Cadernos de Arte e Antropologia

Vol. 3, No 1 | 2014 O documentário como contraponto as counterpoint

Édition électronique URL : http://journals.openedition.org/cadernosaa/196 DOI : 10.4000/cadernosaa.196 ISSN : 2238-0361

Éditeur Núcleo de Antropologia Visual da Bahia

Référence électronique Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 3, No 1 | 2014, « O documentário como contraponto » [En ligne], mis en ligne le 01 avril 2014, consulté le 28 mai 2020. URL : http://journals.openedition.org/ cadernosaa/196 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cadernosaa.196

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© Cadernos de Arte e Antropologia 1

SOMMAIRE

Dossiê "O documentário como contraponto: Opções antropológicas e artísticas no tratamento criativo da realidade"

Tramas Criativas (ou o que não nos deixam ver as imagens) Humberto Martins et Sofia Sampaio

Artigos

O documentário longitudinal: a importância de filmar com tempo Amaya Sumpsi

“Insomnolências” e notas de campo do filme “P’ra Irem P’ró Céu” Pedro Antunes

So, what do we talk about? O discurso político e a imagem corpórea em «Thierry» Rodrigo Lacerda

Os Últimos Pioneiros: Memórias de um ritual Daniela Rodrigues

Films, terrains et anthropologie: à propos d’images et d’écrits Fabienne Wateau

Artigos

O sentido da etnografia fílmica compartilhada de em “Crônicas de um verão” Rodrigo Oliveira Lessa

Entre escalas: sobre as relações espaciais na obra de Oiticica Andrei Mikhail Zaiatz Crestani

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Humberto Martins and Sofia Sampaio (dir.) Dossiê "O documentário como contraponto: Opções antropológicas e artísticas no tratamento criativo da realidade" Special issue "Documentary film as counterpoint"

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Tramas Criativas (ou o que não nos deixam ver as imagens)

Humberto Martins e Sofia Sampaio

Texto e imagem: complementaridades

1 Qual trama de um tear que esconde do lado avesso pontas soltas e fios emaranhados, os filmes escondem textos, etapas, escolhas, desejos, impulsos, verdades, ficções – numa palavra, escondem „autores“; ou, se preferirmos, revelam-nos sombras, rastos, fragmentos de homens e mulheres em processo de criação. São os lados „avessos“ destes processos criativos tornados públicos no seu „lado direito“ (enquanto filmes vistos) que pedimos aos realizadores presentes na Mostra de Filme Etnográfico do V Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia para nos mostrarem. A pretensão, nossa, não deixa de ser ingénua por presumirmos a inexistência de outras agencialidades, nomeadamente durante o processo de edição, em que a negociação entre os lados visível e não-visível dos filmes teve lugar. Voltar aos filmes para os desfiar ou pegar nas pontas que ficam é sempre um trabalho difícil; na verdade, significa voltar a um novo processo editorial, a um novo filme – a um filme no seu „alter-ego“ ou a um filme „amadurecido“ pelos visionamentos e comentários, em festivais e mostras (como a nossa), num acumular de traços e marcas que lhe vão construindo o seu carácter de objecto, a sua „objecthood“,1 e que os tornam coisas com „vida“ social no mundo – afirmando-as na sua agencialidade – perante „espectadorias“ variadas.

2 Assim nasceu este número dos Cadernos de Arte e Antropologia, dedicado a uma mostra de filme etnográfico. Enquanto membros do júri de selecção, e depois de feitas as escolhas (não consensuais), achámos útil desafiar os realizadores a reflectir sobre as suas obras a partir de uma „arqueologia“ e de uma „anatomia“ capazes de revelar e revisitar opções estéticas, antropológicas, fílmicas e idiossincráticas. Como um retorno à casa de partida para voltar a contar a história do seu filme, agora como estória de revelações, inquietações, dúvidas, dilemas. O que pedimos, na verdade, foi para nos entreabrirem a porta da sua sala de edição, para assim podermos (nós e muitos outros) espreitar como

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se faz e foi feito cada filme. Não é prática muito comum escrever sobre processos criativos a partir de um desafio lançado por uma revista científica com peer-review.2 De alguma forma, pode o realizador ser levado a pensar que o filme é um registo menor porque precisa de ser explicado, ou que apenas o texto pode garantir a cientificidade e antropologicidade necessárias à legitimação da sua abordagem. Não foi nem é de todo este o nosso entendimento; o desafio lançado visou a complementaridade dos dois registos e a sua transmutação em algo novo. Reconhecemos que texto escrito e imagem em movimento tecnologizada garantem-nos formas e produtos de representação da realidade social que são, não apenas diferentes, mas também (idealmente) contrastivos e alternativos, assegurando o estatuto de contraponto que dá o mote a este número especial. Por um lado, os cinco artigos seleccionados ensinam, se não directamente como se pode fazer antropologia através de imagens, pelo menos como lidar com os imprevistos e os imponderáveis do quotidiano – um pouco na esteira dos pressupostos malinowskianos que marcam a especificidade metodológica da antropologia. Ensinam- nos ainda a ver, dando-nos pistas para a apreciação destes filmes enquanto objectos artísticos.

3 O segundo propósito liga-se, precisamente, ao que Carlson designa por „apreciação estética do objecto artístico,“3 que pressupõe o conhecimento do autor e dos contextos histórico-culturais de produção da obra. Por outras palavras, ao inscrevermos o objecto artístico numa estória/ na história tornamo-nos capazes de o interpretar nos seus próprios termos. Apreciar significa, portanto, estar no domínio de conhecimento técnico, específico e concreto de como as coisas são/ foram feitas. Não visa tanto a aquisição cumulativa de competências técnicas específicas quanto a intensificação da própria experiência de visionamento através do recurso a pistas informativas que normalmente não aparecem nas imagens (apesar de o registo escrito abrir porta a leituras que desconhecem o filme). Esta é, aliás, uma questão central no campo dos estudos sobre o visual, que autores como John Berger, Nicholas Mirzoeff, Mieke Bal e W.J.T. Mitchell tanto discutiram e que, em última instância, nos remete para os conceitos de „modos de ver“, „regime escópico“ e „espectadoria“. Ou seja, a apreciação do objecto visual remete-nos para o pressuposto fundamental de que, por detrás do que é visível, está todo um domínio do invisível (melhor dizendo, do que não é mostrado), que importa considerar para percebermos as produções artísticas (os objectos de cultura visual) na sua plenitude.

4 Estamos também perante temas clássicos da antropologia visual, em particular relacionados com o filme etnográfico ou documental (embora os dois termos não designem uma e a mesma coisa4); ou seja, o que está em causa é a relação entre texto e imagem, por um lado, e o estatuto que a imagem pode ter no seio da disciplina, por outro, justamente num tempo de acentuada audiovisualização da nossa experiência no mundo e das formas de conhecimento que privilegiamos.5 Trata-se de uma questão não resolvida na antropologia, envolta em desconfianças mútuas entre quem privilegia formas de conhecer através das imagens produzidas e quem o faz principalmente através da escrita de texto. Neste sentido, a nossa proposta aponta para uma diplomacia do encontro epistemológico e metodológico entre texto e imagem sem nunca afirmar a primazia de um sobre o outro. Socorrendo-nos de uma metáfora culinária, diríamos que não pedimos reduções de produtos a outros: pedimos outros produtos. E aqui situamos um outro encontro – entre arte e antropologia (tema já abordado numa edição anterior desta revista6) – porque na verdade, e recuperando um termo dos organizadores desse volume, tratamos também de „heterodoxias metodológicas“ plasmadas em produtos

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que escapam às normalidades convencionais da antropologia do texto escrito. E são de realizadores (e artistas), para além de antropólogos, que estes textos derivam, daí revelarem novas linguagens de escrita e de fuga aos cânones do texto antropológico escrito, sugerindo subjectividades e autoralidades que emergem em contraponto.

Cinco textos, cinco filmes

5 São cinco os textos apresentados neste dossiê. Cada texto, diferente na forma e no conteúdo, diz respeito também a um objecto fílmico único e específico. Os cinco filmes que inspiram os cinco textos traduzem formas diferentes de abordagem etnográfica e opções estéticas e cinematográficas várias – em termos de narração, fotografia, som, duração, direcção, profundidade temporal, ritmo, e, porque não referi-lo, antropologicidade.7 Amaya Sumpsi fala-nos do seu filme «Meu Pescador, Meu Velho» (título modificado de «Apanhados na Rede», 58’, 2012). Em „O documentário longitudinal: a importância de filmar com tempo“, a autora explora a passagem do tempo ao longo dos nove anos que o filme demorou a fazer – passagem essa que é sentida a três níveis ou dimensões: no aprofundamento (ou antropologização) do seu conhecimento sobre a comunidade; na sua própria transformação (nomeadamente, com a chegada à antropologia); na transformação física e social do espaço, da comunidade e dos indivíduos filmados.

6 Pedro Antunes conta-nos o processo por detrás do filme «P’ra Irem P’ró Céu» (22’, 2013), no artigo intitulado „‘Insomnolências’ e notas de campo do filme ‘P’ra Irem P’ró Céu’“. Como o próprio refere, trata-se de um ensaio auto-reflexivo que tenta passar aos leitores a dimensão da invisibilidade que está presente na morte – no sentido do que não se vê e ao que não se acede senão por uma ritualização que o filme ajuda a activar, aproximando-se de um „cine-transe“, muito sugerido e explorado por Jean Rouch. Na esteira deste, Antunes crê que com as imagens conseguimos captar sentimentos, acções, manifestações que, de outra forma (entenda-se, através de abordagens convencionais), não conseguiríamos, num processo que também transforma o realizador e o faz entrar na performance do ritual e do acto de filmar.

7 Rodrigo Lacerda fala de «Thierry» (17’, 2012), um filme sobre um activista político francês e trabalhador sexual em Londres. No artigo “So, what do we talk about? O discurso político e a imagem corpórea em «Thierry»”, o autor explora a noção de imagem corpórea proposta por David MacDougall (2006)8. O título do artigo é, aliás, elucidativo, assinalando a complexidade performativa da existência humana, aqui revelada no espaço instável entre discurso verbal e corpo filmado. Enquanto acesso „háptico“ privilegiado, o filme ajuda, num certo sentido, a recuperar a integralidade perdida nas abordagens que não mostram corpo, rosto, gestos, movimento e circunstâncias da vida.

8 No artigo „Os Últimos Pioneiros: Memórias de um ritual“, Daniela Rodrigues traça o processo de construção do documentário com o mesmo nome, «Zadnji Pionirji» (ou os «Últimos Pioneiros», 11’, 2012). O texto constitui uma memória descritiva – um memorando, no duplo sentido da palavra. Por um lado, revela-nos as etapas e os encontros pelos quais a realizadora foi passando (um percurso desencadeado por um item de cultura material – uma revista infantil comprada, ao acaso, num alfarrabista – e pontuado por outras „coisas“); por outro, mostra-nos o ritual de integração no Movimento Pioneiro da Jugoslávia de Tito e, associado àquele, as manifestações de uma

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nostalgia reflexiva em jovens adultos eslovenos. Rodrigues fala-nos de um „tempo perdido“ na Ex-Jugoslávia, recuperado a partir de um acesso frágil à memória de jovens pioneiros (os últimos), agora cidadãos da actual Eslovénia.

9 Finalmente, no artigo „Films, terrains et anthropologie: à propos d’images et d’écrits“, Fabienne Wateau propõe uma reflexão mais ampla sobre o lugar da antropologia visual na (sua) antropologia. O pano de fundo para esta reflexão são três documentários produzidos com diferentes intencionalidades e para diferentes fins; «Ma Parenté Au Village» (2011, 18’), exibido na mostra de filme etnográfico da APA, «La canne à mesurer l’eau» (ou «A cana de medir a água», 2006, 28’) e «La pierre de partage de l’eau» (ou «O marco da água», 2003, 11’). Wateau debruça-se sobre as virtudes epistemológicas do filme e as inter-relações com a „abordagem convencional“, a fim de reivindicar a apreciação de um filme em si mesmo e não pelos quadros conceptuais de uma antropologia dependente do texto escrito. Ou seja, a fim de reivindicar um estatuto de autonomia relativa para cada um destes produtos/objectos de representação.

10 Os cinco filmes são obras relativamente iniciáticas – umas mais do que outras – o que, aliás, levou quase todos os autores a situarem-se numa espécie de história privada dos seus filmes, trama de processos e opções metodológicas. Este é um tema recorrente, explorado através de uma abordagem dual: por um lado, conta-se a história do processo fílmico que deu origem ao filme apresentado na mostra (no caso de Wateau, estendendo-se a outros dois trabalhos). É aqui que surgem os imponderabilia malinowskianos, referidos por Antunes, ou a não-menos importante questão da discrepância entre a demanda do filme etnográfico „ideal“ e as dificuldades encontradas no „terreno“ (que tanto pode corresponder ao momento da toma de imagens como da montagem, ou mesmo da projecção perante os interlocutores ou outros públicos), colocada por Wateau. Por outro lado, faz-se referência à história relacional com a câmara de filmar e o documentário que, no caso de Sumpsi, passou pela sua aproximação à antropologia e, no de Rodrigues, pelo seu afastamento.

11 Seguramente inspirados pelo texto de convite, os autores discorrem sobre o métier de antropólogo-realizador ou realizador-antropólogo – que Sumpsi divide em três fases cronológicas distintas, em que transita de „visitante“ a „documentarista“ a „antropóloga“, e que Antunes estabelece em termos de uma experiência subjectiva do trabalho de campo que vai muito para além do que se pode mostrar, contar e, desde logo, ver (através das imagens). Se Sumpsi procura, na antropologia, o caminho para uma certa objectivação do visível, Antunes crê que as imagens ajudam a „experienciar“ tanto o objectivo como o subjectivo não-visíveis (i.e. o „real invisível“), e de uma outra forma, o que o leva a falar de uma „antropologia do negativo visual“. Este autor estabelece a urgência do filmar, não só porque há coisas (rituais) que estão a desaparecer ou a renascer enquanto „espectáculo de valor etnográfico“ mas, sobretudo, porque o filme é assumido como projecto maior de representação da realidade (de realidades outras). É preciso filmar – ponto, pronto. O mesmo acontece com os restantes realizadores.

12 Um segundo tema transversal prende-se, efectivamente, com o lugar da antropologia na produção de um documentário visual (i.e. no processo criativo), que remete para a clássica tensão real/ciência vs. ficção/arte e onde situamos igualmente as questões da subjectividade e da objectividade. Decorrente deste tema aparece a reflexão sobre a „antropologicidade“ dos filmes; i.e., sobre o seu potencial de representação em termos

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de cientificidade do registo. Estão em causa questões de representação num duplo sentido. Falamos de questões relativas à procura e preservação de uma certa integralidade (e integridade?) da realidade, que Sumpsi pretende resolver com a opção metodológica e ética pelo documentário longitudinal. Mas também, concomitantemente, de questões que se prendem com as políticas de representação, incidindo sobre aspectos como a auto-representação e o controlo da representação pelos sujeitos filmados (Wateau; Lacerda), a recusa de códigos exoticisantes (Antunes), e a afirmação do vídeo como objecto político (Lacerda) ou veículo de conhecimento de processos de mudança social (Sumpsi; Rodrigues) ou transição existencial (Antunes). Em qualquer um dos casos, a relação entre o documentarista/ etnógrafo e os sujeitos filmados é central. A desejada intimidade com estes é procurada, no caso de Sumpsi, numa forma de filmar com tempo, em „lume brando“, que todavia parece levar a autora a ingenuamente acreditar que se limitara a observar „de uma forma completamente objectiva“ e „sem manipular factores“. Para Wateau a intimidade é garantida pelo trabalho de campo prévio, sem câmara de filmar, o que lhe permite partilhar a autoria do projecto com Vânia, a protagonista de Ma Parenté Au Village (2011, 18’), que nos conduz ao longo de uma demanda junto dos seus familiares na Aldeia da Luz (Alentejo, Sul de Portugal). O uso de um tema clássico da antropologia (o parentesco) é-nos apresentado como um meio e não um fim em si mesmo, i.e. como um „modo de acesso às populações“, e não um estudo exaustivo, passível de ser visto como „completo“.

13 Estamos, portanto, a falar de um plano ao mesmo tempo, metodológico, epistemológico, político e ético que finalmente culmina nas reflexões, presentes em todos os artigos, sobre a recepção dos filmes. Para quem é feito o filme? – pergunta directa e explicitamente Wateau, afirmando que o seu Ma Paranté au Village é feito para públicos, deliberadamente no plural, mas não para a televisão. A autora reivindica outros contextos de recepção – e espectadoria, portanto. Na realidade, todos os realizadores apontam para esse cúmulo, na vida social das suas obras: o momento em que se emancipam do criador e ganham vida própria. Na antropologia, a partilha com os sujeitos filmados, num acto de reciprocidade ética, é condição da representação, garantindo a validade emic do produto final.

14 Finalmente, a dicotomia visibilidade/invisibilidade aparece igualmente reflectida nos cinco textos, a partir, por exemplo, da discussão das virtudes metafóricas da imagem. Ou seja, como pode a materialidade do visível garantir a representação de algo que não está presente ou que não tem representação visual? Ou, em alternativa, nas palavras de Antunes, „como materializar visualmente o invisível“? Falamos do passado vivido e da nostalgia (ou „jugonostalgia“), como no caso de Rodrigues; da vida para além da morte, na abordagem de Antunes; ou mesmo da configuração patrimonial de um forte que (já) não o é, como no caso de Sumpsi. O encontro e a confrontação com esta dicotomia aparece também sob a forma de questionação de tudo o que fica sem ser mostrado apesar de ser dito: a síntese háptica e corpórea que procura Lacerda; o parentesco contado por Wateau, através de Vânia. Portanto, situamos também aqui as dimensões materiais e imateriais da vida humana enquanto cultura em continuado processo de fabricação.

15 Em conclusão, enquanto lados avessos de filmes, os cinco textos permitem-nos aceder à ideia de contraponto que, qual metáfora musical, nos garante a complementaridade de duas composições tocadas em conjunto. Texto e vídeo, vídeo e texto, representações complementares e alternativas da realidade, garantem-nos esta possibilidade. Através

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das palavras, nos artigos deste dossier, os realizadores revelam-nos os lados outros do seu processo criativo. O que textos e filmes não deixam de sugerir é que, apesar de tudo, como em qualquer forma de representação (e numa necessária ressalva ao que foi dito) um certo grau de „redução“ é inevitável. A experiência humana nunca se esgota em imagens ou palavras. É sempre muito maior do que um texto ou um filme, ou os dois em simultâneo.

NOTAS

1. Cf. Elizabeth Edwards, 2002 “Material Beings: objecthood and ethnographic photographs”, Visual Studies, 17:1, 67-75. 2. O desafio foi feito aos dezasseis realizadores que viram os seus filmes escolhidos para a Mostra. Destes, apenas oito acederam. Houve artigos que foram recusados num primeiro momento e outros numa segunda fase, após avaliação pelos pareceristas. 3. Allen Carlson, 1993, “Appreciating Art and Appreciating Nature” in Salim Kemal e Ivan Gaskell (eds.) Landscape, Natural Beauty and the Arts, Cambridge, Cambridge University Press, 197-227. 4. Algo a que, todavia, não dedicaremos a nossa atenção neste artigo. 5. Humberto Martins, 2013, “Sobre o lugar e os usos das imagens na antropologia: notas críticas em tempos de audiovisualização do mundo”, Etnográfica, vol. 17 (2), 395-419. 6. Cadernos de Arte e Antropologia, vol. 2, nº 1, 2013, dossiê ‘Antropologia, etnografia e práticas artísticas’, organizado por Sónia Vespeira de Almeida e Ilka Boaventura Leite. 7. A Mostra revelou também diferentes sensibilidades etnográficas por parte dos membros do júri. 8. David MacDougall, 2006, The Corporeal Image, Princeton, New Jersey, Princeton University Press.

AUTORES

HUMBERTO MARTINS UTAD, Vila Real, Portugal [email protected]

SOFIA SAMPAIO CRIA-ISCTE, Lisboa, Portugal [email protected]

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Dossiê "O documentário como contraponto: Opções antropológicas e artísticas no tratamento criativo da realidade"

Artigos Articles

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O documentário longitudinal: a importância de filmar com tempo Longitudinal documentary: the importance of slow filming

Amaya Sumpsi

NOTA DO EDITOR

Recebido em: 2013-11-27 Aceito em: 2014-03-07

Introdução

Longitudinal docs are the most deeply satisfying form. Spending years following a story is the ultimate act of filmmaking discovery, because you don’t know where the journey is leading, no matter how perceptive you think you are. Indeed, you hope and pray you’ll be surprised, because if you stick with interesting people long enough, they’ll always surprise you – that’s the beauty of human nature. James 20081

1 “Apanhados na rede” é a minha primeira longa-metragem.2 Dediquei-me a este projecto, filmado em Porto Formoso, uma pequena aldeia de pescadores da costa norte da ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, durante 9 anos. O passar dos anos, embora inicialmente involuntário, acabou por se tornar fundamental na construção do mesmo e acabou por ser o seu leit motiv. O processo de realização deste documentário, que requereu longos períodos de convívio, observação e interacção com os sujeitos, prolongados por nove anos, fazem com que este documentário, e a dissertação de mestrado que o acompanha, sejam considerados um estudo etnográfico longitudinal. O

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documentário visa acompanhar os mesmos indivíduos durante um longo período de tempo, como num trabalho típico de observação. Observam-se os elementos, evitando ao máximo a manipulação dos fatores que possam alterar as variáveis de interesse, procurando compreender as mudanças sociais melhor do que seria possível por meio dos estudos transversais. Deste modo, consegue-se estabelecer relações de causa-efeito mais facilmente ao centrar o olhar na trajetória de vida dos indivíduos incluídos no trabalho, o que permite uma compreensão mais profunda sobre as relações entre as variáveis observadas como, por exemplo, entre nível educacional e empregabilidade, entre formação profissional e atuação da área, etc. Por outro lado, enquanto os estudos transversais detêm um carácter quantitativo, os estudos longitudinais baseiam-se essencialmente num método qualitativo. O método qualitativo (Richardson 1999: 80) “caracteriza-se pela condição de descrever a complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais”. É de salientar também que esta abordagem pode contribuir para o processo de mudança de determinado grupo e possibilitar, mais profundamente, o entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos. Esse foi o objectivo do documentário e da dissertação que o acompanha.

2 A passagem do tempo é acompanhada por mudanças, naturalmente. Ao longo de todo este tempo não só as pessoas que filmei se transformaram, mas também eu. Durante estes nove anos em que acompanhei a aldeia, vi jovens crescerem e tornarem-se homens, vi outros adoecerem e alguns morrerem, vi pessoas a partir e outras a chegar. Eu também me transformei: fui viver para o campo, depois para a cidade, arranjei novos trabalhos, voltei a estudar, tive uma filha. Mas há neste filme algo mais do que querer acompanhar o ciclo de vida das pessoas, as suas mudanças físicas, sociais, de costumes, de crenças, a sua mudança interior. Porque além do tempo biográfico, o meu e o dos habitantes, existe também um outro tempo.

3 Trata-se do tempo colectivo da comunidade, aquele tempo histórico que vai definindo os seus caminhos. Porque, enquanto eu estava a filmar na aldeia, tiveram lugar uma série de acontecimentos que provocaram entre os habitantes uma discussão profunda e enérgica sobre o abandono ou a perpetuação de uma identidade (neste caso a transformação ou manutenção da paisagem que dá nome à aldeia, o Porto -de pesca- Formoso), discussão esta que os levou, inevitavelmente, a questionarem a sua própria identidade. Pesca? Paisagem? História? Tudo estava a ser posto em causa. O passado, o presente, o futuro e as suas variantes; o progresso e as diferente propostas, muitas vezes opostas, para o pôr em prática. Este é um documentário que recolhe, além de tudo, o intervalo de tempo que costuma preceder as grandes transformações de uma comunidade, tempo este fértil em discussões de conceitos e significados, desejos e nostalgias, passados e futuros. Na praça, nas “tascas”, no porto, em casa, todos participam. Durante esse transe de transformação acontecem momentos únicos, situações que brilham com um significado especial e que têm a capacidade de evocar toda a intensidade do transe. O filme projecta os tempos biográficos sobre um outro tempo, prévio à transformação. A mudança (minha), sobre a mudança (deles), sobre a mudança (da comunidade).

4 Embora, como veremos, a antropologia fosse fundamental na construção narrativa do tempo e na criação de uma linha discursiva do meu documentário, é importante salientar para perceber a arqueologia deste projecto, que só 5 anos depois de eu ter começado a filmar a comunidade é que a antropologia, como método e como saber,

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começou a fazer parte do processo criativo. A antropologia serviu para analisar o material já filmado em retrospetiva e para orientar as últimas filmagens e o processo de edição final. Assim, no decorrer destes nove anos existem três momentos muito diferentes entre si, que não só não se excluem, como se complementam. Estes três olhares são importantes para perceber a construção autoral do filme, pois cada um destes momentos está marcado pelas circunstâncias em que eu acompanhei a comunidade, isto é, pelo papel que fui adoptando perante os sujeitos que observava. Cada um dos momentos estabelece uma perspectiva, uma metodologia e objectivos diferentes que surgem de um “Eu” particular, mas que se reúnem num único trabalho, que é este documentário. Se num primeiro momento, em 2003, eu me posicionei perante a comunidade como um “visitante”, num segundo momento, entre 2004 e 2008, acrescentei o olhar de “documentarista” e só num terceiro momento, entre 2009 e 2012, é que adoptei a perspectiva da “antropologia”. Cada um destes três momentos manifesta-se na construção deste filme simultaneamente, mas de uma maneira diferente: o “eu visitante” a um nível emocional e subjectivo; o “eu documentarista” a um nível narrativo e visual; o “eu antropólogo” a um nível científico e objectivo.

5 O artigo que aqui apresento pretende ser o diário pessoal desta viagem ao longo do tempo: quando se passam anos a filmar no mesmo lugar e com as mesmas pessoas, é inevitável que as histórias pessoais se misturem com a profissional.

I

6 Comecemos pois pelo início. Em 2001, licenciei-me em Literatura e Línguas Hispânicas e, ao mesmo tempo, em Realização de Cinema e Televisão em Madrid. Um ano mais tarde mudei-me para os Açores e em 2003 instalei-me na costa norte da ilha de São Miguel, depois de ter arranjado trabalho como professora de fotografia para uma produtora cultural da ilha. Nesse ano conheci o Dídio, um vizinho natural de Ribeira Grande, que trabalhava para a EDA (Electricidade dos Açores) e que passava os fins-de- semana na aldeia vizinha, Porto Formoso, na companhia dos pescadores. Atraída por este mundo, tão diferente do meu, comecei a acompanhar as suas visitas, a sair à pesca de vez em quando, a passar as tardes na tasca, entre rodadas de cerveja. Nesta altura a minha motivação era unicamente pessoal, não tendo outro objectivo a não ser o de perceber estas pessoas e partilhar com elas o meu tempo livre. Sem câmara, e sem o conhecimento antropológico de que disponho actualmente, movimentava-me pela comunidade ao sabor dos meus instintos e apetências, estabelecendo relações por empatia e observando aquilo que me chamava a atenção. Sem o objectivo de procurar uma imagem forte e sem a intenção de delinear ou contextualizar um texto académico, eu era apenas eu, reagindo ao deslumbramento que costuma provocar o conhecimento de uma forma diferente de estar na vida.

II

7 Sendo eu uma pessoa que sempre se sentiu atraída pela narrativa da imagem, não passou muito tempo até começar a sentir o impulso de registar em imagens estas vivências, sobretudo tendo em conta o acesso privilegiado a esta comunidade que conseguia ter através do Dídio. Com este objectivo, em Junho de 2004 decidi investir na minha primeira câmara de filmar. Era (e é) uma Sony PDX 10P que grava em DVCAM e

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16:9 e, apesar da sua aparência de câmara doméstica, produzia a imagem de uma semiprofissional. Foi pelo seu tamanho e aparência discreta que a escolhi: com ela poderia estar a filmar sem chamar muito à atenção, como uma pessoa qualquer que filma para registo pessoal, evitando dentro do possível a intimidação óbvia que decorre do uso destes aparelhos e que é maior quanto maior o dispositivo. Com ela, dediquei-me a registar imagens e detalhes das artes de pesca antigas, apenas praticadas pelos mais velhos da aldeia, com a intenção de perpetuar a memória destas práticas: era a apanha do caranguejo e do camarão, a pesca em linha de cavalas. Mas também comecei a filmar momentos da vida quotidiana destes homens, jantaradas do grémio, a venda do peixe pela aldeia, o dia-a-dia no porto, a chegada à terra, as festas populares. Embora a preocupação estética estivesse presente, nessa altura, e tendo em conta a espontaneidade do que filmava, a minha intenção era apenas registar como imagem de arquivo. Neste sentido, estas filmagens estavam próximas daquilo que pretendia o filme etnográfico na sua origem e que durante grande parte do seu percurso defendeu : usar a câmara de uma forma completamente objectiva, como dispositivo de recolha de informação científica, com o intuito de preservar o registo de fenómenos culturais ameaçados de extinção devido as mudanças sociais e económicas. Como diria Mead (1995: 9-10) “this filmic […] not need to be motivated by any theoretical purpose: the important thing was to get it done before the customs in question disappeared for ever”. Algumas destas sequências, gravadas no início, foram incluídas no documentário final.

Este media não pode ser visualizado aqui. Consulte a edição em linha http:// 8 journals.openedition.org/cadernosaa/358

Excerto 1: Registo da pesca da cavala filmada em 2004 e incluída no documentário final

III

9 O panorama mudou, porém, em 2005, momento em que se deu o ponto de inflexão do meu projecto. Foi na noite de Carnaval desse ano que uma onda, que a população de Porto Formoso descreve como um “tsunami”, atingiu o porto de pesca da aldeia, destruindo dois barcos.3 Eu não estava na altura a viver na ilha, pois tinha mudado para Lisboa no outono de 2004. Assim, só soube do acontecimento no verão seguinte, quando fui lá passar férias e revisitar os amigos. Na aldeia, a conversa desse verão girava em torno das consequências do catastrófico acidente. Os mestres estavam a construir barcos novos, de maior envergadura, mas toda a gente falava do quão difícil seria trabalhar com eles no pequeno porto natural da aldeia, construído sobre a areia. Quase como num efeito dominó, este incidente tinha levantado uma série de questões que já não diziam respeito apenas aos pescadores, mas sim a todos os habitantes da aldeia, abrindo assim o caminho que precipitaria a transformação. Ampliar o porto com uma doca em cimento, para dar continuidade à atividade piscatória tradicional e identitária desta comunidade, modernizando-a, ou preservar a beleza natural e o valor histórico do antigo porto, ambos também com valor identitário e, ainda, com potencial para atrair turismo? Existe uma solução intermédia? Qual destes modelos poderá trazer maiores benefícios à comunidade? Podem conviver ambos? Qual o peso do valor económico e do valor simbólico destas dimensões identitárias? Estas e outras questões discutiam-se, de manhã à noite, no café, no porto, na praia, nas casas, na Junta de

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Freguesia, na Ribeira Grande, na internet. Este episódio tinha posto em relevo tensões que, se antes apenas se percebiam subtilmente, agora estavam à flor da pele. Eu fui apanhada de surpresa, mas não demorei a perceber que algo de importante se estava a passar. Parecia como se frente os meus olhos a aldeia se estivesse a repensar e a reconfigurar, e eu tinha acesso a esse processo de transformação graças à relação que tinha criado com o lugar e com os habitantes nos anos anteriores.

10 Porém, houve um acontecimento em particular que me fez realmente acreditar que, por detrás destas conversas, havia uma grande história para contar, uma história pessoal mas também universal. Nas minhas primeiras incursões sobre esta discussão pública, costumava perguntar às pessoas que estavam contra a construção do porto quais eram os seus motivos. Muitos habitantes falavam-me da importância de manter a paisagem natural para atrair o turismo e, entre estes discursos, falavam com veemência da importância das ruínas de um “castelo”, património da aldeia, que se encontravam junto ao porto e que seriam destruídas caso as obras avançassem. Mas de que castelo estavam a falar? Eu já tinha estado muitas vezes no porto e nunca tinha visto ali nenhum castelo. Acompanhada de um pescador, desci ao porto com a minha câmara à procura de tal património. Nós já tínhamos chegado, mas eu continuava em busca do “castelo”. O contraste das discussões apaixonadas em defesa do “castelo” com o que encontrava perante mim era assombroso: eu só via umas pequenas ruínas que não deixavam adivinhar nada mais do que algumas pedras, uns pequenos muros que se confundiam com os calhaus, uma pequena estrutura abandonada, um rascunho insignificante de um passado indefinido. Depois desta visita decidi aprofundar o sentimento que esta ruína produzia nas pessoas da aldeia, os argumentos que utilizavam para a defender ou para a desprezar. Além de ser evidente que ninguém na aldeia tinha muito claro a origem histórica do “castelo”, nem o porquê deste nome, a valorização diferente que se fazia dele manifestava de forma indirecta perspectivas divergentes sobre a natureza, a história, o património, o turismo e o futuro da aldeia. O património não existe per se, fora de um discurso de valorização e de apreciação que recai sobre um conjunto de bens e referentes simbólicos que se constituem como património. [...] O que é considerado digno de valorização e de preservação altera-se conforme os contextos e conforme os momentos. Portanto o que muda não são os bens em apreço, mas antes a valorização social que sobre eles recai.[...] o que importa é o processo de valorização, não os bens de património em si. (Elsa Peralta 2008: 75)

11 Ao falarem do castelo, os argumentos que os habitantes expunham a favor ou contra ultrapassavam os limites da aldeia e com uma lucidez assombrosa abriam-se às controvérsias globais sobre a relação com o passado, a vivência do presente e o desenho do futuro. O “castelo” passou a ser, rapidamente, mais uma personagem do meu filme e, ao longo dos anos, foi ganhando espaço no elenco de protagonistas.

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Excerto 2: Fragmento da discussão captada entre dois habitantes (César e Sr. João) acerca do valor patrimonial, natural e estético do “castelo”.

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IV

13 Quando voltei a Lisboa, depois desse verão de 2005, sabia já que as filmagens que tinha começado nesse verão teriam de ter continuação, pois o processo de transformação seguiria o curso natural da história, prolongando-se por anos (como depois se viria a confirmar). A partir desse momento, as visitas a Porto Formoso tinham um novo objectivo: fazer um documentário que acompanhasse este processo. Investi nalgum material extra, como um microfone de melhor qualidade, protectores de vento e lentes: a preocupação na estética, na qualidade de imagem e de som aumentou: o tema merecia. O meu objectivo tinha deixado de ser apenas o de registar, para contar a transformação destas pessoas, deste porto, deste castelo, desta aldeia. Voltei a Porto Formoso em 2006, 2007 e 2008, enquanto a aldeia continuava a pensar-se e a transformar-se. Costumava fazer uma ou duas viagens por ano, uma no verão e outra no inverno. Esse registo acabou por ser fundamental para este trabalho, pois a câmara acompanhou-me em todos os momentos, captando não só conversas, discussões e opiniões, mas também o meu dia-a-dia na aldeia. Seguindo os acontecimentos, filmei a construção dos novos barcos, as novas dificuldades do porto, as discussões no miradouro e na tasca. Marquei e filmei entrevistas individuais e colectivas com os pescadores, mas também com outros habitantes e com agentes externos e representantes de instituições envolvidos no processo enquanto a discussão se ia desenrolando ao longo dos anos.4 Embora nesta altura eu ainda não tivesse tido contacto com as teorias antropológicas nem com a metodologia do trabalho de campo, as questões que ia colocando aos habitantes e a forma como orientava as entrevistas mostravam já, de forma intuitiva, uma sensibilidade antropológica.

14 Durante estes anos, a situação foi sendo cada vez mais difícil para os pescadores. Enquanto a aldeia discutia, as decisões politicas sobre o porto estavam cada vez mais bloqueadas, adiando a projecção de qualquer obra. Perante a dificuldade de trabalhar com barcos tão grandes sobre a areia, em 2007 dois dos mestres que eu acompanhava desistiram: o mestre Eiró vendeu o seu barco e foi trabalhar para as obras e o mestre Paulo Jorge emigrou para as Bermudas. Embora esta situação fosse enriquecedora do ponto de vista da narrativa dramática da realidade, nesta altura eu já tinha uma relação com eles muito próxima e senti, com eles, toda a sua tristeza e ao mesmo tempo uma grande frustração com a inércia política ali mostrada. Agora, mais do que nunca, acreditava na importância de contar esta história. A dificuldade residia em encontrar o frágil equilíbrio entre o companheirismo e respeito pela amizade criada com as pessoas a quem filmava e a necessidade de mostrar uma realidade mais abrangente e o mais imparcial possível. James (2008) resume assim esta experiência: Then there are the human relationships of longitudinal filmmaking. If you spend years filming people, they will grow to be something more than just a “subject.” I’ve never thought of myself as a journalist, so I don’t wrestle over notions of “journalistic objectivity” and dispassionate observation, but that doesn’t prevent me from struggling with my desire to document a subject’s life in an honest way and still feel like a friend. When misfortune happens to people in your film, it’s usually good for the film, but not necessarily so for your relationship with them, or for how you feel about yourself. In short, you can feel like a leech on another’s misery. Someone once asked me, “What’s more important? To make a great film, to make an honest film, or to have a great relationship with your subjects at the end of the film?” They’re not mutually exclusive, but every experienced longitudinal filmmaker I know asks him or herself that question. Handled right and with a bit of

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luck, the misfortune you document should bring you closer to your subjects and make both of you feel that you have an important story to tell.

V

15 Parece-me importante trazer a este texto algumas questões de produção. Este documentário foi feito sem nenhum apoio financeiro. As filmagens começaram como um pequeno projecto pessoal: eu, a minha câmara e o microfone. A história foi ganhando força e ficando cada vez mais interessante, mas tendo eu estabelecido já uma forma de trabalho com as pessoas filmadas, baseada na intimidade e no registo informal, não queria complicar o processo: os financiamentos institucionais costumam trazer uma burocracia e uma complexificação das equipas envolvidas, que desejava evitar. Além disso e tendo em conta que a minha história apenas o tempo a contaria, era difícil argumentar o valor do meu projecto. Como refere James (2008): As fulfilling as longitudinal filming is, it’s also hard. It’s hard to find funding, because many broadcasters like to know what they’re paying for in advance. Even when you get funded, it’s hard for filmmakers to juggle their obsession with filming everything with their need to otherwise make a living: spending four or five years filming 200 days on a documentary budget doesn’t work out to a very good “day rate.”

16 Assim sendo, mantive até ao fim o mesmo “modus operandi” de produção: juntava férias com filmagens, pagava todas as despesas (que mantinha no mínimo), dormia em casa de amigos ou na praia ao pé dos barcos, pedia ajuda aos colegas e vivia (e vivo) do meu ordenado como professora de espanhol.

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Excerto 3: Imagens da primeira saída ao mar dos barcos novos captadas por André Almeida, que fazem parte e são essenciais para a narrativa visual do documentário.

18 Porém, quanto à forma de filmar, tive de reequacionar a situação. Dado que as discussões, entrevistas e filmagens se tinham multiplicado, eu não conseguia continuar a dirigir as conversas, compor os planos e controlar o som ao mesmo tempo. Mais de uma vez gravei rostos cortados ao meio, conversas fora do campo, planos queimados, ora porque estava absorta na entrevista ora porque estava a nivelar o som. Depois de rever alguns destes registos e percebendo a necessidade óbvia de ajuda, mas também a ausência total de financiamento, pedi ao meu namorado Eduardo para me ajudar. Ele costumava acompanhar-me muitas vezes à aldeia, conhecia bem as pessoas, tinha feito amigos e tinha acompanhado a história desde o início. Se até agora tinha assistido apenas como observador, passou a ter o papel de assistente. Quando me queria centrar na composição de planos, ele fazia as perguntas que me interessavam e, muitas vezes, trazia outras novas. Ajudava frequentemente com o som e, pontualmente, quando se tratava de uma entrevista que me exigia maior concentração, eu compunha o plano mas ele filmava. Eu, como Jean Rouch, penso que, em documentário, o realizador deve ser o seu próprio operador de câmara (Ribeiro 2007:40), pois só ele tem o conhecimento suficiente sobre os seus objectivos e interesses e a relação intima com os sujeitos para poder reagir com a câmara a situações improvisadas e espontâneas. Com o tempo, os habitantes da aldeia acostumaram-se a nós os dois e à câmara e assim fui acumulando

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horas e horas de material audiovisual. Tendo em conta a boa relação anterior de Eduardo com os pescadores e a sua ligação de género e de interesses (na pesca, na aldeia, nas tardes de tascas), a sua participação com um papel mais activo acentuou o ambiente de informalidade e intimidade das filmagens.

19 Além de nós os dois, tive de pedir numa ocasião a um amigo, que não era de imagem, que fosse filmar um acontecimento, pois não tinha dinheiro, nem férias, para irmos nós: tratava-se do dia em que os novos barcos saíram ao mar pela primeira vez, para ir de Rabo de Peixe, onde tinham sido construídos, até ao Porto Formoso, onde seriam baptizados. Neste caso o valor do registo sobrepõe-se às preocupações estéticas e quaisquer outras e a importância da sequência ficou patente no documentário.

VI

20 O facto de apenas poder ir filmar uma ou duas vezes por ano fazia-me oscilar entre o entusiasmo mais apaixonado pelo projecto e o esquecimento absoluto, perdido entre as preocupações do dia-a-dia de quem vive e trabalha em Lisboa. O processo parecia repetir-se: cada vez que voltava de uma viagem a Porto Formoso, com mais material, ganhava novo entusiasmo e voltava a acreditar na história. Sentava-me na mesa de edição e ia organizando o material, seleccionando partes das entrevistas, melhores imagens. Tentava montar sequências, dar ordem às imagens, coerência aos depoimentos, mas tinha imenso material e tudo parecia interessante, essencial. Eu não conseguia ter distância e o bloqueio ia crescendo: era demasiada informação, demasiadas reflexões para incluir apenas num filme. Para distanciar-me do material, pedi ajuda a minha colega e editora Rita Figueiredo, pois ela tinha muita experiência em edição e tinha feito todo o tipo de trabalhos. Com ela consegui editar algumas sequências do início, mas acabámos por desistir: os habitantes de Porto Formoso falam um dialecto micaelense fechado, que dificilmente é percebido pelos portugueses continentais.5 Isto dificultava extremamente o trabalho da Rita: sem perceber o que diziam, era muito difícil associar ideias, montar sequências coerentes e construir uma narrativa.

21 Ainda assim, havia outro elemento que bloqueava o processo de edição audiovisual do material: eu queria que os habitantes contassem a sua própria história, evitando ao máximo a minha intervenção e apagando do filme a minha presença. A tendência em minimizar e mesmo negar o carácter autoral do documentário etnográfico é antiga. Até à década de 70 o documentário etnográfico era percebido como a retórica da verdade e da objectividade, mas, como refere Henley (2009), em meados desta década começaram a surgir novas perspectivas na literatura inglesa da antropologia visual que apontavam para outras direções. Conceitos como “Reflexividade” e “vídeo participativo” refletiam a consciência de que “an does not provide an objective ‘scientific’ account of the world but is rather the product of the subjective vision of the film-maker that he or she has developed through their relationship with the subjects” (ib.idem: 10-11).

22 Eu na altura não tinha conhecimentos sobre o filme etnográfico nem a sua história, nem sobre a área de estudos da antropologia visual, pelo que chegar à mesma conclusão custou-me muitos anos e numerosas tentativas.

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VII

23 Em 2008 apenas consegui ir aos Açores para fazer um outro trabalho: uma tradução simultânea no parlamento regional, situado em Faial. Aproveitei a viagem para fazer uma paragem de um fim-de-semana em São Miguel e passei uma tarde pela aldeia para saber das pessoas. Consciente de que não teria tempo para filmar, aproveitei para mostrar as sequências iniciais que tinha editado com a Rita aos pescadores e amigos que encontrei pela aldeia. Para o fazer, juntámo-nos na pequena loja do Viana, ponto de encontro habitual e mostrei as sequências numa pequena televisão. Como não foi combinado com tempo, apareceram só alguns: os clientes habituais da tasca, que apareciam no filme em segundos planos, os músicos que põem música ao filme com a sua guitarra e alguns familiares dos protagonistas que, nessa altura, estavam fora da aldeia. Ao verem-se retratados na mesma televisão em que costumavam ver os programas da tarde, as telenovelas, os telejornais e o futebol, ficaram em silêncio. Mas rapidamente começaram a rir, a comentar, a assinalar esta ou aquela pessoa, e ouviam atentos o que lá se dizia. Para mim foi reconfortante, mas apesar de sentir a sua alegria, sentia sobre mim o peso do bloqueio, cada vez maior e a nuvem de saber que o projecto parecia estar guardado na gaveta definitivamente.

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Excerto 4: Visionamento da primeira versão com alguns dos participantes no documentário, incluído na montagem final.

25 Um ano mais tarde decidi voltar a estudar e comecei a pesquisar mestrados que me pudessem interessar. Nesta pesquisa, descobri o mestrado em Antropologia e Culturas Visuais da Universidade Nova de Lisboa, coordenado pelo professor João Leal e a professora Catarina Alves Costa: este mestrado poderia ser uma ferramenta que me ajudasse a desbloquear o filme que há tantos anos tinha começado. Eu na altura apenas tinha ouvido falar em antropologia e tinha uma vaga ideia do que era, mas de alguma maneira associei a antropologia ao meu filme. Seguindo a minha intuição, inscrevi-me. Como referi anteriormente, foi através deste mestrado que tive o meu primeiro contacto com a perspectiva antropológica e foi através desta nova janela que muito do meu trabalho ganhou um novo sentido: os seminários que segui, os textos que li, os filmes que vi e as discussões que acompanhei fizeram-me olhar para o meu trabalho de uma nova forma. Em primeiro lugar, percebi que a experiência que tinha vivido em Porto Formoso até à data podia tornar-se, sem muitas alterações, no diário etnográfico do trabalho de campo, pois as premissas mais importantes deste trabalho, tal e como as tinha esboçado Malinowski (1922) estavam presentes. Em primeiro lugar a sensibilidade etnográfica. Esta sensibilidade, que Malinowski define como a capacidade de saber ouvir, partilhar, simpatizar, apreciar a companhia e respeitá-la, mostrando boas maneiras, esteve presente ao longo das minhas visitas e estadias na aldeia, manifestando-se na forma como me relacionei com a comunidade. O trabalho prolongado de campo e o conhecimento da língua foram também apontadas por Malinowski como duas premissas básicas do Método Etnográfico.6 Existe ainda um terceiro ponto essencial no Método Etnográfico de Malinowski: (1922: 23) “o investigador deve guiar-se por objectivos verdadeiramente científicos e conhecer as normas e critérios da etnografia moderna” . Pelos motivos que já apontei, não cumpria

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este requisito: entre 2003 e 2009 não tinha por objectivo produzir qualquer trabalho científico nem conhecia as bases teóricas da antropologia. Porém, na sua revisão do Método Etnográfico, Gupta & Ferguson (1987) exemplificam algumas heterodoxias que defendiam outros pontos de vista. Radin (1970 apud Gupta & Ferguson, 1987:23), depois de se ter visto obrigado a contratar trabalhadores não treinados para levar a cabo o seu trabalho de campo, devido à grande escala do mesmo, encontrou nesta imposição uma vantagem, concluindo que a formação académica repercutia negativamente no estabelecimento de relações com os sujeitos de estudo, pois erguia uma barreira que dificultava o diálogo. Neste sentido, Radin (ib.idem) chega a conclusão de que “the essential qualification for an observer is that he posses the gift for establishing a direct an immediate contact with his source of information in as unobtrusive as possible manner”

26 Através do mestrado percebi também que muitas das reflexões que me tinham surgido ao longo dos primeiros anos de convivência e do período de filmagens em Porto Formoso, como os processos de activação patrimonial, de gentrificação e turistificação, entre outros, tinham sido amplamente estudados e analisados antropologicamente. Muitos dos fenómenos e conceitos que eu tinha identificado e descrito instintivamente, afinal tinham nome e história nas ciências sociais. O enquadramento teórico ajudou-me a organizar os pensamentos, detectar tendências, suprir lacunas e adensar reflexões, de forma a situar este trabalho de campo não só no corpus da antropologia, mas também nos processos de transformação do mundo e das relações de poder. As teorias sobre património de Kirshenblatt-Gimblett (1995, 1998, 2004) e sobre as activações patrimoniais de Prats (2006), os trabalhos sobre o património e o mar de Elsa Peralta (2003, 2006, 2008), os conceitos de “dissonance” e “disinheritance” de Tunbridge & Ashworth (1996), a modernidade líquida de Bauman (2000), os estudo de caso de Bordonaro (2007), de Fonseca (2007) e de Mendes (2008), a literatura de Corbin sobre os territórios costeiros (1989, 1995) e as questões sobre a antropologia marítima em Portugal do professor Nunes (2001, 2003, 2008), entre outros, foram textos fundamentais para refletir, estruturar e construir a narrativa visual.

VIII

27 Depois do primeiro ano de seminários do mestrado, nasceu a minha filha e fiz uma pausa de um ano. Após o intervalo e já com as ideias novas da antropologia na minha bagagem, fiz uma nova incursão em Porto Formoso. Era Fevereiro de 2012, o meu namorado e a minha filha iam comigo. Apesar de ter passado 4 anos desde a última vez que estive na aldeia, as pessoas receberam-me calorosamente e vieram cumprimentar- nos como se de amigos de longa data se tratasse, mesmo aquelas pessoas com quem tinha tido menos contacto. O grau de intimidade que tinha criado com muitas das pessoas que filmei mantinha-se e, mais do que nunca, senti que a aldeia, como um todo, se sentia completamente à vontade com a minha pessoa e a minha câmara. Acho que esta ainda maior disponibilidade para o filme se deveu a dois factores. Por um lado, eu já tinha mostrado algum material anterior e depois de o verem juntos perceberam melhor o que se estava a fazer. Por outro lado, o facto de ter voltado mais uma vez, depois de quatro anos, reforçou a confiança mútua.

28 Há três aspectos que diferenciam estas filmagens de todas as anteriores. Nos últimos anos tinha revisto e tinha tentado editar o material filmado anteriormente muitas

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vezes, e estava ciente dos erros que não poderia voltar a cometer nas gravações: deixaria mais espaço entre as minhas perguntas e as suas respostas, deixaria mais tempo para eles falarem sem eu intervir, não cortaria logo depois de filmar, deixando respirar sempre a imagem, teria cuidados especiais com o som, sobretudo em exteriores, e com os planos em contraluz. Por último, decidi nesta viagem optar por usar apenas tripé. Nas filmagens anteriores tinha usado frequentemente a câmara na mão e o monopé para poder acompanhar ao instante acontecimentos inesperados e olhares escondidos, sem perder nenhum detalhe do espaço e da ação. Mas a minha técnica não era a melhor, (os planos ficavam instáveis, tremidos) e não tinha equipamento adequado (i.e um steadycam, um apoio de ombro), pelo que não tinha conseguido ainda fazer aqueles planos sequência orgânicos, contínuos, calmos, que caracterizavam alguns dos filmes de Jean Rouch.7 Por isso e tendo em conta que as filmagens que precisava agora (mais um depoimento, a nova paisagem, as obras na tasca) eram muito específicas e estavam mais planificadas e previstas, o tripé parecia a melhor opção.

29 Por outro lado, a transformação do porto tinha-se concluído: foi construída uma doca em cimento e, consequentemente, a actividade da pesca tinha melhorado, mas ao mesmo tempo a paisagem natural tinha-se deteriorado e o “castelo” tinha sido definitivamente abandonado. Isto dava um final claro ao documentário: era o fim dado pelas circunstâncias, pela vida, pelo tempo. Essa conclusão permitiu-me estruturar o filme claramente nos três actos dramáticos de introdução, desenvolvimento e desenlace.

30 Mas o aspecto que provavelmente marca a maior diferença entre estas filmagens e as anteriores é a perspectiva antropológica que agora se acrescentava à de visitante e à de documentarista. Sem dúvida, a leitura dos autores que referi anteriormente e de muitos outros textos antropológicos, apuraram o meu olhar, ajudando a centrar-me no que era essencial para acabar de concluir o filme. A minha posição saiu reforçada, e com uma maior segurança com respeito ao que procurava, ia colocando as questões essenciais, evitando a dispersão de temas que tinham caracterizado as filmagens anteriores. O meu interesse centrava-se, acima de tudo, em como as pessoas sentiam a transformação que de facto agora se manifestava na nova paisagem da aldeia, e como esta opção de progresso tinha afectado a sua identidade. Foram as melhores filmagens em Porto Formoso: os depoimentos que recolhi foram únicos. Sem eu ter de intervir, apenas guiando o foco e colocando as questões certas, eles manifestaram a contradição das identidades e da sua projeção no futuro tão discutido na antropologia de uma forma realmente lúcida e descontraída.

IX

31 Embora para o projecto final de mestrado pudesse optar por entregar apenas o filme e uma curta memória sobre o processo de construção do mesmo, eu optei por escrever uma dissertação que acompanhou o documentário, pois precisava de espaço para expor todas as questões que me surgiram após assistir aos seminários de antropologia.8 Precisei de 150 páginas para analisar, de uma perspectiva antropológica, todas as questões que os habitantes de Porto Formoso tinham discutido durante estes anos utilizando, por um lado, as minhas filmagens como diário etnográfico e, por outro, o blogue “acasadamosca” que entretanto tinha descoberto e onde se discutiam todo o

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tipo de assuntos: futebol, gastronomia, festas populares, atividades de lazer, mas também questões políticas, o peso da igreja na comunidade, as intrigas entre habitantes e com as aldeias vizinhas, e o que mais me interessava, as opiniões sobre o futuro do porto de pescas, coração da aldeia.9 Esta nova fonte de informação ampliou a minha percepção da comunidade significativamente. Maioritariamente anónimos, os comentários deixados no blog amplificaram e aprofundaram, como uma espécie de eco, muitos dos depoimentos que eu tinha recolhido junto dos pescadores que, por não serem anónimos, ficavam às vezes pela metade. A estrutura desta dissertação pensou- se, assim, como uma melodia polifónica, como uma recriação de um diálogo imaginário entre as palavras dos pescadores, os comentários virtuais do blogue e o corpus teórico da antropologia.

32 A escrita da dissertação foi sem dúvida essencial para finalizar o meu filme. Depois de terminar de escrever a tese, sentei-me de novo na mesa de edição. O filme começou a surgir em Junho de 2012, oito anos depois de começar a filmar e depois de muitas tentativas de edição. Como se de uma catarse se tratasse, subitamente visualizei o filme como um todo. Trabalhei durante 15 dias sem pausa, não pela pressão dos prazos, mas antes porque não conseguia parar. A selecção de imagens, depoimentos e momentos de entre as mais de 60 horas de material bruto que tinha filmado e que até esse momento se tinha tornado num pesadelo, surgia agora naturalmente. A ordem das sequências aparecia clara perante mim e a história fluía quase por si só. Houve três factores que considero essenciais para explicar este processo. Em primeiro lugar, a estrutura da escrita na dissertação serviu de base para a estrutura da narrativa visual no documentário, ao ponto de, algumas das frases da voz off terem saído directamente da tese. Em segundo lugar, o facto de ter tido, nessa mesma dissertação, espaço onde incluir, quer todas as reflexões que me apareceram ao longo destes nove anos quer os aspectos que pelo seu conteúdo político ou privado não queria expor no meu filme. O filme podia agora voar mais livremente, sem o peso de ter de apresentar todas as pessoas e de contar todos os acontecimentos que registei. Depois de escrever a dissertação, tinha liberdade para poder centrar-me no que me interessava do ponto de vista visual, deixando de lado as polémicas típicas dos meios pequenos onde os poderes e as pessoas se confundem.

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Excerto 5: Exemplo de entrevista não incluída no documentário final, por respeito com a pessoa entrevistada, devido ao conteúdo polémico e “intriguista” da mesma,. Porém, esta entrevista foi analisada na dissertação teórica.

34 Em terceiro lugar e se calhar o mais importante, perdi o medo de assumir a minha presença no filme. Por um lado, o contacto com as teorias antropológicas, que giram em torno da análise da relação entre o Eu e o Outro, deram-me uma nova perspectiva. Por outro lado, as orientações da professora Catarina Alves Costa, o contacto com a história do filme etnográfico e os filmes que no seu seminário de filme etnográfico foram vistos e analisados, abriram-me o caminho. Neste sentido, um dos filmes que mais me influenciaram foi “El cielo gira”, da realizadora espanhola Mercedes Alvarez.10 Neste documentário, a realizadora faz uma viagem às suas origens, usando a sua própria voz na primeira pessoa para acompanhar o que parecem ser os últimos respiros da aldeia onde nasceu, antes do seu desaparecimento. Sem nunca abandonar o tom intimista, a

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autora faz um retrato do tempo universal da ruína, do transe do desaparecimento. Esse filme fez-me pensar que se essa experiência conjunta de tempo biográfico (o meu e o dos habitantes da aldeia) e de memória e vivência colectiva pudessem projectar-se sobre um tempo profundo, o meu filme valeria a pena. E para que isso acontecesse, o elo de ligação deveria ser o meu relato, a minha voz. Por isso, se na dissertação foi feita uma análise e uma reflexão teórica sobre as questões de identidade no passado, no presente e no futuro desta comunidade, agora no documentário passaria a relatar a experiência pessoal que supôs para mim os longos anos de convivência com estas pessoas. Enquanto na dissertação procurei sempre manter a objectividade, no filme mergulhei na minha própria subjectividade: contra a ideia inicial de apagar a minha presença do filme, passei a querer incluir a minha própria voz, em primeira pessoa e em espanhol, minha língua materna. Através deste elemento eu assumia perante o público a minha condição autoral. “Reflexivity […] referred to a process whereby the film- maker made clear to the audience, within the body of the film, through devices such as voice-over or title cards, how their personal subjectivity had come into play in the making of the film […] Rather than aspire to some illusory objective representation, they were content to allow the relationships through which a film was being made to be revealed directly in the filmic text itself. (Henley 2009:11)

35 O filme contaria a forma como eu vivi os anos de contacto com esta comunidade e a relação da minha história com a história dos seus habitantes, projetando estes tempos biográficos sobre o tempo mais profundo da transformação. Porem, na articulação de todos os tempos, procurei sempre adoptar uma “postura de humildade perante o mundo” tal e como defende David MacDougall: sem deixar de assumir a responsabilidade pelo seu trabalho autoral, o cineasta deveria procurar desenvolver o seu trabalho pessoal em colaboração com os sujeitos filmados, respeitando os indivíduos cujo mundo tomou a liberdade de representar (Henley 2009: 21). Esta opção resolveu muitos dos problemas de edição que tinha encontrado até esse momento, mas mais importante, permitiu-me fazer o filme que, sem saber, sempre quis fazer e que apresentei na Mostra de Filme Etnográfico de Vila Real (2013).

X

36 Depois de entregar o filme com a dissertação, “Apanhados na rede” teve a sua primeira estreia em Junho de 2013, no 13th International Festival of Ethnographic Film in Edinburgh, organizado pela Royal Anthropological Institute of Great Britain & Ireland (RAI) . Para a estreia, retoquei o filme com a ajuda de amigos da área:, o Tó Trips para a música original, o Sérgio Gregorium para a pós-produção de som, a Raquel Castro para os acabamentos finais da edição. O filme acabaria por ter 58 minutos, em vez dos 70 iniciais. A recepção não foi um sucesso. Se por um lado o filme foi exibido num horário péssimo e numa sessão onde era o ultimo de três filmes de uma hora cada, o ambiente do festival era muito académico e a maioria dos filmes estavam filmados em lugares muito mais exóticos do que o meu: favelas na Índia, tribos na Nigéria, emigrantes no Nepal eram alguns dos temas dos documentários. Como reconhecem Gupta & Ferguson na sua crítica ao confinamento local da etnografia, há lugares mais plausíveis para serem escolhidos para o trabalho de campo que outros: Although anthropologists no longer think in terms of natural or undisturbed states, it remains evident that what many would deny in theory continues to be true in

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practice: some places are much more “anthropological” than others according to the degree of Otherness from an archetypical anthropological “home”. (1987: 13)

37 É claro que fiquei um bocado desiludida, pois era a primeira vez que mostrava publicamente o meu trabalho, mas o mais importante para mim era mostrar o filme em Porto Formoso e após voltar de Edimburgo, consegui pela primeira vez financiamento para viajar aos Açores.11 Organizei as coisas para estrear o filme na altura das festas da aldeia, Nossa senhora de Graça, que têm lugar no início de Setembro. Falei com a comissão das festas, que aceitou mostrar o filme e providenciou um espaço e cadeiras. Tratava-se da Casa da cultura, que se encontrava em construção e tinha no seu interior pouco mais do que paredes de cimento. Apesar da má qualidade do espaço, acabei por decidir avançar com o mesmo, pois a única alternativa com melhores condições era o Cine Teatro de Ribeira Grande, situado a uns 20 km da aldeia, demasiado longe para os habitantes que não tinham carro. Cheguei a São Miguel uma semana antes. Falei com as pessoas da aldeia e com amigos de fora, distribuí cartazes e postais pela freguesia, divulguei pelas redes sociais e falei, claro, com os protagonistas para assistirem. Eles é que não podiam faltar. E prometeram não o fazer.

38 No dia da estreia e apesar do meu medo sobre a adesão das pessoas, a verdade é que a sala encheu: foram 180 cadeiras e muitas pessoas em pé. Veio quase toda a aldeia, velhos, crianças, pescadores, lavradores, homens, mulheres e muita gente de fora, jornalistas, amigos, agentes culturais, pessoas da política. A verdade, no entanto, é que os protagonistas não apareceram. Quando liguei ao Paulo Jorge, um dos pescadores que mais aparecia no filme, a sua filha atendeu: disse-me que o seu pai estava a arranjar o quintal (às oito da noite). Os outros não consegui contactar. Uns poucos apareceram no meio do filme e outros apenas no fim. O mestre Ricardo, outro dos protagonistas, chegou no fim e veio falar comigo. Acabou por me explicar: não queria ver o filme à frente de toda a aldeia porque sabia que iria chorar. Percebi. Ao longo destes anos, o mestre Ricardo passou de comprar um barco novo a vendê-lo para trabalhar nas obras, tudo porque as obras no porto não foram feitas a tempo, devido às políticas, economias e intrigas típicas de qualquer empreendimento público. Durante o filme, eu sentei-me na última fila. Estava muito nervosa e durante toda a projecção tive medo de que as pessoas se começassem a levantar e sair. Também não me atrevia a olhar para as caras deles durante o visionamento do filme, com medo de ver expressões contrariadas, aborrecimento. Só comecei a relaxar quando vi que iam ficando cada vez mais calados, mais atentos e que a sala não só não esvaziava como ficava cada vez mais cheia. Ouviam-se os murmúrios das pessoas, que comentavam e apontavam para o ecrã ao reconhecer amigos e familiares, pessoas que tinham crescido , envelhecido ou morrido: riam-se com muitas imagens, ficavam silenciosos com outras, mas nunca indiferentes. Até ao fim do filme não sabia qual seria a recepção, mas o meu medo dissipou-se rapidamente. Após um longo aplauso, as pessoas vieram ter comigo, como se de um casamento se tratasse, para dar os parabéns, para me expressar como se arrepiaram, riram, lembraram e gostaram do filme: a aldeia estava em festa! Os amigos e espectadores de fora também gostaram, falavam da honestidade, da transparência, da lucidez das pessoas que falavam e da capacidade de mostrar opiniões divergentes, sem tomar partido em nenhuma: descreviam o filme como uma história de amor com a aldeia. Mas o que mais me tocou nessa noite foi ver como os espectadores iam dar os parabéns aos pescadores e habitantes que tinham participado no filme: diziam-lhes que tinham falado bem, que fizeram um grande papel. O reconhecimento era sobretudo

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para eles e isso foi fundamental. Foi o dia mais importante, o dia pelo que tudo valeu a pena.

39 No dia a seguir à estreia e ainda com as emoções à flor de pele, viajei directamente para Vila Real, onde mostraria o filme perante um público completamente diferente, um público principalmente vindo da antropologia. Depois da experiência em Edimburgo estava desconfiada, mas a verdade é que o filme foi bem recebido. Se calhar o facto de ser um público principalmente português, (e também brasileiro), ajuda na percepção desta sociedade. Apesar de não conhecerem a aldeia, as pessoas riram e ficaram em silêncio, arrepiaram-se e aplaudiram. Os adjectivos repetiam-se, honesto, verdadeiro, lúcido: história de amor. Depois desta exibição fiquei bem mais segura em relação ao filme.

40 Um mês depois, em Outubro, o meu documentário foi para o Festival de Cinema ambiental de Seia. Embora eu tivesse feito a inscrição do filme, nunca pensei que fosse seleccionado, pois nunca tinha pensado no meu filme em termos ambientais, nem nunca foi a minha intenção fazer um filme sobre o ambiente. A verdade é que, quando agora revejo o filme, vejo sem dúvida uma abordagem a questões transversais às discussões ambientais. Este filme fala, e muito, sobre o ambiente embora não da poluição, das fábricas e carros, da falta de água e doutras ideias associadas tipicamente às questões ambientais. Mais uma vez, o filme foi mostrado perante um público bem diferente, pessoas do interior de Portugal, estudantes, pessoas ligadas ao ambiente. E mais uma vez, o filme foi bem recebido e as pessoas vieram falar comigo no fim do filme. Uma semana mais tarde, ganhou o prémio “Camacho Costa” para o melhor documentário longa-metragem da competição Lusofonia.

Conclusões

41 Dificilmente terei a oportunidade de voltar a acompanhar uma história durante tantos anos. É preciso que muitas circunstâncias convirjam e aconteçam na altura certa para que as histórias possam ser registadas longitudinalmente e contadas de uma forma coerente ao público. É preciso ter o tempo, a paciência e a disponibilidade e, numa época em que o tempo voa, é cada vez mais difícil contar com qualquer uma destas três condições. É preciso ter alguma ajuda financeira, porque ninguém vive do ar, mas é quase impossível arranjar financiamento para este tipo de produções e fazer outro filme sem nenhum apoio seria para mim desmoralizador. E é preciso ter concentração: o confronto com horas intermináveis de material e com uma história cujo desenvolvimento não se controla é intelectualmente esgotante. Neste sentido, a antropologia foi sem dúvida essencial para a finalização do meu documentário com sucesso. Dito isto, não tenho qualquer dúvida em afirmar que, como o prato que se faz ao sabor de um lume brando durante horas, o filme que se faz com tempo é único. E numa altura da história em que, contra o aceleramento, contra o imediato e o mediatismo global, surgem movimentos de slow food, slow cities, slow travel e slow schools, defendo veementemente a existência de um movimento correspondente na indústria do cinema, que poderia chamar-se slow filming. Os documentaristas devem lutar pelo direito de filmar com tempo e não seguindo planos de produção intensivos e irracionais, impostos pelas limitações financeiras, que obrigam a concentrar a experiência do contacto, o conhecimento e o convívio com outras comunidades em três semanas. Ver a realidade transformar-se perante os teus olhos, sentir a vida mudar com

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a história, entrar na vida dos outros e deixar os outros entrar, devagar, é, sem dúvida, uma experiência imensamente rica, pessoal e profissionalmente. Acredito firmemente que é uma experiência que qualquer realizador deveria tentar, pelo menos, uma vez na vida. To pull off a successful longitudinal documentary really means having the stars align on so many fronts – no wonder it doesn’t happen too often. But when it does, for the viewer and the filmmaker, there’s no more compelling or moving a form. No other kind of fiction or documentary filmmaking can match its power to transport us deeply into the lives and experiences of others different from ourselves. And that is something that we need in this world now more than ever. (James 2008)

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NOTAS

1. Steve James nasceu em América em 1955, e graduou-se pela Southern Illinois University Carbondale. Cedo começa a colaborar com a Kartemquim Films, uma produtora sem fins lucrativos sediada em Chicago. Além de produtor, é realizador de documentários independentes. Entre os seus trabalhos destacam-se o documentário “Stevie”, que recebeu o prémio Joris Ivens do Festival Internacional de Documentário de Amsterdam (2002), e “Hoop”, vencedor do prémio do público no Festival Sundance (2004). O artigo referenciado neste trabalho foi publicado após a estreia do seu documentário “At the Death house door” (2008), um filme sobre Carroll Pickett, juiz de execução da unidade prisional “Huntsville”, no Texas. Pickett presidiu a mais de 95 execuções durante 15 anos. Inicialmente a favor das execuções, tornou-se um activista contra a pena de morte. 2. Este foi o primeiro título do documentário, associado ao título da dissertação teórica que acompanhava. Embora este título tivesse sentido do ponto de vista antropológico, mais tarde decidi mudá-lo, para evitar possíveis mal entendidos, tanto entre a comunidade onde foi filmado, que o poderia interpretar negativamente, como pelo público em geral, que parecia pensar em “rede” antes no sentido virtual da palavra do que no sentido literal. O título escolhido foi “Meu pescador, meu velho”, em honra a uma frase dita por um dos protagonistas do filme e grande amigo, que nos deixou recentemente. 3. Provavelmente influenciados pelo mortífero tsunami que teve lugar no Oceano Pacífico apenas uns meses antes, em Dezembro de 2004.

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4. Foram entrevistados, entre outros, o presidente da Junta de Porto Formoso, o Sr. Emanuel Faria, o dirigente sindical Liberato Fernandes e Luís Rodrigues especializado em assuntos do mar na ilha de São Miguel. 5. O dialeto micaelense falado pelos porto formosenses é especialmente difícil de perceber para quem vive no continente e até noutras ilhas dos Açores. A barreira linguística entre mim e eles foi superada com gestos no início, até que fui aprendendo a língua com horas de convivência. Porém e depois de fazer vários testes, percebi que seria necessário legendar o documentário na norma portuguesa do continente para poder ser percebido fora da aldeia. 6. O meu conhecimento do português e mais especificamente da variante micaelense progrediu consideravelmente, e a barreira linguística que se erguia no início foi ultrapassada. Se no início estava limitada a observar e registar apenas as formas de cultura que o olho podia ver, ao longo do tempo fui adquirindo maiores conhecimentos, fui sendo capaz de registar a informação de forma cada vez mais detalhada. Isto permitiu-me mergulhar em níveis mais profundos desta sociedade, ultrapassando a superficialidade inicial e recolhendo algumas das suas complexidades. 7. Como indica Henley (2009:12) Rouch fez em plano sequência várias curtas-metragens sobre as cerimónias de possessão de espíritos em Níger, mas a forma mais elaborada deste tipo de filmagem foi a série de filmes que realizou sobre a vida cerimonial dos Dogon (Este do Mali) que começou em 1966 e continuou durante uma década. 8. Título da dissertação: “Apanhados na rede. Considerações acerca das noções de progresso e modernidade na comunidade piscatória de Porto Formoso”. Acessível no repositório da Universidade Nova de Lisboa, . 9. Ver . O nome do blogue refere-se a uma paragem de autocarros de Porto Formoso onde as pessoas antigamente se juntavam para passar o tempo: ali se falava de futebol e de política, dos vizinhos e inimigos, de coisas sérias e brincadeiras e se discutiam todo o tipo de assuntos que diziam respeito à aldeia. É com este mesmo objectivo que, em 2005, em plena febre dos blogues em Portugal, nasce pela mão de Bruno Raposo, um jovem de 31 anos natural de Porto Formoso, a “casa da mosca virtual”. Após a publicação do primeiro post em Julho desse ano, o blog cresce a uma velocidade estonteante. Desde o seu nascimento em 2005 até hoje, o Bruno Raposo, cujo nickname é “O Regedor” publica entre 2 e 5 posts por mês de temas diversos (cultura, política, festas, novidades, etc) , mas sempre relacionados com o Porto Formoso. Em média, cada post suscita entre 40 a 80 comentários dos bloggers. Em Julho de 2006, A Casa da Mosca atingiu as cem mil visualizações e no mês de Julho de 2012 registava um total de 187.953, o que mostra que o blogue não só não tem perdido interesse, mas antes continua a crescer. 10. “El cielo gira” (2004). Realizada pela espanhola Mercedes Alvarez, conta o regresso da realizadora às suas origens para contemplar a extinção de uma aldeia, ao mesmo tempo que tenta recuperar as imagens do lugar quando ainda transbordava vida, quando, em princípios do século, a aldeia contava com 400 habitantes (). 11. Cortesia da revista Up, da companhia aérea TAP, que prepara um artigo sobre a aldeia e a estreia do filme na mesma, a ser publicado no próximo número de Dezembro (2013) e que estará disponível em todos os voos da TAP.

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RESUMOS

Em forma de diário de filmagem, a autora percorre os nove anos que passaram desde que teve o primeiro contacto com a comunidade que depois veio a filmar até à estreia do documentário e à devolução das imagens aos sujeitos filmados. No texto, a autora analisa o papel da antropologia no processo de construção do filme e mostra, baseando-se na sua própria experiência, as vantagens e desvantagens de filmar os mesmos sujeitos ao longo de tanto tempo.

In the form of a kind of a shooting log, the present article recounts the nine years that went by since the author's first encounter with the community, until the premiere of the documentary filmed along this time, when the images were finally "given back" to the portrayed characters. The article examines the role of anthropology in the process of film-making and, based on the author's practical experiences, discusses the advantages and disadvantages of recording the same subjects during such a long time.

ÍNDICE

Keywords: longitudinal documentary, slow filming, visual anthropology Palavras-chave: documentário longitudinal, slow filming, antropologia visual

AUTOR

AMAYA SUMPSI UNL-FCSH, Lisboa, Portugal [email protected]

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“Insomnolências” e notas de campo do filme “P’ra Irem P’ró Céu” “Insomnia” and field notes on the film “P’ra Irem P’ró Céu”

Pedro Antunes

NOTA DO EDITOR

Recebido em: 2013-11-30 Aceito em: 2014-03-07

“Insomnolências” e notas de campo do filme “P’ra Irem P’ró Céu”

1 A existência em cor transparente depois da morte – a alma despida de um corpo -, vagueia à procura de um outro lugar e insolentemente pede para ser encomendada. As mulheres da aldeia acodem. Na escuridão da noite, cobertas de negro, caminham entre paredes de xisto e sobre um chão de paralelos, como sombras do mundo do Purgatório. Encontram-se num lugar alto da aldeia para a Encomendação das Almas. As almas sofrem e a Encomendação faz-se P’ra Irem P’ró Céu. Como viagem a um território invisível, realizei este filme (2013) que trabalha a possibilidade de captar o real invisível, constituí-lo como matéria-prima e matéria-chave de um processo de conhecimento. O filme etnográfico pode ser pensado como uma fenda de imagens e sons que se constrói entre o que se vê e o que está invisível, entendendo essa fronteira como espaço de criatividade entre espectros da experiência social que são igualmente existentes e importantes. Construir um texto ou um filme pelo invisível é um caminho para a impureza: uma antropologia do negativo visual pode questionar o científico e as relações de produção que constituem os filmes que fazemos e vemos.

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Imagem 1

2 P’ra Irem P’ró Céu resulta do processo de pesquisa exploratória, de um primeiro contacto com o ritual, na Quaresma de 2013. Nessa incursão, fiz-me acompanhar de equipamento audiovisual, de modo a realizar um pequeno filme para um seminário prático na universidade1. Resultou o filme de cerca de vinte minutos que mostrei no Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (2013). Tratar-se-ia de mais um filme de constatação etnográfica? Haveria urgência nessa etnografia? Terei eu feito um retrato exótico sobre uma prática da cultura popular? Que pertinência teria tal objeto para os debates da antropologia visual?

3 A Encomendação das Almas é um ritual do culto dos mortos praticado no tempo da Quaresma, em que algumas mulheres se reúnem para rezar pelas/às almas dos mortos e de pessoas em grande sofrimento. Outrora praticada exclusivamente por homens, a Encomendação das Almas é atualmente um trabalho religioso feito sobretudo por mulheres2. O ritual enquadra-se num conjunto de práticas, incluindo penitências, orações e obras de caridade, características do tempo da Quaresma católica. Se entendermos cada Encomendação como um “processo ritual”, como nos ensina Victor Turner (1969), poderemos descrevê-lo em três fases correspondentes às de pré- liminaridade, liminaridade e pós-liminaridade. Dá-se, primeiro, uma cessação das atividades de rotina das mulheres, sejam em espaço doméstico ou fora. Fazendo um percurso a pé, sozinhas ou acompanhadas, encontram-se num lugar com características específicas (exterior e elevado em relação à povoação). Daí, coletiva e imperativamente, encomendam as almas, seguindo determinadas direcionalidades corporais e de posicionamento coletivo (em círculo fechado ou em coro, em grupos estáticos ou circulantes pela aldeia). Pede-se, cantando em tom plangente, a entidades divinas (Deus, Jesus Cristo, Virgem Maria, Padre São Francisco3) que aliviem as penas das almas do Purgatório e pede-se aos que ouvem que se juntem nas preces. O canto termina, as mulheres podem conversar e regressar a casa. Nas Encomendações, dependendo do grupo, usam-se xailes pretos, roupa lutuosa ou roupa do dia-a-dia; nalguns casos usam- se lanternas a óleo.

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4 O ritual desapareceu em grande parte do território nacional, mas é hoje entendido pelo poder local como tradicional e, como tal, encontra-se em período áureo de revitalização. A Encomendação das Almas passou a integrar um repertório patrimonial de construção identitária a nível local e a ser objeto de promoção do turismo.

5 Realizar um filme etnográfico sobre a Encomendação das Almas na atualidade pareceu- me um trabalho relevante para pensar nas dinâmicas de revitalização de práticas religiosas ditas populares, permitindo mostrar novos usos de práticas culturais em contexto rural. Não se trata então de um filme sobre algo que está a desaparecer, uma etnografia de urgência. Bem pelo contrário, estamos perante um caso bem expressivo do caráter contestado, temporal e emergente da cultura (Clifford 1986: 19). Também não é um filme de índole científica, que pretenda constatar e representar objetivamente os processos de revitalização do ritual, embora os inclua necessariamente em vários dos seus aspetos.

6 O problema da representação visual da cultura tem sido um dos principais objetos de debate no campo da antropologia visual. Procurando perceber a atribuição da qualidade de “conhecimento antropológico” aos produtos escritos e fílmicos, Lucien Taylor (1996) diagnostica “iconofobia” aos antropólogos, uma ansiedade e medo em relação ao visual. Muitos consideram que a câmara distorce o visível, simplificando-o e descontextualizando-o, e que impõe uma visão, subtraindo a possibilidade de crítica. O visual é visto como poluidor, elemento de desacreditação do conhecimento científico, por isso a atitude de muitos cientistas sociais é a de desprezo e desconfiança em relação ao filme etnográfico.

7 James Clifford definiu a escrita etnográfica como um processo artesanal de fabricação de descrições culturais. “Ethnographic writings can properly be called fictions in the sense of ‹‹something made or fashioned...››” (1986: 6). A “crise da representação” trouxe uma maior consciência do caráter construído das etnografias, mas não aliviou o fardo negativo da ficção associada à imagem e ao filme; pelo contrário, “os realizadores de filme etnográfico estão a tornar-se cada vez mais ingénuos em relação à natureza da representação” (Taylor, 1996: 66), por pensarem a visualidade apenas como ilustrativa ou subordinada ao texto. A distinção entre escrita/filme tem um caráter marcadamente hierárquico. “A visualidade torna-se meramente auxiliar, mais ilustrativa do que constitutiva de conhecimento antropológico” (Taylor, 1996: 66).

8 No livro Principles of Visual Anthropology, obra de 1975, os filmes etnográficos são entendidos como uma forma de recolha de dados ou como reprodução (duplicativa) fidedigna da realidade (MacDougall, 2006: 265). Persiste a ideia do visual como uma ferramenta metodológica neutral ou de constatação da verdade científica, em detrimento do seu entendimento como uma forma de expressão, de engajamento e de produção de significados e associações. Para contrariar esta tendência, David MacDougall propõe a adoção de novos princípios para a produção de antropologia visual. Sugere a criação de estratégias que explorem as várias dimensões da vida social, mas que não se restrinjam a abordagens ao visível, afirmando que o não-visível - as emoções, o intelecto e os restantes sentidos - são um caminho para a representação da realidade social que está para além do campo do visível (2006: 269).

9 A experiência de realização de um filme etnográfico trouxe-me a um entendimento desse meio (mais do que modo) de fazer antropologia como expressão de matriz realista que pode ser liberta das tendências de um visualismo objetificador, demonstrativo ou ilustrativo. A captação de realidades ínfimas, mas essenciais, lembrando os

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imponderabilia de que escreve Malinowski 4, pode realizar-se formalmente, através de processos de experimentação artísticos, visuais e sonoros, aproximando o espetador da(s) teia(s) de significados enredadas no complexo de uma performance cultural.

10 A morte, enquanto elemento de impureza na ordem social da vida (Hertz 1960: 80), é o fenómeno coletivamente representado na performance da Encomendação das Almas. Para Robert Hertz, a “impureza” resulta da influência nefasta de poderes sobrenaturais negativos, obscuros e destruidores, também associados à magia e ao inferno, sendo contrária ao universo do sagrado/puro (1960: 93-98). Um filme etnográfico que procure os significados do mundo que o transcende e que nele se inscreva poderá também ser um meio de impureza com a capacidade de contaminar quem o faz e quem o vê Partindo da minha experiência de realização do filme etnográfico P´ra Irem P’ró Ceu, procuro com este artigo refletir sobre como materializar visualmente o invisível. Em primeiro lugar, proponho-me pensar o filme etnográfico como modo de aproximação aos símbolos e significados que são mobilizados pelos que cantam e escutam as Encomendações das Almas, num percurso em que interrogo o significado do ritual para as suas praticantes, na vida comunitária das aldeias e nas suas relações com o exterior (pela exibição num festival municipal), visando conhecer os diferentes discursos, práticas e representações que intersetam o ritual.

11 Reconhecendo que o filme etnográfico pode ser um importante meio para os processos de patrimonialização, impõe-se questionar o seu caráter contraditório: ao mesmo tempo que contribui para a fabricação de produtos culturais com valor de autenticidade, tem vocação, caso se adote uma perspetiva crítica, para dar visibilidade às dinâmicas de “objetificação” (Handler 1988) e mercadorização de tradições populares – ao acompanhar e sintetizar os processos de descontextualização e recontextualização destas.

12 Para além das questões dos usos da cultura, importa pensar o potencial do filme como veículo de expressão visual do fundo religioso do ritual da Encomendação das Almas, daquilo que está para além da camada folclórica. O enquadramento, seletivo e minucioso, ou a montagem, são pensados enquanto formas/processos cinematográficos de composição estética para a expressão visual do sagrado, na esteira da reflexão de Paul Schrader sobre os filmes de Bresson, Ozu e Dreyer (1972).

13 Considero haver algo de semelhante entre os rituais de morte e os filmes etnográficos. Se os primeiros são formas de legitimar e autenticar a morte, através de um duplo processo de desintegração e síntese (Hertz, 1960: 70), também os filmes etnográficos criam uma representação que “mata” e conflui para uma segunda vida da realidade representada (Kirshenblatt-Gimblet, 1999). Parece-me então importante questionar qual é a impureza, na realização de um filme etnográfico, que preside à constituição de um objeto de conhecimento antropológico.

14 Para uma reflexão sobre o processo de realização do filme P’ra Irem P’ró Céu (2013), optei por escrever pequenos textos sobre o aqui e agora de realizar um filme etnográfico. Este ensaio compõe-se de narrações impressionistas de histórias, entrecruzadas por microinjeções de reflexão teórica dando conta dos vários momentos da realização do filme, que servem para nos transportar para o aqui e agora do processo de realização do filme. Pretendo configurar sentidos que possam dar conta da complexidade do vivido, provocar e, no mesmo passo, inviabilizar sentimentos de alteridade e estranhamento do leitor/público e facultar uma empatia pelos sujeitos representados. Os processos

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narrativos adotados serão ferramentas fundamentais para recriar sentidos, intimidade e (in)compreensão.

15 Na nota de campo intitulada “Corga da Lomba: os ratos roedores de memórias”, começo por narrar a experiência sensorial do primeiro contacto com o terreno. Comparam-se a durabilidade e visibilidade do registo fílmico com a durabilidade e invisibilidade da memória. Segue-se a nota “Corga Cimeira: a economia moral da representação”, em que se tenta resgatar a sensação de filmar o ritual da Encomendação, retratando a transformação de uma sensação de estranhamento inicial num envolvimento multissensorial (através da ideia de “cinetranse”), em que a câmara se torna num espelho da performance. Na nota sobre “Cunqueiros: o ‹ameaçadoramente estranho de um ritual recontextualizado”, representa-se, através de uma situação concreta, o papel da câmara no estímulo ao processo de “encenação do popular” - são as próprias encomendadoras que produzem a imagem etnográfica. Na nota de campo “Proença-a- Nova: a segunda vida ao quadrado”, descreve-se um evento municipal de celebração da Encomendação das Almas, em que as várias aldeias do município mostram as suas variações da Encomendação a um público que assiste, como se se tratasse de uma mostra de tradições locais; aqui questionam-se as percepções e significados entre a primeira e a segunda vida do ritual. O declínio e a revitalização da prática quaresmal das Inselências 5na aldeia de Chão do Galego é descrita numa última nota de campo, onde se questiona sobre a necessidade partilhada por antropólogo e sujeitos representados de mostrar ou demonstrar com recurso ao visual. Segue-se uma reflexão sobre processo de edição do filme, na qual se apresentam ideias/perspetivas utilizadas na edição do filme, nomeadamente o desejo de construir uma ficção que pudesse resgatar o aqui e agora vividos em campo, através de uma montagem que pudesse também exprimir a impureza e o sagrado experienciados. Na conclusão, problematizam-se as relações entre o ritual da Encomendação das Almas e o filme etnográfico, procurando pensar o lugar do realizador entre a realidade observada e o objeto fílmico.

Corga da Lomba: os ratos roedores de memória

16 Na Câmara Municipal, tinham-me dito para ir às Corgas, a mais “tenebrosa” das quatro aldeias do concelho de Proença-a-Nova onde se faz a Encomendação das Almas. As eólicas pontuavam a paisagem. As nuvens atravessavam as pás das turbinas. A meio da maior reta, na estrada que vai de Proença-a-Nova às Corgas, num alto, no lado poente, estava uma alminha abandonada. Parei o carro. Ouviam-se os cortes sombrios das hélices no ar. Os azulejos tinham sido colocados sem ter em consideração a coerência da imagem e da verticalidade dos anjos. Vi ao longe uma povoação. Nossa Senhora do Carmo presidia a um cofre violado e ferrugento. Desci para a aldeia. Encontrei mais alminhas pelo caminho, parei para filmar uma delas e entrei na aldeia. Num largo, vi um café. Apeei-me e entrei. A ti Eugénia é encomendadora. As duas filhas e a nora, que trabalha com ela no café, também. Foram chamar a dona Gracinda, outra encomendadora, que foi a casa buscar as chaves da igreja. Com um cão castanho sempre atrás de nós, levou-me até à igreja. Contou-me que foi feita a expensas do povo das Corgas. Falou-me sobre a Nossa Senhora do Carmo, que salvou a aldeia dos franceses. ‘Se nos salvar, construímos uma Igreja.’ Veio o nevoeiro, a aldeia ficou escondida e os franceses passaram ao largo daquela cova de brumas. Só deixaram a memória de uma

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grande dívida à Nossa Senhora, que se paga com muita devoção. Em 2003, a mesma Senhora viria a salvar a aldeia das chamas que lavraram tudo em volta.

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17 Prometi que voltaria para filmar o ritual, quando a noite caísse, e fui dar uma volta pela aldeia. Havia mais alminhas. Uma mostrava a virgem, anjos anafados e corpos em súplicas, sob os pés nublados da santa. Noutra, em tons de azul e branco, agonizava o Cristo pregado. Em frente a essa, estava uma paragem de autocarro. O céu carregado ameaçava abrir-se. Interpelei os três velhos sentados na paragem. Entre a conversa de curiosidade – ‘o que é que eu fazia ali?’ – e os lamentos das agruras passadas, uma velha lembrou-se que o marido era grande cantador das almas. ‘Ficou tudo gravado em cassetes’, mas guardou-as num aparador da cozinha e os ratos roeram-nas. Ponderei a durabilidade dos meus registos. Tendemos a acreditar que o registo, em fitas ou em folhas, há-de vencer o tempo. Contudo, muito provavelmente, as cassetes miniDV que guardavam aquele momento estariam em breve ameaçadas por ratos roedores de memória. Quando quis ver o filme Casegas 1 - Procissão dos Bêbados (Luís Galvão Teles, 1975), que documentou a Encomendação das Almas na Beira, a responsável do Arquivo Nacional da Imagem em Movimento informou-me, lamentando, que o ‘paradeiro dos negativos originais se desconhece, razão pela qual o material existente em arquivo se encontra classificado como matriz de conservação, não estando portanto disponível para acesso.’ A ausência ou as interdições de acesso ao material visível fizeram da memória um recurso de qualidade multissensorial, intelectual e emocional - um caminho possível para a expressão do não-visual na experiência de encomendar.

18 Começou a chover. Uma mulher, ex-emigrante que se senta rotineiramente na paragem a conversar com os vizinhos, veio em meu socorro e ofereceu-me um saco de plástico para proteger o kinoeye da água que caía do céu. Agradeci e abriguei-me no interior duma alminha porque não queria apressar os ratos roedores de memórias. De dentro da alminha procurei enquadrar a serra coroada por eólicas. No longo gesto de contemplação, já ao anoitecer, a luz de um candeeiro municipal inscreveu-se progressivamente no plano. Os cães ladravam e a luz elétrica iluminava algumas ruas

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da aldeia. Nos montes acima, o coro das luzes das ‘ventoinhas’ lembrava que as dinâmicas da modernização poderão sempre trazer surpresas. Face a esses, em tons laranja, brilhava o ‘laço’ formado pela iluminação pública das ruas da aldeia, obscurecendo-se entre espessas camadas de nevoeiro, o mesmo fenómeno meteorológico que salvara a povoação das invasões francesas6.

Corga Cimeira: a economia moral da representação

19 De câmara ao ombro segui as encomendadoras de almas nos seus passeios noturnos. Embrulham-se em xailes de lã preta - ‘Ó homem, eu já volto!’ -, despedem-se dos maridos, imersos em imagens televisivas. Partem para salvar os mortos do Purgatório. Chamam porta a porta as vizinhas que encomendam com elas, os cães acompanham, conversas com raros transeuntes animam o trajeto. O grupo de três que eu acompanhava chegou ao local da encomendação. Fora escolhido de propósito para esse dia, em que seriam filmadas. Apareceram mais quatro mulheres e posicionaram-se em dois coros, frente a frente. Nas restantes trinta e nove noites de encomendação, os grupos estiveram mais distantes, mas naquele dia fazia-se assim para que todas pudessem ser filmadas.

20 Comecei a gravar. Sentia a estranha presença prostática de olho mecânico e de ouvido eletrónico. Bem conscientes da minha presença, as encomendadoras faziam-se retratar, deixando captar uma performance de trocas com o divino, em favor das almas do Purgatório7. Diante deste “duplo dispositivo de morte” (Medeiros, 2009), dei por mim numa espécie de “ciné-transe”, estado de quem está com uma câmara e um microfone e não pode então continuar no seu self do costume; passa-se à estranheza de viver numa galáxia audiovisual (Rouch, 1978: 7). Inebriaram-me os trânsitos sonoros e emotivos a corporalidade e as respirações que encenam o poder do ritual. A imagem capturada foi contaminada por esse material não-visível; a força do descontrolo só pode expressar-se pela via da sensibilidade e da improvisação que formatam enquadramentos emergentes e não pré-determinados.

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21 Depois de encomendadas as almas, bebe-se uma pinga com o estudante (mais conhecido por ‘jornalista’). A adega é, por excelência, o espaço das sociabilidades masculinas. No entanto, como observei noutras ocasiões, as mulheres saberão decidir que horas serão mais apropriadas para o marido deixar o espaço onde se convive com outros homens. Nesse dia, contaram-se histórias e lembraram-se factos. Antes eram os homens que pediam pelas almas dos mortos. As mulheres ‘não podiam’ andar àquelas horas da noite pelas ruas, nem sozinhas nem acompanhadas. Hoje já não é assim. Desde há várias décadas, têm sido os homens a sair para Suíça e França e, entretanto, os costumes mudaram.

22 Contam que, uma vez, um não foi encomendar as almas. A mulher insistia para ele ‘ir embora encomendar as almas’, mas o ti Manel deixou-se dormir. Passado pouco tempo, levantou-se abruptamente, assustado com alguma coisa que o sono lhe trouxe. Não se sabe a causa do susto, mas o homem disse ‘que foi as almas que o levantaram para ele ir rezar pelas almas’. Ao filmar algumas horas de conversas entre estas mulheres, fiquei a saber que a comunidade inclui também aqueles que já morreram. Outros que estão ausentes e que têm uma importância fundamental são os emigrantes. Na verdade, são esses os que mais patrocinam a construção ou melhoramento do património religioso e os eventos festivos (religiosos ou não) da aldeia.

Cunqueiros: o “ameaçadoramente estranho” de um ritual recontextualizado

23 No dia em que fui para os Cunqueiros, as chuvas intensas, aluimentos de terra e derrocadas fizeram vítimas mortais entre os que circulavam, como eu, em estradas nacionais. Cheguei ao café da aldeia, onde me esperava um grupo de encomendadoras, avisadas por um telefonema meu. Vestidas de negro e armadas com chapéus de chuva, encaminharam-me para uma antiga escola primária construída segundo o bem

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conhecido “Plano dos Centenários”. Testemunha de uma pirâmide demográfica invertida, mas também de políticas estatais de centralização da educação, aquela escola serve agora, entre outras coisas, para as aulas de ginástica das mais velhas e, naquela noite, foi ali que se fez a encomendação.

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24 Sobre o estrado de madeira, em frente do quadro caoticamente gizado, posicionaram-se em coro. Algumas delas tinham ali resolvido contas, dado a mão à palmatória, rezado pai-nossos, avé-marias e cantado o hino nacional. Aprenderam em pequenas muitas coisas, mas não foi bastante para lhes permitir construir na aldeia um futuro desejado. Emigraram e agora, que voltaram, a escola serve para outras coisas. Desenhos, assinaturas, contas e riscos desordeiros tornaram-se o plateau do plano. Unheimlich8: é ameaçadoramente estranha a configuração estática e frontal de um grupo de mulheres assim trajadas diante de uma câmara, como um grupo de crianças de escola primária que se prepara para um retrato de turma. Esperam o tiro mortífero da câmara que vai cristalizar o momento do seu canto aos mortos. ‘Já está a gravar?’ Retratei-as em três longos planos estáticos: um coro que canta numa sala vazia, sem carteiras nem cadeiras para crianças, um tableau vivant negro de mulheres de negro e um plano aproximado de sete olhares dissonantes.

25 As encomendadoras parecem ter plena consciência do seu desempenho enquanto matéria relevante para a mercadorização de tradições populares – materializam visualmente uma ‘identidade cultural’ que constroem encomendando o invisível. A realização deste documentário fez-se parte das dinâmicas de “descontextualização” e “objetificação” da cultura popular (Handler, 1988).

Proença-a-Nova: a segunda vida ao quadrado

26 Para o sábado anterior ao Domingo de Ramos (uma semana antes da Páscoa), a Câmara Municipal de Proença-a-Nova organizou um evento, em formato de festival, chamado A Encomendação das Almas - Cânticos Quaresmais, onde se juntariam no pavilhão

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gimnodesportivo da vila quatro grupos de encomendadoras do concelho e outro de Proença-a-Velha (concelho de Idanha-a-Nova). O evento estava publicitado um pouco por toda a vila, em cartazes. No centro ‘moderno’ da vila, num ecrã electrónico onde se exibem os vários eventos apoiados pela câmara e vídeos de curta duração que mostram as tradições da região, figurava o cartaz d’A Encomendação das Almas. Apontei a minha câmara a essa vitrina das tradições das celebrações que as recriam9. Os fragmentos luminosos de pixéis multicoloridos compõem imagens em loop que sintetizam, dão um enquadramento à identidade local e piscam o olho aos turistas, numa sedução digital: ‘Aproveite os inúmeros encantos de Proença-a-Nova, situada no coração de Portugal’. O olhar etnográfico pode enquadrar o documentário institucional.

27 Dentro do ginásio onde se iria realizar o “espetáculo de valor etnográfico” (cf. Raposo, 2004)10, filmava a chegada dos diferentes grupos de encomendadoras, que eram recebidas pelos funcionários da câmara municipal. Foram para a vila em autocarros, mas não pude acompanhá-las. O grupo convidado foi levado a visitar o Museu Isilda Martins, onde a etnógrafa lhes fez uma visita guiada à exposição que tem núcleos dedicados à agricultura, à floresta, à casa camponesa e aos ofícios, vestuário e outras ‘curiosidades’ do mundo rural. Dirigiram-se primeiro aos balneários femininos, onde compuseram os figurinos à medida da ocasião: todas enlutadas, com xailes negros e lenços ou gorros (alguns pretos, outros com padrões) sobre a cabeça. Foram de seguida encaminhadas para o campo e indicaram-lhes os lugares que deveriam ocupar no espaço performativo: as do Galisteu Cimeiro e as das Atalaias nas áreas de penálti, as de Proença-a-Velha junto à linha de meio-campo, as de Chão do Galego junto às linhas laterais, as das Corgas dividiram-se em dois grupos e ocuparam dois pontos diferentes da bancada. Depois de definidas as posições, os técnicos da câmara municipal decidiram a estratégia do jogo, a sequência das canções e dos coros. Chegou o público, as luzes apagaram e o espetáculo começou.

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28 Ali, a tradição foi objetificada e imobilizada num tempo presente. Bárbara Kirshenblatt- Gimblet entende este tipo de processos como uma segunda vida, um modo de produção

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cultural no presente com recurso a um passado (1998: 149), mais ou menos inventado, defunto pela mudança social ou ainda a viver os últimos fôlegos de uma primeira vida. Os grupos que encomendam as almas – alguns reinventaram o ritual especificamente para esta ocasião -, participam com versões curtas da encomendação. Estamos perante uma exibição folclorizada de um best of das encomendações, somos público de uma sessão de música tradicional na penumbra de um pavilhão gimnodesportivo com bancadas de plástico multicoloridas e iluminado por candeias. O culto dos mortos deriva numa espécie de thriller macabro. O popular torna-se em bem folclórico, permitindo animar, a um tempo, o próprio ritual e o calendário festivo do município.

29 Entre os flashes disparados pelas câmaras fotográficas dos espectadores, entrevemos um grupo de mulheres em círculo fechado no meio de campo, de mãos dadas, braços erguidos e abertos segurando xailes que ocultam as identidades. Diante dos presentes cantam para os ausentes: ‘Ó almas que estais dormindo nesse sono tão ativo, lembremos de quem é morto, esqueçamos de quem é vivo.’

30 Essa, que é a cena final do filme, faz mover os personagens entre mundos que geralmente aparecem cindidos nas representações científicas: as encomendadoras são responsáveis por encenar as tradições do seu município, mas transportam com elas uma mundividência que entende a encomendação das almas como rito de reagregação dos mortos à esfera do Além. Ao culminar nessa cena, o filme pode materializar visualmente a discrepância entre a primeira e a segunda vida (Kirschenblatt-Gimblet, 1998) do ritual e dos significados que se perdem ou interceptam entre ambos.

Chão do Galego: Inselências

31 Nas conversas após o espetáculo, as participantes de Chão do Galego insistiram para que eu documentasse a Encomendação das Almas na sua aldeia, onde é conhecida pelo nome de Inselências. Há uma grande discussão quanto à forma correta de designar o ritual, que apresenta traços diferentes das outras encomendações. Segundo contam, fazia-se em todos os dias da Quaresma, mas ‘há muitos anos’ deixou de se fazer. Eram as crianças e os jovens que saíam na Quinta-feira santa em dois grupos a cantar as Inselências, ‘a alumiar o Senhor’, que estava para morrer, e só voltavam a casa por volta da meia-noite. ‘Foi tudo para Lisboa, e depois houve uma professora que não achava graça ao cantar, que dizia que não interessava nada cantarem aquelas coisas, que ela não estava de acordo com isso.’ De há quatro anos para cá, os reformados começaram a voltar à aldeia, de Lisboa e, num caso, de França, e, animadas por ‘um rapaz que está em Lisboa’, ‘voltaram a cantar’: o ritual foi ressuscitado e acontece uma vez por ano, na Sexta-feira santa. Mulheres, homens e crianças saem à rua e executam o canto responsorial que evoca as doze Inselências da Virgem Maria. A designação de Inselências é considerada por alguns, os eruditos locais, uma corruptela de Excelências, mas o som e o significado de Inselências poderá estar ligado ao de insomnolência, o “desvelo forçoso de quem não pode dormir” (Bluteau 1728: IV, 149) porque tem de ir encomendar as almas ‘ao sol posto’.

32 Nesta aldeia, a escola primária foi transformada em casa mortuária. Guiado por uma informante-chave, a Sónia, professora do 1.º ciclo, natural de Chão do Galego e residente na capital do distrito, fui levado a conhecer a aldeia, que brota, com a água que rega os campos, de uns penedos brancos a nascente. Noite posta, encontrei-me, na cozinha da casa dos pais da Sónia, com a ti Ana e a ti Maria, especialistas do ritual com

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77 e 78 anos de vida. Enquadrei a mesa e os comensais, onde me incluía. Revendo os brutos dessa noite, vejo-me no papel de um personagem de ficção e não me resta espaço para fabricar, pela retórica escrita ou pela edição do vídeo, uma objetividade científica. Não se trata de adotar o género de “relato autorreflexivo de trabalho de campo”, mas de dar espaço a imagens das interações que estão imbricadas na construção do conhecimento científico (v. Clifford 1986: 14).

33 Para me explicarem aquilo a que ia assistir nessa noite, fizeram-me uma descrição corporal, passo a passo, da sequência do ritual, gesticulando e cantando. Foram buscar uma pinha para me mostrar como é que se fazia ‘antigamente’, quando ‘não havia dinheirinho para velas’. A necessidade do visual parece ser partilhada entre nós. A antropologia, tal como as memórias incorporadas que procura conhecer, não enche a barriga só com palavras. Podemos então perguntar de que modo é que a subtração da imagem do gesto e da interação física dos produtos de conhecimento antropológico poderá condicionar os limites desse conhecimento. A mise en scène da cozinha replicou- se, horas mais tarde, nas ruas, mas o que, ali, era a memória de um tempo em que não havia dinheiro para velas, aqui era uma marca de tradição orgulhosamente erguida num pau.

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Faculdade de Ciências Sociais e Humanas: a expressão do sagrado num estúdio de cinema

34 Desde o início do projeto, procurei afastar-me das tão extensivamente discutidas “gramáticas de género” ou modos de representação em documentário. Estes foram catalogados por Bill Nichols da seguinte forma: “... we can identify six modes of representation that function something like sub-genres of the documentary film genre itself: poetic, expository, participatory, observational, reflexive, performative.” (1991: 32). Chegado ao momento da edição, interessava-me transmitir um retorno ao aqui e agora de que fala Catarina Alves Costa, a propósito do cinema de António Campos. Esse

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movimento é o resgate, através de um filme, da relação entre a experiência vivida pelo etnógrafo e a memória subjetiva dessa experiência (Costa 2012: 219). Segundo Clifford Geertz, os textos antropológicos são interpretações e, por isso, ficções “in the sense that they are "something made," "something fashioned" - the original meaning of fictiō - not that they are false, unfactual, or merely "as if" thought experiments.” (1973: 15); o mesmo se dá com os filmes etnográficos.

35 Inspirado na leitura de Transcendental Style in Film, de Paul Schrader (1972), procurei desenvolver as técnicas que possibilitam a expressão do sagrado: o “quotidiano” como lugar de manifestação do sagrado, a “disparidade” como lugar do surgimento de um comprometimento com esse quotidiano vulgar e a stasis, a compreensão de que o transcendente pulsa sob a superfície realista do quotidiano. Na montagem da ficção de P’ra Irem P´ró Céu, retornando à minha experiência subjetiva da observação direta e da participação nos eventos (v. Costa 2012: 216-219), preocupei-me em situar o ritual de Encomendação das Almas no quotidiano das suas praticantes, nas paisagens que o envolvem e devolver a imagem do movimento de ascensão das almas do Purgatório aos céus.

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36 Os tempos do quotidiano surgem num conjunto de planos sequência em que se assiste aos movimentos e tarefas triviais que são desempenhadas rotineiramente. Uma refeição à mesa, o percurso de um homem pelas ruas da aldeia, uma senhora que limpa o nicho de uma alminha, esperando uma filha que volta de fim-de-semana ou de férias, atestam a profunda imiscuição da Encomendação das Almas nas práticas mais vulgares do dia-a- dia, com as quais se alinha durante o tempo da Quaresma. Essa mesma relação quotidiana com o ambiente foi desenhando uma paisagem em que se intercetam 'ventoinhas', construções em xisto, cimento ou tijolo, montanhas, floresta, arames, cães, cabras... É essa a paisagem que se contempla para sentir as contradições inerentes aos processos da história. Quando, por meio do artifício da edição, se sobrepõe com transparência o plano ao seu contraplano (v. Imagem 2), vê-se o tempo a agir sobre a aldeia. O anoitecer acompanha-se do acendimento das pequenas alminhas elétricas que

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são as luzes que fazem dispensar as candeias a petróleo para encomendar as almas. O cântico que rasgará o silêncio da noite daí a pouco tempo terá de casar-se com o ruge- ruge das turbinas eólicas que, indiferentes à noite e ao dia, rodam, como preço a pagar pela modernização que também se traduz no transporte das encomendadoras para um festival na sede de município (v. Imagem 5).

37 Na Imagem 7 vê-se a sobreposição de uma representação visual do Purgatório, pintada sobre azulejo num nicho de alminhas, ao cenário avermelhado (por causa da tecnologia de filmagem noturna) da Encomendação em Atalaias. O fogo do Purgatório tem a dupla função de castigar e de purificar. É o ritual praticado que dá a cor a esse fogo, pelas mulheres que, cantando em tom dolorido, mimetizam o sofrimento das almas do Purgatório. A cruz, o Crucificado e os que aos seus pés clamam pelo refrigério da desagregação definitiva do mundo dos vivos caem sobre as mulheres. O Purgatório vive- se ainda ao longo da vida, segundo dizem alguns. É a possibilidade de ascensão aos Céus, anunciada pelo canto, que paira sobre a aldeia.

38 Muitos dos elementos que compõem as minhas opções de montagem estavam já em potência na própria filmagem, na escolha do enquadramento dos ambientes, na opção de fazer planos longos de contemplação da natureza, habitada ou não, entrar em espaços de intimidade doméstica, filmando entrevistas, individuais ou coletivas, mas também procurando captar as interações sociais.

39 O filme contém uma mistura de olhares: o meu e o de todos os que assistiram, nalgum ponto, ao estado da edição, incluindo alguns dos retratados. As escolhas feitas na pós- produção nasceram das discussões e do trabalho de descoberta das opções de montagem e de edição, em diálogo com um coeditor, também estudante de antropologia, que pôde comigo encontrar diversos sentidos para o uso das imagens e dos sons recolhidos e do artifício da edição. As perspetivas daqueles a quem fui mostrando o filme, onde se inclui número considerável daqueles que aí são retratados, também contribuíram sobejamente para o resultado – sempre provisório – desse processo. Em certo momento, ficou claro que não pretendia construir uma retórica de objetividade, que resultaria tão ficcional como a resultante. Usámos sobreposições de imagens (cross fade), disjunções som/imagem, sempre com foco nas possibilidades estilísticas que têm sido mobilizadas, quer nos textos, quer nos filmes etnográficos: metáfora, metonímia, alegoria, entre outras.

Perspetivas

40 Ti Lourdes, uma encomendadora de 88 anos das Atalaias, tem muita pena das almas que sofrem no Purgatório. Descreve como se sentem as pessoas depois de as encomendar: “a gente sente assim uma coisa viva, mais leve, sente assim uma coisa de alegria”. Há muito mais do que o que se vê, quer na forma de pensar o ritual, quer na forma como é vivenciado e feito. O espaço do Purgatório é invisível, mas emocionalmente presente e expressivo nesta comunidade. Abandonando o paradigma visual, restam-nos, entre outras coisas, as emanações sensoriais no real. Há múltiplas representações do Purgatório (nas alminhas, no ritual e nos discursos), muitas vezes discordantes, mas este afirma-se como lugar de uma experiência partilhada, através do ritual, dos olhares, dos gestos, das sensações e ideias que o fabricam. É esse Terceiro Lugar que se corporaliza nos atores do filme.

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41 James Clifford propõe para a escrita etnográfica o abandono da prefiguração visual, objetificadora: “Once cultures are no longer prefigured visually - as objects, theaters, texts -it becomes possible to think of a cultural poetics” (1986: 12). A este modo de escrita que propõe, exaltando as poéticas culturais, faz corresponder uma mudança de paradigma no modo de fazer etnografia: “...for ethnography to shift away from the observing eye and toward expressive speech (and gesture)” (1986: 12). Nesse outro paradigma, encontramo-nos na face obscura da visão. A história do filme etnográfico representa bem o modo como a “inusitada fantasia” da representação do outro se pôde suportar no “poder de verdade” do olho mecânico. Mas o visível também é fabricado, também os antropólogos são artífices que produzem com manha, mas sobretudo com uma íntima relação identificativa com a matéria.

42 A vontade de exprimir visualmente o que parecia ser invisível, como Geertz à procura do significado da luta de galos, acompanhou-me durante todo o processo de realização deste filme etnográfico. O conjunto de estratégias adotadas pode ser agrupado em quatro tipos de processos: contemplação, memória, contaminação e desintegração e síntese.

43 À disponibilidade para não esperar corresponde uma configuração do olhar de “contemplação”. Apresenta-se um conjunto de planos que procura a passagem do tempo sobre a aldeia, sobre as cenas e sobre o próprio plano. Como em Veredas, de João César Monteiro (1977), deixa-se envelhecer os planos. É nesse processo que se poderá constituir uma poética do negativo. Entrecruzam-se planos abertos, mostrando densas camadas de nevoeiro a atravessar a aldeia, com planos de detalhe em que se assiste ao aceder de uma luz municipal, ou a três velhotes em formação que observam o passar do tempo numa paragem de autocarro.

44 À memória do ritual associa-se uma grande quantidade de imagens, perceções, emoções e significados que constituem um recurso (matéria não-visível) para expressar visualmente dimensões performativas da vida social. Dentro de uma adega em Corgas, as encomendadoras recordam os tempos em que os seus pais saíam de casa noite adentro para as irem encomendar ou, na paragem dos autocarros, uma senhora lembra- se que o seu marido cantava muito bem. Olhares, gestos, emoções e respirações que acompanham os trabalhos da memória podem inscrever-se na imagem.

45 O ato de filmar é em si uma performance, um trabalho de mediação entre a realidade que se observa e a construção de uma outra realidade que se deixa observar. Diante da imaterialidade das emoções ou sensações vividas durante um ritual de trocas com o divino, coloca-se a questão de como captar essa experiência presenciada, esse aqui e agora. Abandonando o paradigma da contemplação distante, de câmara ao ombro e diante do processo ritual da Encomendação das Almas, a minha emoção e corporalidade ditaram a minha própria improvisação. As emoções do realizador, diante do ritual, são a impureza (Hertz, 1960) na estética cinematográfica. Materializam esteticamente o que de outra forma estaria oculto e seria impercetível a quem observa. O realizador, no ato de filmar (através das suas emoções: tremer de mãos, respiração, movimentos bruscos) transforma-se, por contaminação, ele mesmo na impureza da imagem de um ritual de purificação das almas dos mortos. O filme etnográfico poderá então resultar de um conjunto de imagens queimadas, desfocadas à procura do olhar do outro.

46 À integração do morto num novo mundo corresponde um duplo processo mental de “desintegração e síntese” (Hertz, 1960: 82). Realizar um filme aproxima-se processualmente da realização de ritos fúnebres. O enquadramento fílmico provoca

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uma desintegração: aquilo que era um ser social deixa de o ser. Despossados da sua materialidade, os sujeitos prestam-se a ser formulados como personagens através da síntese de elementos que estão apenas em potência na sua imagem, voz e no cenário em que se viram captados.

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Filmografia

Pedro Antunes. 2013. P’ra Irem Pró Céu, 18’.

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NOTAS

1. No âmbito do mestrado em Antropologia - Culturas Visuais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 2. No contexto da Beira Baixa, existem dois grupos de encomendadores das almas (Idanha-a-Nova e Proença-a-Velha), dos quais fazem parte homens, cumprindo o papel de “guardadores”. Para ser compreendida, a mudança histórica na divisão sexual do trabalho religioso tem de ser lida no contexto das transformações sociodemográficas do espaço rural. A Encomendação das Almas parece ser um lugar social privilegiado para observar, histórica e semioticamente, o processo de feminização de práticas de religiosidade popular. (Cf. Antunes e Edral, 2014). 3. As encomendadoras referem-se ao Padre São Francisco como uma entidade que intercede pelas almas do Purgatório, agindo como ‘procurador’ dessas almas. 4. “…in studying the conspicuous acts of tribal life, such as ceremonies, rites, festivities, etc., the details and tone of behaviour ought to be given, besides the bare outline of events. (…) As to the actual method of observing and recording in field-work these imponderabilia of actual life and of typical behaviour, there is no doubt that the personal equation of the observer comes in here more prominently, than in the collection of crystalized, ethnographic data.” (Malinowski, 1922/2002: 15-16; destaque meu). 5. Em Chão do Galego, aldeia da freguesia de Montes da Senhora (Proença-a-Nova), esse ritual, praticado até cerca de 1960, foi revitalizado em 2011, por iniciativa de um migrante natural da aldeia. No decurso do trabalho de campo, registei opiniões coincidentes de três “eruditos locais” acerca do caráter da palavra Inselências, apontando para o facto de se tratar de uma corruptela de Excelências. No entanto, retenho uma ortografia mais fiel ao dizer local. 6. Conta-se em Corgas que a povoação foi poupada da 1.ª Invasão Francesa (1807) por intercessão de Nossa Senhora do Carmo, que gerou um grande nevoeiro, tornando a aldeia invisível para os

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soldados franceses. As cenas deste acontecimento encontram-se representadas num painel de azulejos dentro da igreja de Corgas. 7. O Purgatório corresponde na simbologia católica ao que Jaques Le Goff designa por terceiro lugar um espaço-tempo de espera após a vida. A crença no Purgatório pressupõe a formação de redes de solidariedade dos vivos para com os mortos: “Os sufrágios pelos mortos supõe a formação de longas solidariedades de um lado e do outro da morte, relações estreitas entre vivos e defuntos...” (1993: 26). 8. A noção de unheimlich ou “o que é ameaçadoramente estranho” designa, segundo Schelling, “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, e que se tornou evidente” (Freud, 1989: 215); Sigmund Freud explica que se trata de “algo há muito familiar da vida psíquica, que apenas dela ficou arredado através do recalcamento” (1989: 228). 9. Eric Hobsbawm ensina-nos que as tradições podem ser inventadas para estabelecer uma continuidade histórica com algum passado aceitável. Tais processos de “invenção”, ou de outro tipo, se lembrarmos as diversas formas de revitalização festiva enunciadas por Jeremy Boissevain - “inovação”, “reanimação”, “ressuscitação”, “retradicionalização”, “folclorização” (1992) – articulam-se com a nova estrutura produtiva dos espaços rurais e com a relativa dinâmica das indústrias do lazer, ocorrendo então quando uma transformação rápida enfraquece padrões sociais para os quais as tradições antigas haviam sido desenhadas (Hobsbawm, 1983). 10. Num artigo intitulado “Do ritual ao espetáculo. «Caretos», intelectuais, turistas e media”, Paulo Raposo identifica um conjunto de elementos centrais nos processos de objetificação da cultura popular. O fenómeno de folclorização, objetificação e emblematização dos Caretos de Podence resulta numa “elevação à condição de espetáculo de valor etnográfico” (2004: 140).

RESUMOS

Este texto é um ensaio autorreflexivo sobre o processo de realização do filme “P’ra Irem P’ró Céu” (2013). Em torno de pequenos textos e imagens sobre o aqui e agora do trabalho de campo, discutem-se as possibilidades e a importância de captar o invisível. Procurei relatar a construção dessa ficção como um retorno à experiência subjetiva do trabalho de campo, mostrando a centralidade do ritual da Encomendação das Almas no quotidiano das suas praticantes, expressando os elementos transcendentais implícitos no ambiente de cada aldeia e tornando visível a invisibilidade do movimento de ascensão das almas do Purgatório aos Céus, imbricado nos processos da história e da memória. Construir um texto ou um filme pelo invisível é um caminho para a impureza: uma antropologia do negativo visual pode questionar o científico e as relações de produção constituintes dos filmes que fazemos e vemos.

This article is a self-reflexive essay on the process of making the film “P’ra Irem P’ró Céu” (2013). Making use of text passages and images related to the author’s fieldwork, it discusses the possibilities and the significance of capturing the unseen. The process of construction of this “fiction” is analyzed by means of a return to the subjective experience of fieldwork, showing the centrality of the ritual of “Encomendação das Almas” for its everyday practitioners, giving expression to the implicit transcendental elements in the natural environment of each village and making visible the invisible upward movement of the souls from Purgatory to Heaven, intermingled with history and individual memory processes. Building a text or a film through the

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invisible is a way towards impurity: an anthropology of the visual negative to question the scientific and the relations constitutive for the films that we watch and make.

ÍNDICE

Palavras-chave: antropologia visual, invisível, ritual, Encomendação das Almas Keywords: visual anthropology, invisible, ritual, Encomendação das Almas

AUTOR

PEDRO ANTUNES FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Portugal [email protected]

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So, what do we talk about? O discurso político e a imagem corpórea em «Thierry» So, what do we talk about? Political discourse and the corporeal image in «Thierry»

Rodrigo Lacerda

NOTA DO EDITOR

Recebido em: 2013-11-29 Aceito em: 2014-03-07

1 Cozinha de uma casa do East End de Londres. Tarde. Pergunto: ”Ready for the camera?” Thierry murmura: “Ah?” Repito: “Ready for the camera?” Thierry acena que sim, mete as mãos nos bolsos e olha para a câmara. Sorriso tímido, mas sedutor. Silêncio longo. Thierry tira o telemóvel da algibeira, olha-o e volta a guarda-lo. Sorve um gole do chá que tinha colocado em cima da mesa de apoio, encosta-se no sofá e cruza os braços. Pergunta: “So, what do we talk about?”

2 Este foi o primeiro plano que gravei e é assim que começa o filme.1 Thierry queria que ficasse registado o seu discurso político de activista e de presidente da secção dos trabalhadores do sexo do sindicato GMB2 do Reino Unido. Eu, por outro lado, influenciado pela minha formação em cinema e antropologia, desejava filmar o seu quotidiano de trabalho e lazer. A tensão entre as palavras politicamente ordenadas e a imagem corporal (MacDougall 2006) extravasava para a inquietação das filmagens.

Pré-produção

3 O filme Thierry (2012) é sobre a pessoa Thierry Schaffauser. Aquando das filmagens, ele vivia em Londres e trabalhava como prostituto em sistema indoors recorrendo à

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internet. Concluíra recentemente o mestrado em British Women History no London Metropolitan University e era um activista empenhado nas questões dos direitos LGBT e dos trabalhadores do sexo. Dois anos antes, tinha sido eleito presidente do “sex workers branch” do GMB. Conheci-o em 2010 durante a produção, em colaboração com Rita Alcaire, de um documentário televisivo3 para a RTP4 sobre o tema dos direitos laborais dos trabalhadores do sexo em Portugal. Na altura, tinha ficado impressionado com a sua argumentação durante a entrevista e comecei a ponderar a realização de um filme que pudesse representar uma visão mais pessoal sobre a sua profissão, o activismo político, a sexualidade, a multiplicidade identitária, a migração cultural5 e a precariedade laboral no mundo ocidental.

4 Em 2012, iniciei essa aventura. Antes de viajar para Londres, tentei discutir o projecto com o Thierry através da internet, mas, após aceitar a ideia, ele tornou-se relativamente monossilábico. Na noite anterior ao início das filmagens, encontramo- nos em sua casa para delinear um plano de rodagem. Pela primeira vez, ele mostrou-se um pouco contrariado com a abordagem observacional, argumentando que a sua vida era entediante e que o que tinha de interessante para comunicar era o seu discurso. O que filmar? Uma ida às compras? Ao ginásio? (“Mas eu nem vou muito. Se calhar, devia ir mais …”) A fazer um depósito no banco? Devido à sua actividade política, social e sindical, Thierry já tinha sido várias vezes entrevistado pelos media e estava à espera destes quadros de quotidiano encenado que são frequentemente utilizados nas reportagens televisivas como planos de corte entre excertos de entrevista.6 Nas últimas décadas, enquanto documentaristas e antropólogos habituamo-nos cada vez mais a chegar a terrenos que foram transformados em terra queimada pelos media e cientistas sociais devido a abordagens que estabeleceram expectativas de gestos, desilusões com representações e ausência de feedback. Situações em que os sujeitos foram usados para um objecto de estudo e/ou como objectos.

5 Thierry questionava também a pertinência política destes gestos do quotidiano. Na sua opinião, a luta da comunidade LGBT e, mais recentemente, dos profissionais do sexo pelos seus direitos sucumbiu à ideia de que, para serem respeitados, têm que ser representados enquanto elementos sociais normalizados, abdicando de uma radicalidade política que ele considera implícita à sua sexualidade e profissão. Enquadrado num movimento de queer politics com origem nos anos sessenta e que tem sido sucessivamente actualizado, Thierry critica as aspirações dos activistas LGBT de acederem ao casamento burguês ou ao exército,7 ao mesmo tempo que ignoram os direitos de outras minorias e as diferenças de classe. Como ele disse nessa noite: “Hoje em dia, em Inglaterra, um homem gay com dinheiro tem quase os mesmos direitos e regalias que a maioria da população. E se for um sem abrigo gay?”

6 Mas havia algo mais, aparentemente contraditório, que lhe causava algumas reticências em relação à abordagem observacional. Apesar de ser o presidente da secção de trabalhadores do sexo do GMB, Thierry recusava corporalizar-se e individualizar-se. Ele só queria aparecer e ser representado enquanto porta-voz da organização e, por isso, pedia que apenas registassem o seu discurso político. Nesse sentido, procurava apagar, dentro do possível, as suas idiossincrasias e, de certo modo, a sua imagem, uma vez que considerava as ideias e o movimento mais importantes. Por outro lado, eu advogava que a mais valia do documentário é exactamente aquilo que David MacDougal denominou como “imagem corpórea”.

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7 No seu último livro, MacDougall (2006) propôs-se reexaminar a relação entre ver, pensar e saber e a natureza complexa do pensamento produzido por estas variáveis. Para este autor, as imagens fotográficas são corpóreas, isto é, o seu significado não pode ser apreendido recorrendo apenas à linguagem verbal que, normalmente, associamos ao pensamento, mas tem que ser compreendido através do corpo em diversas dimensões: o corpo do que é filmado, o corpo do realizador e o corpo do espectador. Além disso, recorrendo às ideias de (1998) sobre a agencialidade da arte, MacDougall (2006: 30) argumenta que o filme constitui-se também como um corpo com agencialidade própria: “Beyond influence or aesthetics or meaning, films are made to become objects in the world, to exist in their own right” Nesse sentido, os filmes, como outros objectos, adquirem uma presença material própria.

8 A corporalidade da imagem possui, assim, uma agencialidade múltipla e complexa. Segundo Roland Barthes, existe uma conexão inseparável com o referente na imagem indexical que os torna aparentemente indistinguíveis: “Por natureza, a Fotografia […] tem qualquer coisa de tautológico: nela, um cachimbo é sempre um cachimbo, infalivelmente. Dir-se-ia que a Fotografia traz sempre consigo o seu referente […]” (Barthes 2012 (1980): 13) Uma imagem de Thierry, na sua infinitude de pormenores, é, portanto, uma imagem de Thierry. Não se pretende aqui advogar uma transparência da imagem de base fotográfica que, como já foi analisado (por exemplo, Tagg [1988], Hall [1997], Pinney [1997]), é influenciada por factores culturais e ideológicos. Propõem-se antes sublinhar que, para além destes factores, existe uma materialidade e ligação ao real que subsiste e que, em vez de produzir um conhecimento claro e directo, conduz a um “discourse of risk and indeterminacy”: Through their stubbornness, photograhic images dispute their consecrated meanings (what Barthes called the studium) or at least have the potential to undercut them. In films the complexity of people and objects implicitly resists the theories and explanations in which the film enlists them, sometimes suggesting over explanations or no explanations at all. In this sense, then, film is always a discourse of risk and indeterminacy. […] For all the ways in which photographic images oversimplify and aggressively impose their message (as they often do in advertising, for example), they are intrinsically tentative, oscillating between meaning and the self-sufficiency of their subjects. (MacDougall 2006: 6)

9 Para Thierry, a individualização e a dificuldade de controlar a imagem indexical surgiam como elementos perigosos. Para mim, a exploração das potencialidades da indeterminação e da corporalidade da imagem eram o modo de chegar àqueles que nos ouviam e viam: o corpo da audiência. Após uma longa discussão, Thierry aceitou reticente a abordagem observacional e estabelecemos um plano de rodagem para aquela semana. No dia seguinte, iríamos filmar o quotidiano em casa (“mesmo que não acontecesse nada …”); no sábado, tentaríamos registar o encontro com a candidata socialista francesa às eleições legislativas pelo círculo do norte da Europa e a festa de anos de uma amiga; na segunda-feira, iríamos visitar e filmar uma conversa com a antropóloga Ana Lopes que, como parte da sua tese de doutoramento, fundou, em colaboração com profissionais do sexo, o International Union of Sex Workers (IUSW) que, posteriormente, se aliou ao GMB (cf. Lopes 2006); na terça-feira, filmaríamos a participação do Thierry na manifestação do 1º Maio como representante da secção dos trabalhadores do sexo do sindicato (a principal razão pela qual eu escolhi iniciar as filmagens naquela altura).

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Primeiro plano do documentário «Thierry».

Rodagem

10 Contudo, no dia seguinte, quando comecei a filmar, Thierry perguntou: “So, what do we talk about?”. A importância do discurso político regressava e, apesar de lhe relembrar a conversa da noite anterior, ele mostrava-se irredutível sobre a sua disponibilidade para só dar uma entrevista. Achei que a melhor estratégia seria ceder e conversámos durante algumas horas sobre o sindicato, profissão, identidade, etc. O seu discurso é mesmo interessante e o meu conhecimento prévio sobre o tema do trabalho sexual permitiu estabelecer um diálogo para lá de uma abordagem superficial. Apesar destas gravações não terem sido incluídas na montagem final, elas foram importantes para nos conhecermos melhor e iniciarmos uma relação de intimidade, camaradagem e cumplicidade que foram essenciais para o desenvolvimento do documentário. Por vezes, na ânsia de filmar os nossos projectos, esquecemo-nos que estamos a estabelecer uma relação pessoal com os nossos sujeitos em que a partilha de palavras, refeições, copos, amizade, etc. é essencial.

11 Várias horas depois, senti que tínhamos assegurado um entendimento comum básico que me permitia tentar convencê-lo outra vez a filmar o seu quotidiano. Desta vez, o Thierry acedeu. Foi buscar o computador ao quarto (permitindo-me ver uma parte da casa que ele queria inicialmente ocultar) e trouxe-o para a cozinha. Ligou o site do gaydar8 e foi lendo o facebook, o Le Monde, etc. enquanto esperava que o contactassem. Finalmente, recebeu uma mensagem e pareceu que ia haver a possibilidade de um trabalho. O potencial cliente demorava a responder e o Thierry, impaciente, ia-me explicando o que sentia e a sua opinião sobre a profissão. Mas estas palavras, nomeadamente nas suas interjeições, silêncios e hesitações, eram muito diferentes do discurso político limpo que me tinha entregue horas antes: Gosto de ter sexo, mas não gosto de falar com as pessoas a tentar vender alguma coisa. Nem sei se ele percebe que eu sou um escort. Provavelmente percebe. Não sei.

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Se não lerem o perfil. Ou sabem, mas … tentam obter de graça. Porque, na verdade, estou só a repetir o que já está no meu perfil. Não sei … Suponho que precisam disso antes de conhecer alguém. Eu ri-me porque é exactamente … É engraçado porque … Tens que falar como se estivesses excitado e tu estás … Acho que quando sei que eles vão chegar, estou mentalmente preparado e a sentir-me excitado para ter sexo em breve. A parte irritante é que, enquanto não os conheces e tens o dinheiro, não sabes se vais fazer dinheiro. Porque há muita gente que marca um encontro e não aparece. A parte irritante é que estás a fazer isto tudo, mas não sabes se vale alguma coisa. Essa é a parte que eu odeio no trabalho.

12 Por fim, o contacto revelou que não era um cliente e o Thierry demonstrou a sua frustração. Naquele breve momento, voltei a compreender que, por muito interessante que o seu discurso fosse, o recurso a uma câmara permitia-me captar um conjunto de pequenos gestos e expressões que o verbo não conseguiria exprimir com aquela fisicalidade: a impaciência, o tempo, o revirar dos dedos quando descobre que não vai ter trabalho, que não vai ser pago.

13 Mas Thierry esqueceu rapidamente o falso cliente ao reparar que uma amiga no facebook lhe perguntava se ele sabia alguma coisa sobre um homem que a queria levar para a Nigéria. Ele reconheceu o nome e consultou o ficheiro de computador com os dados de bad clients. Como explicou enquanto transmitia a informação à colega (murmurando a última frase entredentes e com uma expressão entre o desprezo e a raiva contida): Temos várias maneiras de nos alertarmos uns aos outros sobre clientes falsos, pessoas perigosas … Porque há tanta gente que desperdiça o nosso tempo e as pessoas querem saber. Eles sabem que os escorts não vão telefonar à polícia, por isso, há muita gente que nos tenta enganar. E também pensam que somos estúpidos e que somos um alvo fácil.

14 Como é possível observar, as palavras também podem ressoar a experiência com que estão imbuídas. E, contudo, no cinema, tal como no nosso quotidiano, elas possuem uma outra complexidade. Segundo MacDougall, enquanto que a escrita é principalmente cumulativa, o cinema é compósito, isto é, observamos, numa determinada cena, concomitantemente, vários elementos e acontecimentos que estabelecem relações entre si. Estas associações são simultaneamente concretas e perceptuais. […] the composite vision of photographs and films offers a way of exploring connections in the social world often lost in writing, much as writing offers a way of recording conclusions about society unavailable to film. I am thinking here not only of how people and things are culturally organized in their social settings, but also how individuals perceive their surroundings and their fellows in the physical and sensory terms, and how this affects how they themselves behave. This is not only a matter of interpersonal relations. We live among cultural practices and culturally mediated environments that exert powerful effects upon us. (MacDougall 2006: 38)

15 Nesse sentido, quando vemos alguém verbalizar determinado discurso, estamos a experienciar um fenómeno complexo em que observamos vários elementos em simultâneo (as palavras, os gestos, o enquadramento, etc.) que se relacionam e contaminam. Alguns filmes levaram a experiência da entrevista a um certo extremo. Fengming, a Chinese Memoir (2007), de Wang Bing, por exemplo, é quase exclusivamente constituído por uma entrevista a uma mulher que relata a história da sua vida (e, implicitamente, da China). Ao longo de três horas, vamos absorvendo a informação cumulativa do discurso, mas também as pausas, as palavras sublinhadas, o corpo tenso e controlado da entrevistada, a luz que muito lentamente desaparece e que leva o

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realizador a finalmente interromper a entrevista para pedir para acender um candeeiro.

16 De facto, depois dos dois últimos momentos acima descritos, Thierry tem o discurso que até hoje reverbera em mim: Eu quero tempo livre para o activismo e isso tudo. A razão porque faço trabalho sexual não é tanto pelo dinheiro, mas para ter tempo livre. Para ser flexível e poder estudar, escrever e fazer activismo. Se eu estivesse a tentar trabalhar sempre e mais, não sei se teria a mesma liberdade. Acho que ficaria entediado a certa altura. Talvez fizesse mais dinheiro … (pausa) Mas não vejo o sentido de ficar rico se todos os outros à tua volta continuam pobres. Se eu ficar rico, terá que ser com a minha comunidade. Não sei …

17 Como foi acima explicado, a imagem inclui muito mais do que estas palavras e é essa conjugação que produz o seu efeito no meu corpo de realizador. Thierry hesita em certos momentos. Por vezes, sorri. O olhar dirige-se para a câmara e rapidamente se afasta. A sua expressão muda constantemente enquanto acompanha o raciocínio que procura verbalizar. Trata-se de um grande plano que capta a sua cara, os armários de cozinha e uma fotografia de Beth Ditto arrancada de uma revista. Esta personagem é uma cantora lésbica politicamente activa e com uma elevada notoridade pública, que teve, tal como Thierry, durante algum tempo, uma coluna de opinião no jornal britânico The Guardian. Para quem a conhece, estabelece-se naquele plano um paralelismo fortuito e feliz. Mas será que é um paralelismo? Quem é que colocou ali a imagem? O Thierry ou um colega de apartamento? Será que ele realmente se identifica com ela? A relação indexical com o real da imagem fotográfica produz relações compósitas que o realizador às vezes não consegue controlar e que a audiência dificilmente deixará de interpretar, mesmo que inconscientemente. Tal como argumenta MacDougall (2006: 41): “[…] this richness is potentially uncontrollable. You can see the problem. You both want and don’t want the combative power that shots offer, for they constantly drift toward the actual complexity and indeterminacy of the experienced world.”

Thierry com imagem de Beth Ditto ao fundo.

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18 Na manhã do 1º de Maio estava a chover e, quando cheguei a casa do Thierry, nem ele nem o colega de apartamento, que também fazia parte do sindicato, pareciam especialmente motivados para irem à manifestação. O amigo chegou mesmo a comentar que estava farto de actividades políticas e que preferia ficar em casa a fazer dinheiro. Tive alguma dificuldade em entender o ambiente ligeiramente irascível e considerei que estava relacionado com o mau tempo e terem acordado cedo. Só durante a manifestação é que compreendi que eles eram os únicos a dar a cara pelo sindicato, numa luta constante, inglória e solitária que devia ser difícil de manter. Esta reflexão não está presente no documentário. O processo de filmagem pressupõe a sintonia de um conjunto de variáveis de difícil controlo que oscilam entre a previsão, a improvisação e a sorte. No caso do quadro supramencionado, eu não estava preparado: não esperava aquele ambiente e demorei algum tempo a montar a câmara. Além disso, havia muito ruído matinal (torneira da água, esquentador, outras pessoas da casa a entrar e a sair) que inutilizou alguns planos. Mas, por vezes, as limitações corpóreas do cinema também se impõem. Naquela manhã, havia algo de imaterial no ambiente que tornava a sua presença no vídeo provavelmente impossível de corporalizar.

19 Se eu não consegui capturar a atmosfera daquele início de dia, o que se seguiu só poderia ser satisfatoriamente traduzido por uma câmara. Thierry decidiu ir vestido de drag para a manifestação, provavelmente, porque estes eventos são lugares, por excelência, de performance, mas penso que também pela sua recusa em se individualizar dentro do movimento, recorrendo, assim, a um alter ego. Contudo, no dia a dia, ele veste-se e move-se num estilo descontraído de streetwear: calças desportivas, t-shirt larga, cabelo curto e boné. Por isso, eu não conseguia imaginar aquele corpo transformado em drag e pensei que as roupas femininas seriam uma pele muito secundária e algo carnavalesca. Porém, durante o processo de transformação, que pude filmar, ocorreu uma mudança gradual e profunda. O seu corpo foi-se tornando mais hirto, os movimentos mais precisos, a voz mais aguda. A sua personalidade mudou. O rapaz meio encurvado que filmara a ler o Le Monde, admirava-se agora ao espelho num estilo que ele considerou “ligeiramente Lady Gaga”. O Thierry tímido que me perguntara, “So, what do we talk about?”, brincava agora comigo, exigindo que eu fosse útil e mandasse vir um táxi. Thierry demonstrava que toda a personalidade extravasa os limites pressupostos, incluindo os do objecto do nosso estudo.

20 De facto, naquele dia, no seu novo corpo, Thierry era outro e começou a apreciar a atenção da câmara. Enquanto corríamos atrasados para a manifestação, eu ia capturando alguns planos gerais para mais tarde utilizar na montagem. A certa altura, quando estava a filmar um contrapicado, Thierry passou ostensivamente à frente da objectiva, irrompendo pelo meio da manifestação com uma faixa do sindicato a ser arrastada pelo chão e gritando: “Olhem para a minha faixa! Sou um sindicalista! Sou um sindicalista! Olhem para a minha faixa! Tenho uma faixa grande!” Havia uma performance desencadeada pelo seu alter ego, pela minha câmara e pelos outros inúmeros dispositivos audiovisuais presentes.

21 Mas o filme também revela a minha performance fílmica, isto é, a experiência de quem segura e vê o mundo através da câmara. Neste documentário, tinha optado por não utilizar o tripé devido ao limite de peso da bagagem de avião e às filmagens anteriores que tinha realizado com jovens. Uma vez que estes normalmente se movimentam muito, a utilização do tripé implica o recurso a planos curtos (ilidindo a noção de tempo que eu queria explorar) ou o emprego de planos muito gerais (originando uma distância

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que seria contraproducente para um retrato intimista). Esta opção produziu imagens menos estáveis, especialmente porque eu ainda me estava a habituar a uma câmara diferente. Contudo, alguns solavancos são representações do meu corpo em confronto com a realidade que queria transmitir à audiência. Segundo MacDougall (2006: 54), “In viewing a film, […] we also respond to the filmmaker’s body as we experience it through the decisions that guide the movements of the camera, how it frame events, and in matters of proximity and positioning in relation to the subjects.” Por exemplo, no plano supramencionado em que o Thierry irrompe pela manifestação, eu fui apanhado de surpresa. Durante alguns segundos, a imagem oscila porque tentava compreender o que tinha acontecido e, a seguir, porque corria atrás do meu sujeito. Durante a montagem, poderia ter dividido o plano em dois, ignorando o excerto menos estável ou só utilizando a segunda parte. Mas optei por manter o plano inteiro porque este também mostra o meu corpo-câmara, ou, recorrendo à famosa expressão de Jean Rouch (2011 [1989]: 55-59), o meu ciné-transe.

Thierry (esquerda) na manifestação do 1º de Maio.

Montagem

22 De regresso a Portugal, deixei os brutos repousarem durante alguns dias para estabelecer uma distanciação. Quando os revi, sabia que a minha experiência não ia, de uma forma mágica, emergir da sua visualização. Era necessário trabalhar estas imagens para construir e reconstruir o que sentira, mas também disponibilizar-me para o que elas me permitiam experienciar pela primeira vez. Mas como urdir este corpo que se impunha e que simultaneamente apresentava limitações e potencialidades inerentes ao espírito compósito da imagem indexical? Como arquitectar uma linha narrativa que ligasse estes quadros, isto é, como encadear o visível mantendo o invisível - provavelmente, o mais importante - subjacente? Apesar do documentário de observação se basear num realismo cinematográfico, “[…] realism in art”, como André Bazin (2005 [1971]: 26) sublinhou, “can only be achieved in one way - through artifice.”

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23 Havia momentos que, como acima aludi, não tinha conseguido capturar. Outros quadros não possuíam força para serem incluídos, como as longas horas de entrevista ao Thierry no início do primeiro dia e a conversa entre ele e Ana Lopes. Havia três sequências que sabia que queria incorporar e que descrevi na secção anterior do artigo: o falso cliente; a lista de “bad clients”; a manifestação do 1º de Maio, incluindo a transformação para drag. Esta era a informação seleccionada. Mas o que fazer com estes brutos? Não queria estabelecer uma simples linha narrativa constituída por uma encadeamento de quadros. Procurava antes uma paisagem onde eu e o espectador nos pudéssemos imergir neste novo corpo. Tal como na recorrente metáfora do escultor, passei várias horas revendo e experimentando na timeline, disponível para o que cada plano me poderia fazer sentir. A frieza do “So, what do we talk about?” do início; o lento abrir do seu mundo; a exposição de me deixar filmar a transfiguração do seu corpo; o sorriso largo para a câmara no final da manifestação e em que me apresentava aos outros como a pessoa que estava a fazer um filme sobre ele denominado “A Boring Life” … O que as imagens me mostravam é que eu também estava ali sem nunca aparecer. Não se tratava de um simples caso de reflexividade em que se reconhecia a presença do realizador e da câmara. Essa atitude tinha sido assumida por mim desde o início por razões éticas e estéticas, mas também práticas: eu não queria filmar o seu discurso político, mas sabia que partes das nossas conversas teriam que ser incluídas. Mas além desta reflexividade, o que as imagens me mostravam era a evolução da nossa relação ao longo daqueles dias - uma progressiva intimidade e cumplicidade entre o corpo fílmico e o corpo do realizador que, através da montagem, eu queria transformar numa progressiva intimidade e cumplicidade com o corpo do espectador.

Thierry (e eu no reflexo dos óculos) no final da manifestação.

24 Esta opção, que implicou uma montagem tendencialmente cronológica, também foi relevante para lidar com a questão polémica da representação do trabalho sexual enquanto trabalho. Nos primeiros minutos, antes de ter qualquer informação sobre a sua profissão, o espectador conhece Thierry e o seu espaço: ele a beber chá na cozinha, a brincar com o gato, a lavar a louça, a ir buscar o computador ao quarto, o seu sorriso

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tímido, mas sedutor. Progressivamente, recorrendo a planos relativamente longos (em que a utilização da câmara à mão foi determinante), o filme vai mostrando aspectos mais íntimos e, por vezes, como em todos nós, contraditórios da sua vida e personalidade. No final, após a manifestação, Thierry vai lanchar à cantina de Saint Martin’s e nós já não o observamos. De certo modo, já nos preparamos para sentar e partilhar a refeição com ele. O documentário termina.

«Thierry», Thierry e Eu

25 Thierry é um pequeno filme que realizei depois de outras obras mais longas e que demoraram vários anos a produzir, mas foi uma experiência determinante para encontrar o meu olhar, o meu corpo realizador. No passado, senti-me espartilhado entre um cinema puramente observacional em que o realizador-observador desaparece e, paradoxalmente, se torna omnisciente e omnipotente, e os documentários supostamente mais informativos baseados em entrevistas ou voz off. Com Thierry, não cedi necessariamente a uma abordagem colaborativa. Mas ao aceitar e potenciar a interacção entre o corpo filmado e o corpo do realizador, produzi um corpo fílmico que, espero, seja sentido, na sua dimensão política e pessoal, pelo corpo da audiência. O filme Thierry é, assim, em suma, a expressão da experiência desses breves dias com o Thierry, a pessoa. A experiência de um encontro e, por vezes, de um recontro.

BIBLIOGRAFIA

Barthes, Roland. 2012 (1980). A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70.

Bazin, André. 2005 (1971). André Bazin, Vol. 2. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.

Gell, Alfred. 1998. Art and Agency. An Anthropological Theory. Oxford and New York: Oxford University Press.

Hall, Stuart. 1997. “The Work of Representation.” Pp. 13-74 in Representation. Cultural Representations and Signifying Practices, edited by Stuart Hall. London, Thousand Oaks, New Delhi: Sage Publications.

Lopes, Ana. 2006. Trabalhadores do Sexo Uni-vos. Organização Laboral na Indústria do Sexo. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

MacDougall, David. 2006. The Corporeal Image. Princeton, New Jersey: Princeton University Press.

Pinney, Christopher. 1997. Camera Indica, The Social Life of Indian Photographic Images. London: Reaktion Books.

Rouch, Jean. 2011 (1989). “A Câmara Como Elo Social: Cinema Directo e Cine-Transe.” Pp. 55-59 in Jean Rouch, coordenado por José Manuel Costa e Luís Miguel Oliveira. Lisboa: Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.

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Tagg, John. 1988. The Burden of Representation. Essays on Photographies and Histories. Minneapolis: University of Minnesota Press.

NOTAS

1. O documentário Thierry foi realizado no âmbito do seminário Atelier de Imagem, orientado pela Professora Catarina Alves Costa e integrado no Mestrado de Antropologia, especialização Culturas Visuais, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A minha intenção era utilizar as imagens capturadas para produzir este exercício, mas também iniciar a elaboração de um filme mais longo que, através da personalidade poliédrica do Thierry, permitisse reflectir sobre alguns temas que considero pertinentes: trabalho sexual, activismo político e construção do eu. Mas os nossos temas de estudo têm uma vida própria porque fazem parte da própria vida. Thierry apaixonou-se, regressou a França, abandonou o trabalho sexual e é o candidato do partido Europe Écologie Les Verts (EELV) à câmara de Paris nas eleições autárquicas de 2014. 2. O GMB (General, Municipal, Boilermakers and Allied Trade Union) foi constituído pela fusão de vários sindicatos e é, hoje em dia, o terceiro maior afiliado do Partido Trabalhista do Reino Unido. O GMB da região de Londres possui uma abordagem diferente e, por vezes, controversa das demais secções. No sentido de combater a redução de trabalhadores sindicalizados, a circunscrição londrina tem expandido a sua acção a novas áreas e indústrias, incluindo trabalhadores do sexo, condutores de táxis não-oficiais (minicabs) e trabalhadores de sweatshops (Lopes 2006: 106-108). 3. Das Noves às Cinco (2012), 54’, Realização Rita Alcaire e Rodrigo Lacerda, Produção PNG Pictures e RTP. 4. RTP (Rádio e Televisão de Portugal) é a estação pública portuguesa. 5. Thierry é francês, mas emigrara para o Reino Unido devido à eleição de Nicolas Sarkozy para Presidente da República. 6. As televisões em sinal aberto no Reino Unido transmitem vários documentários em horário nobre apesar de estes adoptarem um estilo mais próximo da reportagem e recorrerem a muitas entrevistas. 7. Na altura das filmagens, o “Coalition for Equal Marriage” tinha realizado um pequeno filme distribuído pelo youtube em que um grupo de militares regressava a casa. Alguns eram recebidos por mulheres e um deles por um homem. O clip tinha-se tornado viral e o Thierry estava furioso com a utilização do movimento LGBT para a promoção do exército. Ver em . 8. Gaydar é um site de encontros para homossexuais masculinos que possui uma secção específica para escorts. Naquele momento, o Thierry estava a usar a funcionalidade chat em que não é possível saber se se está a falar com um escort sem consultar o perfil pessoal.

RESUMOS

Hoje em dia, as pessoas que filmamos nos documentários estão conscientes, ainda que, por vezes, superficialmente, das políticas de representação a que estão sujeitas. Esta realidade pode

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produzir uma fricção entre as expectativas do indivíduo e do realizador. Partindo da experiência de produção do documentário Thierry (2012), o artigo analisa alguns dos conflitos e confluências entre o registo do discurso político e as explorações da imagem corpórea (MacDougall 2006).

People we film today for documentaries are aware, even if superficially, of the politics of representation they are subjected to. This fact can produce a friction between the expectations of the individual and those of the filmmaker. Based on the author’s experience during the production of the documentary Thierry (2012), the article analyses some of the conflicts and convergences between the shooting of political discourse and the explorations of the corporeal image (MacDougall 2006).

ÍNDICE

Keywords: ethnographic film, corporeal image, sex work, trade unionism Palavras-chave: filme etnográfico, imagem corpórea, trabalho sexual, sindicalismo

AUTOR

RODRIGO LACERDA CRIA-UNL, Lisboa, Portugal Rodrigo Lacerda estudou Cinema e Televisão na London Metropolitan University e National Film and Televison School, no Reino Unido, e é Mestre em Antropologia, especialização Culturas Visuais, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, doutorando em Antropologia na mesma faculdade. [email protected]

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Os Últimos Pioneiros: Memórias de um ritual The Last Pioneers: Memories of a ritual

Daniela Rodrigues

NOTA DO EDITOR

Recebido em: 2013-11-30 Aceito em: 2014-03-07

O surgimento da ideia1

Hoje, que me torno um pioneiro, dou a palavra de honra pioneira: vou ser diligente a aprender e a trabalhar, respeitarei os meus pais e os professores, serei um camarada leal e honesto, que mantém a sua promessa. Guiar-me-ei pelo exemplo dos melhores pioneiros, respeitarei os feitos gloriosos dos partizans e daqueles que procuram a liberdade e a paz ; Amarei o meu país auto-gerido, a República Federal Socialista da Jugoslávia, os seus povos e nacionalidades fraternas, E construirei uma nova vida cheia de felicidade e alegria Voto dos pioneiros

Mark: Do dia em que me tornei pioneiro, guardo apenas pequenas memórias …

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Diego: Por um lado, são belas memórias. Mas por outro, muitas coisas ainda não estão clarificadas. Transcrição de um excerto do filme

1 Para falar sobre o processo de realização da curta documental Os Últimos Pioneiros,2 começo por recordar o episódio que me fez despertar curiosidade sobre este ritual. Residia há dois meses na Eslovénia quando adquiri, num alfarrabista de Celje e de forma desinteressada, um número comemorativo de uma revista infantil ilustrada chamada Ciciban. Estava acompanhada por um amigo esloveno que me traduziu para inglês esta palavra como “pupilo” ou “aprendiz”. Mais tarde vim a saber que ciciban, na Ex- Jugoslávia, significava também o estágio etário das crianças até aos 7 anos de idade, altura em que, mediante um ritual, se tornavam pioneiros.

2 Esta revista lúdico-educativa é editada semanalmente desde 1945 para um público pré- escolar. Este número específico datava de 1995 mas compilava excertos de edições dos 50 anos anteriores (ver figura 1). É muito provável que meu amigo, nas respectivas épocas de edição, tenha folheado algumas das páginas reproduzidas neste volume. Enquanto percorria as folhas do meu recentemente adquirido exemplar, lembrou-se dos versos do voto que se declamava na celebração para se tornar num pioneiro e vieram-lhe à cabeça fragmentos de memórias que partilhou, na mesma tarde, com o Mark, seu amigo de infância, quando este se juntou a nós para um café não planeado. Juntos e de forma espontânea, trocaram uma série de palavras em esloveno, folhearam a revista antiga e fizeram uma pesquisa no google para encontrarem a transcrição integral desse voto, ou juramento. Leram-no pela primeira vez desde o dia da celebração que os tinha tornado Pioneiros da Jugoslávia. No final, o Mark – que veio a ser um dos personagens do meu filme – comovido, tentou explicar-me a real dimensão do seu conteúdo, auxiliando-se de dicotomias entre “aquela época” e a “sociedade individualista” actual. Quando mais tarde filmei a minha última entrevista fiquei contente por o ter captado a descrever este mesmo episódio: “há dois ou três meses, um amigo mostrou-me o voto dos pioneiros e foi fantástico. No final fiquei com pele de galinha, foi impressionante”.

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Fig. 1: Compilação de logotipos e ilustrações de várias secções da revista Ciciban entre 1985 e 1995, retirados do volume referido no texto. “O ‘ciciban’ cozinha sozinho” ; “Escola Feliz” ; “Escola e algo mais” ; “Onde é que se compete?”.

3 Vivi na Eslovénia no quadro de um projecto de voluntariado,3 entre Maio de 2012 e Junho de 2013, onde desenvolvi actividades de educação audiovisual, media alternativos e filme participativo. Apesar de me ter licenciado em Antropologia, de ter completado um Mestrado em Migrações, Interetnicidades e Transnacionalismo e de ter tido experiências de trabalho de campo e investigação académica, considerei este período como uma interrupção do meu percurso nesta área, com o objectivo de experimentar outros horizontes teórico-metodológicos. Ao colaborar voluntariamente com uma ONG eslovena durante um ano, obtive formação em documentário. Entre outras, as minhas tarefas principais ao longo deste período foram a realização de duas peças documentais por mês e foi neste contexto que planeei e concretizei este filme: não como antropóloga, mas como aprendiz de documentarista. Escrevo este artigo um ano após esta experiência extra-académica e regressada à academia. À distância apercebo-me de que, embora não o tenha planeado, a investigação que realizei enquanto colaboradora de uma produtora de cinema documental teve afinal paralelismos temáticos e metodológicos com investigações antropológicas. Procuro expô-los através da descrição metodológica daquela que acabou por ser a minha primeira experiência em filme etnográfico.

O Ritual

Tadej: A professora, na altura camarada, ensinava-nos como dizer República Federal Socialista da Jugoslávia. Mas nós não sabíamos o que é que isso significava. Transcrição de um excerto do filme

4 Dois elementos – a revista Ciciban e o voto – tinham despertado memórias nos meus dois companheiros. Eu não as entendi mas percebi a sua intensidade latente. Daí para

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diante, de forma muito informal, comecei a questionar amigos sobre o ritual de integração no Movimento Pioneiro da Jugoslávia. Embora perante a questão “o que era isso de se tornar pioneiro?” tenha recebido essencialmente respostas lacónicas – pela falta de interesse que o tema, associado aos yugonostálgicos,4 parecia despertar – fui percebendo que o Mark, tal como muitos do meu círculo social, faziam parte das últimas gerações que participaram na celebração dos pioneiros que, na Eslovénia, terminou entre 1989 e 1990. E que viveram enquanto crianças, o desmembramento da Jugoslávia e a transição para a República da Eslovénia, cuja independência foi declarada em 1991 e reconhecida em 1992. Ao longo dos anos 90 e até à sua integração na União Europeia em 2004, o país transitou de um sistema político socialista para o sistema parlamentar, de uma economia planeada pelo estado para um contexto capitalista, de um (inter)nacionalismo comunista para novos etnocentrismos, eurocentrismos e ocidentalismos, de uma Federação multinacional para um estado-nação autónomo e independente (Velikonja 2008, 2009), da “Unidade e Fraternidade” jugoslavas para uma “Unidade na Diversidade” europeia (Debeljak 2003). Estes processos tiveram alguns resultados negativos como, entre outros, a degradação do Estado-social, a introdução do turbo-capitalismo, o aumento de desigualdades sociais e o ressurgimento de discursos nacionalistas (Velikonja 2009: 537). Sobretudo após a integração na União Europeia, a Eslovénia passou a ocupar um lugar periférico e de charneira entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o Oriente e entre a Europa e o resto,5 lugar de tensão por entre as conotações valorativas associadas a uma geografia simbólica europeia que deprecia o Leste e menoriza o Sul (Baric-Hayden & Hayden 1992). Estas transições colocaram ainda o país no âmago do capitalismo global e protestos públicos contra as suas vicissitudes, que têm vindo a ser contestadas em vários países – do occupy wall street, às acampadas espanholas – surgiram na Eslovénia pela primeira vez em Maribor, em 2012, estendendo-se a várias cidades por todo o país na altura em que realizei esta investigação.

5 Temas relacionados com o tal ritual, com os Pioneiros e, por extensão, com a Jugoslávia, começaram a interessar-me mais à medida que me fui apercebendo que as pessoas com quem me cruzava descreviam a situação actual da Eslovénia com recurso a estes dualismos Europa/Balcãs, Capitalismo/Socialismo, partizan/não partizan (ou católico). 6 Expressões como Yugosnoltagia ou yugonostálgico eram também frequentes, usadas de forma pejorativa, irónica ou, efectivamente, nostálgica. Em suma, uma ideia – ou antes, múltiplas ideias – de Jugoslávia (o seu período no tempo e/ou a sua geografia no espaço – territórios da Ex-Jugoslávia enquanto Balcãs) não só eram recorrentes nos discursos sobre a contemporaneidade eslovena, como também eram recursos usados, de formas diversas, para dar sentido a narrativas sobre o presente.

6 Uns meses depois do episódio descrito acima, e no seu seguimento, optei por trabalhar os dualismos enunciados pela perspectiva de jovens. Para investigar essas tensões, optei por escolher para universo de estudo um grupo de pessoas elas mesmas num local de charneira desses processos de transição: eslovenos que tinham integrado as últimas gerações de pioneiros ; isto é, que tinham participado da socialização ideológica que visou imbuí-los no projecto socialista jugoslavo. A minha intenção era perceber, por um lado, como é que uma geração que foi introduzida, através da participação de processos de socialização, numa determinada realidade (Jugoslávia, socialismo) com discursos dominantes específicos (entreajuda, comunitarismo) sentiu a transição para um contexto com características antagónicas às do passado (Europa, capitalismo,

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competição, individualismo) e por outro, como é que avaliava agora a presente realidade. Depois de ter assente o universo de estudo, delimitei o meu objecto de análise às memórias da celebração de integração no movimento pioneiro jugoslavo. Tinha ficado com a sensação de que as memórias sobre os dias enquanto pioneiros continham algo de íntimo e inexplicável, que eram uma expressão de um verdadeiro embodiment da ideologia para o qual assumi que o ritual e a vida de todos os dias à data tinham tido um papel central. Entendi então a celebração como um dos elementos do do it yourself kit de processos de construção de nação (Löfgren 1991) e por isso um bom ponto de partida que me permitisse aceder a outras dimensões da transição e das tensões que queria abordar. Em primeiro lugar, procurei reconstruir a sua estrutura ritualística e para tal realizei uma série de entrevistas exploratórias e algumas pesquisas bibliográficas para começar a perceber em que consistia a celebração e conhecer os elementos da sua cultura material e imaterial. Fui tomando notas avulsas no meu diário de campo e recolhendo arquivos em diversos formatos: fotografias, ficheiros áudio, imagens vídeo.

Fig. 2: Grupo de pioneiros logo depois de receberem as « titovkas ». 29.11.1989, Velenje.

7 Quem participava no ritual passava a ser membro de uma organização de pioneiros. A União de Pioneiros da Jugoslávia foi criada em 1942 (Velikonja 2008),7 seguindo o modelo soviético, sendo os seus membros crianças e jovens a partir dos 7 anos, independentemente do género. As organizações pioneiras na Jugoslávia funcionaram como um instrumento institucional para a produção da infância na sociedade socialista e o seu objectivo último era construir emoções patrióticas e desenvolver um sentido de pertença ao colectivo ideológico desde uma idade jovem (Erdei 2006). Estas emoções foram estimuladas através do cruzamento, nas actividades das organizações, de conteúdos lúdicos, como brincadeiras e desporto, com conteúdos ideológicos – a juventude em acção, a unidade e fraternidade, o culto do líder e a pertença comunitária. Ser admitido numa organização pioneira era, na verdade, apenas o primeiro passo para a socialização plena que transformava gradualmente o indivíduo num membro da comunidade socialista: depois de se tornar pioneiro, aos 14 anos

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passava a pertencer à Organização da Juventude e mais tarde, na idade adulta, tornar- se-ia membro do partido (Erdei 2006). Numa das entrevistas chegaram-me a dizer que o mais estranho de tudo era que esta geração tinha ficado para sempre pioneira: “eu só fui pioneiro, nunca cheguei a ser Mladi8 e isto foi frustrante para mim. Mais tarde, ter- me-ia tornado membro do partido comunista. Na verdade, não é que eu me quisesse tornar nalguma coisa. É mais aquela sensação de não termos acabado aquilo que começámos”.9

As coisas

Kaja: Lembro-me que tínhamos de usar uma camisa branca e penso que uma saia azul. Depois reunimo-nos no átrio principal da escola e estávamos todos vestidos de igual (…) Mais tarde, chegaram os alunos mais velhos, deram um lenço vermelho a cada um e colocaram nas nossas cabeças um chapéu azul com uma estrelinha vermelha. Transcrição de um excerto do filme

8 A celebração da integração na União de Pioneiros da Jugoslávia acontecia em toda a Federação a 29 de Novembro, Dia da República. O ritual enfatizava dramaticamente a mudança de estatuto de criança ciciban para o de futuro pioneiro e esta performance ritualística era composta por diversos elementos. Desde 1946 que os símbolos da organização eram um lenço vermelho – rutica e um chapéu azul com uma estrela vermelha – titovka (Erdei 2006). Alguns destes elementos da cultura material não me eram de todo estranhos. Reconhecia as titovkas e as ruticas que, juntamente com outros objectos como retratos do Tito, bandeiras da Jugoslávia e postais de partizans fazem parte da parafernália de coisas consideradas vintage ou ícones Yugonostálgicos que decoravam muitos dos ambientes domésticos e públicos que frequentei na Eslovénia e nos outros países da Ex-Jugoslávia. Velikonja (2008) considerou estas coisas produtos que representam hoje em dia a dramatização, objectificação e mercantilização da Yugonostalgia ou Titonostalgia10 nos países da antiga Federação. Mas eu desconhecia as suas antigas funções e significados durante o período Jugoslavo, no seio do ritual: sobretudo a rutica era um símbolo mnemónico do “passado revolucionário” e do Tito (Erdei 2006) e usá-lo era um motivo de orgulho para os pequenos pioneiros, que se sentiam pertencer a um grupo mais vasto, imbuídos de responsabilidade e, sobretudo, mais crescidos (ver figura 4). Antes de receberem estes objectos, os pioneiros tinham de declamar o voto citado no início do texto. Este voto sofreu algumas alterações ao longo dos anos mas a sua mensagem original, que enfatiza a lealdade do pioneiro ao estado e ao povo jugoslavo, permaneceu a mesma (Erdei 2006). Este juramento era declamado em conjunto e todos os futuros pioneiros estavam vestidos com um uniforme: camisa branca e saia ou calças azuis – que, quando acrescentada a rutica, replicava as cores da bandeira jugoslava (ver figura 2).

9 Além da rutica e da titovka, os pioneiros que entrevistei receberam ainda um livro de conduta da União de Pioneiros da Jugoslávia e um conjunto de ilustrações didácticas com informações relativas ao comportamento quotidiano (ajudar os pais na lida da casa, os mais velhos que encontrarmos na rua …) e relativas à gestão de práticas corporais (práticas desportivas, hábitos de higiene - ver figura 3 - e alimentares).

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Fig. 3: Boletim de controle da higiene dentária (frente e verso). “Dentes limpos, dentes saudáveis!”

O corpo

Kristina: Eles punham-nos um comprimido vermelho na boca e se não tivesses lavado os dentes, eles ficavam vermelhos. E tinhas de os mostrar em frente à turma toda. “Ai ai, não lavaste os dentes!” Transcrição de um excerto do filme

10 À parte os objectos recebidos no dia da celebração, outros elementos presentes no quotidiano dos jovens pioneiros estavam também assentes na produção de uma infância dirigida por actividades de “desenvolvimento criativo positivo” (Erdei 2006). Brinquedos, livros, e revistas difundiam o ideal de criança activa – a Ciciban que despoletou as memórias ao meu amigo – e elementos associados às práticas corporais – como centros desportivos ou boletins didácticos de controle de higiene dentária – regulavam os tempos livres e as técnicas de corpo (Mauss 1936) e modelavam o habitus (Bourdieu 1979) das crianças jugoslavas, para um pleno embodiment da ideologia: “Concern with hygiene was an obvious example of how care for the bodies of the Pioneers came to be part of the creation of the new socialist man” (Erdei 2006)”.

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Fig. 4: Retrato de Samo no dia em que se tornou pioneiro, Velenje, 29.11.1989.

O Filme

O que é visível é um caminho para o não-visível Béla Balázs

11 Feita a pesquisa exploratória, comecei a questionar-me como tratar estes temas invisíveis – memória, transição, nostalgia, habitus, um ritual que já não existe – através de métodos visuais. Comecei por tentar perceber o que é que daqui era visível ou performático. A primeira pista, e a mais óbvia, era a cultura material, os objectos do ritual. Mas estes, hoje em dia, descontextualizados dos seus usos do passado, evocam outros significados – a tal Yugonostalgia mercantilizada. Como é que podia filmar ruticas e titovkas imbuindo-as com as conotações passadas?

12 Lembrei-me também de procurar por registos da celebração. Graças a um grande amigo e companheiro de trabalho, tive acesso ao acervo do seu pai, Franc Pavkovič,11 operador de câmara para uma televisão local eslovena, que captou várias imagens de eventos familiares e públicos, locais e nacionais. Aqui consegui recolher imagens de pioneiros – algumas mesmo em companhia do próprio Tito – captadas nos anos 70 e 80 que decidi, desde logo, incorporar no filme: com uma textura difusa, os clipes seleccionados filmados em super 8 parecem tratar-se de fragmentos de memória. O grão da imagem e o ritmo da sua projecção parecem levar-nos automaticamente a reflectir sobre o passado.

13 Lembrei-me também de fotografias. Mais do que uma vez, em casa sobretudo de pessoas da geração dos meus pais, tinha visto expostos retratos emoldurados dos seus filhos vestidos como pioneiros: no dia da celebração, era comum tirarem-se fotografias individuais e colectivas com os uniformes vestidos (ver figura 4). Recolhi algumas e,

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mais tarde, quando já estava na fase de filmagens, desafiei os participantes a trazerem as suas para o local de entrevista.

14 Considerei ainda as publicações: revistas Ciciban, os livros de conduta, os boletins de saúde (ver figuras 1 e 4). Tanto ao longo do processo de pesquisa como durante as filmagens, sempre que acedi a um destes objectos, digitalizei-o, fotografei-o e/ou filmei-o mas, sobretudo e sempre que possível, pedi-o de empréstimo para o ter presente em entrevistas futuras, enquanto potencial adjuvante de memória.

15 E as canções. Gravei cópias que encontrei na internet, transcrevi e traduzi. E, tal como os elementos anteriores, trazia-as comigo sempre que ia entrevistar outro pioneiro. Graças a uma amiga de um amigo, consegui ainda aceder a uma gravação de uma celebração que teve lugar no final dos anos 80 em Krško, a cidade onde eu vivia. Infelizmente não foi possível incluir no filme este vídeo caseiro que apresentava uma qualidade muito baixa. Mas, para complementar as imagens silenciosas em Super 8, dele consegui extrair elementos sonoros da performance do ritual, nomeadamente canções e lengalengas declamadas pelos pioneiros. Este material foi essencial para concluir o processo de edição. No entanto não consegui encontrar nenhuma gravação do hino. E este era central na minha pesquisa: tinha sido a sinédoque mnemónica de todo o início da investigação. Tinha pensado instigar os intervenientes a declamarem o hino durante a entrevista. Mas mais tarde, optei por gravar uma voz de criança a recitar essas palavras – embora manipulatória, esta opção estética prendeu-se, mais uma vez, com uma tentativa de transportar os espectadores do filme para um espaço intermitente entre o passado e o presente evocando memórias do tempo da infância.

As entrevistas

Nina: Na segunda classe estudámos “A Jugoslávia, o meu grande país”. E eu tinha a ideia de que era vasta, enorme. Mas no ano seguinte começámos a estudar “A Eslovénia, o meu pequeno país” e foi muito estranho para mim perceber o quão pequeno era afinal este país. Com o desmembramento da Jugoslávia ela deixou de ser grande e ficámos com a nossa Eslovénia, pequenina e minúscula. Kristina: De repente já não havia Camaradas mas apenas Senhoras Professoras. E para mim isso foi tão estranho, mas o que era aquilo? Mark: Eu só me lembro de estarem a tirar o retrato do Tito da parede da sala de aula. Transcrição de um excerto do filme

16 Se queria trabalhar a memória, parecia-me incontornável captar palavras e discursos. A vontade de realizar este filme vinha do facto de ter presenciado um acesso de memória espontâneo e a única forma de trabalhar o tema da transição de regimes e da Yugosnostalgia sem tornar o filme demagógico era dotá-lo de uma dimensão subjectiva. A ideia de entrevista não me pareceu muito sedutora, mas comecei a pensar em estratégias de filmar os meus entrevistados no momento que seriam assomados por rasgos de memória associados ao ritual que queria descrever. Além de palavras e discursos, ao acto de memória estão associadas corporalidades – espantos, olhares, titubeações, gaguejos – que poderia captar em acção, de forma a enquadrar as palavras ditas com envolvimentos gestuais e materiais. Percebi que precisava de filmar os meus entrevistados no exacto momento de tensão passado – memória – presente. Uma entrevista, por menos directiva que seja, como comprovei nas primeiras abordagens,

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não catalisa automaticamente estas exclamações e interjeições. “Often it is only by introducing new stimuli that the investigator can peel back the layers of a culture and reveal its fundamental assumptions” (MacDougall 1998: 135). Para tal, utilizei algumas estratégias catalisadoras para estimular discursos sobre o passado e fazer com que essas lembranças surgissem em frente à câmara. “Memory has always been encoded through a trace, a detail, a suggestive synecdoche” (Boym 2001: 54). Ao longo das pesquisas bibliográficas, a passar pela Câmara Clara de Barthes (1980), que reflecte sobre imagem fotográfica e a memória, entendi o potencial da fotografia para o acto de recordar. Considerei que os outros auxiliares mnemónicos que tinha vindo a recolher também detinham esse poder de ferir, provocar e evocar quando colocados em confronto com os meus entrevistados. A câmara e o som síncrono permitir-me-iam guardar esses instantes de expressão de deslumbramento e nostalgia espontâneos, frases soltas e desconexas evocadas perante objectos, fotografias e sons do passado. Neste exercício de antropologia visual, as imagens foram utilizadas em duas frentes: enquanto método, acedendo à imagem (fotografias, arquivos vídeo) como ferramenta de provocação ; e enquanto resultado, produzindo o discurso em forma de imagem que contextualiza o sujeito e a sua performance.

17 Elaborei um guião de entrevista semi-directiva, baseando-me na estrutura do ritual que tinha investigado, no qual comecei por colocar questões muito simples sobre o dia em que o entrevistado se tinha tornado pioneiro. Dividi sempre a entrevista em duas partes: na primeira, fiz perguntas de carácter mais pragmático, voltadas para a descrição do ritual em si. “Do que é que te lembras do dia em que te tornaste pioneiro? Podes descrever-mo, por ordem, desde que estavas em casa a preparar-te até quando voltaste?”. Desta descrição muito técnica, centrada em todas as etapas do ritual, na performance e nos objectos, partia para questões mais subjectivas. Perguntava como se sentiam durante cada uma das fases descritas do ritual. Daqui, dirigia as minhas questões para o tópico da transição “Como é que te lembras de, enquanto criança, teres deixado de viver na Jugoslávia, para passares a viver num país chamado Eslovénia?”, “Como é que te apercebeste de que as coisas estavam a mudar?”. Tive cuidado em não formular perguntas utilizando expressões como “comunismo” ou “capitalismo”, já que queria aceder à percepção pré-ideológica, enquanto crianças.

18 Só depois de as informações se terem aparentemente esgotado é que utilizei estratégias catalisadoras tais como mostrar a transcrição do hino, mostrar os documentos que trazia comigo (boletins de conduta, fotografias) ou mesmo estimular o visionamento das filmagens de arquivo que tinha conseguido. Desta forma, de início não condicionei as memórias dos meus entrevistados, dando espaço para me serem apresentados factos que ainda desconhecia. Sem nunca os interromper, ouvi repetições e redundâncias que mais tarde me permitiram destrinçar aspectos da memória colectiva de aspectos de memórias individuais. Ao mesmo tempo, quando passei para a estratégia catalisadora, os meus entrevistados já estavam mais confortáveis perante a câmara e consegui estimular outras memórias e captar o seu surgimento nas filmagens. Era também nesta fase que dirigia mais as minhas perguntas para tópicos que não tinham ainda sido abordados ou que me pareciam ter ficado pouco claros na entrevista “outros pioneiros contaram-me que antes da queda da Jugoslávia vocês chamavam a vossa professora de camarada. Que memórias é que tens sobre isto?”. Embora muitas das vezes opiniões valorativas sobre o passado estivessem já contidas nalgumas respostas, normalmente

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reservava o final da entrevista para questões sobre uma avaliação comparativa do presente.

19 Para que estas entrevistas tivessem o carácter intimista necessário, tomei alguns cuidados. Antes da sua realização, através de contactos prévios, convidava os pioneiros a trazerem consigo objectos sobre o ritual. Alguns trouxeram fotografias e/ou, a titovka, a rutica, os boletins. Outros não trouxeram nada. Sempre que possível, tentei que as entrevistas acontecessem nas suas casas. No entanto, cheguei a fazer duas entrevistas nos locais de trabalho e outras duas em cafés públicos.

20 Outra questão que penso ser pertinente realçar é que, já que filmei, operei o som e entrevistei sozinha,12 utilizei um tripé para que, durante a entrevista, conseguisse olhar os meus interlocutores nos olhos e não através de uma câmara, aproveitando as alturas em que esclarecia dúvidas em inglês para corrigir os planos. Porque, muito importante, insisti para que as entrevistas se realizassem em esloveno, a sua língua materna. Como não dominava a língua a um nível de conversação elevado, acordei com cada entrevistado em colocar as perguntas em inglês e receber as respostas em esloveno. Sempre que precisasse de esclarecer alguma coisa, no final da resposta pedia uma pequena tradução em inglês. Mais tarde, antes de editar, tive o apoio de dois colegas eslovenos que transcreveram e traduziram as entrevistas na íntegra. Realizei 10 entrevistas, entre 20 e 50 minutos cada. Por motivos de falha técnica, uma das entrevistas não foi incluída na edição – o som não ficou com qualidade suficiente, por ser minha primeira entrevista, não dominava ainda o equipamento que estava a utilizar. Foram realizadas em várias localidades da Eslovénia – Celje, Cerkno, Ljubljana e Nova Gorica. Pretendia uma maior diversidade de lugares, mas a escolha de intervenientes ficou condicionada, por um lado, pela estratégia da bola de neve que utilizei, com origem no meu círculo de amigos e, por outro, pelo curto espaço de tempo que tive para a realização do filme – 2 meses – imposto pela produtora com quem estava a colaborar.

A montagem

Mark: não guardei nada. Nem o lenço, nem o chapéu. Nada. (…) O que eu quero guardar é essa ideia bonita. Domen: Tínhamos a sensação de que nos estávamos a integrar numa comunidade, como num ritual iniciático. Nina: Sentíamos que estávamos a fazer parte de uma comunidade de camaradagem e fraternidade. Marko: “Unidade e Fraternidade”, pois. Eles estavam a dizer isto a toda a hora. Transcrição de um excerto do filme

21 Já referi que as entrevistas foram transcritas na íntegra. Através de análises de conteúdo, agrupei os seus excertos por nichos temáticos com os quais teci um texto, colando as entrevistas da mesma forma que um antropólogo “cola” os seus textos etnográficos quando conjuga informações de diversas fontes sobre um mesmo fenómeno. Agrupei memórias, alinhavei o ritual na sua cronologia e compilei as ideias sobre o passado e o presente. Só introduzi as entrevistas na minha linha de montagem depois de ter elaborado esta estrutura textual. Aqui, ao mesmo tempo que procurei construir um colectivo – os últimos pioneiros – a partir das memórias individuais

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fragmentadas, tive a preocupação de mostrar diferentes perspectivas ideológicas (umas mais Yugonostálgicas que outras, por exemplo) e de não eliminar traços da individualidade de cada entrevistado – tentando captar no filme os seus gestos, estilos de indumentária, espaços domésticos, titubeações, cor política. Afinal, o que eu tentei fazer aqui foi reconstruir e aceder à memória colectiva através das várias interpretações das memórias individuais. “Personal memory (…) while referring to collective memory, also jealously maintains individual exclusivity and eccentricity, cherishing its own, singular small stories from the past that are in the sole possession of an individual, although part of larger history.” (Boym citada por Velikonija 2008: 26). Depois de estruturado o texto, as minhas opções de montagem procuraram evidenciar o carácter fragmentário das memórias. E se o meu objectivo era situar o filme no tempo evocado pela nostalgia, tinha de adicionar os outros elementos sensitivos: as imagens, o som. Assim, articulei com as palavras as imagens de arquivo, a música, o hino e palavras rituais que tinha compilado ao longo da minha investigação. MacDougall (1998) problematiza a utilização de imagens de objectos descontextualizados: “In the case of material culture, the forms under analysis are the direct product of members of the culture, and are visible forms transported from one context to another. In the new context they are transformed because the conditions in which they are viewed are different.”. Realça assim que os artefactos em si, isolados, não comunicam cultura, simplesmente referenciam-na. Mas devidamente contextualizada, a imagem tem o poder de enquadrar as pessoas e as coisas. Através da justaposição, via edição, dos relatos de memória com imagens da parafernália iconográfica da Yugonostalgia, procurei imbuir as coisas e os sons dos seus usos e significados passados, ou seja, recontextualizá-los. Tentei contextualizar também as emoções invisíveis. Por exemplo: numa dada altura do filme, ouve-se a música Lepo je v naši domovini biti mlad (É bonito ser-se jovem na nossa nação), que surge de uma forma aparentemente não diegética. No entanto, este elemento foi-me referido numa das entrevistas pelo Mark, quando me disse que não tinha guardado nenhum objecto dessa época, mas que actualmente utilizava esta canção nalgumas das suas performances enquanto artista plástico. Embora não esteja explícito no filme, esta banda sonora é utilizada quando o Mark a evoca, como se entrássemos de súbito nas suas memórias auditivas. Ao mesmo tempo, o carácter ambíguo desta canção – nostálgico mas também com uma possível leitura sarcástica quando perspectivado pela situação presente na Eslovénia, com elevadíssimas taxas de desemprego jovem – ajudou-me a transmitir de forma subtil a maneira como estas formas de olhar o passado são, na verdade, uma avaliação crítica da situação actual do país.

Nostalgia Reflexiva

Mark: Éramos demasiado novos para perceber o que estas palavras queriam dizer. Transcrição de um excerto do filme

22 No episódio que descrevi no início do texto, o Mark teve, pela primeira vez, consciência do significado das palavras que todos os pioneiros repetiam no Dia da República e reavaliou-as, à luz da sua situação presente. Li mais tarde que os usos do passado podem passar por estratégias de silenciamento, de renúncia, de revisões históricas ou de glorificações acríticas dos tempos idos. Esta última estratégia é a essência do

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fenómeno nostalgia (Boym 2001). O repertório da nostalgia “consists of images of a safe society, calm times, prosperity, and solidarity among people” (Velikonja 2009: 538). Efectivamente, um estudo realizado em 2006 demonstrou que a maioria dos jovens eslovenos imaginavam a Jugoslávia como uma “federação segura, estável, justa, unida, simples, onde as pessoas estavam satisfeitas, sem sentimentos de ambiguidade e cultivavam os valores do colectivismo, da solidariedade e da igualdade” (Peèjak citado em Velikonja 2008: 96). Ao distinguir entre dois tipos de nostalgia – restauradora e reflexiva – Boym diz-nos que a segunda pode ser irónica, utilizar estratégias de humor e conjuga saudade (longing for) com pensamento reflexivo, colocando memórias afectivas sob avaliação crítica. Tentei terminar o filme evocando esta dimensão das memórias sobre os valores transmitidos através do ritual retratado:

Domen: Lembro-me deste dias com alguma nostalgia, estávamos no início das nossas vidas, e pelo que me lembro era tão bom. Depois veio este mundo novo, um mundo que não entendo muito bem. Com novos valores, diferentes daqueles que nós jurámos enquanto pioneiros. Mark: Isto não era propaganda para servir o sistema. Era antes uma ideia sobre como as pessoas podiam viver melhor. Foram-nos dadas algumas ferramentas muito importantes que podemos usar ainda nas nossas vidas. Kaja: Fomos educados de uma maneira em que nos devíamos ajudar uns aos outros. Vivíamos numa comunidade. Hoje em dia penso que não funciona da mesma maneira. Transcrição do excerto final do filme

23 Em dialéctica com o presente, estas reflexões sobre o passado são um espelho da sociedade eslovena actual, reflexo das contingências sociais descritas brevemente na primeira parte do texto. Aproximam os meus entrevistados de discursos políticos globais anti-capitalistas e de rejeição de uma globalização desigual, ao reafirmar valores como justiça social, propriedade pública, acesso à saúde e educação, solidariedade e união entre nações. Esta avaliação do passado pode ser inclusivamente transformadora, levar à acção sobre o presente e ter implicações futuras: “nostalgia is not (only) something intimate, a romantic memory, an innocent self-fulfilling fairy tale, but it can also be a strong social, cultural and political force, producing practical effects in its environment” (Velikonja 2008: 28).

24 Como tentei ilustrar neste artigo, a estrutura do filme procurou seguir as minhas descobertas sobre o tema e tecer, através das memórias, este ritual, tendo em conta a construção de uma memória individual e colectiva, elencando ainda os mecanismos no qual ela se sustenta (músicas, desenhos, palavras, saúde, hábitos corporais) – e a sua relação com o presente, como nostalgia reflexiva. O filme, através das memórias, fala de processos de aculturação mas também de agenciamentos potencialmente transformativos – porque reflexivos e críticos, do presente, utilizando recursos do passado.

Devolução do filme e a contínua construção do pensamento antropológico

25 Ao terminar o filme e antes de o disponibilizar na revista online onde eram publicadas as peças realizadas pela minha produtora, enviei um link da versão final da curta metragem a cada um dos entrevistados. A recepção foi positiva e tive autorização para a

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tornar pública. Mais tarde tive oportunidade de falar pessoalmente com alguns dos entrevistados que consideraram que os fragmentos das suas memórias estavam bem retratados e que, com o visionamento do filme, reconstruíram pela primeira vez a memória completa de todo o ritual. A realização do filme demorou dois meses mas a sua vida enquanto dispositivo de conhecimento sobre o tema que quis explorar ainda não se encerrou. O filme percorreu alguns festivais em Portugal, na Eslovénia, na Croácia e no México.13 Tive a oportunidade de estar presente em alguns e de assistir às reacções do público. Sobretudo em Izola, Eslovénia, na estreia do filme, observei risos cúmplices e espantos de entendimento de algumas das pessoas que estavam na audiência – provavelmente a sentirem os mesmo acessos mnemónicos que os participantes do filme. Mais tarde, tive a oportunidade de mostrar o filme a amigos de outros países da Ex-Jugoslávia que sentiram sensivelmente o mesmo reconhecimento relativamente ao ritual, mas tinham leituras diversas do passado e da realidade presente. Nomeadamente nos contextos onde a guerra dos balcãs teve efeitos mais intensos, a ideia da Jugoslávia desperta emoções muito diferentes das despertadas na Eslovénia e merecem ser exploradas com outra delicadeza e com muito maior profundidade.14 Recepções curiosas para mim foram ainda as de dois amigos Albaneses – que ao verem o filme recordaram e descreveram-me o ritual semelhante pelo qual passaram no seu país e daqui passaram para uma descrição exaustiva do antigo regime da Albânia. E um amigo de infância português, membro do partido comunista nacional, também iniciado no movimento pioneiro, depois de ver o filme e sentir reconhecimento e empatia com o tema, partilhou comigo a vontade de realizar um projecto semelhante em Portugal. Não antes de partilhar comigo a estrutura do ritual no território português. Em suma, um filme sobre a memória tornou-se ele mesmo num catalisador de memórias dos mesmos eventos ou de eventos relacionados com a celebração dos pioneiros, mesmo em contextos distintos. Cada vez que mostro o filme, recebo mais informações sobre o ritual, mais descrições sobre o passado na Jugoslávia ou sobre a retórica socialista/ comunista. Se editasse hoje o material recolhido, faria um filme diferente, eventualmente mais completo por ter um conhecimento mais amplo do objecto retratado. Alguns elementos a que não dei importância na altura da montagem foram excluídos da versão final, como uma altura da cerimónia em que todos os pioneiros comiam um bolo. Esta informação pareceu-me trivial. Mas agora, depois de ter reflectido sobre as estratégias de difusão de ideologia através da combinação de elementos lúdicos e ideológicos, esta parte da cerimónia parece-me dotada de outro significado. Afinal, esta era “a maior memória” para muitos dos pioneiros entrevistados, não as palavras do hino sobre as quais só agora reflectiram.

Domen: No final, recebíamos um pequeno bolo. Foi a primeira e a última vez que comemos um bolo na escola primária Miha: No final, preparavam-nos um bom almoço. Kaja: E eu lembro-me que recebíamos algum bolo. Kris: Havia uma mesa com alguns bolos e alguns sumos e nós mal conseguíamos esperar para comer esses bolos! Tadej: Recebemos uma sobremesa e um sumo e esta é a maior memória de toda a gente. Comemos strudel e bebemos um sumo cor-de-rosa dessa altura (…) e nessa altura não havia muitas coisas para sermos mimados ; era um presente para nós. Transcrição de excertos de entrevistas não incluídas na edição final

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Fig. 5: Tadej, no final da cerimónia, 29.11.1990, Nova Gorica.

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1. Fui desafiada para escrever um relato do processo de realização do meu primeiro filme etnográfico. Não posso terminar este texto sem agradecer a todas as pessoas que tornaram possível a sua concretização. Como tentei deixar claro aqui, toda a pesquisa teve uma estrutura circular, de ida e volta entre objectos e memórias, trocas de informações e de ideias. Em primeiro lugar, quero agradecer aos pioneiros que aceitaram participar no filme e partilharam as suas memórias que me ajudaram a reconstruir o ritual – ao Mark Požlep, ao Diego Menendes, ao Tadej Hrovat, à Kaja Avberšek, à Kristina Bratoz, ao Marko Šturm, ao Domen Uršič, à Nina Hercog, ao Jaka Zurman e ao Miha Deisinger. Ao Samo Milnar, à Kristina, à Kaja e ao Tadej por me terem disponibilizado as suas fotografias com a farda dos pioneiros. À Maja Žiberna por me facilitar o acesso aos arquivos audiovisuais da sua celebração em Krško. Ao Kajetan Voglar e aos seus pais, pela gravação áudio do hino. À Eva Matarranz por me ter apoiado na realização de entrevistas na Nova Gorica e apresentado aos seus amigos dessa cidade. À Špela Čepin e ao Tomaž Pavkovič pelo apoio na tradução integral das entrevistas que realizei, ao Paulo Fonseca pela revisão das legendas em inglês, às minhas colegas voluntárias na DZMP - Špela, Estefania Nocete, Coralie Girard, Claire Billard, Anna Savchenko e Eva – pelas revisões constantes durante o processo de edição, ao Boris Petkovič pela mentoria e novamente ao Tomaž por me disponibilizar o maravilhoso arquivo do seu pai, Franc Pavkovič, sem o qual este filme não teria o teor nostálgico essencial para transmitir esteticamente a dimensão dos tópicos que procurei explorar na minha investigação. E por fim, aos locais onde pude até agora apresentar o filme e receber feedback de outros pioneiros e de outro público e continuar o processo de aprendizagem desta investigação. Curiosamente, termino a escrita deste relatório no dia 29 de Novembro de 2013. Seria hoje o Dia da República – Dan Republika, evocado no filme. E hoje o filme será novamente exibido em Ljubljana às 19 horas e em Zagreb às 20, onde espero que desperte mais memórias do passado e momentos de nostalgia reflexiva sobre presente. 2. Título original: Zadnji pionirji, 11min, Eslovénia 2012, disponível para visionamento em . 3. Neste período colaborei com a associação DZMP (http://www.luksuz.si/eng/) e produtora Luksuz produkcija no quadro do programa Serviço Voluntário Europeu (http://www.sve.pt/), financiado pela União Europeia. 4. Quem sofre de Yugonostalgia – expressão Jugoslava do fenómeno de nostalgia pelo socialismo ou nostalgia vermelha, comum em sociedades pós-socialistas (Velikonja 2008: 33). 5. Durante a minha pesquisa, a Eslovénia era o único estado da Ex-Jugoslávia que pertencia à União Europeia. No entanto, em 2013, com a adesão da Croácia, as fronteiras da União alargaram- se mais para o sul e mais para o oriente. 6. Actualmente, partizan pode significar apoiante do partido comunista, apoiante do Tito, apoiante da ideologia da Jugoslávia, Yugonostálgico mas também não-católico, anti-capitalista ou seguidor de outros valores associados à esfera da esquerda política. 7. Na mesma altura surgiram organizações semelhantes noutros contextos comunistas dos Balcãs (na Roménia, na Bulgária e na Albânia), na Europa Central (Hungria, Checoslováquia e Polónia) bem como fora de Europa (China, Coreia do Norte e Cuba) (Erdei 2006). 8. Mladi: Júnior; Membro da Organização da Juventude. 9. Domen, entrevista realizada a 17.11.2012 em Cerkno. Este excerto não chegou a ser utilizado na versão final do filme. 10. Nostalgia pelo Tito (1892-1980), líder carismático da Jugoslávia entre 1953 e 1980.

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11. Para mais informações sobre este arquivo, consultar: . 12. Com excepção das entrevistas realizadas na Nova Gorica, onde tive ajuda da Eva Matarranz, minha colega e amiga, muito íntima dos entrevistados. 13. Foi seleccionado para a competição oficial das edições de 2013 dos festivais FEST, em Espinho, Portugal, K3, em Ljubljana, Eslovénia, FSF - Festival Slovenskega Filma, em Portorož, Eslovénia, RAF - Revija Amaterskog Filma, Zagreb, Croácia e FNF - Festival Neodvisnega Filma Slovenije, Ljubljana, Eslovénia. Foi ainda exibido publicamente no Festival Kino Otok, em Izola, Eslovénia, na Mostra de Filme Etnográfico, em Vila Real, Portugal e no Festival Todos Somos Otros na Cidade do México. 14. A transição de regimes retratada no meu filme seria muito diferente se trabalhada noutro contexto da antiga Federação – a desintegração da Jugoslávia custou à Eslovénia 10 dias de guerra. 44 pessoas morreram. No entanto, no total do conflito, e entre os outros estados, mais de 100 mil pessoas perderam a vida.

RESUMOS

Na Jugoslávia, até ao seu desmembramento, todas as crianças eram iniciadas no movimento pioneiro. Celebravam a ideologia da Federação de “Fraternidade e Unidade”. Mas nos anos 90 novos valores entraram na então independente República da Eslovénia. Como é que a última geração de pioneiros sentiu esta transição?

In former Yugoslavia children were initiated in the pioneer movement under the Federation's ideal of "Unity and Brotherhood". In the 1990s other values started entering the newly independent Republic of Slovenia. How was this transition felt by the last generation of pioneers?

ÍNDICE

Palavras-chave: pioneiros, Yugonostalgia, Eslovénia, memória, ritual, filme etnográfico Keywords: pioneers, Yugonostalgia, Slovenia, memory, ritual, ethnographic film

AUTOR

DANIELA RODRIGUES CRIA-UNL, Lisboa, Portugal [email protected]

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Films, terrains et anthropologie: à propos d’images et d’écrits Video, fieldwork and anthropology: about filming and writing

Fabienne Wateau

NOTE DE L’ÉDITEUR

Recebido em: 2013-11-28 Aceito em: 2014-03-07

1 À m’inviter pour commenter la place de l’image dans ma recherche anthropologique, deux références me viennent spontanément à l’esprit. La première est un article de Terence Turner, Defiant Images: the Kayapo Appropriation of Video, publié en 1992, qui porte sur l’usage de la caméra par une population indigène du Brésil. L’auteur y montre comment les Indiens Kayapo s’approprient assez vite la caméra et l’utilisent à des fins de médiation, pour se faire entendre et être reconnus à l’échelle internationale, comme pour gagner en prestige et représentation au sein de leur groupe. La vidéo est un objet politique qui invite à prendre position, un mode de médiation avec les Blancs, une promotion dans la carrière politique, une façon aussi d’aider leurs voisins les Indiens Cree dans leur lutte contre le barrage d’Altamira (Turner, 1992: 7). À utiliser les outils des Blancs, qui les filment en train de filmer, l’impact médiatique est assuré, le message politique transmis, la possibilité de faire connaître et de défendre leur culture par leur propre voix également garantie. La tournée de leur chef Raoni avec la rock star Sting, au regard de la défense des limites de leur nouvelle réserve, conforte cette position: les Kayapo n’ont pas succombé passivement à l’irrésistible forme de représentation des Blancs, ils sont par l’image les sujets et les acteurs de leur propre histoire Kayapo (Turner, 1992: 11-13). La seconde référence est un film de Lina Fruzetti, Ákos Östör et Aditi Nath Sarkar, édité en 2007 et intitulé Singing Pictures – Women Painters of Naya. Ce film de quarante minutes retrace l’histoire de quelques femmes du village de Naya au Bengale, en Inde, devenues peintres à l’initiative d’un „grand-père“ reconnu maître dans l’art des peintures chantées. De tradition ancienne, connues dès le ve siècle en Asie

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du Sud, ces peintures chantées ou pata étaient jusqu’alors réalisées par les hommes et relataient essentiellement les récits mythologiques et fondateurs. Avec les femmes, organisées en associations, les peintures chantées accompagnent désormais les campagnes d’alphabétisation de l’État et portent sur des thèmes sociaux et sanitaires, comme l’hygiène, la prévention du sida, le contrôle de la natalité, l’infanticide des filles, le devoir de les éduquer. Ce film d’une grande beauté artistique et d’une remarquable sensibilité anthropologique est aussi politique. Il décrit le mode de vie de ces quelques artistes, dans leur expérience de peintre mais aussi dans leur quotidien, leur croyance et, peu à peu, leur prise de conscience d’un monde peut-être plus ouvert que celui qui leur est inculqué. Par l’acquisition de connaissances, leurs rencontres au sein de l’association, la diffusion et la vente de leurs œuvres sur les marchés de Calcutta, les femmes apprennent à réévaluer leur univers de relation et accèdent à une forme d’émancipation.

2 Pour atteindre des publics plus larges et plus diversifiés, sans doute l’une des places privilégiées de l’anthropologie visuelle pourrait-elle être un regard social et politique plus systématique sur le monde. De nombreux écrits ont déjà porté sur l’anthropologie visuelle, et ce depuis de longues années. En France, depuis les films de Jean Rouch dès les années 1950, puis l’école de Claudine de France1 à l’université de Nanterre, ou à l’université de Jussieu les enseignements de Jean Arlaud2 dès les années 1970, quelle revue d’anthropologie n’a pas son numéro spécial consacré à l’image, à la photographie et/ou aux films? Combien de festivals de films ethnographiques existent aujourd’hui dans le monde? Combien d’interviews d’anthropologues cinéastes ou réalisateurs trouve-t-on parmi les journaux et écrits académiques? La question de l’articulation entre l’image et l’anthropologie revient régulièrement à l’analyse, dans leurs apports et intérêts mutuels, dans les spécificités ou limites de leur diffusion. À titre indicatif, citons la revue spécialisée en ligne Visual Anthropology ou encore le dernier volume de revue que j’ai feuilleté sur ce thème en 2013 “Mondes contemporains - Terrains en anthropologie visuelle“, ainsi que l’article de 2013 d’Humberto Martins dans Etnográfica. Je dérogerai pourtant à l’exercice introductif d’un état de l’art sur la question, car je ne me positionne pas en cinéaste ou spécialiste de l’image, pour me concentrer plus spécifiquement sur la demande formulée dans l’argumentaire de ce numéro, à savoir présenter l’anatomie et l’archéologie d’un processus filmique.

De l’image selon quels principes?

3 Mes films n’offrent pas de dimension politique évidente. Pourtant, ils répondent à des principes très précis, à la fois idéologiques et méthodologiques, qui renvoient à ma façon de concevoir la discipline. Visuelle ou non, mon anthropologie entend tout d’abord laisser la parole aux gens, à la façon dont ils s’expriment, à leurs discours et à leurs dires, à l’enchaînement de leurs idées selon leurs propres logiques. Aussi, au tournage, ces principes se traduisent-il par une intervention minimale de ma part, où j’essaie de filmer „long“. Les scènes sont prises sur le vif, sans répétition, il n’est pas question du fameux „on la refait“. Les gens répondent à la question que je leur ai posée en y ajoutant aussi ce qu’ils veulent, puis je les relance sur le fil de mon propos. Mais je n’arrive pas non plus la caméra à la main complètement néophyte: je connais mon sujet, parfois depuis de longues années, j’ai repéré les lieux, et les interlocuteurs savent qui je suis, parfois même très bien. C’est donc au regard d’une relation particulière et

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privilégiée que l’image peut se construire, dans la confiance et l’envie mutuelle de donner et d’échanger. Au montage, ces principes se traduisent par une absence idéale de recours à des processus discursifs autres, comme des pages de textes introductifs, des pages titres, l’usage de la voix off, ou pire encore la pratique du voice over qui, je l’avoue, m’exaspère au plus haut point. Les effets spéciaux sont évités et les animations non recherchées, tandis que la chronologie des événements est idéalement respectée. Bref, l’intervention sur les rushs est réduite au maximum. De surcroît, comme mon cinéma ethnographique privilégie les formats courts, car je le pense avant tout comme matériel à travailler avec les étudiants ou comme documents de restitution pour mes interlocuteurs - plutôt que destinées à des salles plus conventionnelles où il pourrait être projeté -, il n’a aucune chance de passer à la télévision. L’image n’est pas mon métier ni mon objectif premier, elle est devenue un de mes outils d’anthropologue.

4 J’ai été sensibilisée au film ethnographique à la fin des années 1990, au Portugal, alors que le Musée national d’ethnologie favorisait une réflexion sur l’image, inscrite dans la lignée de celle créée par l’équipe de Jorge Dias sur les photographies (celles de Benjamim Pereira sont connues) et les films (dont ceux réalisés par Margot Dias au Mozambique, ou en collaboration avec l’institut de films scientifiques de Göttingen3) et qui est à l’origine du fonds d’archives précieux sur le Portugal rural et les ex-colonies que possède aujourd’hui l’institution. Dès 1993, avec le nouveau directeur Joaquim Pais de Brito, également convaincu de l’importance de l’image4, des collectes d’illustrations et de films sont réalisées pour la future exposition sur le fado. Puis en 1996 sont lancés les premiers cours de formation à l’audiovisuel au Musée, coordonnés par Catarina Alves Costa, qui déboucheront dès 1998 sur des stages de formation à l’image, encadrés aussi un temps par Rogério Abreu. À partir de 2000, les films des stagiaires sont mêmes projetés au public, dans le cadre du séminaire Video no Museu5. Sur le terrain dans le Minho et en Alentejo, mais aussi en archives à Lisbonne entre 1997 et 1999, je bénéficie donc de cette synergie et Joaquim Pais de Brito finit par me convaincre d’acheter une petite caméra numérique. J’achète une caméra de poche (Sony mini DV) en septembre 2001, puis très vite un micro directionnel.

5 Dans le même temps ou presque, au sein du Laboratoire d’ethnologie et de sociologie comparative où je suis affectée, un jeune doctorant formé à l’image par Claudine de France à Nanterre, Baptiste Buob, organise des stages de formation à l’image anthropologique. En 2001 et 2002, j’apprend donc „à ne rien dire quand on filme“ soit à hocher la tête plutôt qu’à ponctuer le discours de mon interlocuteur par des petits bruits impossibles ensuite à couper au montage ; „à compter et filmer au moins douze secondes“ avant de changer de plan, à „pousser la caméra devant soi“ quand on marche, ou encore à me rouler par terre tout en sachant me relever pour filmer les pieds hypothétiques d’un danseur en mouvement. Le Cinéma des ethnologues est créé en 2003, lequel dirigé par Baptiste Buob6, actuel directeur adjoint de notre laboratoire, continue de former nos doctorants à l’image. Les trois films dont je vais vous parler à présent s’inscrivent dans ce cadre historique, méthodologique et politique.

Idées, montages et destinations: trois films

6 Il est en effet question de trois de mes films, choisis pour narrer les options anthropologiques et artistiques qui ont présidé à leur réalisation. Chacun d’eux a été visionné au moins une fois dans un festival. Le premier, Ma parenté au village, est celui

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retenu et montré au Ve Congrès de l’association portugaise d’anthropologie (APA), en 2013 à Vila Real, et à l’origine de cette commande d’article. Il est aussi le premier film que j’ai réalisé, en assurant moi-même les prises d’images et de sons, mais le dernier à avoir été monté. Le deuxième, La pierre de partage de l’eau, s’inscrit dans le cadre des formations à l’image du Musée national d’ethnologie. Coréalisé avec Ana Margarida Campos, qui tient la caméra, il a aussi été monté au Musée sur une table de mixage au frame par frame. Le troisième, La canne à mesurer l’eau, primé deux fois, a été réalisé dans le cadre d’une exposition du Musée sur les logiques et les systèmes de mesure, en collaboration avec mon laboratoire et la Fondation Fyssen ; un caméraman et un preneur de son professionnels m’ont accompagné sur le terrain.

Le film du festival 2013: la parenté comme moyen

7 Ma parenté au village (ou A minha família na Luz) est un film de 18 minutes. Une jeune fille de quinze ans, Vánia, nous présente ses parents au sein du village. À chaque personne rencontrée, de porte en porte et de rue en rue, Vánia demande d’expliquer quel lien de parenté les unit. À l’époque, Vánia, alors adolescente et un peu oisive, accepte de se prêter au jeu quand je lui demande de m’aider. Je connais bien sa mère, la boulangère – nous avons le même âge et la boulangerie fut l’un des premiers lieux que j’ai fréquenté dans ce village –, et une relation simple et facile s’est établie entre nous. Ravie de voir sa fille occuper ses journées pendant les vacances, elle ne voit donc aucun inconvénient à ce que nous déambulions ensemble au village, bien au contraire. De son côté, la jeune Vánia est providentielle. Elle est calme et jolie, sa voix grave est facilement captée par le micro, et elle comprend immédiatement que je parle peu à cause de l’enregistrement, donc sans timidité elle s’occupe de tout: de choisir les lieux où nous allons, de poser les questions, de relancer ses parents, de faire les synthèses. Ce fut une chance de trouver Vánia, et un vrai plaisir que je sais partagé. L’année suivante je ferai un autre film avec elle, sur elle, alors qu’elle est devenue la Reine de la Pinha, une fête d’hiver très appréciée dans cette région de l’Alentejo7.Vánia est aujourd’hui mariée et mère d’une fillette de quatre ans, elle est militaire sur la base aérienne de Montijo, près de Lisbonne.

8 La parenté, pour relever d’un processus universel, m’intéresse comme mode d’accès aux populations. Ici, ce n’est pas tant le système de parenté en lui-même qui m’importe – ses logiques, ses principes, sa classification parmi les modèles attestés de parenté, ma possibilité de parler avec des spécialistes, etc. – que l’univers de relations qu’il ouvre et permet de pénétrer. En suivant Vánia de porte en porte au village, j’ai certes recueilli des matériaux qui me permettront un jour de rédiger un article de parenté, mais mon approximation dans ce cas de figure relève plus de la méthode. Comment connaître une population de l’intérieur, comment entrer dans les maisons, comment me faire reconnaître aussi moi-même quand je déambule au village? Car le contexte dans lequel se déroule ce film est très particulier, hors de l’ordinaire. Nous sommes en 2001 et depuis 1998, à trois kilomètres de là, un nouveau village est en train d’être construit pour remplacer celui où nous évoluons et qui sera finalement démoli puis ennoyé dans le cadre de la construction du barrage d’Alqueva. Le vieux village de Luz est donc à cette époque très fréquenté. On y trouve ses habitants bien sûr, mais aussi une population extraordinaire composée d’ouvriers du chantier voisin, d’entrepreneurs, de techniciens de l’entreprise constructrice (la EDIA), de journalistes, de photographes, de cinéastes, de badauds, d’étudiants et de chercheurs en tout genre, dont moi-même,

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anthropologue. Tous ne s’intéressent qu’à une chose: le barrage et le futur déplacement du village. À arpenter les lieux depuis fin 1998, je ne suis donc qu’une étrangère parmi d’autres dans ce village d’à peine quatre cents habitants. J’ai tout de même l’avantage d’habiter chez Dona Joaquina et Senhor João, mes amphitryons au village, avec qui je discute de tout et apprend déjà des noms, des familles, des mariages, des professions, des habitudes. Et dans la rue, quelques personnes commencent à me reconnaître et à me saluer. Une certaine endogamie villageoise semble manifeste, mais c’est à vérifier. Au milieu de cette préoccupation grandissante pour le barrage et le déménagement, je décide alors de parler avec les gens de ce qui est construit, de ce qui dure, ou encore de ce qui reste quand tout change - soit ce que Maurice Bloch appelle le principe même de culture (Bloch,1995)8. Je commence donc à reconstituer quelques généalogies avec eux. Dans leurs maisons, ils me racontent leur généalogie mais aussi tout ce qui va avec: les drames tout d’abord (les accouchements dans les champs, les mortes en couches, les maris violents, la dureté de la vie dans le monde rural, le travail de journalier, le o que caia9) mais aussi la joie, les fêtes, les chants, les repas festifs, les taureaux, les processions, etc.

9 Quand je décide de prendre la caméra, j’ai donc déjà des informations générales sur les appellations, les filiations et les mariages. Dans un café, la mère de Vánia accepte de m’expliquer les termes à la fois vrais et classificatoires de „cousine“ et „tante“ (prima/ tia)10 ; puis Vánia m’offre la possibilité de visiter sa parentèle, où les alliances et ré- enchaînements d’alliances confortent en creux cette tendance à l’endogamie villageoise. À partir de cette visite accompagnée, tous savent désormais qui je suis, et l’on m’offre spontanément, au café ou dans la rue, d’autres informations sur les surnoms, les familles ou les cousins éloignés, me permettant de poursuivre ma collecte, avec ou sans caméra, et de m’intégrer. Car c’est aussi à la suite de ce tournage qu’ils cessent de m’appeler madame ou docteur (docteur ne sera pourtant pas oublié quand il s’agira de me présenter aux gens extérieurs au village) ; on m’appellera désormais par mon simple prénom. On est alors en septembre 2001.

10 Un premier montage des deux films avec Vánia (le premier sur la parenté, le second sur la fête de la Pinha) a été effectué en 2007 avec un monteur du CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), Marc-François Deligne, versions que j’ai remises à Vánia pour la remercier la même année. Puis le montage a été repris et peaufiné en 2011, dans le cadre de mon ouvrage sur le barrage d’Alqueva dans lequel je voulais intégrer un DVD. Il a dès lors été diffusé en plusieurs endroits, au Cinéma des ethnologues à Nanterre bien sûr, ou au Congrès de l’APA de 2013. Il est aussi utilisé depuis 2 ans dans le cours de Master de parenté dispensé par Frédérique Fogel à Nanterre. Il constitue ma première expérience individuelle de tournage. C’est ici que j’ai appris à être attentive à tout: cadrage, exposition, son, contexte, etc.

Le film de l’apprentissage: montage au frame au Musée National d’Ethnologie

11 La pierre de partage de l’eau (ou O marco da água) est un film de 11 minutes. Il porte sur le partage de l’eau d’irrigation dans une paroisse du Minho, appelée Penso, effectué à partir d’un type de cadran solaire placé au milieu des champs. Au fil de la journée, l’ombre portée de la pierre indique des espaces-temps précis gravés sur le sol qui permettent aux irrigants de savoir à quel moment l’eau de la rigole leur revient. „Ici les

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eaux sont compliquées“ dit Rosa. Alice, Domingos et Rosa me connaissent depuis près d’une dizaine d’années, car mon terrain de thèse de doctorat s’est déroulé dans cette vallée du Rio Minho, entre 1990 et 1996. Nous sommes alors en juin 2001, ils savent qui je suis, et pour ma part je connais très bien la complexité de leur système d’irrigation pour l’avoir déjà observé, questionné et écrit (Wateau, 2000a).

12 Le film s’inscrit dans le cadre des stages de formation à l’image du Musée national d’ethnologie. Je travaille alors avec Ana Margarida Campos qui a déjà été formée au maniement de la caméra et à la prise de son ; de mon côté, je connais les lieux et le sujet et j’obtiens quelques financements auprès de mon laboratoire et de l’université. Nous partons donc ensemble pour une semaine, sur mon terrain minhote du canton de Melgaço. Il s’agit de filmer le tirage au sort des tours d’eau, soit l’opération qui décide de l’ouverture de la période estivale d’irrigation et instaure un ordre de passage précis entre les ayants droit. La scène se déroule sur la paroisse de Paradela. J’ai contacté mes interlocuteurs par téléphone et ils nous attendent, contents qu’un film soit fait sur eux. J’oriente Ana Margarida vers ce qu’il faudrait filmer et lui rappelle la prudence à avoir en termes de relations sociales dans cet espace particulièrement agonistique. Contacts, repérage, tournage... tout se passe a priori très bien, l’ensemble des étapes à filmer est enregistré, le tirage au sort avec les petits papiers pliés sur lesquels se trouvent le „nom de l’eau“ est aussi noté dans mon cahier. Comme il nous reste un jour ou deux, j’emmène aussi Ana Margarida à Penso, chez Alice et Domingos, pour qu’ils nous accompagnent à la pierre de partage et nous expliquent comment elle fonctionne. Ravis aussi de nous aider – et sachant déjà que nous avons filmé dans la paroisse voisine –, nous les suivons jusqu’à la pierre. Mais en raison de leurs doutes, ils préfèrent nous guider chez le vieux Firmino, puis c’est Rosa qui prend les choses en main et nous explique comment procéder dans le partage de l’eau à l’aide du Releixo, le nom local donnée à la pierre. Ana Margarida filme tout, les rencontres, les déplacements, les doutes, les interactions, les discours. Forte de cette bonne relation entre nous et avec les interlocuteurs, je pose l’ensemble des questions nécessaires à l’obtention d’une explication la plus complète possible. Et nous recueillons sur la pierre de partage de Penso quarante-cinq minutes de rush – qui s’ajoutent aux quatre heures filmées sur le tirage au sort des tours d’eau à Paradela.

13 Rentrées à Lisbonne, nous commençons le dérushage et j’apprends avec Ana Margarida à noter les plans avec leurs „time-codes“, à identifier les problèmes éventuels de son ou d’image dans une scène, à souligner les extraits de qualité et les moments-clés – soit la rigueur préliminaire et nécessaire au montage (à l’époque j’ai trouvé cela fastidieux mais j’ai compris très vite son intérêt quand je me suis mise moi-même à filmer ; apprentissage que je mettrais donc à profit dès mes premières images tournées sur la parenté en septembre 2001, soit à peine trois mois plus tard). Puis nous nous rendons compte que nous avons tout, sauf le plan principal du tirage au sort. À ne pas vouloir déranger les gens qui procédaient à l’opération, nous n’avons pas osé les interrompre, alors qu’un rapprochement de la caméra, par exemple en plongée, s’imposait. Nous n’avions pas suffisamment repéré les lieux et anticipé la situation. C’est le problème du film ethnographique tel que posé dans les conditions idéales de tournage que j’ai énoncé plus haut. Nous avons bien essayé de trouver une solution au montage, d’intégrer à la place l’annotation des tours d’eau que j’avais recueillie, d’essayer d’évoquer le résultat par une image figée, mais Joaquim Pais de Brito fut intransigeant et refusa: c’était le principe et l’intérêt de la formation. C’est donc le second filmage

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que nous avons finalement pu monter, où toutes les deux étions aussi plus à l’aise au bout de quelques jours de tournage ensemble, moi-même dans ma relation à la caméra que je trouvais dérangeante et intrusive au début, et Ana Margarida sur le terrain dans sa découverte progressive des gens et des façons de faire dans ce lieu.

14 Le montage s’est déroulé durant l’année 2002 au Musée, avec Ana Margarida et Alexandre Raposo à la table de montage. Le matériel de l’époque obligeait à monter les plans les uns derrière les autres, frame par frame, et à tout recommencer si l’idée de revoir le début s’imposait. Puis le film a été repris avec final Cut par le monteur du CNRS en 2004, dans l’unique objectif de lui rajouter une page titre avec le logo du CNRS et de l’inscrire à la vidéothèque de mon institution. Ce film a été visionné en plusieurs endroits, dans le cadre du séminaire Video no Museu bien sûr, au Cinéma des ethnologues, mais aussi à d’autres séminaires de recherche en France et au Portugal. Il a été sélectionné au 8ème festival du film de chercheur à Nancy en 2003.

Le film d’une exposition: mesures, objet et cognition

15 La canne à mesurer l’eau (ou A cana de medir a água) est un court métrage de 28 minutes. À l’instar du précédent, il porte sur le partage de l’eau d’irrigation dans une paroisse du Minho, ici à Chaviães, où l’eau est retenue dans un bassin réservoir de flancs de coteaux appelés poça et partagée à l’aide d’une canne de roseau appelée cana. Les interlocuteurs principaux du film sont de vieux amis, Zé Pinto et son épouse Flora, une des premières personnes que j’ai rencontrées sur le terrain en 1990 ou 1991 et avec qui j’ai maintenu de bonnes relations, leur rendant visite à chacune de mes venues. Aussi, quand j’arrive en 2005 pour filmer la Poça das Quintas et le partage avec la canne, ils se rendent immédiatement disponibles, heureux de m’aider. Entre-temps aguerrie aux tournages et confirmée dans la réalisation, je suis accompagnée pour ce film de Maya Rosa et de Zoltán Hauville, deux réalisateurs de documentaires et de films ethnographiques professionnels, que je peux rémunérer grâce à un financement de la Fondation Fyssen.

16 Ce film s’inscrit en effet dans un programme de recherche collectif sur les systèmes de mesures métriques et non métriques en Péninsule Ibérique, en collaboration avec mon laboratoire, le Musée et la Fondation Fyssen. Il vise à appréhender des modes de représentation, de partage et de calcul ainsi qu’à recueillir des objets et des logiques. Notre équipe comprenant une dizaine de personnes collectera plus de 300 objets. Ma recherche personnelle vient donc s’enrichir par ce programme, permettant de réaliser un troisième film sur les instruments de mesure de l’eau d’irrigation11, articulé cette fois autour de la fabrication et de l’utilisation d’une canne de roseau. Ce système de mesure est non métrique: la logique repose sur un principe de roulement et d’équité très précis, au sein d’un consensus de fonctionnement collectif minutieux. Le film est destiné à l’exposition – lui non plus n’a pas été pensé pour des salles de projection. Nous restons une semaine sur le terrain, à l’affut dès 6 heures du matin au pied du bassin réservoir, à attendre les ayants droit jusque 9 heures ; puis à partir de 18 heures, pour le partage de la bassinée de l’après-midi. Je demande à Judith de bien vouloir nous fabriquer une canne ; Zé et Flora acceptent de nous expliquer les règles du partage. Les autres interactions sont saisies sur le vif, au pied du bassin. Le résultat est excellent en termes d’images et de son, grâce au professionnalisme de mes collaborateurs. Nous recueillons huit heures de rush, une heure par jour plus une cassette de plan de coupe et de contexte géographique.

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17 N’ayant pas suffisamment de financement pour confier le montage à mes collègues de tournage, le film est finalisé par le monteur du cnrs avec qui j’ai pris l’habitude de travailler. Pourtant, au fil des images, mes collègues de tournage s’étaient aussi construits une idée du film à réaliser, un autre film que le mien. Et ils se fâcheront avec moi à la présentation du résultat, considérant que leur travail a été „abimé“ au montage. Pourtant le film, focalisant sur le seul instrument de mesure – tel que je le souhaitais –, est bien reçu des spécialistes et du grand public. Il recevra deux prix12. Dès lors, il va courir les festivals et je l’accompagnerai parfois à des congrès sur l’environnement ou le développement durable, à des fêtes de la science, dans des écoles, dans des universités d’été, des séminaires, des expositions sur l’eau, etc. C’est la vidéothèque du cnrs qui avait pris l’initiative de sa diffusion ; je n’avais pas anticipé un tel intérêt pour ce sujet si pointu et spécialisé, venant de publics si divers.

La question des publics

18 La question des publics est importante à poser. Pour qui réalisons-nous des films, pour quels types de publics, à quelles fins? Il me semble avoir montré par les exemples ci- dessus que mes films ne sont pas pensés à des fins artistiques ou commerciales, ni destinés à des spécialistes de l’image. Sans prétention, humblement, ils montrent des instants de la vie quotidienne, se révélant être pour moi des matériaux de terrain organisés, des objets de restitution pour mes interlocuteurs, des supports de discussion pour l’enseignement et les étudiants, et un creuset d’émotions et de souvenirs que j’aime à retrouver en les visionnant. Zé continue de m’émouvoir quant, à la fin de La canne à mesurer l’eau, le calme et la profondeur dans ses yeux clairs, il avance, en balançant doucement sa tête „qu’en principe, le futur sera toujours le même, sauf qu’un jour plus personne ne travaillera la terre et que ces bassins d’eau n’auront plus raison d’être“. Sa conviction est telle, sa force et son intensité si profondes qu’elles ne peuvent cesser de me toucher, pour ce qu’il me donne aussi à l’écran, en s’adressant à moi. Dans La pierre de partage de l’eau, Rosa est un personnage tout à fait intéressant, bien campée sur ses jambes et dans ses savoirs, maîtrisant les connaissances relatives au travail de la terre et de l’eau, et en mesure de les appliquer et de les expliquer, malgré leur extrême difficulté. S’exprimant avec clarté, simplement, pour révéler des procédés pourtant extrêmement compliqués à comprendre et à expliquer, elle montre combien son activité est centrale et constitutive. Aucune des scènes filmées, je le répète, n’a été répétée. Enfin Vánia, dans Ma parenté au village, ravit le public par son aisance et son efficacité tout à la fois. Son plaisir est visible et cette promenade dans sa parentèle se révèle instructive pour elle aussi, on voit qu’elle s’interroge, qu’elle cherche à savoir. Or elle n’a pas accepté de participer à ce film pour devenir une vedette ou pour se démarquer du groupe des adolescents du village – pour répondre à une question de cette nature qui, il me semble, m’a été posée au Congrès de Vila Real. Elle l’a fait de bonne grâce, d’autant qu’elle s’ennuyait.

19 Revenons donc aux publics. À Vila Real, dans la salle, il y avait au moins deux sortes de public: des anthropologues intéressés par le thème de la parenté ; et des anthropologues (ou non) initiés (ou non) à l’image ou intéressés par l’image. Les anthropologues seulement intéressés par la parenté sont généralement déçus de ne pas trouver „toute“ l’information sur le système de parenté. Je l’avais déjà constaté à Nanterre, quand en montrant le film à une de mes collègues et amies, spécialiste de

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parenté, celle-ci me réclamait un discours plus explicatif (des schémas de parenté ou les images de la mère de Vánia au café que je lui avais montré, très explicatives, mais impossibles à intégrer au regard de leur mauvaise qualité sonore et visuelle – ce qui elle ne la dérangeait pas). Pour ces premiers, le film doit être „complet“, comprenons par- là: rigoureux scientifiquement, sans erreur, rassasiant, pédagogiquement efficace. Pour les seconds, prêts à se laisser porter quelques instants par une histoire, le film est avant tout une immersion, un moment, une surprise, et ceux-là acceptent plus volontiers de sourire ou rire, faisant place aux autres sens et émotions qu’un film peut convoquer. Le public portugais de Vila Real a ri quand l’épouse du Grilo dit qu’elle était parfois appelée Grila ; le public français de Nanterre a ri quand Horácio dit que ce ne pas de sa faute s’il est parent de Vánia, que „c’est à cause des autres avant lui“. Ces rires et ces sourires sont pour moi précieux, j’aime regarder le public pendant la projection pour voir ses réactions. Carmen Rial dans la salle, anthropologue et cinéaste, avançait quant à elle que ce film fonctionne précisément „car ses protagonistes nous donnent envie à tous de faire de la parenté“. Et ici dans Ma parenté au village comme dans la pierre de partage de l’eau, il importe moins d’avoir „tout compris“ que de percevoir que pour les gens filmés cet univers est habituel, commun, partagé. Rien n’empêche pourtant de décrypter les informations du film si on le souhaite, image par image, comme le font les étudiants de Nanterre. D’autant qu’à y regarder de plus près, ce n’est pas seulement de parenté dont il est question, mais de relations, de vitesse dans la description du lien, de mode d’appellation, soit d’une mémoire active des inscriptions qui nous dépasse et nous fait nous interroger sur le pourquoi de cette connaissance. Sans doute écrirai-je bientôt un article de parenté pur et dur sur mon interprétation scientifique des liens observés à Aldeia da Luz. Mais en soi, Ma parenté au village fonctionne tout seul, sans article pour l’accompagner. Et c’est le principe même du film. Comme le soulignait Humberto Martins, cette dichotomie, ou pour le moins cette difficulté à articuler image et science, ou encore anthropologue de l’image et anthropologue tout court, continue d’être manifeste (Martins, 2013).

20 Les publics d’enfants sont intéressants. Ils réagissent à la beauté des images, à la façon de s’exprimer, et quand des lusophones sont dans la salle, honteux, aux gros mots que j’ai parfois laissés dans le film. La canne à mesure l’eau a beaucoup voyagé dans les écoles. C’est le lien à la nature et la protection de l’environnement qui est alors travaillé avec les professeurs, à travers la présentation des modes de partage traditionnels et non polluants de l’eau. À l’université d’été d’agroécologie de Saint Jacques de Compostelle, les ingénieurs en agronomie y ont vu „l’instauration de la démocratie“, „les principes mêmes du développement durable“, „un bon exemple d’agroécologie“. Ces remarques surprennent, car quelques années plus tôt le film aurait pu être qualifié d’“ethnologie d’urgence“ ou de „survivance“. Pour le grand public des salles de cinéma municipales, ou des maisons de quartier, on regrette souvent qu’il n’y ait que des personnes âgées dans le film, signe que la pratique va disparaître. J’aime alors expliquer qu’il s’agit d’un effet de „profilmie“: Irène n’a pas voulu rater l’occasion de „passer à la télévision“ alors que c’est son fils de 25 ans qui s’occupe aujourd’hui de l’irrigation. Irène, appliquée à fabriquer la canne, a donc ravie la place à son fils qui m’aurait pourtant permis de montrer par l’image, plutôt que par des mots, que les jeunes aussi utilisent la canne à mesurer l’eau.

21 Enfin le dernier type de public à évoquer est celui des intéressés, celui des lieux de tournage, interlocuteurs filmés ou non sur le terrain. À Aldeia da Luz, j’ai organisé plusieurs sessions collectives à la mairie, où les gens sont venus nombreux et curieux

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voir qui j’avais filmé. La première observation générale est que mes films sont trop courts à leurs yeux. Car à la façon dont on utilise le caméscope chez soi, avec la famille, les enfants, les amis, tout est bon à garder pour les gens du village, tout est bon à voir. Certains ont considéré que j’aurai du intégrer les autres informations qu’ils m’avaient données sur les surnoms, pour se voir eux aussi à l’écran. Ils ont aimé le film Frères d’eau sur le jumelage avec le village des Salles-sur-Verdon en France, où tous n’avaient pas pu se rendre ; ils se sont reconnus dans le film La fête de la Pinha, moment apprécié et fédérateur au village. Enfin, ce public commente les gestes, la façon de danser, un détail vestimentaire, un comportement jugé non approprié, etc., renseignant encore sur le mode de vie et les valeurs du groupe. Une situation gênante s’est produite à Melgaço. Quand Zé et Flora ont vu La canne à mesurer l’eau, il ont été satisfaits et m’ont immédiatement invité à le proposer à la télévision portugaise pour une émission sur les régions qui passent à l’heure du déjeuner – me donnant les noms du programme et du présentateur. Or dans le film une scène s’est révélée compromettante: quand Zé et Flora voient António fermer le bassin, alors qu’il reste de l’eau, ce dernier est qualifié de voleur. Nous avions pris du retard avec la fabrication de la canne par Irène, et quand l’irrigant suivant est venu fermer le bassin, pour qu’il se remplisse et soit utilisé dans l’après-midi, il était déjà plus de 9 heures. Je lui ai donc dit de faire ce qu’il avait l’habitude de faire et de nous excuser de ce retard. Mais pour Zé et Flora, il n’a pas attendu son tour et cette situation est grave, malgré mon explication. Je n’ai plus projeté le film à Melgaço, ni même osé l’envoyer à la télévision portugaise.

Images et écrits: conclusion

22 „Quand on fait un film, on entre dans l’écriture“ disait Jean Arlaud. „C’est un regard qu’on porte sur la réalité […] un point de vue, où l’on construit l’image“13. Aussi l’image est écriture? Ou bien l’image et l’écriture? C’est sur ce dernier volet que j’aimerais terminer. Le film relève de l’écriture, car il régit les mêmes principes qui président à la forme, l’intention et la destination de l’écrit, filmique ou non. Pour le moins mes films sont, dans la mesure du possible, aussi épurés que mes textes. Plutôt courts, ils laissent une place à l’ethnographie, aux gestes, aux pratiques, comme aux discours et aux logiques. Néanmoins mes films disent des choses que je ne sais pas écrire avec des mots. Des corps en mouvement, des petits gestes de sympathie ou d’animosité, des regards, des sourires, de la sueur, de la fatigue sur le visage, une humidité des lèvres ou des mains, soit un univers du sensoriel fort difficile à restituer de façon non filmique. Et sans doute est-ce un film de Joana Cartaxo sur le pétrissage du pain qui me fascine le plus à ce propos (Cartaxo, 2004). On y voit de dos le corps généreux d’une femme qui pétrit la masse, d’abord doucement, puis de façon plus soutenue, physique, le corps ondulant au gré de ses mains travaillant, le poids de la pâte se faisant plus lourd et plus exigeant, la sueur, l’endurance et la fatigue se transmettant jusqu’à nous, qui ressortons épuisés mais satisfaits et déjà presque repus quand le pain cuit sort du four. Un film réalisé par une ex-stagiaire du Musée, un très beau film sur ce qu’apporte en plus, précisément, le film ethnographique. L’image montre aussi ce qui n’a pas besoin d’être dit mais qui pourtant a du sens. Je pense ici aux petits trous dans les tee-shirt de mes interlocuteurs, dans le dos en haut et à droite, qui dans La canne à mesurer l’eau indiquent, en creux, l’endroit où repose la tête de la houe pour aller irriguer. Tous ont ces petits trous au même endroit. Un détail sans importance, peut-être.

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23 Mais si l’image dit des choses que je n’écris pas, ma plume écrit pourtant ce que l’image n’a pu que suggérer ou évoquer. L’image et l’écriture: ma production scientifique s’articule donc aussi suivant cet axe, laissant à chacun de mes produits, textes ou films, leur autonomie propre tout en leur permettant de se lire avec complémentarité. Une façon de renforcer l’authenticité ethnographique des films aurait avancé Loizos (Loizos cité par Alves Costa, 1998). Ainsi La canne à mesurer l’eau et La pierre de partage de l’eau comptent-ils chacun plusieurs articles très complets qui peuvent se lire séparément (Wateau 2001 ; 2005 ; 2006), à l’instar de mes autres écrits sur mes autres films. Dans ce type d’écrits académiques, l’ensemble du contexte est restitué, la théorie introduite et l’analyse anthropologique menée jusqu’au bout du raisonnement. Que cette contribution écrite sur l’anatomie et l’archéologie de plusieurs processus filmiques, de façon réflexive et empirique, et où j’ai volontairement pris l’option de ne pas introduire d’extraits de films, soit donc sans contradiction une contribution à l’image et à l’anthropologie visuelle.

24 Enfin j’aimerais rappeler combien mon approche relève moins de l’artistique que du politique, même si l’un n’empêche pas l’autre, bien évidemment. Ne me considérant pas cinéaste mais réalisatrice, en mesure d’organiser des rushs et d’écrire de façon filmique une histoire, une situation en train de se vivre, un contexte particulier, ma réflexion sur l’image s’inscrit dans une démarche à des fins scientifiques, de complémentarité et de combinaison des écritures, où l’art sans doute et l’esthétisme n’occupent pas la place privilégiée. Pourtant, à l’instar du film Singing Pictures – Women Painters of Naya, que déjà je citais en introduction, cette articulation possible entre art, science et politique montre bien qu’une production qui combine ces différentes composantes profite à une meilleure diffusion de nos recherches et de nos propos. Sans doute se souciera-t-on de la beauté de l’image pour atteindre les publics et les diffuseurs ; sans doute et néanmoins, concernant le cinéma qualifié d’ethnographique, continuera-t-on dans certains festivals, comme le Festival Jean Rouch par exemple, d’apprécier des films parfois moins bien peaufinés en termes d’esthétique. Questions de goûts, de choix, d’émotions et de sensibilités, art, science et images n’ont pas cessé de nous ravir, et de se construire, sans conflit, conjointement ou séparément.

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_____. 2011b. La fête de la Pinha 2002, cellule audiovisuelle CEM/IIAC-CNRS, Paris (disponible en ligne sur le site de la vidéothèque du CNRS).

NOTES

1. Voir notamment son ouvrage Cinéma et anthropologie (1982). 2. Jean Arlaud, décédé en 2013, a enseigné l’anthropologie visuelle dès 1970 et crée en 1992 le Laboratoire d'Anthropologie Visuelle et Sonore du Monde Contemporain puis, en 2001, Phanie - Centre de l'Ethnologie et de l'Image. 3. Voir à ce propos la position critique de Benjamim Pereira in Wateau, 2000: 13-34. 4. Voir à ce propos le commentaire d’Humberto Martins sur l’usage de la photographie par Joaquim Pais de Brito (Martins, 2013: 401-402). 5. Joaquim Pais de Brito, communication personnelle nov. 2013. 6. Formé aussi bien à l’image qu’à l’anthropologie, Baptiste Buob combine et explique ces deux savoir-faire et savoirs techniques dans l’ouvrage issu de sa thèse de doctorat (Buob, 2009). 7. Voir Wateau, A Festa da Pinha, 2011b. 8. Voir aussi son interview très récente au sujet des „choses qui restent“, où il dit ne pas s’intéresser à l’étude du changement qui plait tant aux anthropologues, mais à la culture, donc à ce qui se transmet (Bloch, 2013: 5). Mes films sur la parenté et la fête de la Pinha – ce dernier

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présenté en 2011 à un colloque sur la fête à Belo Horizonte, pour précisément perdurer par-delà l’implantation du barrage et du déménagement – s’inscrivent dans ce mode d’appréhension des sociétés. 9. Ce qui vient, soit le travail qui se présente. 10. L’extrait filmé n’a pas pu être intégré dans le film, car l’image mais surtout le son était trop médiocres. En revanche, je peux m’en servir en cours avec les étudiants. 11. Un deuxième film de cette série a été réalisé en 2004, sur une conque à sonner les tours d’eau en Galice, une reconstitution sur le terrain et un montage rapide pour un colloque de la SIEF à Marseille en 2004 (cf. la vidéothèque du CNRS). 12. Prix spécial du jury en 2007 au 26e Festival international Jean Rouch à Paris et au 9e Festival du film de chercheur à Nancy en 2008. 13. Commentaire apporté à la journée d’étude sur le cinéma que la revue Recherches en Anthropologie au Portugal avait aussi organisé en 2004 (non publiée).

RÉSUMÉS

Cet article propose une réflexion sur la production, la diffusion et l’usage de films ethnographiques, à partir de mon propre parcours dans l’apprentissage de l’anthropologie visuelle. Afin de restituer l’archéologie et l’anatomie d’un processus filmique, il décrypte de façon réflexive et empirique les étapes de fabrication de trois de mes films, pour ensuite s’intéresser à un certain nombre de questions plus théoriques. Il s’agit ainsi de s’interroger sur la place du politique dans l’anthropologie visuelle, sur les principes idéologiques et méthodologiques qui président à la fabrication du film ethnographique, sur la nature des publics à qui il est destiné, sur les rapports entre l’écriture filmique et l’écriture académique, et enfin sur l’usage et la destination du film de terrain dans son articulation entre science, enseignement, art et politique.

This article proposes a reflection on the production, diffusion and use of ethnographic films, based on the author’s personal trajectory within the field of visual anthropology. In order to develop an archeology and an anatomy of filmic processes, it discusses the production of three of the author’s films. Furthermore, the article discusses theoretical issues related to the politics of visual anthropology, the ideological and methodological principles behind the production of ethnographic films, the nature of the audience of ethnographic films; the relations between filmic and academic writing, and finally the use of anthropological film and its articulation between science, teaching, art and politics.

INDEX

Mots-clés : vidéo, ethnographie, Portugal, publics, écriture filmique, écriture académique, art et science Keywords : video, ethnography, Portugal, film audiences, filmic writing, academic writing, art and science

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AUTEUR

FABIENNE WATEAU CNRS, Université Paris Ouest Nanterre la Défense, Paris, França [email protected]

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Artigos Articles

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O sentido da etnografia fílmica compartilhada de Jean Rouch em “Crônicas de um verão” Jean Rouch’s “Chronicles of a summer” and the idea of a shared anthropology

Rodrigo Oliveira Lessa

NOTA DO EDITOR

Recebido em: 2012-11-21 Aceito em: 2013-04-11

1 Quando procuramos refletir sobre campo das realizações da obra de Jean Rouch enquanto documentarista, o primeiro ponto importante a ser notado é que o estilo que surgiu em meio às questões e inovações que ele apresentou encontram forte referência nos debates que deram origem aos métodos clássicos do filme etnográfico e mesmo da Antropologia enquanto ciência. Até a repercussão estética e epistemológica do Cinema Verdade na década de 1960, uma longa trajetória de discussões sobre a representação do “outro” enquanto objeto e mais tarde até como sujeito do conhecimento – até um certo ponto uma das pretensões do filme que iremos analisar – vinham sendo travadas, repercutindo em polêmicas que reverberaram no surgimento do campo da Antropologia Visual. É importante por isso, antes de tudo, situar este debate para em seguida entender qual proposta carrega a narrativa de Crônicas e o Cinema Verdade francês que se desenvolveria a partir dali.

Os caminhos da crítica à inserção subjetiva no filme etnográfico

2 A Antropologia, como sabemos, é uma criação da doutrina humanista inaugurada pelo século do séc. XVIII, basicamente a partir das formulações filosóficas inerentes ao

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Iluminismo. A partir deste momento passou a ser fundamental sistematizar de forma racional o conhecimento humano nos seus mais diversos desdobramentos, o que inclui aqui o próprio indivíduo em sua diversidade. Tornava-se fundamental também, nesta linha, sistematizar todo o conhecimento sobre “o outro”, ou seja, os não-europeus; distantes no espaço, é verdade, mas que vinham a ser simbolicamente próximos o bastante para serem tomados como ameaças.

3 Contudo, é com a doutrina Evolucionista que perpassa a segunda metade do século XIX que a alteridade se transforma definitivamente num problema epistemológico, o que termina inclusive rompendo com a antiga ideia de uma natureza humana, cunhada por autores como Jean Jacques Rousseau. Aquele que antes era visto como selvagem passa agora a ser analisado como um indivíduo “primitivo”, relativamente semelhante ao homem civilizado europeu – apesar de encontrar-se num outro patamar de desenvolvimento da civilização humana como proferia o pensamento evolucionista da época. Com a força de uma reflexão mais contextualizadora, a história da humanidade passa a ser concebida como uma série de estágios sucessivos de desenvolvimento dos grupos sociais e os chamados povos primitivos cada vez mais surgiam nas indagações como remanescentes das etapas iniciais deste desenvolvimento. As expedições etnográficas de pesquisadores como Alfred Haddon, C. G. Seligman e, mais tarde, e Bronislaw Malinowski, tornam-se cada vez mais recorrentes no exercício da busca do longínquo e da catalogação do passado presentificado nestes povos em diferentes etapas no desenvolvimento da civilização humana. É aqui que surge definitivamente a etnografia enquanto convergência do papel do observador cultural com o do analista, quando exige-se do pesquisador que se faça presente no seu campo de pesquisa.

4 Com Boas, o pesquisador é não só levado a estudar ele mesmo a cultura que lhe serve de objeto, como também passa a buscar viver entre seus agentes, falando a língua destes e procurando entender o mundo tal como estes o entendiam. O universo simbólico da outra cultura precisava ser assim anotado meticulosamente, mesmo onde pareciam existir apenas gestos corriqueiros e insignificantes. Já Malinovski, que diferentemente de Boas produziu uma obra escrita de grande monta e uma teoria concisa a partir dela, reinventou com Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) a prática de inserção num grupo social estudado ao quase romper com as ligações europeias nas estadias sucessivas das ilhas Trobiand. Além de dar um destaque mais enfático ao universo da cultura local estudada, considerando-a como uma totalidade complexa ou uma micro- sociedade que funciona a partir de elementos presentes que a mantém viva (Laplatine 2007).

5 Ainda no início do séc. XX, fatos históricos levaram a significativas transformações, dando os primeiros frutos emblemáticos ao campo do filme etnográfico. As ciências e as artes adentraram num período de novas buscas metodológicas, estéticas e linguísticas, criando novas formas de pensamento e conhecimento para a representação do mundo, este também imerso em crises e turbulências. Com a Primeira Guerra Mundial, os modelos evolucionistas começam a ser colocados em xeque e a sua barbárie é evidenciada, levantando críticas intensas à tradição evolucionista. Neste substrato histórico, o filme Nanook, O Esquimó (1922), de Robert Flaherty, surge como uma das primeiras realizações de uma narrativa relativamente distinta da ficcional e com uma forma nova de registrar a cultura, tornando-se mais tarde uma referência tanto para a tradição do cinema documental quanto a do filme etnográfico. Para Flaherty, era

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preciso criar um novo método de realização fundado no instrumento audiovisual, capaz de perceber estes povos nos seus próprios termos. Com o registro do cotidiano do esquimó Allakariallak, em Nanook, Flaherty introduz o conceito de câmera participante, tomando parte não só de eventos registrados como também procurando refletir os registros a partir das perspectivas dos nativos – algo que Rouch inclusive tomará mais tarde como um dos seus principais paradigmas estéticos. A inovação o levou a um método que pode ser considerado como o do “presente etnográfico”, dedicado a fazer emergir a história da cultura acompanhada a partir do próprio material de campo, reconstruindo os termos deste mundo social singular a partir de uma perspectiva, em muitos sentidos, dedicada a apreender elementos estáveis característicos desta cultura em sua forma fixa (Da-Rin 2007; Barbosa e Cunha 2006).

6 A partir da década de 1930, instaura-se uma a separação mais pronunciada da produção antropológica em duas categorias: aquela que agregava os filmes considerados como “etnografias científicas” e aqueles denominados como “filmes documentários”, sobretudo porque este último já despontava como gênero iminente no campo do próprio cinema. John Grierson, Dziga Vertov e o próprio Flaherty, assim como o brasileiro Alberto Cavalcanti, vinham sendo gradativamente reconhecidos como diretores pioneiros de uma narrativa fílmica que já era capaz de demarcar suas fronteiras diante do cinema ficcional, mas que permaneciam reivindicando uma linguagem e um gênero no campo da arte cinematográfica. De todo modo, apesar desta separação – até natural em razão do viés estético cada vez mais pronunciado no documentário – diversos pesquisadores e realizadores da etnografia científica insistiram em manter o diálogo e compartilhar as polêmicas, firmando-se também como as figuras que contribuíram para consolidar o campo do filme etnográfico e fazê- lo avançar nas suas discussões a partir deste diálogo. São eles Margaret Mead, , o casal David e Judith MacDougall, e Jean Rouch, além de outros pesquisadores que assumem também um papel importante neste meio, como Timothy Asch, Jay Ruby, Asen Balikci, Robert Gardner e John Marshall.1

7 Margareth Mead e Gregory Bateson fizeram entre os anos de 1936 e 1939 seus estudos de campo sobre comportamento em Bali, na Indonésia, produzindo dezenas de fotografias e horas de filmes sobre as populações lá existentes. Nesta experiência pioneira, o registro visual tinha o objetivo primordial de apreender e compreender aquilo que poderia se configurar como o ethos balinês. A pesquisa não procurava entender tanto os costumes balineses, mas sim o indivíduo balinês, ou mais propriamente como ele incorporaria esta abstração que chamamos atualmente “cultura” por meio dos gestos, olhares e movimentos empenhados em seu cotidiano. Ao seguirem as orientações metodológicas de Marcel Mauss e também de Franz Boas, Mead e Bateson buscavam as relações e os comportamentos presentes nas regras culturais construídas em meio a elementos da comunicação não verbal, tais como padrões gestuais e corporais nas relações intra-familiares, nas condutas pautadas na consideração mútua, no respeito, na hierarquia, etc. No contexto da obra, este registro assumia o papel de suporte para a preservação documental de registros das expressões visuais dos padrões culturais que estariam fadados à extinção com o tempo. O cinema e a fotografia eram vistos como instrumentos poderosos de apreensão imagética objetiva da cultura em sua manifestação cotidiana, e os dois acreditavam numa complementaridade ainda não completamente alcançada pela antropologia entre a

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narrativa verbal e a não verbal da cultura dos povos, questão esta diretamente envolvida com a concepção polissêmica da imagem (Mead 1995).

8 Portanto, como podemos notar, este legado levou a Antropologia a um grande momento na história da etnografia. Com Mead e Bateson abraçando o uso do filme enquanto parte integrante de qualquer programa de pesquisa, funda-se o campo que mais tarde, nos anos 1980, viria a ser reconhecido como Antropologia Visual, sobretudo através do livro Balinese Character: a photografic analysis (1942) (Balikci 1989). Entretanto, eles contribuíram também para que nesta oportunidade a Antropologia alterasse de forma definitiva a sua postura em relação ao conhecimento etnográfico.

9 Se no início a Antropologia era vista predominantemente como um registro direto da realidade, produzida por alguém que teria autoridade moral e científica para falar sobre o nativo, com Boas e Mead, sobretudo, passou-se a considerar e problematizar abertamente o fato de o cientista se reconhecer na posição de um analítico da cultura, seja através da análise escrita ou do registro audiovisual. As repercussões destas duas contribuições geraram então uma polêmica epistemológica, que seguiria para as gerações seguintes reverberando em profundas discussões. A partir dali, o antropólogo passa a ser um indivíduo que carrega o peso do medo de estar a todo momento operando como um inconsciente ideológico manipulador da sociedade que pretende registrar e compreender. Assumir uma postura diante desta questão era então não só um imperativo metodológico, mas algo que passava também a influenciar na própria credibilidade do material que estava para ser produzido e divulgado.

A alternativa de “Crônicas”

10 É então na resposta o fato de o cientista ser levado a se reconhecer na posição de um analítico da cultura e carregar o peso do medo de estar a todo momento operando como um inconsciente ideológico, – firmada sobretudo através da obra de Margaret Mead de Gregory Bateson – que podemos encontrar e compreender melhor as questões que permearam o campo do filme etnográfico nas décadas de 1950 e 1960 e também a obra de Jean Rouch. De um lado, tivemos produções e pesquisadores que optaram por assumir o peso de conviver com este inconsciente ideológico e permanecer confiando no exercício de registrar e compreender a cultura do “outro” sem recorrer a um esforço auto reflexivo. É o caso do casal David e Judith MacDougall. Com uma proposta distinta da de Rouch, os MacDougall tentaram aliar a perspectiva do Cinema Direto norte- americano de Robert Drew à inspiração da etnografia clássica de Malinowski, cuja atenção se voltava para a vida cotidiana, seguindo a linha do observational cinema, ou cinema de observação. Preocupados com o desenrolar da ação propriamente dita e com a possibilidade de refletir a respeito dos seus significados para os sujeitos do filme, os filmes dos MacDougall mantinham o cineasta sempre fora do campo de visão do espectador, embora ativamente inseridos nas circunstâncias que davam origem às imagens. O trabalho dos MacDougall pregava a constante reavaliação dos objetivos e estratégias, mantendo uma postura altamente reflexiva que Rouch também desenvolveu. Mas não na imagem do filme, não durante o registro do comportamento, da expressão e da comunicação do nativo.

11 Jean Rouch, apesar de nutrir-se também destas referências, tem em sua obra uma estética e uma concepção de registro etnográfico que traz novos horizontes ao rol de possibilidades dessas posturas. Além de ser um admirador da estética de Flaherty,

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Rouch era muito ligado à proposta do Kino-Pravda (Câmera-Olho) de Dziga Vertov e via com curiosidade a estratégia de desconstrução que o russo utilizou contra o teor de fantasia do cinema ficcional da época ao escancarar a dimensão autoral que cria o filme. Em Um Homem Com Uma Câmera (1929), por exemplo, Vertov inseria imagens de bastidores e do operador da câmera nas películas para firmar uma perspectiva de registro sem cortinas, sem estórias, partindo apenas do próprio movimento da vida real cotidiana. A partir desta referência no campo do documentário, Rouch desenvolverá junto com Edgar Morin, em Crônicas, uma proposta de reavaliação constante desta postura autoral no filme. Mas, agora, com outro objetivo: o de se aprofundar nos termos pelos quais a relação íntima entre o pesquisador e o nativo, ou melhor, entre cineasta e personagem, se manifestam no filme, e se elas contribuem ou não para revelar as particularidades e a interioridade do último, na condição de personagem. Sem se darem por satisfeitos com a afirmada inevitabilidade da relação condicionada entre sujeito/ objeto, mas também sem um horizonte muito claro sobre os possíveis resultados da nova experiência, Rouch e Morin vão acompanhados da intuição e do espírito de experimentalismo para realizar um cinema que continuasse reavaliando esta relação e as suas implicações para o conteúdo e a forma do filme. E tudo isso por uma razão bem simples: como eles sabiam que a relação entre sujeito e objeto era inevitável, optaram por trazê-la para a narrativa e analisá-la em seu objetivo maior dentro do filme etnográfico, o de revelar “o outro” na imagem filme.

12 Para Paul Henley (2006), dentre todas as obras da cinematografia de Jean Rouch, o filme que escolhemos aqui para aprofundar nossa compreensão nos aspectos desta concepção de cinema de Rouch é extremamente singular para esta linha do cinema etnográfico. E isso por uma razão bem específica, que na verdade atesta o forte grau de radicalização do método desta experiência: em Crônicas, Rouch, verdadeiro dominador da arte de filmar, se veria obrigado a dividir a autoria do filme com um número significativo de indivíduos/personagens, e mais notavelmente com o seu co-realizador imediato, o sociólogo Edgar Morin. Como resultado deste contexto, o filme se configurou como uma tentativa corajosa de buscar uma nova postura diante do verdadeiro emaranhando dos vários interesses de representação e problematização dos temas e questões levantados em detrimento da sobreposição de uma visão autoral majoritária sob a narrativa fílmica, ainda que os diretores tivessem tentado, sem sucesso, implantar sozinhos suas ambições originais na edição final do material.

13 A ideia do filme teria vindo mesmo, na verdade, do sociólogo Edgar Morin. Em dezembro de 1959, enquanto participava do primeiro Festival dei Popoli em Florença, na Itália, como membro do júri da seção etnográfica, Morin esboçou o interesse de realizar um filme fundado nos preceitos do cinema de Dziga Vertov, que apreendia aspectos essenciais da vida humana de uma maneira muito espontânea e da forma com a qual elas se apresentavam no cotidiano. (Henley 2006). A proposta para a parceria teve sucesso também em função do próprio interesse de Rouch pelo cinema de Vertov e o consenso inicial apontou para a realização de uma espécie de psicodrama das relações interpessoais e representativas dos indivíduos, colocando no centro da iniciativa a ideia de encorajar os personagens do filme a verbalizar suas angústias em frente à câmera, sobretudo com a tentativa de levá-los a externalizar pontos de vista sobre as questões suscitadas neste exercício e revelar contornos ainda ocultos nos meandros mais profundos do seu imaginário. Rouch, é bem verdade, estava voltado ainda para os resultados que alcançara em Eu Um Negro (1958) e A Pirâmide Humana (1959); ainda permanecia dedicado ao registro destas performances orais dos personagens,

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interessado na aparência surrealista do inconsciente como elementos de sua principal motivação criativa. Ele não via ainda nesta nova forma de registro o que para Morin seria uma transformadora perspectiva psicanalítica, quase nos termos de uma consulta psicológica, trazendo as ideias e angústias do inconsciente à tona com o interesse de banir toda a carga repressiva ainda presente neste inconsciente aprisionado.

14 Estes dois pontos de vista distintos acerca de como deveria se dar efetivamente o exercício fílmico se transferiram então para a produção de Crônicas e, deste modo, contribuíram de forma central para o modo como o compartilhamento de interesses distintos de objetivação e representação de questões diversas se apresentou na narrativa documental desta obra. Ao ter definido a ideia do filme, Morin convida o então parceiro de diálogos e reflexões e lhe coloca seu principal interesse na realização do que, mais tarde, se tornaria o projeto de Crônicas: levar a cabo do início ao fim do filme uma estrutura de problematização que tinha na questão “como você vive?” sua ideia original. Morin pretendia que todo o material fosse produzido buscando reunir elementos e aspectos de como cidadãos franceses comuns enxergavam e se posicionavam frente a este questionamento. Já Rouch tinha outra posição: ele queria que o filme fosse estruturado não numa questão como esta, mas sim em princípios biográficos e cronológicos advindos dos próprios personagens durante as filmagens e as entrevistas. Isto ocasionou a presença insistente destes dois interesses na produção do filme, tendo em vista a influência que os dois exerceram do início ao fim de sua realização. Mas podemos perceber também um primeiro desdobramento importante da ideia de um cinema de autoria compartilhada intentado por Morin e Rouch: “In the event, the final version of the film represented a compromise between the respective positions of all the main parties.” (Henley 2006: 89).

15 Este compartilhamento nos interesses de condução da narrativa do filme, que até o momento analisamos apenas no que diz respeito às intervenções de Jean Rouch e Edgar Morin para a composição da narrativa (mais tarde teremos a dos outros personagens), teve então seus desdobramentos sobre o arranjo que encontramos na narrativa da obra. Uma das cenas relocadas para atender à sugestão da estrutura temática de Morin foi a de Marceline e Nadine, quando as duas andam pelas ruas perguntando aos transeuntes se estes são felizes. As abordagens terminam gerando cenas com respostas às vezes surpreendentes, por conterem declarações muito particulares das pessoas entrevistadas, e às vezes decepcionantes, por demonstrarem a incapacidade dos transeuntes para romper a barreira de recusa à interação e contribuir para a discussão que as duas pretendiam levantar. Embora tenha sido realizada depois, a sequência de Marceline e Nadine foi trazida para o começo do filme de modo que a questão do Cinema Verdade e da experimentação para provocação da fala do outro pudesse assumir o foco central do registro fílmico, dando logo de início a tônica das imagens que se seguiriam a partir dali.

16 E assim, logo no início, a narrativa apresenta o seu verdadeiro pano de fundo. As respostas evasivas, a timidez dos transeuntes e mesmo a situação grotesca de um jovem estudante de filosofia, que diante da questão questiona as referências teóricas da questão e esbanja o livro que está lendo, compõem as situações que o filme carrega como cruciais. Se as discussões entre Rouch e Morin motivam o compartilhamento de pontos de vista sobre a realização do filme, isto se soma ao apreço que os dois tinham pelas entrevistas e diálogos para consolidar a escolha do verdadeiro protagonista do documentário: as negociações autorais para a revelação do outro na imagem do filme.

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“Ce qui m’avait frappé dans Chronique, c’était également ce qui se passait à de certains moments devant la caméra, où des gens qui ne se connaissaient pas, ou qui ne connaissaient pas certains aspects d’euxmêmes, se découvraient tout à coup.” (Rouch 1963: 2).

17 Em seguida, temos novos exemplos da tentativa de produzir uma versão mais compartilhada e flexível das questões sobre a vida parisiense daquela época, e dentre as cenas do personagem Angelo, operário das fábricas Renault. Embora tenham sido realizadas no período de férias, tal qual as sequências de Saint Tropez, cenas como a da conversa íntima entre Angelo e Landry também são antecipadas, de modo a situar a reflexão de Angelo sobre este tema controverso na sua experiência individual como trabalhador metalúrgico. O operário tem uma série de posturas bem particulares e não raro contraditórias sobre a sua existência, sobre o quadro de exploração que sofre na fábrica e sobre o fato de ser pobre e não dispor da liberdade que deseja para existir – as quais, por sua vez, surgem claramente como a referência fundamental das perguntas que ele faz ao imigrante africano. Após alguns minutos em que apresenta uma visão crítica e pessimista sobre o comportamento consumista e apático de seus colegas de fábrica, por exemplo, Angelo resolve indagar Landry se ele não se incomoda com o fato de ser negro, ou ainda se ele mantém o complexo de inferioridade de seu povo. Uma circunstância que, como podemos acompanhar no filme, nos dá elementos para enxergar como é problemática a sua leitura sobre a questão do racismo, a qual soa bastante preconceituosa apesar da pertinência de suas angústias e frustrações como operário de uma grande indústria do capitalismo moderno.

18 E a estratégia de Rouch e Morin já nesta conversa entre os dois personagens chega a um de seus efeitos mais ricos, dando pistas da contribuição que ela daria mais tarde ao cinema etnográfico e ao campo do filme documentário. Ao invés de trazer ao espectador explicações em voice over de um narrador da equipe de produção, ou ainda declarações bem objetivas mas ainda assim deslocadas da expressividade verbal de um e de outro destes personagens sobre os temas do filme, o embate de ideias entre os dois traz à obra contradições profundas na existência dos entrevistados, que por sua vez se revelam em meio ao espaço mais aberto e compartilhado de fala que recebem. Posteriormente, o espectador se sentirá em condição de se posicionar diante desse mar de contradições, mesmo que elas surjam mais tarde nas afirmações dos próprios cineastas. No contexto deste recurso, já não há mais grande relevância no fato de personagens como Angelo e Landry alterarem ou não seu comportamento diante da câmera e dos autores do filme, ou ainda se Rouch e Morin estariam intervindo no conteúdo do filme como cineastas e sujeitos da pesquisa, tal qual a polêmica lançada pelas realizações de Mead e Bateson impôs ao campo do filme etnográfico. O fato é que há o registro de um embate, que envolve Morin e Rouch, certamente, mas que traz também a interação de Landry e Angelo revelando suas posturas diante de questões cruciais para a política de imigração e recepção de estrangeiros na Europa nas décadas de 1950-60. Diante delas e da forma com que elas se desdobram, sobretudo, a partir dos diálogos longos e em certas ocasiões reveladores, é possível suscitar críticas sobre a cordialidade artificial de Angelo, como também é possível problematizar uma postura excessivamente passiva de Landry às análises preconceituosas do operário. Aqui podemos afirmar certamente que, diante da proposta inicial, Rouch e Morin geraram reflexões interessantes com esta experiência.

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19 Mas os resultados de uma experimentação como esta com certeza não poderiam ser integralmente coerentes e dar conta de uma polêmica de décadas no âmbito do cinema etnográfico, e as respostas não tardaram. O projeto de Crônicas foi debatido e tornou-se alvo de uma forte crítica que apontou os limites quanto ao paradigma que ensaia os termos de uma antropologia compartilhada de caráter eminentemente reflexivo, pautada numa divisão supostamente equilibrada (mas sempre suspeita) da dimensão autoral do filme com os mais diversos personagens envolvidos na trama.

20 Apesar de Rouch e Morin, pautados na experiência de Flaherty, buscarem uma negociação dos resultados da narrativa com os sujeitos que dela participaram, abrindo espaço para que estes deem uma opinião a respeito das ideias e questões presentes no filme, sabemos que é sempre o olhar de Rouch ou de Morin que aparece mais claramente. Seria também por isso justo apontar contradições em declarações como a de Morin, no fim do filme, que afirma: Ce film, à la différence du cinéma habituel, nous rentre dans la vie. Les gents sont dans le film comme dans la vie de touts les jours. C’est à dire qu’ils ne sont pas guidés, parce que nous n’avons pas guidé les spectateurs. On n’a pas dit : un tel est gentil, un tel est méchant. […]. (Morin, Rouch 1961)

21 A posição de Morin, inclusive, nos remete à própria leitura que ele tinha do cinema e das possibilidades de uma ruptura com o cinema ficcional que certamente o influenciou na idealização do roteiro. Para o sociólogo, o cinema poderia recuperar a surpresa e a indignação da população contra as catástrofes da sociedade capitalista, mas esta possibilidade passaria longe do caráter de fantasia e alienação que a imagem do filme teria tomado a partir da herança ficcional clássica. Como observa Yoon (2007), Era preciso por isso romper com a “impressão de realidade” que gera a técnica do reflexo objetivo da câmera na forma com que ela vinha sendo usada até então, e isso para seguir na direção do desvendamento da psique, dos sentidos e dos símbolos que envolveriam o pensamento humano. Externalizar os processos que fundam o homem moderno, o “homem imaginário”, como conceituou Edgar Morin (1970). Era este o papel do cinema para ele.

22 O caráter de negociação realmente existe e isso não queremos negar, como podemos observar no fato de que nem o diretor nem seu co-realizador puderam emplacar sozinhos suas ideias de representações das questões presentes na iniciativa do filme. Entretanto, devemos notar, é notória a contradição na afirmação de Morin ao fim do filme, pois em detrimento dele acreditar na construção de entrevistas mais espontâneas, com tempo e espaço para os personagens liberarem seus pensamentos e sua inibição, não há como não guiar ou dirigir o resultado destas interlocuções.

23 A proposta gerou, e ainda gera, reprovações e efeitos sobre a discussão da relação entre sujeito e objeto no registro fílmico para o documentário e para a etnografia audiovisual. Alguns anos após a sua realização, Peter Grahan (1964) acusou Crônicas e o método de seus realizadores de ser hesitante na aceitação de suas visões e do caráter condicionado de sua obra, apesar de colocar a objetividade das informações coletadas como um objetivo, como chegam a admitir no próprio diálogo da cena que fecha o filme. Segundo ele, houve uma recusa explícita diante da responsabilidade de aplicar a visão autoral sobre as imagens. A câmera não poderia jamais, neste sentido, garantir um registro verdadeiro dos fenômenos acompanhados sem a intervenção autoral, que é sempre necessária, e esta hesitação em admitir a intervenção teria levado à suposição de seus realizadores de terem produzido um retrato neutro (e por isso totalmente objetivo) da

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realidade. Para o autor, Rouch e Morin teriam visualizado no horizonte um desejo incontido por uma forma de registro absolutamente controlada diante dos fenômenos registrados.

24 Mais tarde, o desdobramento destas discussões lançaria ainda uma nuvem obscura sobre o desdobramento da polêmica e do próprio filme que a inspirou. Como nos mostra Noël Carrol (1996), a análise da inserção subjetiva dos autores do filme a partir do registro da negociação do processo de revelação do personagem virá a resultar numa designação geral de todas as obras não ficcionais enquanto dotadas de um ponto de vista subjetivo, o que as tornaria “subjetivas” no sentido de não serem muito mais do que a visão de mundo dos seus próprios realizadores sobre um determinado tema. Após ter lançado uma polêmica contra a subjetividade sem tê-la esgotado inteiramente, ou, ainda, levando a primeira controvérsia a outra ainda maior, o filme etnográfico, o cinema observacional, mas sobretudo o Cinema Verdade de Rouch e Morin instauraram de uma só vez o estímulo a uma série discussões, elucubrações e manobras conceituais. Tal discussão culminará, por conseguinte, na estigmatização de todo o filme de não ficção como marcadamente ou predominantemente “subjetivo” nesse sentido idiossincrático, não havendo por isso alternativa possível às propostas em relação à representação da realidade ou a construção de um cinema político. A objetividade seria, assim, um mero instrumento de retórica, fornecendo apenas uma referência intelectual coletiva que não apontaria para uma representação dos fenômenos culturais tal como eles se manifestam no mundo objetivo. É o vemos em autores de grande amplitude e consolidados no campo da teoria do cinema documentário, como Bill Nichols2.

25 Não obstante a coerência da crítica de Grahan, e também a lucidez de Carrol que percebeu a precipitação obscurantista de intelectuais do filme documentário – que tentaram expulsar a categoria da objetividade na primeira polêmica realmente forte que ela enfrentou no gênero cinematográfico em questão – é fundamental recuperar analisar a proposta de Rouch e Morin no que ela contém de mais rico em termos de contribuição para o filme etnográfico e as discussões sobre a relação entre sujeito e objeto no âmbito da pesquisa antropológica. É importante, neste sentido, marcar as contradições que de fato se apresentam nesta concepção, como fizeram Carrol e Grahan, mas também compreender a dimensão onde ela, de fato, transcende as concepções que lhe deram origem e fornece a sua maior contribuição: a da estética e técnica do registro etnográfico documental de interlocução participativa e reflexiva.

26 Na verdade, em primeiro lugar, afora as colocações realmente descuidadas e pretenciosas de Morin, não há em Crônicas a proposição clara e concisa de que se pretenda criar a partir daquelas estratégias um documentário reflexivo de caráter verdadeiramente neutro. Como não há também na narrativa do filme a proposição de que apresentar os seus realizadores (Rouch e Morin) como personagens garantiria ao espectador uma representação absolutamente controlada dos fatos. A crítica de Grahan, portanto, é relevante, mas apenas se a aplicamos ao contexto de interpretações suscitadas sobre a obra, como a que Carrol analisa, e à declarações contraditórias como as de Morin. Afirmar que o filme tem como característica a busca de uma visão claramente neutra seria ignorar a postura do cineasta responsável por Crônicas antes, durante e depois do filme. A estratégia do filme tinha um caráter de experimentação e por isso não estava salvaguardada por nenhum manifesto, declaração de conteúdos e intenções ou coisa do gênero. Se os seus realizadores tinham ou não em suas idiossincrasias esta pretensão quanto a uma antropologia compartilhada de caráter

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reflexivo, como acreditava Grahan (1964), o fato é que Crônicas não é uma evidência segura de que eles tinham esta linha de trabalho no horizonte. O filme não opta por uma objetividade pautada na postura da neutralidade axiológica, pois ele e sua estética não têm uma precisão epistemológica suficiente para isso. O próprio Rouch se afastou em muitos momentos deste tipo de registro, retornando aos documentários mais expositivos anos depois, a exemplo de Caça Ao Leão Com Arco (1965) e Tambores do Passado (1971). Além disso, ele é sempre claro em suas declarações ao garantir que o resultado dos filmes tem sim o seu ponto de vista como diretor sobre qual é a mais objetiva expressão da realidade. Quando questionado sobre o que pensa sobre o papel da montagem neste contexto de objetividade na captação do real pelo cinema, por exemplo, ele é direto. Je ne pense rien. Je me pose des questions. Qu’est-ce qui se passe à ce moment-là ? Est-ce là, comme disait Rossellini, que se fait la création ? Certainement, car c’est le travail le plus dur. C’est un travail de montage où, finalement, on fait un choix entre des élements pour essayer d'exprimer quelque chose qui, à votre avis, qui, à mon avis, est l’expression de la réalité, mais qui est en fait extrêmement subjectif. Or la, très souvent, c’est du massacre. Moi, je le sais très bien. Si on veut une comparaison technique, c’est comme quand on essaie d’amenager un fleuve. (Rouch : 1963: 6-7)

27 Portanto, pelo próprio caráter experimental, a principal força deste filme não está nas concepções a respeito da objetividade ou da neutralidade axiológica, que são questionáveis – como vimos no caso específico de Morin –, mas sim numa nova forma de captar declarações e revelações dos seus personagens a partir do embate com a subjetividade autoral de seus realizadores. A contribuição é eminentemente técnica e, certamente, estética. Apesar das dificuldades e restrições da proposta do compartilhamento da produção de significados no filme etnográfico de Rouch, é importante perceber como a absorção e a problematização de questões como a subjetividade, a intervenção autoral ideológica e a objetividade voltada para uma concepção etnocêntrica são levadas a outro patamar. Mais exatamente, onde se abre espaço no filme para o elemento da ambiguidade da narrativa, pondo-se na ordem do dia a convergência de intervenções diversas na produção do material fílmico a partir de uma postura autoral que mantém a obra mais aberta a esta participação “externa” ao domínio do diretor. A espontaneidade com que as interpelações são desenvolvidas, a disposição para ouvir os sujeitos/personagens nos filmes e o tempo maior para que estes se abram para o exercício de representação, a inexistência de um roteiro formal e fechado para o filme, e, por fim, a ideia de seguir as inspirações subjetivas do próprio autor, que se alteram durante os trabalhos, nos levam a refletir sobre as possibilidades de um filme etnográfico mais disposto a repensar suas próprias convicções a respeito do que é a realidade e como ela pode ser trazida às lentes etnográficas. Temos aqui, portanto, um avanço significativo de propostas como a do “presente etnográfico” de Flaherty, uma nova forma de lidar com o peso do inconsciente ideológico trazido à tona ao longo da experiência etnográfica3.

28 Como podemos observar, é deste modo que os filmes de Rouch podem ser considerados como partes de uma nova reflexão epistemológica sobre a condição e a qualidade da etnografia e do cinema que envolve uma série de questões caras a Antropologia. “Assim, o cinema de Rouch se inspira nos conceitos da Antropologia e sua Antropologia está inspirada na sua percepção das imagens e do cinema.” (Gonçalves 2008: 22). Polêmicas como a do lugar do sujeito e do objeto na pesquisa, da subjetividade, da objetividade, do real, do ficcional, da alteridade, do trabalho de campo e da produção de

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conhecimento impulsionam há muito as discussões nas ciências sociais, e são exatamente elas que vêm à tona quando observamos, nos filmes de Rouch e em particular em Crônicas, as inovações técnicas e estéticas que apontam para elementos como a auto representação do diretor enquanto personagem do filme, o aprofundamento no evento da interação e do diálogo que constitui a realização fílmica, o compartilhamento das reflexões a respeito do resultado da trama que se desenvolve através das imagens, etc. Tudo isso teve, sem sombra de dúvida, um grande impacto sobre os métodos e práticas etnográficos, mas a obra de Jean Rouch deve compreendida a partir de sua inovação audiovisual no campo antropológico, realizando uma intersecção técnica e estética entre o filme etnográfico e o campo do cinema documentário de um modo geral, tendo ela aí a razão fundamental de sua contribuição. Como uma obra que ligou com maior envergadura as contribuições dos dois campos no âmbito do audiovisual e os levou a manterem um diálogo importante no que diz respeito aos modos de produzir um filme e as repercussões éticas, políticas e metodológicas deste exercício.

Considerações finais

29 Apesar de serem em alguns aspectos contraditórios no que diz respeito à concepção que parece estar por trás de seus objetivos quanto a uma antropologia de caráter compartilhado e reflexivo, Rouch e Morin contribuem com as reflexões epistemológicas e estéticas no âmbito da prática do cinema etnográfico. Eles convidam a dimensão subjetiva dos personagens – e isso inclui seus próprios realizadores – a uma exposição que ao menos tenha como meta reconhecer e abordar de forma mais profunda sua interioridade, suas contradições, suas crenças, suas intervenções e a sua responsabilidade na produção de sentido, concedendo-lhe uma nova posição enquanto objeto de registro fílmico. Com Rouch, em particular, o cinema documentário e o filme etnográfico ganham novas possibilidades para a realização da autocrítica subjetiva da dimensão autoral, tanto para a pesquisa em antropologia quanto para a realização do filme etnográfico predominantemente enquanto expressão artística, e ainda conseguem desenvolver um método novo de revelação da subjetividade dos atores sociais que ocupam a posição de personagens na imagem do filme etnográfico e do cinema documentário. É por este caminho que a compreensão do sentido de um cinema pautado na antropologia compartilhada de Jean Rouch se inicia.

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NOTAS

1. Optamos por centrar a cronologia nos primeiros pela razão de terem se mantido como as principais figuras no âmbito das questões que lançaram em cada momento em particular do desenvolvimento da tradição audiovisual etnográfica. 2. “La objetividad funciona más como una retórica que como un ritual, aunque también en este contexto puede ayudar a formar una identidad colectiva entre aquellos que comparten una visión del lugar que debe ocupar la objetividad en un texto (como los directores de la modalidad de observación.” (Nichols 1993: 251). 3. “But for all its many merits, it is a film that is positively awash with contradictions and ambiguities, many of which continue to trouble documentarists inspired by this example. There is, first of all, the striking contrast between the principles governing the process of production and those applied in the post-production phase. […] Whatever their differences, they shared a commitment to the idea of making the film on the basis of spontaneity, without a formal script, following their own or their subjects inspirations.” (Henley 2006: 91).

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RESUMOS

O presente estudo analisa aspectos da produção cinematográfica documental e etnográfica do diretor Jean Rouch que giram em torno de uma de suas mais célebres obras, “Crônicas de Um Verão” (1961), realizada em parceria com Edgar Morin. Para a consecução deste escopo, situamos a iniciativa filmográfica de Rouch no panorama da tradição audiovisual que envolve o campo do filme etnográfico, e, em seguida, analisamos de que maneira este cineasta repensou em “Crônicas” a relação entre o sujeito e o objeto da representação, na imagem do filme etnográfico, agregando referências do documentário a uma concepção particular de Antropologia Compartilhada para dar origem ao Cinema Verdade francês.

This article examines various aspects of Jean Rouch’s documentary and ethnographic filmmaking, particularly as far as concerning his probably most famous work “Chronicles of a Summer” (1961), which he made together with Edgar Morin. For this purpose, Rouch’s cinematographic initiative is put in relation to the audiovisual panorama of ethnographic film. The article aims to analyze how Rouch in “Chronicles” thought over the relationship between the representation of the filmic “subject” and “object” within the ethnographic film tradition, thus enriching documentary film with his particular conception of a shared anthropology, at the same time laying the foundations for French “cinéma vérité”.

ÍNDICE

Palavras-chave: antropologia visual, filme etnográfico, antropologia compartilhada, cinema verdade Keywords: visual anthropology, ethnographic film, shared anthropology, cinéma vérité

AUTOR

RODRIGO OLIVEIRA LESSA UFBA, Salvador, BA, Brasil [email protected]

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Entre escalas: sobre as relações espaciais na obra de Oiticica Between scales: about spatial relationships in the work of Oiticica

Andrei Mikhail Zaiatz Crestani

NOTA DO EDITOR

Recebido em: 2013-08-21 Aceito em: 2013-12-26

Introdução

1 Hélio Oiticica se destaca no cenário artístico brasileiro por sua produção de vanguarda entre o final da década de 50 até 70, exercendo enorme influência na reformulação do pensamento acerca do alcance da arte. Sua produção desloca a arte de um campo de representação estática para a possibilidade de observá-la como um campo relacional, em que o expectador passa assumir um movimento contínuo de experiências que proporcionam uma possibilidade de (re)criação participativa da obra.

2 Sendo a obra de H.O uma obra viva, que pulsa, não é possível analisá-la apenas do ponto de vista estético ou de sua representatividade plástica, sua produção exige mais: entender a dimensão do que a obra provoca em seu receptor. Neste sentido, conceitos etnográficos são utilizados para introduzir a compreensão de onde e como suas obras se encontram e completam em um contexto social relacional.

3 O produto tradicional da pesquisa etnográfica sempre foi a escrita do pesquisador, resultado de sua convivência e observação durante determinado tempo com um grupo social (Velloso 2007: 1-2).

4 Velloso (2007) afirma que a estética utilizada para construir imagens, a qual denomina estética etnográfica, passa a ser usada para atender à interpretação de um mundo que

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se debate entre a tendência à globalização e a resistências locais e precisa reencontrar a essência do humano incorporada em diferentes crenças e modos de vida.

5 Geertz (1997) confirma a importância do que Velloso chama de estética etnográfica, ao dizer: o que isso implica, entre outras coisas, é que, em qualquer sociedade, a definição de arte nunca é totalmente intraestética; na verdade, na maioria das sociedades ela só é marginalmente intraestética. O maior problema que surge com a mera presença do fenômeno do poder estético, seja qual for à forma em que se apresente ou a habilidade que o produziu, é como incorporá-lo na textura de um padrão de vida específico. E esta incorporação, este processo de atribuir aos objetos de arte um significado cultural, é sempre um processo local; o que é arte na China ou no Islã em seus períodos clássicos, ou o que é arte no sudeste de Pueblo ou nas montanhas da Nova Guiné, não é certamente a mesma coisa. (Geertz 1997: 146)

6 A obra de Oiticica perpassa por intensidades distintas de significação: entre a fruição (o artista), o receptor (o “expectador”) e o movimento contínuo, processo este que pode se entender a partir de um olhar antropológico, o qual potencializa a interpretação do resultado gerado entre a obra de arte de H.O. e quem a vivência.

7 No Brasil pode-se identificar a partir de 1930 um momento onde a manifestação da arte passa por uma metamorfose que vai despindo-se da roupagem artística burguesa e vestindo a linguagem de uma cultura popular específica. Isto ocorre em um movimento histórico que é marcado por obras que antecedem as obras de H.O.: tanto por obras de literatura e cinema, como em obras de arte como pintura, escultura e até mesmo a arquitetura.

8 Jameson (1993) fundamentando-se nas ideias de Marx e Walter Benjamin aborda a articulação entre o modo de produção e o modo de percepção, refletindo sobre como o crescimento industrial iniciado em 1930 transformou a sociedade brasileira tanto no campo econômico quanto no desenvolvimento da cultura.

9 Foster (2006), na obra O artista como etnógrafo, afirma: Una de las intervenciones más importante en la relación entre la autoridad artística y la política cultural es “El autor como produtor” de Walter Benjamin, representado por la primera vez como conferencista en abril de 1934 en el Instituto para el Estudio del fascismo de París. [...] Pues, Benjamin urgía al artista “avanzado” a intervenir, como trabajador revolucionário, en los medios de producción artística, a cambiar la “técnica de los medios de comunicación tradicionales, a transformar el “aparato” de la cultura burguesa. (Foster 2006: 175)

10 Benjamin (1980) destacou as possibilidades abertas pela tecnologia e as consequências positivas desta percepção modificada, que diz respeito principalmente ao aspecto da “dessacralização”. Para Gonçalves (2006), “dessacralizar” a arte seria despojá-la do papel ritualístico a que, durante toda tradição, esteve submetida.

11 Benjamin (1980) brevemente ilustra, entre os gregos antigos, a gênese da obra de arte a partir de um ritual e em seguida vista como objeto de adoração religiosa. Segundo o autor, os antigos sentiam a aura da obra. A destruição da aura a partir da perda de sua função ritualística é vista por Benjamin como um fato no mínimo importante e decisivo no processo histórico da arte (Gonçalves 2006: 3).

12 A experiência de Oiticica na favela da Mangueira a partir de 1964 altera o seu percurso na redescoberta de sua própria arte, encaminhando-a naturalmente em direção a este processo previsto como necessário por Benjamin: “toda a minha evolução artística caminha para o que chamo de uma expressão mítica essencial na arte. Há como que um

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cansaço [meu] do que é excessivamente intelectual e a busca do que é expressivo na arte” (Oiticica1).

13 Ao conviver em um espaço não projetado, espontâneo e com uma estética própria, H.O. incorpora esta experiência em suas obras compondo uma estética livre que refletirá o aspecto fragmentado, labiríntico e rizomático deste ambiente da favela (Jacques 2007).

14 Esta vivência na comunidade da Mangueira se impregna na obra do artista: o sentido de coletividade da comunidade e a ginga do samba; a organização da arquitetura deste espaço – orgânica, metabólica2 ; o modo como esta se concebe a partir do reaproveitamento e livre uso de lixo como elemento estruturante dos abrigos. Todas estas questões passam a permear seu trabalho e traduzir uma nova posição ética – Kantiana – baseada na liberdade como elemento motriz de sua criação, o que rebaterá no modo como Oiticica irá se apropriar do espaço para sua proposta: mais especificamente de um espaço coletivo, público, urbano.

15 A adoção deste espaço naturalmente criado por seus usuários em práticas cotidianas – e não previamente determinado – como o lugar3 gerador de suas obras, revela a dimensão etnográfica da obra de Oiticica na medida em que esta ambiência, além de conter qualidades socioespaciais e artísticas inerentes, torna-se conteúdo abordado nas produções do autor e um meio de estudo da comunidade que ali se insere.

16 Ao visualizar a cidade como “fonte antropológica” de sua produção (Marquez 2009), Oiticica demonstra a intenção de um trabalho relacional já que, como ambiente coletivamente construído, é próprio da cidade acolher e fomentar discursos e formas plurais de representações do seu conteúdo. Quando promove o gesto corpóreo do participador (e não mais o observador contemplativo) na/sobre a sua obra, H.O. tece experiências de diversas escalas e “conteúdos espaciais”.

17 É entre estas dimensões de escalas presentes na obra de H.O. que a presente reflexão pretende percorrer: entendendo como suas obras constroem relações espaciais com o participante em diferentes escalas – tendo como matriz o ambiente “Mangueira” –, bem como o modo destas se ampliarem em uma interação poética entre si, completando o discurso de totalidade ambiental (Oiticica 1986) construído pelo autor.

18 Importante frisar que este ensaio expressa a análise de um arquiteto e urbanista sobre o campo artístico, mais especificamente, sobre a obra de Oiticica. Neste sentido, existe uma preocupação específica em discutir questões (talvez) não tão enfocadas em abordagens de debatedores da obra do autor, mas que são sensíveis e presentes tanto na arquitetura como no discurso expresso na arte de Oiticica: o espaço experimentado em diversas escalas e modos de apropriação.

19 Este interesse em discutir as relações entre escalas espaciais da obra de H.O. emerge no momento em que se percebe em seu discurso esta mesma busca: “trata-se da procura de ‘totalidades ambientais’ que seriam criadas e exploradas em todas as suas ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano” (Oiticica 1986: 67).

20 Para esta análise se dispõe aqui a construção de três categorias específicas que permitem entender e classificar as diferentes escalas espaciais da obra de Oiticica, assim como sua proposta de interação com o participante em cada uma delas: objetos- objetos, objetos-corpo e corpo-meio. • Objetos-objetos: onde o todo experimentado pelo “expectador” – que na obra de Oiticica se torna participador – se dá a partir de uma relação espacial entre partes de suas obras. Nesta categoria o participador tem a oportunidade de processualmente experimentar e interagir

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com um espaço relacional construído de partes das obras de H.O. que, sincronicamente, se articulam e prenunciam a mensagem total da proposta ambiental; • Objetos-corpo: a noção de espacialidade é tida quando o expectador passa a conter (produzir) o próprio espaço. O corpo alcança a plena liberdade espaço-temporal, moldando o espaço da obra, a qual não se completa sem o gesto corporal; • Corpo-meio: o trajeto, o percurso, constitui parte estruturante da percepção da obra, tecendo as conexões espaciais que ela possui. Na medida em que o participador perpassa pela obra passa a completar a sua composição tanto espacial como de conteúdo, no momento em que o participador contempla e obra e é contido por ela.

21 Ao propor estas relações Oiticica promove espacialidades em distintas escalas e níveis de percepção/interação. Sua obra contém uma subjetividade mutável de acordo com aquele que a vivencia, e é nesta vivência que o “participador” descobre e, ao mesmo tempo, propõe a (re) construção e/ou (re) interpretação dos espaços deixados pelo autor como meio de interação com o seu público.

22 Apesar de diversas obras em potencial para análise a partir desta categorização, elencam-se Penetráveis, Parangolés, Bólides e Núcleos como as produções que dela participarão, considerando – como será possível notar ao final do ensaio – o valor evidente que Oiticica atribuía a relação de continuidade espacial entre estas obras, ainda que cada uma contenha qualidades espaciais específicas.

Diferentes escalas, uma mesma narrativa espacial

23 Antes de adentrar na obra de Oiticica vale a construção de uma breve contextualização do momento artístico em que participou o autor, bem como o ambiente no qual sua arte se faz – o morro da Mangueira – o que permitirá compreender sua busca pelo espaço a partir da arte.

24 Importante relembrar que o fato de Oiticica ter se preocupado em trazer a experiência vivencial do morro para o ambiente artístico valoriza sua produção como objeto etnográfico segundo a abordagem de Foster (2006), a qual considera que no momento em que a arte se desloca para um campo de encontro no território, de contato com o outro, ela passa a ser também campo de transformação socioespacial e político e, logo, locus da exploração etnográfica.

25 Inserido em um contexto moderno H.O. expressa verdadeira crítica em pensar a arte como algo estático e, ao mesmo tempo, acessível apenas dentro do “cubo branco”4, se lançando então a criação de formas de pensar a arte como um campo relacional e não apenas como algo contemplado por um espectador ou consumido por este: Não se trata mais de impor um acervo de ideias e estruturas acabadas ao espectador, mas de procurar pela descentralização da "arte", pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da proposição criativa Vivência. (Oiticica 2006: 148)

26 A partir de então, H.O. buscará estabelecer um campo de interação com o público quebrando o paradigma da distância entre este e o artista, inserindo a própria como articuladora da construção de uma arte como espaço de representação coletiva: “A obra de Hélio Oiticica, bem como da geração dos diversos artistas concretistas e neoconcretistas, tais como Lygia Clark, Lygia Pape e Ivan Serpa, colocava em questão os códigos artísticos e institucionais tradicionais” (Couto 2012: s.p).

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27 Neste sentido, a produção de H.O. será neoconcretista tendo forte relação com a obra de Lygia Clark, especialmente na complementariedade entre o modo como pensam a percepção da arte a partir de uma interação com o corpo: Oiticica se aproximará mais de uma abordagem de “extroversão”, enquanto Clark estará mais próxima de uma produção de “introversão” corpórea em relação a arte (Sperling 2006).

28 Favaretto (2000) auxilia no entendimento sobre o modo como o neoconcretismo – e, logo, a obra de Oiticica – visualiza o espaço como fundante do sentido da obra: [...] o neoconcretismo enfatiza “a experiência direta da percepção”, através do que “a obra entrega a significação de seus ritmos e de suas cores” [...] A arte neoconcreta visa à fundação de um novo espaço expressivo: pela renovação da linguagem construtiva, revitalizando propostas suprematistas, neoplásticas e construtivistas; propondo um novo objeto para a pintura; libertando-a da tela e realizando-a no espaço real. (Favaretto 2000: 40)

29 A libertação do espaço bidimensional se apresenta como um dos maiores motes deste movimento, e Oiticica irá defender isto de tal modo que o espaço se tornará o “suporte” de sua arte e não apenas um meio de contemplação de algo acabado como o que ocorria no exercício da “arte moderna”, onde a exploração da plasticidade da obra era contida, disciplinada, e valorizava a composição plástica em si ao invés da experiência espacial (Pedrosa 2006). Como bem traduz Oiticica: “O que há de realmente pioneiro na nossa vanguarda é essa nova fundação do objeto, advinda da descrença nos valores esteticistas do quadro de cavalete e da escultura, para a procura de uma arte ambiental” (Oiticica 1986: 112).

30 A evidência de que Oiticica sempre busca uma questão do espaço (Salomão 2003) está vinculada ao fato dele não se preocupar tanto com a observação dos elementos em si, mas muito mais da relação entre eles, onde o espaço vazio ganha visibilidade e conteúdo. Como mesmo decalca Favaretto (2000), à Oiticica interessa muito mais a “abertura para outras possibilidades construtivas advindas do novo sentido dado ao espaço” (Favaretto 2000: 33).

31 Neste “espaço inacabado” reside a diferença e qualidade única das suas propostas já que é nele que se legitima a pluralidade de representação do público, onde conteúdos coletivos se constroem em uma continuidade processual deixando aberto tanto as relações espaciais com o participador, como o tempo de interação entre obra e o meio no qual ela se insere.

Objetos – Objetos

32 Esta categoria se visualiza nos “Penetráveis” de Oiticica. O “penetrável” é proposto por H.O. como instalações que transformam o espaço plástico (antes utilizando a tela como meio de expressão) em um meio vivencial, desintegrando a pintura neste ambiente. Sua construção se compõe a partir da reunião de outros objetos da obra do autor, sendo Tropicália um dos penetráveis mais conhecidos.

33 Os objetos que constroem as diferentes espacialidades da obra são – nesta e em outras produções – de múltiplas possibilidades e escalas de apropriação, como mesmo sustenta o próprio artista: “objetos esses das mais variadas ordens, que não se limitam a visão5, mas abrangem toda a escala sensorial” (Oiticica 2006: 147).

34 Tanto em penetráveis como em outras produções Oiticica utiliza-se de objetos elaborados por membros que participam da comunidade da Mangueira, reconhecendo

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estes mesmos objetos não somente como artefatos esteticamente dispostos para a composição de uma obra, mas muito mais como bens culturais produzidos no morro o que, além de evidenciar o caráter etnográfico de sua obra, cria uma interface relacional entre “personagens” do universo popular e do “erudito” (Velloso 2008).

35 Nos penetráveis a ideia central é o espaço vivenciado no tempo (Marquez 2009), onde o participador pouco a pouco descobre partes da obra a partir da experiência sensorial, revelando o caráter vivencial desta estrutura como mesmo expõe H.O.: “o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade” (Oiticica 1986: 11).

36 A relação espaço-temporal é estruturante nos penetráveis, na medida em que sem a permanência do indivíduo neste espaço ele deixa de ser obra, esvazia-se de sentido já que este reside justamente na experimentação da obra pelos mecanismos sensoriais. Cada parte que compõe o penetrável apresenta trechos da intenção da totalidade ambiental de Oiticica.

37 O gesto e a ação do participador sobre a obra revela a estrutura espacial na qual está contido neste trabalho. Nos penetráveis “o espectador deixava de ser um contemplador passivo, para ser atraído a uma opção que não estava na área de suas cogitações convencionais cotidianas [...], numa comunicação direta pelo gesto e pela ação” (Oiticica 1986: 11).

38 A escala desta obra permite com que o participador, ao mesmo tempo, manuseie seus objetos, ou seja, detenha o domínio espacial por meio do gesto e seja envolvido por um ambiente em escala arquitetônica, como se a obra o abrigasse longe das convenções cotidianas como mesmo relatava Oiticica6 (1986).

39 Quando movem painéis, pisam em cores, manuseiam objetos e paralelamente se envolvem por este espaço, os participadores também se transformam já que, em uma escala que tangencia a arquitetônica, passam por um processo de interação e troca coletiva: “Campo de tensões, o espaço é ‘organificado’. Neste, as relações plásticas são transformadas em vivências: [...] confluindo tudo para a efetivação de um espaço destinado a experiências em que também os participantes se transformam. (Favaretto 2000: p.67)

40 Os Penetráveis remontam muito da vivência de Oiticica na comunidade da Mangueira. Abrigos, objetos reciclados, movimento, gestualidade compõem este espaço que se serve de um cotidiano ordinário para transformá-lo em obra coletiva a partir de uma sintaxe espacial que estrutura um discurso completo rumo ao “Ambiental” (Lagnado 2003).

Objetos – Corpo

41 Aqui se elegem duas linhas de produções do autor que, em diferentes níveis, tem a ação corpórea sobre a obra para constituí-la como tal. Diferentemente da relação “objetos- objetos”, nesta o espaço se compõe não por uma experiência da justaposição de objetos, mas sim a partir do momento em que o participador lhe dá forma e conteúdo.

42 Em Parangolé7 o participador é o próprio espaço, ele gera o espaço quando o incorpora. Oiticica chega a um nível de despojamento tamanho sobre a necessidade da obra “ser em si” – como era na perspectiva mais institucionalista – que permite ao participador

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decidir que forma, estrutura e expansão terá a sua obra, já que o corpo do participador é o único meio de representação do sentido do Parangolé: “a obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance, em última análise” (Oiticica 1986: p.70).

43 O sentido estrito da palavra “Parangolé” nasce também como gíria de morro, variando de significados, sendo utilizada em uma expressão: “Qual é o parangolé? [...] e significava, dentre outros sentidos mais secretos: "O que é que há?", "O que é que esté roIando? ”(Salomão 2003: p.37). É como se Oiticica buscasse em sua obra resgatar o que há dentro dos seus participadores, esperando expressões em forma de dança, coreografias, gestualidades que se desenhem no espaço.

44 Em Parangolé o corpo do participador é a fonte da vida da obra e por esta razão a obra se torna mais autônoma em relação ao espaço e mais heterônoma em relação ao participador, ou seja, depende muito mais “em quem” do que onde estará para ganhar conteúdo. Neste sentido, possui grande adaptabilidade entre lugares mais distintos entre si (Salomão 2003), mas mantêm a relação de mutualidade com o participador: os Parangolés eram para ser vestidos, usados e, de preferência, o participante deveria dançar com eles; a influência da ideia de coletividade anônima [...], com os Parangolés, os espectadores passavam a ser participantes da obra e – diga-se – a ideia de participação do espectador encontrou aí toda sua força. (Jacques 2007: 29)

45 Ao vesti-lo, o participante inicia um momento de representação particular do espaço, em uma situação única e irrepetível (Marquez 2009), ao mesmo tempo esta mesma representação é de apreensão coletiva, acontece na cidade, nos jardins, no espaço público. Os contornos e o alcance espacial da obra não são previsíveis, pois estão atrelados à improvisação desta ação coletiva (Sperling 2006).

46 Neste objeto – Parangolé – Oiticica constrói um espaço de interação entre criador e participante, em que este último não é uma espécie de “suporte” para as capas ou bandeiras, mas sim, ao vesti-lo, incorpora o seu sentido de tal modo que estabelece uma relação simbiótica com o objeto tornando-se parte da obra.

47 A liberdade como princípio ético de seu trabalho alcança o seu auge, sua representação máxima: o participador desenha, contêm e significa o espaço nesta obra, completando o seu sentido sem a programação prévia de códigos artísticos institucionais8 já mencionados anteriormente.

48 Este modo de conceber o espaço em Parangolé pode ser entendido a partir de uma perspectiva das ciências sociais: Löw (2003) assume o espaço muito mais como uma categoria relacional do que um substrato dado, pré-disposto. Ele se constitui, de acordo com a autora, a partir da experiência de objetos assim como na relação entre estes objetos: spaces are, first, an expression. Of the possibility of pluralities; second, they point to the possibility of overlapping and reciprocal relations; and third, and for this very reason, they are open and indefinite with respect to future formations. (Löw 2003: 16)

49 Se nos Parangolés a obra é incorporada e se especializa em uma escala do corpo total, nos Bólides o que ocorre é a manipulação do espaço, um modo de se expressar em um espaço de menor escala. A relação entre sujeito e objeto é redescoberta de uma estética contida em objetos cotidianos: Os “Bólides” consistiam em recipientes (caixas, sacos, latas, bacias) com materiais elementares da terra, manipuláveis, em busca das virtualidades da cor imanente aos

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objetos em jogo; o que o artista chamou de “estruturas de inspeção” ou “transobjetos” ou ainda “estruturas transcendentais imanentes”. Tais nomes traduzem a ideia de exploração, experimentação, quebra de valores preconcebidos, abertura de novos horizontes. (Marquez 2009: 72)

50 Nestas virtualidades, nestes interstícios entre cheios e vazios Oiticica potencializa a capacidade (re) interpretativa da sua obra. Quando a ação está em uma escala de “lida” com o espaço interior dos Bólides, o participador o transforma, o molda e o experimenta com os seus valores e significados. Nesta abordagem os bólides propõem a retomada de um “lugar praticado”, ou seja, o ato de fazer uso de objetos desvinculados de seu uso cotidiano torna-os potenciais geradores da experiência de outros sentidos e significados.

51 A experiência espacial agora se passa entre o indivíduo e o interior da obra. Neste interstício as sensações alcançadas no manejo da cor, de tecidos, produtos, etc, resignificam o objeto antes corriqueiro.

52 Oiticica deposita no espaço interior do Bólide o sentido a ser percebido pelo seu “espectador”: ora emoção, ora imaginação, surpresa etc. A capacidade desta espacialidade não é apenas de conter algo para ser manuseado, experimentado ou modificado, como também de absorver o próprio participante em sua sensação provocada, demonstrando que ainda que em uma microescala Oiticica alcança um espaço de representação topológica em um discurso afinado entre suas outras obras.

Corpo – Meio

53 Os Núcleos são o que articulam a reflexão da categoria corpo-meio aqui proposta. Nesta, o espaço proposto por Oiticica se aproxima da interação individual, de como o participador entende a obra e faz parte de sua composição em um movimento de “costura” dos vazios deixados pelo autor para tal interação. A obra, aqui, passa a conter o participador em seu espaço poético ao mesmo tempo em que é percebida externamente por ele: O Núcleo, que em geral consiste numa variedade de placas de cor que se organizam no espaço tridimensional [...], permite a visão da obra no espaço (elemento) e no tempo (também elemento). O espectador gira a sua volta, penetra dentro de seu campo de ação. (Oiticica 1986: 51)

54 Ainda, sobre os elementos compositivos da obra: Os núcleos são estruturas vazadas, placas coloridas de madeira suspensas, traçando um caminho, sob um teto quadrilátero como um dossel. A cor não está mais trancada, mas no espaço circundante abrasado de um amarelo ou de um laranja violento. São cores-substancias que se desgarram e tomam o ambiente e se respondem no espaço. (Pedrosa 2006: 144)

55 O espaço assume uma escala não necessariamente física neste contexto mas, antes, virtual já que é percebido no movimento do percurso, no trajeto do participador. Nos vazios dos Núcleos ocorre a percepção do espaço em transformação quando o espectador, ao percorrê-lo, vivencia no movimento uma relação de composição mutável que se mostrará de forma distinta a cada posição espacial.

56 Ao caminhar em torno da obra o participador apreende a cor e é apreendido por ela: mas não a apreende como algo estático, acabado, mas sim como espaço, uma nova concepção de espaço baseada no extravasamento da cor da tela em cavalete, para

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ganhar corpo e ser percebida em movimento: “A estética resultante da experiência desses espaços é, consequentemente, uma estética espacial do movimento, ou melhor, do espaço-movimento” (Jacques 2007: 149).

57 Esta “pintura espacial” completa a profundidade buscada por Oiticica, em que a cor já não está em superfície bidimensional, mas, ao contrário, é capaz de interagir tanto com o corpo que percorre entre ela, como com o meio no qual ela se especializa e gera novos planos de percepção.

Espaço, escalas e suas sobreposições na obra de oiticica

Cada obra é apenas um meio de busca de ambientes totais, os quais poderiam ser criados e explorados em todos os seus graus, do infinitamente pequeno ao espaço arquitetônico, urbano etc. Oiticica 1986: 139

58 Observar a arte de Oiticica a partir de um repertório “arquitetônico” buscando aproximar-se de um olhar antropológico se mostra um tanto desafiador, e por isto se recorreram a obras que permitem o entendimento de sua produção dentro do circuito artístico, para então retomá-la com uma leitura mais alargada acerca das possibilidades de uma interpretação conjugada entre arquitetura, antropologia e etnografia. O presente artigo não encerra ou abarca todas as questões inerentes a produção de H.O., mas amplia discussões acerca da espacialidade: elemento intrínseco de sua criação.

59 Na busca por sua nova objetividade9 Oiticica cria novas ordens estruturais ou, como ele mesmo menciona, “ordens ambientais” (Oiticica 2006: p. 147) que culminam em um “experimentar do espaço”, “fazer o espaço” em escalas diversas que constroem uma continuidade de discurso entre si, rompendo com o pensamento reducionista que apresenta o espaço como “pronto” ao observador.

60 Na medida em que a obra de H.O busca completar-se no outro desde o momento criativo do autor ela reflete a interpretação de Walter Benjamin, já que não encerra em si mesma e vai à busca não de uma razão compositiva, mas de sentidos entre homem e natureza artística e cultural manifestada, repelindo a estaticidade da arte e remetendo um sentido vivo à obra.

61 Quando o espaço coopta a cor como elemento com profundidade e plasticidade na produção de Oiticica, suas obras passam a conferir a cor uma estrutura temporal, fazendo com que sua produção avance para uma escala arquitetônica: a pintura solta-se no espaço produzindo um extra-espaço estetizado. Esse redimensionamento do espaço foge ao ilusionismo da pintura “representativa” [...]: o espaço torna-se literalmente arquitetônico (Favaretto 2000: 79).

62 Sua posição ética se mantém e se especializa a cada obra, permitindo ao corpo uma liberdade espaço-temporal criando a “metáfora do corpo livre” (Marquez 2009). Ao tornar o público ativo na construção espacial da obra, Oiticica constrói uma relação direta com o participador e rompe com o distanciamento entre autor e receptor.

63 Sua linguagem avança para uma expressão espacial livre ilustrando seu anseio de desatar a arte de um recinto em que as normativas condicionam o alcance da

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representação de sua obra. Ao fundar-se na vivência, a obra de H.O. já se faz espacial por si, na medida em que esta “vivência” solicita uma interação entre objeto, participador e espaço.

64 O morro da Mangueira, local de (re)criação de sua arte, apresenta-se como elemento motriz destas relações buscadas entre obras do autor, apresentando-se como gênese do aspecto relacional evidenciado no trajeto artístico de Oiticica. Ao encontrar no morro “sua ginga”, Oiticica também acaba revelando suas produções como elementos próprios deste lugar, tornando-os objetos de conhecimento deste ambiente além de, naturalmente, obras de arte, reafirmando assim o caráter etnográfico de seu “método”.

65 O presente texto perpassa por obras específicas de Oiticica, as quais variam de escala de interação e modos de representação, mas se encontram em uma mesma “condição”: mais autônomas em relação ao ambiente no qual se inserem10, e heterônomas em relação ao espectador. Obviamente, esta autonomia não significa o descarte da necessidade de um locus para que a obra do autor se apresente, o que, de todo modo, não vincula a obra a um espaço específico – como a galeria – para a efetivação de seu discurso.

66 Em uma perspectiva social (como abordado por Ponty e Löw), o espaço só existe a partir do momento em que ele é percebido e vivido, não apenas contemplado. Este transporte da dimensão estática para a dinâmica proposto na obra de Oiticica permite ao participador a (re) produção de um espaço cujo programa não está definido, mas aberto a significados tão particulares de cada participador, como plurais a partir de interações coletivas.

67 Mais do que espaços inacabados se vislumbra na obra de H.O. uma semântica contida que depende do participador para se manifestar. Neste sentido, os espaços de Oiticica são “possíveis” e sensíveis a percepção do corpo em um movimento ambiental de extroversão (Sperling 2006).

68 Em uma abordagem neoconcreta Oiticica superou em sua produção as “contingências sintáticas” previstas nos postulados da arte moderna, ultrapassando o limite espacial do cavalete e criando um espaço aberto e relacional entre autor | obra | participador.

69 Este espaço de representação criado na obra de Oiticica permite, nesta condição, um questionamento em forma de “ato espacial” acerca dos pragmatismos sociais que definem condições/restrições de interações entre usuário e meio.

70 É nesta nova possibilidade que o autor também revelou ao seu público a possibilidade de participar – e não mais observar – da criação da espacialidade em diferentes escalas da sua obra: “No meu programa nasceram Núcleos, Penetráveis, Bólides e Parangolés, cada qual com sua característica ambiental definida, mas de tal maneira relacionados como que formando um todo orgânico por escala” (Oiticica 1986: 78).

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NOTAS

1. Oiticica, Hélio. Um Pintor No Samba. Disponível em: http://www.sibila.com.br/ batepro2inicio.html 2. Em um sentido de mutante, variável. 3. Vale mencionar que Oiticica era adepto às noções de lugar dadas por Merleau Ponty – que inclui o entendimento do espaço como algo que se efetiva a partir de práticas cotidianas, e não como um recorte territorial dado – o que estará fortemente evidenciado nas produções de H.O. 4. O’Doherty (2007) em sua obra “No interior do cubo branco” retoma esta crítica institucionalista acerca do modo como a galeria moderna abriga a arte a ponto de se tornar a própria arte, e negar o espaço como algo constituinte do processo de percepção e interpretação da obra em si. O leitor é convidado a refletir sobre a necessidade de se questionar, em certa medida, os constructos tradicionais da arte para entendê-la no mundo no qual ela se insere. 5. Se nota a crítica institucionalista presente na fala de Oiticica, bem como aos postulados tradicionais da arte sobre o modo de propor as obras para serem contempladas visualmente. 6. Lagnado (2003) argumenta que já nos penetráveis Oiticica vislumbrava a saída do museu e da instituição como todo para abrir espaço para a obra completar o seu sentido público. 7. Tanto para esta obra como para as outras citadas sugere-se a busca online de suas imagens para melhor entendimento da discussão. Na elaboração do artigo não foram encontradas fontes originais de imagens que pudessem ser utilizadas para publicação no periódico. 8. A arte de Oiticica “aparece como um processo participante do criticismo social, de modo que a esfera pública não é vista simplesmente como o espaço público, mas como o campo complexo do interesse público” (Marquez 2009: p.68). 9. “Toda a minha evolução de 1959 para cá tern sido na busca do que vim a chamar recentemente de uma nova objetividade, e creio ser esta a tendência especifica na vanguarda brasileira atual” (Oiticica 2006: 147). 10. Por justamente não se tratarem de um site-specific.

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RESUMOS

A produção artística brasileira entre 1950 e 1970 passou por uma revisão da sua relação com o museu e o público. Neste cenário, Hélio Oiticica se destacou ao buscar nova poética em sua arte, descolando-a da bidimensionalidade das “paredes” do cubo branco, tornando-a arena da expressão pública. Este artigo parte do pressuposto de que as obras de Oiticica variam de escala de interação com o usuário e modo de representação, mas se encontram em uma mesma “condição”: mais autônomas em relação ao ambiente que se insere, e heterônomas em relação ao espectador. São reunidas abordagens de Walter Benjamin e Cliffortd Geertz, que analisam os movimentos artísticos na perspectiva etnográfica e antropológica, para então refletir Penetráveis, Parangolés, Bólides e Núcleos com a proposta de compreender como suas obras constroem relações espaciais com o participante em diferentes escalas, bem como o modo destas relações se ampliarem à interação poética entre as obras.

Between 1950 and 1970, the Brazilian artistic production underwent a review of the relationship between the museum and the public. Within this context, Hélio Oiticica stood out in the way he was trying to discover a new poetics of art, detaching it from the two-dimensionality of the museum walls, making it an arena of public expression. The article parts from the presupposition that Oiticica’s works vary in its degree of user interaction and its modes of representation, but share a common condition: to be more autonomous in relation to their environment, and more heteronomous in relation to the spectator. Based on ideas of Walter Benjamin and Clifford Geertz on artistic movements from an ethnographical and anthropological perspective, the article reflects on Penetráveis, Parangolés, Bólides and Núcleos to analyze how spatial relationships in Oiticica’s artworks construct relationships with the spectator on different levels, and how these relationships may expand the poetic interaction between the artworks themselves.

ÍNDICE

Keywords: Hélio Oiticica, spatiality, ethnographic aesthetics, spatial appropriations Palavras-chave: Hélio Oiticica, espacialidades, estética etnográfica, apropriações espaciais

AUTOR

ANDREI MIKHAIL ZAIATZ CRESTANI PUCPR, Curitiba, PR, Brasil O autor é doutorando em Arquitetura e Urbanismo (IAU - USP. São Carlos). Arquiteto e urbanista, mestre em Gestão Urbana, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUCPR. [email protected]

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