do tema, essa forma visual de expressão surgiu em Bolonha, Itália, no ano de 1664. De origem tão antiga, tanto as caricaturas quanto as charges foram bastante utilizadas em panfletos políticos e nos periódicos impressos, com o objetivo de dimensionar situações, ridicularizar e satirizar adversários por meio dos traços. O El Machete publicou diversas charges e caricaturas em sua coleção, na qual denunciaram seus inimigos políticos e exaltaram o Comunismo da URSS. Cabe ressaltar que, para o presente texto, destacaremos a seção fixa e ilustrada batizada de “Cartones de El Machete”. Essa seção começou a ser publicada a partir do ano de 1935, quando o El Machete voltou à legalidade depois de um intenso período de perseguição política, e prosseguiu em suas páginas até 1938. Geralmente, essa seção era publicada na terceira página do periódico, junto com os editoriais. Os seus temas gravitavam em torno de temas internacionais, como a ameaça fascista da Itália, a ascensão do nazismo alemão, a Guerra Civil Espanhola, o exílio de Leon Trotski no México, além de temas nacionais. Na sequência, destacamos duas gravuras. A primeira imagem selecionada (Figura 3) – cuja autoria não identificamos até o momento da pesquisa – intitulada “La Hidra Fachista Amenaza al Mundo”4, apresenta um monstro portando um capacete nazista e com seis braços, e cada um está tocando o mapa da Espanha, Áustria, França e URSS. Esse desenho é uma denúncia do perigo da expansão do nazismo na Europa. Aqui encontramos um exemplo de charge, na qual o nazista é representado pelo corpo de um monstro, o que nos remete à prática visual do zoomorfismo, técnica gráfica por meio da qual o corpo humano é mesclado com o de um animal ou de criaturas monstruosas. A segunda imagem (Figura 4), de autoria de Arroyito,5 é uma referência à situação política brasileira em 1937. Esse desenho traz o líder nazista Adolf Hitler, empunhando uma espada ensanguentada e emergindo de um rio de sangue, identificado como o Brasil. Em seu peito, um homem tenta se salvar desesperadamente, identificado como o ditador Getúlio Vargas. Essa imagem é um exemplo de caricatura, todavia, mais pela figura de Hitler do que pela de Vargas. Destaca-se, também, o momento de sua publicação, 20 de novembro de 1937, ou seja, apenas dez dias depois da promulgação do regime ditatorial do Estado Novo no Brasil. Podemos estabelecer a análise de que, para os articulistas e artistas do El Machete, Vargas sancionou um regime similar ao nazismo para se consolidar no poder. Em outras palavras, Hitler havia salvado Vargas.

4 Hidra: “Serpente monstruosa, de sete ou nove cabeças, que renascem à medida que são decepadas. Comparada muitas vezes aos deltas dos grandes rios, com seus múltiplos braços, enchentes e vazantes”. In: (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 492). Na mitologia grega, a Hidra foi destruída por Hércules. 5 Arroyito foi o principal ilustrador da seção “Cartones...”. Todavia, até o momento da pesquisa, ainda não identificamos a sua identidade.

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Além dessa imagem analisada (Figura 4), Arroyito realizou mais duas charges sobre o Brasil: uma de Vargas e outra de Luís Carlos Prestes, que foram publicadas no El Machete, quando o periódico publicou diversas matérias referentes à Insurreição Comunista de 1935 (SOUSA, 2013).

Fontes: Hemeroteca Nacional Digital de México (HNDM)

Figuras 3 e 4: Charge/caricatura (S.I./Arroyto) El Machete, n° 438, 16/09/1936, p. 3. El Machete, n° 499, 20/11/1937, p. 4.

Abaixo da caricatura, foi publicado o artigo-iceberg,6 “El Peligro Fachista y las Elecciones Presidenciales en la Rep. del Brasil”, de autoria de Octavio Brandão, um dos principais personagens da História do PCB. Não cabe no espaço e nos objetivos do presente texto, uma análise do artigo de Brandão. Todavia, não é demasiado esclarecer que esse artigo-iceberg conectou-se com a caricatura de Arroyito. Em diversas ocasiões, as palavras impressas interagiam com as imagens e ambos se complementavam. Apresentamos outro exemplo desse diálogo entre imagem e texto na charge abaixo. Na imagem (Figura 5), também de autoria de Arroyito, Trotski foi apresentado aos leitores de El Machete, metamorfoseado no corpo de um rato, identificado pela palavra trotskismo e preso em uma ratoeira, cujo queijo à sua frente representaria os Processos de Moscou. Em sua legenda, lê-se a seguinte frase: “Ya no quiero queso, sueño salir de la ratonera”. Assim como na charge anterior (Figura 3), nessa imagem de Trotski (Figura 5) a zoomorfia foi utilizada como um recurso visual degenerativo de

6 Esse artigo foi publicado na quarta e na vigésima-oitava página da edição referida. Cabe esclarecer que essa técnica em dividir um texto em duas ou várias partes dentro da mesma publicação se chama iceberg, e foi uma prática recorrente das publicações periódicas da primeira metade do século XX. Como efeito prático, a divisão de um importante texto levaria o leitor interessado a adquirir o exemplar, para que pudesse lê-lo na íntegra.

160 sua pessoa. A escolha do rato foi para traduzir ao leitor da publicação comunista mexicana a mensagem de que o Nêmesis de Stálin possuía as mesmas características desse roedor, e que havia sido capturado pelos Processos de Moscou.

Fonte: Hemeroteca Nacional Digital de México (HNDM)

Figuras 5 e 6: Charge de Arroyito e terceira página inteira do El Machete, n° 457, 03/02/1937, p. 3. Na página (Figura 6) em que a charge de Trotski (Figura 5) foi publicada, encontram-se diversos artigos contra a sua presença no México – “El Trotzkismo y Los Trotzkistas en Mexico”, “Quienes defienden a Leon Trotzky”, “Luis Cabrera y Leon Trotzky” e “Como trabajan los Trotzkistas en España”, – cujos conteúdos são semelhantes ao editorial “TROTZKY EN MEXICO. UNA INCONSECUENCIA DE CARDENAS Y UNA DEBILIDAD DE LA C.T.M.”. Esse caso apresentado constitui-se mais um exemplo do diálogo entre texto e imagem. Mesmo com a caricatura de Trotski, foi necessário o recurso da legenda, e a charge tinha ao seu redor diversos artigos críticos ao ex-líder do Exército Vermelho. Novamente sobre essa questão, torna-se relevante expor a análise de Fausta Gantús, segundo a qual as partes imagéticas e as textuais formam uma unidade importante, e consequentemente, “[...] la caricatura está compuesta de esas dos partes: una imagen culminada por un texto, o un texto vigorizado por una imagen” (GANTÚS, 2009, p. 14). Ademais dessas charges e caricaturas, Trotski também foi “vítima” de uma humorística tira de quadrinhos, batizada de “Muñecon y Muñequito”. Esse material foi inaugurado nas primeiras edições do El Machete, publicadas em 1937, e apresentava as (des)aventuras de dois amigos. Abaixo, seguem três dessas tiras.

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Fonte: Hemeroteca Nacional Digital de México/HNDM

Figuras 7, 8 e 9: Muñecon y Muñequito (S.I.). El Machete, n° 453, 09/01/1937, p. 4. El Machete, n° 454, 16/01/1937, p. 4. El Machete, n° 458, 06/02/1937, p. 4.

Como podemos conferir, com base nessas histórias em quadrinhos, o personagem Muñecon representava Diego Rivera e Muñequito representava Trotski. Na primeira tira (Figura 7), “No es el ‘León’ como lo Pintan”, Muñequito/Trotski encomendou uma pintura para seu amigo Muñecon/Diego Rivera. Segundo suas instruções, ele teria que ser representado com uma piocha – uma barba incipiente – semelhante à de Vladimir Lênin e com a arrogância de Joseph Stálin. O trabalho foi realizado, no “Club de los ególatras”, e no resultado final, o quadro mostrava Muñequito/Trotski montado em um gordo cavalo. Trotski seria um engodo, uma farsa que no México estava sendo sustentada por Diego Rivera. E ambos eram pertencentes a um clube de ególatras. Na segunda tira (Figura 8), Muñequito/Trotski está conversando com Muñecon/Diego Rivera e revela ao seu amigo que possui um audacioso plano para mudar o mundo: fundar a Internacional de n° 7.897.999. A tira encerrou-se com Muñequito/Trotski preso e carregado em uma ambulância de hospício. A tira apresenta uma crítica à fundação da IV Internacional por Trotski, ironizou o seu papel e a reduziu a um fruto de uma mente doentia. A terceira e última

162 tira (Figura 9), “El Mal de Trotzky”, um homem de pijama se dirige, preocupado, para a casa de Muñequito/Trotski. Lá, ele se encontra com Muñecon/Diego Rivera, que lhe informa que seu amigo, apavorado, ficou uma semana trancado no escritório, e, que nesse momento, estava há três dias embaixo da cama. O mistério é esclarecido, quando no último quadrinho, Muñequito/Trotski é retirado, e o terceiro personagem esclarece para Muñecon/Diego Rivera, que o seu hóspede é mais covarde que uma barata. Ou seja, uma crítica às qualidades de valente e de lutador atribuídas ao nêmesis de Stálin. Com uma dose de humor e criatividade, essas tiras de quadrinhos criticaram Trotski e Diego Rivera ao mesmo tempo. Cabe esclarecer que Rivera havia entrado no PCM em 1922 e foi expulso em 1929. Infelizmente, as tiras não apresentam assinatura de autoria, o que torna uma missão árdua na identificação do seu autor. Contudo, podemos perceber que o traço é bastante simples e tanto Trotski quanto Rivera, são apresentados de uma forma debochada e estereotipada. Passemos agora ao tema das fotos. Diversas fotografias foram publicadas nas páginas do El Machete ao longo de sua trajetória de 14 anos de vida impressa. Os temas dessas imagens variavam de temática comunista, propaganda política e de crítica ao regime capitalista. De destaque sobre esse tema, no final da década de 1920, a fotógrafa comunista italiana Tina Modotti, manteve relações com o PCM e publicou algumas fotos em El Machete. Foi comum também a prática de reproduções de fotos em diversas edições. Um exemplo dessa afirmação encontra-se a seguir, representado pelas Figuras 10 e 11.

Fonte: Centro de Estudios del Movimiento Obrero y Socialista (A.C./CEMOS) Figuras 10 e 11: Fotografias (HGRM, v. VII, p. 222-226) El Machete, nº 367. 23/11/1935, p. 1. El Machete, nº 521. 01/05/1938, p. 2.

A imagem acima, de um carro atropelando um cavalo, pode ser considerada clássica na literatura do Comunismo mexicano. Essa imagem clássica foi tirada no momento de confronto entre o sindicato dos taxistas com os “Camisas Doradas”,

163 associação fascista mexicana. Esse grupo de direita tinha como objetivo realizar um desfile sobre os 25 anos da Revolução Mexicana, comemorada em novembro de 1935. No dia do desfile, David Alfaro Siqueiros, mesmo expulso do PCM, entrou em contato com o sindicato dos taxistas e articulou uma resistência ao desfile dos fascistas, o que de fato ocorreu, como podemos conferir nas imagens acima. A foto foi publicada no 7º volume da coleção Historia Gráfica de la Revolución Mexicana, coordenada pela família de fotógrafos Casasola e chama atenção que a imagem esteja presente no periódico do PCM. Podemos levantar a hipótese de que, além do álbum, essa fotografia emblemática tenha sido publicada em outros periódicos mexicanos do período, apresentando uma narrativa visual do combate entre os comunistas e os fascistas (BARBOSA, 2006, p. 186). A fotografia também serviu de propaganda à estratégia de Frente Única adotada pelo PCM a partir de 1935, como podemos conferir na descrição da legenda localizada à esquerda inferior da foto: “Un miembro del Frente Único del Volante usa su coche como tanque de guerra, para rechazar la embestida de los “dorados” contra el pueblo, el 20 de noviembre de 1935”. Outras fotografias foram publicadas com alusões positivas à URSS. Assim como as outras publicações comunistas da década de 1930, o El Machete publicou diversas fotos e fotomontagens elogiosas a Stálin, já apresentando aos seus leitores o culto à personalidade, que foi bastante utilizado pelo líder soviético:

Fonte: A.C./CEMOS Figuras 12 e 13: Fotomontagens (S.I.) El Machete, nº 307. 30/10/1934, p. 4. El Machete, nº 516. 10/03/1938, p. 16.

Na primeira imagem (Figura 12), encontramos uma fotomontagem mesclando as imagens de Stálin, Lênin e Marx, próceres do Comunismo Soviético. Há nessa fotomontagem a figura de Lênin em discurso, uma fábrica à esquerda inferior, Stálin à direita inferior, e no plano de fundo, o rosto de Marx. Os três personagens são

164 apresentados como os construtores do Comunismo Soviético, contudo, com uma importante diferença: Marx e Lênin prepararam a base teórica da Revolução, Stálin, a prática. Essa leitura torna-se evidente na legenda que acompanha a fotomontagem: “La férrea direción del camarada Stalin, basada en el maxismo-leninismo, levanta la colosal edificación del socialismo en la URSS y conduce a la revolución mundial”. A outra imagem (Figura 13), publicada quatro anos depois, mantém esse discurso positivo de Stálin. Publicada na última página da edição de n° 516, essa imagem apresenta o líder soviético sorrindo e apertando a mão de uma menina. Stálin não foi apresentado como um simples seguidor, mas, como um colaborador de Lênin e um teórico do Marxismo-leninismo (Figura 12). Além dessas qualidades, o líder soviético era humano e exibia solidariedade, reconhecimento e senso de humor (Figura 13). Outras imagens de propaganda do regime estalinista foram publicadas em diversas edições do El Machete, o que nos levanta a hipótese de existência de uma rede de contato entre os comunistas mexicanos com os seus camaradas de Moscou. Poderíamos apresentar e analisar outras imagens, todavia, acreditamos que o material visual apresentado nas páginas anteriores é suficiente em atingir o objetivo do presente texto.

Considerações parciais

As imagens analisadas no presente texto são apenas a ponta do iceberg de um verdadeiro arsenal visual presente nas páginas do El Machete. O objetivo principal foi apresentar uma variedade de produtos visuais, como charges e fotos, e discorrer brevemente sobre essa experiência imagética da publicação comunista mexicana. As xilografias de exaltação ao Comunismo, as tiras e charges críticas de Trotski e as fotos grandiloquentes de Stálin, fazem parte do discurso soviético após a Revolução Russa de 1917, na qual a URSS se apresentava como a detentora da alternativa socialista diante do mundo capitalista. Mesmo quando abordaram temas de âmbitos nacionais, as imagens do El Machete interpretaram a realidade mexicana pelo prisma do Comunismo Soviético. Ao ser criado por um sindicato de artistas, o El Machete, apesar da adoção por parte do PCM e da troca do seu corpo editorial em seus 14 anos de vida editorial, sempre manteve um espaço para as imagens, e consequentemente, para a arte em suas páginas. Segundo o historiador Marcos Napolitano (2011, p. 33), os Partidos Comunistas latino-americanos, no debate acerca da arte engajada, realizaram um encontro entre a perspectiva nacional-popular com outros temas teóricos, como o “proletkult” (cultura proletária), o realismo-socialista e o realismo crítico.

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Esses elementos teóricos estiveram presentes nas imagens do El Machete, e, no caso do “proletkult”, podemos definir que os artistas comunistas mexicanos não se detiveram apenas ao mundo fabril do operariado, como também, adentraram no mundo rural dos camponeses, principalmente pela experiência do Movimento Muralista. Contudo, devemos ter em mente que em ambos os mundos, tanto dos operários quanto dos camponeses, foram representados pela lente do Comunismo Soviético. Apesar do imenso material não abordado neste trabalho, pelo que foi apresentado aqui, podemos defender que as imagens publicadas nas páginas do El Machete constituem um Comunismo Visual que vai além do Muralismo. Fotos, charges, caricaturas e outras formas de expressões imagéticas apresentam uma fusão de arte militante com a propaganda política, que resultou em uma rica e sui generis experiência visual que ainda não foi devidamente explorada.

Referências

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A IMPRENSA COMO OBJETO DE ESTUDO DA HISTÓRIA: PROBLEMAS E POSSIBILIDADES

Fábio Alves SILVEIRA1

Introdução

Habituados a ver a mídia como fonte de pesquisa e em busca de novos objetos de estudo para renovar a história política, alguns pesquisadores defendem que os meios de comunicação podem passar a ser vistos também como objetos de estudo. Tal inquietação pode ser encontrada nos trabalhos do francês Jean-Noël Jaennaney e do brasileiro Áureo Busetto, professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Eles levantam pistas para a inclusão da mídia entre os objetos de estudo de historiadores, em textos como “A mídia”, de Jeanneney, capítulo do livro Por uma história política, organizado por René Rémond e “A mídia brasileira como objeto da história política: perspectivas teóricas e fontes”, de Busetto, capítulo do livro organizado por Sebrian, Gandra e Franco. Mas, para entrar na discussão sobre os problemas da mídia como objeto de estudo, é preciso antes compreender a tentativa de construir uma nova história política, o que passa, em primeiro lugar, por alargar o entendimento do que seja política. Entre os vários autores que assumiram essa tarefa, podemos destacar René Rémond, Jacques Julliard e Maria Mansor D´Aléssio, que dialogando com autores da ciência e da filosofia política, como Hannah Arendt, Antonio Gramsci e Louis Althusser, discutem a respeito da ampliação do político. Retomando Jeanneney e Busetto, é possível enumerar as dificuldades do historiador para tomar a mídia como objeto de estudo, consequência do desequilíbrio, primeiro da fartura de materiais veiculados pela mídia impressa com a escassez de documentos que ajudem a entender decisões editoriais de jornais que refletem naquilo que é publicado. E em segundo lugar, na desproporção entre trabalhos sobre mídia impressa e as mídias eletrônicas. Os autores propõem estudos sobre o financiamento da mídia, o jogo de poder interno dentro do meio jornalístico, enfim, formas de tentar compreender o que há por trás da opacidade dos veículos de comunicação – opacidade esta, diga-se, que contrasta com a cobrança que a mídia faz ao poder público por transparência.

1 Mestre em Ciências Sociais - Professor Colaborador Assistente - Departamento de Comunicação Social – UEL – Univ. Estadual de Londrina – Rodovia Celso Garcia Cid, Km 380, CEP: 86057-970, Londrina-PR. E-mail: [email protected]

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Por fim, para aprofundar um pouco mais a discussão, é importante dialogar com teóricos do campo jornalístico, como o professor português Nelson Traquina, os norte- americanos Bill Kovach e Tom Rosentiel, e o brasileiro Alberto Dines, que passou pelas redações de algumas das principais empresas jornalísticas do país e embora não atue na academia, tem dado grande contribuição para a reflexão acerca da imprensa nacional a partir do Observatório da Imprensa. Tais autores contribuirão para entender como é possível aprofundar o diálogo entre história política e mídia, buscando no passado respostas para o presente da sociedade brasileira.

Ampliando a noção do político

Depois de ser o centro dos estudos históricos no período que se estende do final do século XIX até o início do século XX, o político caiu em descrédito entre os historiadores, particularmente os franceses. Como lembra Jacques Julliard, a história política conta com “má reputação entre os historiadores franceses”, entre os quais se encontram March Bloch e Lucien Febvre, por causa de vários problemas. O autor cita, entre outros, o fato dessa visão ser “elitista e talvez biográfica”, por ignorar “a sociedade global e as massas que a compõem”, ser narrativa e ignorar a análise, “ideológica e não ter consciência de sê-lo”, ignorar o longo prazo e, por fim, factual.

A história política confunde-se com a visão ingênua das coisas, que atribui a causa dos fenômenos a seu agente o mais aparente, o mais altamente colocado, e que mede a sua importância pela repercussão imediata na consciência do espectador. (JULLIARD, 1995, p. 181).

Julliard lembra que, embora a história política continue a representar uma quantidade importante da produção de livros, “há muito tempo, no entanto, ela deixou de produzir uma problemática, e de inspirar trabalhos inovadores” (JULLIARD, 1995, p. 181). Para o historiador francês, isso não seria motivo para que o político seja abandonado definitivamente como objeto da história. Até porque, como lembra o autor, os problemas de método no estudo da história política do período sob questionamento não podem ser confundidos com o objeto. Entre os motivos pelos quais Julliard justifica a retomada da política como objeto de estudo da história, estão o reconhecimento de certa autonomia desse campo, com relação, por exemplo, à economia. Além disso, o autor ressalta que “o fenômeno duplo da revolução das massas e da programação dos grandes setores da atividade social conduz-nos a uma concepção política infinitamente mais ampla do que a que foi, geralmente, admitida” (JULLIARD, 1995, p. 184).

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Essa ampliação da ideia do político no decorrer do século XX levará os historiadores a buscarem uma nova visão sobre esse objeto. Para buscar uma renovação que consiga dar respostas mais consistentes, é preciso dialogar com a ciência política e a filosofia política, onde encontramos autores que ampliam a visão do político. Maria Mansor D´Aléssio, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo recorre à pensadora alemã Hannah Arendt para ampliar a visão de política. Ela lembra que Arendt vê a política como o espaço da diversidade e para que essas diferenças não levem ao caos, é preciso negociar. “Quando não há negociação, as diferenças levam aos caos, impossibilitando a vida em sociedade, ou ao despotismo, através da ‘lei’ do mais forte” (D´ALÉSSIO, 2008, p. 44). A ideia de que a política se dá no espaço público e de que esse é o espaço de convivência entre os diferentes, amplia a visão que se possa ter de política. Ela não se dá mais somente na disputa do poder, mas também nas relações entre os homens. Segundo essa ótica, a política é o “lugar de solução dos problemas surgidos da convivência entre os homens” (D´ALÉSSIO, 2008, p. 46). Compartilhando com a visão de que a ideia do político é mais ampla que a simples conquista e exercício do poder, René Rémond sustenta que o campo político “ora dilata, ora encolhe”. Nas palavras do autor,

Praticamente não há setor ou atividade que, em algum momento da história, não tenha tido uma relação com o político. Existe uma política para a habitação assim como pra a energia; a televisão é um investimento político, o sindicalismo intervém no campo das forças políticas. Em torno de um núcleo estável e restrito que corresponde grosseiramente às funções do Estado tradicional, o campo da história política irradia em todas as direções e libera uma multiplicidade de digitações. (RÉMOND, 2003, p. 444).

Com essa argumentação, Rémond justifica que seria equivocado representar e tratar o político como “um domínio isolado”. A ideia de que em algum momento as diversas atividades humanas passam pelo político ajuda a compreender a possibilidade de ampliação dos objetos de estudo da história política, nesse processo de sua reconstrução. E, entre eles, a própria mídia, tão usada como fonte de pesquisa. Pelas palavras de Rémond, “[...] os meios de comunicação não são por natureza realidades propriamente políticas; podem tornar-se políticos em virtude de sua destinação, como se diz dos instrumentos que são transformados em armas” (RÉMOND, 2003, p. 441). Vamos a eles.

A mídia como objeto de estudo da história

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Embora vista com reservas por alguns, há entre os historiadores da política uma preocupação em tomar a mídia como objeto de estudo. Numa sociedade em que a centralidade dos meios de comunicação é reconhecida, ignorar a relevância desse objeto dificulta a compreensão de mundo. O historiador francês Jean-Noël Jeanneney ressalta que é importante tomar a mídia como objeto de estudo da história política pelo fato dela produzir a representação que uma sociedade faz de si mesma (JEANNENEY, 2003, p. 213). O autor refuta a ideia de que as questões internas da mídia fujam ao “político stricto sensu”, pois no entendimento dele, os problemas que passam pelos meios de comunicação sempre esbarram no campo político (JEANNENEY, 2003, p. 224-225). Apesar da reconhecida relevância da mídia na sociedade moderna, ela é vista com reserva pelos historiadores. O professor brasileiro Áureo Busetto explica a reserva com que os historiadores encaram a mídia pelo fato dela ser vista como mera “caixa de ressonância das instâncias políticas” e, por isso mesmo, “uma fonte menor e bastante parcial, sendo, portanto, pouco relevante” (BUSETTO, 2008, p. 9). Segundo Busetto, no Brasil, a história da mídia tem sido tratada em estudos de comunicação, porém com uma série de limitações. Uma delas é que os estudos sobre a mídia usam o contexto histórico apenas como pano de fundo, panorama histórico, ou seja, deixam de lado as relações entre os veículos de comunicação e as outras esferas sociais (BUSETTO, 2008, p. 11). Normalmente eles se preocupam mais com a estética dos meios de comunicação ou o impacto das transformações tecnológicas desses veículos. Mesmo que alguns autores reconheçam a relevância da mídia, o que justificaria trabalhos focados nos meios de comunicação, é preciso reconhecer que existem obstáculos para a incorporação desse objeto de estudo ao repertório da história política. A diversidade de objetos e o desequilíbrio entre a grande oferta de materiais impressos e a escassez de documentos que permitam analisar os veículos de comunicação por dentro são apontados como obstáculos para os estudos sobre a mídia. A “dispersão dos objetos”, citada por Jeanneney, ocorre pelo fato de que os veículos da mídia impressa podem ser contados “aos milhares”, ao passo que, no caso dos meios audiovisuais, a quantidade é menor, embora tenha ocorrido uma ampliação considerável desde o surgimento da TV a cabo. Neste último caso, são poucos os estudos disponíveis, já que a dificuldade, até mesmo para ter acesso aos materiais veiculados, é ainda maior que no caso da mídia impressa. Quanto à escassez de documentos que permitam compreender o funcionamento interno dos meios de comunicação, o autor entende que isso é fruto da relação dos jornalistas com o tempo – o que os

[...] leva a priorizar o oral, o telefone, a conversa em relação ao escrito (a não ser pelos próprios artigos...) e, por outro lado, dirige o espírito dos

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atores para o mais instantâneo, matando rapidamente, na maioria dos casos, qualquer interesse perseverante por um passado amarelecido – a não ser por algumas anedotas. (JEANNENEY, 2003, p. 214-215).

Queixa semelhante se dá no que diz respeito às mídias eletrônicas, nas quais a conservação do material veiculado é cara e penosa. As dificuldades impostas pela realidade dos veículos de comunicação levam os historiadores interessados em estudá-los a optarem por se “amoldar” a essa realidade, tratando esse desequilíbrio como se fosse “inevitável” (JEANNENEY, 2003, p. 215). Busetto acrescenta à “dispersão de objetos” citadas por Jeanneney o problema da desproporção entre a fartura de materiais veiculados pela mídia e a escassez de documentos disponibilizados a respeito das decisões tomadas internamente pelas empresas de comunicação. Como lembra Busetto (2008, p. 19),

[...] de um lado, há uma significativa quantidade de papel impresso e conservado na forma de jornal e revista, e, por outro, reina a pobreza frequente dos arquivos de empresas que forneçam dados e informações sobre a criação e o desenvolvimento de um jornal, de uma revista, de uma emissora de rádio, de uma gravadora de discos, de rede de televisão, de uma empresa cinematográfica.

A pesquisa histórica sobre a mídia enfrenta ainda a resistência das empresas em abrir seus arquivos aos pesquisadores – sobretudo as empresas que continuam em atividade. Com exceção da Rádio Nacional e das TVs educativas, que pertencem ao poder público, há pouca documentação disponível no que diz respeitos às mídias eletrônicas, em especial as que pertencem a empresas ainda em atividade. Já nos meios impressos, a possibilidade de ter acesso a arquivos é um pouco maior. Um caso que chama a atenção é o da Rede Globo, maior grupo de comunicação do país, que possui um Centro de Documentação (Cedoc), mas, como ressalta Busetto, o acesso a essa documentação é difícil e o trabalho realizado dentro do projeto Memória Globo visa à defesa da atuação da emissora em episódios polêmicos da vida nacional, como no caso do movimento que ficou conhecido como Diretas Já (BUSETTO, 2008, p. 20-21).

Possibilidades de estudo da mídia

Jeanneney entende que existem algumas possibilidades para o estudo dos veículos de comunicação. Entre as que ele apresenta estão a questão do financiamento da mídia, ou seja, os recursos que “mais ou menos ocultamente a irriga”, analisar as finanças da imprensa e uma abordagem “mais fisiológica das coisas, que consiste em ver como funcionam as influências – nascimento, vida e morte de programas, nomeações e

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afastamento dos diretores” (JEANNENEY, 2003, p. 219-220). Essas estratégias permitiriam compreender a mídia a partir de dentro, identificando quem é quem no jogo de poder interno das redações. Tais estudos ajudariam a compreender as decisões editoriais que determinam os conteúdos veiculados pela mídia. É preciso entender as relações da mídia com os órgãos públicos e mesmo suas relações internas, os jogos de força entre a equipe do patrão e o contrapoder exercido, por exemplo, pelos sindicatos. Isso porque o entendimento de que a mídia seja um bloco homogêneo – e não é – pode levar a equívocos. Outra possibilidade apontada pelo autor seria um estudo mais detido sobre como os jornalistas formam as suas opiniões. Um estudo mais aprofundado sobre os meios de comunicação poderia levar a uma compreensão do seu funcionamento. Trazendo o debate para a historiografia brasileira sobre mídia, Busetto encontra o mesmo problema: a ideia equivocada de que os meios de comunicação são um bloco homogêneo. Esse entendimento leva a análises limitadas, já que a concorrência entre os veículos de comunicação, a disputa entre as diferentes mídias pela atenção da audiência e mesmo as disputas internas que ocorrem dentro da redação de um veículo de comunicação (BUSSETO, 2008, p. 15), abrem margem para uma diversidade de visões e opiniões dentro do próprio campo da comunicação. Diante das dificuldades para o estudo da mídia, Busetto propõe uma perspectiva teórico-metodológica para enfrentar a questão. Em primeiro lugar, ele ressalta que é preciso ampliar o foco de análise, indo além dos conteúdos veiculados pela mídia. O historiador precisa compreender a estrutura e a dinâmica dos meios de comunicação, assim como as relações que “tornaram socialmente possível os vários e diferentes veículos midiáticos”, tanto as relações internas desse mundo, quanto “as desempenhadas no universo que o engloba” (BUSETTO, 2008, p. 16-17). Para tanto, é preciso compreender sócio-historicamente as relações internas ao veículo de comunicação, seu organograma; as relações dos veículos com seus concorrentes diretos; as relações com o domínio político e o econômico; e as relações do veículo de comunicação com o seu público. Com isso, o historiador do político pode superar a visão – e o preconceito – de que a mídia seja apenas uma caixa de ressonância da vida política e entendê-la como um “agente integrado do domínio da política”, que “disputa com os demais agentes do mundo político o poder de impor, ao mesmo tempo e de maneira simbólica, uma visão social de mundo particular como geral e de dividir e classificar o mundo social” (BUSETTO, 2008, p. 19).

Para entender a mídia

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Para estudar a mídia em geral e o jornalismo em particular é preciso, antes de tudo, compreender a visão que o campo jornalístico tem de si mesmo. A promessa da imprensa, desde o seu surgimento, por volta do século XVII, em muito se confunde com a promessa da modernidade. É nesse sentido que o trabalho jornalístico se contrapõe ao segredo nos negócios públicos, erguendo-se contra aquilo que prevaleceu na Era Medieval, período no qual os soberanos não precisavam buscar a legitimidade para governar na aprovação dos seus governados. O jornalismo se propõe a ser o inverso disso. Entende-se ser papel da imprensa, por exemplo, tentar desvendar esses segredos, levá-los ao conhecimento público, expor todas as informações necessárias para que o cidadão livre possa se autogovernar2. Essa ideia de cidadãos livres se autogovernando se inspira no conceito de esclarecimento, uma das categorias fundamentais do pensamento de Kant. Para Kant, esclarecimento é a saída do homem da menoridade. A menoridade é aqui entendida como a incapacidade do homem fazer uso de seu entendimento sem a tutela de outro indivíduo. Nesse sentido, esclarecimento é a possibilidade do homem de usar a razão sem ser tutelado por alguém. Esclarecimento seria superar essa menoridade. Segundo Kant, é mais “cômodo ser menor”:

Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. (KANT, 1974, p. 100-101).

Essa superação da menoridade levaria o ser humano a escapar de qualquer tipo de tutela. Nesse sentido, não resta dúvidas de que, se levado às últimas consequências, o jornalismo pode ter um papel importante no esclarecimento do homem. Isso ajuda a entender por que Ciro Marcondes Filho afirma que “a história do jornalismo reflete de forma bastante próxima a aventura da modernidade”. É nesse sentido que o autor considera que

O jornalismo é a síntese do espírito moderno: a razão (a verdade, a transparência) impondo-se diante da tradição obscurantista, o questionamento de todas as autoridades, a crítica da política e a confiança irrestrita no progresso, no aperfeiçoamento contínuo da espécie. (MARCONDES FILHO, 2002, p. 9).

Ao analisar histórica e socialmente, a trajetória da imprensa em meio à “aventura da modernidade”, Marcondes Filho trata a primeira fase da imprensa, no período que o

2 Bill Kovach e Tom Rosentiel comparam a função da imprensa à cartografia, no seu livro Os elementos do jornalismo. Eles usam a ideia de que a imprensa precisa trazer informações confiáveis e fidedignas para que os cidadãos livres tomem as suas decisões, o que os insere na visão liberal sobre o jornalismo.

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historiador britânico Eric Hobsbawn descreve na sua trilogia sobre o “longo Século XIX” como a “Era das Revoluções”3, como “jornalismo de iluminação”, referência ao iluminismo. A expressão é usada tanto no sentido da exposição “à luz”, quanto de esclarecimento político e ideológico (MARCONDES FILHO, 2002, p. 11). Ele se contrapõe à tentativa de quem exerce o poder de manter segredo sobre os negócios públicos. Tal expressão marca fortemente o entendimento de que o jornalismo incorpora as ideias modernas, como a de que o predomínio da razão levaria a humanidade a um desenvolvimento irreversível. No mundo ocidental, o jornalismo é influenciado pela doutrina liberal da informação. Essa visão traduz em grande medida a aproximação entre o jornalismo e a trajetória da modernidade. Ela é concebida num contexto de luta contra o poder absolutista, a partir do século XVII, tendo como um dos seus marcos a publicação, pelo poeta britânico John Milton, em 1644, de um panfleto intitulado “Aero-pagítica – Discurso pela liberdade de imprensa na Inglaterra”, defendendo a impressão e publicação sem autorização nem censura governamental (BULIK, 1990, p. 61-63) – que são próprias da época. A publicação desse material é considerada um marco do enfrentamento à censura imposta pelo Estado, num período em que o absolutismo ainda não era uma página virada. No texto, Milton diz que “se não se empregar a prudência”, matar um homem seria o equivalente a “matar um bom livro”, tendo em vista que o homem é uma criatura racional e o livro é portador da razão (BULIK, 1990, p. 62). Outras fontes de inspiração da doutrina liberal da imprensa são a Declaração da Virgínia, de 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, da revolução francesa, ambas sob influência iluminista. A declaração da Virginia consagra a liberdade de imprensa como “uma das defesas mais poderosas da liberdade”. Nesse texto, consta a primeira emenda da Constituição norte-americana, considerada um dos marcos da liberdade de imprensa nos EUA, com influência no debate sobre a imprensa nas democracias liberais: “o Congresso não fará nenhuma lei restringindo a liberdade de palavras ou de imprensa”. A declaração francesa segue a mesma linha: “a livre comunicação dos seus pensamentos e suas opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever, imprimir livremente, ficando sujeito a responder pelo abuso desta liberdade nos casos determinados pela lei” (BULIK, 1990, p. 66). A doutrina liberal da imprensa se sustenta na liberdade de informação, pluralismo de ideias e de meios de comunicação, concepção gestada no decorrer do século XVIII, baseada no Iluminismo. O chamado liberalismo das Luzes tem como base a concepção de liberdade e os princípios de verdade (BULIK, 1990, p 64-65). A verdade, segundo a

3 A “Era das Revoluções, segundo Hobsbawn vai da Revolução Francesa, em 1789 até por volta de 1830, quando a consolidação das revoluções burguesas faz com que a efervescência política dos tempos revolucionários dê lugar à “Era do Capital”, marcada pela consolidação do capitalismo no mundo ocidental, particularmente na Europa.

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concepção liberal, seria resultado do choque das ideias e do pluralismo dos órgãos de informação – o que significa que os liberais rejeitavam a ideia de verdade como monopólio de alguma instituição. Já no século XIX, o ideário do liberalismo econômico inglês, que reivindica a liberdade para as forças produtivas, é incorporado à liberdade de informar, que a essa altura já era garantida aos indivíduos. Essa incorporação estende aos meios de difusão, então em processo de transformação em empresas, a liberdade para informar. O jornalismo está nascendo enquanto atividade industrial, aplicando os princípios da livre empresa às empresas de comunicação. Os liberais defendem que a democracia política e a economia capitalista garantiriam o desenvolvimento da imprensa, que usando os princípios da liberdade de publicação e de imprensa, garantida pela supressão de medidas administrativas preventivas usadas até então (autorização prévia para publicar, censura e valores a serem pagos ao governo para poder publicar), vai se transformar numa instituição capaz de defender o cidadão de arbitrariedades cometidas pelo Estado (BULIK, 1990, p. 68). No século XX, a doutrina liberal da imprensa, que no seu berço reivindica liberdades individuais e a defesa do cidadão contra o Estado, vai sofrer uma alteração, para assumir a característica de direito à informação. Nesse caso, o Estado passa a ser um fiador das liberdades, assegurando o direito à informação, sem, no entanto, deter o controle dos canais de difusão da informação. Os liberais entendem que a liberdade de expressão, sozinha, não garante mais o direito dos cidadãos à informação. O direito será assegurado pela livre expressão, mas também pela liberdade de acesso às fontes, o dever do poder público de prestar informações à sociedade, entre outras normas que pretendem proteger o exercício profissional do jornalismo (BULIK, 1990, p. 76-77). A promessa do liberalismo de uma imprensa que consiga buscar a verdade e defender o cidadão de abusos cometidos pelo Estado, transformando-se numa instituição a funcionar dentro do sistema de freios e contrapesos, desenvolvido por Montesquieu (1996), passa também pela capacidade dos veículos de comunicação de se viabilizar enquanto empresas capitalistas. Segundo a visão liberal, a independência editorial é sustentada pela independência financeira (SILVEIRA, 2004, p. 103). Como lembra Eugênio Bucci, essa independência editorial4 seria capaz de conquistar a credibilidade necessária para a sobrevivência dos veículos de comunicação. Os veículos

4 Independência editorial significa a capacidade de um jornal de veicular informações sem que interesses políticos ou econômicos interfiram no conteúdo do material jornalístico, ainda que tais informações contrariem os interesses políticos e econômicos de governantes e/ou anunciantes. Eugênio Bucci afirma que “a independência editorial é o que materializa, no cotidiano, o instituto da liberdade de imprensa. Isto é: a democracia garante a liberdade de imprensa, e a independência editorial é o requisito básico para que a liberdade de imprensa ganhe corpo e vida própria. A independência editorial, portanto, tornou-se pressuposto obrigatório para que, em nome do cidadão, se investiguem se escrevam e se publiquem as notícias.” (BUCCI, 2000, p. 58).

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de comunicação precisam ter credibilidade para conseguir manter altos índices de circulação e, por consequência, ter melhores condições de negociar no mercado publicitário (BUCCI, 2000, p. 56-60). Isso acontece porque as empresas jornalísticas atuam simultaneamente em dois mercados: o de leitores5 e o publicitário (SILVEIRA, 2004, p. 70). A capacidade de uma empresa jornalística de negociar no mercado publicitário depende da sua capacidade de atrair audiência ou leitores. Quanto maior o número de leitores, telespectadores ou ouvintes, maior a capacidade dessa empresa para barganhar no mercado publicitário. E a forma de conquistar, atingir grandes audiências e circulações é a credibilidade conquistada pela independência editorial6. Independência financeira – e consequentemente editorial – significa também que o veículo de comunicação consegue manter do Estado o distanciamento necessário para cumprir a sua função de fiscalizar os governantes, levando ao leitor/cidadão informações que não estejam contaminadas por interesses políticos e econômicos, o que faz da imprensa um dos pilares das democracias – sempre levando em conta a visão liberal sobre o Estado e o jornalismo. Trata-se de uma tarefa difícil, tendo em vista que a pressão política e econômica tanto pode ser exercida pelo Estado, que maneja grandes volumes de verbas publicitárias, como pelos grandes anunciantes, com seu poder econômico e sua grande capacidade de pressão sobre as empresas jornalísticas. O modelo, porém, precisa de alguns ajustes. A ideia de que a independência com relação ao Estado garante que o jornalismo não sofra pressões na tentativa de alcançar o seu objetivo, que de acordo com o discurso liberal é levar informações isentas para que os cidadãos livres possam se autogovernar, não leva em conta um detalhe: os anunciantes privados também têm interesses, tanto econômicos quanto políticos. E, por investir na publicação dos anúncios que garantem a sobrevivência do jornalismo como negócio, eles também pressionam para que as informações divulgadas pela imprensa não interfiram ou não prejudiquem os seus negócios7. Esse tipo de pressão, muitas vezes, é aceita pelas empresas jornalísticas, sem que as situações cheguem ao conhecimento da sociedade ou que sejam apontadas como tentativa de controle da informação ou atentado à liberdade de imprensa. De qualquer forma, se existe o risco, há também um esforço no intuito de preservar a independência editorial dos interesses dos anunciantes. Um modelo de preservação foi

5 Ou na luta pela audiência, como acontece no caso de meios eletrônicos, como a televisão, o rádio e a internet. 6 É importante lembrar também o outro lado da luta pela audiência, no contexto da qual alguns veículos apelam para temas polêmicos, violentos ou de entretenimento fácil e banal, como em programas policiais e os chamados reality shows. 7 Um exemplo desse tipo de pressão aconteceu em Londrina, durante a gestão do ex-prefeito Nedson Micheleti (PT), que administrou entre 2001 e 2008. O Ministério Público propôs uma ação contra o hipermercado Super Muffato por causa de irregularidades na loja instalada na avenida Madre Leônia Milito. O então prefeito também era réu, junto com a empresa. Os veículos de comunicação não publicaram reportagens sobre essa ação, não por causa de Nedson, mas principalmente por causa do grande anunciante que é a rede de supermercados. Trata-se de um exemplo contundente da prática da autocensura por veículos de comunicação para preservar os interesses de algum anunciante.

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criado pelos norte-americanos na década de 1920, na revista semanal Time e prevalece até hoje no cronograma de algumas das grandes empresas de comunicação8. Trata-se do “Método igreja-estado”, que visa separar a redação do setor publicitário da empresa jornalística, garantindo, assim, que os interesses de anunciantes não interfiram no conteúdo editorial do veículo. Na metáfora criada por Henry Luce, dono e fundador da Time, a “igreja” seria a redação, o jornalismo, ao passo que o “estado” seria o setor comercial, o negócio (BUCCI, 2000. p. 60-61).

Entender a imprensa por dentro

A ideia de estudar a mídia por dentro, para saber como são tomadas as decisões editoriais, como defendem Busetto e Jeanneney, encontra eco em alguns teóricos do jornalismo. Entre os vários estudos sobre a mídia que buscam compreender por que “as notícias são como são”, Nelson Traquina (2004) destaca a chamada “Teoria Organizacional”, proposta pelo norte-americano Warren Breed. Ele parte do pressuposto de que a forma de organização do trabalho na redação “socializa” e enquadra os jornalistas na linha editorial do jornal (TRAQUINA, 2004, p. 152). Nessa visão, os “constrangimentos organizacionais sobre a atividade profissional do jornalista” levam-no a se conformar “com as normas editoriais da política editorial da organização” (TRAQUINA, 2004, p. 152). Seguindo esse raciocínio, o jornalista “socializado” na política editorial da organização por meio de uma sucessão sutil de recompensas e punições. Esse sistema faz o profissional assumir para si a linha editorial do veículo de comunicação. O autor identifica que, sempre que o jornalista cumpre as tarefas em conformidade com a linha editorial da empresa em que trabalha, é recompensado tendo o seu trabalho destacado, por exemplo, com a ocupação de espaços mais nobres dentro do jornal (manchetes, chamadas de capa) e assumindo tarefas consideradas mais relevantes dentro da organização, como por exemplo, ser destacado para fazer reportagens reconhecidas dentro do campo jornalístico como mais relevantes. Por outro lado, a não conformidade com a linha editorial, relega o trabalho do jornalista a uma posição menos privilegiada, além da “alteração de reportagens, cortes, reescrita de textos” (TRAQUINA, 2004, p. 153).

Considerações finais

8 O “método estado-igreja” é usado no jornalismo brasileiro até hoje. O manual de redação da Folha de S. Paulo, por exemplo, no verbete “publicidade”, informa que “a redação e a publicidade da Folha são departamentos autônomos, sem relação de subordinação. Apenas a Secretaria e a Direção de Redação estão autorizadas a manter contato com a Publicidade. A Publicidade tem prioridade na divisão do espaço do jornal. É ela quem determina o espelho da edição. Mas não se deve subordinar o trabalho jornalístico aos interesses, presumidos ou manifestos, de anunciantes. A Folha não produz matérias pagas e não publica material publicitário sem deixar claro para o leitor essa condição” (Folha de S. Paulo, 1992, p. 21).

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Conhecer o que dizem os estudos acerca da imprensa, mesmo os feitos dentro do contexto da comunicação, em que pese os limites citados por Busetto e Jeanneney, é importante para os historiadores que pretendem ter a mídia como objeto de suas pesquisas. O diálogo com os estudos de comunicação permite apreender o funcionamento interno da mídia e contribui para que, com base nesses estudos, o historiador consiga dar a contextualização que os pesquisadores da comunicação dificilmente dão. Como ressaltam os autores aqui estudados, não resta dúvida quanto à relevância da mídia na sociedade contemporânea, por isso é essencial estudar o seu passado, as formas pelas quais foram construídos os conglomerados dos grandes grupos de comunicação e dar as respostas para o presente.

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A “REVISTA DA ASSOCIAÇÃO TIPOGRÁFICA BAIANA” E A HISTÓRIA DO TRABALHO

Humberto Santos de ANDRADE1

1. As Fontes

Na investigação das associações mutualistas, é interessante notar, do ponto de vista das fontes, o aumento e a diversificação do que é utilizado nas pesquisas. Não somente as fontes que eram comumente utilizadas, tais como estatutos, notícias em jornais, relatórios e atos de governo das províncias e, mais tarde, estados; como também, com a descoberta, por pesquisadores, de novas fontes, como por exemplo, a própria produção impressa e iconográfica legada pelas associações tem sido descoberta e se tornado importante meio para o conhecimento da trajetória das mutuais. Nos trabalhos de pesquisa sobre o mutualismo no Brasil, tradicionalmente, o uso das fontes para compreender tal experiência encontra certas dificuldades com as quais o pesquisador do tema muito constantemente se depara. O mais comum, segundo Claudia Viscardi (VISCARDI, 2010, p. 26), são três situações distintas. Na primeira dessas situações, o pesquisador encontra disponível um conjunto documental completo acerca de uma ou mais sociedades de socorros mútuos; na segunda situação, o historiador se depara com a total ausência de conjuntos documentais completos e, então, se vê compelido a buscar fontes alternativas; na terceira e última dessas situações, a realidade encontrada é a combinação das duas anteriores, sem contudo encontrar conjuntos documentais completos. Aqui, como em muitos domínios da ciência histórica, o historiador tem que executar o seu trabalho com o olhar investigativo e exercitar um faro apurado na busca de documentos que subsidiem a sua pesquisa. Tarefa que exige persistência e sagacidade na caça às fontes que, em geral, estão escondidas entre caixas e maços de documentação pouco preservados e também sem catalogação que facilite o trabalho do pesquisador. Aparenta-se mais a pesquisas arqueológicas dentro dos arquivos das instituições que detêm a guarda desses documentos, isso quando detêm. Quando se tem sorte, é possível encontrar a documentação nas sedes das associações, quando elas ainda funcionam. Ou ainda, em mãos de antigos sócios ou seus herdeiros. Esta situação muito pouco provável, a não ser

1 Mestrando - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected]

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que se conheçam tais pessoas. O que seria um golpe de sorte para o historiador que se interessa pela temática. Quando o historiador encontra disponível um conjunto documental completo, o que é uma situação privilegiada e de difícil ocorrência, tem-se acesso aos estatutos, aos relatórios de exercício, às atas de assembleias, aos relatórios de movimento financeiro, aos relatórios de entrada e saída de sócios, às correspondências, ao material iconográfico e, em casos de categorias específicas como a dos tipógrafos, pode-se encontrar periódicos produzidos pela mutual que é uma fonte valiosíssima, pois permite conhecer de perto o que pensavam os integrantes de determinado ofício por meio de sua própria fala. Situação raríssima entre as fontes referentes ao mutualismo. Esse tipo de situação, segundo Viscardi (2010, p. 27), permite uma análise verticalizada da documentação e uma análise qualitativa sobre a trajetória de determinada mutual. Os resultados de uma pesquisa dessa natureza não permitem generalizações sobre o fenômeno, porém possibilitam um aprofundamento no entendimento do que foi o mutualismo e, consequentemente, amplifica a percepção do que era e qual a importância desse tipo de associação para os contemporâneos, em especial aqueles que compunham o universo de sócios das organizações. Na hipótese de não se encontrar um conjunto documental completo ou parcialmente completo, a situação para o pesquisador se torna complicada e ele terá que buscar algumas alternativas que possam subsidiá-lo na investigação do fenômeno. Resta ao pesquisador procurar indícios das mutuais em jornais da época e em publicações oficiais, além de correspondências enviadas pelas associações mutualistas às autoridades de então. Compulsar-se-á uma quantidade imensa de documentos nos arquivos em busca de fontes para a pesquisa. Nesta situação, a análise realizada pelo pesquisador se orientará por uma visão panorâmica do fenômeno dando um enfoque maior às linhas mais gerais que caracterizam o mutualismo. Na combinação de alguns conjuntos completos ou parcialmente completos com a ausência desses conjuntos, o que seria talvez a situação mais comum, o historiador deve ser prudente e não incorrer no erro de recolher situações particulares das mutuais com documentação mais farta e generalizá-las para as outras com documentação mais parcimoniosa. O perigo de se generalizar situações, muitas delas específicas, é o de anuviar o entendimento do fenômeno, situação a que não é difícil de se incorrer. O mutualismo tem se mostrado cada vez mais complexo e diversificado. Por isso, toda a cautela é necessária quando se estiver tirando as conclusões de determinados estudos.

2. “Artes e Ofícios” na Salvador da Província e do Estado

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Na cidade do Salvador de meados e fins do século XIX, o mercado de trabalho poderia ser dividido em duas grandes esferas – a do trabalho livre e a do trabalho escravo. Havia, como escreveu Katia Mattoso (1992, p. 530), uma “dupla estrutura do trabalho urbano”. Essa dupla estrutura compunha-se de um segmento constituído por trabalhadores brancos, mulatos e negros livres e outro segmento constituído exclusivamente por escravos. Num contexto em que o exercício de alguns ofícios era vedado aos escravos, é fundada a 30 de outubro de 1870, por tipógrafos soteropolitanos, a Associação Tipográfica Baiana. Não se sabe se a atividade gráfica era interditada aos escravos, dado que no universo das “artes e ofícios” havia uma hierarquização em que se compartimentava essa estrutura em ofícios prestigiosos e outros não. Mattoso relaciona alguns desses ofícios considerados prestigiosos em meados do século XIX. Eram eles os de ourives, colchoeiros, fabricantes de mastros ou relojoeiros; já os ofícios de toneleiro, caldeireiro, serrador de madeira e calafate entre outros, eram considerados atividades mais humildes (MATTOSO, 1992, p. 534). No levantamento realizado por essa historiadora, não aparece o ofício de tipógrafo nessa relação hierárquica da estruturação das ocupações. Contudo, por outras evidências2, sabe- se que o trabalhador do setor gráfico via-se, nos termos de hoje, como uma “categoria profissional” privilegiada. Robert Darnton, analisando o massacre de gatos relatado por Nicolas Contat, capitaneado por Jerome (segundo Darnton, tal personagem seria o próprio Contat) e Léveillé, dois aprendizes numa tipografia parisiense, assinala evidências das diferenciações que hierarquizavam o mundo das atividades artesanais. Quando da passagem do personagem Jerome pelo ritual chamado “o uso do avental” (la prise de tablier), que, ao que parece, ocorria logo depois da entrada na oficina tipográfica, e os operários terem se dirigido à taverna preferida, emissários que eram enviados aos açougues pregavam que determinados cortes de carne somente eram dignos dos tipógrafos, e outros, inferiores, deveriam ser deixados para os sapateiros, um ofício menos digno que o daqueles (DARNTON, 1986, p. 116). No espaço restrito que determinados ofícios instituíam para si no mundo do Antigo Regime, várias oposições eram estabelecidas. Tanto em relação à moralidade burguesa farisaica como também em relação a outros trabalhadores.

Os operários [tipógrafos] posicionavam sua ‘república’ contra esse mundo [dos burgueses], e também contra outros grupos de oficiais assalariados – os sapateiros, que comem cortes inferiores de carne, e os pedreiros ou

2 Cf. DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 116; VITORINO, Artur José Renda. Máquinas e Operários: mudança técnica e sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000, pp. 96-7. Além dessas referências que, no primeiro caso, tratou-se de tipógrafos franceses protagonistas do hoje célebre (pelo menos entre os historiadores) massacre de gatos numa oficina tipográfica parisiense do Antigo Regime; e, no segundo caso, tratou-se de tipógrafos do Rio de Janeiro no século XIX; encontramos referências às especificidades do ofício nos próprios impressos da Associação Tipográfica Baiana, vide, a título de exemplo, a Revista da Associação Tipográfica Baiana, nºs 15 e 16, p. 35-38, em que foi publicado o discurso proferido pelo tipógrafo Joaquim Cassiano Hyppolito na sessão de fundação da Associação em 30 de outubro de 1870; também no mesmo periódico, os nºs 8 e 9, p. 130-132, e o nº 3, p. 52-53.

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carpinteiros, que eram sempre bons para uma briga, quando os tipógrafos, divididos por ‘habilitações’ [a casse e a presse], visitavam as tavernas no campo aos domingos. Entrando num desses ‘setores’ [as ocupações], Jerome assimilou um ethos. Identificou-se com uma arte; e, como compositor assalariado, em sua plena condição, recebeu um novo nome. Tendo cumprido, na plenitude, um rito de passagem, no sentido antropológico da expressão, ele se tornou um Monsieur. (DARNTON, 1986, p. 120, grifos nossos).

Na Bahia de fins do século XIX e início do XX, os tipógrafos, para além da necessidade primordial de associar-se no intuito de fortalecer a “classe”, também buscavam reforçar as prerrogativas outrora perdidas ou em vias de dissolução. No discurso de fundação da Associação Tipográfica Baiana, assim se manifestava Joaquim Cassiano Hyppolito, um dos membros fundadores da sociedade de socorros mútuos dos artistas gráficos baianos:

O tempo, [...], urge. Estamos em pleno século XIX, o século das Luzes e do Progresso. Ficar estacionário ante a revolução que se opera na sociedade é suicidar-se. ‘Caminhar, eis tudo. É o destino do homem; é a legenda dos povos; é o fadário da humanidade’. E por isto vos convocamos para a reunião de hoje, a fim de envidarmos todos os esforços para sustentação de nossos direitos e privilégios arrancados, de nossa dignidade e de nossas necessidades mais palpitantes menosprezadas. [...] Temo-nos esquecido de que uma hora que passa é parte de nossa existência que se esvai; e que hoje estamos mais perto da sepultura do que ontem; que cada instante pode decidir de nossa sorte e de nossa vida e que o infortúnio pode levar- nos às calçadas das ruas, com o braço estendido a implorar caridade pública. [...] E se ainda não bastasse, [...] um inimigo audaz levanta-se diante de nós, [...] disposto a esmagar-nos. Refiro-me ao pensamento que tem a Mesa dos Órfãos de São Joaquim de fundar um estabelecimento tipográfico, em grande escala, com as três artes, aproveitando-se para esse fim dos meninos órfãos ali recolhidos. A realizar-se este pensamento, as classes de tipógrafos, livreiros e litógrafos ficam extintas entre nós, porquanto, dispondo os mesários de recursos pecuniários e de influência, hão de por força fazer convergir para o seu estabelecimento todas as impressões, encadernações etc. É preciso reagir de toda e qualquer forma possível. [...] E o meio, o mais essencial, é seguramente a organização de uma associação que nos proteja e nos ampare – na falta de trabalho, na velhice e na moléstia – e também a criação, na imprensa, de um órgão que defenda nossos interesses e instrua nossos associados, fazendo- lhes patente os melhoramentos introduzidos nos países mais adiantados (REVISTA..., 1903b, p. 36-37, grifos nossos).

O discurso de Joaquim Cassiano Hyppolito insere-se em duas vertentes que se vislumbravam aos trabalhadores de ofício no Brasil e na Bahia daquele contexto de meados e fins do século XIX. Uma ligada a um olhar retrospectivo, em que, desde o fim das corporações, sobretudo os mestres de ofício haviam perdido seus privilégios e a estrutura hierárquica mais enrijecida típica do Antigo Regime já não mais vigorava, o que possibilitava uma ampliação da oferta de mão de obra que não necessitava passar pelos exames que habilitavam um candidato a exercer determinado ofício e fragilizavam os “direitos e

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privilégios”; outra vertente relacionava-se a um olhar em perspectiva, ou seja, a necessidade de organizar-se para fugir às adversidades oriundas das relações capitalistas que se consolidavam na sociedade baiana e brasileira, e que geravam uma série de desconfortos profissionais e insegurança quanto ao dia de amanhã, mas que não mais podia conceber a rigidez peculiar às corporações de ofício extintas, no Brasil, em 1824. Nessa última vertente, o objetivo é o socorro mútuo num primeiro momento, mas que deveria ser incrementado com a criação de um órgão de imprensa que defendesse os interesses e instruísse os associados da Tipográfica Baiana. As três “classes” ali representadas na fundação da Associação – tipógrafos, livreiros e litógrafos – compunham o que se poderia chamar de campo das artes gráficas. No que tange à manutenção de privilégios e a uma reserva de mercado para os artistas gráficos, pode-se perceber, sobretudo na preocupação com o esmero nos resultados dos trabalhos realizados e na devida qualificação dos membros do ofício, a tentativa de não abrir-se para qualquer um a possibilidade de exercício da atividade de tipógrafo. Torna-se patente esse intento de preservação do mercado de trabalho vinculando a qualidade dos serviços prestados ao mercado das artes gráficas e a apropriada instrução aos membros do ofício. Para isso, era necessária a boa formação dos aprendizes de tipógrafo e o rigor nos exames de qualificação. O fundador Joaquim Hyppolito acrescentava no seu discurso que “outra necessidade imperiosa” era a de pensar-se no “mau sistema de aprendizagem” que à época era “usado”. Segundo ele,

Meninos, que, às vezes, mal sabem ler, e sem moralidade alguma, são admitidos nas tipografias, sem que para isso preceda o mais ligeiro exame. Melhorar esse sistema, sujeitá-lo a regras especiais, a fim de que os futuros esteios do invento precioso do imortal Gutenberg satisfaçam os preceitos dessa sublime arte – é uma das medidas mais importantes a que devemos prestar consideração (REVISTA..., 1903b, p. 37).

Diante do exposto, nota-se a atenção voltada tanto para aspectos técnicos quanto outros relativos à conduta dos indivíduos. A necessidade e o cuidado para com o fato de o tipógrafo ser relativamente bem instruído, além de prestigiar o ofício, convinham aos objetivos de resguardar o mercado para um número restrito de artistas gráficos. A precedência de um exame remonta às práticas das corporações de ofício. O sistema deveria ser submetido “a regras especiais”. Preocupações típicas daqueles que, ao longo da história, vinham perdendo privilégios outrora garantidos. Os futuros “esteios” da imprensa deveriam estar qualificados para atender aos “preceitos” da sublime arte que era a de ser tipógrafo, arte da qual o inventor da imprensa era seu pioneiro. A dignidade do ofício de tipógrafo, cultivada desde a modernidade, não foi olvidada durante o século XIX.

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Essa visão de mundo elaborada pelos tipógrafos pode ser observada ainda nos seus impressos, ainda que, com a chegada do Brasil ao século XX, novas ideias tenham aportado por aqui e os tipógrafos baianos não tenham ficado imunes; ao contrário, abriram as páginas dos seus periódicos para a exposição daquilo que já vinha, desde o século XIX, convulsionando a Europa. As representações dos trabalhadores agremiados na Associação Tipográfica Baiana, durante a sua trajetória iniciada no ano de 1870 e culminando no ano de 1937 (recorte definido pelas fontes encontradas), são, como escreve Roger Chartier (2002, p. 17), “esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”. Tania Regina de Luca escrevendo acerca das alterações que envolveram a grande imprensa no início do século XX, chama a atenção para o fato de que a pequena imprensa não foi eliminada com esse advento. As pequenas tipografias continuaram a existir, fazendo parte do cenário das grandes cidades. “Temporalidades e ritmos diversos, típicos de uma modernização contraditória e de um país plural, conviviam e articulavam-se de forma complexa” (LUCA, 2008, p. 2-3).

3. Um Órgão de Imprensa dos Tipógrafos Baianos

Nesse contexto, de “temporalidades e ritmos diversos”, é criada a Revista da Associação Tipográfica Baiana, dando materialidade àquele intento que os fundadores da Associação já nutriam desde o ano de 1870. Seus objetivos assim eram delineados:

Dedicada às artes gráficas, esta Revista se ocupará, principalmente, de coisas que digam respeito ao desenvolvimento moral e material dos ramos em que se subdividem as mesmas artes, acompanhando, quanto possível o seu progredir nos países mais adiantados. Para isso, faremos aquisição de revistas e obras, das quais extrairemos tudo que possa ser útil e aproveitável à satisfação do nosso desejo. Trabalhando em tais moldes, a Revista da Associação Tipográfica Baiana destina-se a prestar valiosos serviços a quantos se interessam pelo desenvolvimento das artes gráficas entre nós. Artigos que não se coadunem com a índole e a missão que nos propomos cumprir – absolutamente não encontrarão lugar nestas colunas. Queremos o progresso das artes pela propaganda ordeira e sensata, pelo cultivo da inteligência e difusão das boas ideias. Reafirmamos aos que nos leem que a Revista será colocada e mantida na altura da simpatia e do prestígio de que se desvanece gozar a Associação Tipográfica Baiana. No intuito de tornar mais interessante o nosso periódico, entre outros melhoramentos, pretendemos criar uma seção literária, para o que esperamos obter a honrosa colaboração de amestradas penas. Desde já contamos com o generoso apoio da imprensa baiana, a qual, e bem assim os dignos leitores, indultarão as faltas que forem notadas na Revista, atenta a humildade dos encarregados de sua direção (REVISTA..., 1902a, p. 2-3).

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A enunciação dos objetivos da Revista permite perceber os limites e liames em que se enquadravam as perspectivas dos tipógrafos (pelo menos daqueles que fundaram a Revista) na cidade do Salvador no ano de 1902. A tônica inicial na escrita é hegemonicamente a de atingirem-se os objetivos de instrução técnica e moral. Foi uma constante nas páginas desse periódico um tom conciliador que evitava o confronto entre grupos sociais. Quando se fez a reserva de obstar-se a publicação de artigos que não se coadunassem com a índole e a missão a que os administradores da Revista se propunham a cumprir, antevê-se a tentativa de não explorar os conflitos e contradições que pairavam não somente sobre as relações de trabalho, mas, como observou Darnton (1986, p. 113), aos elementos dos rituais e do simbolismo popular ou, especificamente, às visões e representações dos tipógrafos que porventura evidenciavam as clivagens no mundo do trabalho. O progresso das artes deveria ser construído por meio da “propaganda ordeira e sensata”. As “más” ideias, ou as ideias “perigosas”, não haviam de ter lugar nas páginas da Revista. O prestígio e simpatia da Associação Tipográfica Baiana deveriam ser mantidos e cultivados pelo seu órgão de imprensa. Ela, que outrora contou entre seus sócios honorários a figura de Ruy Barbosa (REVISTA..., 1903a, p. 170), não deveria ter seu nome e imagem maculados por qualquer artigo publicado sem a devida vigilância e controle do seu conteúdo. Percebe-se que, naquele contexto de deferência, o prestígio social da Associação era algo de valor para Diretoria e consócios da Tipográfica Baiana. Lá na sua Instalação, na data de 16 de abril de 1871, a presença do vice-presidente da Província, o Dr. Francisco José da Rocha, foi algo simbolicamente notável, até porque a presidência da Sessão Inaugural foi franqueada a essa autoridade do Governo Provincial ali presente. Longe de se fazer juízos de valor com esta análise do texto com os objetivos da Revista, mas ao contrário, procura-se fazer o exercício de tentar compreender as condições em que viviam aqueles homens que se dedicavam ao ofício de tipógrafo, proporcionando esclarecer as ações possíveis de um grupo de trabalhadores dentro de um contexto restringente. Até porque, nas páginas da Revista, em muitos momentos encontram-se registros da insatisfação dos tipógrafos com as relações de trabalho estabelecidas pelos proprietários das oficinas tipográficas. Em trecho do primeiro Relatório de Exercício da Associação publicado na Revista, podemos comprovar as tensões entre trabalhadores e seus patrões: “Devemos proceder a estudos sérios para melhorar o sistema de trabalho que nos impõem os proprietários de tipografias com prejuízo nosso, sem que a paga, mesquinha como é, corresponda a esse mesmo trabalho” (REVISTA..., 1903a, p. 169). Corroborando a ideia de que a Associação Tipográfica Baiana, muitas vezes, extrapolava seus objetivos estatutários e ampliava seu discurso para além daquilo que era típico às associações mutualistas, essa

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e outras evidências proclamam a existência de contradições dentro e fora da sociedade, bem como nas páginas da Revista da Associação.

4. A Estrutura da Revista da Associação Tipográfica Baiana

O layout da capa da revista era constituído por duas colunas verticais entre duas colunas horizontais, uma na extremidade superior e outra na inferior. Na coluna superior horizontal ficava gravado o nome da revista e seu subtítulo. Na coluna vertical à esquerda estavam gravados os nomes dos membros da administração da revista. Na coluna vertical à direita estava exposta a periodicidade da revista, que era mensal, o ano e o número, além do sumário. Na coluna da extremidade inferior vinha um memorando que indicava o destino a que se devia encaminhar qualquer correspondência à revista. Na folha de rosto continha o que se denominava “Instruções Permanentes”. Nestas, expunha-se por quem a Revista era dirigida, neste caso, a Associação Tipográfica Baiana, e o fim a que estava destinada, que era o de “fornecer conhecimentos teóricos e práticos sobre todos os ramos das artes gráficas”, constituindo-se, portanto, numa “publicação técnica e instrutiva” (REVISTA..., 1902a, p. 2). O custo de cada número da Revista ficava em 500 réis, os quais eram pagos no ato da entrega do periódico. Essa receita era, segundo o exposto nas “Instruções...”, destinada ao melhoramento da própria Revista como também da Associação. Além da venda à vista e das assinaturas, outra fonte de receita eram os anúncios que eram feitos por meio de contratos semestrais. Os preços eram definidos pelo espaço que ocupavam nas páginas da Revista. Um anúncio de página inteira custava 15$000 (quinze mil réis); um de meia página 8$000; e, por um anúncio de ¼ de página, pagava-se 5$000. Por fim, as “Instruções...” terminavam com a indicação dos locais de venda da Revista na capital baiana, os quais eram, à época, a Livraria Magalhães, situada na Rua Direita do Palácio nº 26, e na Encadernação Vicente, situada na Rua do Colégio nº 22. O primeiro número da Revista, ao qual, a título de demonstração, escolheu-se para mais detidamente analisá-lo aqui, foi publicado no mês de julho de 1902. A administração do periódico estava a cargo de quatro consócios Associação, Manoel M. Cruz, Antonio J. de Carvalho, F. Miguel Chavez e Prudêncio de Carvalho, este último era o gerente da publicação e também o proprietário da tipografia onde fora impresso o periódico. A Revista, no seu primeiro número, contou com dezesseis páginas distribuídas por sete seções. A primeira continha uma mensagem aos tipógrafos em que a Imprensa era exaltada desde os tempos de Gutenberg como uma esperança para a humanidade, assim como, naquele momento, a criação da Revista da Tipográfica também representava uma esperança. A segunda seção continha um texto que tratava da importância da Associação Tipográfica e o

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que ela representava para os tipógrafos baianos em termos de espaço de sociabilidade e de solidariedade intraofício. A terceira seção tratava de descrever a Linotipo e o impacto desse invento no campo das artes gráficas. Na quarta seção foram publicadas partes de um Tratado de Tipografia por Henrique Fournier, “traduzido expressamente para esta Revista”. A quinta seção era dedicada à literatura e continha dois poemas, um de autoria do Abade Laménnais, intitulado “O Desterrado”, e o outro de autoria de M. Rozentino, intitulado “O Imortal Forçado”. A sexta seção era denominada “Variedades” e continha um artigo que tratava da fabricação de papel e papelão de madeira. A sétima e última seção era a “Resenha Noticiosa” e continha o registro da morte de um consócio da Associação e o relato dos auxílios concedidos a si e a sua família, como também o registro da morte de outro tipógrafo, sendo que este não fazia parte do corpo de associados do grêmio.

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Fonte: Acervo fotográfico do autor. Figura 1 - Capa do 1º número da Revista da Associação Tipográfica Baiana.

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BIOGRAFIA E POLÍTICA: PANTEONIZAÇÃO E ICONOCLASTIA EM NARRATIVAS DE RAIMUNDO MAGALHÃES JUNIOR

João MUNIZ JUNIOR1

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a narrativa biográfica e a escrita da história construída por Raimundo Magalhães Junior como proposta de interpretação de uma época da história do Brasil. Para tanto, com base na biografia Rui: o homem e o mito (1964), este estudo pretende analisar como Magalhães Junior elabora a narrativa de uma personagem eleita e, por meio dela, tecer uma representação de um período da história brasileira. A biografia de Rui Barbosa assinada por Magalhães é iconoclasta, mas procura ir além da enganosa ideia de detratação e contribuir com uma obra de crítica à mitificação do autor da Réplica. Raimundo Magalhães elabora uma revisão tanto das narrativas biográficas construídas em torno de Rui Barbosa quanto um debate histórico e político do período em que o jurista baiano viveu.

I.

A historiografia experimentou, nas últimas décadas, uma retomada de antigos problemas, isto é, os historiadores voltaram a se preocupar com a narrativa, com o acontecimento e houve, ainda, uma renovação da história política. Embora estas temáticas, de uma forma ou de outra, nunca tivessem desaparecido por completo, ao longo do período em que o movimento dos Annales ocupou posição central na historiografia francesa, essas temáticas foram deixadas em um segundo plano, uma vez que havia o predomínio do pensamento de que apenas as dimensões estruturais de longa duração seriam capazes de apreender os grandes movimentos das sociedades em suas regularidades e permanências, fugindo à superficialidade dos fatos (AVELAR, 2010, p. 157). Segundo Avelar (2010), a partir do final da década de 1960, em meio a diversas críticas a esta pretensão totalizadora, a biografia suscitou preocupações com trabalhos de pesquisa que buscavam demonstrar as tensões existentes entre a ação humana e as estruturas sociais, colocando o personagem e seu contexto numa relação dialética e propondo um processo histórico com sujeito, com agente histórico. O uso da biografia

1 Mestrando – Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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enquanto objeto da história foi se disseminando aos poucos e o estudo de trajetórias individuais passou a ser incorporado ao modelo das dimensões estruturais de longa duração dos Annales (AVELAR, 2010, p. 157). Sobre essa questão, Dosse (2009) destaca que até o final da década de 1980 o gênero biográfico era objeto de críticas até mesmo entre historiadores que não faziam parte dos Annales. Todavia, “Nos anos 1990, os historiadores eruditos, autores de biografias, já não precisam se justificar junto a seus pares por ter escolhido esse gênero, que não constitui mais objeto de depreciação. Ao contrário, tendem a aumentar-lhe o valor.” (DOSSE, 2009, p. 104). Em relação à concepção da existência de uma oposição entre o indivíduo e a sociedade Del Priore defende ser essa uma falsa concepção, pois o indivíduo não se constitui de forma solitária (DEL PRIORE, 2009, p. 10). Concordamos com a autora no sentido de que a vida do indivíduo se encontra inserida numa rede de relações sociais que atravessam a existência desse sujeito ao mesmo tempo que esse indivíduo atua no meio social a que pertence. Acerca do modo de pensar as relações entre indivíduo e sociedade, há uma aproximação entre Avelar (2010) e Del Priore (2009), uma vez que esta última defende uma concepção segundo a qual as biografias servem, para aqueles que se debruçam sobre elas, para que os historiadores possam resolver problemas como: a contradição entre ideias, representações e práticas sociais e, além disso, encontrar um equilíbrio entre o biografado, seu livre arbítrio, suas intenções pessoais e a escala mais ampla da esfera cultural na qual está inserido (DEL PRIORE, 2009, p. 11). A biografia ressurge, nos últimos anos, como uma possibilidade de compreensão do passado, entretanto, é preciso ressaltar que a concepção e os objetivos da biografia não se limitam à narração de acontecimentos da vida dos biografados, mas sim à dialética entre o individual e o social, entre o biografado e seu contexto. Como objeto da história, a biografia ressurge, mas ainda é detectada uma insuficiência de estudos que se debrucem sobre a problemática da escrita da história na biografia, conforme afirma Silva:

Ao mesmo tempo em que as biografias se tornam um fenômeno editorial e um campo revalorizado pela historiografia contemporânea tal fato tem sido pouco estudado no meio acadêmico, ou seja, a crescente demanda sociocultural pelas publicações de natureza biográfica, no qual intelectuais, políticos, aventureiros, cientistas, poetas, escritores e artistas passam a ser alvo da curiosidade pública sobre esses indivíduos ou sua época na esperança de encontrar no outro um reflexo de si mesmo, assim como a forma como o biografismo é exaltado, vilipendiado e exercido no meio acadêmico, não têm sido encaradas como objetos. (SILVA, 2011, p. 2).

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Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a narrativa biográfica e a escrita da história construída por Raimundo Magalhães Junior como proposta de interpretação do Brasil. Para tanto, com base na biografia Rui: o homem e o mito (1979), propusemos analisar, neste estudo, como Magalhães Junior elabora a narrativa de uma personagem eleita e, por meio dela, tecer uma representação de um período da história brasileira. Raimundo Magalhães Junior (1907-1981) foi jornalista, poeta, escritor, historiador e teatrólogo brasileiro. Era reconhecido por seus pares como uma figura incansável em matéria de trabalho, entregue quase que sem medidas ao labor de escritor. Prova disto é que ao pronunciar seu discurso2 de recepção a Raimundo Magalhães Junior na Academia Brasileira de Letras, em 6 de novembro de 1956, Viriato Correia ressalta que, aos 49 anos de idade, Magalhães já contava com mais de 30 publicações de sucesso, e seria exatamente esta produção, diga-se de passagem, não apenas vultosa, mas também de “qualidade”, “profundidade” e “composição meticulosa” a responsável pela candidatura e eleição naquela instituição. Raimundo Magalhães é autor de diversas biografias, entre as quais destacamos: Artur Azevedo e sua época (1953); Ideias e imagens de Machado de Assis (1956); Machado de Assis, funcionário público (1958); Machado de Assis desconhecido (1955); Ao redor de Machado de Assis (1958); Três panfletários do Segundo Reinado (1956); Deodoro a espada contra o Império (1957); Poesia e vida de Cruz e Sousa (1961); Rui, o homem e o mito (1964); A vida turbulenta de José do Patrocínio (1969); Martins Pena e sua época (1971); José de Alencar e sua época (1971); entre outras. Ao todo dezoito biografias de personagens da história brasileira, indivíduos do campo das letras, da política, ou que transitavam em ambas as áreas, tornaram-se objetos de sua produção intelectual.

II.

Em Usos da biografia (1996), Levi analisa, entre outras questões, uma tipologia das abordagens dos historiadores do problema biográfico, elenca e intitula quatro grupos de abordagens: “prosopografia e biografia modal”; “biografia e contextos”; “a biografia e os casos extremos”; e finalmente, “biografia e hermenêutica” (LEVI, 1996, p. 167-182). Na primeira abordagem, no que diz respeito à prosopografia, os elementos biográficos são considerados reveladores, com valor histórico, quando apresentam alcance geral. A fim de entrar nesse tipo análise, a biografia precisa dar conta não apenas de

2 Cf. Discurso do Acadêmico Viriato Correia em recepção ao Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior. Disponível em: . Acesso em: 09 de dezembro de 2012.

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elementos singulares concernentes à trajetória de uma personagem, mas como o retrato desse indivíduo permite uma visão mais abrangente da época em que atuou. Quanto à biografia modal, ainda no bojo do primeiro grupo, a biografia seria não de uma pessoa singular, de reconhecido destaque em seu meio social, mas de um indivíduo capaz de concentrar em sua trajetória todas as características do grupo social a que pertence. Em relação ao segundo grupo de abordagens, denominada “biografia e contextos”, Levi afirma que esse grupo busca estudar o biografado relacionando-o ao seu contexto, a fim de entender como o retrato de uma época pode ser pintado em uma biografia. Sobre a “biografia e os casos extremos”, Levi (1996) chama a atenção no sentido de que, às vezes, as biografias são usadas apenas para esclarecer o contexto, nesses casos, o contexto social é tratado de forma demasiadamente rígida, e, apesar de dar liberdade às ações dos agentes, ao mesmo tempo estes perdem quase que totalmente suas ligações com aquilo que o autor denomina “sociedade normal”. É o caso, por exemplo, de O queijo e os vermes (1998), no qual, segundo Levi, Ginzburg usa a biografia de Menochio para analisar a cultura popular por meio de um caso extremo. Por fim, Levi destaca que a abordagem que leva em conta “biografia e hermenêutica” ao:

[...] sugerir que é preciso abordar o material biográfico de maneira mais problemática, rejeitando a interpretação unívoca das trajetórias individuais, ela estimulou a reflexão entre os historiadores, levando-os a utilizar as formas narrativas de modo mais disciplinado e a buscar técnicas de comunicação mais sensíveis ao caráter aberto e dinâmico das escolhas e das ações. (LEVI, 1996, p. 178).

Podemos pensar a biografia de Raimundo Magalhães Junior valendo-nos de uma abordagem que estabeleça uma análise baseada em dois dos modelos de estudo apresentados por Levi, isto é, “biografia e contextos” e “biografia e hermenêutica”. Estes dois modelos de abordagem nos permitem trabalhar com nossa proposta, levando em consideração que a trajetória de um indivíduo, não importa o quão original ela seja, não pode ser estudada unicamente por meio de seus desvios ou singularidades, mas apresentando como cada desvio ocorre em um contexto histórico que o justifica (LEVI, 1996, p. 176). Além do mais, ambos os modelos apresentam-nos a sugestão de que o material biográfico precisa ser analisado de forma problemática levando em conta que as escolhas, ações e posições são abertas, dinâmicas, e não unívocas. Obra que tem uma contribuição significativa e recente sobre a temática do biografismo é a de Dosse (2009), que analisa historicamente as produções biográficas conforme essas se enquadram em seus contextos de criação, a fim de verificar os graus de

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intensidade – maior ou menor – da escrita biográfica e como se estabeleceram ao longo dos anos as relações entre biografia e história. Podemos evidenciar, entre as várias discussões presentes no trabalho de Dosse, a análise que o autor desenvolve em torno do caráter híbrido do gênero biográfico. Nas palavras dele, enquanto:

Gênero híbrido, a biografia se situa em tensão constante entre a vontade de reproduzir um vivido real passado, segundo as regras da mimesis, e o polo imaginativo do biógrafo, que deve refazer um universo perdido segundo sua intuição e talento criador. Essa tensão não é, decerto, exclusiva da biografia, pois a encontramos no historiador empenhado em fazer história, mas é guindada ao paroxismo no gênero biográfico que depende ao mesmo tempo da dimensão histórica e da dimensão ficcional. (DOSSE, 2009, p. 55, grifo do autor).

Vale destacar que a biografia não fica presa apenas à condição criadora do biógrafo, condição esta que Dosse denomina “arte”. Na verdade, o gênero biográfico busca estar contemplado pelo verídico, nas fontes escritas, nos depoimentos orais, existe no biografismo a preocupação em dizer a verdade sobre a personagem biografada. Mais do que aferir o quanto de verdade ou ficção se encontra presente na obra de Raimundo Magalhães, nos interessa entender o processo de narrativa do autor, como ele preencheu as lacunas documentais, a forma, o caminho de criação do autor. Reflexões sobre a escrita biográfica tornam necessário fazer referência ao texto A ilusão biográfica (1996), de Bourdieu. O autor defende que a elaboração de uma narrativa de vida é uma “ilusão biográfica”, pois, para ele, é questionável o tipo de biografia marcada por uma ordem cronológica e linear, que estabelece um sentido teleológico para o indivíduo. Bourdieu afirma que, nesses casos, não são levados em conta as peculiaridades do contexto, e as especificidades da trajetória do indivíduo tornariam escolhas, ações e personalidades múltiplas, plurais e, em determinados momentos, também contraditórias. O autor aponta que para escapar da tradição biográfica seria necessário reconstituir não somente o contexto, mas também a conjuntura social na qual estava inserido o indivíduo, respeitando os vários campos e momentos da vida, ficar atento aos documentos e às redes de sociabilidade em que o indivíduo biografado esteve inserido. Levi e Dosse criticam a perspectiva apontada por Bourdieu. Para o sociólogo francês não é possível vencer a “ilusão biográfica” no processo de elaboração da escrita da biografia e esta seria o produto das tentativas de se descrever uma vida de modo cronológico, linear e teleológico. Dessa forma, o autor propõe o estudo das trajetórias dos indivíduos ligando seus percursos, singulares e marcados por pluralidade de ações, em meio aos campos que estariam inseridos.

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Levi (1996) se posiciona contra o pensamento de Bourdieu e defende que a biografia seria um espaço singular de observação e análise das tomadas de decisões, espaço este no qual transparecem os conflitos entre a racionalidade dos sistemas sociais e a possibilidade de liberdade de ação dos indivíduos. A biografia se apresenta, então, como uma possibilidade de revelar as condições humanas em suas múltiplas diversidades, não engessando os movimentos do sujeito histórico e nem destacando suas ações, enquanto as de outros indivíduos permaneçam na obscuridade, ou seja, o estudo das trajetórias individuais permitiria estabelecer certo equilíbrio ao analisar tanto o contexto em que vivia o biografado quanto as marcas produzidas por este na sociedade em que viveu, analisar as trocas entre a personagem biografada e o meio social, e esta linha de pensamento é também compartilhada por Mary Del Priore. As críticas de Dosse à postura de Bourdieu enfatizam que tanto a narrativa biográfica quanto o fazer histórico são ações desenvolvidas não apenas pelo próprio escritor, e dependem, até certo ponto, dos “elementos ficcionais”. O que une essas ações é o cuidado que devem ter em relação à realidade sem, contudo, ter a pretensão de compreender a totalidade dessa realidade. Para Dosse, há um fator positivo na posição radical de Bourdieu ao defender a ideia de uma “ilusão biográfica”, seria que essa postura de Bourdieu teria suscitado o questionamento, entre os que se dedicam a estudar os relatos de vida, acerca da linearidade presente nas biografias e alertar para a falsa pretensão de historicização que busca dar sentido teleológico à trajetória do biografado. (DOSSE, 2011, p. 210).

III.

Em dezembro de 1964 é lançada no Brasil a biografia Rui, o homem e o mito, de Raimundo Magalhães Junior. Trata-se do volume de número 27 da coleção Retratos do Brasil lançada pela editora Civilização Brasileira. A obra provoca fortes reações, tanto a favor quanto contrárias. A intenção do autor é pôr novamente em questão a personalidade, a mitificação, a carreira política e a atuação diplomática de Rui Barbosa. A primeira edição de Rui, o homem e o mito logo se esgota, sendo lançada no ano seguinte, 1965, uma segunda edição e mais de uma década depois uma terceira edição. Neste trabalho, utilizamos a terceira edição, que data de 1979. Os motivos para o sucesso editorial não se explicam apenas pela celeuma provocada pela obra, seria simplista pensar assim, mas que a polêmica em torno do livro responde em grande parte pelas vendas, não podemos duvidar. O sucesso da obra se deu também pela fama que Raimundo Magalhães

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Junior construíra de grande biógrafo, minucioso, detalhista, amante da pesquisa e com um estilo narrativo leve e envolvente. Trata-se, sem dúvida, de uma obra que antes mesmo de publicá-la, o autor já tinha ideia de como se daria a sua recepção, como afirma no prefácio à terceira edição datada de 1979:

Tentativa de revisão histórica e política, o objetivo deste livro é o de contribuir para que sejam traçados, futuramente, retratos mais autênticos de Rui. Para os seus idólatras, a tarefa parecerá herética e iconoclasta. E incorrerá, sem dúvida, na veemente reprovação dos que professam o culto ao ruísmo. (MAGALHÃES, 1979, p. 7, grifo nosso).

O livro provoca na época, o que se estende por décadas, uma tremenda polêmica na qual se envolveram simpatizantes, seguidores do chamado ruísmo, em oposição aos que, de alguma forma, concordam, compartilham o pensamento de Magalhães como um todo ou parte dele. O autor busca, em seu trabalho, demonstrar que o culto ao mito intelectual liberal de Rui encobria um homem de práticas políticas ultraconservadoras. Américo Jacobina Lacombe escreve, em 1965, um texto intitulado A propósito de Rui, o homem e o mito, no qual critica veementemente a obra de Magalhães. Lacombe faz questão de deixar bem claro que não é um seguidor do culto ao ruísmo, salientando que, em algumas questões, se posiciona em lado oposto a Rui. Lacombe critica a postura do biógrafo, a ponto de afirmar que “O método empregado pelo Sr. Magalhães para deformar sua vítima inclui a fraude.” (LACOMBE, 1965, p. 3). Além disso, afirma ser a obra fruto de um “ímpeto historicida”. As críticas ácidas se estendem por todo o texto. Este é apenas um, dos muitos textos publicados que se preocuparam em combater o livro de Raimundo Magalhães Junior. De acordo com Silva (2012), a única exceção às biografias que tinham por objetivo glorificar a imagem de Rui, se trata de Rui, o homem e o mito. Ressaltando que, por ocasião de sua publicação, o livro foi desprestigiado pelos intelectuais da época, causando enorme polêmica (SILVA, 2012). Em Rui, o homem e o mito, podemos analisar não apenas a forma como Magalhães o retrata, mas também como – ao redor do jurisconsulto – a época em que vivia é apresentada, permitindo-nos questionar as relações políticas, sociais, a mitificação e panteonização de Rui e como isso é tratado no biografismo de Magalhães. Rui, o homem e o mito possui cerca de 500 páginas, com 23 capítulos que variam entre 20 e 30 páginas cada um, com algumas exceções, nas quais a média do número de páginas é cerca de 10. Os capítulos são temáticos, a título de exemplo, o primeiro é sobre Rui e suas relações com a Igreja Católica, o terceiro sobre o Encilhamento, o sexto é sobre a atividade jornalística de Rui, o décimo terceiro trata o caso da Vacina Obrigatória, o

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décimo sexto versa sobre a participação do biografado na Conferência de Paz de Haia, o último capítulo se debruça sobre a narrativa do personagem eleito. Uma das primeiras indicações de que a biografia de Rui escrita por Magalhães não obedece ao tradicional esquema nascimento, estudos, vida profissional/intelectual, vida familiar, envelhecimento e morte, está justamente no primeiro capítulo, intitulado “Rui e a Igreja Católica”. Neste capítulo, Rui já surge atacando veementemente a Igreja. Ao aparecer em cena, o biografado conta já com quase 27 anos. Raimundo Magalhães não se preocupa em narrar o hiato que separa o nascimento de Rui até a sua “irrupção no cenário literário e político do país” (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 13). Isto já dá o tom que percorrerá toda a obra, não é sobre o Rui privado, aquele do âmbito familiar, das anedotas dos amigos, mas é o homem público, o intelectual, aquele cuja atuação política e profissional abrangeu as últimas décadas do Império e as primeiras décadas da República que ocupará a atenção do biógrafo. A explicação para que Raimundo Magalhães não escreva sobre outro aspecto da vida de Rui que não esteja ligado à sua atuação pública seria a própria proposta do autor em contribuir com um retrato revisionista histórico e político. Isto aponta para o conceito de biografia que Magalhães tinha em mente. Para ele, uma biografia só valeria a pena ser escrita se aquilo que fosse narrado, de alguma forma, permitisse entender melhor a época do biografado ao mesmo tempo que desvendasse um pouco mais a personagem eleita. A narrativa biográfica e a escrita da história empreendida por Raimundo Magalhães Junior, em Rui, o homem e o mito, segue a ideia de Dosse (2009) no tocante à biografia ser um gênero híbrido. Todavia, como a preocupação central do autor é compor uma trama orientada pela “revisão histórica e política” (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 7), há sim uma linha narrativa, com o preenchimento de lacunas por meio da criação artística do autor, mas o foco é a composição de uma história de vida na qual o método histórico de levantamento, questionamento e interpretação das fontes esteja em perfeita harmonia com o enredo. O estilo narrativo de Raimundo Magalhães Junior é leve, envolvente, adquire muitas vezes um tom irônico, suas críticas apresentam sarcasmo e até mesmo acidez em algumas passagens. À medida que narra os fatos relacionados à vida de Rui, o autor apresenta os documentos, com inúmeras citações em notas de rodapé, indicando que qualquer leitor interessado em conferir as interpretações contidas no texto pode, ele mesmo, consultar de onde foi que o biógrafo retirou suas conclusões. Andrade (2013) afirma que este seria um estilo marcante em Magalhães e que o entrecruzamento constante de citações estaria presente continuamente em suas biografias. A narrativa não se preocupa com uma ordenação cronológica, mas sim temática. Conforme dito anteriormente, os capítulos são temáticos e é justamente este caráter que

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chama a atenção na escrita biográfica de Raimundo Magalhães Junior. O período abrangido pela obra vai de 1876, que é quando Rui aparece em cena pela primeira vez, até o seu falecimento em 1923. Dessa forma, pelo fato de os capítulos serem construídos em torno de um tema, é comum o avanço e o retorno no tempo. O resultado é uma teia narrativa na qual fica a sensação de multiplicidade e de simultaneidade dos acontecimentos. Este é o efeito perseguido por Magalhães: em vez de enfileirar fato atrás de fato, numa linearidade que não corresponde aos avanços e reviravoltas da vida, o narrador conduz o leitor através dos capítulos que são verdadeiros microcosmos das ações do biografado em relação àquele tema ao longo da vida. Por exemplo, ao tratar da questão religiosa, no primeiro capítulo, o narrador apresenta o “nascimento” político de Rui em 1876, descreve e analisa suas ações no âmbito deste tema até o ano de 1910. No capítulo seguinte, a fim de tratar do pensamento político de sua personagem, o autor retrocede até o ano de 1880. Isto mostra que a intenção do biógrafo não é seguir uma trilha linear e sim elaborar uma narrativa que prima muito mais pela simultaneidade dos fatos. Um dos fios condutores da narrativa é a busca de Raimundo Magalhães em provar que Rui era uma pessoa incoerente. Uma das passagens mais célebres da biografia é a que trata da tradução de Rui de O Papa e o Concílio, de autoria do teólogo alemão Joseph Ignaz Von Döllinger. Além de traduzir, Rui escreve ainda um prefácio e vai além, juntando a este uma “‘introdução do tradutor’, não menor do que o livro do teólogo germânico”, ironiza Raimundo Magalhães Junior (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 14). Um dos pontos defendidos por Rui contra a Igreja era a necessidade de se criar uma lei que garantisse o casamento civil, já que na época da edição de O Papa e o Concílio, em 1877, o monopólio do casamento era da Igreja. A incoerência que o narrador de Magalhães identifica em Rui é que este apressa o seu próprio casamento, receoso de que depois do aparecimento do livro nenhum padre quisesse realizar sua união matrimonial (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 15). Outra medida reclamada por Rui na introdução de O Papa e o Concílio era a extinção do juramento de fidelidade à religião do Estado pelos que ingressassem em cargos públicos ou mandatos legislativos.

Contudo, quando se empossa como deputado geral, cai na mais espantosa das contradições. Quer abolir tal juramento e manda, no entanto, que os deputados vão prestar o de fidelidade à Constituição e à dinastia perante uma autoridade... eclesiástica. E, mais ainda, ao fim de uma missa! (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 18).

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Raimundo Magalhães não se contém diante de tamanha incoerência e usa de dois recursos literários, as reticências e o ponto de exclamação, a fim de enfatizar a mudança total de posicionamento do biografado. Após anos de ataque à Igreja, Rui resolve dar mais uma mostra da sua notável incoerência, segundo a narrativa de Magalhães, ao passar a defender a Igreja.

Rui tenta conciliar a atitude antiga com a nova, que a partir daí vai tomar. Todo o seu trabalho consiste em atenuar o alcance dos ataques pretéritos, em fazer crer que não falara tão mal assim da Igreja [...] que fora, antes, um defensor da fé verdadeira contra os que a falsificavam ou desvirtuavam. (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 24).

Existem dezenas de passagens na biografia nas quais o narrador apregoa que uma das características da personalidade de Rui era a incoerência. Em cada capítulo há pelo menos duas ou três referências à mudança de posição da personagem estudada. Como é o caso de quando Rui, durante a gestão do Visconde de Ouro Preto na pasta do Ministério da Fazenda, criticava duramente as políticas de emissão de moeda adotadas pelo governo e que beneficiava uns poucos banqueiros, entre eles o Conde de Figueiredo, alvo certo e corriqueiro dos ataques do jurista baiano. Todavia, ao assumir a mesma pasta pouco tempo depois, quando da demissão do Visconde de Ouro Preto, que, aliás, saíra justamente por causa da pressão do próprio Rui, este último implementa exatamente as mesmas políticas financeiras de seu antecessor e pior, em benefício particular do Conde de Figueiredo, intensamente detratado anteriormente por Rui por meio de artigos em jornal (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 75). Ao longo da obra, o narrador deixa transparecer o trabalho de pesquisa historiográfica de Raimundo Magalhães Junior na construção não somente de uma personagem verossímil, mas também da trama histórica e social do período em que esta viveu. Um dos documentos mais valorizados pelo biógrafo em toda a obra se refere às atas do Governo Provisório divulgadas por meio de reportagem do jornal O Dia. A questão é: Por que Magalhães considera estes documentos tão importantes? A seguinte passagem pode nos dar uma ideia: “Onde pode ser buscada essa verdade relativa, senão no texto das próprias atas, que contam na sua linguagem típica o que se passou nas reuniões secretas dos membros do Governo Provisório?” (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 148-149). A ideia que o biógrafo tem do documento perfeito, se é que isto existe, quando a busca é a verdade, são os arquivos oficiais. E por que se pode confiar neste tipo de documento? Segundo o narrador, porque estariam praticamente isentos de interesses externos em sua confecção e, por esta razão, conteriam um grau muito elevado de confiabilidade.

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Não cabe aqui julgarmos o método historiográfico de Raimundo Magalhães no sentido de dizer se ele errou ou acertou. Até porque, caso o julgássemos, estaríamos sendo anacrônicos. O intuito deste trabalho é antes o de refletir sobre a forma como o biógrafo escreve a história de um período por intermédio da narrativa da vida de um eleito. E o tipo de documento extremamente valorizado por Magalhães são os de origem oficial, por acreditar no elevado teor de verdade neles contidos e por serem relativamente neutros, o que permitiria uma interpretação muito mais confiável. Raimundo Magalhães Junior não faz um retrato em papel e letras de Rui com base apenas em fatos externos, acontecimentos, tomadas de posição do biografado e de pessoas que o cercavam. Mas usa os episódios narrados com o intuito de pintar, também, aspectos da personalidade de Rui Barbosa. Anteriormente, citamos que um dos fios condutores de toda a biografia é a constante referência à incoerência de Rui que marcaria toda a sua trajetória enquanto advogado, parlamentar, diplomata, escritor, funcionário público. Isto é, um dado relativo à personalidade de Rui percorre toda a obra, evidenciando a importância que o narrador atribui aos aspectos psicológicos do biografado. Torna-se nítida a importância, para Magalhães, da dimensão psicológica na construção de sua personagem principal quando este afirma que:

O verdadeiro retrato de Rui ficará incompleto sem o conhecimento dessas matrizes de sua psicologia. Onde ele perdia, onde sua personalidade não aparecia aureolada, onde transpareciam suas fraquezas, desconhecia a verdade, refugava as provas, estranhava os documentos. (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 163).

Fica evidente, neste trecho, o aspecto híbrido da biografia, ou seja, o misto de narrativa e escrita da história. Não apenas literatura ou somente história, mas ambas, juntas. E o mérito de Raimundo Magalhães Junior é conseguir conciliar, balancear esse hibridismo, não permitindo que nem a narrativa nem o método historiográfico tenham primazia, mas coexistam, completando-se continuamente. O biógrafo consegue extrair o melhor, tanto da narrativa quanto do método histórico. O resultado é a construção de uma biografia na qual não apenas os eventos são interpretados por meio das fontes, encadeados através de um enredo; também se contempla uma busca a fim de tentar desvendar os mistérios da personalidade de Rui. E o ciclo volta a se repetir, pois é por meio do método histórico que as evidências documentadas na correspondência ativa e passiva, nas anotações pessoais do biografado são interpretadas para, em seguida, serem narradas com o objetivo de construir uma espécie de mapa da alma da personagem eleita.

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O aspecto mais atacado, pelos seguidores do ruísmo, na biografia de Rui Barbosa feita por Raimundo Magalhães Junior se trata, sem dúvida, do processo de desmitificação construída pelo narrador desde o primeiro capítulo e que encontra seu ponto máximo em dois capítulos. O primeiro seria o décimo quinto, intitulado “As ‘Águias de Haia’ e o Falso Livro de Willian T. Stead”. Nesta seção da obra, o narrador logo no título ironiza a alcunha que seria atribuída a Rui ao apontar que haveria não a Águia, no singular, mas sim as Águias de Haia. Ao longo de todo este capítulo, o narrador procura provar que o mito acerca da grande atuação de Rui na Segunda Conferência de Paz de Haia foi laboriosamente construído pelo próprio biografado com o subsídio financeiro do governo brasileiro e a contratação de um repórter inglês de segunda categoria chamado Willian T. Stead e que era conhecido por sua perícia em fraudar reportagens e elaborar notícias sensacionalistas. Acerca da participação de Willian T. Stead na mitificação de Rui o narrador afirma que “Ele foi um beneficiário, pago pelo Itamarati, da campanha de propaganda que Rui Barbosa reclamara e à qual o Barão do Rio Branco prontamente acedera.” (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 312). No Brasil, segundo o narrador, o grande responsável pela glorificação de Rui e pela intensificação do processo de construção do mito Rui Barbosa foi um livro, intitulado O Brasil em Haia e cuja autoria foi atribuída a Willian T. Stead. Na verdade, segundo o narrador, não poderia haver maior engano, já que o falso livro seria uma tradução do inglês para o português das reportagens de Willian T. Stead sobre a atuação de Rui em Haia feita por um jovem brasileiro ambicioso chamado Artur Bomilcar com a participação de Rui, que traduz os seus discursos do francês para o português. Assim nasce, segundo o narrador, o mito da Águia de Haia, que na verdade seriam as Águias, já que para que o mito fosse gerado houve a participação de pelo menos quatro indivíduos: O Barão do Rio Branco, o jornalista inglês Willian T. Stead, o jovem Artur Bomilcar e, é claro, o próprio Rui. Para finalizar, um segundo mito acerca de Rui, que a biografia procura desconstruir, é justamente aquele que talvez seja o mais conhecido: o seu grande talento enquanto orador. Acerca deste assunto, o narrador é irônico, sarcástico e, em muitas passagens, critica acidamente o desempenho do biografado enquanto orador. A primeira coisa que Raimundo Magalhães aponta no último capítulo de sua obra é que Rui seria um grande orador caso não fosse tão prolixo. E é exatamente esta característica que o narrador vai esmiuçar utilizando o testemunho de intelectuais, jornalistas, parlamentares, advogados, contemporâneos de Rui que eram seus amigos e até mesmo inimigos, mas que tinham a mesma opinião: a incapacidade de Rui em se

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pronunciar de forma clara, objetiva, profunda, mas perfeitamente compreensível, e o principal, que não fosse maçante. Assim expressa, sarcasticamente, o narrador: “No Parlamento do Império, se Rui nem sempre vencia os seus opositores pela força dos argumentos, vencia-os muitas vezes pelo cansaço, em estiradas orações, das quais pouquíssima coisa de útil era possível extrair.” E mais, “Poucos compreendiam, muitos assistiam, todos aplaudiam” (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 482; 496). As últimas páginas da biografia são destinadas a evidenciar que Rui chegou à velhice e com ela, o ocaso de suas ideias. Ao tomar o depoimento de diversos escritores, intelectuais, como é o caso de Cândido Mota Filho, que afirma “Por certo, o estilo de Rui, a sua maneira de escrever, o seu processo de composição, o seu gosto pelas citações, já não servem para os nossos dias” (MAGALHÃES JUNIOR, 1979, p. 498). Segundo o narrador, a morte de Rui foi um acontecimento que não despertou simpatias, foi na verdade tratada com indiferença e alheamento por parte de muitos. Houve, é claro, a pompa oficial, todavia não houve real sentimento público. E como nota final, o narrador afirma incisivo que “Rui vivera demais” e conclui com a afirmação de que o personagem principal da biografia falecera decaindo na opinião pública pela gritante incoerência que marcara toda a sua trajetória política.

Referências

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UM PLANO CIVILIZACIONAL PARA OS INDÍGENAS NA FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL BRASILEIRO

Juscelino PEREIRA NETO 1

Este texto pretende apresentar uma análise de um Programa de autoria do clérigo e publicista Januário da Cunha Barbosa (1780-1846) denominado “Qual seria hoje o melhor sistema de colonizar os índios entranhados em nossos sertões” sorteado em sessão de 24 de agosto de 1839 no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e publicado na Revista da mesma instituição. A catequese e a educação jesuítica aparecem no discurso de Barbosa como instrumento mais eficaz na tarefa de educar/civilizar as populações indígenas e inseri- las no Estado Nacional. O objetivo deste texto é, portanto, analisar o referido programa, bem como discutir as possibilidades e os limites dessa proposta no horizonte das incipientes políticas públicas brasileiras no século XIX. Januário da Cunha Barbosa, nasceu no Rio de Janeiro, ano de 1780, homem de condição modesta, órfão aos nove anos, teve sua educação primária e os estudos preparatórios que precederam sua ordenação como padre, em 1803, providas por tio paterno. Dedicou-se, primordialmente, ao púlpito e ao magistério, como professor de Moral e Ética. Ingressou na vida pública a partir da Independência, em 1822. De espírito combativo, de ideias liberais, fundou em companhia de Joaquim Gonçalves Ledo (1781-1847) o Reverbero Constitucional Fluminense (1821-1822), periódico influente, porta-voz da elite brasiliense, composto por padres, advogados, militares e publicistas. Exerceu ainda cargos na burocracia imperial, como diretor do Diário do Governo, da Biblioteca Nacional e da Tipografia Nacional. Orador eloquente, Barbosa participou de episódios de maior destaque, como por exemplo, da fundação dos Conselhos dos Procuradores, articulado junto ao grupo maçom local. Conhecido pelas suas ideias políticas, pelo tom sarcástico de polemista, foi acusado de republicanismo após a Independência e, em seguida, preso e deportado para a França, onde permaneceu por pouco tempo, retornando em 1823. O seu discurso permitiria entrever a visão a respeito do elemento indígena, elaborada pelos letrados que orbitavam a esfera do IHGB, entre os anos em que o cônego estivera à frente da instituição como seu Primeiro Secretário, ventiladas na Revista do

1 Mestrando – Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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grêmio por meio de programas histórico; memórias históricas; crônicas de viagem; cartas; críticas de obras de cunho historiográfico; pesquisa de documentos (manuscritos diversos que traziam informações sobre cultura indígena) e material composto de dicionários linguísticos e textos de natureza diversa. Cabe ressaltar que este estudo concentra a análise no referido programa, no qual Barbosa advogaria a ação dos jesuítas junto às populações indígenas como instrumento mais eficaz de civilização. No programa histórico, os jesuítas despontavam em uma posição de destaque no trato com os indígenas reconhecendo-lhes feitos notáveis em favor da pátria e que deveriam ser repetidos. Ao longo das 16 laudas do programa, o religioso Januário da Cunha Barbosa argumenta a favor da catequese jesuítica para os indígenas, asseverando que os membros daquela ordem regular se ancoravam num projeto civilizatório no Brasil Colonial, reunindo exemplos tidos por Barbosa como casos da bem sucedida empreitada educacional empreendida pelos membros da Companhia de Jesus. Por meio do programa também é possível observar de que modo a temática indígena surge como objeto da preocupação de uma gama variada de letrados na esfera da agremiação, sobretudo pelo desejo de criação de uma nação que fosse capaz de definir e abranger sua população, configurando-se como um país civilizado nos trópicos. A opção de construir uma memória nacional resultava no ato de elaboração de uma narrativa comum aos seus habitantes, tendo como fio condutor a ideia de civilização e a continuidade dos progressos atingidos na Europa. No entender dos agremiados do IHGB, o Estado que brotou de setembro de 1822 se constituía legitimamente em virtude do fato de ser herdeiro do Império português (WEHLING, 1999). Desse modo, a Independência foi entendida antes como um processo natural, de sucessão dinástica, e não uma fratura traumática, tal como futuras ex-colônias espanholas que se agitavam no continente sul-americano antes das respectivas independências (TORRES, 1968). A Europa era vislumbrada como detentora de um modelo ideal de superioridade e de civilização. A elite brasileira julgava ser a herdeira – via Portugal – e portadora da civilização, filha da ilustração. Com efeito, além de possuir ideais de liberdade e de propriedade, teria que cumprir uma missão civilizadora iniciada pelos portugueses com a colonização dos territórios ocupados. A essa tarefa, em termos de produção de discursos históricos, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se dedicou integralmente ao longo do século XIX. Antes de adentrar na análise do documento, serão apontadas algumas observações quanto ao caráter do Instituto Histórico, o papel dos indígenas no Estado Nacional brasileiro e a repercussão deste escrito dentro do grêmio.

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Os programas históricos na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

A modernização política no sentido do Iluminismo e de seus ideais de racionalidade se deu em Portugal de maneira muito peculiar. A ilustração foi impulsionada sob os auspícios do governo monárquico. Esse caractere, resguardando as proporções, também pode ser observado no Brasil. A própria fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro pode ser inscrita nesse conjunto de esforços acadêmicos perpetrados pela elite de letrados, sob os auspícios do Estado monárquico. Estas instituições literárias ofereciam os modelos mais seguros para se trilhar os caminhos da construção da nacionalidade. A importância do programa redigido pelo clérigo é precedida pelo seu discurso inaugural do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, publicado na Revista em 1839. O texto foi considerado por historiadores como o primeiro ensaio teórico-metodológico sobre a escrita da história no Brasil (BARBOSA, 1839a). No texto fundador podem ser encontradas as balizas historiográficas para a confecção de uma história para o Brasil, no tocante aos documentos e fontes a serem considerados, bem como ao período a ser abarcado, entre outros aspectos (RODRIGUES, 1957, p. 38). O clérigo atribui ao IHGB o papel de ator protagonista como órgão promotor da confecção da história, um lugar que albergaria os homens ilustres empenhados nessa tarefa. Para tanto, seriam desconsideradas tanto as histórias estrangeiras e regionais quanto aquelas que se mostrassem estranhas à narrativa que comportaria a formação de um Estado em construção (GUIMARÃES, 1988). O primeiro ponto que Januário da Cunha Barbosa procura solucionar consiste na legitimidade do grêmio como instituição competente e responsável para a formulação de práticas e discursos que orientariam uma série de escolhas a serem tomadas pelos seus membros. A opção era por uma história nacional e científica lastreada por uma documentação, objetiva e oficial, portanto, imparcial, que servisse de matéria-prima para a construção da história da nação (GUIMARÃES, 2007). Os programas históricos eram sorteados em sessões ordinárias do IHGB nas quais um tema em específico era escolhido para ser dissertado por um sócio membro do grêmio. O texto era publicado posteriormente na Revista do Instituto. Foi dessa forma que Barbosa recebera a tarefa de escrever sobre o tema da civilização dos indígenas. Essa documentação permite observar o vínculos entre a produção historiográfica da instituição IHGB e a política imperial, em específico, a implementação de políticas públicas na área educacional (CEZAR, 2004).

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Lúcia Paschoal Guimarães (1995, p. 565) pontua que os programas históricos seguiam as normas estruturais de Academias setecentistas, como, por exemplo, a Real Academia Ciência de Lisboa; na experiência brasileira, nessas produções predominavam

[...] temas e proposições para dissertação, formulados pelos próprios sócios efetivos, guardavam grande semelhança com as questões apresentadas e desenvolvidas na ‘Sociedade Brasílica dos Acadêmicos Renascidos’, núcleo de letrados que funcionava no Rio de Janeiro, sob o patrocínio do marquês de Lavradio.

Como propôs Iris Kantor (2004), os programas de estudo criados na esfera da instituição Renascidos, fundada na Bahia do século XVIII, dissertavam sobre a presença lusa na colonização da América portuguesa ou ainda eram constantes as propostas de se erigir História Universal da América Portuguesa. Apesar das propostas e trabalhos não raras vezes se referirem a temáticas de cunho historiográfico, faziam-se presentes pautas e problemas mais vinculados a interesses políticos contemporâneos. Nesse caso, em particular, cogitavam-se projetos de instrução pública a se dirigirem aos índios a fim de os educarem e darem a eles o estatuto de cidadão e, assim, inseri-los no Estado Nacional. Em sua abrangência, os demais programas se destinaram a discutir questões concernentes à escrita da História do Brasil, elencando documentos e memórias para a composição de um passado adequado à jovem nação independente, também havia documentos que promoviam um exame a respeito de fatos mais recentes da história nacional. Eles também avaliavam a contribuição de obras já escritas sobre a História e a Geografia do Brasil. No tocante à preocupação da escrita da história no passado brasileiro, pode-se observar nos Extratos das Atas que descrevem as atividades, que os programas abordavam temas diversificados, entre eles as estratégias traçadas pela instituição até aquela época. Como exemplo dessa preocupação destaca-se os esforços do próprio Januário da Cunha Barbosa ao propor na 1° Sessão do IHGB em 1 de dezembro de 1838, que os sócios e membros do grêmio se esmerassem em compor uma periodização para a História do Brasil. O pedido foi recebido com entusiasmo pelos membros que apresentaram em sessões seguintes trabalhos que apontavam alternativas.2

Um plano para os índios

2 O cofundador do IHGB Marechal da Cunha Matos e os membros do Instituto José Lino de Moura, José Silvestre Rebelo apresentaram As verdadeiras épocas da História do Brasil em Sessão em 01 de dezembro de 1838. Os referidos autores avaliaram a necessidade de instaurarem uma comissão que organizasse um Compêndio de História do Brasil. Tal proposta fora aventada na 32ª sessão do grêmio por Justiniano José da Rocha, que julgava ser necessário um “bom Compêndio de História do Brasil, no qual se orientaria” na “nobre tarefa” de lecionar no curso de História da Pátria no recém-fundado Colégio D. Pedro II.

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A nação que se pretendia erigir no século XIX almejava os padrões de vida modelo europeu. A fim de alcançar esse intento, a educação foi elencada como a forma mais eficaz na tarefa de civilizar as populações tidas como bárbaras e/ou incompletas, passíveis de serem tuteladas. Esperava-se que, com assimilação formal dos conteúdos programáticos, se atingisse uma completa transformação do indígena, tirando-o das “brenhas” e tornando- os atores políticos e que comportassem um pensamento racional e analítico de modo que essas experiências lhes possibilitassem a superação da barbárie e fossem, então, incorporados à “nação” (ARNAUT DE TOLEDO; PEREIRA NETO, 2010, p. 403). Nesse processo de edificação da nação brasileira, a questão indígena entrecruzou todos os outros problemas de maior relevo na construção das principais instituições políticas e jurídicas do Brasil, tais como a delimitação do território, suas fronteiras, a população pertencente ao território e considerada apta para participar do processo do político. Para muitos atores envolvidos nesse processo, a nação brasileira viria a se cristalizar, do ponto vista de sua população, na medida em que ela conformasse em grupos mais unidos e coesos, para que se superasse a heterogeneidade representada na constante presença do negro (escravo) e do indígena. Entretanto, se aos negros escravos, o único caminho era o aguardar da “gradual” abolição que se impôs no país, aos indígenas eram- lhes aventados, primeiro a saída das “brenhas”, que significava a perda da identidade primordial do índio e a adoção dos modos civilizados, que supostamente os conduziriam ao corpus dos cidadãos do Império. A emancipação política do Brasil marca o início de uma longa tradição de propostas e modelos oferecidos por homens letrados, pensadores e intelectuais diversos para superação da sujeição secular imposta pela metrópole à colônia americana. Esse jugo se caracterizava por uma constante tensão, fruto da diversidade étnica e cultural extremamente dissonante, que pretendia ser superada com a edificação de valores comuns, em síntese, aquilo que José Murilo de Carvalho (2001) denominou de “longo caminho à cidadania”. É conhecida a exposição de José Bonifácio de Andrade e Silva apresentada à Assembleia Constituinte em 1823, na qual o mineralogista salienta que “Amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. etc. em um corpo sólido e político” (ANDRADA E SILVA, 2002, p. 221). A proposta de Bonifácio era de criação de um elo entre os mais diversos segmentos sociais da nação, para que o Brasil conformasse um “povo” e assim despertasse um sentimento de pertencimento comum a uma mesma comunidade nacional. Para tanto, era imperioso que se abolisse a escravidão e promovesse a integração das populações indígenas (VARELA, 2009).

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O sistema de ensino de Januário da Cunha Barbosa

Em “Qual seria hoje o melhor sistema de colonizar os Índios entranhados em nossos sertões; se conviria seguir o sistema dos Jesuítas, fundado principalmente na propagação do Cristianismo, ou se outro [na] qual se esperam melhores resultados do que os atuais” (1839b, p. 1), em linhas gerais, Barbosa discutiu a possibilidade de se educar populações indígenas para que adotassem um comportamento civilizado, tendo como modelo de instrução o sistema de ensino sistematizado pelos jesuítas. Januário da Cunha Barbosa tinha como ponto de partida o entendimento de que a ordem jesuítica desempenhara um papel decisivo na formação da cultura brasileira no período colonial. A exposição se inicia com o anúncio da tarefa à qual lhe fora encarregado: “O ponto, de que hoje nos ocupamos, é de certo interessante à prosperidade do Brasil, e assim também de outros Estados, em cujas matas vagam milhares de Nações indígenas privadas dos cômodos da civilização” (BARBOSA, 1839b, p. 3). Retoricamente, Januário da Cunha Barbosa admitia desde o início a impossibilidade de se apresentar uma solução definitiva para a questão em pauta: “O escritor que se apresentasse um plano bem concertado [...] mereceria uma estátua, ainda com mais justiça do que esses afortunados que descobriram tão vastos países. Eu não pretendo a gloria de tocar a meta em tão difícil carreira” (BARBOSA, 1839b, p. 3). A dificuldade, segundo Barbosa, tinha em sua raiz condicionante a situação em que os indígenas se encontravam “sem domicilio certo, sem pátria, sem leis, sem vestígios de qualquer civilização” (BARBOSA, 1839b, p. 5). Em meio a este cenário desolador, a repentina passagem de um estado de natureza para o estado civilizado, de acordo com Barbosa, era tarefa irrealizável, visto que as relações nas quais se assentavam ambas as populações eram de diferentes estágios na evolução. Que cumpriria, pois, fazer em tal caso? A solução ofertada passava, entre outras etapas, pela introdução dos métodos jesuíticos de ensino ao conjunto das populações indígenas espalhadas em território nacional. De acordo com o cônego “a catequese é o meio mais eficaz, e talvez o único, de trazer os Índios da barbaridade de suas brenhas aos cômodos da sociabilidade [...] apoia-se esta minha opinião em muitos factos na História do Brasil; e posto que neles figurem particularmente os jesuítas” (BARBOSA, 1839b, p. 3-4). Para asseverar seu diagnóstico, Barbosa compilou de várias obras e testemunhos que atestavam a eficácia da proposta e enunciavam a viabilidade da catequese na tarefa de converter e civilizar os índios. As obras citadas pelo cônego, em sua maioria, constituem-se de documentos produzidos no período colonial nos primeiros tempos da colonização. A lista inclui obras de padre Manuel da Nóbrega (1517-1570) e Antônio Vieira (1608-1697), para

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citar dois dos autores mais relevantes. Desses testemunhos Barbosa retirou exemplos que registravam o progresso dos padres na catequização dos indígenas no período citado. Para que os padres-educadores estivessem facultados a instruir os indígenas, precisariam dispor de colégios que ensinassem de acordo com os “princípios da Religião, e de sua santa moral” (BARBOSA, 1839b, p. 15-16). Igualmente importante era o aprendizado das línguas nativas para os que desejassem missionar entre os índios. Os missionários jesuítas, segundo Barbosa, desde cedo compreenderam a importância que o estudo das línguas nativas desempenhava para que o processo de catequização, bem como a educação, se concretizasse. Vencida a barreira linguística, os missionários lograram enormes progressos na conversão, conforme se constata no seguinte trecho de Barbosa (1839b, p. 15): “o estudo desta língua fez um dos principais esmerados dos Missionários Jesuítas, e por isso tanto adiantaram a Religião do Crucificado nas matas do Brasil”. Com efeito, coube aos jesuítas o papel na criação de “Gramaticas, Dicionários, Catecismos, Livros de Orações, Diálogos instrutivos, com que se habilitavam esses primeiros inalcançáveis Missionários do Brasil” (BARBOSA, 1839b, p. 15). No método observado por Barbosa nas obras examinadas, a educação dos indígenas era dividida em duas partes bem distintas: a dos adultos e a das crianças. Aos primeiros, “mais fortemente habituados a vida errante de selvagem, se devem proporcionar ideias e trabalhos, que vão tirando dos seus erros, e de suas correrias (BARBOSA, 1839b, p. 16). Conforme vencessem do estado inicial e conseguissem deixar o estado de natureza, os índios adultos incorporariam os códigos da sociedade civilizada, criando apreço à propriedade privada podendo, dessa maneira, formar povoações, em áreas cuja jurisdição do Estado proporcionaria maior segurança de vida. Para o trabalho com as crianças indígenas, aconselhava a educação nas primeiras letras baseada na atuação com docilidade e desvelo (BARBOSA, 1839b, p. 16). Realizadas essas medidas e criadas as primeiras necessidades nos indígenas, seria igualmente necessário pensar na etapa seguinte que corresponderia na inserção à sociedade civil pela realização de trabalhos físicos. Estes consistiriam em

[...] oficinas grosseiras, que sirvam também de escola aos indígenas aldeados, e lhes persuadam o amor ao trabalho. Uma forja de ferreiro, um tear grosseiro uma serraria, serão tão necessários aos adultos como as escolas, em que se ministrem e seus filhos as primeiras letras, e a doutrina Cristã. (BARBOSA, 1839b, p. 17).

Aos indígenas eram oferecidos um “plano” para se civilizarem, o primeiro cuidado para fazê-los passar do estado natural deveria ser convertê-los à religião cristã. Os demais

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passos previam a incorporação dos valores que incluíam o trabalho livre e a educação das primeiras letras – que significava a progressiva exclusão da alteridade indígena – necessários à integração na sociedade imperial. A experiência de Januário da Cunha Barbosa com as populações, adquirida com base na leitura da obra de missionários, revelava-lhe que os indígenas eram aptos tanto à conversão ao cristianismo quanto a todos os trabalhos que lhes atribuíssem. O clérigo conclui sua fala reiterando que a catequese era a ferramenta pedagógica mais eficaz na integração e civilização das populações nativas e até de não-indígenas. Observou, ainda, que sua introdução se fazia urgente naquele momento, pois mesmo as populações já pertencentes à sociedade encontravam-se em estado de absoluto abandono; esquecidas pelo Estado e pela religião cristã. Com efeito, convinha catequizar não somente os indígenas, mas era necessário dispender as atenções e “doutrinar os povos que já foram catequizados” (BARBOSA, 1839b, p. 18). A construção do programa de Januário da Cunha Barbosa sobre os jesuítas e sua ação catequética – colhida nas obras de missionários conversores nos primeiros tempos da Colônia – apontava que a imitação de procedimentos anteriormente adotados seria o suficiente para a integração dos grupos indígenas. A educação jesuítica, desde o primeiro momento, era aventada como a alternativa mais viável no que dizia respeito aos problemas do país, acenando para o caminho mais próximo à prosperidade no Brasil do século XIX. O estudo do pensamento do Cônego Januário da Cunha Barbosa – presente no programa – elucida quais seriam as preocupações entre os membros do IHGB em relação à inserção das populações indígenas e periféricas no Estado nacional brasileiro (SCHWARCZ, 1989).

Conclusões parciais

O propósito imediato do IHGB era delinear um perfil para a nação brasileira capaz de lhe garantir uma identidade peculiar no conjunto das nações. Essa tarefa implicava na escolha dos seus atores que participariam desse processo. A inevitável exclusão dos indígenas do Estado nacional suscitou nos homens de letras um desejo de sua inclusão, ainda que houvesse controvérsia ou mesmo desconhecimento quanto ao melhor caminho a ser trilhado. O clérigo Januário da Cunha Barbosa procura lançar luz à questão e oferece seu diagnóstico para o problema enfrentado. O texto de Barbosa configurava uma tendência que se desenhava antes mesmo da independência do Brasil, baseada em ações positivas e modelares da ação dos portugueses, em múltiplos aspectos, de considerar como benéficas ao patrimônio deixado

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pela Companhia de Jesus na ação de catequização dos indígenas. Tratava-se de um esforço embrionário, de um impulso de civilidade oferecido ao gentio brasileiro. No discurso do cônego, o termo civilizar desponta como sinônimo de educar e de catequizar. Nesse sentido, pretendia Barbosa disseminar entre os indígenas a rígida ideia de civilização e introjetar noções, como o autocontrole, a ideia da propriedade e refinamento de costumes, comportamento, moral, em síntese, desencadear nos índios o processo civilizador estudado por Norbert Elias (1990, p. 23). A análise do seu discurso permite concluir que os serviços prestados pelos padres da Companhia não estavam circunscritos apenas à esfera religiosa: ao evangelizarem o gentio, os jesuítas atuaram como primeiros educadores na solução dos conflitos de todos os gêneros existentes em terras coloniais. A questão encetada, indubitavelmente, era a própria edificação da nacionalidade brasileira, e a consequente inclusão do país na lista das nações civilizadas. Essa população, uma vez “amalgamada”, deveria ser instruída por meio da educação e da boa política, conditio sine qua non para a criação de um sistema de governo sábio, equilibrado e duradouro.

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IMIGRAÇÃO ITALIANA, RELIGIÃO, POLÍTICA E OS ESPAÇOS DE DIVERSÃO NO BRASIL NA OBRA “ANARQUISTAS GRAÇAS A DEUS”

Kassiana BRAGA1

Introdução

Este artigo pretende discutir de maneira introdutória a trajetória literária e a primeira publicação autobiográfica da escritora paulista Zélia Gattai denominada Anarquistas graças a Deus (1979), considerando que, neste livro de memórias, a autora retrata as suas histórias de infância e adolescência e as histórias de seus antepassados italianos que vieram ao Brasil em meados do século XIX, visando criar uma colônia socialista experimental (colônia com ideais anarquistas). Pretende-se, também, refletir sobre outros assuntos abordados por Zélia, tais como os espaços de diversão que havia no Brasil na década de 20, além de temas como política, diversidade social, crença religiosa, valores morais, costumes, entre outros assuntos relatados ao longo de suas inúmeras páginas. A memorialista Zélia Gattai (1916-2008), esposa do consagrado escritor baiano Jorge Amado, começou a escrever, no final da década de 70, as suas memórias de infância, dos seus antepassados e de seu esposo, segundo ela, por incentivo dele e de seus filhos. Antes de dar início a essa trajetória literária que lhe rendeu 16 livros e um lugar ao “sol” na Academia Brasileira de Letras no ano de 2001, Zélia era considerada apenas uma mãe zelosa e boa esposa que acompanhava Jorge em suas viagens, no exílio, nos encontros de escritores nacionais e internacionais e em congressos gerais. Era também o seu braço direito, datilografando as obras de seu esposo desde Seara Vermelha. Entretanto, apesar de ser retratada em jornais e revistas do país e do mundo até então como a esposa ideal (ZÉLIA..., 15 maio 1970, p. 12), “Amélia”, dedicada, companheira, amiga, exemplo de mulher e de boa mãe, logo começou a ser divulgada pela imprensa também como escritora a partir de sua primeira publicação, em 1979, intitulada Anarquistas graças a Deus (TALENTOSA..., 13 maio 1984, p. 2). Zélia, de maneira distinta de Jorge Amado, não participou de um curso universitário, pois nesta época não era tão comum uma mulher estar inserida dentro dos meios acadêmicos. Salvo raríssimas exceções, a atividade feminina brasileira após a passagem da infância, girava em torno dos afazeres domésticos, no cuidado com o lar, no zelo pela

1 Mestranda – Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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família, diferente dos dias atuais. No entanto, ela teve contato com o “mundo da cultura” que lhe foi logo cedo apresentado por meio da literatura, em especial pelas leituras de sua mãe que apreciava renomados autores da literatura mundial como Victor Hugo, Émile Zola, Dante Alighieri, Pietro Góri, entre outras referências de leituras. No que diz respeito à política, Zélia sempre esteve em contato com tais discussões por meio das conversas e dos discursos de seu pai e avô que se consideravam anarquistas e nutriam grandes esperanças baseados neste referencial político que defendia os princípios de liberdade e igualdade entre homens e mulheres. A primeira obra discutida neste artigo trata justamente deste referencial político de alguns de seus antepassados que vieram ao Brasil com o intuito de implantar uma colônia socialista experimental, que acabou não se efetivando. Neste livro, Zélia volta toda a sua atenção à imigração italiana, aos ideais anarquistas desses italianos bem como seus costumes, hábitos alimentares e valores. Retratou, ainda, a sociedade paulistana no começo do século XX, com os seus espaços de diversão e todas as suas particularidades. A sua primeira obra deu início a uma carreira memorialística, sendo reconhecida no Brasil e, posteriormente, no exterior.

Zélia Gattai por ela mesma

Foi na Bahia, aos 63 anos de idade, que Zélia Gattai começou a escrever a sua autobiografia, a primeira de muitas que viria a escrever nos anos seguintes.2 Adotando o sobrenome “Gattai”, de seu pai, começou a sua caminhada no campo literário, dispensando o sobrenome de casada para não ter que ser reconhecida à custa de seu esposo, que naquela altura já era um escritor famoso e reconhecido mundialmente, tanto pelo talento literário quanto pela militância política. Com o seu primeiro livro, a escritora apenas tinha a pretensão de narrar as suas próprias histórias e as de seus antepassados, histórias das quais ouviu falar desde a infância, relatadas oralmente por seus pais ou avós, ou das quais vivenciou. Como escritora, se tivesse que ter algum reconhecimento no Brasil ou no mundo, queria que ocorresse por seu próprio talento, não queria ser reconhecida, em hipótese alguma, porque era esposa de um escritor brasileiro importante. Para a sua grande felicidade, Zélia começou a ter um reconhecimento bom em sua primeira publicação, sofrendo críticas também, por parte de pessoas que não a consideravam uma boa escritora, e por parte de outras pessoas que só conseguiam perceber em Zélia a sombra de seu esposo Jorge Amado. De qualquer maneira, apesar das severas críticas que recebeu ao longo de sua trajetória como escritora,

2 A escritora Zélia Gattai publicou 16 livros, dois romances (O Segredo da Rua 18, no ano de 1991, e Crônicas de uma Namorada, no ano de 1995). Escreveu também três livros infantis (Pipistrelo de mil cores, em 1989, O segredo da Rua 18, de 1991, e Jonas e a Sereia, de 2000), os demais livros, são autobiografias.

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continuou escrevendo, sendo reconhecida como romancista, memorialista, além de autora de literatura Infanto-juvenil3, o que salienta que a escritora tinha, de fato, um talento real e que, diferentemente de seu esposo que era um romancista por excelência, acabou escrevendo, em sua maioria, livros de memórias:

Talvez a prejudique o fato de ser mulher de Jorge Amado, porém aquele que conseguir vencer o preconceito e se debruçar sobre as páginas urdidas por Zélia Gattai descobrirá a criadora autônoma de uma arte literária que flagra com requintado humor e encantadora influência a matéria mesma da vida. Uma vida intensamente em páginas que pulsam sob voltagem de uma generosa humanidade. (JORGE, 1992, p. 2).

O trecho relatado acima foi escrito na década de 90, período em que a escritora já havia escrito outras obras e já era reconhecida no campo literário, mas sofreu críticas desde o princípio, pois, inúmeras vezes, a sua escrita foi alvo de comparação com a escrita de seu esposo por muitos literatos que, por preconceito, só conseguiam “aceitar” Zélia como uma esposa ideal e companheira, jamais como uma escritora ocupando o seu espaço. Em meio a tantas críticas, ela também recebeu o apoio, o incentivo e o reconhecimento tanto de muitos leitores brasileiros quanto de alguns literatos que perceberam que Zélia era, sim, uma escritora com um talento próprio, não era romancista, mas uma “contadora” de histórias, como ela mesma gostava de intitular-se.

As memórias de Zélia Gattai em Anarquistas graças a Deus (1979)

Em sua primeira publicação, no final da década de 70, o seu foco central foi narrar as histórias de seus antepassados italianos que vieram ao Brasil com o intuito de criar uma colônia anarquista, colônia tão idealizada por seu avô paterno que havia lido o livro do escritor Giovanni Rossi4 intitulado I Comune in Riva Al Mare, que pretendia construir uma colônia em que fosse criada uma sociedade livre, justa, sem, leis e religião em algum país da América Latina. Essa leitura foi importante na vida de seu avô Arnaldo Gattai porque logo se organizou com a família e embarcou no ano de 1890, no navio Città de Roma5, juntamente com a sua esposa e mais os cinco filhos e um grupo de pessoas de diversas classes sociais e profissões como médicos, engenheiros, camponeses e operários e alguns criminosos

3 Zélia Gattai foi eleita para a cadeira de número 23 da Academia Brasileira de Letras, antes ocupada por Jorge Amado no ano de 2001, tomando a posse em maio de 2002, sendo a primeira viúva de um acadêmico a ocupar a ABL e a quinta mulher a ocupá-la. 4 Giovanni Rossi (1856-1943), italiano de Pisa, foi agrônomo e veterinário de profissão formado em 1875 pela escola de Pisa. No ano de 1893, ele se vinculou à Associação Internacional de Trabalhadores (AIT) e propôs a construção de uma colônia que foi inicialmente pensada na Polinésia. 5 Città de Roma é também um título de um dos livros da escritora publicado no ano de 2000, nele Zélia aborda novamente as questões relacionadas à imigração de seus antepassados italianos ao Brasil, como fez em sua primeira publicação, a diferença é que há, nesta outra publicação, algumas fotos de seus familiares.

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condenados por diversos delitos, todos eles, nutrindo grandes esperanças em relação a essa colônia experimental, no entanto, sofreram muito durante e depois da viagem. A viagem não foi fácil para esses imigrantes, pois crianças, mulheres grávidas e os próprios adultos passavam mal, uma vez que não se alimentavam bem durante o percurso e houve casos de morte por causa da falta de alimentos. Para estes italianos, trocar o seu país por outro era uma tentativa de melhoria de vida, eles buscavam uma vida mais digna, num país que possibilitasse melhores condições de moradia e trabalho, para que pudessem atingir tais objetivos. Entretanto, a idealização desses italianos acabou se mostrando bastante diferente da realidade com a qual se depararam aqui, pois os políticos brasileiros já tinham seus objetivos muito bem claros e definidos em relação ao seu projeto de imigração, que tinha como intuito resolver um grande problema: a falta de mão de obra após a abolição da escravatura no Brasil, em 1888. Os governantes brasileiros esperavam que estes imigrantes suprissem essa falta de mão de obra nas lavouras de café no Brasil e foi o que veio a ocorrer com muitos desses italianos, até com o seu avô materno, o Sr. Eugênio Da Col, que veio ao Brasil com a sua família com um contrato de colono, não era anarquista, não idealizava a colônia Cecília, mas também objetivava construir no Brasil uma vida mais feliz e sofreu todas as consequências da imigração italiana:

Ao chegar à fazenda, Eugênio Da Col deu-se conta, em seguida, de que não existia ali aquela cuccagna, aquela fartura tão propalada. Tudo que ele idealizara não passava de fantasia; as informações recebidas não correspondiam à realidade: o que havia, isto sim, era trabalho árduo e estafante, começando antes do nascer do sol; homens e crianças cumpriram o mesmo horário de serviço. Colhiam café debaixo de sol ardente, os três filhos mais velhos os acompanhando, sob a vigilância de um capataz odioso. Vivendo em condições precárias, ganhavam o suficiente para não morrer de fome. A escravidão já for abolida no Brasil, havia tempos, mas nas fazendas de café seu ranço perdurara. (GATTAI, 2009, p. 189-190).

A escritora retratou, em sua primeira publicação, um panorama da imigração italiana no Brasil, desde a saída desses italianos de seu país até a sua chegada, neste lugar até então desconhecido para eles. No caso de seu avô materno, ele e a sua família, a princípio, se tornaram, segundo a sua perspectiva, os novos “escravos” que vieram substituir o trabalho africano, que teve o seu término no final século XIX, com a abolição da escravatura, abolição por sinal, extremamente tardia. Entre os assuntos abordados estava a política, mais especificamente o anarquismo, que também foi discutido em sua primeira publicação porque grande parte de seus antepassados eram adeptos deste sistema de ideias. Tanto o seu pai Ernesto como seu avô Arnaldo Gattai acreditavam que o anarquismo era a única maneira de se construir uma sociedade justa, igualitária e livre. Dona Angelina, sua mãe, costumava guardar recortes de

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jornais sobre assuntos relacionados ao anarquismo e apreciava ler uma literatura mais “subversiva”, de autores mundialmente consagrados como Émile Zola, Bakunin e Kropotkin. Seu pai, o Sr. Ernesto, tinha o hábito de ler alguns jornais com conteúdos políticos como A plebe, A lanterna, entre outros, sendo adepto deste sistema de ideias, não aceitava e não acreditava em nenhum tipo de instituição como a religião e o Estado, por exemplo, pois considerava que tais instituições eram as responsáveis por tirar a liberdade e oprimir o povo. Por meio deste contato com o anarquismo, com a literatura libertária que a sua mãe apreciava ler e com a leitura de seu pai, além da participação em manifestações acompanhando-os e com a classe operária, é que Zélia adquiriu, desde muito cedo, uma consciência política e social. Uma consciência que lhe permitiu perceber as diferenças sociais, econômicas e culturais entre as pessoas que retratou nesta primeira publicação. Além desta consciência política, Zélia percebeu, de uma maneira bastante difícil, qual era a consequência de quem tinha ideais anarquistas, num país como o Brasil, durante o Estado Novo, período que em que seu pai acabou sendo preso justamente por ser rotulado como um homem perigoso, por ser “comunista”, estrangeiro, por portar uma velha espingarda de caça em sua casa e por possuir um material literário extremamente subversivo que eram os livros de Émile Zola, Pietro Góri, encadernados na cor vermelha, além de portar artigos com conteúdo político:

Na época do Estado Novo, bastava uma denúncia ou simples suspeita para que uma casa de família fosse cercada por enorme aparato bélico, policiais apontando metralhadoras, os lares invadidos – a qualquer hora do dia ou da noite – por policiais armados, pais de famílias arrancados de seus leitos e arrastados para as masmorras, para o porão úmido e escuro da Delegacia da Ordem Política e Social, incomunicável. Foi o que aconteceu á minha família, foi o que aconteceu a meu pai. O chefe das “batidas”, o perito nos interrogatórios era nosso ex-vizinho Luiz Apolônio. (GATTAI, 2009, p. 283).

Neste trecho, fica evidente o quanto o Estado Novo temia e combatia qualquer tipo de pessoa ou de grupo que tivesse ideais anarquistas ou comunistas, pois era uma grande ameaça a este Estado que acabava de ser constituído. Leis foram criadas para combater todo e qualquer tipo de manifestação, o grande medo deste Estado, era de uma revolução que destruísse o seu poder:

Intimidados pelas idéias e pelas práticas libertárias e posteriormente pelas idéias comunistas – os republicanos radicalizaram avançando contra a anarquia. Preocupado com a circulação de ideias sediciosas, o Governo Provisório emitiu, em 23 de dezembro de 1889, o primeiro decreto de censura que atingiu diretamente a imprensa. Restringia-se a informação, assim como proibia-se reuniões políticas que atentassem contra a nova republica laica e liberal. Em 1907, os anarquistas já não eram vistos com bons olhos pelas autoridades policiais que os acusavam de “agitadores do ofício pagos por governos estrangeiros”, de “fazer manobras subversivas” e “provocar a greve entre os trabalhadores. (CARNEIRO, 2002, p.4).

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Muitos outros decretos e leis foram criados neste período, como o decreto de censura, de 23 de dezembro de 1889, que proibia reuniões políticas que ameaçassem a República, além do decreto-lei n° 1641, a Lei Adolfo Gordo, que regularizou a expulsão de estrangeiros do país e o decreto n° 4.743, que ficou conhecido como a “lei da imprensa”, sendo também criado posteriormente o Departamento Estadual de Ordem Política e Social, em São Paulo, que surgiu com o único objetivo de vigiar e punir os sujeitos “rotulados” como “criminosos políticos” (CARNEIRO, 2002, p. 4). Contemplando outros assuntos, Zélia também retratou, em suas páginas, a adaptação desses italianos no Brasil, narrou alguns eventos cotidianos, alguns costumes deste povo, a religiosidade, enfatizando as suas particularidades, os espaços de diversão, e as peculiaridades de uma cidade que ainda estava nascendo, e que viria a ser a famosa cidade de São Paulo. Em suas páginas, recorda-se da Alameda Santos, número 8, rua em que passou a sua infância e grande parte de sua adolescência, próximo à Avenida Paulista, que segundo Zélia, era o local onde residiam os homens bem abastados daquele período. Comenta, também, que a casa onde morava naquele tempo não possuía nenhuma chave, no entanto, ninguém a invadia para roubar qualquer objeto que fosse. Este tema que a escritora levantou em seu livro, permite pensar como era a sociedade em seu tempo, uma sociedade que ainda estava passando por um processo de modernização, talvez não ocorresse tantos roubos, como ocorre nos dias de hoje, mas, ainda assim, era uma sociedade que também tinha os problemas próprios de seu tempo, sobre os quais a escritora também explanou em suas páginas seguintes. Entre os bem abastados e os desprovidos de recursos financeiros, Zélia narra também algumas peculiaridades de São Paulo, no início do século XX, cidade que, aos poucos, vai se modernizando com a instalação da iluminação pública, o surgimento dos primeiros automóveis, os primeiros arranha-céus sendo construídos. E é dentro deste “cenário” que ela se recorda de algumas lembranças de sua infância, como alguns passeios que fazia com seus pais e irmãs, como no circo Piolin6 e dos Irmãos Queirolo, que muito apreciavam em virtude das brincadeiras de seus palhaços e dos diversos animais que faziam parte da animação. O circo, neste período, era um passeio que agradava muitas crianças e adultos, as arquibancadas ficavam sempre lotadas porque o público adorava assistir às atrações engraçadas e divertidas como as mímicas dos palhaços, o malabarismo, o contorcionismo, o ciclismo, entre outras programações. Além desse divertimento, outro passeio de que as

6 Abelardo Pinto Piolin foi um importante palhaço brasileiro que atuou dentro dos circos no Brasil da década de 30 até a década de 60, o seu talento foi reconhecido pelos intelectuais modernistas em razão de suas atuações terem um caráter também político.

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crianças gostavam muito era ir ao Parque Antártica, parque de diversão cheio de brinquedos, onde as crianças brincavam em suas rodas-gigante e nos carrosséis.

Grande programa, o maior, o melhor de todos para mim – a ida ao Parque Antártica, na Avenida Água Branca. Ai que frio no estômago, ao subir na roda-gigante! E o carrossel? Era por acaso pouco emocionante montar os coloridos cavalos de pau? Chegava a sentir vertigem naquele sobe – e desce- dos cavalinhos rodando, rodando... [...]. (GATTAI, 2009, p. 47).

Outro espaço de diversão que as pessoas tinham o hábito de frequentar era o cinema, que já existia em São Paulo desde início do século XX, e os filmes eram exibidos, a princípio, dentro dos cafés, concertos ou mesmo nos circos, era frequentado apenas por homens, mas posteriormente acabou recebendo outro público como crianças e mulheres em regiões como o Brás, Mooca, entre outros lugares (SCHVARZMAN, 2005, p. 112). Em seu livro, Zélia relatou sobre o cinema que frequentava, o “Cinema América” que na década 20 era um espaço de divertimento de grande alcance popular no Brasil. Segundo ela, todas as quintas-feiras era cobrada apenas meia entrada, por isso ela, a mãe, a sua pajem e as irmãs sempre iam assistir ao filme neste dia específico. Aos domingos também havia as matinês, os meninos não perdiam, e a programação era variada, às vezes assistiam aos filmes de comédia do consagrado ator e diretor inglês Charles Chaplin, também conhecido por “Carlitos” ou aos filmes com o ator Fatty Arbuckle, também conhecido como “Chico Bóia”, outro comediante muito apreciado pelo público no cinema. Afora deste gênero, era costume, neste período, a exibição de filmes românticos além dos famosos filmes de “bangue-bangue” também conhecidos popularmente como filmes de “faroeste” que tanto os adultos como as crianças adoravam em virtude de suas histórias, com muito combate entre vilões e homens justiceiros. Antes da exibição dos filmes era sempre apresentado um documentário que, de acordo com a escritora, tinha como intuito mostrar todos os acontecimentos importantes da semana, também havia sempre um conjunto musical que acompanhava a exibição dos filmes, este conjunto tocava instrumentos como o piano, o violino e a flauta. A apresentação artística e os documentários antes dos filmes objetivavam também atrair um público maior. Outro tema abordado em sua primeira publicação se refere à religiosidade, aos costumes e a certas particularidades de algumas italianas que residiam na Rua Caetano Pinto, no Brás. De acordo com a escritora, a rua em questão era muito famosa, por causa dos seus cortiços e porque ali viviam italianas muito bravas, oriundas do sul da Itália, mulheres de “sangue quente”, muito religiosas e extremamente patriotas. Zélia comenta que essas italianas tinham o costume de discutirem entre si e de baterem em seus filhos à moda italiana, com fortes tapas na cara.

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No que diz respeito ao Bexiga comenta que era um bairro povoado por italianos também oriundos do sul da Itália, muito religiosos e fiéis aos seus princípios espirituais e religiosos, respeitavam sempre as datas dos santos de que eram devotos, como São Genaro e São Vito, enfeitando as suas ruas com bandeiras coloridas e com flores, acompanhando todas as procissões que ocorriam. Outro costume relatado em relação a essas italianas era o hábito de luzir as suas panelas com mistura de cinzas e areia que as deixavam muito limpas, era uma prática doméstica das quais elas se sentiam orgulhosas por conseguir deixar as suas panelas tão brilhantes. Este tema discutido por Zélia mostra exatamente qual era a perspectiva que as mulheres nutriam em relação à vida naquele tempo, a grande realização pessoal delas era serem vistas como ótima dona de casa, boa esposa, cuidadosa com os afazeres domésticos e com as outras obrigações do lar. Os temas que envolvem valores morais também foram discutidos por Zélia, no que se refere ao carnaval, por exemplo, ela e as suas irmãs eram proibidas de frequentar, apesar de seu pai – Sr. Ernesto Gattai –, ser um anarquista, não possuir uma religião e ser um livre pensador como ele gostava de se denominar, tinha certas reservas, quando o assunto era dar liberdades às suas filhas para participarem dessa importante festa brasileira. Segundo ele, a palavra carnaval tinha o significado de “o que vale é a carne”, ou seja, o carnaval seria uma festa imoral, não sendo um lugar para elas frequentarem, entretanto, apesar de não deixar as filhas se divertirem no carnaval, para os meninos não havia nenhuma restrição. Zélia narra que sua irmã Wanda, certa vez, questionou o seu pai, perguntando a ele, sendo um anarquista, com pensamentos tão libertários, por que não liberava as filhas para ir ao carnaval, o Sr. Ernesto argumentou que ele era anarquista, mas que a maioria dos carnavalescos não era:

No dia em que o anarquismo triunfasse no Brasil, aí então ele soltaria as rédeas. Soltaria mesmo? Tínhamos nossas dúvidas. Nem por anarquista ele descuidava da virtude das filhas. Filha de seu Gattai devia casar virgem. Seu anarquismo tinha limitações, graças a Deus! (GATTAI, 2009, p. 217).

Esse assunto também nos faz pensar, mais uma vez, os valores morais de seu pai e quem sabe também de muitos homens desse período, era ainda um tempo em que havia muitas restrições para as mulheres, a própria virgindade de uma mulher era um valor a ser preservado, e ela só poderia vir a perdê-la após o casamento. As discussões em relação à liberdade sexual feminina ainda constituíam um tabu para a sociedade brasileira nesse período, seu Ernesto, vivendo neste tempo, também compactuava com tais valores. A própria literatura anarquista, com a qual dona Angelina e seu Ernesto tiveram contato, não contemplava a liberdade da mulher e o seu papel social. O

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renomado anarquista Bakunin, por exemplo, não refletiu em sua obra o papel social da mulher, o que para Margareth Rago é surpreendente, uma vez que ele discutiu tantos outros assuntos relacionados ao poder e à opressão que exercia a religião e outras instituições. Se referindo a outro importante escritor anarquista que foi Kropotkin, Rago defende que ele negou, de certa maneira, o caráter da mulher como um sujeito revolucionário (RAGO, 2012, p. 11). Diante da análise feita por Rago, pode-se perceber que, mesmo dentro do pensamento anarquista que pressupõe o princípio da igualdade entre as pessoas, há uma contradição nesta questão, uma vez que a mulher quase sempre não foi vista como um sujeito revolucionário, sendo excluída como agente social, talvez isso explique os valores morais que o Sr. Ernesto nutria em relação às suas filhas, e não se pode esquecer também que ele era filho de seu tempo.

Considerações finais

Ao analisar a primeira publicação de Zélia Gattai, no final da década de 70, pode-se constatar que, em sua escrita, ela narra as suas histórias e as de seus antepassados por meio de suas lembranças de infância e adolescência relatando a imigração italiana, o período do Estado Novo, os espaços de diversão que haviam no Brasil desde a década de 20, além de costumes, espiritualidade e valores morais, tanto dos italianos do Sul quanto os valores de seu pai que era um anarquista convicto. Percebe-se que a obra de Zélia Gattai não tem somente uma importância memorialística, mas uma importância histórica, uma vez que ela se debruçou a contar sobre alguns acontecimentos que fazem parte do passado brasileiro. O seu livro não é apenas uma autobiografia cheia de histórias divertidas e engraçadas que servem apenas para entreter os seus leitores, é, também, uma fonte histórica importante para se pensar o passado em diversos períodos e em diversos temas sociais. Em Anarquistas graças a Deus é possível pensar a sociedade paulistana, nos séculos XIX e XX, valendo-se dos anseios das mulheres daquela época, bem como dos seus diversos grupos políticos, étnicos e religiosos como bem nos apresenta a escritora.

Referências

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Memórias de uma jovem anarquista. In: FRAGA, Myrian; MEYER, Marlyse (Org.). Seminário Zélia Gattai: Gênero e Memória. Salvador: FCJA; Museu Carlos Costa Pinto, 2002. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2014.

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DIÈGUES, Iara. Zélia Amado, um exemplo de mulher dedicada. Alagoas, Caderno 2 , 15 mai. 1970.

GATTAI, Zélia. Anarquistas graças a Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

JORGE, Franklin. Zélia Gattai. O Rio Branco, Acre, Opinião, p. 2, out. 1992.

PORTELLA, Eduardo. Discurso de Recepção à Acadêmica Zélia Gattai. Rio de Janeiro, 21 maio 2002. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2014.

RAGO, Margareth. Gênero e História. Santiago de Compostela: CNT-Compostela, 2012. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2014.

SCHVARMAN, Sheila. Ir ao cinema em São Paulo nos anos 20. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 49, vol. 25, p. 112, jan./jun. 2005. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2014.

TALENTOSA, graças a Deus. Salvador, Caderno 2, p. 2, 13 maio 1984 .

ZÉLIA Amado, Musa, esposa e “Amélia de um imortal”. Salvador, Mulher Suplemento, p. 12, 29 jan. 1977.

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BRÔ MC'S: MÚSICA INDÍGENA INTERCULTURAL

Laura Cristhina Revoredo COSTA1 Edgar Cézar NOLASCO2

1 Introdução

Essa crítica da modernidade não é unívoca, mas encontra diferentes formas de articulação como o lugar em que ela é exercida e as condições em que as subjetividades são moldadas, em outras palavras, que "lugar", definida nos estilos de vida, em grande parte da experiência como um local, âncora especificamente num pertencimento, uma memória construída num tempo e sujeito às manipulações do poder.3 (PALERMO, 2013, p. 188).

O presente trabalho procura discutir a produção musical do grupo de rap indígena Brô MC's. O grupo reside em duas aldeias, entrecortadas por uma rodovia interestadual e localiza-se nos contornos periféricos da cidade de Dourados, fronteira seca entre Mato Grosso do Sul e Paraguai. É neste palco de abandono e liminalidade que os jovens compõem suas canções, relatando assuntos concernentes ao arquivo indígena. Trata-se, portanto, de uma exumação deste arquivo memorialístico, cultural e musical. As letras retratam, por meio do olhar indígena, as perspectivas e condições sociais, políticas e culturais dos sujeitos envolvidos. Com base nisso, pretendemos demonstrar como a colonialidade do poder ainda sobrevive na prática do fazer cultural indígena da fronteira-sul, onde a lei do mando e do desmando ainda prepondera. Para aferir tal problemática, valeremos de conceitos como memória, interculturalidade e fronteira, mas de uma perspectiva pós-colonial. Nesse sentido, os postulados teóricos de Caterine Walsh, Walter Mignolo, entre outros, serão sumamente importados para a discussão proposta. O grupo de rap indígena Brô MC's originou a partir da intenção dos jovens Bruno, Charlie, Kelvin e Clemerson em transmitir a ideia de esperança para a população indígena, uma maneira de denunciarem os descasos, às exclusões, as situações negativas que ocorrem tanto fora quanto dentro das próprias aldeias, entre a população branca e mesmo

1 Mestranda – Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – UFMS – Univ. Federal do Mato Grosso do Sul , campus Campo Grande - Cidade Universitária – CEP: 79070-900 – Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Docente - – Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – UFMS – Univ. Federal do Mato Grosso do Sul , campus Campo Grande - Cidade Universitária – CEP: 79070-900. 3 Original: “Tal crítica a la modernidad no es unívoca sino que encuentra distintas formas de articulación según sea el lugar en el que se ejerce y según las condiciones en las que las subjetividades se han conformado; dicho de otro modo, que el ‘lugar’ define, en gran medida, las formas de vida en tanto experiencia de una locación con un anclaje específico, una pertenencia, una memoria construida en el tiempo y sujeta a las manipulaciones del poder”. (Tradução nossa).

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entre os indígenas (como assassinato, suicídio, entre outros). Tem como objetivo apresentar a cultura indígena para o restante da população. A cidade de Dourados faz fronteira com o estado de Paraná, e está próxima ao Paraguai e é itinerário para à Bolívia, além de fazer parte das rotas para outros países sul- americanos. Vale ressaltar que a fronteira, em sua grande maioria, é seca, ou seja, é permissiva ao fácil trânsito entre esses espaços, ora incertos. Assim, não apenas se pode levar em consideração a fronteira como um ambiente, um local, um entre-lugar, mas também como um estado de ser-fronteira. Essa periferia fronteiriça não configura somente aquele espaço incerto, mas também a produção social e cultural. Para tanto, a epistemologia centro/periferia suprirá o princípio de que a “periferia não qualifica nem desqualifica um pensamento, mas o situa” (ACHUGAR, 2006, p. 90). Entendendo, portanto, fronteira como um território onde os diferentes povos, as diferentes culturas se instigam, por meio dos limites sociais impostos. Os jovens indígenas do grupo Brô MC's, de etnia Guarani e Kaiowá, buscam, em vista disto, demonstrar, através do gênero musical subalterno rap, que a população indígena almeja conquistar e consolidar sua voz, por sua vez, subalterna e periférica. As letras, em grande maioria, permeiam o bilinguajamento, ou seja, as ideias são verbalizadas tanto em língua portuguesa, quanto em língua guarani; e, dessa forma, podem alcançar não apenas a população indígena, mas o restante da população latina brasileira. Tendo em vista essa característica, consideramos necessário, no desenvolvimento deste artigo, discussões sobre tal teoria, valendo-se da premissa de que “a partir da fronteira do sistema mundial colonial/moderno, trazendo à discussão a ‘dupla consciência’” (MIGNOLO, 2003, p. 83). A, também, a imprescindibilidade em delimitar o lócus enunciativo do grupo, portanto, uma “nova consciência mestiza, de Glória Anzaldúa, baseados nas experiências das áreas fronteiriças” (MIGNOLO, 2003, p. 83). Partindo do bilinguajamento, não podemos deixar de reiterar que a fronteira não trata apenas de limites geográficos, mas também o estado do indivíduo numa epistemologia pós-colonial, e corrobora, então, em como se dá a identidade do indígena a partir desse seu lócus enunciativo fronteiriço, subalterno e periférico.

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FIGURA 01: Capa do CD “Brô MC’s” Fonte: BRÔ MC’s

O CD do grupo é quase artesanal: não possui gravadora, a capa é uma fotocópia comum, gravado num disco gravável normal, adquirido em qualquer comércio, lacrado apenas por um envelope de plástico – tudo realizado sem grandes recursos tecnológicos ou financeiros. Os vídeos postados no site YouTube também apresentam um aspecto artesanal, sem muitos efeitos computadorizados. As músicas apresentam uma grande e valiosa carga cultural. O vídeo clipe da canção “Tupã”, disponível no site mencionado, foi filmado numa reserva indígena em meio ao verde e as matas. Porém, ao fundo, percebe-se uma imensa favela separando-os do restante da cidade. O som é acústico, desplugado das aparelhagens. Os jovens, como na maioria das comunidades indígenas brasileiras, vestem roupas ocidentalizadas; no entanto, possuem acessórios indígenas como cocares e penas, que remetem ao arquivo indígena, resgatando, assim, as suas memórias. Por meio destas características, visualizamos que há um intento em “conectar e traçar uma genealogia do pensamento a partir das histórias locais que absorveram projetos globais” (MIGNOLO, 2003, p. 82). Sendo assim, a população indígena é uma das etnias que mais absorveram culturas outras com o passar dos séculos, mais ainda nessa era da tecnologia e informação. Por essa razão, Walter Mignolo afirma que:

A emergência de novos atores locais com uma nova agenda internacional é hoje óbvia. Esses novos atores sociais estão contestando a ideia de que projetos globais só podem emergir de uma determinada história local e estão reformulando as regras do jogo. A desigualdade do poder, entretanto, é ainda evidente. Os movimentos indígenas na América Latina evidenciam esse ponto. (MIGNOLO, 2003, p. 401).

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O grupo de rap indígena Brô MC's, vendo-os como novos atores sociais, pode ser enxergado como uma representação dessa contestação do poder desigual, opressor e hegemônico. Sua canção pode ser vista como um movimento que pontua e delimita essas especificidades, partindo do indivíduo etnicamente indígena, sujeito produtor das histórias locais, para sua canção carregada de elementos globais. Pode-se, também, associar [o grupo] com a transculturação proporcionada pelo estado fronteiriço, como já mencionado, visto que “a partir da noção de paisagem transcultural,” não perdendo, “a dimensão política marcada por novos sujeitos sociais e o desejo comparatista presente na formulação do entre-lugar” (LOPES, 2012, p. 13). E, ainda assim, “a noção de interculturalidade o fato de dar importância cada vez maior aos trânsitos não só geográficos (migrações, diásporas), mas a viagens feitas através dos meios de comunicação de massa” (LOPES, 2012, p. 13). Essa manifestação encontra-se arraigada à globalização e as discussões epistemológicas outras, com o intuito de criticar, ou ao menos tentar pensar numa crítica outra com relação às críticas hegemônicas hoje vigentes. Partindo dessa premissa, tomamos a crítica pós- colonial para entender a produção cultural latina, pois é necessária uma leitura anti- hegemônica para compreender a subalternidade indígena dessa região, em particular.

2 Colonialidade do poder diante da memória indígena

[…] as realizações intelectuais exigem condições materiais, e condições materiais satisfatórias relacionam-se com a colonialidade do poder. (MIGNOLO, 2003, p. 26).

O que conta não é o sangue ou a cor da pele, mas as descrições das misturas sanguíneas e da cor da pele criadas e praticadas dentro e pela colonialidade do poder. A mistura sanguínea e a cor da pele, que eu saiba, não trazem inscritos um código genético que se traduza em código cultural. Em vez disso, são as descrições feitas por aqueles organismos vivos capazes de descrever a si próprios e a seu ambiente. (MIGNOLO, 2003, p. 39).

A comunidade indígena latina, bem como o discurso erigido dessa mesma região, precisa – sobretudo, no Brasil, onde particularmente as etnias Guarani-Kaiowá, etnia dos jovens do Brô MC's, reside – de um maior envolvimento crítico, tantos do próprio discurso do sujeito indígena, quanto de tantos outros meios de informação, educação e comunicação que abordam as questões deste povo. Trata-se de uma etnia que habita por todo território e há constantes batalhas ocasionadas por terras e discussões em torno da exclusão como resultado da memória do preconceito e da marginalização. Mas esta voz não tomará o lugar do discurso indígena, ou nem fará com que o indígena necessite que o represente. Esta voz que brada se faz necessária a partir do momento em que é preciso descolonizar os

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conhecimentos e saberes epistemológicos em voga nas academias latinas. É com base nessa constatação crítica que se justifica a necessidade de tratar e abordar epistemologias outras e tentar criticar os saberes hegemônicos dominantes, pois um saber hegemônico não consegue visualizar as inerências desses loci enunciativos, uma vez que, não estão nesse espaço para compreendê-los. Para que isso seja feito, nas próprias comunidades indígenas e também nos saberes críticos latinos, é preciso abordar a descolonialidade no meio acadêmico, defendida por Walter Mignolo no artigo “El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura: Un manifiesto”, presente na revista on-line El giro decolonial. Quando há o questionamento na academia, percebemos um enorme preconceito por parte de quem não pesquisa e mesmo de algumas pessoas que estão na academia. Beira um abismo natural e aceitável que possua como objeto ilustrativo das pesquisas os saberes provenientes da literatura (entendendo-a como uma manifestação cultural canônica); mas e as outras manifestações culturais subalternas, transculturais e propriamente indígenas do grupo? Onde se situa? Esquecemos que a América Latina, o Brasil e o estado fronteiriço de Mato Grosso do Sul, durante muito tempo, fizeram parte de um sistema supressor e opressor, chamado colônia. A academia, parafraseando Walter Mignolo, no início de seu texto, presente na revista supracitada – El giro decolonial – aponta para a precisão em discutir e englobar o conceito de descolonialidade para avançar nas pesquisas e não apenas estarem sendo cúmplices de uma constante cópia do que já foi dito.

O conceito de “descolonialidade”, apresentado neste livro, é útil para transcender a assunção de determinado discurso acadêmico e político, segundo a qual, a fim de administrações coloniais e a formação dos estados nacionais na periferia, vivemos agora um mundo descolonizado e pós- colonial. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 13).4

Não podemos ficar à mercê da colonialidade, do poder de excluir manifestações culturais das quais não são e não podem ser incluídas nos pensamentos hegemônicos, tendo em vista que “a colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza” (MIGNOLO, 2007, p. 74). Será que não há como fazer uma leitura, ou desvendar a cultura latina e, no caso deste artigo, o rap do grupo Brô MC's, sem arrolar a história colonial desta região? “Já não é possível conceber a modernidade sem a colonialidade” (MIGNOLO, 2007, p. 75). É preciso que nos valhamos de uma nova epistemologia para pesquisar o rap do grupo Brô MC's, uma linguagem, segundo Walter Mignolo, “sem depender da velha

4Original: “El concepto 'decolonialidad', que presentamos en este libro, resulta útil para transcender la suposición de ciertos discursos académicos y políticos, según la cual, con el fin de las administraciones coloniales y la formación de los Estados- nación en la periferia, vivimos ahora en un mundo descolonizado y pós-colonial”. (Tradução nossa)

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linguagem das ciências sociais herdadas decimonómicas.”5, (GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 17), uma nova linguagem que relacione as complexidades pertencentes e pertinentes ao indígena sul-mato-grossense. Há a necessidade em descolonizar não somente os saberes acadêmicos, mas, concomitante a isso, os saberes promulgados pela massa, pela imprensa, consequentemente pelas escolas e mesmo pelos discursos provenientes dos indígenas, atrevemos-nos a incluir o próprio discurso presente nas canções dos Brô MC's. No livro Uma literatura nos Trópicos, de Silviano Santiago, há presente a relação entre a colonização latina e o pensamento atribuído aos nativos do Novo Mundo (termo utilizado por Santiago), onde se encontra perdurando discursos nos vários eixos da sociedade. A melhor forma de colonizar, de tomar para si algo e, nesse caso, um lugar, que não é seu e exatamente apagar as suas memórias, aqui representadas por suas culturas, por suas línguas, sendo assim, uma delas é que a América possa:

Transformar-se em cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em sua origem, apagada completamente pelos conquistadores. Pelo extermínio constante dos traços originais, pelo esquecimento da origem, o fenômeno de duplicação se estabelece como a única regra válida da civilização. (SANTIAGO, 2000, p. 14).

A intenção era, e é, de forma pedagogicamente passada através da história (como disciplina), que os nativos e indígenas, aqui donos da terra, se tornassem e se transformassem no modelo hegemônico de civilização, perdendo, assim, suas características socioculturais. Essa noção é, infelizmente, perceptível ainda, tomando como aporte e prova os discursos acadêmicos e hegemônicos da própria população. A sociedade, quando se depara com os noticiários sobre conflitos entre indígenas e fazendeiros, questiona o por quê da população indígena não concluir a sua inserção no sistema global moderno vigente. Não que isso seja errado, pelo contrário, é sabido que muitos indígenas se constroem dentro dos parâmetros sociais modernos, cursam uma graduação, são funcionários públicos, mas em aceitar as próprias diferenças e peculiaridades latinas. Como fundamentação disso, a teórica Vânia Guerra, no livro O indígena de Mato Grosso do Sul, afirma que a:

[...] suposta incapacidade e ingenuidade é repassada às gerações desde os primeiros anos de escola, pois quando é ensinado que os índios ficaram felizes e impressionados com a chegada dos descobridores, a própria escola está colaborando para a representação de que o índio é bobo, ao mesmo tempo em que é bom deixar o outro entrar. (GUERRA, 2010, p. 40).

5Original “sin depender del viejo lenguaje heredado de las ciencias sociales decimonómicas”. (Tradução nossa)

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Geração após geração, a sociedade é acostumada a entender e inconscientemente absorver que o indígena não pode realizar outro trabalho a não ser o manual, no campo, sendo, em grande maioria, excluído de outras formas de sobrevivência, ou até do campo intelectual. Trata-se, aqui, de um exemplo para a discussão crítica necessária na descolonização dos saberes. Há um eco de ideias, noções e pensamentos resultado de constantes anos de colonização, mesmo após a instauração da democracia, não apenas dos indígenas, mas também dos saberes. Por mais que a transculturação e a mestiçagem de toda a população, sem excluir a indígena, façam parte da identidade brasileira, o preconceito e o racismo são cicatrizes no pensamento que emerge do imaginário das pessoas desse lócus enunciativo. Walter Mignolo, no Livro Histórias Locais/Projetos Globais, afirma que o preconceito domina sem querer generalizar. Entretanto, esse comportamento paira todo o pensamento do sistema mundial, resultando numa sabotagem cultural das manifestações locais periféricas, e, consequentemente, da indígena, da produção musical do grupo Brô MC's. Esses jovens estão passando, então, por um processo de aculturação? No livro Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia, Elizabeth Burgos diz que:

Aculturação é o mecanismo próprio de todas as culturas, todas as culturas vivem em estado de aculturação. No entanto, a aculturação é uma coisa e a imposição de uma cultura sobre a outra, a fim de aniquilar, agora é muito diferente. (BURGOS, 2007, p. 15)6.

Nessa passagem, Burgos ressalta que Rigoberta passa por um processo de aculturação; entretanto, Walter Mignolo delimita e explica o que vem a ser o processo de aculturação e por que a utilização desse conceito não supri a discussão com relação as produções culturais latinas, e, portanto, para perfazer e preencher esse discurso é necessário que tomemos a transculturação “enquanto aculturação apontava para mudanças culturais numa única direção, o corretivo transculturação visava chamar a atenção para os processos complexos e multidirecionais da transformação cultural” (MIGNOLO, 2003, p. 233). O processo de aculturação, erroneamente promulgado pela academia, não compõe o imaginário crítico e epistemológico da sobrevida cultural latina e indígena. Não se trata de um aniquilamento cultural, mas um fazer cultural local, que parte de suas especificidades locais para o global, e não o contrário. Prova disso é esse fazer cultural local transcultural, por meio do qual o grupo Brô MC’s compôs suas letras. Acreditamos, ainda, que a população indígena realmente esteja vivendo esse processo de interação cultural, de

6Original: “La aculturación es el mecanismo propio d toda cultura; todas las culturas viven en estado de aculturación. Sin embargo, la aculturación es una cosa y la imposición de una cultura sobre otra, con objetivo de aniquilarla, ora muy distinta”. (Tradução nossa)

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interculturalidade, conforme conceitua Caterine Walsh, na revista online sobre Colonialidade do Poder:

Uma configuração conceitual, uma ruptura epistemológica que se baseia nas realidades do passado e do presente vivido como dominação, exploração e marginalização, que são simultaneamente constitutivas como um resultado, do que Mignolo chamou modernidade/colonialidade. A configuração conceitual enquanto construção de uma resposta social, político, ético e epistêmico às realidades essas que ocorreram e ocorrem, falo de um lugar de enunciação indígena. (WALSH, 2007, p. 50)7

Walsh defende um rompimento das epistemologias que possuem como base principal a relação passado e presente, as condições de marginalização e subalternização indígena. Sendo assim, é preciso um processo de interação entre os pensamentos que incluam o indígena e o seu lugar de enunciação, que compreenda o seu lugar político, e ainda “há que se notar, já nesse aspecto ancoram-se os processos de interculturalidade, matizadores das características fronteiriças, da ‘passagem’ e ultrapassagens culturais, de uma margem a outra” (SANTOS, 2011, p. 147). Há várias marcas que propiciam uma discussão acerca desse lócus enunciativo do grupo Brô MC's, suas especificidades locais, a ausência de uma autoridade do estado – visto que a fronteira possibilita certas mobilidades ilegais, a inter-relação com outros fazeres políticos, econômicos, culturais e sociais. É, portanto, uma “zona de interculturalidade, de hibridismo cultural, a língua como elemento agregador era, na realidade, constitutiva de uma Babel linguística” (SANTOS, 2011, p. 150). Esse emaranhado das coisas fronteiriças faz remissão ao bilinguajamento, presente na fronteira e seus limites geográficos, e também o estar e o ser fronterizo do grupo de rap indígena Brô MC's, como delimita Walter Mignolo:

O bilinguajamento […], ou o bilinguajamento dos “zapatistas” que escrevem em espanhol, inserindo estruturas e conceitos das línguas ameríndias, não é uma questão gramatical, mas política, até o ponto em que o foco do próprio bilinguagismo é corrigir a assimetria das línguas e denunciar a colonialidade do poder e do saber. (MIGNOLO, 2003, p. 315).

Por meio dessa discussão, propiciada pela conceituação e epistemologia intercultural, pensada por intelectuais (também indígenas, como Silvia Rivera Cuzicanqui) e baseada nesse lócus enunciativo latino, pois se trata de um povo que habita este interstício entre ser e não ser, entre falar e não falar a sua língua ameríndia, que essa discussão é eregida. Além disso, é um povo que, por meio da colonialidade do poder, deve saber a

7Original: “Una configuración conceptual, una ruptura epistemológica que tiene como base el pasado y el presente, vividos como realidades de dominación, explotación y marginalización, que son simultáneamente constitutivas, como consecuencia de lo que Mignolo há llamado modernidad/ colonialidad. Una configuración conceptual que, al mismo tiempo que construye una respuesta social, política, ética y epistémica para essas realidades que ocurrieron y ocurren, lo hace desde un lugar de enunciación indígena”. (Tradução nossa).

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língua hegemônica para conseguir manter contato com o restante da população. Darcy Ribeiro apresenta, em seu livro O Povo brasileiro, um cronograma do que ocorreu com as populações indígenas, hoje brasileiros, durante a colonização:

[...] com a destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria a negação mais horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira. (RIBEIRO, 1995, p. 43).

Essa afirmação promulga a noção do que hoje percebemos nas aldeias e também expressa na canção “A vida que eu levo”, nos versos que trazem o passado: “O homem branco traz doença / Dizimou nosso povo / causou nossa miséria” (BRÔ MC's, 2009), e o presente: “você e sua cachaça mandam muitos para o cemitério” (BRÔ MC's, 2009). O suicídio, o assassinato, a morte dos indígenas não é um problema novo, trata-se de uma recorrência na história, uma recorrência propiciada pela colonialidade do poder e do saber ainda hoje perpetrados pelos discursos acadêmicos hegemônicos. O índio é morto há muitos séculos não apenas pela possível (não) aceitação da hegemonia, mas também por ter que negar o seu passado e o seu porvir, negando, ou não, a sua cultura. Entretanto, apesar de alguns discursos se fazerem presentes e insistentes hoje, deve-se reiterar que o contexto social, econômico e principalmente o cultural atravessaram caminhos outros e, portanto, adquiriram uma percepção extremamente diferente que há 500 anos, visto que “representa a construção de um novo espaço epistemológico incorporando e negociando o conhecimento indígena e ocidental” (WALSH, 2007, p. 50)8. Além disso, a população indígena foi e continua sendo marginalizada e segregada, como diz Walter Mignolo em Histórias Locais / Projetos Globais: “Ninguém é excluído porque ele ou ela é pobre. Empobrece porque foi excluído” (MIGNOLO, 2003, p. 244). Tendo em vista o exposto acima, pensa-se e questiona-se por onde os “avanços” da modernidade caminharam, tendo em vista a ainda subalternização da população periférica e indígena; se essas ascensões da sociedade levaram toda a população à conseguir ou a obter meios para alcançar o que antes não seria possível, como na comunicação, e mesmo assim o indígena sobrevive em condições sub-humanas. Perguntamo-nos se estes caminhos foram fáceis, ou possuíam pedras ou teceram “teias” (para remeter a letra de “Terra vermelha”) escusas; contudo, a razão desta discussão não é dizer ou desdizer sobre essas estranhas suspeitas, mas, sim, desmistificar os saberes da academia e deslindar epistemologias outras, a fim de que se tratem outras culturas, considerando toda sua inerência cultural, local, fronteiriça e indígena.

8Original: “representa la construcción de un nuevo espacio espitemológico que incorpora y negocia los conocimientos indígenas y occidentales”. (Tradução nossa).

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O processo civilizatório do povo indígena – aqui recorremos ao título do livro do pesquisador Darcy Ribeiro, O Processo Civilizatório – perpassa várias questões. A primeira delas, retornando à interculturalidade, como trata Catherine Walsh, está “ligada ao lugar geopolítico e no espaço, a partir da história e atual resistência indígena” (WALSH, 2007, p. 52)9, uma vez que não há como discutir os assuntos relacionados aos povos indígenas sem passar por abordagens sociopolíticas, históricas e a presente conjuntura dessas populações com relação a ainda colonialidade do poder presente nos discursos acadêmicos e também do estado, acarretando, então, nos discursos do restante da população brasileira e latina. Para esclarecer alguns pontos, somente no Brasil são realmente inúmeros os grupos étnicos indígenas/ameríndios, e, por sua vez, há muitos dialetos e línguas pertencentes à cultura social e comunicativa destes povos. Com isso, a população Guarani (etnia dos jovens do Brô MC's), a primeira a passar pelo processo de colonização há 500 anos, hoje, possui uma grande quantidade de cidadãos que pertencem a essa etnia indígena, podendo ser encontrados em todo o território nacional (GRUPIONI, 1994). Contudo, aqui nesse espaço de fronteira, o Estado de Mato Grosso do Sul, a etnia Guarani caminha por veredas ainda mais adversas.

Em certas circunstâncias, a alteridade entre os índios e o contexto nacional com que eles convivem chega a ser tão agressiva que se torna assassina. É ela que leva os jovens índios ao suicídio, como ocorre com os Guarani, por não suportarem o tratamento hostil que lhes dão os invasores de suas terras. Além de transformarem todo o meio ambiente, derrubando as matas, poluindo os rios, inviabilizando a caça e a pesca, esses vizinhos civilizados lançam sobre os índios toda a brutalidade de um consenso unânime sobre sua inferioridade insanável, que acaba sendo interiorizada por eles, dando lugar às ondas de suicídio. (RIBEIRO, 1995, p. 332).

A conceituação de interculturalidade, tratada por Walsh, compõe o pensamento do "outro", que é arquitetado possuindo sua base em um inerente espaço político de enunciação dos movimentos indígenas. Apesar de pensar no Equador, o conceito pode ser absorvido em discussões por toda a América Latina, tendo em vista o processo colonizador pela qual passou e ainda passa a olhos vendados, perceptível nos diversos discursos ainda hegemônicos.

3 Fagocitose cultural indígena

Apesar das violências tanto de um lado – o branco –, quanto do outro – do indígena transculturado –, obstante não se faça necessário a dual delimitação, o conceito de

9Original: “ligada a geopolíticas de lugar y espacio, desde la historia y actual resistencia de los indígenas”. (Tradução nossa).

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fagocitose cultural abordado por Walter Mignolo desmistifica a noção de que a América seria uma extensão da Europa. Tanto um continente quanto o outro passaram por assimilações culturais, transformando à América em um “lócus de enunciação, enfatizando a sobrevivência marginal dos fragmentos europeus e das ruínas ameríndias” (MIGNOLO, 2003, p. 228). Mas, ao contrário do que se imagina, essas assimilações, tanto de um continente, quanto do outro, não se deram de forma similar. Os nativos tiveram que tomar para si, sendo associados e relegados a marginalidade, ao passo que, do outro lado do Atlântico, as trocas culturais se deram de uma maneira um tanto mais utópico. Tendo em vista que fagocitose trata de:

Um processo de mão dupla: enquanto a civilização ocidental era transformada nas margens pelas tradições ameríndias, essas mesmas tradições geradoras de transformações foram e continuam sendo relegadas a um segundo (ou terceiro) plano pela promoção hegemônica do “processo civilizador” durante o período colonial e do “progresso e modernização” durante o período pós-colonial. (MIGNOLO, 2003, p. 216).

A fagocitose pela qual passou o grupo Brô MC's é visível na sua produção artística musical, pois se vale de um gênero musical de origem marginal/hegemônica (hegemônica, pois nasce nos guetos norte-americanos). A “questão não é celebrar glórias passadas, mas sim como trazê-las para um presente planetário” (MIGNOLO, 2003, p. 222) que, apesar de marginalizado, o rap advém de uma transculturação para expor as suas problemáticas, e, por sua vez, critica em seu rap as outras civilizações colonizadoras e hegemônicas. Cabe ressaltar que, para a fagocitose, há necessidade de pensar no discurso passando, num resgate ao pensamento do indígena em “transformar perdas em ganhos e tirar proveito de nossa dupla marginalidade, tornando-a um lugar de onde pensar e falar, um lugar onde a vida depende de uma contínua fagocitose cultural sobre uma gnose liminar” (MIGNOLO, 2003, p. 228). O postulado da fagocitose cultural trata a ideia de que na América Latina não há como se usar pensamentos classicistas e hegemônicos para se discutir as especificidades históricas do local, em razão das tantas inerências culturais. A pós-colonialidade abre, portanto, a possibilidade para se pensar sobre os discursos não hegemônicos, que até então eram (e, infelizmente, ainda o são, caso contrário não haveria razão para abordar esses questionamentos) respaldos para a história do local latino.

Considerações Finais

cemitério terra sagrada para nos é tempo rá fazendeiro ocupa não tenho medo de falar de lá para cá

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guerras, conflitos chegou a hora de lutar pelo direito dos índios ainda sou perseguido BRÔ MC’s. CD Independente.

Para o indígena, a terra representa uma memória aquém de uma obediência epistêmica, a terra, acaba por se configurar numa forma de o indígena manter a sua cultura e sua memória na história dos indígenas que estão por vir ainda. A manifestação artística musical do grupo perpassa por abordagens que necessitam de uma teorização pensada de onde vieram. Trata-se de uma produção arraigada pela memória indígena, cravada nas terras latinas, no imaginário do nativo, do espectro colonial que ronda as epistemologias sociais, históricas e culturais. Para que pudéssemos dialogar com os arquivos desses jovens indígenas e com a memória de seu povo, foi, e ainda é, preciso interligá-los aos discursos supracitados. Além disso, foi necessário enxergar e exumar espectros coloniais, buscando respostas em conceituações como a interculturalidade, os projetos globais pelas quais perpassa o rap do grupo, incluindo-os ainda como jovens indígenas, subalternos, fronteiriços, inscritos numa periferia, há séculos habitantes, às vezes não tão física quanto a própria intensidade do vocábulo possa expressar, desse loci enunciativo ainda cru no discurso e na crítica acadêmica. Foi preciso que atravessássemos uma batalha com discursos hegemônicos, que pudéssemos nos distanciar ao máximo dessa vertente supressora e, ao mesmo tempo, cega, pois estamos dialogando com produções advindas dessa peculiar nação, e não podemos manter um diálogo com teorias que não os veem de forma descolonial. Antes de entrar pelos meandros descoloniais, precisamos, acima de tudo, nos descolonizar. Há tantos anos somos bombardeados por regras e saberes hegemônicos, e para que pudéssemos adentrar na perspectiva descolonial e conseguir relacionar as inscrições culturais e enunciativas do grupo neste trabalho, foi preciso também que nos descoloniazássemos. Todos os dias somos induzidos a absorver o padrão, aquela ideia de que o índio é quem deve sair de sua terra. Todos os dias somos treinados a predispor o que querem de nós; entretanto, esta discussão desliza caminhos epistemológicos outros. Além disso, é preciso procurar entendê-los em sua essência fronteiriça, transcultural, intercultural, memorialística, também a incompletude e o quebra-cabeça que constitue nossas memórias, seja dos indígenas, seja sua, sejam as nossas, necessitam de entendimento. Os jovens do Brô MC's procuram, de certa maneira, expor em suas canções esses espectros do esquecimento étnico e as privações subalternas na qual eles e seu povo vivenciam e procuram sobreviver há muitos séculos e, ainda, criticar alguns aspectos dos

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seus pares étnicos. E a preocupação como intelectual-subalterno é justamente fugir da academia, com essas epistemologias outras, para que, assim, possa lê-las diferentemente, materializando sua cultura valendo-se de sua inerência.

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PALERMO, Zulma. Desobediência epistémica y opición decolonial. Cadernos de Estudos Culturais: pós-colonialidade. Campo Grande, v. 5, n. 9, p. 187-200, jan/jun. 2013.

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INTERCULTURALIDADE E O ENSINO DE HISTÓRIA INDÍGENA: OS AVANÇOS E ENTRAVES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA TEMÁTICA INDÍGENA NAS ESCOLAS

Lilian Marta Grisolio MENDES1

Introdução

A história não é outra coisa senão uma sucessão de várias gerações, cada uma delas explorando a matéria, os capitais e as forças produtivas legadas pelas que as precederam. Isto quer dizer que, por um lado, prosseguem elas – em condições completamente distintas – a atividade precedente, enquanto que, por outro lado, modificam as circunstâncias anteriores mediante uma atividade humana totalmente diversa. (Karl Marx)

Uma escola e um ensino de história mais plurais pressupõem transformações e novas práticas pedagógicas. Uma temática essencial para este processo que vem sendo implementado, renovando a história ensinada e os currículos escolares, é a temática do ensino de cultura africana e indígena. Este texto objetiva refletir sobre questões introdutórias acerca da importância da efetivação e da continuidade de um trabalho intercultural que promova a diversidade, o respeito e o combate a todo tipo de preconceito e discriminação. Um elemento importante é remover da história indígena ensinada os estereótipos de uma cultura unívoca, atrasada, exótica, fixa e construir novas visões de sociedade mutáveis e complexas, entendendo-as como parte de um processo histórico-social. Porém, para tal tarefa, faremos, primeiramente, uma breve reflexão sobre o ensino de história africana que pode contribuir sobremaneira com nossos objetivos propostos, visto que parte do mesmo processo de ruptura e transformação com o intuito de promover o direito à igualdade. O caminho da luta pelo ensino de história afro-brasileira e dos povos indígenas se entrecruza e faz parte de um mesmo escopo teórico de emancipação dos povos e rompimento com tradições históricas naturalizadas pelo ensino de história. Evidentemente, levamos em conta suas especificidades. No momento da implementação desses estudos, a questão fundamental que surgia era: Por que devemos ensinar a história africana? Para esta pergunta, poderíamos responder com outra questão: Por que estudamos a história dos EUA ou do continente

1 Departamento de História e Ciências Sociais - UFG/CAC - Universidade Federal de Goiás –.. Avenida Doutor Lamartine Pinto de Avelar, Loteamento Vila Chaud, CEP: 75704020 – Catalão - GO – Brasil. E-mail: [email protected]

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europeu? Civilização Greco-Romana, Feudalismo, Grandes Guerras? No entanto, a resposta reside, em primeiro lugar, na visão estereotipada e preconceituosa reproduzida há décadas sobre aquele continente, tal qual sobre as nações indígenas. Além disso, é válido destacar as similitudes que aproximam nosso país daquele continente e povos, a saber, nossa proximidade climática, diversidade ambiental, cultural e religiosa, a presença cultural dos povos africanos na formação do povo brasileiro, influência das línguas, entre outros aspectos. Por estas e outras razões, nos últimos anos, vem sendo realizada a introdução do ensino de África e afro-brasileiros nas salas de aula, o que os especialistas nomeiam de uma ação em prol da afroeducação. Para a realização desse ensino, entendemos que é preciso uma visão ampliada e plural que parte das diversas contribuições do continente africano nas mais variadas áreas do conhecimento. Desde 1988, a Constituição Federal traz significativa contribuição ao declarar que o Ensino de História deve considerar as diferentes culturas e etnias presentes na formação do povo brasileiro:

Art. 242. O princípio do art. 206, IV, não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos. § 1º - O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro. (BRASIL, 1988).

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, por sua vez, ratificou a Constituição e citou especificamente as três matrizes: a indígena, a africana e a europeia. Em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) trazem nos chamados Temas Transversais a questão da pluralidade cultural e, em 1999, se afirma o debate sobre a inclusão da história da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Organizações não governamentais, movimentos sociais e universidades foram sujeitos ativos nesse debate e nas reivindicações. Todavia, somente em 2003 foram assinados dois importantes instrumentos jurídicos que tornaram o ensino da história afro-brasileira obrigatório. A lei nº 10.639/03 e o decreto nº 4886/03, que instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), atendendo as demandas ligadas às políticas afirmativas que, em síntese, buscam vencer preconceitos e desigualdades raciais acumuladas historicamente mediante a geração de oportunidades. Essas leis, além de apontarem para a necessidade da pluralidade racial em nossa sociedade, trouxeram à tona os problemas no campo educativo, que permitiram a permanência de discriminações e estereótipos nos conteúdos e materiais didáticos. Assim,

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tornou-se explícita a necessidade de se repensar e de se problematizar aspectos fundamentais como currículo, conceitos e metodologia. Evidentemente, tais questões geraram uma série de controvérsias e polêmicas. Foram inúmeras alegações e contraposições, no entanto, o fato é que essas leis são fruto de um longo debate político-educacional e da atuação constante e persistente de grupos e acadêmicos que estão conseguindo mudar práticas estabelecidas há muito tempo. Estas leis representam um esforço de reparação ao tratamento de exclusão, inclusive do sistema educacional, que historicamente atenuava a valorosa contribuição dessas etnias. Um importante material didático usado na década de 1940 pode ilustrar de forma indelével como esse processo ocorre nas salas de aula. O livro de História do Brasil, do autor Orestes Rosólia, em consonância com o Decreto-lei da Educação de abril de 1942, traz um capítulo sobre a formação étnica do país. Esse capítulo revela a importância dos debates atuais e possibilita perceber as consequências daquele modelo educacional de Ensino de História. No capítulo em questão, o autor apresenta uma descrição dos povos brancos, em resumo, ocidentais, cristãos e civilizados. Depois dos povos indígenas, que entre outras características possuem um ânimo supersticioso, acreditavam no pagé “[...] espécie de feiticeiro detestável que era respeitado e temido pelo seu poder de malefícios e de prever o futuro [...]” (ROSÓLIA, 1948, p. 93). O autor ainda afirma que os povos indígenas não possuíam uma religião, pois “[...] não construíram templos, não possuíam sacerdotes e nem chegaram a ter uma noção abstrata de desuses aos quais tributassem culto” (ROSÓLIA, 1948, p. 92). Além disso, Rosólia ainda classifica os indígenas de insubmissos e defeituosos: “[...] rendia menos e nunca chegou a ser um bom agricultor” (ROSÓLIA, 1948, p. 95). Quanto aos negros, a análise parte da ideia de que foram escravizados pela sua fácil submissão, além disso, Rosólia (1948, p. 95) afirma que:

[...] em geral o escravo negro era feliz no seu trabalho e na sua submissão. Os grandes engenhos, verdadeiros povoados, contendo centenas de escravos, ofereciam-lhes constantes atrativos com festas, cerimônias religiosas e sociais e com isto, entretinham o constante interesse do negro.

No último item do capítulo, o autor apresenta dois gráficos de comparação entre a população do século XVIII e outra da década de 1940. Segundo as estimativas apresentadas, os índios compunham 13,5% da população e depois apenas 2%. A mesma lógica da mestiçagem e do embranquecimento da população se aplica aos negros que totalizavam 60% no primeiro gráfico e passaram para apenas 8% da população no século XX.

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Articulando o ensino de história e as práticas sociais esse tipo de material auxilia na compreensão de permanências de estigmas e estereótipos ainda presentes nos dias de hoje e revela a necessidade de rompermos com essa visão equivocada da existência de uma cultura civilizada e superior.

Interculturalidade e o Ensino de História Indígena

É nesse contexto que se impõe a necessidade do uso de conceitos como da interculturalidade e da multiculturalidade nos processos de reflexão, investigação e ações educativas. Vale aqui definirmos tais conceitos, por vezes tomados como equivalentes. A interculturalidade pressupõe relação e interação entre as culturas, as relações entre os diferentes povos; ao passo que a multiculturalidade parte do entendimento de que nossa sociedade é composta por diversas culturas, assim, pressupõe a existência e a convivência desses costumes e hábitos distintos. Dessa forma, a multiculturalidade é uma característica marcante em nossa sociedade: a miscigenação. No entanto, a interculturalidade vai além de reconhecer nossa diversidade, pressupõe que possamos nos relacionar e interagir. A esse respeito, Bianca Fraccalvieri argumenta que:

O acréscimo da preposição “inter” não é somente quantitativo, mas qualitativo, e pode indicar o espaço compartilhado por uma ou mais culturas e, [...] é também reciprocidade, diálogo cultural, encontro com o outro, alteridade absoluta, cultura que traz a marca da diferença. Na verdade, este encontro com o outro não é algo de novo na Filosofia. Pelo contrário, faz parte da própria natureza, e sua vocação a interculturalidade pode ser historicamente comprovada. (FRACCALVIERI, 2008, p. 23).

Consideramos, então, que as três matrizes para a formação do povo brasileiro possuem suas especificidades. A população indígena é a única nativa, ou seja, já estavam aqui com sua cultura, costumes e organização. Os europeus são imigrantes que chegaram por vontade própria, motivados pelo contexto do desenvolvimento do seu continente. E os povos africanos, por sua vez, também imigrantes, porém forçados e obrigados a abandonar seu continente. Os índios e africanos, portanto, apesar de suas diferenças, tiveram suas tradições e cultura atacadas e foram obrigados a se adaptar de forma trágica e violenta a novas realidades. Isso justifica a necessidade de se reconhecer a multiculturalidade, não como um sinal de inferioridade e defeito, mas como algo próprio da nossa riqueza e que contribui para a interculturalidade, ou seja, com a interação e o diálogo de várias culturas. É importante ressaltarmos que a diversidade é um fenômeno que acompanha a história da humanidade.

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Além disso, são características próprias das sociedades humanas os elementos diferenciadores. A Europa é um grande exemplo disso, apesar de certa visão equivocada de um patrimônio cultural único, é formada por diversos povos, línguas, dialetos, religiões. Uma educação que corrobore para a interculturalidade e que auxilie a conhecer, respeitar e trocar com outras culturas possibilita a todos acessar o patrimônio cultural dos povos indígenas e africano.2 No tocante, especificamente, ao tema da educação indígena, ocorreu o mesmo percurso de lutas, cobranças e reivindicações relatadas até aqui, porém somam-se outras importantes questões que desatacaremos a seguir. Muitos especialistas são categóricos em afirmar que existem danos irreparáveis no caso indígena brasileiro. Em virtude do modelo educacional e de políticas públicas baseadas na ideia de uma educação civilizadora para os povos indígenas, considerados selvagens e insubmissos, ocorreu o desaparecimento de muitas línguas, consideradas atualmente como extintas, assim como inúmeras tradições. Nessa perspectiva, a lei nº 10.645/08 é também fruto de intenso debate e atuação do movimento indígena em defesa da história, ensino e da cultura indígena. Infelizmente, apesar da lei, observa-se que as escolas ainda reproduzem o hábito de discutir a história dos povos indígenas ou dos afrodescendentes somente em datas comemorativas como o Dia do Índio ou no Dia da Consciência Negra. Essa situação, inevitavelmente, corrobora para a manutenção da visão preconceituosa e fragmentada da história dos povos, repetindo os equívocos e as distorções históricas. Precisamos ir além. De acordo com os pioneiros dos movimentos indígenas, totalizam-se, na verdade, cinco séculos de resistência ao contato e dominação dos povos brancos. No caso indígena, para além das mudanças e implementações no currículo oficial de ensino de História, soma- se a luta pelo direito da escola indígena de fato: diferenciada, bilíngue e intercultural. Nessa concepção, rompe-se com a crença equivocada de uma escola única e universal. Nessas escolas, o trabalho pedagógico valoriza a oralidade e a reconstrução de memórias. Esta escola não é isolada, ao contrário, é intercultural porque pressupõe o diálogo entre as tradições indígenas e o conhecimento científico. Diferente daquele índio estático, imóvel há 500 anos e que não pertence ao tempo presente, o movimento indígena quer se relacionar com o mundo, porém, sem perder sua cultura de dinâmicas próprias de seus povos.

2 Para aprofundamento em relação aos conceitos de inter e multiculturalidade, indicamos McLaren (1997) e Silva (2010).

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Era comum o ensino de história enfatizar apenas a dominação, as derrotas e os extermínios, vitimando ou infantilizando os povos indígenas, concedendo um status de passividade e incapacidade, uma dominação sem resistência ou conflito3. No século XIX e início do século XX, enquanto a história crítica era forjada, o Brasil legitimava a história oficial, baseada na concepção francesa, na qual o centro dos estudos era a gênese da civilização, neste caso a europeia cristã ocidental. A história nomeada como tradicional ganhou força e relevância, consolidando uma metodologia rígida e determinando conteúdos. Logo, a biografia de ilustres, os fatos marcantes e as datas exatas formavam a tríade que aprisionou o ensino de História por muito tempo.4 Nesse contexto foram construídas as explicações para o “Descobrimento de Brasil”, para a “Independência do Brasil” ou ainda para “Proclamação da República”, assim como a explicação para a escravidão e a dominação dos povos indígenas, cristalizando a visão de povos inferiores e preguiçosos. No entanto, as muitas crises da Educação, os surgimentos de novas gerações de historiadores e movimentos sociais, entre outros fatores corroboraram para a reelaboração e ressignificação dos nexos constitutivos da História. Os avanços conquistados, novos temas, novas fontes e olhares vêm alterando esse cenário e mostrando que o ensino de História pode cumprir outros papéis mais humanos e democráticos. Promover o respeito à diversidade e o combate a todo e qualquer tipo de discriminação ou exclusão é função sine qua non da escola e das políticas públicas. Assim,

[...] a ausência da história indígena efetiva indígena na maioria dos livros didáticos não corresponde à presença efetiva e ativa de indígenas e afro-brasileiros na realidade histórica, presença essa que vem deixando infinitos sinais e vestígios que são fontes históricas. É possível e necessário, assim, utilizar o vasto universo de fontes (entendidas também como recursos didáticos) sobre a história desses povos para a elaboração de materiais e atividades didáticas para a prática de ensino e pesquisa de História na educação básica. (COELHO; MEIRA; LIMA, 2012, p. 08).

Nesse sentido, uma última reflexão, imperativa nesse debate, diz respeito à formação crítica dos professores de História. Concordamos que, para que realmente se efetive uma alteração definitiva desse modelo escolar no tocante à educação plural e intercultural, é essencial a formação de professores e gestores da educação comprometidos com uma visão crítica e atuante. Para romper, por exemplo, com práticas antipedagógicas

3 Nesse contexto, vale citar Elza Nadai, que afirmava que “O resultante dessa abordagem reproduzida há décadas nos programas de História foi a construção de algumas abstrações, cujo objetivo tem sido realçar, mais uma vez, um país irreal” (NADAI, 1992, p. 150). 4 Sobre esta questão, Nadai (1992, p. 142) conclui: “Assim, a História, enquanto disciplina educativa ocupou nas suas origens, um lugar específico, que pode ser sintetizado nas representações que procuravam expressar as ideias de Nação e de cidadão embasadas na identidade comum de seus variados grupos étnicos e classes sociais constitutivos da Nacionalidade brasileira”.

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como as habitualmente praticadas nas escolas, de Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, quando no dia 19 de abril (Dia do Índio) fantasiam e pintam os rostos das crianças numa ação que folcloriza e cria estereótipos sobre os povos indígenas. Desta forma, entendemos que não é papel do historiador conformar-se com o discurso oficial e sim analisar, questionar, problematizar, propor, revelar interesses para que os sujeitos possam se posicionar, redefinir a sua compreensão sobre o mundo e atuar diante da história, do contrário, a pesquisa histórica seria inútil e sem sentido. Sendo assim, embora muitos historiadores se coloquem em oposição às questões indígenas e à história crítica que parte do referencial teórico marxista, compreendemos alguns pontos fundamentais que podem colaborar com os avanços necessários em prol de uma luta pelos direitos dos povos indígenas. A luta dos indígenas contra a dominação dos brancos e colonizadores e a destruição de seus valores e costumes têm relação direta com a ideia de luta de classes desenvolvida por Marx. Assim como a questão da dominação não apenas econômica, mas também cultural. Dessa forma, a luta indígena é também uma luta contra a hegemonia de um discurso e projeto de poder. Apesar do contexto e de algumas distorções próprias do momento histórico, podemos citar José Carlos Mariátegui, o fundador do comunismo peruano e um dos mais influentes marxistas da América Latino. Este autor produziu inúmeros textos analisando e relacionando as questões indígenas latino-americanas com as teorias revolucionárias do marxismo. Em seu texto, escrito em 1929, “El problema de las razas em América Latina”, ele afirma que:

Só o movimento revolucionário e classista das massas indígenas exploradas poderá lhes permitir dar um sentido real à libertação de sua raça da exploração favorecendo as possibilidades de sua autodeterminação política. Na maioria dos casos, o problema indígena identifica-se com o problema da terra. A ignorância, o atraso e a miséria dos indígenas são apenas a consequência da sua escravidão. (MARIÁTEGUI, 1999, p. 110)

Outra importante questão é a crítica ao consumismo, próprio do capitalismo. Logo na chegada dos portugueses ao Brasil, o encontro entre as duas culturas e sua estranheza mostrou-se bastante claro. Para os portugueses, o índio era preguiçoso porque poderia passar o dia pescando o maior número de peixes possíveis para acumular (dentro da lógica já em curso de acumulação primitiva), ao passo que, para os indígenas, era difícil compreender para que pescar tanto se ele só precisava de um peixe para se alimentar. A lógica da crítica ao consumo, fundamento básico do capitalismo formulado na teoria sobre a mercadoria em Marx, pode ser vista na crítica que os indígenas fazem sobre o consumo exagerado e a supervalorização das mercadorias em detrimento dos valores e tradições.

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Segundo Walter Benjamin (1994), em “Sobre o conceito da História”, a sociedade moderna é a era do aceleramento das relações tecnológicas. É este o ritmo das sociedades capitalistas que dificulta a assimilação e a transmissão das experiências. O tempo de produção artesanal – própria das sociedades indígenas – dava ao homem a condição de narrar e transmitir suas tradições e memórias. Já o tempo do capital, absorve nossas capacidades reflexivas de ouvir e guardar: tudo é efêmero e provisório. No entanto, para a cultura indígena, o tempo da produção do capital é nocivo para sua existência. A preocupação com a preservação de seus costumes, língua e tradições é real e essa luta é travada tanto no âmbito das políticas públicas e movimentos indígenas, como na luta pelo ensino da história indígena. A esse respeito, Ailton Krenac, um dos maiores ativistas indígenas do nosso país, argumenta:

[...] quem tem identidade, quem tem alteridade, ele pode sofrer todas as perseguições, pode passar por todos os becos circunstancias da vida, mas ele não perde o rumo, por que ele sabe quem ele é, sabe de onde veio e para onde vai. Ele não vai ficar se vendendo em troca de bugiganga. E um grande trajeto da civilização moderna é que por falta de alteridade as pessoas estão vivendo por conta das bugigangas: é consumir o próximo celular, a próxima porcaria eletrônica, o próximo carro, o próximo item tecnológico. As nossas crianças estão sendo estimuladas o tempo inteiro a essa alienação de ter objetos, de ter coisas. Então, a maioria de nós estamos forçados pela ideia de ter coisas e não de ser. (KRENAC, 2012, p. 128).

Nesse sentido, defendemos o ensino de História numa perspectiva crítica, pluralista e combativa, que contribua para a revisão dos currículos e métodos de ensino, construção de novas práticas e políticas, com o intuito de combater a exclusão, a dominação e o desaparecimento da cultura indígena. O desafio das atuais políticas públicas e da educação é garantir a continuidade e a ampliação das ações efetuadas até aqui e assegurar a existência e os direitos da educação indígena. Desse modo, o ensino de História crítico é fundamental para auxiliar os não indígenas a romperem com seus preconceitos e para que desenvolvam uma visão mais plural e diversa da nossa sociedade.

Referências

BENJAMIN, W. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232. (Obras escolhidas; v. 1)

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

COELHO, A.; MEIRA, E.C.R.; LIMA, P. L. O. Apresentação. In: LIMA, P. L. O. (Org.). Fontes e Reflexões para o ensino de história indígena e afro-brasileira: uma contribuição da área de história do PIBID/FaE/UFMG. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Educação, 2012. p. 4-9. (Coleção PIBID Faz).

FRACCALVIERI, B. Filosofia como lugar aberto para um diálogo entre culturas. Revista Filosofia Ciência & Vida, São Paulo, v. 2, n. 23, p. 24-31, 2008.

KRENAC, A. História Indígena e o eterno retorno do encontro. In: LIMA, P. L. O. (Org.). Fontes e Reflexões para o ensino de história indígena e afro-brasileira: uma contribuição da área de história do PIBID/FaE/UFMG. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Educação, 2012. p. 114-131. (Coleção PIBID Faz).

MARIÁTEGUI, J. C. El problema de las razas em América Latina. In: LOWY, Michel. O marxismo na América Latina. Tradução Claudia Schilling, Luís Carlos Borges. 2ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. p. 108-111.

MCLAREN, P. Multiculturalismo Crítico. Instituto Paulo Freire. São Paulo: Cortez, 1997.

NADAI, E. Ensino de História no Brasil: trajetórias e perspectivas. In: ANPUH. Dossiê Memória, História e Historiografia. São Paulo: Anpuh, 1993, p. 143-162.

ROSÓLIA, O. História do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1948.

SILVA, L. E. A educação étnico-racial: Reflexões sociológicas e filosóficas. Revista Educação, UnG, v. 5, n. 1, p. 45-53, 2010. Disponível em: . Acesso em 05 mar. 2014.

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DOCUMENTOS E MEMÓRIA NA ESCRITA DO “FUNDAMENTO HISTÓRICO” DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA

Marcela Verônica da SILVA1

Cláudio Manuel da Costa teve publicado, em 1789, seu poema épico “Vila Rica” e, anteposto a ele, constava um texto em prosa intitulado “Fundamento Histórico”. Sua inserção claramente apontava-o como leitura de apoio, a fim de proporcionar chão de historicidade às ações desenvolvidas pela epopeia, cujo assunto era a disputa entre paulistas e portugueses nos anos de 1707-1709. O texto histórico, pois, seguia as prescrições de um gênero comum às práticas acadêmicas do século XVIII, a ‘memória histórica’. O poeta, enquanto membro da Academia Brasílica dos Renascidos, reconhecia essa prática, o que pode ter influenciado a pesquisa em documentos e memória para a escrita do “Fundamento”. Assim, a proposta de trabalho que se segue, visa relacionar a composição do “Fundamento Histórico” às práticas acadêmicas. Cláudio Manuel da Costa participou, na qualidade de sócio supranumerário, da Academia Brasílica dos Renascidos, agremiação fundada na Bahia em 1759. Nesse contexto, tinha como missão desenvolver uma dissertação histórica acerca de sua região, Minas Gerais, para constar entre os capítulos da almejada História da América Portuguesa. Para tanto, necessitava comprovar seus escritos com documentos buscados em arquivos públicos e cartorários (processos de inventários, livros de notas de tabeliães, processos civis etc.). Essa missão foi descrita na “Distribuição dos empregos” da agremiação, na qual consta também que as “Memórias para a História universal de nossa América, que se hão de escrever na língua portuguesa [...]” (ESTATUTOS..., [18--], não paginado), deveriam ser um trabalho em equipe, desenvolvido por todos os integrantes da academia e que a parte “do bispado de Marianna, compreendendo o districto do Rio das Mortes, S. José de Villa Rica do Ouro Preto, cidade de Marianna, Sabará ou Rio das Velhas” nomearia “quatro sócios, entre elles Cláudio Manoel da Costa e João Pereira Ramos”. O projeto parecia estar designado para implementação, mas, o que se sabe é que tal empresa não se concretizou durante a existência da Academia Brasílica dos Renascidos. Não se sabe se Cláudio Manuel da Costa produziu qualquer escrito em nome da instituição. Um documento, porém, que parece corresponder a esses mesmos esforços que a proposta

1 Doutoranda - Programa de Pós-Graduação em Letras – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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acadêmica sugeria é o “Fundamento Histórico”, texto que serve de acompanhamento ao poema épico intitulado “Vila Rica” e que seria publicado apenas em 1839, postumamente, portanto. Apesar do “Fundamento Histórico” servir de pano de fundo histórico ao poema “Vila Rica”, sua composição, de certo modo, demonstra pesquisa prévia, algo que demandaria excessivo trabalho para um texto de apoio. Cláudio Manuel da Costa, no entanto, no primeiro parágrafo do “Fundamento Histórico” justifica o fato de as notas explicativas não ser o suficiente para o esclarecimento dos versos de seu poema, de modo que resolveu escrever a “notícia” do descobrimento de Minas Gerais:

Persuadido o autor desta obra de que não serão bastantes as notas com que ilustrou os seus Cantos a instruir ao Leitor da notícia mais completa do descobrimento das Minas Gerais, da sua povoação e do aumento a que têm chegado os seus pequenos Arraiais, se resolveu a escrever esta preliminação histórica, em que protesta não pertender alterar a verdade a benefício de alguma paixão, e só se regula pelo mais crítico e incontestável exame, que por si e por pessoas de conhecida inteligência e probidade pôde conseguir sobre fatos que ou a tradição conserva de memória, ou escreveu raramente algum gênio curioso, que o testemunhou de vista. (COSTA, 1996, p. 360).

Essa introdução permite considerar a ideia de que o documento tenha sido escrito com finalidade secundária, ou seja, apenas como um pano de fundo para a leitura do poema (a mais importante, portanto). O fim do documento não é contestável. Cláudio Manuel da Costa o afirma. Todavia, como se revelou ao longo deste trabalho, a reunião da documentação necessária à escrita da dissertação deu-se ainda quando o autor era secretário de governo, época também em que era filiado à Academia Brasílica dos Renascidos. Assim, o principal fator que se propõe a investigar é a intenção de tal escrito. No fragmento em destaque, o autor afirma não pretender “alterar a verdade a benefício de alguma paixão”, pressuposto também encontrado nas práticas acadêmicas ilustradas. Assim, o tratamento conferido à retórica previa a utilização de documentos escritos para comprovação das afirmações. O autor, no entanto, não exclui de suas investigações as contribuições “que a tradição conserva de memória” e é nesse ponto que a ficção pode se revelar. Antonio Cândido, no prefácio de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda (2001, p. 9), salienta que, a certo momento da vida, nossos testemunhos tornam-se registros da experiência de muitos, de uma geração. Julgando-se diferentes, vão tornando- se tão iguais, que acabam desaparecendo em sua individualidade para se dissolverem nas características gerais de sua época. Assim, “registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar”.

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Essa passagem adequa-se perfeitamente ao “Fundamento Histórico” de Cláudio Manuel da Costa. Sua estrutura, apesar de ser condizente ao ideal ilustrado, com o intuito de buscar a veracidade dos dados apresentados, pautava-se também na memória, por entender que a palavra do homem servia como comprovação, assim como os demais documentos. No poema “Vila Rica”, o recurso à memória também se faz presente e ocorre pela tentativa de criação de um mito. Sobre o funcionamento da memória no discurso da poesia mineira setecentista, Marques (1993, p. 264) afirma que “há a memória arquivo que endossa a tradição, vista como passado petrificado” e a “memória operadora de diferença em que o passado é retomado como objeto de reflexão e apreendido como algo dinâmico, marcado pela mobilidade do presente na poesia mineira do setecentos parecem coexistir esses dois tipos de memória” (MARQUES, 1993, p. 264). Esses dois tipos figuram no poema “Vila Rica” e no “Fundamento Histórico”, presentes em Costa (1996), uma vez que parte do conhecimento histórico arraigado na mentalidade dos habitantes, para, com base nele, refletir sobre os fatos, aplicando, assim, novas possibilidades com recurso da ficção. O “Fundamento Histórico”, alternando documentos e memória, constrói um pano de fundo para a leitura do poema. Apesar da intenção de sua escrita não poder ser afirmada, entende-se que é um texto que supre a carência dos leitores que buscam informação e cumpre o seu papel de base para o texto literário sem necessariamente precisar vincular-se a ele. Acredita-se, assim, que a escrita do “Fundamento Histórico” funcione como um recurso didático, elaborado com a finalidade de esclarecer episódios históricos mostrando sua veracidade, mas também se constitui como texto autônomo.

***

Um documento histórico não poderia conter os elementos ornamentais, já a poesia, por ser menos voltada à realidade, não poderia suprir as necessidades práticas de um documento baseado em comprovações documentais. No entanto, o hibridismo que não seria decoroso na alternância entre poesia e dissertação pode ganhar nova roupagem no modelo prefacial da advertência, do prólogo ou na linguagem dramática, do argumento. Cláudio Manuel da Costa seguiu o modelo de Voltaire em La Henriade, ao articular o particular do historiador e a universalidade poética. Deste modo, emula o poeta francês, por exemplo, no uso de notas explicativas ao longo do poema, com remissão a documentos e/ou obras impressas que levariam, a todo instante, o leitor a se deparar com a “verdade” dos eventos narrados. Conferindo “historicidade” aos fatos, Cláudio Manuel da Costa estaria compondo um “mito” para ser explorado pela poesia, uma vez que não havia distanciamento

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histórico que permitisse a compreensão de Albuquerque como herói nem de Vila Rica como espaço de merecido louvor. Segundo Rodrigues (2012), a prosa do “Fundamento Histórico” pretende seguir a vocação historiográfica e os aparatos acadêmicos que orientavam a elaboração de uma ‘memória histórica’. De acordo com Kantor (2004, p. 203-242), esse gênero é constituído por quatro procedimentos básicos: a) elaboração de um discurso histórico que glorificasse o espaço imperial, organizando, para isso, ‘memórias’ e ‘documentos’; b) teorização dos interesses do estado como superiores às responsabilidades religiosas, o que conduz à progressiva secularização das leis e das fontes do direito; c) definição de métodos específicos para a autenticação das fontes, com as quais se consolida a separação entre narrativa historiográfica e ficção; d) consolidação de um canal de expressão e de sociabilidade dos grupos letrados luso-americanos, com construção de uma rede de colaboradores para a coleta de informação. No Fundamento Histórico é possível reconhecer em todos os elementos supracitados, uma ‘memória’ bem ao gosto dos aparatos defendidos pela Academia Brasílica dos Renascidos. As semelhanças entre o Fundamento Histórico e os escritos da Academia Brasílica dos Renascidos podem ser encontradas na temática do documento, que dialoga com a finalidade das investigações da referida academia, a forma do documento, que mantém relação muito próxima com a elaboração de uma dissertação acadêmica, pelo uso de um modo de escrita específico, calcado, sobretudo, no discurso argumentativo da retórica e, além desses indícios, observa-se a existência de declarações do poeta que o ligam a uma rede de contatos formada a partir da agremiação. A Academia Brasílica dos Renascidos era uma instituição de utilidade pública. Como esclarece Lima (1980), associava-se a preocupação de prestar serviços a toda comunidade, no sentido de informação cultural, como consta da “Adição dos estatutos”:

Desejando a mesma academia fazer-se útil à Pátria, quanto lhe for possível, e compondo-se hoje de Sócios, muito eruditos, e versados em todas as faculdades, se oferecem a responder a todas as dúvidas, que a ela quiser ir propor qualquer Pessoa, e em qualquer matéria. (LIMA, 1980, p. 109).

Assim, já se pode estabelecer uma aproximação entre a prática institucional da academia e a intenção de Cláudio Manuel da Costa em seu “Fundamento Histórico”. As Minas Gerais representavam a maior parte da arrecadação régia. Assim, nada mais compreensível que “presentear” seus habitantes e a coroa com um estudo histórico

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dessa região para servir de base a uma ambição maior: a construção de um poema épico para imortalizar sua “pátria”. Sua empresa mostra-se socialmente útil e agradável. Cláudio Manuel da Costa afirma que suas provas são as mais fiéis à realidade, mas não as demonstra, não cita de onde vieram. O lado “histórico” de sua produção parece, assim, enfraquecido e é a falta de explicação que serve de subsídio para a mitificação do “Fundamento Histórico”, à medida que alguns elementos imprecisos (enquanto informações) são utilizados à sombra das informações colhidas na academia, tornando a matéria verossímil, e, portanto, criadora do universo filosófico, na concepção dos poetas antigos, no qual a poesia figura como aquilo que poderia ter sido (cf. ARISTÓTELES, 2005, p. 44-45), ou seja, Cláudio Manuel da Costa é acadêmico, poeta e pesquisador, mas ao colocar elementos imprecisos no “Fundamento Histórico” faz dialogar histórico e verossímil. Dois nomes são importantes para que se possa entender o teor do documento: o do Coronel Bento Fernandes Furtado e o de Pedro Taques de Almeida Paes Leme.

Entre os desta conduta deu um importante socorro o Coronel Bento Fernandes Furtado, natural da Cidade de São Paulo, que há poucos anos faleceu no Serro do Frio, tendo sido morador no Arraial de São Caetano, distrito da Cidade Mariana. Confiou ele do Autor em sua vida alguns apontamentos que fizera, e achando-os o Autor em muita parte dissonantes do que havia lido na História de Sebastião de Pita Rocha e outros escritores das cousas da América, procurou confirmar-se na verdade pelos monumentos das Câmeras e Secretarias dos Governos das duas Capitanias, São Paulo e Minas. O Sargento-Mor Pedro Taques de Almeida Paes Leme, natural também da mesma Cidade de São Paulo, e ali morador, de estimável engenho e de completo merecimento, remeteu ao Autor desde aquela Cidade todos os documentos que conduziam ao bom discernimento desta obra, e regendo- se o Autor por Ordens Régias, Cartas de Governadores e atestações de Prelados Eclesiásticos, e manuscritos desde a era de 1682 achados nos arquivos que foram dos padres denominados da Companhia de Jesus naquela Província, facilmente poderá desculpar-se se oferece ao público este Poema, sem o receio de ser insultado nas opiniões que sustenta, ainda quando mais contestadas de uns e outros sectários. (COSTA, 1996, p. 360).

Cláudio Manuel da Costa uniu, assim, em seu documento, estes dois elementos: a “memória”, que teve como suporte as contribuições do Coronel Bento Fernandes Furtado, que lhe teria confiado, pouco antes de morrer, “alguns apontamentos” que fizera; e a parte correspondente à história em si, que foi construída graças ao auxílio de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, que enviou ao autor documentos de teor incontestável, como as ordens régias, cartas de governadores e atestações de prelados eclesiásticos, além de manuscritos desde a era de 1682. Segundo Lopes (1985), o “Fundamento Histórico” pode ser lido sem o poema. Mas antes da leitura do poema convém que seja lido o “Fundamento Histórico”. O autor ressalta que o documento prepara o leitor para que ele compreenda a narrativa. Declara que, antes

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de ser o poeta de sua terra, Cláudio Manuel da Costa foi o seu historiador, tanto é que construiu sobre os enredos da história a sua poesia. Porém, nota-se, no “Fundamento Histórico”, a falta de consistência nas informações relativas às fontes, que abrem espaço para uma leitura pouco esclarecedora. A tentativa de afirmar que sua obra prima pela “verdade” cai em contradição. Assim, o lado poeta, conhecedor dos artifícios da verossimilhança, aparece, comprovando que antes de ser político e historiador, Cláudio Manuel da Costa é um artista, criado não pela Arcádia (como afirma), mas pela sua própria escola, apesar de ter recebido influxos de todo o espírito da época em que viveu. O historiador Cláudio Manuel da Costa apoia-se em uma memória criada e já cristalizada para compor seu poema. Segundo Lopes (1985, p. 54),

[Cláudio Manuel da Costa] recorreu à tradição, “que conserva os feitos, e aos escritos de algum gênio curioso”, “testemunha de vista” dos acontecimentos. Entre eles, os já lembrados, Bento Fernandes Furtado e Pedro Taques de Almeida Paes Leme. O primeiro, Cláudio conheceu-o pessoalmente: “Confiou ele ao autor em sua vida alguns apontamentos, que fizera, [...]”. Já o poeta verificou, a tempo, como as notícias de Bento Fernandes discordavam de outros autores e vai conferi-las com as de Sebastião da Rocha Pita e os documentos das Câmaras de São Paulo e Minas.

Os apontamentos a que se refere Cláudio Manuel da Costa constituem a narrativa intitulada Notícias dos primeiros descobridores das primeiras minas de ouro pertencentes a estas Minas Gerais, pessoas mais assinaladas nestes empregos e dos mais memoráveis casos acontecidos desde os seus princípios, publicada na edição crítica do Códice Costa Matoso, organizada pela Fundação João Pinheiro. O primeiro documento que se refere a Albuquerque como um herói pacificador é a obra História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita, citado como Sebastião de Pita Rocha por Cláudio Manuel da Costa. Albuquerque é colocado ao lado dos emboabas, como seu partidário, e suas ações consideradas honrosas, pois havia estabelecido ordem em meio à tirania dos paulistas. Sebastião da Rocha Pita (1976) descreveu a passagem do governador pelas Minas como uma empresa destinada a: “reduzir aquele grande número de súditos, que vagava sem firmeza, à vida urbana e política, erigindo as seis vilas cujos nomes deixamos já escritos” (PITA, 1976, p. 246). À exaltação da figura do governador pelos emboabas, que teriam mesmo rogado a sua intervenção em território mineiro, contrapõe-se a detração dos paulistas, descritos como os adversários de Albuquerque, ameaçado e maltratado por eles no encontro nas imediações da vila de Guaratinguetá.

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É interessante observar que, ao mesmo tempo que o poema se impõe como contraponto crítico à obra de Rocha Pita, claramente contestado pelo autor, ele não deixa de validar o seu elogio aos feitos do governador Antônio de Albuquerque. A História da América Portuguesa foi publicada em Lisboa pela Officina de Joseph Antônio da Silva, em 1730, e pode ser considerada a primeira produção histórica do Brasil, pois, apesar de ser a segunda. A obra enquadra-se nos objetivos tanto da academia brasílica quanto da academia portuguesa e a elaboração, segundo Candido e Castello (1973, p. 96), a obra foi iniciada na Bahia e concluída em Portugal, “onde dispôs do restante da documentação necessária, despois da que utilizou entre nós”. Relata os acontecimentos ocorridos no Brasil desde o seu descobrimento, em 1500 até ao ano de 1724 e divide-se em dez partes/livros, constituindo-se numa crônica administrativa do Brasil. Segundo Candido e Castello (1973), a obra é um relato detalhado de fatos e circunstâncias, louvores a autoridades e figuras de relevo em acontecimentos de cunho militar e histórico. Está entremeada de detalhes descritivos da paisagem e de aspectos que evidenciam as riquezas da terra, fundindo, assim, a informação com a crônica histórica. Segundo Lima (2007), Sebastião da Rocha Pita cria a História da América Portuguesa que pressupõe a defesa de uma teoria da razão de Estado cristã. Apresentando-se como fidalgo portador de uma autoridade autorizada, escreve uma história oficial, na qual o Império Lusitano baseava a sua política na defesa prudente da “verdadeira religião”, mas atribui aos paulistas qualidades imprudentes, como a cobiça, a inveja, a insubordinação, a maledicência etc., defeitos que não poderiam ser aceitos por Cláudio Manuel da Costa para sua elaboração poética. Tudo indica que Pedro Taques Paes Leme, contemporâneo de Cláudio Manuel da Costa, baseia a invenção de sua história Notícias das Minas de São Paulo e dos sertões da mesma capitania, publicada em 1771, na correspondência com Cláudio Manuel da Costa e que o “Fundamento Histórico” pode ter sido a base para a invenção de outras histórias, como a do Frei Gaspar da Madre de Deus (1975). Segundo Pessoti (2009), Sebastião da Rocha Pita escreveu sua História da América Portuguesa (1730) sob a influência do novo método historiográfico desenvolvido pela academia histórica metropolitana, a Academia Real de História Portuguesa e sob os auspícios de um cosmopolitismo que englobava as academias portuguesas e luso- brasileiras colocou seus membros em contato com a produção intelectual de vários países europeus. Se isso não seria suficiente para fazer de Rocha Pita um baluarte de ideias iluministas, o que ele, de fato, não foi, é preciso considerar que ele manteve contatos com um circuito intelectual que foi influenciado pela ilustração e que sua obra foi o reflexo elaborado com base na colônia, em uma tentativa de renovação de práticas eruditas desenvolvidas na metrópole sob uma perspectiva que dialogava com preceitos iluministas.

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Porém, apesar de tentar se adequar a essa nova perspectiva de construção historiográfica, percebe-se, ainda, um vínculo temático voltado aos ideais escolásticos no que se refere ao seu posicionamento acerca da congregação religiosa renegada posteriormente por Pombal. Talvez, esse caráter de transição escolástica-iluminista esteja relacionado às múltiplas visões dos integrantes da Academia Brasílica dos Renascidos, que contribuíram com seus escritos para compor a dita história. Segundo Moraes (2012), o teor da História da América Portuguesa (1730) de Sebastião da Rocha Pita é:

[...] curiosamente objeto de polêmica atitude do acadêmico que, participante da Academia Real de História Portuguesa, como acadêmico correspondente ou supranumerário, ao lado de Gonçalo Soares da Franca (outro brasileiro da academia portuguesa), acaba por enviar como trabalho de sua autoria um conjunto de pesquisas realizadas pelos acadêmicos Esquecidos, ao longo de um ano de conferências e debates. Consta das Actas da Academia Real de História, em conferência de Novembro de 1725, a menção ao acadêmico supranumerário Sebastião da Rocha Pita, o qual entrega à agremiação portuguesa os resultados dos trabalhos realizados no Brasil. (MORAES, 2012, p. 47).

O autor, além de citar a própria documentação-fonte utilizada, deixa também transparecer sua experiência pessoal. No “Fundamento Histórico”, novamente, por exemplo, a origem documental é explicada, fazendo-se alusões também à tradição e à memória de possíveis testemunhas. Há uma clara preocupação em convencer o leitor da veracidade das informações contidas na obra. Por se tratar de empresa que exige fôlego, a composição do poema épico não dá conta, por si só, da matéria que narra. Por essa razão, há um alongamento na exposição sobre os anos de colonização de Minas Gerais, e esse alongamento corresponde ao “Fundamento Histórico”, que contempla referências às fundações dos principais arraiais, divisão das Comarcas, descrição da série dos Governadores das Minas e descoberta das esmeraldas. Além dessa extensão responsável pela contextualização, as notas explicativas constantes no poema auxiliam o leitor a se situar, uma vez que são inseridas citações, explicações e justificativas. Assim, o autor serve- se de inúmeros complementos para sustentar o seu poema. Percebe-se, então, que a ideia de construir uma epopeia com temática voltada à descoberta dos metais preciosos não constituía empresa original; aliás, o conceito de originalidade pouco valia nessa época. Ao compor seu “Fundamento Histórico”, assim, o autor demonstra ampla pesquisa tanto em fontes documentais quanto em fontes literárias, o que permite que se estabeleça um diálogo entre esses dois gêneros. A história pode ser encarada como algo “concreto”, mas que também pode conter aspectos ficcionais, por sua relação com a memória. Assim como o poema épico, que finca

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suas raízes em determinado momento histórico, elege personagens de igual procedência, mas constrói a narrativa em dois diferentes planos: o verossímil e o mítico.

Considerações Finais

Conclui-se, com base no exposto, que o “Fundamento Histórico” foi escrito com a intenção de estabelecer um mito em Minas Gerais, que sustentasse sua epopeia, uma vez que o gênero, voltado ao louvor da pátria de seus heróis, necessitava de um modelo real bem definido para ser bem sucedido. O “Fundamento Histórico” é um dos documentos de Cláudio Manuel da Costa que une dois perfis distintos deste homem das letras: um perfil de acadêmico e um perfil de poeta. A relação do texto histórico com a academia fica evidente pela relação de Cláudio Manuel da Costa com o acadêmico Pedro Taques Almeida Paes Leme, sócio da Academia Brasílica dos Renascidos que lhe concedeu os documentos arquivados de que necessitou. Além desse relacionamento entre os membros, nota-se que a própria escrita do fundamento obedece a um modus faciendi acadêmico, pois mantém a estrutura de dissertação histórica e parte de fontes documentais (como previa os estatutos). Já o vínculo do texto com a poética ocorre pela própria transformação da matéria histórica em fábula, uma vez que os lapsos, a falta de consistência na escolha, apresentação e argumentação conduzem para a ficcionalização. Assim, pode-se afirmar que Cláudio Manuel da Costa propendeu para o poético, pois se aproveitou do elemento histórico concedido pela academia, para construir o mito que faltava para seu poema épico “Vila Rica”.

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JOSÉ VERÍSSIMO: EXPERIÊNCIAS E VALORES

Marcio Roberto PEREIRA1

O estudo da pátria brasileira não como simples agremiação política, mas como uma nacionalidade consciente deve ser o ponto de partida de todos os seus escritores, de todos os seus sábios e de todos os seus artistas, e a única base positiva para assentarem uma cultura verdadeiramente nacional. É esta a inspiração da minha obscuríssima vida literária e o espírito que dirige todos os meus trabalhos. José Veríssimo, Estudos Brasileiros, 1889.

O mosaico de métodos formadores da História da Literatura Brasileira (1916), de José Veríssimo, separa aquelas obras que no decorrer do tempo constituiriam, segundo o crítico, o caminho “natural” para o universalismo: cor local, indianismo e nacionalismo. A cor local seria encontrada em Bento Teixeira, Botelho de Oliveira e Gregório de Matos; o indianismo apareceria nas obras de Gonçalves Dias e de José de Alencar, entre outros; o nacionalismo seria delineado nas obras dos escritores românticos e, por fim, o universalismo estaria na obra de Machado de Assis. Assim sendo, o presente trabalho analisa a construção do cânone literário nacional com base no percurso proposto por José Veríssimo. Os intelectuais da “geração de 70”, valendo-se de uma perspectiva dinâmica da história, discutem e contribuem para a formação de um novo pensamento na literatura e cultura brasileira, definindo uma elite intelectual que configura uma “ilustração” no desenvolvimento do ideário nacional. Machado de Assis, por exemplo, referindo-se aos poetas da “nova geração”, acreditava que esse bando de ideias novas, não seria o principal responsável pela definição da qualidade literária nacional. Ao analisar essa “nova geração”, Machado de Assis observa:

A geração atual tem nas mãos o futuro, contanto que lhe não afrouxe o entusiasmo. Pode adquirir o que lhe falta, e perder o que a deslustra; pode afirmar-se e seguir avante. Se não tem por ora uma expressão clara e definitiva, há de alcançá-la os idôneos. Um escritor de ultramar, Sainte-Beuve, disse um dia, que o talento pode embrenhar-se num mau sistema, mas se for verdadeiro e original, depressa se emancipará e achará a verdadeira poética. (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 241- 242).

O entusiasmo a que se refere Machado de Assis pode ser caracterizado pela necessidade de formulação de um conceito de identidade nacional que produz um diálogo

1 Docente - Departamento de Literatura - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected]

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entre as matrizes europeias e a cultura brasileira, consolidando o enlace entre arte, ciência e política. Com a recepção de modelos europeus, os pensadores da “nova geração” fazem uma interpretação da cultura brasileira, da raça e da natureza tropical baseados em um sincretismo de conceitos, noções e teorias que permeiam as relações entre cultura e sociedade. As ideias predominantes para essa revisão dos valores da cultura nacional vinham da Europa por meio das doutrinas positivistas de Auguste Comte (1798-1857) e Émile Littrè (1801-1881), do biologismo de Charles Darwin (1809-1882), do evolucionismo de Herbert Spencer (1820-1903), do determinismo de Hippolyte Taine, da concepção historiográfica de Buckle, da filosofia de Immanuel Kant (1724-1804) e Arthur Schopenhauer (1788-1860), entre outros. A historiografia propõe um movimento de identidade e diferenciação na construção da inteligência brasileira, reproduzindo a experiência europeia e sua relativa adaptação aos trópicos. Como afirma José Veríssimo: “[...] o movimento que tenho chamado de modernismo e cujo mais evidente sinal foi, como o europeu de que se originou, o espírito crítico, deu à crítica outra direção e outros critérios.” (VERÍSSIMO, 1979, p. 275). Vinculados aos ideais do positivismo e do evolucionismo, os letrados brasileiros conheciam melhor a Europa, e, por conseguinte suas ideias e filosofias, do que o próprio Brasil. Tal vinculação trazia ao Rio de Janeiro, cenário da elite cultural brasileira, uma transformação no modo de vida e na mentalidade nacional. Assim sendo, os intelectuais brasileiros, substituindo um pensamento calcado em relações sociais do tipo senhorial por outro do tipo burguês, buscam um cosmopolitismo que nega os elementos da cultura popular, promovendo uma “regeneração” da cultura brasileira, da cidade do Rio de Janeiro e da política nacional. No decorrer do tempo, no entanto, essas modificações geram um sentimento de isolamento e ceticismo naqueles intelectuais que, como José Veríssimo, acreditavam na construção de um novo Brasil, a partir da mudança de regime do governo e da valorização da ciência como um antídoto contra todas os problemas sociais que assolavam o país. Apesar da grande importância do Rio de Janeiro, considerado o principal centro cultural brasileiro, as ideias cientificistas encontram um terreno fértil em torno das academias de Direito e Medicina e dos grupos ou sociedades intelectuais de outras regiões. Entre esses grupos que faziam o movimento das ideias europeias, pode-se citar os de Fortaleza, Recife e Salvador. No Ceará destacam-se pensadores como Capistrano de Abreu (1853-1927), Rocha Lima (1879-1917), Paula Nei (1858-1897), Araripe Júnior e muitos outros, que formam a Academia Francesa. Não obstante, em Pernambuco, tendo como líder Tobias Barreto (1839-1889), seguido por Sílvio Romero, a Escola do Recife. Desvinculando-se de Portugal, o Brasil toma as ideias da França – também uma mediadora

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do pensamento inglês e alemão – como parâmetro para a criação de um processo civilizatório universal. As ideias cientificistas, vindas da França, consolidam a ruptura da colônia com a metrópole e promovem o reordenamento de uma sociedade que procura sustentar uma posição autônoma diante do “mundo civilizado”. Ao se distanciar dos ideais de cultura de Portugal, desenvolvendo uma substituição dos ideais românticos por um “campo intelectual” centrado na ciência e no materialismo, os pensadores do século XIX redimensionam o papel do Brasil perante o mundo. Na opinião de Afrânio Coutinho:

Em 1880, o Romantismo, ou a “escola subjetiva”, estava morto. Começava- se uma nova era, dominada pelo espírito filosófico, científico, de cunho materialista, naturalista, determinista. Por sua vez, o Brasil entrara num momento de grandes transformações sociais e econômicas. Era a própria estrutura da sociedade brasileira que mudara, dando início à industrialização, por sobre a tradicional composição agrária, latifundiária, aristocrática. (COUTINHO, 1969, p. 20).

A estrutura da sociedade brasileira sofre transformações ao propiciar a ascensão da burguesia ao poder, substituindo o modelo agrário-feudal, como centro de concentração política representada pelos senhores de engenho, por um modelo cuja importância das camadas urbanas é representado, posteriormente, pela figura do senhor do café. Seguindo as mudanças da sociedade brasileira, os intelectuais acreditavam na noção do aperfeiçoamento indefinido do indivíduo, conforme os ideais do evolucionismo, libertando o homem do determinismo teológico e inserindo-o no materialismo. Nesse contexto, a literatura passou a ter como nota dominante a filosofia, o cientificismo ou as chamadas características realistas e naturalistas. José Veríssimo, em sua História da Literatura Brasileira, dedica um capítulo ao chamado Modernismo. Para o crítico paraense as “novas ideias” teriam sido marcadas por fatos de “[...] ordem política e social e ainda de ordem geral, (que) determinaram-lhe ou facilitaram-lhe a manifestação aqui.” (VERÍSSIMO, 1916, p. 314). Entre esses fatos podem- se citar a Guerra do Paraguai, as discussões entre uma visão religiosa ou laica do ensino, a guerra franco-alemã, a revolução espanhola, a proclamação da República na França (1870) – que geraram uma agitação republicana no Brasil. Todos esses fatos, aliados ao “movimento das ideias”, contribuíram para a construção de novas abordagens da literatura e cultura brasileira. Segundo José Veríssimo, “[...] foi nos próprios livros franceses de Litré, de Quinet, de Taine ou de Renan, influenciados pelo pensamento alemão e também pelo inglês, que começamos desde aquele momento a instruir-nos de novas idéias.” (VERÍSSIMO, 1979, p. 347).

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As referências para os críticos do século XIX, via de regra, eram emprestadas da Histoire de la Litterature Anglaise (1864), de Hypolite Taine que condicionava a produção literária a uma análise biológica. Taine desenvolve a ideia da faculté maitreisse, que explica o “gênio individual” dos escritores mais importantes para uma nação. Veríssimo, seguindo Taine, também escolherá para sua História aqueles escritores que possuem maior representatividade para a literatura brasileira. A faculdade-mestra atua, portanto, como um princípio de valorização da individualidade dos escritores que, ao longo da história, tornaram-se modelos de representação artística e literária, servindo como elo entre o escritor e seu contexto. Apesar do condicionamento da obra literária a conceitos biológicos, Taine não revela muito interesse pela história literária e a relação de continuidade ou totalidade da tradição literária na França, preferindo tratar as obras literárias com base em suas características individuais. Aproximando o pensamento de Taine ao de Veríssimo, pode-se afirmar que ambos reuniram em si ideias e teorias que adquirem um complexo, e até mesmo contraditório, caminho crítico. No caso de Taine é possível observar a combinação entre o ideal hegeliano e a fisiologia naturalista, senso histórico e idealismo, individualidade e determinismo universal, consciência moral e intelectual. São coordenadas que complementam o pensamento de Taine ao concatenar a sociologia ao individualismo dos grandes escritores. Precursor das relações entre sociologia e literatura, Taine procura relacionar o contexto social e político ao cenário artístico específico e suas relações com o público literário específico. Dessa relação nasce a valorização da “representatividade” do escritor que será uma das bases do pensamento de Veríssimo ao montar a História. A representatividade assume, assim, o papel de vinculação entre o espírito individual das obras e a nação. Como observa Veríssimo:

Não há na verdade nação sem literatura. Assenta a justeza deste conceito de Ferrero no postulado de que a literatura é a expressão da sociedade, a manifestação escrita do pensamento e do sentimento de um povo. Um povo que não os tivesse, dignos de serem exprimidos, e que não achasse em si os estímulos necessários à sua expressão, não seria uma nação. (VERÍSSIMO, 1979, p. 43).

Para Veríssimo, o elemento nacional adquire uma gradação de significado porque pode transformar-se em critério “ideológico”, quando se trata do período colonial, ou em critério estético quando se trata dos escritores românticos. De certa forma, Veríssimo adota um ponto de vista analítico calcado no conservadorismo romântico que encara a literatura colonial como ramo da portuguesa e a literatura nacional como legitimação do caráter

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nacional brasileiro. Resta ao crítico, no entanto, a tensão de retratar a obra de Machado de Assis e inseri-la num contexto universal que determina a valorização do critério estético como o “natural desenvolvimento” das letras nacionais. Para João Alexandre Barbosa, a História da literatura brasileira:

Surgida sob o impacto poderoso que provocara no Brasil a difusão daquilo que ele mesmo (José Veríssimo) chamava de bando de idéias novas, sobretudo a partir dos anos 70, isto é, os princípios do positivismo, do evolucionismo e do determinismo, não apenas buscava fazer a crítica de princípios românticos que informara a atividade crítico-histórica imediatamente anterior, mas fazia da história literária a expressão de uma interpretação de largo espectro da cultura no Brasil, a História de José Veríssimo já revelava o diálogo, sempre problemático para um homem de sua formação, em tudo semelhante à de Sílvio Romero, com os novos modelos de crítica, instaurados, como sempre acontece, a partir das próprias inovações literárias. (BARBOSA, 1974, p.116).

Para se ter uma ideia da complexidade do campo intelectual do século XIX, José Veríssimo, ao escolher Machado de Assis para centro de seu cânone literário nacional, deixa de lado muitos escritores, como Euclides da Cunha (1866-1909) e Lima Barreto (1881- 1922), que seriam conflitantes em relação aos propósitos do crítico. Assim sendo, o campo intelectual proposto por Veríssimo não poderia ser definido por escritores que mostrassem os problemas sociais do Brasil, mas por escritores que, de certa forma, continuassem um padrão de “esfera pública” centrado nos ideais europeus de civilização. Até 1870 a crítica literária brasileira era formada por escritores que, despojados de um instrumental teórico nomeadamente científico, reconheciam a história da literatura mais por seu lado histórico do que pelo literário. Fazem parte dessa fase, entre outros, escritores estrangeiros e brasileiros como Friedrich Bouterwek (1765-1828), Sismonde de Sismondi (1773-1842), Ferdinand Denis (1798-1890), Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Santiago Nunes Ribeiro (falecido em 1847), Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891). Tais escritores – estimulados pela fundação da Imprensa Régia no Brasil, pelo decreto de 1808, e pelo movimento de Independência – promoveram a discussão sobre a literatura brasileira e suas relações com o desenvolvimento da nação. A crítica literária feita no decorrer do Romantismo esboça as primeiras sistematizações da literatura brasileira, reconhecendo a “brasilidade” dos escritores que escrevem sobre o Brasil. Os críticos românticos, ao recolher, catalogar e recuperar os textos que formam a literatura brasileira, fornecem as primeiras manifestações de uma cultura erudita que ratifica o desenvolvimento da nação brasileira configurando, assim, um corpus que será revalidado pelos críticos naturalistas com base em uma variedade de modelos teóricos vindos da Europa.

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O efeito desse trabalho será a reconstituição do passado intelectual brasileiro por meio da formação de uma “genealogia” do pensamento literário nacional. O século XIX, marcado por grandes mudanças políticas e sociais que visam inserir o país na modernidade ocidental, desde 1808, com a chegada de D. João VI ao Brasil, inicia um processo de institucionalização da cultura e da política brasileira que redimensiona a esfera pública nacional e impõe, a partir da Independência (1822), novos rumos para a cultura brasileira. Como exemplo tem-se a posição de Ferdinand Denis, e muitos outros historiadores românticos, que, associando historicismo e nacionalismo, fundam um sentido retrospectivo para a análise dos escritores brasileiros, aliando ao nacional, originalidade e cor local. Mediante essa conciliação, o Brasil inicia uma tradição que, até o início do século XX, vincula literatura brasileira à expressão da nacionalidade e desenvolvimento da sociedade. O papel dos escritores românticos, ao reconstituir o passado nacional por intermédio de genealogias intelectuais, é iniciar uma organização intelectual. Isso os transformará em críticos-historiadores, preocupados com o desenvolvimento da consciência da cultura feita no Brasil, por meio da efervescência dos ideais românticos, das concepções que legitimam o solo nativo e do sentimento nacional como forma de originalidade e afirmação da nacionalidade. A sistematização da literatura é feita com base no ponto de vista cronológico, comprovando o enlace entre compromisso estético e cor local ao se estabelecer relações entre a formação da literatura nacional e o desenvolvimento do Brasil. Tendo seu ápice na Independência, os intelectuais da época identificam-se com os grupos nativos – daí o indianismo – produzindo uma literatura relacionada com o mundo tropical. Por meio dos bosquejos, esboços, parnasos e florilégios surge, com o Romantismo, a sistematização cronológica da literatura brasileira alicerçada na biobibliografia dos escritores mais representativos do Brasil. Ao longo do Segundo Reinado (1840-1889), algumas instituições, como os Institutos Históricos e Academias, são encarregadas de elaborar um novo conceito de nação. Os escritores românticos, por meio de imagens brasileiras – como o índio, o passado heróico, a natureza – em conformidade com os críticos, que misturavam história e literatura na construção de um imaginário nacional, criam um discurso local apoiado em valores metropolitanos e tidos como universais. Após trezentos anos de colonização, o Brasil organiza um discurso, alicerçado na reordenação de um campo intelectual voltado para ideais de liberdade e originalidade, e, principalmente, de progressivo distanciamento dos modelos e valores portugueses. Estimulando a incipiente literatura nacional e promovendo o registro das letras no Brasil, os críticos românticos orientam o gosto literário dos leitores e ditam as regras para os jovens escritores, ao formar e delimitar o patrimônio literário que será objeto de estudo dos críticos naturalistas. Na História da literatura brasileira, de José Veríssimo, por exemplo,

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grande parte dos capítulos é formada por escritores do Romantismo, servindo de matéria- prima para o crítico estruturar seu pensamento analítico. Se os românticos legitimam a literatura brasileira, por intermédio da definição do processo de desenvolvimento da autonomia do pensamento nacional, cabe aos críticos naturalistas rever, via cientificismo, o cânone proposto pelo romantismo. Assim sendo, por meio do pensamento de críticos brasileiros e estrangeiros ou da propagação das ideias literárias apresentadas em revistas e periódicos, os românticos debatem os rumos da literatura brasileira, destacando sua origem e caráter. Com os ventos da República, no entanto, busca-se uma identificação com os grupos estrangeiros por meio de um sentimento cosmopolita que faz do Rio de Janeiro o centro da cultura, política e das ideias no Brasil. Segundo José Veríssimo, o “bando de idéias novas” que formam o pensamento dos intelectuais da chamada “geração de 70” definia um “modernismo” capaz de desvendar as motivações da cultura nacional. A “geração de 70”, utilizando-se das ideias do positivismo e do evolucionismo, difunde os debates intelectuais da época, como a Abolição e a República, desenvolvendo um conceito evolutivo de História, que rompe com o conceito de História natural do século XVIII, vinculado à Biologia, à Economia e à Filologia, criando a ilusão de progresso e identidade com o novo Estado-nação brasileiro, ao defender os ideais da República e provocar o distanciamento da situação de colônia. As escolhas de Veríssimo determinam uma utilização clássica da linguagem e não experimental, como no caso Euclides da Cunha e Lima Barreto, cujo padrão de cultura seria desenvolvido pela elite intelectual que se concentrava na Academia Brasileira de Letras. Segundo João Alexandre Barbosa, a “História é muito mais obra de um crítico literário que adotava um ponto de vista histórico que obra específica de historiador literário, preocupado antes em julgar valores do que pesquisar origens ou consagrar opiniões.” (BARBOSA, 1974, p. 75). Sílvio Romero (2001), por exemplo, tratava a crítica como uma forma de contribuição para a cultura nacional, ao passo que, Veríssimo buscava uma concepção crítica com base nas “boas e belas letras” aliadas ao contexto socioeconômico do Brasil. Quando os intelectuais da “geração de 70” percebem que os ideais republicanos não atendem às expectativas dos pensadores que esperavam um modelo sociopolítico-cultural progressista e engajado na solução de todos os problemas sociais, transformam o Brasil num campo de debates e polêmicas, conforme definição de Roberto Ventura:

Ao longo das polêmicas entre Romero, Veríssimo, Araripe, Capistrano de Abreu e Teófilo Braga, surgem questões até hoje presentes na crítica literária: o predomínio da história ou da estética na interpretação literária, os destaques dos fatores extrínsecos ou intrínsecos da obra, a análise do tema

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e conteúdo ou da forma e linguagem, o conceito genérico ou específico de literatura. A história da crítica envolve, como observa René Wellek, uma série de debates sobre conceitos recorrentes e contestados. (VENTURA, 1991, p.11).

Partindo de conceitos centrados no positivismo e no cientificismo, José Veríssimo organiza um campo intelectual, convertendo a crítica literária num gênero, que traduz, legitima, e hierarquiza as obras literárias em fatores intrínsecos e extrínsecos ao campo intelectual de ação. Agindo ambiguamente como uma espécie de representante dos escritores e porta- voz do público, o crítico literário elabora seu discurso por meio de um ponto de vista literário que está agregado ao discurso de sua esfera pública. Os conceitos dos críticos românticos, dessa forma, procuram um ponto de equilíbrio entre história e literatura, tendo o índio como principal representante. Sílvio Romero, por outro lado, elege o mulato — tipo variadíssimo – para a elaboração de uma identidade nacional, apontando não somente a mestiçagem racial, mas a mestiçagem moral como forma de sustentar a nacionalidade em bases científicas, mesológicas e etnológicas. Os conceitos que Veríssimo adota em sua História da literatura brasileira também possuem a característica da recorrência ou da contestação. Ao mesmo tempo que renega algumas fontes como critério único de análise do processo de formação da literatura brasileira, o crítico procura acompanhar a evolução da literatura brasileira por meio de um sistema ou sequência que se inicia com a transformação do nativismo em nacionalismo e, por fim, em universalismo. Veríssimo não pretende apenas historiar, como faziam os românticos, todos os escritores delimitados em escolas estéticas, mas relativizar a importância do escritor para a sociedade brasileira e selecionar aquelas obras que possuem traços diferenciais – ou passaram por uma seleção natural – fazendo parte do cânone literário nacional. José Veríssimo define que:

Menos ainda do que qualquer dos gêneros literários aqui versados, não se constitui a crítica em aplicação particular da atividade literária. E como se não tivesse outra doutrina que o gosto pessoal dos que eventualmente a faziam, fosse pura externação de impressões, mais no intuito de louvor ou censura, que no de exame e explicação da obra, afetasse um tom retórico e ordinariamente se excedesse em divagações escusadas de trivialidades literárias ou em banalidades conceituosas, essa crítica, afora que é propriamente história literária feita por um Varnhagen, um Norberto, um Sotero e ainda um Fernandes Pinheiro, apenas deixou de si um outro documento estimável. Nada obstante foi útil e, ainda com as suas falhas e defeitos, serviu ao desenvolvimento das nossas letras. (VERÍSSIMO, 1916, p. 275).

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Sem adotar uma postura única, Veríssimo possui um senso de relatividade, que faz sua atividade crítica ser norteada por uma infinidade de princípios estéticos e filosóficos que aparentemente sugerem uma ideia de livre-pensador, conforme Moisés Velinho ou Afrânio Coutinho, que na mesma direção considera que tal senso de relatividade é limitado ao processo de formação do campo intelectual proposto pelo crítico. Um processo de “antropofagia” toma conta do crítico literário ao traçar o percurso histórico da literatura brasileira por intermédio daquelas obras mais representativas para determinado público-leitor. No caso de José Veríssimo, o “processo antropofágico” se faz presente na releitura de teóricos, matrizes e modelos europeus que ganham uma nova abordagem por parte do crítico, pois, de certa forma, são aclimatados ao ambiente brasileiro. Apesar da vinculação ao método de Taine e seus discípulos, Schrerer na Alemanha, Brandes na Dinamarca e Brunetière na França, o crítico paraense consolida suas ideias valendo-se da configuração de uma História da literatura brasileira que considera o “natural” desenvolvimento da cultura, vinculado a um aprimoramento estético, formado por ideias e conceitos muitas vezes contraditórios, moldados pela revisão de sua própria obra, de seus conceitos e, principalmente, de um horizonte de leituras extremamente abrangente. O resultado é a definição de um cânone literário interligado ao desenvolvimento de uma consciência nacional e à recuperação de uma cultura de fundo “iluminista”, que corre o risco de ser esquecida pela mudança das estruturas sociais. A tarefa de Veríssimo, dessa forma, não é apenas de acompanhar através dos tempos o percurso de um objeto chamado literatura, com base em uma definição comum para todas as épocas, “literatura como arte literária” segundo Veríssimo. É também preservar uma seleção de obras que “evoluem” para a representação de uma autonomia entendida como o rompimento dos vínculos com a metrópole e, consequentemente, a concepção de uma identidade própria para a cultura brasileira. Essa identidade, por sua vez, estaria atrelada aos princípios da crítica de Brunetière – julgamento, classificação e explicação – cujo modelo literário, voltado para a tradição francesa, valoriza os ideais morais e clássicos do passado por meio de posições-chave para o crítico: editor-chefe na Revue des Deux Mondes, professor da École Normale e membro da Academia Francesa. Brunetière desenvolve uma visão pragmática da crítica e da história literária cujo papel deveria focalizar as obras literárias em si mesmas. Veríssimo utiliza-se dos três conceitos de Brunetière ao estabelecer que o julgamento deve isentar-se de qualquer preferência pessoal, impressão ou prazer subjetivo. Para o crítico francês, a crítica não deveria ser formada por uma rígida estrutura sistemática porque correria o risco de tornar-se um ramo do conhecimento social, mas ter um arcabouço teórico que sustentasse concepções literárias e artísticas. Outra lição de Brunetière, resgatada por Veríssimo, se

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refere aos pressupostos de uma teoria da história literária capaz de recortar o passado por meio das obras e escritores mais importantes e não com base na formação de uma história da literatura confundida com um dicionário literário ou com uma história dos costumes. Conforme Brunetière:

Literatura, diríamos, move-se por ação e reação, convenção e revolta. Esse movimento não é, decerto, automático, mas resultado de forças humanas; uma obra original muda a direção do desenvolvimento; uma obra convencional o continua ou o repete. A individualidade adquire assim um enorme papel histórico nesse esquema de um bom neoclássico; assim, a individualidade introduz na história literária algo que não existia antes, que não existiria sem ela, que continuará depois dela. (apud WELLEK; WARREN, 2003, p. 63).

A lição sobre o cânone, conforme Brunetière descreve acima, também servirá de parâmetro para as escolhas de Veríssimo ao montar sua História da literatura brasileira. É importante salientar que o conceito de evolução de Brunetière valoriza o “momento”, ou ponto de mudança, do aparecimento de uma obra singular inserida num “mapa geral” da evolução literária. Ao escrever sua História num momento de mudanças na estrutura da sociedade brasileira, em que se tem a definição de uma sociedade industrial, tecnocientífica e urbana, Veríssimo valorizará o “momento passado” como modelo estético para a recuperação de um ideal clássico de literatura. O resultado da influência de Brunetière no pensamento de Veríssimo é a elaboração de uma história da literatura construída segundo uma herança cultural nacional filiada ao contexto do século XIX, que servirá como ponto de apoio para futuros historiadores. O ideal do crítico, portanto, seria apresentar uma totalidade de escritores e obras articuladas por meio da inter-relação de elementos estéticos, históricos, sociais, culturais e filosóficos. Apesar de estar em contato com várias teorias e estéticas, José Veríssimo busca, em sua História, uma totalidade orgânica que entrelaça um ideal universal de beleza à manifestação de um espírito nacional original e independente. A constante busca por uma renovação de ideias e teorias, como define Heron de Alencar (1963), ou o amadurecimento do crítico por meio da distinção das três fases do crítico paraense feita por João Alexandre Barbosa, mostram José Veríssimo estabelecendo uma conexão entre a formação de uma história liberal, calcada nos ideais da filosofia e arte clássica, e uma história da nação brasileira que tem como princípio a definição de um povo e uma cultura independente e original. De certa forma, seria a comprovação do resultado de um processo civilizatório que transforma a colônia em república independente. Carregado de tensões, o campo social está integrado ao campo intelectual na formação da identidade nacional: na primeira metade do século XIX, a identidade nacional

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estava ancorada na noção de pátria, povo, língua e território. Na segunda metade do século XIX, as questões de raça e meio geográfico estão interligadas aos ideais de nação e construção da cultura brasileira. Essa construção, no caso de Veríssimo, será solidificada por meio da definição de um cânone literário que considera o Rio de Janeiro como o representante ideal da cultura nacional. Sintetizando suas preocupações intelectuais, José Veríssimo cria alguns pressupostos para sua História: a literatura brasileira é independente e reflete o pensamento de um povo porque adquiriu certa autonomia linguística que cria obras com características inerentes a uma nação independente. A literatura brasileira é formada por dois períodos (colonial e nacional) que se vinculam ao “desenvolvimento” da sociedade brasileira. Literatura é arte literária: essa definição de Veríssimo será o ponto de partida para a utilização de um instrumental crítico que fará a separação entre uma visão histórica da literatura, presente no período colonial, de uma visão estética da literatura. Assim sendo, a História segue um caminho cronológico que expõe a “marcha” da literatura nacional a partir da “seqüência natural dos fatos literários” (VERÍSSIMO, 1916, p. 33) vinculados à “evolução” literária nacional, mediante a articulação entre o ponto de vista estético e o histórico em que os escritores são divididos em “singular individualidade” ou “subsidiários”. O resultado de tal compreensão, por parte de Veríssimo, é a ideia de que “desenvolvimento implica formação e vice-versa” (VERÍSSIMO, 1916, p. 25) porque, a partir do Romantismo, a literatura brasileira sofre novos contatos e novas reações; a literatura é formada pela inter-relação entre leitor/obra/público. Os escritores selecionados por José Veríssimo, dessa forma, nasceram no Brasil e a história da literatura deve estar preocupada apenas com aqueles escritores que sobrevivem na memória coletiva da nação. Outra característica importante para a seleção dos escritores que compõem a História da literatura brasileira é a definição de que, isolada ou em relação ao seu meio e seu tempo, a obra literária deve possuir “virtudes de pensamento e de expressão” (VERÍSSIMO, 1916, p. 33) possuir um interesse permanente e dar prazer intelectual aos leitores. Esses pressupostos entrelaçam-se na busca de uma justificativa e significação para a obra de Veríssimo no contexto do século XIX. Não é por acaso, portanto, que o crítico inicia sua “Introdução” delineando o processo de emancipação cultural do Brasil:

A literatura que se escreve no Brasil é já a expressão de um pensamento e sentimento que se não confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à nossa independência política. Mas o sentimento que o promoveu e principalmente o distinguiu, o espírito nativista primeiro e o nacionalista depois, esse veio formando desde

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as nossas primeiras manifestações literárias, sem que a vassalagem ao pensamento e ao espírito português lograsse jamais abafá-lo. É exatamente essa persistência no tempo e no espaço de tal sentimento manifestado literariamente, que dá à nossa literatura unidade e lhe justifica a autonomia. (VERÍSSIMO, 1916, p. 23).

As palavras de Veríssimo demonstram sua persistência em valorizar o processo de formação da literatura brasileira baseado na criação de uma cultura peculiar ao Brasil e de uma língua, que se altera em contato com o meio e diversas culturas e, assim, sofre as modificações de seu tempo e espaço. Para o crítico, sua História representa a unidade de uma literatura que adquiriu características próprias e autonomia suficiente para selecionar aqueles escritores mais representativos – seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista estético – delimitando o campo de ação do crítico. Veríssimo pensa o Brasil segundo os postulados de uma História da literatura brasileira comprometida com o processo de desenvolvimento da nação e sistematização cronológico-interpretativa em que a miscelânea de fontes utilizadas cumpre o papel de explicar o desenvolvimento das letras no Brasil. Assim sendo, a definição da crítica literária enquanto gênero e como instância mediadora entre o público e o escritor, estabelece um poder centralizador capaz de vincular a literatura aos demais ramos do conhecimento, como define José Veríssimo, e aliar a história da literatura brasileira ao incremento das artes e ao desenvolvimento do meio; “nosso progresso literário, correlacionado com a nossa evolução nacional”. (VERÍSSIMO, 1916, p. 35). Gradativamente, a História vai abandonando o critério de nacionalidade, herdado da crítica romântica, substituindo-o por noções estéticas que colocam a literatura nacional no plano universal. Aliado a essa valorização da “universalidade” da literatura nacional se constrói o campo de ação do crítico literário e a especialização do discurso sobre a literatura. É importante notar, também, que para o crítico a literatura brasileira vai abandonando a valorização das “escolas literárias” em nome de “individualidades literárias”. Seguindo os postulados de Gustave Lanson, que seleciona escritores e obras articulados a fatos históricos e literários sob a forma de um manual, construindo um modelo ideal de história da literatura que mistura generalizações históricas, perfis psicológicos e julgamentos críticos que servirão como padrão para muitos outros críticos. José Veríssimo busca superar o modelo naturalista.

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Referências

ALENCAR, H. de. Sobre José Veríssimo. In: VERISSIMO, J. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 4. ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963.

BARBOSA, J. A. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974.

COUTINHO, A. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 1969.

LANSON, G. La méthode de l'histoire littéraire. In: PEYRE, H. (ed.). Essais de méthode, de critique et d'histoire littéraire. Paris: Hachette, 1965.

MACHADO DE ASSIS, J. M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. III.

ROMERO, S. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2001. Tomo I.

VENTURA, R. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

VERÍSSIMO, J. A nossa evolução literária. In:______. Últimos estudos de literatura brasileira: sétima série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979.

VERÍSSIMO, J. Historia da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 1o milheiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves & Cia, 1916.

WELLEK, R.; WARREN, A. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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AS REPRESENTAÇÕES DOS INDÍGENAS NAS PROPOSTAS CURRICULARES DE HISTÓRIA DO SUDESTE BRASILEIRO

Maria Cristina Floriano BIGELI1

Introdução

No ano de 2008 foi promulgada a lei federal nº 11.645, tornando obrigatória a inserção de conteúdos da história e cultura africana e de povos indígenas no currículo de História das escolas públicas e particulares brasileiras. Transcorridos cinco anos da publicação da citada lei, o principal objetivo dessa pesquisa é analisar as atuais propostas curriculares de História dos anos finais do Ensino Fundamental dos Estados localizados na região sudeste do Brasil, buscando verificar a inserção dos conteúdos previstos pela lei nº 11.645/2008, além de compreender e analisar as representações dos indígenas nas propostas de cada Estado. Para a realização dessas apreciações, serão utilizados procedimentos metodológicos de abordagem qualitativa e procedimentos teórico-analíticos da Análise do Discurso de linha francesa.

A lei nº 11.645/2008

“Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” (BRASIL, 2008), assim se inicia o texto do artigo 26-A da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). No mês de março de 2008, a lei nº 11.645 complementou o texto da lei nº 10.639, que tornava obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas brasileiras, incluindo a obrigatoriedade do ensino da história e cultura dos povos indígenas. O acréscimo do artigo 26-A na LDB, em 2003, por meio da lei nº 10.639, e a mudança desse artigo pela lei nº 11.645 de 2008, é resultado de anos de lutas dos movimentos sociais e de pessoas ligadas à educação que buscavam revisões e mudanças nos livros didáticos e nas aulas escolares, a fim de eliminar preconceitos e estereótipos de grupos étnicos menos favorecidos na história brasileira e também pouco (ou inadequadamente) tratadas nos currículos escolares.

1 Doutoranda – Programa de Pós-Graduação em Educação – UNESP – Univ. Estadual Paulista, Campus de Marília - Av. Hygino Muzzi Filho, 737, CEP: 17.525-000 - Marília, SP – Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Funari e Piñón (2011) apontam que desde o descobrimento do Brasil as imagens sobre os indígenas começaram a ser moldadas e difundidas nas terras colonizadas por Portugal. Mesmo com as doenças que assolaram grande quantidade de nativos, ou com as fugas migratórias que as tribos fizeram em direção ao interior do território para fugir da exploração dos portugueses, há nativos que se misturaram com os colonizadores por meio da miscigenação e contribuíram com a constituição de “[...] grupos humanos com forte componente indígena” (FUNARI; PIÑÓN, 2011, p. 113). Dessa maneira, continuam os autores, a cultura indígena constituiu parte do mundo colonial por muitos séculos. No século XIX, criou-se diversas imagens acerca dos indígenas como o “bom selvagem”, ou a imagem da Iracema, a “índia dos lábios de mel”. Essas imagens, segundo Funari e Piñón (2011), perpetuaram-se nos séculos seguintes, o que não significa que os massacres e perseguições tenham cessado. Além disso, nesse período também surge um forte sentimento de negação à ascendência indígena por vergonha, ou seja, uma tentativa de “apagar o índio” do passado dos brasileiros. A obrigatoriedade de ter conteúdo da história e cultura indígena nas aulas de História, Literatura e Artes, contribuiu “[...] para uma necessária discussão a respeito das discriminações a que foi sendo submetido esse grupo formado pelos ‘eles’, buscando equalizar as desigualdades engendradas com base nessas diferenças socialmente construídas.” (SILVA, M., 2012, p. 152). A escola, apontam Funari e Piñón (2011, p. 116),

[...] por seu papel de formação da criança, adquire um potencial estratégico capaz de atuar para que os índios passem a ser considerados não apenas um “outro”, a ser observado a distância e com medo, desprezo ou admiração, mas como parte deste nosso maior tesouro: a diversidade.

Um dos meios de cumprir a lei nº 11.645 e introduzir a temática indígena nas escolas brasileiras é promovendo a mudança do currículo. Portanto, pensando que o currículo do ensino de História foi modificado após a promulgação da lei, nosso questionamento é: Quais são as representações acerca dos indígenas que encontramos nas propostas curriculares das escolas públicas brasileiras? Chartier (1990, p. 17) salienta que “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam”. Deste modo, para compreender os mecanismos que um grupo utiliza para impor (ou tentar impor) sua visão de mundo, suas concepções, seus valores, analisar as representações, segundo Chartier (1990), é tão importante quanto analisar as lutas econômicas.

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Para delimitar nosso campo de investigação, optamos como objetos de investigação as propostas curriculares oficiais dos Estados de Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, que formam a região sudeste brasileira.

Currículo e ensino de História

Currículo é uma palavra extremamente utilizada no universo da educação, que pode receber diversos significados. Por possuir tantos significados, iniciamos com uma questão: Como podemos compreender o currículo? Há várias maneiras e cada qual depende do contexto em que essa palavra está relacionada e/ou em qual período da história da Educação está sendo pensada. Cação (2010, p. 381, grifos nossos) elucida que, “etimologicamente, currículo (latim currere) significa caminho, jornada, trajetória, percurso a ser seguido, e encerra duas idéias essenciais: de seqüência ordenada e noção de totalidade de estudos”, destarte, o currículo carrega múltiplas definições, tais como: as disciplinas de estudo; o plano das disciplinas de estudo; as experiências vivenciadas pelos alunos na escola; os planos elaborados pelos professores, pela escola ou por uma rede de escolas; o ambiente em que as ações educativas estão ocorrendo; entre outras. Portanto, “[...] currículo pode ser tudo ou nada, o que pode colocar em risco a especificidade e a efetividade da ação docente” (CAÇÃO, 2010, p. 381, grifos nossos). Podemos pensar, porém, que a maioria das compreensões acerca do currículo é a de que esse representa as concretizações de fins sociais e culturais que se atribuem à escolarização e tais concretizações não devem ser caracterizadas como realidades abstratas que estão à margem do dia a dia escolar e da conjuntura histórica e social em que foram pensadas e postas em prática. Deste modo, ao entrarmos em contato com um currículo, estamos também nos aproximando das funções da escola em um contexto histórico e social específico. Logo, analisar o currículo é essencial para se compreender uma conjuntura escolar em um determinado período. A questão central do estudo do currículo, para Tomaz Silva (2010), é saber quais conhecimentos devem ser ensinados, o que a priori suscita indagações como: Qual é a importância ou a validade essencial para tais conteúdos serem parte do currículo? A escolha do que deve ou não deve ser ensinado implica, ainda, de acordo com Tomaz Silva (2010), em relações de poder. Este autor explica que “o currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo” (SILVA, 2010, p. 15), complementando que este ato de selecionar implica em privilegiar um conhecimento em detrimento de outro, portanto, é uma “operação de poder”.

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Obviamente, nos currículos de ensino de História, a seleção não ocorre de modo diferente, sendo “[...] sempre, produto de escolhas, visões, interpretações, concepções de alguém ou de algum grupo que, em determinados espaços e tempos, detém o poder de dizer e fazer” (SILVA; FONSECA, 2010, p. 16-17). Quando a disciplina de História foi incluída nos currículos escolares, tinha como principal objetivo a disseminação da ideia de nação ao “[...] legitimar sua ordem social e política – e ao mesmo tempo seus dirigentes – e inculcar nos membros da nação – vistos, então, mais como súditos do que como cidadãos participantes – o orgulho de a ela pertencerem, respeito por ela e dedicação para servi-la” (LAVILLE, 1999, p. 126). O ensino dessa disciplina foi utilizado para moldar os jovens de acordo com o que cada política dominante acreditava ser mais adequado para seu país. No Brasil, o ensino de História passou por várias transformações desde que fora implantado na escola no século XIX e, dependendo do contexto em que estava inserido, sua importância foi ora mais ora menos significativa dentro do currículo escolar. Silva e Fonseca (2010, p. 15-16) escrevem que:

[...] a partir do século XIX, identificam-se dezoito programas de Ensino relativos às reformas curriculares entre os anos de 1841 e 1951. Esses programas foram organizados pelo Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, de acordo com as diretrizes das várias reformas curriculares ocorridas naquele período. Os textos dos documentos curriculares “prescritos” são reveladores de objetivos, posições políticas, questões teóricas que configuram não apenas o papel formativo da História como disciplina escolar, mas também estratégias de construção/manipulação do conhecimento histórico escolar.

No século XIX, o ensino de História era utilizado para veicular a “história nacional” e constituir uma “identidade nacional” no Brasil (BITTENCOURT, 2011; FONSECA, 2011; NADAI, 1992/1993; PINSKY, 2000).

O fio condutor do processo histórico centralizou-se, assim, no colonizador português e, depois, no imigrante europeu e nas contribuições paritárias de africanos e indígenas. Daí a ênfase no estudo dos aportes civilizatórios – os legados pela tradição liberal européia. Desta forma, procurava-se negar as condições de país colonizado bem como as diferenças nas condições de trabalho e de posição face à colonização das diversas etnias. Procurou-se criar uma idéia de nação resultante da colaboração de europeus, africanos e nativos, identificada às similares européias. A dominação social (interna) do branco colonizador sobre africanos e indígenas bem como a sujeição (externa) do país-colônia à metrópole não foram explicadas. (NADAI, 1992/1993, p. 149, grifos nossos).

Sendo assim, o início do ensino de História no Brasil tinha a proposta de voltar-se para a construção a ideia de nação associada à de pátria (BITTENCOURT, 2011), buscando a formação da “identidade nacional”, despertar o patriotismo e ensinar as tradições

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nacionais. Evidentemente, este modelo de ensino de História privilegiava e construía heróis nacionais pertencentes à elite, pois, a instrução da disciplina “[...] precisava assim integrar setores sociais anteriormente marginalizados no processo educacional sem, contudo, incluir nos programas curriculares a participação deles na construção histórica da Nação” (BITTENCOURT, 2011, p. 64). A partir dos anos 30 do século XX surgiram os “Estudos Sociais” para as escolas de ensino primário, que acoplaram assuntos designados às disciplinas de História, Geografia e às aulas de Civismo, eliminando tais aulas do currículo escolar. Na fase da ditadura civil- militar (1964-1984) os Estudos Sociais foram introduzidos em todo o sistema da educação básica brasileira com a promulgação da lei nº 5.692/71. Com os Estudos Sociais, o ensino de História

[...] vai sendo sutilmente vinculado aos “princípios ‘norteadores da educação moral e cívica”. De um lado, os professores de história e geografia ou estudos sociais passam a se envolver diretamente ao ministrar as duas disciplinas, e na medida em que o conteúdo, os conceitos de moral e civismo perpassam todas as disciplinas e atividades extraclasse. Por outro lado, os estabelecimentos de ensino, obrigados legalmente a cumprir o programa fixado pelo Conselho Federal de Educação, diminuem a carga horária de história e geografia ou estudos sociais, cedendo espaço na grade curricular da escola para as duas disciplinas obrigatórias: EMC [Educação Moral e Cívica] e OSPB [Organização Social e Política Brasileira]. (FONSECA, 2011, p. 39, grifo nosso).

Assim, nas décadas de 60 e 70 e início da década de 80 do século XX, o ensino de História foi transformado e readequado aos contextos da época, reduzindo o conhecimento histórico, simplificando e resumindo os conteúdos. Os alunos menos favorecidos financeiramente tiveram conteúdo ainda mais comprimido, pois nas aulas eram utilizados testes e trabalhos em grupo para fazer uma rápida avaliação, além da diminuição da carga horária dos Estudos Sociais (BITTENCOURT, 2011). A partir da década de 80, várias propostas curriculares foram elaboradas pelos municípios e Estados brasileiros, houve a reintrodução das disciplinas de História e Geografia nos currículos das escolas e “[...] a organização curricular por eixos temáticos, intensamente discutida [...], passou a ser um desafio teórico e metodológico, uma postura crítica ante as tramas da produção e da difusão do conhecimento histórico” (SILVA; FONSECA, 2010, p. 19). Nos anos 90, houve movimentos de reformulações curriculares ao redor do mundo, as quais também se efetivaram no Brasil. Entre as reformulações, podemos destacar que as disciplinas de Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política Brasileira e Estudos dos Problemas Brasileiros foram extintas dos currículos escolares; também foram extintos os cursos superiores de Licenciatura Curta, que formavam professores de Estudos Sociais.

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A publicação da Lei de Diretrizes e Bases, em 1996, e dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997, também colaboraram com as reformulações dos currículos brasileiros. Presumindo que cada Estado interpreta as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais à sua maneira, uma forma de compreender qual é o ensino (ou quais são os ensinos) de História propagado/adotado em cada um dos Estados brasileiros é realizar a análise das suas propostas curriculares para tal disciplina. Já que “[...] nenhum tema possui, em si, uma carga maior ou menor de ‘historicidade’; é a relação que com ele estabelece quem o trabalha que pode ou não fazer dele um tema histórico” (MICELI, 2000, p. 34, grifos nossos), por meio da análise das propostas curriculares dos Estados, podemos “[...] discernir o que efetivamente está em processo de mudanças e como atualmente ocorre a seleção cultural do conhecimento considerado essencial para os alunos.” (BITTENCOURT, 2011, p. 99, grifo nosso). O ensino de História foi, portanto, objeto de intensos debates durante a história da Educação brasileira, sobretudo no contexto da ditadura civil-militar. Analisar “[...] os currículos, critérios/modos de organização e seleção curricular; livros didáticos e paradidáticos; metodologias e práticas de ensino consideradas adequadas, críticas ou formativas”, demonstra que há “[...] preocupações recorrentes com o papel da História como disciplina escolar” (SILVA; FONSECA, 2010, p. 15).

Objetivos e procedimentos

Considerando que as propostas curriculares são documentos fundamentais aos quais os docentes têm acesso, o principal objetivo desta pesquisa é a análise das atuais propostas curriculares da disciplina de História para o Ensino Fundamental e Médio elaboradas pelas Secretarias Estaduais de Educação dos quatro Estados do sudeste brasileiro – a saber, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo –, buscando identificar quais são as representações sobre a história e cultura dos indígenas contidas em tais materiais. Especificamente, pretendemos analisar os aspectos externos às/das propostas, ou seja, em qual contexto sócio-histórico as propostas curriculares foram elaboradas; analisar os aspectos internos das propostas, em especial a estrutura geral das propostas, a autoria, as concepções implícitas e explícitas da compreensão do que é e para que serve o ensino de História, o uso de senso comum nas comparações, a superficialidade ou profundidade dos temas, entre outros; bem como analisar quais foram as mudanças no ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena que as propostas curriculares atuais proporcionaram, comparando-as com as propostas e/ou currículos oficiais dos anos anteriores.

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Para chegar aos nossos objetivos, utilizaremos os procedimentos metodológicos de abordagem qualitativa, que compreende um conjunto de técnicas de pesquisa que “[...] visam descrever e a decodificar os componentes de um sistema complexo de significados.” (NEVES, 1996, paginação irregular). Para isto, a abordagem qualitativa “[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.” (MINAYO, 2001, p. 21-22). Entre as diversas técnicas que esta abordagem nos proporciona, optamos por: a) realizar pesquisa bibliográfica para o levantamento de livros, teses, dissertações e artigos sobre o tema dessa investigação; b) coletar dados e materiais nas secretarias estaduais de educação dos Estados selecionados; c) análises dos materiais e confronto de dados. Para as análises dos dados, utilizaremos procedimentos teórico-analíticos da Análise do Discurso (AD) da linha francesa, pois essa metodologia “nos coloca em estado de reflexão” (ORLANDI, 1999, p. 9), assim, interpretar por meio desse procedimento metodológico é atribuir sentidos para o objeto de pesquisa escolhido pelos investigadores. A AD procura assimilar como o discurso produz sentidos, como significa. Desse modo, compreender como o texto funciona é “[...] compreendê-lo enquanto objeto linguístico-histórico, é explicitar como ele realiza a discursividade que o constitui.” (ORLANDI, 1999, p. 70). Essa metodologia é herdeira de três áreas do conhecimento: a linguística, a psicanálise e o marxismo. Assim sendo, ao reunir as três regiões de conhecimento citadas, “[...] irrompe em suas fronteiras e produz um novo recorte de disciplinas, constituindo um novo objeto que vai afetar essas formas de conhecimento em seu conjunto: este novo objeto é o discurso.” (ORLANDI, 1999, p. 20). O analista, ao utilizar o método da AD, elabora um corpus que será trabalhado na pesquisa, mobilizando concepções associadas tanto ao campo da AD, como da área em que o pesquisador está inserido (ORLANDI, 1999). Em nosso caso, o corpus será composto pelas propostas curriculares direcionadas ao ensino de História das escolas estaduais do sudeste brasileiro. E, com base nesse recurso, criaremos um dispositivo de interpretação. Tal dispositivo:

[...] tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, aquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras. (ORLANDI, 1999, p. 59).

Dessa maneira, os estudos realizados com essa metodologia não são iguais. O/a próprio/a pesquisador/a formulando questões diferentes, utilizando formas particulares de interpretar, valendo-se de outros recortes de conceitos, fará pesquisas igualmente diferentes

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ao recorrer aos procedimentos metodológicos enunciados pela AD. Pois, como sintetiza Orlandi, a utilização desse método implica em “[...] um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise.” (ORLANDI, 1999, p. 66-67), procedimento que ocorre durante toda a realização da pesquisa.

Referências

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BRASIL. Lei nº 11.645. “Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’. 2008. Disponível em: Acesso em: 13 abr. 2014.

CAÇÃO, Maria Izaura. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: retorno do discurso regulativo da tylerização na educação pública. Espaço do Currículo, v. 3, n. 1, p. 380-394, mar. a set. 2010.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.

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MICELI, Paulo. Por outras histórias do Brasil. In: PINSKY, Jaime. O ensino de história e a criação do fato. 8 ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 31-42.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Ciência, Técnica e Arte: o desafio da pesquisa social. In: ______(org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 18 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 9-29.

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NEVES, José Luis. Pesquisa Qualitativa: características, usos e possibilidades. Caderno de Pesquisas em Administração, São Paulo, v. 1, n. 3, 2º sem. 1996, (paginação irregular).

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PINSKY, Jaime. O ensino de história e a criação do fato. 8 ed. São Paulo: Contexto, 2000.

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SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

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FOTOGRAFIAS DO BRASIL EM AMANDO FONTES

Natália de Sousa MARTINS1

1 introdução

O regionalismo, movimento literário surgido em 1930 no Brasil, deu-se com a necessidade e as críticas dos artistas acerca da representação negada que se tinha das regiões fora do eixo Rio-São Paulo. Um movimento extremamente social, já que o Brasil e o mundo passavam por grandes mudanças: industrialização, movimento tenentista e queda da Bolsa de 1929. Uma das regiões muito retratada na literatura nessa época foi o Nordeste e, nesse meio, Amando Fontes escreveu seu romance Os Corumbas (1933), uma narrativa que retrata a migração de uma família sertaneja, a família Corumba, do interior de Ribeira que, com a seca e crise na agricultura, buscou exílio em Aracaju e foi trabalhar nas fábricas de tecido. De forma trágica e dramática todos são explorados, há uma mostra do pobre que nada pode esperar e de uma família que teve seu lar degradado por causa do capitalismo. Os Corumbas é uma obra de Amando Fontes (1899-1967) que nasceu em Santos e, em razão da morte do pai, foi para Aracaju morar com os avós. Publicou apenas dois romances – Os Corumbas (1933) e Rua do Siriri (1937) – o primeiro romance foi muito elogiado pelo público e por críticos da época, tais como Octávio de Faria que apontou Os Corumbas como um dos grandes romances de uma era, já o segundo romance não obteve tanto sucesso quanto o primeiro, pois é mais caracterizado como uma continuação de uma temática já abordada em Os Corumbas: a prostituição das moças de Aracaju. Pode-se conjecturar que o romancista realizou de maneira positiva o projeto da geração de 30 e essa geração tinha a ideologia de focar os problemas sociais e políticos brasileiros, tinha a tendência a voltar-se para as questões sociais e econômicas do Nordeste. Eram escritores que manifestavam em suas obras a problematização do homem explorado e desprezado pelas classes sociais mais favorecidas e a luta contra a adversidade do clima, do sol, por isso o romance regionalista, normalmente, representa lugares fechados, com uma estrutura circular. Esses temas serviram para demarcar a ideologia dos escritores neorrealistas que tinham a feição de testemunho e denúncia social, de luta política e protesto.

1 Mestranda - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected]

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O grande projeto dos escritores da geração de 30, bem como o de Fontes, era retratar a realidade, a sociedade, com o máximo de objetividade possível. A geração de 30, grupo de escritores que se voltavam integralmente ao romance social, foi o desdobramento do realismo do século XIX, e assim como eles desejavam pintar o quadro da sociedade, para Flora Sussekind “são escritores que se negam enquanto ficção, enquanto linguagem, para ressaltar o seu caráter de documento, de espelho ou fotografias do Brasil” (SUSSEKIND, 1984, p. 43). Por essas razões, pelo ensejo de representação da sociedade tal como qual, a geração de 30 ficou conhecida como neorrealista, porém há pontos de divergência entre essas duas gerações. O realismo do século XIX manifestava-se como socialista em seus projetos, no entanto estava mais preocupado com questões patológicas. Já os romancistas de 30 tinham como objetivo primordial relatar e tratar de questões sociais em suas obras, além de muitos escritores dessa geração serem engajados em projetos sociais e políticos. Amando Fontes, ao caracterizar o realismo de sua obra afirmou:

Tentei construir as figuras de meu romance, tais como os homens nascem e andam pelo mundo. Ora são bons, ora são maus. Às vezes, onde não esperamos um gesto nobre, vemo-lo praticado; e de onde são aguardados atos dignos, vemos surgir uma ação menos meritória. Não tive a preocupação de dignificar o gênero humano; também não tive o intuito dos Flaubert, dos Eças, do Gide, de desmoralizá-lo a toda prova. “Singe de Dieu”, quis imitá-lo apenas, e jamais corrigi-lo. (apud BUENO, 2006, p. 191).

Como o próprio romancista declarou, ele não teve o intuito, a pretensão, assim como a maioria dos escritores da década de 30 também não o tiveram, de reduzir o homem ao nível animal, de trabalhar com questões patológicas, mas tiveram como intento a representação, imitação (como indicou Fontes) das chagas sociais. Em Os Corumbas, como o próprio título já elucida, é contada a estória da família Corumba, que antes residia no interior de Aracaju, engenho de Ribeira, mas com a seca a situação financeira se agrava muito, então decidem migar para a Capital, pois lá tinham a certeza de uma vida melhor. No entanto a cidade “grande” corrompe o lar familiar, as filhas tornam-se prostitutas, com exceção de Bela, que morre e do filho Pedro que, por envolver- se com política de esquerda, é deportado ao Rio de Janeiro. Os realistas e também neorrealistas julgavam que para atingir um melhor nível de representação da realidade era necessária a apresentação de um enredo com o máximo de objetividade possível, o que foi feito com muito êxito por Amando Fontes. Qualquer traço de subjetividade ou sentimentalismo é dificilmente encontrado na narrativa, mesmo nas cenas de abandono do lar por parte de todos os filhos, com exceção de Bela que morre. Quando a

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morte da menina é anunciada, o narrador não deixa espaço para o desenvolvimento desse sentimento.

Num domingo afinal, enquanto os outros jantavam, ela expirou. Não deu um gemido, não teve um arquejo mais forte. E parecia dormir um sono calmo, a expressão doce, os olhos e os lábios entreabertos. Assomando à porta do quarto, Sá Josefa espantou-se de vê-la tão quieta. Correu até junto dela. Apalpou-a. Estava fria. Então, a velha chamou pelo marido: - Geraldo, vem cá. Depressa! Vem ver uma coisa... E, quando ele se aproximou: - Espie. Parece que morreu... (FONTES, 2003, p. 149).

Não é revelado nenhum sentimentalismo por parte dos pais pela morte da filha, feito proposital pelo narrador, que após narrar essa morte informa que não houve lágrimas e em seguida já narra que “A GRANDE CHAMINÉ da Têxtil vomitava no espaço rolos de fumo negro” (FONTES, 2003, p. 150), seguindo a narrativa adiante e sem mostras de sentimentalismo revela uma narrativa seca, que se perpetua ao longo de todo o romance, mostrando assim que a vida deve ser, apesar de tudo seguir sempre adiante.

2 regionalismo e representações (mímeses)

Os escritores tinham a consciência do subdesenvolvimento do país na década de 30, por isso, a partir de então, o intuito era o de valorizar o cotidiano, o único das regiões do Brasil, além de serem escritos recheados de denúncia social, por esses ideais os artistas eram denominados de regionalistas, pois tinham o ensejo de representação da sociedade tal como qual, com suas chagas e mazelas. Essa geração (década de 30) veio consolidar as inovações propostas pela primeira fase modernista, que teve início oficial com a Semana de Arte Moderna, em 1922. Os escritores, músicos e artistas plásticos defendiam: a proposta de reconstrução da cultura brasileira sobre bases nacionais; a promoção de uma revisão crítica do passado histórico, tradições culturais; uma eliminação do estigma de colonizados e ligados a valores estrangeiros. Portanto, todas elas estão relacionadas com a visão nacionalista, porém crítica, da realidade brasileira. Houve, na década de 30, o regionalismo, ou como chamado por alguns de neorrealismo, cujos representantes pautaram-se na observação das relações entre o homem versus o meio e entre o homem versus a sociedade. É importante ressaltar que o período de modernização da década de 30 considerava perigosa à política qualquer forma de regionalismo, uma vez que esse, além de representar

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toda cultura regional, também apresentava, denunciava toda chaga social, e muitos dos romances eram formas diretas e indiretas de protestos. Em consequência, a expressão das figuras, tipos e psicologia humana são constantes, como tipos sociais que muitas vezes parecem se repetir nos relatos regionalistas: a seca que assola, destrói tudo e arrebata famílias; proletários que trabalham dia e noite e não têm o mínimo para o arroz, só falta; tipos humanos que nada podem esperar de instituições sociais, do governo, que não faz nada por essa camada social; pessoas que não têm e nem podem esperar pela caridade alheia. Como a família Corumbá, por meio da qual, indiretamente, denunciava-se algumas chagas sociais: preconceito, más condições de trabalho e extrema pobreza. A narrativa que se inicia em flashback mostra bem como os nordestinos sofriam e ainda sofrem com a seca e com a labuta diária de suas vidas.

Tão violenta foi a seca de 1905, que o capim cresceu e secou no leito estorricado dos ribeiros. Assolou tudo, matou tudo! João Piancó, doente, não pôde salvar as reduzidas criações. E morreu de desgosto. Geraldo, a esse tempo, tinha já três filhos. Lutou contra a miséria o quanto pôde. Josefa o ajudava dia e noite. Mas tiveram de desanimar, como outros tantos. Perceberam que só lhes restava o recurso de desertar, fugir para sempre daquele torrão maldito. (FONTES, 2003, p. 26).

A família, que morava em uma fazenda e dependia do plantio da cana, desertou para o engenho de Ribeira, porém logo o valor do açúcar daquele ano abaixou e os usineiros reduziram à metade o salário pago, o que não fazia o trabalho render nem para as despesas. E, pela segunda vez, a família desertaria em busca de melhores condições:

Foi Josefa quem aventou a ideia de se mudarem para o Aracaju. E enumerava suas razões: Na capital, havia emprego decente para as duas meninas mais velhas. Era nas Fábricas de Tecidos. Estavam assim de moças, todas ganhando bom dinheiro... Pedro não custaria em conseguir um bom lugar, como ferreiro ou maquinista... Uma outra vida enfim. Vestia-se melhor, andava-se no meio de gente... Depois, tinha assim uma certeza, uma espécie de pressentimento, de que lá as filhas logo casariam. Isso, as mais velhas. As duas mais novas iriam para a escola. Nem precisavam até de trabalhar. Caçulinha, que era tão viva e inteligente, bem poderia chegar a professora... (FONTES, 2003, p.27-28).

A família assim o fez, mudou-se cheia de sonhos e esperanças. Chegando em Aracajú, alcançou o que almejara de início, só que o tempo veio mostrar que o pobre não tem vez. E era esse o intuito dos regionalistas, mostrar, expor as chagas e mazelas que a população esquecida pelo governo sofria.

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Eis que surge outro grande preconceito acerca das ideologias do regionalismo, pois os escritores abordavam problemas e culturas regionais. O regionalismo intentava a representação do que cada região tinha de específico: sul, norte e nordeste, cada qual com sua peculiaridade e problemáticas, indubitavelmente, esses escritores tinham por objetivo, acima de tudo, um projeto nacional que o modernismo já propunha, mas abordou apenas os grandes centros: São Paulo e Rio de Janeiro. Logo, é notável o esquecimento de tais culturais regionais, por não participarem do grande centro “cultural”. Gilberto Freyre, grande nome quando se fala do regionalismo, em seu Manifesto Regionalista fez um debate da importância dessa literatura, apontando o porquê de sua existência e quais seus objetivos:

Essa desorganização constante parece resultar principalmente do fato de que as regiões vêm sido esquecidas pelos estadistas e legisladores brasileiros, uns preocupados com os “direitos dos Estados”, outros, com as “necessidades de união nacional”, quando a preocupação máxima de todos deveria ser a de articulação inter-regional. Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais. (FREYRE, 1996, p. 55-56).

Um Brasil feito por todas as regiões, e é isso que o regionalismo veio afirmar e confirmar: o que essas regiões possuem e que são esquecidas. Freyre asseverou com toda convicção o esquecimento dessas regiões tão carentes por parte do governo, regiões essas que, ao saber de todos, até os dias atuais sofrem com o desprezo político, sofrem com a carência das chuvas que prejudica as plantações, fazendo a população ficar sem água, o gado morrer e as plantações de subsistência secarem. Uma região onde não há investimento nenhum de empresários, dificilmente encontram-se empresas de grande porte em uma dessas regiões e, muitas vezes, quando há, é com o intuito de conseguirem mão de obra barata, escrava e infantil, pois as pessoas lá não tem outra escolha, senão trabalhar num desses lugares, já que não há outro meio pra subsistência. Bem ilustra essa situação Os Corumbas, que mostra a família chegando em Aracaju, as meninas mais velhas Rosenda e Albertina vão trabalhar nas fábricas de tecido, as mais novas Bela e caçulinha vão à escola e Pedro arruma emprego como mecânico. Na Têxtil (fábrica de tecidos), ganham o mínimo para o sustento familiar, e mesmo assim ainda falta demais, a família nada possui. Também pela família sabemos que trabalhavam crianças nas fábricas, todos sem a mínima condição de trabalho, como o filho de uma operária de quinze anos, que morreu em serviço.

Súbito, uma agitação estranha lá no fundo. Um grito fino, seguido de um clamor. Todas as máquinas pararam, de repente.

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Albertina largou o serviço e correu para onde se formara um ajuntamento. Mas logo se deteve. Fechou os olhos, soltou um longo “uai”, e caiu de cócoras, escondendo o rosto entre os joelhos. A larga correia de uma transmissão, que fazia funcionar todo um grupo de teares, alcançara um rapazelho de quinze anos pelo braço, atraíra-o para a roda, suspendera-o no ar e arremessara-o violentamente sobre a parede que a pequena distância se encontrava. Quando o corpo veio dar no chão, estava já sem vida, o crânio extensamente fraturado. [...] Vendo o braço do menor jogado para um lado, o seu craniozinho achatado, de onde escorria o sangue e uma pasta esbranquicenta, o rosto do diretor contraiu-se todo, num esgar de repulsa e de emoção. Mas foi um rápido minuto. Logo retomou suas funções de chefe. (FONTES, 2003, p. 140).

Nota-se a descrição em pormenores do fato, como uma câmera que vai registrando o momento e faz o leitor visualizar tal imagem de horror, crueldade e frieza, adjetivos cabíveis a essa cena, na qual se percebe que a única intenção do horror foi mostrar a injustiça contra aqueles que não têm condições sociais, como o menino que morreu. Não foi dito seu nome, pois se julga que num espaço como aquele, onde as pessoas sofrem injustiças, pouco importa quem elas são, ou seja, a identidade delas, então o nome que é o mais importante na identidade de cada um não é revelado, feito proposital pelo narrador. O chefe da Têxtil, por ocasião do acidente, pareceu ter um instante de sentimentalismo, o que realmente não passou de um brevíssimo momento, mostrando, além do mais, que aqueles também sem condições não têm reserva nem a sentimento, são vistos como objetos, seres produtores, úteis, senão descartáveis. A mãe do menino, apenas um menino de quinze anos que morreu, também trabalhava na fábrica, foi surpreendida terrivelmente pela morte do filho. Ela ouviu grande tumulto e questionava quem havia morrido, descobriu então que foi seu filho e entrou em desespero e foi junto ao corpo, onde o capitão Cisneiros interviu dizendo que ela deveria se conformar, pois: “– A vida é assim mesmo”. Tem-se aí uma fala típica direcionada aos injustiçados, que só resta a eles se conformarem. Outro caso é o da personagem secundária Clarinha, que foi obrigada pela mãe a trabalhar doente na Têxtil, pois provinha da menina o sustento do lar. Também Bela Corumba que estudava junto com Caçulinha, a filha Corumba mais nova, eram as únicas que estudavam da família, no entanto Rosenda fugiu com o namorado, seguida de Albertina que também deixou o lar, indo embora com o namorado, um médico. Por esta razão, Bela e Caçulinha foram trabalhar na fábrica. Portanto, vê-se que o romance, de forma profunda e dramática, trabalha com vidas humanas, obrigadas pela injustiça social a sujeitarem-se a pouco, para não dizer a nada. O artista resgatou, em seu romance, aqueles esquecidos pelos governadores e pela sociedade no geral.

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Não é um romance telúrico, apesar de, no início da narrativa, a família ter se exilado, em virtude da seca que não permitia nem o mínimo para subsistência do lar. Além do que, essa situação financeira da família e de todas outras famílias daquela época que dependiam da agricultura se agravou muito mais com a crise. Gilberto Freyre, em seu manifesto, alegou que a ideia regional era de atrair a atenção para temas regionais: cultura, música, comida, religião, ou seja, tudo o que representasse o peculiar de cada região, que num conjunto é o retrato do Brasil. E o regional estava sendo esquecido, e se já estava sendo esquecido pelo cosmopolitismo, então deveria se reavivar e conscientizar a todos desse território existente, dessas pessoas esquecidas e que são importantes para a constituição da cultura nacional brasileira. Quando se aborda regiões como o Nordeste, a predominância é de representações de temas telúricos, uma vez que nesses lugares o homem está estritamente ligado à terra, sua vida depende dela, eles, na maioria das vezes, plantam lá o que consomem. Isso ocorre por se tratar de uma região com poucos investimentos industriais, claro que na literatura regional, uma época em que estavam surgindo ainda as fábricas, não havia investimento lá. Um lugar que era e sempre foi sem investimento político-econômico, então não restava outro meio de produção, de rendimento econômico senão a terra, de onde se retirava o que comer. Infelizmente, um meio totalmente devastado pela seca que matava os animais e a produção agricultora, então a vida dos nordestinos sempre estaria ligada a esse tema telúrico de forma, na sua maioria, sempre trágica. Outra representação em Os Corumbas é a do coletivo: familiar, uma família que se exila duas vezes por causa da seca e, no decorrer do enredo, a família vai para um coletivo maior; a fábrica, que representa muitas injustiças sociais e lutas políticas, onde grupos de esquerda eram formados, liderados pelo pensamento marxista, de uma unidade social e igualitária. Pedro era a representação das ideias sociais e pensamentos marxistas, o filho Corumba entrou para um grupo político de esquerda, representação de outro coletivo no romance, com a intenção de promover mudanças sociais e trabalhistas, acreditavam, baseados nas ideias de Marx, que o socialismo seria alcançado por meio da luta de classes e de uma revolução do proletariado. Ele é o único personagem no romance que simboliza a utopia, Pedro tem um ideal do perfeito, o que não aconteceu com a família, pois apenas pensavam em adquirir algo um pouco mais confortável e melhor para eles que não tinham nada; contudo, em nenhum momento tiveram um sonho utópico, mas sim um sonho pautado na realidade. Pedro já havia subido de cargo no trabalho, mas começara a ler os livros de Marx e queria seguir seus ideais, deixando de lado as críticas dos pais, dizendo que ele era um

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ingrato. O que ele e o grupo que frequentava intentavam era uma melhora trabalhista de forma geral. No entanto, por fim, um rapaz do grupo denunciou onde aconteciam as reuniões, todos foram presos e Pedro Corumba foi deportado ao Rio de Janeiro. A família, então, fica sem um membro e é quando tem início a desagregação familiar. Em seguida, Rosenda, a filha mais velha, se encanta por Inácio, homem que a mãe Josefa despreza por desconfiar das más intenções do rapaz que nunca procurou conhecer a família da namorada. Rosenda, com o tempo, começou a chegar mais tarde em casa e por isso suas brigas com a mãe aumentavam, foi quando Inácio propôs a fuga com sua “amada”, dizendo que assim que fugissem se casariam, o que ela fez prontamente. Mas a promessa de casamento não aconteceu, Rosenda foi abandonada em seguida e entrou no mundo da prostituição, pois sabia que ninguém a empregaria em razão do destino que seguiu. Albertina Corumbá, muito bela, sempre resistia fortemente às cantadas dos rapazes e naquele mesmo período sua irmã Bela precisava de ajuda, pois estava muito enferma, à beira da morte. Albertina procurou o Dr. Fontoura, que resolveu ajudar por causa do seu encantamento com o físico e beleza da moça. Como o médico começou a frequentar constantemente a casa, em virtude da doença de Bela, os cortejos se intensificaram. De início a moça resistia, mas Fontoura começou a presentear, passear de carro com a moça, que se iludia com as promessas do médico e com a vida luxuosa de que poderia desfrutar, diferente da miséria em que vivia. Os dois fugiram, ela, em pouco tempo, foi abandona sem nada e seguiu a vida da prostituição. Nesse meio tempo, Bela morreu e Caçulinha, que estudava, teve que abandonar os estudos para ajudar nas despesas do lar, começou a trabalhar na Têxtil, no posto de secretária, pois tinha estudo. Como começou a passear mais conheceu e começou a namorar o sargento Zeca, que diferente dos namorados das irmãs sempre ia à casa de sua namorada, sempre cumpria os horários e não desobedecia aos pais de sua amada. Os dois planejavam o casamento e até ficaram noivos. Um dia Caçulinha fora comprar os enxovais do casamento, e como era muito longe resolveu ir de trem e encontrou o noivo que resolveu lhe fazer companhia. Por estarem perto da casa do rapaz, ele a convidara para conhecer sua casa e a empregada que tanto ouvira falar de Caçulinha, mas nunca a vira pessoalmente, assim, com muita resistência, a jovem cedeu. Não há relato de como foi na casa do sargento, apenas da volta deles: “E quando, à noitinha, volveram à mesma esquina, para aguardar de novo o bonde, Caçulinha chorava sem parar, o rosto escondido no seu pequeno lenço de algodão”. (FONTES, 2003, p. 201).

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Caçulinha acabara de perder sua virgindade e embora o noivo falasse para ela não se preocupar, pois o sentimento dele por ela não mudara, ela tinha medo do seu futuro, de seguir a sina das irmãs. A jovem vivia angustiada, apenas chorava, o noivo já não era mais o mesmo, até que a abandonou, ele não a considerava mais digna para o papel de esposa, mas sim para o de amante. A jovem resolveu contar para mãe o fato, e a mãe imediatamente a levou à delegacia para denunciar o rapaz, que nada sofreu, pois era muito rico. Espalhou-se pela cidade o ocorrido, a jovem foi demitida da Têxtil, pois não era considerada mais digna para o papel de secretária:

Foi ao próprio Geraldo que entregaram o último ordenado de Caçulinha juntamente com uma nota, em que a despediam do serviço. Era este um velho hábito, que desde sua fundação as fábricas vinham mantendo com rigor: – Não permitir nunca o trabalho, na seção do escritório, a moças que não tivessem vida honesta. (FONTES, 2003, p. 223).

Tem-se aí, por meio de Caçulinha e as irmãs, a representação do grande preconceito e machismo contra as mulheres da época, pois Caçulinha que perdera o emprego não teve outra escolha senão se tornar prostituta, só que diferente das irmãs tornou-se uma prostituta de luxo. Cabe às moças, única e exclusivamente, a culpa de um caminho, da virgindade que determina o caráter das mulheres como “de família” ou “amante” (prostituta), ao passo que aos homens nada acontecia, nem um pré-julgamento, mostrando bem o preconceito, a estigmatização e o machismo daquela época. O narrador, ao falar das irmãs que se tornavam prostitutas e de outras moças da redondeza, dizia que a maioria ia para rua do Siriri, rua das prostitutas de Aracaju, para ressaltar que o curso da vida dessas moças não poderia ser mais o mesmo, nem mais junto ao seio familiar, ao trabalho que se tinha, tampouco morar no lugar que quisessem, pois sofreriam muito ao serem xingadas e maltratadas diariamente.

3 conclusão

A obra revela toda a trajetória da família Corumba, que vivenciou uma tragédia, pois essa família saiu do interior de Aracaju rumo à capital com o sonho de ascender socialmente, o que almejara de início. No entanto, com o tempo, os filhos vão seguindo caminhos que não têm mais volta: Pedro é deportado para o Rio de Janeiro, pois se envolve com grupo político de esquerda e as filhas Rosenda, Albertina e Caçulinha tornam-se prostitutas e Bela morre.

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Fatos esses decorridos em seis anos e, após tudo isso, os pais Corumbas – Josefa e Geraldo –, que foram todos cheios de esperanças, são obrigados pelo destino a voltarem para o Engenho de Ribeira, pois além de não “terem” mais filhos, encontram-se muito envergonhados da trajetória que todos eles seguiram, a não ser Bela, que morreu enferma. É evidente que todo esse processo que a família vivenciou era sua sina e não tinha escapatória, pois, a partir do momento em que todos saíram de Ribeira, o sonho que os levou a deixar o interior foi responsável, indiretamente, pela desgraça e catástrofe da família. Logo, conclui-se que não resta aos personagens outra escapatória, senão o isolamento geográfico, as meninas irem para outro local e os pais voltarem para Ribeira, processo esse no qual se localiza o centro da tragédia, da trama do romance, pois o destino exterior mostra-se mais forte e nada pode ser mudado, por mais que esses pais de família tentem e tenham esperanças. Fontes, na sua apropriação da realidade, de forma dramática e real, produziu uma obra de observação triste, amarga, áspera e crua do meio de Aracaju, um trabalho que se pode dizer científico, pois fez uma profunda análise da sociedade, estudando os tipos sofredores, miseráveis e ameaçados injustamente por um destino social e econômico por causa da carência de recursos e da falta de cultura (estudos), somadas a uma série de circunstâncias não morais desencadeadas pelas filhas que se tornaram prostitutas. Mostrou, ainda, as condições trabalhistas, a representação da tensão das mudanças do contexto histórico: industrialização; êxodo rural; ideologias sociais e exclusão total dos pobres numa sociedade capitalista. Em suma, o romance que aborda o coletivo, primeiro a família – antes inseparável –, vai para a cidade “grande” e lá entra no coletivo das fábricas, consecutivamente, nesse momento que aparece a figura da fábrica, representando a industrialização, o primeiro coletivo (a família) começa a se individualizar; uma mostra do que a industrialização fez com as pessoas, em menor ou maior escala, tornou e ainda torna os seres cada vez mais fragmentados e individuais, como bem representa a imagem final do romance, em que os pais, já sozinhos, voltam para Ribeira, sem os filhos.

Referências

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SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil Qual Romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

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A IMAGEM FOTOGRÁFICA COMO FONTE HISTÓRICA: POSSIBILIDADES E DIFICULDADES

Rafaela Sales GOULART1

Introdução

A imagem fotográfica, como qualquer documento produzido socialmente, é fonte de possibilidades para a pesquisa histórica. Deste modo, pode ser analisada sobre o viés de construção da história da própria fotografia em determinados lugares e períodos temporais, ou mesmo, com o viés de ferramenta que auxilia a narrativa histórica de temáticas diversas; isto é, utilizar-se de fotografias para escrever história de algo específico. Neste artigo, elencamos nossas preocupações com este tipo de fonte, na medida em que a pensamos como uma das maneiras de analisar a folia de reis realizada pela Companhia Flor do Vale, uma manifestação cultural encontrada na cidade de Florínea/São Paulo2. Entretanto, concentrar-nos-emos em debates teórico-metodológicos a respeito da fotografia ou “evidência testemunhal”, bem como em seus limites e possibilidades para o trabalho crítico-historiográfico. Por ser a fotografia uma fonte documental que transmite a ideia de preservação de memórias sociais, ela pode também deturpar histórias (ou seja, a fotografia como algo construído socialmente, apresenta enquadramentos e, também, o próprio ato de rememorar é algo que parte das experiências particulares dos indivíduos ou daquilo que se quer exaltar enquanto história de vida), o que a torna um rico campo de análises por parte dos historiadores. Ressaltamos, por sua vez, que por se tratar de uma pesquisa de mestrado em andamento, apresentaremos os anseios percebidos até o presente momento e, desta forma, a proposta principal do texto é compartilhar experiências acadêmicas na arte de construção/desconstrução histórica com imagens fotográficas.

Imagem fotográfica: fonte histórica de possibilidades

1 Mestranda – Pós-Graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil - Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 A cidade de Florínea localiza-se a aproximadamente 480 Km da capital de São Paulo e, da cidade de Assis/SP, distancia-se 47 Km. No censo de 2010, contava com o número de 2.829 habitantes. Mais informações acerca da cidade em: . Acesso em: 02 de abr. 2014.

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A fotografia foi inventada no contexto da Revolução Industrial, sendo útil para o desenvolvimento das ciências, bem como para expressões artísticas e culturais, o que acabou por promover seu aperfeiçoamento através dos tempos, sobretudo, depois de 1860 na Europa e nos Estados Unidos. Segundo Boris Kossoy, no livro História e Fotografia, a fotografia é considerada um meio de representação visual que possibilita o conhecimento de outras realidades ou microespaços sociais. No século XX, em especial, “O mundo [...] se viu, aos poucos, substituído por sua imagem fotográfica. O mundo tornou-se, assim, portátil e ilustrado.” (KOSSOY, 2001, p. 26-27). Para Peter Burke, em Testemunha Ocular: História e Imagem, as imagens “[...] registram atos de testemunho ocular.” (2004, p. 17). Ou seja, os usos das imagens devem ser encarados como evidências históricas. O próprio desenvolvimento do estudo de outras áreas na história, como história das mentalidades, história cultural, história do corpo, entre outras, concedeu espaço para a análise de fontes, como é o caso da fotografia (2004, p. 11). De fato, a fotografia é uma lente entre o indivíduo e o mundo, se alguém quer conhecer monumentos arquitetônicos brasileiros, como é o caso do Forte dos Reis Magos em Natal (RN), ou mesmo a indumentária utilizada pelos grupos sociais que praticam a folia de reis em Portugal, basta fazer uma pesquisa na internet e surgem inúmeros enquadramentos fotográficos realizados por profissionais e amadores. Além disto, esta lente fotográfica pode levar o indivíduo ao mundo que ele quer ver. O exemplo da pesquisa na internet já fornece tal ideia, logo que há um filtro no ato de investigar; ou seja, quero ver qual tipo de indumentária, em qual cidade de Portugal, em qual período da história portuguesa? Ora, se há disponibilidade de encontrar imagens selecionadas na internet, é porque elas foram depositadas com uma intenção, além da questão delas poderem ter sido criadas com outra intenção. Como diria Kossoy (2001), o fotógrafo é uma espécie de filtro com bagagens culturais, o que permite entender a fotografia como:

Materialização da experiência vivida. Doce lembrança do passado, memórias de uma trajetória de vida, flagrantes sensacionais, ou ainda, mensagens codificadas em signos. Tudo isso, ou nada disso, a fotografia pode ser. (CARDOSO; MAUAD, 1997, p. 405).

Em termos de fontes historiográficas, esta problemática que fornece a ideia do documento fotográfico como algo que congela, determina ou enquadra visualmente paisagens que são mantidas através dos tempos, proporcionou preconceitos por um bom tempo. Apesar do desenvolvimento desta técnica, a documentação escrita ainda possuía um valor superior e, decorrente deste descaso, surgiram dificuldades com relação ao trabalho com a fotografia, logo que os pesquisadores que a utilizavam, faziam-nos mediante códigos vinculados à tradição documental escrita. Entretanto, a fotografia, enquanto fonte que

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interessava os pesquisadores, atingiu seu auge na década de 1990. Neste período, passou- se a ter mais consciência sobre sua riqueza, não podendo ser entendidas como meras “ilustrações ao texto”, sendo exploradas metodologicamente, tais fontes podem elucidar o passado, bem como o presente pelo qual se investiga (KOSSOY, 2001, p. 31-32). Antes com a câmara obscura, depois com a representação visual modernizada e materializada: “Toda fotografia tem sua origem a partir do desejo de um indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em determinado lugar e época.” (KOSSOY, 2001, p 36). Nesta medida, são elementos constitutivos do produto final da fotografia: o assunto (tema escolhido, o referente fragmento do mundo exterior/natural, social etc.), o fotógrafo/filtro cultural (autor do registro, agente, personagem do processo) e a tecnologia (materiais fotossensíveis, equipamentos e técnicas empregados para obtenção do registro, diretamente pela ação da luz), os quais demonstram o seu processo de cristalização dentro de um espaço (geográfico, local onde se deu o registro) e tempo (cronológico, época, data, momento que se deu o registro). Tais elementos são interligados e, portanto, singulares (KOSSOY, 2001, p. 37-39). Entretanto, quando se depara com uma pesquisa que pretende fazer história recente com o auxílio das fotografias, os elementos tecnológicos, por exemplo, não são essencialmente decisivos. Utilizando-se de algumas ideias advindas de Roland Barthes (1984), a fotografia fornece mensagens já percebidas em Kossoy (2001); isto é, de que em uma imagem fotográfica há um operador que é o fotógrafo, um spectator, que é o que olha a fotografia e o spectrum ou o alvo fotografado. Esta tríade significativa possibilita um trabalho historiográfico que se estende de pesquisas a acervos documentais públicos ou privados à própria produção de fotografias pelo pesquisador(a). O último, quando realizado pelos historiadores, demanda esclarecimento, logo que poderia ser alvo de críticas por também enquadrar olhares, segundo aquilo que se pretende defender em uma pesquisa. Uma das alternativas para o tal esclarecimento no trabalho historiográfico seria a utilização de outras fontes que dão suporte a mais à pesquisa, as fontes iconográficas em geral, assim como as fontes escritas, as fontes-objetos e as fontes orais, as quais são importantes complementos para uma análise maior do estudo acerca da história da e através da fotografia (KOSSOY, 2001, p. 65-73).

Fotografia e memória: problemas?

Como mencionamos na introdução do texto, existem distinções teórico- metodológicas acerca da fotografia. Uma remete à história da fotografia, fornecendo o estudo do gênero fotográfico enquanto objeto de pesquisa, o que possibilita averiguar

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historicamente seus processos técnicos, artefatos, estilos e usos. A outra distinção remete à história através da fotografia; isto é, utilizando-a como um meio para investigação de uma memória visual construída (cena passada), a fim de melhor explicar uma temática. As duas possibilidades não se separam, pois utilizam como núcleo de investigação o documento fotográfico (KOSSOY, 2001, p. 53-57). Utilizando-se, contudo, da máxima de que “Toda fotografia é um resíduo do passado. Um artefato que contém em si um fragmento determinado da realidade registrado fotograficamente.” (KOSSOY, 2001, p. 45). Quais são as dificuldades ao se trabalhar com a fotografia? E quanto à memória que ela pode produzir? Seria ela, uma memória que de fato produz preservação de uma história ou, pelo contrário, faz desta história algo naturalizado, distorcido, silenciado ou enquadrado dentro da memória? Como alerta Kossoy (2001, p. 27), este novo documento visual, embora não sendo tradicional quanto o documento escrito, por exemplo, aparentava verdade sobre algo, proporcionava recordações e emoções, o que promoveu em termos de pesquisa, desconfianças e preconceitos. Cabe ao historiador ler nas entrelinhas desses documentos, indagando a imagem em si, sua época e espaço de produção, autor e, também, os interpretadores da imagem. Neste último caso, o historiador pode até perceber as mentalidades, ideologias e identidades contidas em análises anteriores. Isto é, “As próprias distorções encontradas em antigas representações são evidência de pontos de vista passados ou ‘olhares’”. (BURKE, 2004, p. 38). Para Alessandro Portelli, em O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum, a memória é, antes de tudo, uma construção individual, pois pessoas se lembram de acontecimentos e não de grupos inteiros. Nesse sentido, o autor argumenta:

Se toda memória fosse coletiva, bastaria uma testemunha para uma cultura inteira; sabemos que não é assim. Cada indivíduo, particularmente nos tempos e sociedade modernos, extrai memórias de uma variedade de grupos e as organiza de forma idiossincrática. Como todas as atividades humanas, a memória é social e pode ser compartilhada (razão pela qual cada indivíduo tem algo a contribuir para a história “social”), mas do mesmo modo que langue se opõe a parole, ela só se materializa nas reminiscências e nos discursos individuais. Ela só se torna memória coletiva quando é abstraída e separada da individual: no mito e no folclore [...], na delegação [...], nas instituições. (PORTELLI, 1998, p. 127).

Como disse Ecléa Bosi (1994, p. 411), em Memória e Sociedade: Lembrança dos Velhos, mesmo que haja um tesouro comum que forma esta memória coletiva, é o indivíduo que recorda e memoriza os acontecimentos segundo sua própria seleção. Nesta perspectiva, mesmo que for encontrado em uma ou mais fotografias, representações de memória coletiva, teríamos que compará-las com outras fontes. Esta análise proporciona questionar

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esquecimentos e silenciamentos (POLLAK, 1989) produzidos tanto individualmente quanto coletivamente. No texto História e Imagem: Os Exemplos da Fotografia e do Cinema, Ciro Flamarion Cardoso e Ana Maria Mauad, pautados na noção de documento/monumento de Jacques Le Goff3, escrevem que uma Imagem/documento traz informações históricas de determinados períodos e espaços (indumentária, arquitetura, formas de trabalho, locais de produção). Já “[...] uma imagem/monumento: aquilo que, no passado, a sociedade queria perenizar de si mesma para o futuro. [...] legitimação de uma determinada escolha quanto, por outro lado, o esquecimento de todas as outras.” (CARDOSO; MAUAD, 1997, p. 406-407). Ao trabalhar com memória, portanto, partimos do pressuposto já explicitado por Jacques Le Goff na década de 1980, de que ambas, ela e a história, estão intrinsecamente ligadas. Ora, “A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro” (LE GOFF, 2003, p. 471). Neste caso, a fotografia e a memória também são produções sociais que se entrelaçam. No caso de celebrações como a Folia de Reis, por exemplo, supõe-se que seja um momento que motive as pessoas a registrar fotograficamente aquilo que consideram importante para o festejo, tanto no sentido religioso quanto de sociabilidade e de preservação de um patrimônio comum. Como salienta Peter Burke:

O uso das imagens, em diferentes períodos, como objetos de devoção ou meios de persuasão, de transmitir informação ou de oferecer prazer, permite-lhes testemunhar antigas formas de religião, de conhecimento, crença, deleite, etc. (2004, p. 17).

Entretanto, como veremos a seguir, tanto a presença como a falta destes registros fotográficos podem fornecer sinais e indícios para o historiador (GINZBURG, 1990).

A Folia de Reis na imagem fotográfica: compartilhando experiências

A Folia de Reis é uma manifestação do catolicismo popular que, desde o período em que adentrou ao território brasileiro com os aspectos culturais portugueses, veio tomando novos moldes na medida em que vai passando de geração a geração e por lugares distintos. Segundo Vera Jurkevics, em Festas Religiosas: A materialidade da fé, sua permanência está atrelada ao seu sentido inicial que é o de “[...] devoção, e tem conseguido sobreviver como uma manifestação revestida de um dinamismo próprio, apesar de algumas mutações, pelas influências regionais que recebe.” (2005, p. 81).

3 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In:___. História e memória; trad. Bernardo Leitão. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.

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Realizada no período de transição de um ano ao outro ou, mais especificamente, no ciclo natalino que vai do dia 25 de dezembro a 6 de janeiro, a Folia de Reis promove um ritual de retorno à história dos três reis magos que foram com a orientação da estrela do oriente, visitar o recém-nascido menino Jesus, o qual seria o futuro rei dos judeus. Assim, os reis possuem grande representatividade no processo da fuga para o Egito de José e Maria com Jesus, do rei Herodes4. Durante o período do ritual, os devotos saem para as ruas, objetivando visitar as casas de fiéis, homenageando a sagrada família no presépio, com cantos e mostras representativas da sua releitura da história bíblica. Assim, há um encontro de pessoas que estão envoltas a crenças, perpetuando suas simbologias e práticas culturais. Neste sentido, a festa é uma construção que faz:

[...] parte do que a Igreja conceitua como religiosidade popular, uma vez que não são prescritas pela liturgia, mas são celebradas, através de ritos, objetivando o encontro dos homens com o mundo espiritual e sagrado. (JURKEVICS, 2005, p. 85).

De acordo com Mircea Eliade (1992), em O Sagrado e o profano: a essência das religiões, o homem religioso esforça-se por estar sempre em contato com o sagrado, seja ele um lugar, organizações e/ou representações; isto é, a intencionalidade de um ritual tem um fundamento religioso que legitima uma tradição. De acordo com Roger Chartier, as representações se modificam através dos tempos, mediante práticas socioculturais que possibilitam “[...] vincular estreitamente as posições e as relações sociais com a maneira como os indivíduos se percebem e percebem os demais” (2009, p. 49). Assim, deve-se ressaltar que este retorno ao acontecimento sagrado modifica-se mediante a passagem do tempo, do espaço e das práticas e representações que se transformam culturalmente. Neste sentido, optamos por trabalhar no mestrado com uma companhia de folia de reis localizada na cidade de Florínea. Segundo relatos de um de seus membros, o senhor Amado Jesus da Silva5, a companhia Flor do Vale é responsável pela organização e realização anual da folia de reis, desde 1928. Deste modo, buscando compreender um pouco da realidade local vivenciada pelos membros deste grupo e, portanto, os sentidos deste festejo popular que se desdobra entre memórias e identidades, iniciamos o levantamento de documentos relacionados a esta temática. Como se trata de uma festa contemporânea, fundamentalmente, adotamos os métodos da história oral para a

4 Sobre a adoração dos magos e a fuga para o Egito, consultar o capítulo 1 do Evangelho segundo São Mateus. In: BÍBLIA Sagrada - Edição Pastoral Catequética (137ª Ed.). São Paulo: Ave Maria. 5 SILVA, Amado Jesus da. Entrevista [15 maio 2013]. Entrevistadora: Rafaela Sales Goulart. Florínea/SP, 2013. Áudio MP3 (01:50:27).

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construção das primeiras fontes6. E, por meio deste trabalho de entrevistas com os foliões, foram surgindo fotografias de acervos particulares, as quais foram emprestadas para serem digitalizadas pela pesquisadora7. Com a aquisição das fotografias, primeiramente, organizamo-las de acordo com as datas que estavam presentes nos próprios documentos. Este processo, entre outros elementos significantes dentro da Companhia, possibilitou avaliarmos a incipiência destes documentos que representassem os tempos remotos da folia de reis na região. Assim, o recorte temporal da pesquisa foi delimitado a partir da década de 1990, momento em que os próprios foliões iniciaram o trabalho de preservação da memória da folia de reis mediante o registro e armazenamento fotográfico, audiovisual e, também, escrito (Livro de Atas). Documentos estes que possibilitaram ressignificações para sua própria história. Desta forma, as imagens fotográficas recentes ganharam espaço na pesquisa, pois são provenientes de:

Uma realidade que se formula a partir do trabalho de homens como produtores e consumidores de signos; um trabalho cultural, cuja compreensão é fundamental para se operar sobre esta mesma realidade. (CARDOSO; MAUAD, 1997, p. 405).

Neste sentido, o trabalho está inserido no campo da história do tempo presente8. Em defesa da história recente, Marieta Ferreira comenta:

[...] nos últimos anos, nas últimas décadas para ser mais precisa, já a partir da Segunda Guerra Mundial começa-se um movimento de valorizar, a necessidade de se estudar a história recente, e nesse sentido eu acho que o historiador francês François Bédarida, teve um papel muito importante de cunhar essa denominação história do tempo presente. (2008, p. 2-3).9

Tal reflexão é feita, pois, desde o século XIX, no período em que a história estava em processo de profissionalização, era concebida como uma disciplina voltada ao estudo do passado e, por mais que isso tenha sido revertido no desenrolar do século XX e, agora, no XXI, ainda paira um questionamento sobre os objetos e as formas de se trabalhar com a história recente. Entretanto, a historiadora acredita que ela é propícia, sobretudo, por utilizar de testemunhos vivos em sua construção, o que oferece, em meio a possíveis distorções no

6 Entre as referências utilizadas sobre metodologia da história oral, indicamos: ALBERT, V. Histórias dentro da história. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2010; AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998. 7 Até o presente momento da pesquisa, levantamos 12 entrevistas com membros da Companhia. Entre as perguntas realizadas, indagamos sobre possíveis acervos fotográficos particulares que diziam respeito à Folia de Reis. Desta forma, como a pesquisa está em andamento, ainda serão realizadas entrevistas mais direcionadas que possibilitem análises sobre as imagens fotográficas em si. 8 O título que escolhemos para o mestrado traduz o recorte mencionado: Identidades que se prezam: A Companhia de Reis “Flor do Vale” e as Ressignificações da Folia (1993-2013). 9 François Bédarida foi o fundador do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP) na França. Consultar reflexões sobre como se pensa e como se escreve a história do tempo presente em: RÉMOND, René. Algumas questões de alcance geral à guisa de Introdução. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.

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conteúdo investigado, novas críticas à pesquisa (2000, p. 7). “A história do tempo presente é um bom remédio contra a racionalização a posteriori, contra as ilusões de ótica que a distância e o afastamento podem gerar.” (REMÓND, 1998, p. 208-209). Assim, a distância temporal não é um elemento que constitui a verdade. Aliás, verdade e racionalidade em história são insubstanciais. Como mencionamos acima, por meio do levantamento de entrevistas e, por sua vez, das fotografias sobre a folia de reis da Flor do Vale, conseguimos perceber a ocorrência de registros em um determinado período da história da Companhia. Depois do trabalho de seleção das fontes, o segundo passo que optamos foi por criarmos um esquema baseado na sugestão de roteiros feita por Boris Kossoy, no livro Fotografia e História (2001, p. 89-94).

Identificação da Fotografia Data: Autor: Conteúdo:

Procedência Tipo de Momento: Data em que aquisição e fora concedida: pessoa que concedeu:

Estado atual de Deteriorada: Média Conservada: conservação deterioração/conservação:

Como se percebe, com exceção da pergunta sobre o estado de conservação da fotografia, o esquema apresenta questionamentos que demandam o trabalho de filtro de informações que serão preenchidas com base em novos questionamentos do(a) pesquisador(a) aos indivíduos que concederam tal documentação. No item conteúdo, em especial, além da visualização das informações presentes na imagem, podemos indagar sobre os porquês de seu enquadramento, sobre os símbolos nela contidos e, sobretudo, sobre o significado que é atribuído à cena priorizada. Além destas informações, como a fotografia está atrelada à memória, há que se ter cuidado com relação às emoções que são despertadas na leitura das imagens, procurando ir além daquilo que está explícito. O próprio despertar de sentimentos pode ser alvo de novos questionamentos pelo(a) historiador(a). Como diria Kossoy:

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O significado mais profundo da vida não é o de ordem material. O significado mais profundo da imagem não se encontra necessariamente explícito. O significado é imaterial; jamais foi ou virá a ser um assunto visível passível de ser retratado fotograficamente. O vestígio da vida cristalizado na imagem fotográfica passa a ter sentido no momento em que se tenha conhecimento e se compreendam os elos da cadeia de fatos ausentes da imagem. Além da imagem iconográfica. (2001, p. 123-124).

Com relação às imagens levantadas pelos próprios pesquisadores, elas fornecerão informações que complementam ou respondem as informações lidas nas imagens que foram criadas pelo próprio grupo pesquisado. O(a) próprio(a) pesquisador(a), por sua vez, por fazer a seleção das fontes segundo as problemáticas que foram levantadas, está promovendo a construção de documentos que podem ser úteis a posteriori. Em nossa, pesquisa, por exemplo, por haver esta escassez de documentos relacionados à festa em acervos públicos, o próprio trabalho será uma oportunidade de organização do material do grupo estudado10.

Considerações finais

Levando em consideração que as imagens fotográficas apresentam leituras plurais, cabe ao pesquisador desenvolver as perguntas propícias para as temáticas que escolhe investigar. Desta forma, longe de ser uma receita metodológica para o trabalho com fotografias, o artigo pretendeu compartilhar as experiências de um estudo em andamento. Por se tratar de uma pesquisa que evidentemente procura perceber os sentidos que remodelam o grupo Flor do Vale, as imagens fotográficas criadas ou armazenadas pelos membros do grupo, por si só, já permitem perceber a importância da Folia de Reis para esta sociedade. Talvez a mensagem que melhor norteie os aventureiros que buscam nas fontes fotográficas os sentidos é que elas são, “Apesar da aparente neutralidade do olho da câmara e de todo o verismo iconográfico, [...] sempre uma interpretação.” (KOSSOY, 2001, p. 120). Desta forma, tanto quem a produz quanto quem a lê, pode interpretá-la segundo sua bagagem cultural que, por sua vez, está inserida em um contexto e, por se tratar de uma bagagem relacionada à memória, aponta também para os sentidos percebidos por indivíduos do passado.

Referências

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

10 Os integrantes da recém-fundada Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea (2013), mencionaram em seus relatos que pretendem organizar um acervo sobre a Companhia.

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UM OLHAR SOBRE A REVISTA O OCIDENTE: REVISTA ILUSTRADA DE PORTUGAL E DO ESTRANGEIRO

Rita de Cássia Lamino de ARAÚJO1

A partir de meados do século XIX, com o crescimento da população citadina e a modernização da imprensa, os periódicos tornam-se importantes instrumentos de cultura coletiva. Entre 1861 e 1890, de acordo com Saraiva (1999, p. 324), foram publicados vários jornais e revistas que iriam fazer parte da história política e cultural portuguesa. Entre eles destacam-se as revistas ilustradas: Jornal de Belas Artes (1848-1857), Ilustração (1845- 1852) e Ilustração Luso-Brasileira (1856-1859). No entanto, embora em um primeiro momento tenham agradado ao público, não conseguiram permanecer por muito tempo em circulação. Isso se deve a inúmeros fatores, tais como a falta de dinheiro, de material adequado para impressão, de pessoas qualificadas e até de um constante público leitor, uma vez que, em Portugal, mais da metade da população ainda era analfabeta. Fundada pelo gravador Caetano Alberto da Silva, seu principal financiador; pelo desenhista/ilustrador Manuel de Macedo, seus diretores artísticos; por Brito Rebelo, historiador, redator da revista; e pelo escritor Guilherme Azevedo, responsável pela parte literária; e administrada por Francisco Antônio das Mercês até 1904, quando Rodrigo Alberto da Silva, assume a administração, O Ocidente revolucionou a produção periódica ilustrada portuguesa ao inserir em seu programa o desejo de priorizar as atividades artísticas, literárias, culturais e sociais de Portugal. Para a realização eficiente desse projeto, ou seja, para poder agraciar o público com ilustrações e gravuras dos monumentos, das paisagens, cenas históricas, obras de artes e pessoas ilustres sem fugir do seu objetivo nacional, a revista criou um moderno ateliê de formação de gravadores que contou, de início, com a colaboração de importantes profissionais supervisionados de perto pelo diretor artístico Caetano Alberto, viabilizando, assim, a publicação de imagens de notável qualidade artística. Constituída por oito páginas de papel importado até 1882, quando passa a ser impressa em folha nacional, da fábrica Ruães, O Ocidente surge tendo a dimensão de 35cm de altura por 25cm de largura, e apresentando em seu interior duas colunas, as quais, a partir do terceiro ano, 1880, passam a ser divididas em três partes.

1 Doutoranda – Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Do mesmo modo, a publicação da revista, que era feita quinzenalmente durante os quatro primeiros anos, a partir de 1881, passa a ser realizada a cada dez dias perfazendo um total de três exemplares ao mês, pontualmente nos dias 10, 20 e 30, com exceção de fevereiro que era feita no dia 28. Ao alto e ao centro da primeira página da revista localizava-se o seu título, O Ocidente, destacado em letras grandes e arredondadas, sendo as duas vogais “o” ornamentadas segundo estilo Art Noveau. Na linha de baixo do título, corroborando com o pensamento da época, de que as ilustrações valorizavam as publicações, seguia-se o subtítulo “Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro”, em letras médias e finas. Em seguida, a revista disponibilizava, do lado esquerdo da folha, os valores das assinaturas e o preço avulso; ao centro vinha o ano de publicação em números cardeais, e o volume era indicado em número romano, por fim, o número da edição. O lado esquerdo era destinado à informação a respeito da redação, ateliê de gravura e administração, sendo, por isso, apresentado os endereços do escritório do jornal e da editora responsável por sua impressão. Por fim, segue-se o aviso sobre como adquirir assinaturas e o nome do diretor responsável pela revista, no caso Alberto Caetano. Após esse cabeçalho seguia-se a gravura de abertura da revista, acompanhada por uma rubrica explicativa e pelo nome ou assinatura do gravador da imagem. Durante o primeiro ano da revista, a primeira página foi destinada especialmente à imagem, no entanto, como vimos, a necessidade de espaço para a publicação de mais informações fez com que, a partir do segundo ano, 1879, a primeira página fosse dividida entre o texto, no caso a “Crônica Ocidental”, e a gravura, embora fosse mantido o destaque para a ilustração. No decorrer das publicações, a imagem ganha preferência de acordo com a relevância do acontecimento, ou seja, os fatos muito importantes eram retratados por meio de imagens que tomavam toda a primeira página. O assunto ilustrado pela gravura da primeira página era desenvolvido em forma de notícias ou artigo na seção “Nossas Gravuras”, presente na segunda folha da revista. De modo geral, a revista mantinha uma padronização visual coesa, demonstrando equilíbrio e harmonia entre as publicações dos escritos e das imagens. A maior parte dos textos era ilustrada por gravuras, embora estas nem sempre estivessem ao seu lado. No entanto, toda ilustração apresentava um título que remetia ao texto. Em geral, tentando cumprir o compromisso feito no prospecto de apresentar quatro páginas de textos e quatro de gravuras, a revista demonstrava, na maioria das vezes, certa uniformidade, dispondo o texto e a gravura da seguinte forma: na primeira página, como já mencionado, estava disposta a gravura ou, então, esta junto com a seção “Crônica Ocidental” que continuava na segunda página acompanhada pela seção “Nossas Gravuras”; a terceira página exibia os artigos; as quarta e quinta páginas eram dedicadas à gravura, embora, em alguns

301 exemplares, aparecessem o texto; a sexta e a sétima eram constituídas pelos folhetins, contos, resenhas, seções científicas e informativas; e, por fim, a oitava página apresentava as últimas publicações recebidas e o necrológico da semana, acompanhado do retrato da pessoa falecida. Algumas seções, como por exemplo, “Crônica Ocidental”, eram separadas por vinhetas ornamentais que seguiam o estilo Art Nouveau, já anunciado no título. Durante os anos iniciais, depois da primeira gravura, o primeiro item que aparecia era o sumário, escrito de modo simples, limitava-se a apresentar de maneira separada o nome dos escritos e de seus autores, assim como o nome das gravuras presentes, sem a indicação da página. A partir de 1883, o sumário deixa de ser apresentado, isso se justifica pelo fato dos editores – visando à venda de todos os exemplares e à coleção da revista por parte dos leitores –, proporcionarem, ao final de cada ano, um frontispício e o índice anual dos textos, em ordem alfabética, assim como, o índice das gravuras separadas por assuntos, tais como: acontecimento, belas-artes, marinha, retratos, etc., acompanhados pelos números das páginas. Confirmando sua tendência enciclopédica, O Ocidente apresentava numeração contínua ao longo dos 36 exemplares anuais, ou seja, a revista iniciava-se pela página 1, em 10 de janeiro, e terminava na página 268, em 30 de dezembro. Diferentemente de muitas revistas produzidas na época que visavam mais ao lucro mercantil do que ao artístico, O Ocidente surpreende pelo fato de ter se mantido, por 24 anos – de 1878 a 1902 –, praticamente com o mesmo preço, sem submeter suas páginas aos anúncios. Financiada por Alberto Caetano, a revista vivia das receitas provenientes de assinaturas, da venda de suplementos temáticos, sobretudo gravuras, do seu almanaque ilustrado, a partir de 1880, e de obras impressas na empresa O Ocidente. Por isso, seu preço, apesar de corresponder aos padrões da época, era considerado econômico visto a quantidade de gravuras que oferecia e a qualidade artística e literária que tinha. O valor de sua assinatura, em Portugal, no ano de seu lançamento, era de 2$600 anual, série de 24 números; de 1$300, semestral, série de 12 números; $650, trimestral, série de seis números; e avulso era vendida por $120 réis. No que diz respeito ao estrangeiro, a assinatura anual custava 3$000 e a semestral 1$500, não eram vendidas assinaturas trimestrais a esses países e nem número avulso. Em 1881, houve o único reajuste da história da revista, por motivo do aumento de exemplares por mês. Assim, em Portugal, a assinatura por 36 números, passou para 3$800; por 18 números, 1$900; e por nove números $950. Neste ano, a revista passou a ser vendida nas Possessões Marítimas, sob o preço de 4$000 por um ano ou 2$000, por seis meses. Embora fosse distribuída para todo Portugal e vários países, O Ocidente não publicava uma quantidade muito grande de exemplares. Rita Correia (2012, p. 4) explica que não há informação quanto à sua tiragem, porém não seria superior a mil exemplares.

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Todavia, sabe-se que a revista tinha um público fiel e que entre eles estava a realeza portuguesa. Conforme abordado no primeiro capítulo, na década de 70, quando O Ocidente vem ao prelo, pairava sobre Portugal a angústia de ser um país atrasado em relação às demais nações europeias, juntamente com o desejo e o esforço da intelectualidade em ultrapassar o estado de estagnação cultural e, como ressalta Alda Santos (2009, p. 7) “trilhar o mesmo caminho de vanguarda civilizacional dos centros europeus”. Aos escritores cabia o objetivo crucial da intervenção para o diagnóstico dos problemas sociais do país de modo a promover a revolução no pensamento e, por extensão, na sociedade como ocorria na Europa. A imprensa era o veículo pelo qual os literatos exerciam essa função social civilizadora. Como ressalta Daniel Pires (1996, p. 14), “a imprensa periódica mantém uma ligação direta e intensa com a sociedade. É chamada a intervir, a comentar, a tomar posição sobre os assuntos ingentes que decorrem”. Neste sentido, cabia aos escritores viabilizar de maneira simples e clara as últimas tendências literárias, artísticas, filosóficas e científicas de modo a instruir o leitor deixando-o a par dos acontecimentos do seu país e da Europa. Levando esses preceitos à risca, O Ocidente, em seu Prospecto publicado em dezembro de 1877, se propõe a “servir de ideia civilizadora e trazer à luz a vida nacional que palpita no mundo obscuro do esquecimento público” (PROSPECTO, 1877, p. 1), ou seja, firmar a individualidade e os valores do povo português contribuindo para que Portugal volte a ocupar lugar de destaque na Europa. A escolha do nome O Ocidente, feita por Guilherme de Azevedo, literato ligado aos escritores da geração de 70, destaca essa intenção. Tendo por intuito promover a instrução e difundir o conhecimento, O Ocidente dedicava maior atenção às atividades artísticas e literárias portuguesas sem, contudo, deixar de lado as atividades sociais, políticas, econômicas e as inovações científicas, tornando-se uma das mais importantes revistas do país. Já em seu Prospecto, como apontado acima, deixa claro seu programa que será seguido à risca ao longo de seus 37 anos de existência:

O empreendimento d’uma publicação ilustrada que exprima justamente o estado da arte em Portugal e seja exclusivamente nossa; que caracterize o espírito público nacional e corresponda a necessidade que têm hoje todos os povos de afirmar a sua individualidade moral e o seu modo de ser no concreto da civilização [...] A vida portuguesa não está de todo extinta. É preciso afirmá-la com documentos incontestáveis que sejam reconhecidos nas chancelarias do progresso; que provem termos saído da vida histórica da tradição para a existência positiva dos fatos e das ideias contemporâneas, interessa-nos a conquista das ciências e os esplendores da arte: que demonstrem enfim, não termos, no mundo moderno, ficado parado à porta, absortos, extáticos, como um conviva estranho que não se atreve a entrar por julgar o seu lugar ocupado, sem ter a coragem de reivindica-lo, no interesse da sua dignidade desprezada [...]. (PROSPECTO, 1877, p. 1).

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O mérito de O Ocidente, dessa forma, consiste em querer ser uma obra portuguesa autêntica, ou seja, sem deixar de lado a cultura, a arte e a sociedade nacional, projetar Portugal para uma vida moderna. Esse objetivo aproxima-se do projeto das Conferências do Casino, realizadas em 1871, sete anos antes do lançamento da revista. Lideradas por Antero de Quental, as conferências ambicionavam reformar a sociedade portuguesa por acreditar não ser possível a um povo que foi o grande descobridor das civilizações, continuar isolado das grandes transformações intelectuais do seu tempo. A revista, tentando obedecer aos conselhos que o pensador francês Voltaire já havia dado aos jornalistas – “o único meio de um periódico poder vingar, entre tantos outros que já no seu tempo enchiam a França, resumia-se em duas palavras: ser imparcial” –, desde sua primeira edição até o seu último ano de publicação, postava-se como uma fonte imparcial, anunciando-se independente de qualquer programa político. Em 1883, ao comentar sobre as eleições municipais do país, Gervásio Lobato, diretor literário da revista, afirmava que O Ocidente não apoiava nenhum dos partidos existentes – republicano, progressista e regenerador –, pois não era um jornal de discussão, tampouco um jornal político e, por isso, ou seja, por ser livre das paixões partidárias, não tinha que se submeter “às vozes de comando”, sendo inteiramente “senhora de sua opinião e imparcialidade”: “Não somos comparsas do espetáculo político, somos simplesmente espectador, e, como tal, temos completamente livre de peias a nossa liberdade de crítica” (LOBATO, 1883, p. 1). No entanto, apesar de colocar-se como um jornal imparcial, como ocorria com muitos periódicos portugueses da época, a palavra imparcialidade inserida nos seus discursos e no programa inicial funcionava apenas como um meio de atrair o leitor, pois, como ressalta Maria de Sá sobre as revistas daquele período, “poucas ou quase nenhuma, conseguiam manter-se fiel aos princípios apregoados” (1986, p. 82). Desta forma, a revista O Ocidente como deixa depreender da leitura de suas páginas, está entre estes periódicos, pois afirmava sua imparcialidade política, mas, na prática, servia para enaltecer as ações do governo e da aristocracia. Sendo uma revista de informação e entretenimento, O Ocidente apresentava seções variadas, muitas das quais permanentes, ou textos distribuídos em suas páginas que obedeciam à fórmula do “continua no dia subsequente”, ou seja, textos em seriação que “por si só instigava a leitura seguinte garantindo o consumo do impresso enquanto lá se encontrasse" (MARTINS, 2001, p. 148). Assim, a revista postava-se como uma abordagem múltipla em que de tudo tratava um pouco. Em suas páginas encontram-se artigos sobre: economia, comércio, indústria, história, filosofia, arte, questões sociais e militares. Apresenta, ainda, estudos introdutórios

304 sobre as principais descobertas da ciência, expedições científicas, de maneira especial as empreendidas na África, informações sobre o tempo, lições de fotografia, divulgação de eventos internacionais e impressões de viagens. Traz notícias importantes do exterior, considerações sobre a cidade de Lisboa e as províncias e informações sobre fatos religiosos. Publica opiniões críticas sobre os últimos livros, espetáculos teatrais e musicais. E, ainda, notícias sobre as recepções, celebrações e compromissos da realeza, assim como, a divulgação dos eventos das famílias aristocráticas, os festejos e costumes do povo e a apresentação do necrológico da semana. A literatura estava presente por meio da crônica, do conto, do poema e, como não podia faltar, do romance seriado. O caráter lúdico era dado por meio das charadas e dos enigmas que vinham ao final da revista, cuja solução só era informada no próximo exemplar. Toda essa gama de assuntos da sociedade moderna era descrita, muitas vezes, utilizando expressões em outras línguas – latim, francês, inglês, italiano –, e fazendo referências a termos filósofos e técnicos. Além disso, estava atrelada à gravura, sendo, portanto, “comentados com lápis e com a pena na galeria pitoresca e multiforme dessa publicação” (PROSPECTO, 1877, p. 4). Dessa forma, O Ocidente apresentava-se, como observa Rita Correia (2012, p. 1), “como uma revista muito diversificada no que toca a seus conteúdos, pois no seu horizonte estava um amplo espectro de públicos de matérias e interesses [...]”. Colaborando com esse pensamento, Alda Santos (2009, p. 7) acredita que a revista era “um repositório privilegiado de notícias e fait divers que permitiam aprender as dinâmicas globais do evoluir da sociedade”. Assim, “a revista surge para poder servir de serão a toda a família satisfazendo uma necessidade cultural do público oitocentista” (ROCHA, 1985, p. 28). Para dar conta dessa miscelânea de temas de modo satisfatório, a magazine contava com os mais renomados intelectuais de diferentes perspectivas ideológicas, políticas, religiosas e culturais. Assim, desde o início de sua publicação, no quadro dos seus colaboradores estavam jornalistas, historiadores, parlamentares, ministros, publicitas, lentes de Universidade, professores, pintores, dramaturgos, literatos, poetas e religiosos. Entre eles destacam-se: Abel Botelho, Antônio Ennes, Alfredo Mesquita, Antônio A. O. Machado, Bernardim Machado, Brito Rebelo, Conde de Valença (Luís Leite Pereira Jardim), D. Francisco de Noronha, Damasceno Nunes, Eduardo Schwalbach, Fialho D’Almeida, Gervásio Lobato, Gomes de Brito, Guerra Junqueiro, Henrique Chaves, Henrique Lopes de Mendonça, Henrique Marques Junior, Júlio de Castilho, Júlio Rocha, Monteiro Ramalho, Padre Antônio de Almeida, D. João da Câmara, Maria Amália Vaz de Carvalho, entre outros. Cabe incluir, ainda, alguns intelectuais que fizeram parte da geração de 70, tais como: Guilherme Azevedo, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Teófilo Braga. Estes, como ressalta Alda Santos (2009, p. 7) utilizaram as páginas d’O Ocidente como verdadeiro

305 repositório de seus ideais de civilização, progresso, integridade social e de suas preocupações com as transformações moral, política e social de Portugal. Além disso, contava com a participação de ilustres desenhistas, gravadores, caricaturistas e pintores da época, como Manuel Maria Bordallo Pinheiro, Soares dos Reis, Silva Porto, Rafael Bordallo Pinheiro, Columbano Bordallo Pinheiro, Ernesto Condeixa, José Malhôa, Jorge dos Reis, Domingos Casellas Branco, Manoel Diogo Neto, entre outros. Neste sentido, a ideia de periódico ilustrado, popular, literário e instrutivo, focado na cultura portuguesa e “sem finalidade política” identifica-se diretamente com o jornal ilustrado O Panorama (1837), que, com o objetivo de trabalhar “para nos instruir e melhorar nossos costumes, aumentando a civilização nacional” (INTRODUÇÃO, 1837, p. 2), anunciado em sua primeira edição, tornou-se verdadeiro modelo para todas as demais publicações ilustradas portuguesas da época. Tal identificação de O Ocidente com esse jornal torna-se evidente no primeiro número da revista, quando Guilherme Azevedo, ao concluir sua “Crônica Ocidental”, faz referência ao jornal O Panorama, revelando que as pretensões da nova revista ilustrada permanecem as mesmas já reveladas pelo jornal ilustrado, lançado há mais de quarenta anos:

Em conclusão, a crônica não faz programa por que o Ocidente se impôs também, de caso pensado, esse preceito. O programa da primeira revista ilustrada portuguesa, foi escrito há quarenta e três anos. Sem mudança, duma vírgula podia-se hoje estampar no frontispício desta publicação, as nobres e singelas palavras com que se apresentava o Panorama. (AZEVEDO, 1878, p. 8).

Confirmando, ainda mais, esta intenção de O Ocidente, em ser tanto quanto possível semelhante a O Panorama, a revista traz como gravura, na página inicial do seu primeiro número, o retrato de Alexandre Herculano, símbolo do Portugal moderno e liberal, resistente ativo que ligava o compromisso cívico à criação literária (MARTINS, 2007, p. 100 apud SANTOS, 2009, p. 4), e redator-chefe responsável por esse jornal ilustrado até 13 de julho de 1839, quando sai da direção, mas permanece entre os seus principais colaboradores. Desta forma, O Ocidente, seguindo o exemplo do jornal O Panorama, postou-se como uma revista ilustrada de instrução que privilegiava os assuntos nacionais de modo a elevar a consciência dos seus leitores em relação a Portugal. Embora contasse, como mencionado, com colaboradores de diferentes posições ideológicas, muitos dos textos presentes na revista apresentavam uma linha tradicional e conservadora. Em suas páginas, sobressaía o culto à monarquia, a inclinação aos preceitos da religião católica, o incentivo à política imperialista e um discurso a favor da moral e da boa índole, em obediência aos costumes das famílias aristocratas da época. Para tanto, em seus artigos e gravuras procurava ser “sempre tão amena quanto útil e instrutiva de modo a

306 oferecer leitura prazerosa e moral, podendo entrar confiadamente no seio das famílias mais honestas” (O OCIDENTE, 30 dez. 1898, p. 8). Logo no seu segundo número, a revista publicou em sua página inicial um retrato do rei D. Luiz I, acompanhado pelo artigo “Sua majestade o Senhor D. Luiz I”, escrito por Ramalho Ortigão, no qual o autor exalta a monarquia portuguesa, em especial D. Luiz I, por sua atitude de complacência em comparação a outros governos despotistas da Europa: “A monarquia foi quase sempre servida em Portugal por uma raça de bons homens, que nunca, ou quase nunca, contribuíram com a sua ferocidade pessoal [...] O atual Soberano, o rei D. Luiz tem sabido manter como poucos a tradição dinástica da brandura.” (ORTIGÃO, 15 jan. 1878, p. 10). Ademais desse discurso, os membros da família real, seus compromissos e celebrações, eram sempre alvos de diversos artigos, notícias e gravuras publicados na revista. A inclinação da revista para os preceitos da religião católica pode ser constatada por meio das várias gravuras, homenagens, biografias e necrologias de homens ligados à vida clerical – missionários, padres, cônegos, bispos e o próprio papa –, por motivo de nomeações, realização de eventos religiosos importantes e falecimentos. Nas páginas da revista, ainda eram apresentadas notícias sobre romarias e festas religiosas, restauração de igrejas e inauguração de santuários. O intuito religioso sobressai-se, também, pela publicação de gravuras religiosas por ocasião das festas de Natal e Páscoa. No século XIX, a África foi alvo da expansão e colonização europeia. Para esse continente eram enviadas constantes expedições. Portugal, sobretudo depois que o Brasil tornou-se um país independente (1882), passou a interessar-se pelas colônias africanas, enviando grande número de expedições científicas e militares de modo a garantir suas possessões de terras africanas e assegurar um novo império. Esse projeto tornou-se o centro das ações do Estado e mobilizou a opinião pública, tornando a política imperialista o orgulho nacional, portanto, assunto de grande curiosidade e interesse por parte dos leitores da época. Pensando nisso, já no seu Prospecto, O Ocidente anunciava uma dedicação especial, por meio de textos e gravuras, à exploração portuguesa empreendida no interior da África: “[...] toda a importância científica e todo o aspecto pitoresco da aventurosa expedição geográfica, serão comemorados no Ocidente como um dos fatos mais saliente da moderna vida nacional [...]” (PROSPECTO, 1877, p. 4). Corroborando com essa ideia, já no Prospecto da revista é apresentada uma gravura com a imagem da catarata Blu-Blu, no ribeiro Água Grande em S. Thomé. No decorrer das publicações, a revista sempre trazia gravuras e textos sobre o povo e os costumes das tribos africanas, assim como sobre as intervenções materiais dos portugueses nas colônias e, em especial, notícias a respeito das novas expedições e dos

307 sucessos ou derrotas em terras africanas. O discurso empreendido nos textos que abordavam as questões africanas, na maioria das vezes, enaltece as ações dos portugueses na África, mostrando os benefícios dessas empreitadas para Portugal e para as próprias colônias. Além disso, apresentam os soldados expedicionários de modo idealizado, como verdadeiros heróis, descendentes dos grandes descobridores marítimos: “aparte o prestígio que os portugueses têm na África, a resistência, a sobriedade e a disciplina do soldado português não tem outra que se lhe compare, e é assim que o nosso exército hoje continua as tradições d’outros tempos que foram glória para Portugal.” (NOSSAS GRAVURAS, 10 set. 1902, p. 194). Desta forma, O Ocidente contribuiu para instruir o leitor sobre as políticas imperialistas, colaborando para o imaginário da época, de que uma das soluções para o desenvolvimento de Portugal estava nas suas colônias da África. Entre as seções presentes em O Ocidente destacam-se “Seção Nossas Gravuras” que apresentava gravuras e textos de conteúdos diversificados de grande interesse, a seção “Revista Política” e a “Questões Sociais”. Os assuntos mundanos, artísticos, políticos e referentes à sociedade eram tratados com graça e leveza na seção de mais destaque da revista, denominada “Crônica Ocidental”, que a acompanhou do primeiro ao último exemplar. A seção era assinada pelos diretores literários: Guilherme Azevedo foi o primeiro e publicou de 1878 a 1880, quando deixou a revista para viver em Paris como correspondente do jornal brasileiro A Gazeta de Notícias; assumiu seu posto o dramaturgo e jornalista Gervásio Lobato que permaneceu até sua morte em junho de 1895; coube então, o cargo a João da Câmara que lá colaborou até seu falecimento em dezembro de 1907, seguiu-se a ele Alfredo Mesquita (de 1908 a 1912) e Antônio Cobeira (de 1913 a 1915). Tal era a relevância e o prestígio de O Ocidente que, por diversas vezes, a revista foi premiada em exposições nacionais e internacionais importantes, tais como: menção honrosa, em 1878, na Exposição Universal de Paris; medalha de cobre na Exposição Industrial Portuguesa, em 1888; medalha de cobre na Exposição Internacional de Antuérpia, de 1894; diploma de honra na Exposição da Imprensa, em Portugal; medalha de cobre na Exposição Universal de Paris, de 1900; e o Grand-prix, nas exposições Universais de São Luiz, em 1904, e de Lovaina, em 1907. Em 10 de julho de 1915, dezoito edições após anunciar, em 10 de janeiro de 1915, renovações na parte artística, a introdução de novas seções como a de esporte e elegância e maior destaque para as colunas “Vida Teatral” e “Crítica de Livros”, assim como, dar ênfase para a divulgação de assuntos sobre a Grande Guerra, O Ocidente interrompe sua publicação sem dar em suas páginas qualquer tipo de informação e aviso sobre a sua interrupção. Alda Ribeiro (2009, p. 99), em seu estudo, afirma que, neste mesmo ano, em razão do crescimento do ativismo monárquico, O Ocidente foi indiciado pela prática de favorecimento, num pronunciamento contra a República e a revista obrigada a declarar sua

308 ideologia que afirmara ser neutra, como anunciara em seu Prospecto. Por isso, talvez um dos motivos de encerramento da publicação possa ter sido repressão política, mas em seu último número nenhuma pista é fornecida.

Referências

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CORREIA, Rita. Ficha Histórica - O Ocidente. Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro. Lisboa: Hemeroteca Municipal, 2012. Disponível em: . Acesso em: 5 jan. 2014.

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LOBATO, Gervásio. Crônica Ocidental. O Ocidente: Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro. Lisboa, 1 nov. 1883. p. 1. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2014.

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempo de República: São Paulo: Edusp, 2001.

NOSSAS Gravuras – Expedição Militar ao Barué. O Ocidente: Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro. Lisboa, 10 set. 1902. p. 2. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2014.

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ORTIGÃO, Ramalho. O Ocidente: Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro. Lisboa, 15 jan. 1878. p. 10. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2014.

PIRES, Daniel Brito Rebelo de Souza. Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1900 – 1940). Grifo: Editores e Livreiros, 1996.

PROSPECTO. O Ocidente: Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro. Lisboa, 1877. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2014.

ROCHA, Clara. As Revistas Literárias do Século XX em Portugal. Lisboa: Casa da Moeda, 1985.

SÁ, Maria da Graça Moreira. Guilherme Azevedo na Geração de 70. Lisboa: ICLP, 1986.

309

SANTOS, Alda Cristina Batista Rendilho dos. O Ocidente: imagens e representações da Europa. 2009. 161folhas. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Coimbra. Coimbra, 2009.

SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. 20 ed. Mem-Martins: Europa América, 1999.

TENGARRINHA, José. História da Imprensa Periódica Portuguesa. 2 ed. rev. e ampl. Lisboa: Portugália, 1989.

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REVISTA BRASILEIRA DE PSYCHANALYSE (1928): A PRIMEIRA TENTATIVA DE DIFUSÃO DE CIÊNCIA PSICANALÍTICA NO BRASIL

Roger Marcelo Martins GOMES1

Introdução

A Psicanálise no Brasil iniciou-se quase paralelamente às descobertas que Sigmund Freud vinha desenvolvendo na Europa. Ao longo do século XX, a Psicanálise brasileira sofreu percalços e expressou as vicissitudes do movimento psicanalítico brasileiro. Os avanços e recuos dessa ciência ocorrem em razão de uma vocação revolucionária no campo científico e profissional, a resistências do contexto social, político e econômico, assim como seus agentes ou ideias conservadoras. A Psicanálise tem especificidades e particularidades que fazem sua história ser muito mais diversificada, rica e múltipla. Riqueza que pode ser capitada e analisada com maior robustez e detalhes nos escritos, nos periódicos, nas obras impressas e publicadas pelo movimento psicanalítico, daí o nosso objetivo central em discutir as publicações dos psicanalistas durante as décadas de 1910 e 1920 e o destaque para a Revista Brasileira de Psychanalyse de 1928. Sabemos que, hoje, a importância da palavra impressa nos periódicos está plenamente assente, sobretudo a partir de 1985 (LUCA, 2008, p. 130), no entanto, a palavra imprensa científica ainda caminha a passos lentos na pesquisa brasileira, em especial nas ciências psi – Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. No início do século XX, em 1928, os entusiastas da Psicanálise, Franco da Rocha e Durval Marcondes, decidiram publicar o primeiro volume daquele que seria o principal e oficial veículo de divulgação da ciência psicanalítica no Brasil, a Revista Brasileira de Psychanalyse. Entretanto, sabemos que houve outras publicações sobre a Psicanálise antes da publicação da revista, mas não se tratavam de publicações que se propunham como veículo oficial e nacional da Psicanálise brasileira. Publicada a revista em 1928, seu principal idealizador, Durval Marcondes, envia um exemplar a Freud que a lê valendo-se de sua habilidade em língua espanhola. Entusiasmado, Freud envia uma carta parabenizando Durval Marcondes pela iniciativa e incentivando o desenvolvimento da Psicanálise brasileira.

1 Doutorando - Programa de Pós-Graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – Univ. Estadual Paulista, Campus de Assis – Av. Dom Antonio, 2100, CEP: 19806-900, Assis, São Paulo – Brasil. E-mail: [email protected]

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Semmering Villa Schüler 27-6-1928 Muito estimado colega. O aspecto da nova Revista Brasileira de Psicanálise muito me alegrou. Que um fecundo futuro lhe seja reservado! O efeito que se seguiu a essa remessa foi que eu comprei uma pequena gramática portuguesa e um dicionário alemão-português. Quero ver se com isso eu consigo ler, por mim mesmo, a revista, durante as férias. Com os agradecimentos e a saudação cordial do seu Freud (REVISTA..., 1967, p. 4).

Elogiada no meio psicanalítico, a carta de Freud a Durval Marcondes, um dos pioneiros da Psicanálise brasileira, não foi suficiente para dar fôlego a novas publicações. Desde o seu envio a Durval Marcondes, em 27 de junho de 1928, esse episódio é lembrado, relembrado e exaltado em publicações do meio psicanalítico.2 Galvão (1967), psicanalista, em seu artigo “Notas para a História da Psicanálise em S. Paulo” para o volume 1, nº 1 da Revista Brasileira de Psicanálise de 1967 ressalta como Freud, nesta carta, demonstra satisfação com a revista brasileira a ponto de motivá-lo a se iniciar no estudo da língua portuguesa. Podemos reafirmar essa ideia na obra do psicanalista Roberto Yutaka Sagawa sobre o pioneiro da Psicanálise, Durval Marcondes. Vejamos:

Nesta carta, o entusiasmo de Freud pela produção científica da Psicanálise no Brasil continuou firme e forte. Dessa vez, ele não somente tentou ler com seus conhecimentos do castelhano, mais foi comprar uma gramática e um dicionário para aprender o português. Isto não é pouco para o criador da Psicanálise que, nesse período, já se tornou muito ocupado e comprometido com o movimento psicanalítico internacional, sem contar a sua dedicação às questões pessoais e familiares dessa época. (SAGAWA, 2002, p. 29).

O valor dessa carta é tão significativo para o movimento psicanalítico que teve o privilégio de ser capa do volume 1, nº 1, da Revista Brasileira de Psicanálise em 1967, isto é, de sua segunda fase.

2 Podemos identificar este episódio em diversas publicações como: GALVÃO, L. de A. P. Notas para a História da Psicanálise em S. Paulo. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 1, n. 1. São Paulo: Editora Itacolomi S/A, 1967; MARTINS, C. Contribuição ao Estudo da História da Psicanálise no Brasil. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. X, n. 2. São Paulo: Rumo Gráfica Editora Ltda., 1976; PERESTRELLO, M. História da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro: suas origens e fundação. Organização de Marialzira Peretrello. Rio de Janeiro: Imago, 1987; SAGAWA, R. Y. Durval Marcondes. Rio de Janeiro: Imago Ed., Brasília, DF: CFP, 2002; OLIVEIRA, C. L. M. V. de. História da psicanálise – São Paulo (1920-1969). Trad. da autora. São Paulo: Escuta, 2005.

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Figura 1 – Capa da Revista Brasileira de Psicanálise3

O lugar de destaque dado à carta de Freud a Durval Marcondes na capa da Revista Brasileira de Psicanálise de 1967 legitima o primeiro passo para que esta Revista retome a posição de veículo oficial da Psicanálise no Brasil. A rememoração destas palavras, neste volume de 1967, reiniciaria o trabalho de divulgação da produção científica dos psicanalistas brasileiros por um veículo oficial e nacional e daria o ímpeto às novas publicações do movimento psicanalítico, diferente do ocorrido com a Revista Brasileira de Psychanalyse de 1928.

A Revista Brasileira de Psychanalyse teve vida curta e deixou de ser editada durante muitas décadas. Foi retomada somente em 1967, na segunda fase, quando finalmente se estabeleceu de forma sólida e contínua. (SAGAWA, 2002, p. 29).

Mesmo com tal apoio do fundador da Psicanálise – Sigmund Freud – a Revista Brasileira de Psychanalyse não teve continuidade depois de 1928. Mas, ela marcaria o desfecho de uma fase introdutória das ideias de Freud no Brasil? Poderíamos encontrar tal explicação na institucionalização da Psicanálise brasileira em meados do século XX. Entretanto, como se constituiu este processo de institucionalização inicial da Psicanálise brasileira? É o que tentaremos responder neste curto espaço proporcionado pelo artigo, pois essas questões merecem ser sistematicamente pesquisadas por historiadores e psicanalistas interessados na História da Psicanálise Brasileira, especialmente a respeito do

3 No relançamento da Revista Brasileira de Psicanálise, em 1967, vol. 1, n. 1, inseriu-se a imagem da carta original que Freud enviou a Durval Marcondes. A publicação da Revista tornou-se trimestral, dessa forma, no ano de 1967, ano do volume 1, publicou-se, na sequência, os números 2, 3 e 4.

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que foi publicado cientificamente. É preciso superar essa lacuna que se apresenta com frequência na pequena bibliografia sobre o tema.

A Psychanalyse brasileira

Para entendermos como foi o lançamento e, sobretudo, a não continuidade da publicação da Revista Brasileira de Psychanalyse a partir de 1928, percebemos a necessidade de demonstrar as principais discussões e publicações das ideias, das teorias ou de projetos psicanalíticos durante os primeiros passos que a jovem ciência de Freud tomava no Brasil durante as décadas de 1910 e 1920, quando da institucionalização da Psicanálise brasileira e os reveses que essa jovem ciência sofreu em seu início no Brasil. Um dado interessante a perceber – no que se tem publicado sobre o início da Psicanálise no Brasil pelos psicólogos e, em especial, pelos psicanalistas – é quem realmente iniciou a teoria de Freud e suas discussões e publicações em terras brasileiras. O debate por esse mérito se dá entre psicanalistas de São Paulo e Rio de Janeiro.4 Para além desse debate, nos limitaremos, aqui, em descrever quais publicações foram feitas entre as décadas de 1910 e 1920 que colaboraram para a institucionalização da Psicanálise no Brasil e qual o papel de destaque da Revista Brasileira de Psychanalyse neste processo. Encontramos, no debate historiográfico sobre o início do movimento psicanalítico brasileiro, uma polêmica em torno da diferença entre precursores e pioneiros das primeiras citações, referências, palestras e publicações sobre a Psicanálise no Brasil. Os precursores eram os estudiosos da teoria psicanalítica comumente médicos e psiquiatras que estudavam e enfatizavam o tema sexualidade e ficavam, portanto, mais no plano teórico e especulativo, ao passo que os pioneiros já se interessavam pela prática clínica e a formação didática do psicanalista. Entre os precursores da Psicanálise, podemos destacar Juliano Moreira, Franco da Rocha e Genserico de Souza Pinto. Durante os anos 1910 termina o período de isolamento de Freud, isto é, período em que Freud ainda erguia as bases de sua jovem ciência. Passado esse período, foi se criando um sistema e uma estrutura independente da Psicanálise em torno de Freud e seus discípulos vienenses e outros europeus. O primeiro passo foi a fundação da Sociedade de Psychanalyse de Viena e depois foram criando algumas Sociedades em Budapeste, Zurich e Londres. Esse fenômeno também se desenvolveu no Brasil, mas mais tardiamente, na década de 1920.

4 GALVÃO, L. de A. P. Notas para a História da Psicanálise em S. Paulo. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 1, n. 1. São Paulo: Editora Itacolomi S/A, 1967; MARTINS, C. Contribuição ao Estudo da História da Psicanálise no Brasil. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. X, nº 2. São Paulo: Rumo Gráfica Editora Ltda. 1976; PERESTRELLO, M. História da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro: suas origens e fundação. Organização de Marialzira Peretrello. Rio de Janeiro: Imago, 1987; SAGAWA, R. Y. Durval Marcondes. Rio de Janeiro: Imago Ed., Brasília, DF: CFP, 2002; OLIVEIRA, C. L. M. V. de. História da psicanálise – São Paulo (1920-1969). Trad. da autora. São Paulo: Escuta, 2005.

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No Brasil, durante a década de 1910, muito influenciada pela Psiquiatria, a Psicanálise era apenas citada ou era referência de trabalhos de médicos psiquiatras. Juliano Moreira, inovador da Psiquiatria no Brasil, refere-se, em 1899, em sua cátedra na Faculdade de Medicina em Salvador, às ideias e aos artigos científicos de Freud. Fortemente influenciado pela cultura germânica, foi-lhe fácil conhecer no original as primeiras obras psicanalíticas. Em 1914, faz uma comunicação à Sociedade Brasileira de Neurose sobre o método de Freud (PERESTRELLO, 1987, p. 13). Em dezembro deste mesmo ano, Genserico de Souza Pinto, médico cearense, defende a tese de doutorado Da Psicanálise – A sexualidade nas neuroses”. Para Lourenço Filho, pedagogo também envolvido com a Psicanálise, a tese de Genserico foi o primeiro trabalho psicanalítico escrito em língua portuguesa (PERESTRELLO, 1987, p. 14). No Rio de Janeiro, Antonio Austregésilo, presidente da Academia Nacional de Medicina, escreveu vários livros importantes e reconhecidos na área da neurologia. A psicanalista Marialzira Perestrello, em seus estudos sobre as origens da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, aponta que a obra de Austregésilo não possuía profundidade de conhecimento sobre a teoria de Freud, como era o seu conhecimento sobre neurologia. A esse respeito, a autora relata:

Verifiquei que Austregésilo, desde 1916 – portanto, antes de Franco da Rocha e Medeiros e Albuquerque -, dedicava linhas e mesmo umas poucas páginas a algumas ideias de Freud. Não encontrei, entretanto, em Pequenos males, Erros de amor, Cura dos nervosos e Psicanálise da sexualidade, qualquer exposição sistemática da teoria psicanalítica, como o fizeram os dois precursores, por último citados; deu-me a impressão que pouco leu Freud de primeira mão. (PERESTRELLO, 1987, p. 16-17).

O interesse sobre a teoria psicanalítica cresce ao final da década de 1910. Em 1919, o professor Francisco Franco da Rocha, em sua cátedra na Faculdade de Medicina de São Paulo, fez uma conferência didática intitulada “Do delírio em geral”, na qual demonstra a importância das ideias de Freud para se entender o sonho, o delírio e a criação artística. Essa preleção foi publicada, posteriormente, no jornal O Estado de S. Paulo, em 20 de março de 1919. Nesta época, a Psicanálise encontrou muita resistência dos médicos, especialmente de psiquiatras, tanto na Europa quanto no Brasil, mas também houve aqueles que apoiaram e se manifestaram publicamente a favor da Psicanálise, papel assumido por Franco da Rocha.

Mais ainda, Franco da Rocha não foi um simples divulgador da Psicanálise. Ele deu um lugar central à Psicanálise como sendo um avanço terapêutico e científico de sua época, tanto é que introduziu a doutrina freudiana nas suas aulas. Na aula inaugural de 1919, demonstrou uma compreensão muito depurada da Psicanálise como ruptura do normal e do patológico que foi explicitada pela analogia dos dois modelos: o patológico (delírio) e o normal (sonho). (SAGAWA, 2002, p. 16).

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Somada ao peso de sua autoridade científica e profissional, sua crítica intelectual sobre a Psiquiatria e Psicanálise motivou-o, em 1920, a escrever e publicar o livro A doutrina pansexualista de Freud, intitulada posteriormente, em 1930, de A Doutrina de Freud – Resumo geral indispensável para a comprehensão da psicoanalise. Nesta obra, Franco da Rocha faz uma espécie de interpretação livre da teoria psicanalítica, adaptando a teoria para leitores do ponto de vista dos preconceitos morais e religiosos da época. (SAGAWA, 2002, p. 16). Uma figura notória marcou a Psicanálise brasileira, Medeiros e Albuquerque, político que apoiara a Campanha Civilista em 1910 e durante o governo de Hermes da Fonseca se autoexilou na Suíça, teve contato mais próximo com as ideias de Freud, leu, por exemplo, A Interpretação do Sonhos em inglês e, provavelmente, outras obras em alemão (MARTINS, 1976, p. 292). Além de político, era jornalista e presidente da Academia Brasileira de Letras, proferiu na Policlínica do Rio de Janeiro, sob os auspícios da Sociedade de Neurologia e Psiquiatria, uma conferência intitulada “Psicologia de um Neurologista – Freud e suas Teorias Sexuais” que foi na época muito valorizada e elogiada. Publicada em 18 de novembro de 1919, nos Arquivos Brasileiros de Medicina, foi traduzida para o espanhol e também publicada no jornal argentino conhecido como Semana Médica de Buenos Aires, e chegou até Freud. Cyro Martins, Analista-Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, que defende a posição precursora de Medeiros e Albuquerque na Psicanálise brasileira exalta em seu texto “Contribuição ao Estudo da História da Psicanálise no Brasil” – no V Congresso Brasileiro de Psicanálise de 1975 e na Revista Brasileira de Psicanálise de 1976 – o elogio que Freud faz ao texto de Medeiros e Albuquerque.

Ignoro como essa tradução chegou até Freud, que a leu e escreveu ao autor agradecendo-lhe e louvando o seu trabalho. Freud dirigiu-se a Medeiros e Albuquerque em inglês... Ei-lo: “...as kind as it is clever and that I have to thank you for the soul of your writing as for the body of it.” (“… de tanta qualidade e inteligência que tenho que agradecer-lhe pela alma e pelo corpo de seu trabalho.”). (MARTINS, 1976, p. 290).

Essa famosa conferência de Medeiros e Albuquerque de 1919 foi republicada mais tarde, 1922, como capítulo de seu livro Graves e Fúteis. Elogiada pelos psicanalistas, tornou-se, no final do século XX, motivo de debate no Movimento Psicanalítico sobre quem seria o precursor da primeira publicação sistemática da teoria freudiana. Para Cyro Martins, a conferência de Medeiros e Albuquerque foi, com certeza, a primeira publicação.

Creio que, sem dúvida, esta conferência de Medeiros e Albuquerque constitui a primeira exposição sistemática, fiel aos seus princípios básicos, que se fez no Brasil sobre Psicanálise. Pensei, que este momento, o do V Congresso Brasileiro de Psicanálise, ocorrendo 56 anos depois daquela conferência, seria propício para evocar a página admirável e pioneira do autor de “Graves e Fúteis”, que li com os meus amigos Mário e Lino, há 47 anos, sob a emoção jovem de que se deslumbra com a luz de novos

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caminhos. Conclusão: essa conferência merece ser publicada com destaque na “Revista Brasileira de Psicanálise” (MARTINS, 1976, p. 292).

Marialzira Perestrello reconhece a seriedade de postura de Medeiros e Albuquerque, afirma que ele possui uma compreensão profunda sobre a obra de Freud, como é possível verificar em sua obra Hipnotismo, de 1923. Entretanto, essa psicanalista, não defende que a conferência de 1919 seja a primeira sistematização e instituição da Psicanálise no Brasil e, dessa forma, se contrapõe claramente a Cyro Martins.

Tenho de divergir de Cyro Martins quanto ao fato de considerar a conferência de Medeiros e Albuquerque “a primeira exposição sistemática, fiel a seus princípios básicos, que se fez no Brasil sobre Psicanálise”, pois, como citou Almeida Prado Galvão, Franco da Rocha fez uma palestra de conteúdo psicanalítico e publicou-a em março de 1919. Mais ainda, comprovei no livro Doutrina de Freud terem sido várias as palestras para os alunos durante esse ano. Ora, a conferência de Medeiros e Albuquerque foi proferida somente em novembro de 1919. Assim, é indiscutível que Franco da Rocha, em São Paulo, precedeu a Medeiros e Albuquerque, no Rio. (PERESTRELLO, 1987, p. 15).

Ultrapassando e desfazendo o limite entre precursores e pioneiros, a relevância de dois médicos psiquiatras para a institucionalização da Psicanálise brasileira tornou-se inquestionável, trata-se de Júlio Pires Porto-Carrero e Durval Bellegarde Marcondes. Porto- Carrero foi, indiscutivelmente, o que mais publicou obras sobre a Psicanálise no Brasil durante a década de 1920; Durval Marcondes, formado médico em 1924, deu os passos fundamentais para a criação da primeira Sociedade Brasileira de Psychanalyse e a Revista Brasileira de Psychanalyse. Da forte produção de Porto-Carrero sobre Psicanálise entre os anos de 1924 e 1929 podemos citar: trabalho sobre Monoplegia histérica curada pelo método de Freud (1924), Caso de sinistrose tratado pela Psicanálise (1924), Aspectos clínicos de Psicanálise (1925), Educação e Psicanálise (1926), Contra o Alcoolismo pela Psicanálise (1927), Variações sobre o Narcisismo (1927), O caráter escolar segundo a Psicanálise (1927), prefácio para o livro A Psicanálise da Educação (1927) de Deodato Moraes, Conceito e História da Psicanálise (1928), O Ponto de Vista Metapsicológico (1928), Da conjugação dos símbolos (1928), Conceito Psicanalítico da Pena (1928), Psicanálise e Aplicações Médico-Legais (1929). Porto-Carrero também escreveu e continuou publicando muito durante a década de 1930, mas seu tema central passa ser a questões implicadas ao Direito a partir da Psicanálise. A contribuição de Porto-Carrero à institucionalização da Psicanálise brasileira é indiscutível, não se pode esquecer que em maio de 1924 ele criou a clínica psicanalítica na Liga Brasileira de Higiene Mental no Rio de Janeiro. Verificamos que Porto-Carrero é tema específico de pesquisas sobre a História da Psicanálise. Carmem Lucia Montechi

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Valladares, em A historiografia sobre o movimento psicanalítico no Brasil (OLIVEIRA, 2002, p. 144-153), homenageia o psiquiatra Júlio Pires Porto-Carrero por ser o iniciador da historiografia da psicanálise no Brasil ao apresentar no Relatório da Secção de Psicanálise, durante o III Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal de 1929, o texto “Contribuição Brasileira à Psicanálise”.

O Relatório de 1929, escrito em estilo positivista típico da época, registra exclusivamente os acontecimentos que marcaram os primeiros 15 anos de difusão das teses freudianas no Brasil. Através dele ficamos sabendo que elas circularam por alguns dos principais centros urbanos do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Porto Alegre, com ecos chegando a Vitória no Espírito Santo. (OLIVEIRA, 2002, p. 145).

Para Oliveira (2002), o Relatório de 1929 é um texto de referência obrigatória para o trabalho historiográfico da Psicanálise, importante para entendermos os anos entre 1915 e 1937, época, para ela, da recepção e difusão das ideias psicanalíticas. Por outro lado, a preocupação com a divulgação das ideias psicanalíticas e os passos efetivos para a institucionalização da Psicanálise brasileira teriam sua gravitação em São Paulo, em torno da luta e da história de vida de Durval Marcondes. Para Sagawa (2002), Durval Marcondes foi o pioneiro, o bandeirante da Psicanálise brasileira.

Tudo começou com a leitura de artigo no jornal O Estado de S. Paulo sobre sonhos, feita por um estudante de Medicina. O artigo “Do delírio em geral”, do professor Francisco Franco da Rocha, foi publicado em 20 de março de 1919 e extraído da aula inaugural de sua cátedra na Faculdade de Medicina de São Paulo. O estudante era Durval Bellegarde Marcondes, em seu primeiro ano acadêmico.(SAGAWA, 2002, p.15).

Em 1924, Durval Marcondes tornou-se médico e já tinha definido seu interesse profissional e científico: a clínica psicanalítica. Abriu seu consultório particular e começou a aplicar de forma autodidática a Psicanálise. Mariazilra Perestrello, no entanto, contraria essa posição e argumenta: “Pensou ele ter sido o primeiro a ter essa iniciativa, mas minhas pesquisas levaram-me a poder afirmar ter sido Porto-Carrero” (PERESTRELLO, 1987, p. 14). E, mais adiante, segue defendendo a iniciativa clínica de Porto-Carrero, em 1924: “Em maio cria-se a clínica psicanalítica na Liga Brasileira de Higiene Mental. Teria sido ele chefe? Não consegui a informação” (PERESTRELLO, 1987, p. 14). Refutando este tipo de informação sem fonte e evidência histórica, Sagawa (2002) reafirma a primazia de Durval Marcondes na clínica psicanalítica brasileira:

Exceto evidência histórica contrária a essa constatação, o consultório particular de Durval Marcondes constituiu-se na primeira clínica psicanalítica no Brasil e, quem sabe, na América Latina. Além do mais, teve longevidade, sem qualquer interrupção, num período em que não teve pares e lutou muito pouco para manter ativa sua clínica e conquistar credibilidade

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científica/profissional, no contexto local e internacional. (SAGAWA, 2002, p. 18).

A concepção de Psicanálise de Durval Marcondes não se reduziu a uma mera especialização terapêutica, estava também inserida em diferentes esferas além da terapêutica: estética, ética, cultura e arte faziam parte de seu repertório. Em 1926, ao concorrer a uma vaga da cadeira de Literatura no Ginásio do Estado, defendeu a seguinte tese: O symbolismo esthetico na literatura. Ensaio de uma orientação para crítica literária, baseada nos conhecimentos fornecidos pela Psychanalyse. Durval Marcondes não venceu o concurso, mas este trabalho foi elogiado pelo pai da Psicanálise em carta de 18 de novembro de 1926. Podemos perceber que, de 1924 até a fundação da Revista Brasileira de Psychanalyse em 1928, o que fora escrito e publicado pelos psicanalistas brasileiros também estava inserido numa cultura letrada, aspecto rico e relevante capitado por estes psicanalistas numa época em que Freud ainda estava construindo, avaliando e reavaliando suas obras. Neste contexto, além de Porto-Carrero e Durval Marcondes, podemos apontar que outras obras de psicanalistas iniciavam a Psicanálise e expandiam-na para outras regiões do Brasil. José César de Castro, presidente e fundador da Academia Rio-Grandense de Letras, em 1924, defendeu tese de doutorado em Medicina intitulada Concepção Freudiana das Psiconeuroses. Outro gaúcho que contribuiu para o início da Psicanálise no Rio Grande do Sul foi Martin Gomes que, em 1928, chegou a publicar na França seu trabalho “Les Rêves”. Na Bahia, além da figura notória de Juliano Moreira, encontramos o médico-legista Arthur Ramos que teve produção considerável sobre Psicanálise. Em 1925, Arthur Ramos defendeu sua tese de doutoramento em Medicina Primitivo e Loucura, que foi premiada em revistas estrangeiras e elogiada por Freud (PERESTRELLO, 1987, p. 14). Considerando elementos da cultura brasileira, publicou “Augusto do Anjos à Luz da Psicanálise”. No meio médico em São Paulo, outro também considerado precursor da Psicanálise foi Osório Cesar que, envolvido por questões culturais, escreveu: A arte primitiva nos alienados (1925), Contribuição ao estudo do simbolismo místico nos alienados (1927) em colaboração com J. Penido Monteiro, Sobre dois casos de estereotipia gráfica com simbolismo sexual (1928) em colaboração com Durval Marcondes e A expressão artística nos alienados (1929). Durante os anos 20, Freud enfrentava dissidências de alguns de seus discípulos como Adler, Stekel e Jung, o que o levou a recrudescer a Psicanálise freudiana e manter a centralidade da International Psychoanlytical Association (IPA), diante das tentativa dos seus ex-discípulos em fundar outras associações, escolas e instituições. No Brasil, Durval

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Marcondes permaneceu fiel ao grupo freudiano e buscava congregar aliados para a fundação da Sociedade Brasileira de Psychanalise nos moldes da IPA. Esta futura instituição psicanalítica teria o objetivo de proporcionar os estudos da teoria freudiana e fazer a divulgação dessas ideias no Brasil. Em 24 de outubro de 1927, fundou-se finalmente a Sociedade Brasileira de Psychanalyse.

Na reunião inaugural, foi eleita a seguinte diretoria provisória: presidente, Prof. Dr. Francisco Franco da Rocha; vice-presidente, Prof. Dr. Raul Briquet; secretário, Dr. Durval Marcondes; tesoureiro, Prof. Lourenço Filho. Inscreveram-se 24 sócios e, entre eles, diversos professores universitários (Flamino Favero, A. de Sampaio Dória), médicos psiquiatras (James Ferraz Alvim, Pedro de Alcântara, Osório César, A. de Almeida Júnior etc.) e intelectuais (Menotti del Picchia, Cândido Motta Filho). (SAGAWA, 2002, p. 27).

Se para Galvão (1967) este primeiro grupo atuava na realização de sessões científicas, nas quais foram lidos e discutidos trabalhos de Franco da Rocha, Durval Marcondes e outros autores (GALVÃO, 1967, p. 50), para Sagawa (2002), além de buscar atender seus objetivos para o fortalecimento da Psicanálise, a Sociedade Brasileira de Psychanalyse, tornou-se um centro de acontecimentos sociais.

Foram realizadas algumas palestras pela Sociedade, as quais adquiriram a feição de um verdadeiro “acontecimento social” por serem bem frequentadas por figuras notórias da “sociedade” local. Safam estampados comentários e fotos numa revista da moda, Vanitas, “uma revista chic da época, juma espécie de página de hoje (no jornal Folha de S. Paulo, no caderno Folha Ilustrada) do Tavares Miranda”, segundo Durval Marcondes (depoimento de 12/11/1976). Entre inúmeros frequentadores, podem ser citados: Olívia Guedes Penteado, Tarsila do Amaral, Pepita Guedes Nogueira, dona Noêmia Nascimento Gama (grande declamadora de versos), Sr. e Sra. Benjamim Pereira. (SAGAWA, 2002, p. 27).

Buscando um passo a mais para que Psicanálise abrangesse todo o país, em março de 1928, Durval Marcondes foi incumbido de ir ao Rio de Janeiro, capital da República, para fundar uma Sociedade semelhante à de São Paulo. Em 17 de junho de 1928, reunião sediada no Hospital Nacional de Psicopatas, foi fundada a Sociedade Brasileira de Psychanalyse do Rio de Janeiro. Juliano Moreira foi eleito presidente e Porto-Carrero o secretário-geral dessa que seria a entidade nacional da Psicanálise brasileira. Interessante que esta primeira Sociedade foi reconhecida pela IPA no II Congresso Internacional de Oxford e mesmo assim teve duração efêmera. Várias são as razões para o malogro dessa Sociedade, talvez as mesmas que levaram a não continuidade da publicação da Revista Brasileira de Psychanalyse de 1928. Diante de uma considerável publicação de obras sobre a Psicanálise no Brasil desde a década de 1910, da fundação da Sociedade Brasileira de Psychanalyse de São Paulo e

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da Sociedade Brasileira de Psychanalyse do Rio de Janeiro, urgia a criação de um veículo nacional e oficial que pudesse ser a expressão das ideias do primeiro grupo do Movimento Psicanalítico brasileiro. Um grande marco de importância histórica das atividades científicas deste primeiro grupo psicanalítico foi a publicação, em 27 de junho de 1928, da Revista Brasileira de Psychanalyse. A importância deste veículo de expressão científica foi apreendida por Durval Marcondes, seu principal inspirador (GALVÃO, 1967, p. 50). Vejamos o fac-símile que foi cuidadosa e privilegiadamente colocado na quarta página do volume 1 nº 1 da Revista Brasileira de Psicanálise de 1967:

Figura 2 – Imagem da Capa da Revista Brasileira de Psychanalyse de 19285

Notem que, como dissemos, nessa Revista há um valor dado a temas e questões ligadas à cultura, educação e literatura clássica por seus colaboradores em seus artigos, conforme era a tendência da produção e publicação de trabalhos na década de 1920. Encontramos nela, os principais precursores e pioneiros da Psicanálise no Brasil – Franco da Rocha, J. Ralph, Porto-Carrero, Paulo José de Toledo e o próprio Durval Marcondes. Para dar legitimidade e continuidade à Revista, era preciso garantir o apoio do meio médico e psiquiátrico da época, dessa forma, nada melhor que dar um espaço privilegiado a uma das maiores autoridades do meio psiquiátrico, Franco da Rocha, que publicou dois artigos “A psychologia de Freud” e “Os mythos e lendas na loucura”, além de ter na seção

5 Retiramos esta imagem da capa da Revista Brasileira de Psychanalise do fac-símile apresentado na página 4 do vol. 1 nº 1 da Revista Brasileira de Psicanálise de 1967.

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“Noticiário”, o resumo de sua palestra proferida durante a criação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Acha o ilustre psychiatra que aplicação therapeutica da psychanalyse apresenta ainda entre nós innumeras dificuldades de ordem pratica, porque suas vantagens ainda não foram bem apprehendidas pela opinião publica, para a qual os factos psychicos de natureza sexual não podem ser expostos abertamente. Esse preconceito prejudica inteiramente o trabalho clinico, principalmente quando se trata de pacientes de sexo feminino. Entende, porém, que já é bem tempo de se fazer uma propaganda mais intensa dos princípios psychanalyticos nas suas múltiplas aplicações, devendo-se procurar interessar sobretudo a classe dos professores. (REVISTA..., 1928, p.109 apud SAGAWA, 2002, p. 27).

Encontramos, neste trecho da palestra de Franco da Rocha, claros sinais da dificuldade de se promover a Psicanálise na realidade brasileira, ele convoca até outros profissionais, como os professores, a participarem desta divulgação, entretanto a Revista Brasileira de Psychanalyse não resistiria aos obstáculos de nossa realidade, assim como a Sociedade Brasileira de Psychanalyse do Rio de Janeiro. O que impediria a continuidade da publicação da Revista de 1928 e da Sociedade na década seguinte? Podemos citar, conforme historiografia sobre o tema, alguns fatores dessas dificuldades de divulgação e recepção da Psicanálise no Brasil que, por conseguinte, implicaram na não continuidade da publicação da Revista de 1928.6 O primeiro, encontramos na própria análise de Franco da Rocha, Durval Marcondes e demais psicanalistas que enfrentam a religiosidade católica e moral conservadora da sociedade brasileira. Franco da Rocha fala da proibição moral feita pela Igreja Católica sobre qualquer referência à sexualidade que não seja em termos estritamente religiosos (SAGAWA, 2002, p. 19). Um outro obstáculo vinculado ao primeiro é a resistência encontrada no meio médico psiquiátrico e no público leigo às chamadas verdades científicas da Psicanálise. Porto- Carrero, em 1925, nos dá uma ideia de como era recebida a Psicanálise na época.

Entre nós... quando um médico se propõe ao emprego de métodos psicanalíticos, encontra, via de regra, da parte do doente e sua família, quando não ignorância sobre o que seja a filosofia de Freud, pelo menos certa repugnância fundada sobre errôneos conceitos. (PERESTRELLO, 1987, p. 31).

As ideias de Freud foram encaradas, pelo meio médico, de forma maniqueísta ou simplista, por uns (um pequeno grupo) a Psicanálise era idealizada como uma Ciência, por outros como algo inconsistente e charlatanesco. No meio social e intelectual, evidenciava-se

6 Apresentados de forma superficial e lacunar pelas referências que citamos neste artigo, os fatores da interrupção da publicação da Revista merecem passar por uma investigação mais aprofundada em outro momento de pesquisa que permita um espaço maior de análise em razão da complexidade que o tema demonstra.

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igualmente uma divisão. Nos anos 20, quando se deu a Semana da Arte Moderna de 1922, fervilhavam ideias de mudanças. Quando a tendência era de contestação, desafio e audácia, as ideias de Freud foram aceitas como modernas e avançadas, mas eram rejeitadas como algo imoral pelo restante da sociedade que queria conservar a todo custo sua Belle Époque. O obstáculo que, sem dúvida, mais sistematicamente levou a não continuidade da Revista de 1928 foi a reduzida determinação do primeiro grupo de psicanalistas em mantê-la objetivamente com a vendagem, financiamentos, logística, muitas vezes essas atividades ficaram às expensas de Durval Marcondes (MOKREJS, 1993, p. 9). Esse fator pode ser corroborado pelo apontamento de Sagawa (2002) sobre o interesse dos médicos psiquiatras membros da Sociedade Brasileira de Psychanalyse.

Depois de ter sido fundada há dois anos, a Sociedade Brasileira de Psychanalyse não recebeu apoio significativo de médicos. É indício ilustrativo dessa constatação um artigo jornalístico, publicado pelo Diário da Noite, em primeira página, no dia 11 de março de 1929. O título deste artigo já diz quase tudo sobre seu conteúdo: “A psychanalyse não tem merecido em São Paulo o merecido apoio”. (SAGAWA, 2002, p. 31).

Entretanto, a não continuidade da Revista e da Sociedade não impediu a expansão, institucionalização e produção de obras que tratavam de métodos, técnicas e regras da Psicanálise como Ciência no Brasil. Entre as décadas de 1930 e 1960, houve muitas publicações, conferências, encontros que dariam lastro para uma futura republicação da Revista. Mesmo Durval Marcondes, durante este período, não deixou de publicar, sem contar que estava mais envolvido e preocupado com a formação do psicanalista nos moldes da IPA aqui no Brasil. Durval publicou muito em Revistas Médicas, divulgando a Psicanálise no meio mais resistente, até ser relançada a Revista Brasileira de Psicanálise em 1967.

Considerações finais

Delineado o primeiro momento, décadas de 1910 e 1920, da introdução e afirmação das ideias freudianas no Brasil e apontado o conjunto de obras impressas e publicadas que se referenciavam a essas ideias, nesse período, identificamos que as primeiras inciativas de discussão, debate e produção do primeiro grupo de estudiosos eram, na verdade, iniciativas isoladas de divulgação dos temas psicanalíticos, traziam as marcas da espontaneidade e das tendências pessoais dos seus autores que, muitas vezes, iam além do que o pai da Psicanálise propunha (MOKREJS, 1993, p. 9). Elizabete Mokrejs (1993), psicanalista, pedagoga, filósofa e historiadora da Educação e Psicanálise, confirma essa ideia da seguinte forma:

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A difusão das ideias psicanalíticas se fez, de modo geral, por profissionais isolados, pertencentes à área médica. Seu interesse pelo assunto levou-os à procura dos textos originais ou traduzidos, conforme as contingências pessoais de cada um, pois raros eram os textos disponíveis para a aquisição no país. As comunicações dos estudiosos do assunto centravam- se na área terapêutica e, em alguns casos, tangenciavam questões de domínio público conforme atestavam os movimentos na área de higiene mental. (MOKREJS, 1993, p. 10).

Para Mokrejs (1993), a divulgação das ideias psicanalíticas teve, nesse primeiro momento, caráter descritivo e explicativo ao lado de uma ênfase terapêutica e moral (MOKREJS, 1993, p. 15), mas também percebemos que o conjunto de obras produzidas e publicadas neste período buscava temas da Educação e Cultura para discutir e afirmar a prática científica psicanalítica. O coroamento desta particularidade na produção científica do conhecimento psicanalítico brasileiro se deu em 1928, com publicação da Revista Brasileira de Psychanalyse. Para confirmar este marco na institucionalização da Psicanálise brasileira, relembremos os artigos publicados na Revista pelos seus colaboradores: “A psychologia de Freud” e “Os mythos e lendas na loucura” de Franco da Rocha; “Os nossos medos secretos” de J. Ralph; “O caracter do escolar segundo a psychanalyse”, de Porto Carrero; “Um ‘sonho de exame’. Considerações sobre a ‘Casa de Pensão’ de Aluizio Azevedo”, escrito por Durval Marcondes; e “Brutos. Considerações psychanalyticas em torno de um facto histórico”, de Paulo José de Toledo. A Revista Brasileira de Psychanalyse de 1928 ocupa, portanto, um lugar fundamental na institucionalização da Psicanálise brasileira em seus primórdios, por isso sua importância deve ir além de ligeiras citações na historiografia sobre o tema, deve ser afirmada no contexto das vicissitudes do Movimento Psicanalítico. Ela culminou o caminho que a Psicanálise brasileira percorreu nas décadas de 1910 e 1920, portanto, a não continuidade da Revista, depois de 1928, não pode ser considerada um malogro da iniciativa dos entusiastas da Psicanálise, mas uma interrupção deste veículo de expressão do Movimento Psicanalítico brasileiro que voltaria revigorado e estruturado em 1967.

Referências

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LUCA, Tânia Regina de. Fontes Impressas In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.) Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 130.

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MARTINS, Ciro. Contribuição ao Estudo da História da Psicanálise no Brasil. Revista Brasileira de Psicanálise, vol. X, n. 2. São Paulo: Rumo Gráfica Editora Ltda., 1976.

MOKREJS, Elizabeth. A Psicanálise no Brasil – As origens do Pensamento Psicanalítico. Petrópolis: Vozes, 1993.

OLIVEIRA, Carmen Lucia. Montechi. Valladares de. A historiografia sobre o movimento psicanalítico no Brasil. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. V, n. 3, sept. 2002.

OLIVEIRA, Carmen Lucia Montechi Valladares de. História da psicanálise – São Paulo (1920-1969). Trad. da autora. São Paulo: Escuta, 2005.

PERESTRELLO, Marialzira. História da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro: suas origens e fundação. Organização de Marialzira Perestrello. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE. Vol. 1, n. 1, São Paulo: Editora Itacolomi S/A, 1967.

SAGAWA, Roberto Yutaka. Durval Marcondes. Rio de Janeiro: Imago; Brasília, DF: CFP, 2002.