Fronteira do Gharb al-Andalus: Terreno de Confronto entre Almorávidas e Cristãos (1093-1147)

Inês Lourinho

Lisboa

Centro de História da Universidade de Lisboa

2020 Título Fronteira do Gharb al-Andalus: Terreno de Confronto entre Almorávidas e Cristãos (1093-1147)

Autora Inês Lourinho

Revisão André Morgado

Imagem da capa Kitab al-Hayawan/ © Veneranda Biblioteca Ambrosiana

Mapas Luís Ribeiro Gonçalves

Editor Centro de História da Universidade de Lisboa

Primeira edição 2020

Grafismo Bruno Fernandes

Impressão Sersilito

ISBN: 978-989-8068-27-9 Depósito Legal: 475902/20 Tiragem: 150 exemplares

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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P., no âmbito dos projetos UIDB/04311/2020 e UIDP/04311/2020. This work is funded by national funds through FCT – Foundation for Science and Technology under projects UIDB/04311/2020 and UIDP/04311/2020.

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ÍNDICE

11 AGRADECIMENTOS

13 GUERRA PELA FRONTEIRA

35 1093-1106. HOMENS DO DESERTO TORNAM-SE SENHORES DO AL-ANDALUS

37 1. O FIM DAS Queda de Pressão de Afonso VI sobre os reis do al-Andalus Rivalidades no controlo dos tributos Fronteira dinâmica Equilíbrio instável no bloco cristão Conquista de Coimbra e reorganização do território Circulação da moeda e adoção de morabitinos

77 2. QUEM ERAM OS ALMORÁVIDAS?

Ascensão e legitimação de Yusuf b. Tashfin Abd Allah b. Yasin e a guerra santa Submissão das tribos sanajas e constituição de um grupo de apoio O triângulo Sijilmassa-Awdaghust-Aghmat e a morte de Ibn Yasin O ouro dos negros Comércio: traço de união entre as cidades de um império em construção

135 3. CONQUISTA DO MAGREBE

Mequinez, Fez e Marraquexe: o legado de Abu Bakr b. Umar A caminho do Mediterrâneo Ceuta e a luta pelo controlo do estreito de Gibraltar Zallaqa ou o reencontro do al-Andalus com o Magrebe Obediência ao califado abássida 171 4. FRONTEIRA DO GHARB NO FINAL DO SÉCULO XI

Destituição dos reis andaluzes e tomada de Sevilha Normandos tomam posição no Mediterrâneo Conquistas almorávidas de Badajoz e Lisboa Foral de Santarém e outras estratégias de construção da fronteira Consequências da doença e morte de Yusuf na geografia da fronteira

201 1106-1130. DE TOMBUCTU A LISBOA, UM IMPÉRIO ESCULPIDO COM O OURO DO BILAD AL-SUDAN

203 1. RENOVAÇÃO NO BLOCO ALMORÁVIDA

Ascensão de Ali b. Yusuf e reorganização do poder Batalha de Uclés Guerra pelo trono cristão Jihad no al-Andalus Recuperação almorávida de Lisboa e Sintra: as informações nas sagas nórdicas Nascimento de D. Afonso Henriques

229 2. CONJUNTURA DE TRANSIÇÃO

Batalha de Valtierra e conquista almorávida de Saragoça Luta pela fronteira com Coimbra em ebulição

241 3. A FRONTEIRA DE COIMBRA

Estratégias de D. Henrique em marcha Mais instabilidade na cidade Maurício Burdino, conflitos entre Braga e Compostela e investidura em Roma Disputas pela sucessão ao trono cristão

255 4. GUERRA DE FRONTEIRA E GUERRA NAVAL

Ataques almorávidas à região de Coimbra Guerra na fronteira marítima Das areias do deserto à lide dos mares: a frota enquanto modelo de expansão económica e política Amigos e inimigos: estratégias de controlo do Mediterrâneo ocidental

327 5. ASPIRAÇÕES POLÍTICAS DE D. TERESA

A “rainha” D. Teresa e a disputa pelo poder Rescaldo do ataque almorávida Apoio dos Travas e revolta dos nobres portucalenses D. Afonso Henriques na arena política Afonso de Aragão ameaça o al-Andalus Contenção da fronteira e doação do Castelo de Soure aos templários Batalha de São Mamede e afastamento de D. Teresa Os novos rostos da fronteira

365 1130-1147. NOVO EQUILÍBRIO DE FORÇAS NO GHARB AL-ANDALUS

367 1. DESAFIO DO PODER NO MAGREBE

Contestação de e reforço dos sistemas defensivos almorávidas Cerco almóada a Marraquexe, morte de Ibn Tumart e elevação de Abd al-Mumin a califa

383 2. OS ANOS DO APOGEU ALMORÁVIDA

Organização territorial do al-Andalus Calma antes da tempestade D. Afonso Henriques, génese de um rei Construção da fronteira portucalense com os muçulmanos

459 3. DESMORONAMENTO DO IMPÉRIO

Caos no assalto ao poder de Marraquexe Desmilitarização do al-Andalus: fossados cristãos e consolidação da fronteira 489 4. OS ANOS DO FIM

O ano de todas as calamidades Queda do Império Almorávida e partilha dos despojos

525 REFLEXÕES

541 CRONOLOGIA

547 BIBLIOGRAFIA AGRADECIMENTOS

A Amos Amit, Ana Luísa Miranda, André Leitão, André Simões, Badr Hassanein, Dehbia Belkacemi-Dendani, Francisco Mendes e Kari Ellen Gade, pelo debate de ideias e pelo auxílio em traduções. A Luís Gonçalves, pelo incentivo e pela elaboração dos mapas publicados nesta obra. A Hermenegildo Fernandes, pelo desafio intelectual constante. À minha família, pelo apoio e pela infinita paciência.

GUERRA PELA FRONTEIRA

Al-Ushbuna: última peça no puzzle da fronteira com o Gharb al-Andalus. Barcos atracam, outros deixam o cais. Homens rolam barris de vinho, margem acima, margem abaixo.1 Carregam às costas sacos de mercadorias. Um fervilhar de línguas adensa a atmosfera do porto. Tecidos finos, tapetes de oração, livros, mobiliário, cerâmicas e vidros decorados, joias e equipamento de guerra aportam vindos do al-Andalus, do Norte de África, do Oriente.2 Escravos de pele escura ou clara, guerreiros do deserto com rosto velado e mercenários negros acentuam os tons da paleta de raças e culturas.3 Especiarias, perfumes e essências desprendem-se no ar. Nas ruas adjacentes, comerciantes, corretores e cambistas procuram os melhores negócios, concedem créditos, trocam dinheiro.4 Os silos recebem as

1 O cultivo da vinha na região de Lisboa durante o período islâmico e o elevado grau de especialização que envolvia podem ser atestados, entre outros, pelo Foral dos Mouros Forros de Lisboa, Palmela e Alcácer, outorgado por D. Afonso Henriques em 1170 (Azevedo 1958, 401-402). Para a vinha na região de Santarém, ver: Viana 1998. 2 Os geógrafos al-Zuhri e al-Idrisi referem que estas mercadorias eram produzidas e comercializadas no al-Andalus (al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 206; al-Idrisi [1145-1166?] 1974, 188). É natural que tais produtos alcançassem ainda o extremo do Gharb, pois al-Zuhri atesta a navegação até Lisboa, ao referir que o farol de Cádis era imprescindível para atingir diversos portos, incluindo o de al-Ushbuna (al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 217). 3 Ibn Abdun descreve a cidade de Sevilha no princípio do século XII e não se esquece de notar a presença de homens de cara velada (almorávidas) e de mercenários berberes e negros (Ibn Abdun [1050-1120?] 1948, 61-62). As fontes muçulmanas referem que o governo das cidades da marca era, muitas vezes, entregue a elites locais: “Deixaram as fronteiras do lado dos inimigos [cristãos] a mando dos andaluzes, porque estes conheciam melhor a sua situação e sabiam melhor lutar com o inimigo e fazer algaras. Só a estes davam o governo, e tratavam-nos bem” (al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 96). Mas, por uma questão de controlo do poder, é natural também a presença de elementos do regime almorávida, guerreiros de cara velada, como Ibn Abdun explica. 4 Jacinta Bugalhão defende a existência de uma forte circulação de moeda no final do período almorávida, realidade que considera comprovada pelo fracionamento dos espécimes (Bugalhão 2008, 386). Quanto às profissões associadas à finança, como a de cambista, os estudos de S. D. Goitein fornecem informação detalhada (Goitein 1999, 1:229-272). 14 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

mercadorias que chegam do interior do território.5 Cereais, arroz, azeite, figos, maçãs e outros frutos, mel, âmbar, ouro e demais riquezas enchem os armazéns. Os rostos iluminam-se com a beleza dos falcões e açores criados nos arredores da cidade.6 Impostos são pagos. Naves de guerra adentram a foz do rio.7 Rotas comerciais ligam a cidade ao Mediterrâneo e ao austral porto de Nul,8 na costa atlântica africana; estreitam laços com as longínquas latitudes do ouro e dos escravos de Tombuctu e de Gao.9 Pelo caminho, aproximam-na de Alcácer, de Silves, de Ceuta, de Aghmat, de Sijilmassa e de Marraquexe, ora de barco, ora nas pegadas poeirentas das caravanas que, pacientemente, atravessam o Magrebe e o deserto e regressam. As ondas do rio açoitam a muralha e a Bab al-Bahr, a porta que abre sobre uma frente marítima muralhada com pouco menos de 500 metros.10 Almada protege a entrada no porto. Cerca de 40 quilómetros para oeste, Sintra vigia o recorte costeiro das incursões dos piratas.11 A sul, Sesimbra e Palmela repousam atentas.12 Um sistema de torres de vigia salpica a envolvente.13 As cidades

5 Bugalhão 2008, 386. 6 As produções da região de Lisboa e a arte da falcoaria são referidas pelos geógrafos muçulmanos: Abu l-Fida [1321] 1848, 2:244-245; al-Bakri [1050-1090?] 1982, 37-38; Ibn Ghalib [1100-1199?] 1975, 380; Ibn Said al-Maghribi [1230-1286?] 1958, 317; al-Idrisi [1145-1166?] 1974, 172-174; al-Razi [910-955?] 1975, 305; al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 222. Mas também não escaparam ao olhar do cruzado inglês que participou da conquista da cidade: De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 77-79. 7 A existência de uma marinha de guerra em Lisboa é atestada, por exemplo, em: Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 244-245 e 339-341. 8 O mais austral porto atlântico almorávida, Nul controlava o fluxo das caravanas que atravessavam o deserto (al-Bakri [1050-1090?] 1913, 175). No seu compêndio de geografia, al-Zuhri indica uma distância marítima para o estreito de Gibraltar, o que aponta para a normal navegação até Nul (al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 46). Como também atesta a navegação até Lisboa (al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 216), o mais natural é a ligação destes dois portos no contexto da rede de navegação almorávida. 9 O fluxo comercial destes produtos era dominado pelos almorávidas. Al-Bakri fala da conquista de Awdaghust, que se encontrava na confluência das rotas caravaneiras provenientes do País dos Negros (Bilad al-Sudan), descreve a sua riqueza e refere o tráfico de escravos e as minas de ouro (al-Bakri [1050-1090?] 1913, 317, 331 e 335). Al-Gharnati, por sua vez, sublinha que “eles [os reis dos negros] cultivam nas suas areias ouro em pó de excelente qualidade e em grande quantidade. Os comerciantes levam-lhes sal transportado no dorso de camelos, um mineral exportado de uma cidade chamada Sijilmassa” (Abu Hamid al-Andalusi al-Gharnati [1090-1170?] 1925, 243). 10 Vieira da Silva 1939, 58. O geógrafo al-Himyari também alude às muralhas de Lisboa e às suas várias portas (al-Himyari [1200-1399?] 1938, 22). 11 Uma equipa de arqueólogos de São Miguel de Odrinhas, liderada por Alexandre Marques Gonçalves, identificou um ribat na Ponta da Vigia, promontório na Praia das Maçãs (costa de Sintra), que remonta ao período romano (Gonçalves 2015). Quanto à fundação do castelo de Sintra, é situada por Catarina Coelho no século IX (Coelho 2000, 218). 12 Sobre as dinâmicas administrativas e de povoamento desta região no pós-1147: Mendes, 2011. 13 A toponímia é um dos elementos a atestar esta realidade (Rei 2005, 34-37). guerra pela fronteira 15 mais importantes estão longe. Sevilha encontra-se a uma semana por mar.14 Marraquexe está à distância de, pelo menos, umas cinco semanas.15 Pescadores e oleiros afadigam-se no arrabalde ocidental,16 derramado entre a muralha e o esteiro que entra pela parte baixa e forma uma barreira natural pantanosa.17 Esta zona, que se dedica à circulação fluvial e ao comércio,18 também acomoda os cristãos arabizados, os quais louvam a Deus na Igreja de Santa Maria de Alcamim. São guiados por um bispo,19 vestígio da outrora pujante organização eclesiástica, e atingem um número expressivo.20 No arrabalde oriental, ficam os banhos de água quente.21 A perceção do corpo e a pureza são noções presentes no espírito das populações e marcam a sua diferença face aos vizinhos cristãos. As abluções mantêm os seres humanos próximos da divindade.22 As águas das nascentes são ainda usadas para lavagem de lãs e curtimento de peles. Também nesta zona se cruzam pescadores, comerciantes e navios.23 O espaço nobre da cidade, a alcáçova, alcandorado numa colina abraçada por uma muralha a percorrer 1250 metros, com cinco portas e dezenas de torres,24 é habitado por muçulmanos. A entrada principal é conhecida como Bab al-Gharb, por abrir a ocidente. Fora da alcáçova, a do verbo jamaa, juntar, é o ,– المسجد الجامع – mesquita aljama,25 al-masjid al-jamia lugar onde se reúnem os crentes e o epicentro da vida urbana.26 Já tinha sido basílica. Testemunhou ininterruptamente a história da cidade desde a Idade

14 Extrapolação a partir das indicações de al-Zuhri. No seu compêndio de geografia, refere que a distância entre o centro do al-Andalus, a partir da costa, e o território cristão de Castela era de 13 dias (al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 171). 15 Tendo em conta as distâncias referidas por al-Zuhri para uma viagem por mar entre o Monte de Tariq (Gibraltar) e Nul, na costa atlântica (14 dias), e deste porto a Marraquexe, por terra (16 dias). Há ainda que contar com cerca de uma semana, por mar, entre Lisboa e o Estreito de Gibraltar (al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 170-171). 16 Bugalhão 2008, 386. 17 Bugalhão 2008, 383; Vieira da Silva 1939, 24. 18 Bugalhão et Folgado 2001, 114. 19 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 93. 20 Segundo a Morkinskinna, fonte nórdica que dá conta da razia contra Lisboa perpetrada pelo rei norueguês Sigurd Jórsalafari, por volta de 1109, a população cristã da cidade equivaleria em número à muçulmana (Morkinskinna [1220?] 2000). 21 Das termas, falam, por exemplo: al-Idrisi [1145-1166?] 1974, 172; De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 77. 22 Barros 2005, 1. 23 Amaro 2001, 165. 24 De acordo com a reconstituição de Vieira da Silva (1939, 11). 25 Mesquita principal de uma cidade. 26 Dikr Bilad al-Andalus [1300-1399?] 1983, 56-58. 16 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

do Ferro.27 Será catedral. Aqui se administra a justiça, aqui se aprendem os fundamentos do islão, a ondulante e paciente caligrafia e outras ciências do saber. No edifício público adjacente, decorado com paredes de estuque pintadas a vermelho,28 ficam os lava-pés, cujas paredes são também revestidas a almagre.29 Não longe da mesquita, uma cloaca de origem romana será, em outubro de 1147, o local escolhido por um habitante em desespero para esconder um tesouro de centenas de moedas.30 Não longe, uma atafona, de revolução em revolução, mói pacientemente o grão.31 Outras mesquitas mais pequenas dispersam-se pela cidade. São proprietárias de casas rodeadas por vinhas, olivais e figueirais.32 Colina acima, erguem-se as casas das elites. O pavimento é, por vezes, coberto a vermelho.33 A vida doméstica organiza-se em torno de um pátio interno, que conserva a privacidade da família.34 A alcáçova muralhada protege os dirigentes políticos, que, do alto da colina, vigiam o rio e o porto.35 Fazem as orações numa mesquita privada,36 protegem-se do mau-olhado com amuletos ornados de fórmulas mágicas, que penduram ao pescoço,37 e enterram os mais ilustres falecidos junto à zona residencial, recordados em lápides funerárias talhadas em escrita cúfica.38 À noite, as chamas dos candis iluminam as casas,39 em cujas mesas servem cerâmicas comuns e outras mais sofisticadas.40 As paredes das casas, em estuque, são elegantemente pintadas: motivos geométricos brancos sobre fundo vermelho ou o seu inverso cromático. Símbolos como o “cordão da

27 As escavações arqueológicas realizadas desde 1990, dirigidas por Clementino Amaro, Luís de Matos e Alexandra Gaspar, mostram estruturas de todos os períodos da história de Lisboa, desde a Idade do Ferro até às épocas romana, muçulmana e cristã medieval (Amaro et al. 1990-1999). 28 Amaro 1998, 64. 29 Matos 1994, 33. 30 Encontrado nas escavações conduzidas nos anos de 1990 por Clementino Amaro, José Luís de Matos e Alexandra Gaspar, e analisado por José Rodrigues Marinho em Relatório de Classificação das Moedas Muçulmanas Encontradas no Claustro da Sé. Processo S-3229 (Marinho 1990-1999). 31 Matos 1994, 33. 32 Azevedo 1958, 284. 33 Gomes et Sequeira 2001, 106. 34 Gomes et Sequeira 2001, 107. 35 Um bairro residencial foi identificado nas escavações realizadas por Ana Gomes e Alexandra Gaspar (Gomes et Gaspar 2001, 96). 36 Catálogo do Museu do Castelo de São Jorge 2009, 40. 37 Estes amuletos eram populares na Península Ibérica. Exemplares semelhantes ao que integra o espólio do Castelo de São Jorge foram encontrados, por exemplo, em Lorca e na região entre Córdova e Sevilha (Sánchez Gallego et Espinar Moreno 2006, 221-236). 38 Catálogo do Museu do Castelo de São Jorge 2009, 40-41. 39 Catálogo do Museu do Castelo de São Jorge 2009, 39. 40 Catálogo do Museu do Castelo de São Jorge 2009, 31. guerra pela fronteira 17 felicidade” entrelaçam-se em losangos.41 Uma profusão de nascentes no monte do castelo abastece de águas as elites,42 que habitam uma pequena cidade dentro da cidade, muralhada e edificada sobre a antiga acrópole romana.43 Deste ponto elevado, podem observar os vales irrigados que emolduram a cidade e de onde brotam produtos hortícolas.44 Nos arredores, grandes extensões de vinha são cultivadas em locais como Xabregas, Alvalade, Odivelas, Famões e Bucelas.45 Eis um retrato da al-Ushbuna almorávida, a cidade que Afonso Henriques cobiçou durante anos e pela qual soube esperar. Ao conquistá-la, encaixou a última peça do puzzle das linhas do Tejo. A 21 de outubro de 1147, com a queda da muralha que protegia os muçulmanos, já desprovidos de crença na vitória,46 foram criadas novas condições para dar seguimento ao processo de construção da identidade de um reino que, apesar de reconhecido em 1143 no âmbito do Tratado de Zamora e pelo papado em 1179, continuava a ser sobretudo uma incerteza. Falar de Portugal e de portugueses sem o longo processo de integração dos territórios do sul equivale a assumir uma visão teleológica do processo histórico, como se os eventos não pudessem ter ocorrido de outra forma, impulsionados por uma pretensa missão ou programa de um povo, chefiado por um líder mitificado: D. Afonso Henriques, o hiperbólico “pai fundador” da poética de Fernando Pessoa. Esta não passa de uma análise que já conhece o resultado, de uma dissecação post-mortem, se quisermos. Vários momentos desacreditam o postulado teleológico, dos quais os mais violentos talvez tenham sido os sucessivos avanços e recuos da fronteira ao longo da segunda metade do século XII. Evidentemente, não se trata aqui de noções como as de fronteira linear nem da sua causa mais direta, o Estado-nação, que constituem uma grelha de análise que não é a medieval, até porque nesta época está ausente a coesão cultural dentro do espaço que hoje conhecemos como Portugal. A massa humana que povoava o território era necessariamente heterogénea, composta por cristãos

41 Gomes et Gaspar 1996-2007, 21-22. 42 Catálogo do Museu do Castelo de São Jorge 2009, 33. 43 Torres 1998, 58. 44 Gonçalves 2012. 45 Fialho Silva et Lourinho 2015; Leitão 2011. 46 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 129. 18 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

peninsulares, moçárabes, muçulmanos e judeus, a que se juntaram, com a conquista de Lisboa, cristãos de outras proveniências, como a Galiza e o Norte da Europa. A partir de 1147, estes elementos vão entrando em processo de agregação no todo dominante. Como poeiras cósmicas a caminho de formar planetas, podemos observá-las a vaguear, chocar, fundir, erodir e explodir: guerra, violência, hesitações e o elemento aleatório combinaram-se para moldar este proto-Portugal. Em 1147, os portugueses eram uma possibilidade, o pinhal de naus a haver da imagem pessoana. Ou, evocando o princípio da incerteza, formulado por Werner Heisenberg, para grande ansiedade de quem encontra conforto intelectual na absoluta precisão dos resultados, demasiados agentes interferiam e transformavam o “objeto Portugal”. Em 1147, terminava meia centena de anos de domínio almorávida, que, no caso do Gharb al-Andalus, significara a presença entre as linhas do Tejo e as praias do atual Algarve. Cidades-chave como Santarém e Lisboa oscilaram entre as esferas de influência muçulmana e cristã neste breve lapso cronológico. Observar as basculações da fronteira e as transferências de poder entre 1093 e 1147 permite, em certa medida, compreender as especificidades da cultura de fronteira, húmus de onde emergem traços distintivos do moderno povo português, e as circunstâncias que conduziram à fundação de um país ultraperiférico. Esta é, pois, uma investigação filiada na história política, mas que não pretende ser uma “biografia” do Império Almorávida, estudado já, tanto na sua vertente magrebina como andaluza, por historiadores como Ambrosio Huici Miranda, Jacinto Bosch Vilá, Maria Jesús Viguera ou Vincent Lagardère, os quais, no entanto, deixaram sempre por responder as questões com interesse para o nosso território, a mais premente das quais corresponderá à identificação das condições que permitiram a fundação do reino de Portugal, na sua alteridade com o elemento muçulmano. Mesmo quando explora, por exemplo, as redes comerciais de que o movimento almorávida se apossou e que permitiram a constituição e sustentação de um império, a presente investigação fá-lo sobretudo de um ponto de vista político e com os objetivos de clarificar estratégias e de compreender a confederação na sua origem. O propósito também não consiste em examinar opções religiosas, exceto quando interferem na esfera política. guerra pela fronteira 19

Tão-pouco se trata de uma investigação sobre o Condado Portucalense e a fundação do reino de Portugal, temas já examinados por um vasto leque de historiadores, com destaque evidente para José Mattoso. Esta é, na verdade, uma investigação sobre a fronteira do Gharb al-Andalus, elemento a um tempo de separação e união entre blocos adversários, de transferências culturais e políticas, de fluidez e porosidade, e sobre as suas geografias entre 1093 e 1147; ou, se quisermos, uma análise de uma sucessão de contextos cristãos e muçulmanos que permitiram a fundação do reino de Portugal, um tópico menos estudado pela historiografia – quer portuguesa, quer estrangeira – que se interessa por temas nacionais. O ponto de observação, contudo, é ancorado de forma consciente no Gharb al-Andalus por uma derradeira razão. Foi, em grande medida, e com especial destaque para o intervalo entre 1144 e 1147,47 a evolução da conjuntura do território muçulmano a permitir a conquista de Lisboa, trave-mestra da construção de Portugal. Interessa estudar como se configurou, desenvolveu e desmoronou o bloco muçulmano, até as linhas do Tejo serem incorporadas no território de Portugal, quais os elementos que se conjugaram e empurraram os acontecimentos para aquele instante em que a muralha caiu e os muçulmanos de al-Ushbuna capitularam. Não obstante, é impossível observar, estudar e medir o “objeto fronteira” sem conhecer os agentes da sua transformação – Heisenberg de novo. A investigação pretende esboçar uma imagem política e militar mais nítida do período condal e dos primeiros anos do reino e do seu interlocutor a sul: daí o interesse pelo Império Almorávida. Os berberes do deserto do Sara foram uma das forças adversárias com que, sucessivamente, D. Henrique, D. Teresa e D. Afonso Henriques tiveram de contar, mas pouco se tem estudado sobre a sua presença no Gharb al-Andalus. As razões são diversas, desde a erosão da memória pela dinastia almóada, que se ocupou da destruição do legado almorávida, ao preconceito de algumas fontes muçulmanas, confirmado pela historiografia de índole arabista do século XIX. No seu dicionário biográfico de príncipes e poetas, Ibn Khallikan, fonte curda do século XIII, transmite esse preconceito, mais tarde reavivado por nomes como Reinhart Dozy e William Mac Guckin de Slane. Vejamos um exemplo.

47 Analisado mês a mês em: Lourinho 2010. 20 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Depois da grande vitória em Zallaqa contra as forças de Afonso VI – diz o autor –, Yusuf b. Tashfin, o líder almorávida, terá ficado impressionado com a magnificência do al-Andalus, dos seus edifícios e jardins, e das suas produções alimentares, riquezas inexistentes no Norte de África, “região habitada por rudes berberes e árabes selvagens e não civilizados”.48 Mas, na entrada deste dicionário dedicada exclusivamente a Yusuf b. Tashfin, contradiz-se. Aqui, Ibn Khallikan já não sanciona a imagem de um “rude berbere” que cobiça a riqueza andaluza, mas a de um homem justo, modesto e simples, preocupado com a licitude da origem dos bens de al-Mutamid, o celebrado rei-poeta da de Sevilha. E atribui a Yusuf o seguinte comentário: “O dinheiro com que adquiriu tudo isto deve ter pertencido a outros e tais somas não podem ter sido obtidas de forma justa; deve tê-lo conseguido com medidas iníquas e depois gastou-o em coisas vãs. De todas as futilidades, esta é a mais detestável.”49 Descrito de forma apaixonada tanto nas crónicas muçulmanas quanto cristãs, muita da informação sobre Yusuf é distorcida segundo a origem das fontes.50 Enquanto os textos cristãos e alguns muçulmanos procuram minimizar a importância do líder almorávida, enfatizando as suas alegadas crueldade, intolerância, arrogância ou mesmo estupidez, outros autores de origem islâmica chamam-lhe salvador do al-Andalus, descrevendo-o como um homem de altura média, pele escura e corpo magro – características físicas que remetem para um asceta ou, pelo menos, para alguém de hábitos frugais –, além de tolerante, profundamente religioso e piedoso, traços que reforçam a ideia anterior.51 É preciso deixar as paixões à margem, ou melhor, adotar a paixão pelos factos, essa plasticina a partir da qual se moldam as propostas interpretativas, muito embora, no caso de Yusuf, nem sempre seja fácil separar a verdade histórica da fantasia literária, devido a uma série de anedotas, lendas e cartas falsas atribuídas ao triunfador de Zallaqa.52 O preconceito, como se pode calcular, não é apenas reservado à dinastia almorávida, mas atinge também o mundo berbere em geral. Ao percorrermos

48 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:191. 49 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 4:457-458. 50 Decosta 1975, 480. 51 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 4:463; Decosta 1975, 480. 52 Decosta 1975, 480. guerra pela fronteira 21 o Kitab al-Tabaqat al-Umam, ou Livro das Categorias das Nações, composto por Said al-Andalusi, um polímata nascido e falecido no século XI das taifas, verificamos que os berberes são posicionados – a par, por exemplo, dos escandinavos e dos galegos, mas também dos negros – entre as categorias de “nações que não se interessaram pelas ciências”, designados como “povos a que Deus distinguiu particularmente com a turbulência e a ignorância, a que, na sua totalidade, marcou com a hostilidade e a violência”.53 Esta associação da violência ao povo berbere encontra-se também presente, por exemplo, na obra de Ibn Abdun, de Évora, que viveu a transição das taifas para o domínio almorávida: “Os berberes, quando tomados pela cólera, não hesitam em matar e ferir.”54 As gentes nómadas que atravessavam os desertos, estilo de vida que os almorávidas começaram por seguir antes de se submeterem a um processo de sedentarização, eram consideradas por Ibn Khaldun, historiador tunisino do século XIV, como “os mais selvagens seres humanos que existem”, colocados “ao nível de animais selvagens e indomáveis, e dos predadores”.55 Por outro lado, essas mesmas características levavam Ibn Khaldun a considerar que eram os povos mais corajosos, pois, ao contrário dos sedentários, não estavam habituados à facilidade nem à preguiça, e eram obrigados a prover à sua segurança.56 Revelavam, assim, tal como outras nações selvagens, mais tendência para alcançar a superioridade. Por conseguirem sobreviver em condições adversas graças ao espírito clânico, essa bravura e essa solidariedade tribal eram condições que permitiam a ascensão ao poder.57 Entre uma versão mais antagónica e outra mais favorável ao movimento almorávida, os arabistas do século XIX preferiram a primeira. Reinhart Dozy apresentou-se enquanto acérrimo crítico, como se estes homens do deserto fossem os causadores do declínio de uma ilustre cultura andaluza. Já a historiografia norte-africana, em que se deve incluir o egípcio Hussain Monés, o qual trabalhou já em meados do século XX, preferiu a segunda versão. Num artigo de síntese, publicado, em 1967, na Revista del Instituto Egípcio

53 Said al-Andalusi [1050-1070?] 1999, 44. 54 Ibn Abdun [1050-1120?] 1948, 61-62. 55 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 93. 56 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 94. 57 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 107. 22 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de Estudios Islámicos en Madrid, ao tentar equilibrar o desfavor historiográfico a envolver o movimento almorávida, em muitos momentos cai no extremo oposto. Confirmam a afirmação frases e expressões como “os ‘reizinhos’ da Espanha muçulmana eram tiranos pérfidos”, “luta dos almorávidas para salvar o islão andaluz” e “[Yusuf] decidiu remediar o mal da Espanha muçulmana de uma maneira que lhe pareceu mais eficaz e profunda: livrá-la dos seus príncipes perigosos”.58 Monés ainda se queixa da “atitude quase ilógica” dos andaluzes que não apoiavam os almorávidas, posição que atribui à inveja e ao orgulho que, na sua opinião, caracterizavam os muçulmanos da Hispânia.59 Se a informação que carreia para o artigo revela precisão e qualidade, é nas opiniões acrescentadas que mostra o seu fervor pelo poder almorávida, embora reconheça que as populações sob o seu domínio não viviam na mais perfeita das felicidades. Hussain Monés chega a afirmar que al-Mutamid, desterrado em Aghmat por Yusuf, após a conquista do al-Andalus, necessitaria da adversidade para o seu talento emergir e que os seus melhores poemas teriam sido escritos no exílio, como se ao chefe almorávida se devesse agradecer o génio literário do rei de Sevilha.60 A posição de Monés, de resto, parece mostrar como o debate ideológico proposto pelo islão almorávida continua no mundo muçulmano contemporâneo. Digamos que, sensivelmente, até Huici Miranda e Bosch Vilá, a historiografia relacionada com o Império Almorávida, quando existente, se desenrolou mais ao jeito de uma luta de fações apaixonadas pelos seus argumentos nem sempre plenos de objetividade. E, se Viguera confirma a tendência de cientificidade na abordagem ao tema, a obra de Lagardère cai com mais frequência do que desejável no campo apologético. A leitura crítica e comparativa das fontes e, quando existentes, as evidências arqueológicas procurarão obter para esta investigação um ponto de observação mais rigoroso e equilibrado. Personagens, contextos e, sempre que útil, espaços terceiros, como os reinos peninsulares vizinhos, cidades andaluzas fulcrais, caso de Sevilha e Badajoz, o Norte de África e potentados marítimos

58 Monés 1967-1968, 70-72. 59 Monés 1967-1968, 71. 60 Monés 1967-1968, 69. guerra pela fronteira 23 como Pisa, Génova e a Sicília normanda, serão chamados à análise, de modo a reconstituir, tanto quanto possível, o tabuleiro de xadrez do Mediterrâneo ocidental numa cronologia precisa: 1093 a 1147. No bloco cristão, a investigação começará por perscrutar um Afonso VI interessado primeiro no controlo das taifas e depois adversário do movimento almorávida. Percorrerá em seguida as tentativas do conde D. Henrique e de D. Teresa para definir os limites do Condado Portucalense. No início dos anos de 1130, deter-se-á na transferência de D. Afonso Henriques para a fronteira e, a partir deste ponto de inflexão, na organização de operações militares mais estruturadas. No campo muçulmano, é incontornável uma abordagem do percurso de Yusuf b. Tashfin. Já as campanhas de Sir b. Abu Bakr fornecem informações sobre a implantação da dinastia almorávida no Gharb al-Andalus. De 1109 a 1111, este general da tribo lamtuna, que integrava a cúpula do poder de Marraquexe, irá recuperar Lisboa e Santarém, e repor as linhas do Tejo na latitude que assumiam ao tempo da taifa de Badajoz. Também no começo dos anos de 1130, assistiremos a uma nova estratégia ao nível da organização da fronteira do lado muçulmano, com a instalação, em Córdova, do futuro emir de Marraquexe, o príncipe Tashfin b. Ali. A investigação não se limitará, no entanto, às circunstâncias da implantação e queda da dinastia almorávida. Pretende revelar algumas das formas de controlo do poder durante o meio século de permeio. Organização territorial, rede defensiva, cidades, comércio e esquadras navais são dimensões fundamentais para perceber os agentes muçulmanos que influenciaram a fronteira do Gharb al-Andalus na cronologia em apreço. Evidentemente, a investigação – e a sua expressão escrita – é uma construção. De forma provocadora, podemos chamar à discussão o conceito de romance de não-ficção, tal como o escritor norte-americano Truman Capote designou a sua obra de referência In Cold Blood. Não podendo a história medieval recorrer às entrevistas diretas – um dos instrumentos que Capote utilizou para traçar a sua narrativa –, os testemunhos são os que as fontes escritas proporcionam. Todavia, tratando-se de um estudo que se filia na história política, o discurso das fontes, de onde são extraídas as peças que permitem uma aproximação ao puzzle da fronteira do Gharb al-Andalus, emana 24 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

dos detentores do poder, das suas redes clientelares e de outras elites, o que contém um inevitável risco de distorção da realidade, a que acresce o sempiterno problema de um menor volume de textos sobreviventes até aos nossos dias e da angústia de desconhecermos a sua verdadeira representatividade no universo da produção. O perigo é, pois, duplo: informação exígua e orientada para um fim. E este fim tem uma tripla intenção, a saber, a legitimação e conservação do poder, e a transmissão da sua memória. Se a sociedade da informação – manto que envolve todos os aspetos do quotidiano no chamado pós-modernismo e o transforma naquilo que a semiótica chamou o hiper-real ou o “aperfeiçoamento” do real – não nos dá mais do que a ilusão de um rigoroso conhecimento dessa mesma realidade, analisar contextos que recuam centenas de anos com a mediação de um discurso que, ainda mais do que qualquer outro, é eminentemente parcelar, constitui uma tarefa, no mínimo, arriscada, embora necessária e desafiadora. A seleção da informação, tanto pelas fontes como pela investigação, é um ato consciente, que deita por terra outra ilusão: a de total objetividade, numa revisitação do postulado de Marshall MacLuhan segundo o qual o meio é a mensagem. Ou, de forma mais rigorosa, o meio também é a mensagem, a forma como se comunica – a obra – também comunica. Não só os documentos presentes num cartulário ou a informação que encorpa uma narrativa histórica contêm elementos de análise, como são significativas as ausências, os silêncios, as ênfases e as sínteses; no fundo, a intencionalidade da escolha no contexto dessa coleção de diplomas. Daí a necessidade de alargar o arquivo para uma acareação mais rigorosa da informação. Ao confrontar fontes cristãs – peninsulares, escandinavas, francas, inglesas, germânicas, itálicas e bizantinas –, muçulmanas e judaicas, a empresa é certamente de grande dimensão. Não é possível dominar todas as minudências de todos os géneros literários, todos os formalismos da produção, toda a graciosidade ou todo o ritmo da escrita – ou ausência deles – ou, sequer, todas as particularidades das línguas envolvidas, entre as quais o latim, o árabe e o hebraico. Mas há um ganho evidente no alargamento da base da informação e guerra pela fronteira 25 no plano da confirmação dos dados. Opuzzle ganha mais peças, conhecidas ou intuídas. O desenho nele traçado torna-se mais percetível. Surgem os contextos, entidades dinâmicas mais difíceis de caracterizar, mas inevitavelmente mais preenchidas de riqueza informativa e mais potenciadoras de equilíbrio na forma de observar. Não é possível tomar posição apenas por um dos lados da fronteira, como alguma historiografia tem optado por fazer. Não é possível entender, pelo menos razoavelmente, a realidade da sem a dialética entre cristãos e muçulmanos. Uma investigação sobre a geografia da fronteira do Gharb al-Andalus é subsidiária das fontes que recolhem os discursos políticos, já foi dito. Mas, tal como na Idade Média, não existem neste estudo fronteiras limitadas pela estanqueidade de uma linha. No topo da pirâmide social, posicionam-se os agentes da mudança, mas as camadas imediatamente abaixo também contribuem para essa transformação. Indivíduos que integram hostes e exércitos para raziar e conquistar, gentes que se mudam para a fronteira para povoar e cultivar, seres humanos capturados por guerreiros e que acabam em mercados de cativos ou povoações que sofrem pestes e fomes vêm muitas vezes à superfície do discurso que pretende glorificar as elites: a história política também é social. Basta estar atento e ouvir. São a massa, o húmus, o punctum, ou melhor, os puncta da fotografia da fronteira, os pontos para onde o olhar primeiramente converge, se pedirmos de empréstimo a Roland Barthes um conceito central na sua análise imagética; são aqueles que não partem quando cai o cume da pirâmide e a configuração dos poderes se altera. A história política não pode dissociar-se da sua componente social, não pode desinteressar-se de saber como viviam os seres humanos na fronteira entre cristãos e muçulmanos. As fontes mostram que se casavam e deixavam prole, que compravam e vendiam terras e casas, que procuravam assegurar o futuro dos filhos através de bens transmitidos por herança, que bebiam vinho e comiam pão, que trocavam mercadorias, que se esforçavam para salvar a alma quando pressentiam a proximidade do fim. Não muito diferente dos nossos dias, portanto. Mudam os contextos, as motivações dos seres humanos permanecem. Nada se inventa. O marketing político ou a comunicação política, conceitos 26 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

teorizados no século XX, eram já praticados, de forma generalizada, na Idade Média. A nomeação de exemplos é sempre injusta, mas destaque-se a obra de Abu Bakr b. Ali al-Sanhaji, conhecido como al-Baydaq, que compôs uma importante peça de propaganda nos primeiros anos do movimento almóada.61 Ou chame-se à argumentação toda a retórica em torno da legitimação de D. Afonso Henriques enquanto líder que se destacara nas artes da guerra e na defesa do seu povo e, assim, era merecedor da ratificação pela ordem do sagrado, ao ser agraciado com a visão de Cristo na véspera de uma batalha contra “cinco reis mouros”, uma narrativa fundacional – como lhe chama a antropologia cultural – de que ainda hoje somos subsidiários. Ou o que dizer sobre a atualidade de práticas como a exigência de dinheiro em troco de “proteção”, típicas do relacionamento entre Afonso VI e os reinos de taifas, ou do flagelo físico aplicado a qualquer candidato que pretendesse integrar o movimento almorávida, imposto pelo seu líder espiritual, Abd Allah b. Yasin? Mudam os contextos, permanecem as motivações dos seres humanos. Embora de grande riqueza, as fontes envolvem riscos que vão além da intencionalidade dos seus produtores. Outros patamares são de assinalar. O exemplo de Ibn Khallikan atrás evocado é bem elucidativo a este respeito: na entrada do seu dicionário que reservou a al-Mutamid e à conquista almorávida de Sevilha, entretém-se a criticar e a denegrir Yusuf b. Tashfin, mas, na parte que dedica ao líder berbere, não tem problemas em glorificá-lo, provocando uma contradição no interior da obra, que resolve com a fórmula “Deus é que sabe”, tão típica dos textos muçulmanos. Em maior ou menor grau, as fontes tendem a ser fontes de si próprias, quase como no axioma da teoria da comunicação que diz que toda a linguagem é sempre uma metalinguagem, um sistema que se explica a si mesmo, e este fenómeno é mais evidente nos textos muçulmanos do que nos cristãos. Dito por outras palavras, cada fonte muçulmana tende a recorrer à informação proporcionada por autores que a precedem. Trata-se, simultaneamente, de uma virtude e de um problema. Virtude, entre outros motivos, porque permite transmitir conhecimento, conservar obras ou excertos de obras mais antigas entretanto perdidas – como o al-Bayan al-Mugrib, de Ibn

61 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928, 75-224. guerra pela fronteira 27

Idari, faz em relação a Ibn al-Sayrafi – e como que reposicionar a datação das fontes, uma vez que um texto produzido, por exemplo, no século XIII, como o atrás referido, não é inteiramente desta centúria, contendo informações mais antigas. E problema porque nem sempre a seleção de informação é coerente, como no exemplo de Ibn Khallikan sobre as contradições a propósito de Yusuf, porque nem sempre as passagens decalcadas surgem de forma cronológica ou sequencial ou porque a fonte também está, com frequência, interessada num resultado específico. O mesmo Ibn Idari, que recorre igualmente a Ibn al-Qattan al-Marrakushi enquanto fonte, parece, por exemplo, acompanhar o percurso dos detentores do poder no al-Andalus, atribuindo, por isso, mais peso ao território peninsular central e a cidades como Toledo, Córdova, Granada e Sevilha, desinteressando-se pelos pormenores relacionados com o Gharb al-Andalus sem relação direta com os príncipes almorávidas. Se, por um lado, inclui o grande ataque a Coimbra em 1117, que foi liderado pelo próprio emir de Marraquexe, por outro, deixa de fora alguns detalhes importantes para o Gharb al-Andalus que surgem na obra original de Ibn al-Qattan, infinitamente menos conhecida, como é o caso daquela que é referida no meio cristão como a “Batalha de Ourique”, aqui descrita enquanto uma simples razia cristã contrariada pelas forças militares de Santarém e de Évora. Como encontrar, então, o território do Gharb nas fontes muçulmanas ou definir uma imagem mais rigorosa de Yusuf? Só há uma forma de fazê-lo: somando mais fontes à equação, de modo a esclarecer dúvidas e afinar perspetivas, até porque são frequentes os textos com vazios, truncagens, excertos que se perderam – o al-Bayan al-Mugrib, sobretudo na parte que se refere ao período almorávida, é exemplar a este nível –, que é preciso preencher com informação proveniente de outros textos. Entre os séculos X e XIX, de Ibn Hawqal, um geógrafo, a al‑Nasiri, um historiador interessado em contribuir para o nacionalismo marroquino: assim se posicionam cronologicamente as principais fontes muçulmanas utilizadas nesta investigação. Pelo meio, pontificam nomes essenciais, como al-Bakri, que é a referência para o início do movimento almorávida, ou Abd Allah b. Buluggin, que foi rei da taifa de Granada e viveu a queda do al-Andalus às mãos dos guerreiros do deserto do Sara, ambos os 28 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

autores do século XI. A transição desta centúria para a seguinte e, assim, das taifas para o período almorávida no al-Andalus, foi vivida por Ibn Bassam, cuja obra, de grande complexidade, nunca foi inteiramente traduzida: obrigado a fugir de Santarém devido aos ataques cristãos, instalou-se em Sevilha, cidade sobre a qual escreveu Ibn Abdun, de Évora, e ambos produziriam textos de referência para a compreensão da mesma conjuntura. No século XII, destacam- ‑se al-Idrisi e al-Zuhri, geógrafos, e Ibn al-Qattan e al-Baydaq, cronistas, o último dos quais fonte de referência para os primeiros tempos do movimento almóada. Na passagem do século XII ao XIII, são de referir nomes como Ibn al-Kardabus, um tunisino com provável ascendência andaluza, Ibn al-Athir, um oriental que passou algum tempo ao serviço de Saladino, e Ibn al-Wahid, uma fonte almóada com origem em Marraquexe. E chegamos ao século XIII, e à sua transição para o XIV, durante a qual viveram nomes essenciais, como Ibn Idari e Ibn Abi Zar, autores de duas das principais crónicas sobre o período almorávida, assim como o egípcio al-Nuwayri, de cuja pena saiu uma obra de síntese sobre os governantes do al‑Andalus e do Norte de África. Já no século XIV, encontramos o historiador tunisino Ibn Khaldun e o polímata andaluz Ibn al-Khatib, a que temos de acrescentar a obra anónima al-Hulal al-Mawsiyya. Sobre o geógrafo al-Himyari não há certezas absolutas, mas especula-se que terá vivido no século XV. De qualquer modo, a sua obra fornece importante informação para a investigação. Ainda desta centúria, mas já a transitar para a seguinte, merece referência o magrebino al-Wansharisi, cuja recolha de pareceres jurídicos (fatawa) dá testemunho de variadíssimos aspetos da vida quotidiana. Neste elenco resumido, há ainda espaço para mencionar o argelino al-Maqqari, que incorporou na sua produção a obra de Ibn al-Khatib e viveu entre os séculos XVI e XVII. Mas, quanto mais alargamos o arquivo, mais nos afastamos do mainstream, constituído pelas fontes traduzidas: as mais das vezes para espanhol, francês ou inglês; raramente para português; e muitas vezes apenas transpostas em parte para uma língua mais acessível. A tendência de traduzir somente os excertos das fontes que, numa interpretação mais superficial, interessam ao atual território português, ainda que seja compreensível do ponto de vista metodológico, faz guerra pela fronteira 29 perigar o verdadeiro entendimento sobre esse mesmo espaço. Se o pedaço relativo ao Gharb al-Andalus é extraído do todo da obra, como compreender o peso que esta lhe confere e a sua relação com o restante território? Ao aceder à fonte completa, é possível, muitas vezes, obter informações fundamentais, como esta investigação consegue provar, por exemplo, em relação às narrativas germânicas sobre a conquista de Lisboa, em 1147. Como é evidente, ao alargarmos o arquivo, também nos afastamos das coleções disponíveis em bibliotecas mais próximas. Para conseguir um grau aceitável de autonomia, é preciso adquirir ainda línguas de trabalho, como o árabe e o hebraico; é preciso pesquisar obras fora de fronteiras e assumir a tarefa de as traduzir quando estão ausentes edições transpostas para línguas ocidentais. Assim aconteceu com alguns textos em latim, árabe e hebraico. E, para passar este Bojador de um fluxo imenso e altamente instável de informação interessante, mas nem sempre utilizável, há que selecionar, editar, compreender os elementos que podem fazer sentido em conjunto. Depois, surge outra questão: a natureza – os géneros literários – das fontes muçulmanas e cristãs não é coincidente. Se, no primeiro caso, estamos sobretudo perante crónicas, obras de natureza geográfica, relatos de viagens e coleções de biografias ou de jurisprudência, no segundo, surgem – além das crónicas – histórias, apologias e documentos de doação ou compra e venda de propriedades. Entre a produção cristã, temos, desde logo, de desconfiar das crónicas e mais ainda dos textos hagiográficos – algo que já teríamos de fazer para os equivalentes muçulmanos –, por natureza todos eles redigidos para exaltar determinados atores ou poderes políticos. Tal não significa, porém, que daqui seja impossível extrair informação útil: a cautela não implica rejeição sumária. Ao invés, há que cruzar e confirmar informações, se possível, inclusive com fontes muçulmanas. Já os documentos de compra e venda, se bem que impossíveis de contornar, não fornecem dados de leitura direta: implicam um rastreio muitíssimo vasto e minucioso, que pode não render resultados práticos, ou seja, nem sempre proporcionam a informação procurada. Mas, com sorte e atenção, algumas pepitas podem brilhar no fundo das águas lamacentas. Harmonizar as informações extraídas destas fontes tão heterogéneas acrescenta 30 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

algumas vagas oceânicas ao perigoso cenário do Bojador. No total, foi possível retirar informação útil de cerca de 140 fontes escritas ou cartulários. Foram muitos mais os documentos analisados. Neste jogo da construção de contextos, como se depreende, não é possível ficar algemado a um único texto, a uma única versão dos factos. E chegamos a mais um ponto significativo. A moderna historiografia tem olhado para os factos com algum desprezo intelectual: já não interessa determinar o que aconteceu, mas produzir metodologias de análise, construir categorias, comparar conceitos, empacotar o real em pequenos frames reconhecíveis. Contudo, o aparato analítico não pode ser dissociado do material de análise. Primeiro, ainda não se conhecem todos os factos nem se sabe inteiramente como viviam os seres humanos, quais eram as suas motivações, quais as suas fragilidades, quais as suas forças. Ao contrário do que possamos ser tentados a pensar, ainda nem tudo foi dito: qualquer que seja o tema que lancemos à fogueira da discussão, há sempre aspetos a acrescentar, até porque, historiador após historiador, nenhuma fonte está totalmente lida e esgotada de interesse. As fontes são polissémicas e apresentam uma infinitude de perspetivas e combinações. Há que passar muitos anos na sua companhia para realmente conhecê-las, para que façam sentido, para que comecem a produzir sentidos. Depois, as fontes não funcionam segundo uma lógica de candid camera, registando os factos para a posteridade numa dimensão de “what you see is what you get”: é preciso interrogar, entrevistar, desconfiar, confirmar ou rejeitar, tal como Truman Capote procedeu para escrever In Cold Blood. A fim de compreendê-las, há que congregar um forte aparato hermenêutico, o mesmo se aplicando à posterior construção de hipóteses a partir desses factos extraídos. Não é possível problematizar no vazio. Mas, se as fontes não são candid cameras, os produtores de historiografia, por maioria de razão, também não podem ser candid photographers, ainda que empreendam um esforço intelectualmente honesto nesse sentido. Como decorre do princípio da incerteza de Heisenberg, o próprio ato de aprender, de medir, interfere no objeto estudado. Ou, por outras palavras, quando olhamos para esse objeto, transformamo-lo. Mesmo o grande mestre da fotografia Robert Frank, quando, nos eufóricos anos de 1950 do pós-guerra, registou em mais guerra pela fronteira 31 de 700 rolos de película a vida dos americanos tal como ela era, pobreza e discriminação racial incluídas, fez as suas escolhas conscientes. Esta revolução na forma de olhar, sem interferências nem mediações, visava um realismo para o qual o país não estava preparado, o que lhe valeu críticas de pouco patriotismo e o reconhecimento da sua obra monumental apenas uma década depois. O realismo foi a sua escolha. No extremo oposto, para compararmos de modo mais “científico”, coloquemos a obra de outro mestre: William Klein. Também nos anos de 1950, registou a vida nas ruas de Nova Iorque, onde nasceu. Ambos tinham origem judaica, Frank nascido na Suíça e Klein de pais húngaros, ambos trabalharam na mesma cronologia e com um objeto de estudo semelhante. Mas, ao contrário de Frank, Klein escolheu a interferência, o contacto visual e a provocação para obter uma reação, operando uma transformação consciente do objeto, técnica reprovável aos olhos, por exemplo, do grande mestre Henri Cartier-Bresson. Como resultado, os rostos dos fotografados bailam a pequena distância da objetiva, irados ou sorridentes, em composições por vezes desconfortáveis ao olhar. Resta acrescentar que também esta obra foi mal compreendida e apenas publicada mais tarde, em Paris. Entre o rigor de Frank e a provocação de Klein, onde decide o historiador posicionar-se para observar o objeto com a sua “câmara”? A escolha será certamente individual, mas há que dizer que o distanciamento do primeiro pode ser combinado com a proximidade do segundo. Como num zoom, existem diferentes distâncias focais, e a aproximação ou o afastamento mudam a escala de observação e aquilo que podemos captar de um determinado assunto. Na verdade, existem diferentes escalas de aproximação às questões, e uma análise de contextos, tal como propõe a presente investigação, necessita desses movimentos de zoom in e de zoom out. Contextos são como que exércitos de bonecas russas. Exigem mobilidade mental, conferida por um superzoom com capacidade para percorrer desde a largueza de vistas da grande-angular até ao pormenor registado pela teleobjetiva. É certo que objetivas de focal fixa tendem a oferecer mais luminosidade e a provocar menos distorção ótica nas imagens, mas conferem apenas um ponto de vista: é possível dominar o conhecimento 32 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

sobre uma fonte, o seu autor ou as circunstâncias da sua produção, porém, ainda que essa fonte seja fundamental, tal não será suficiente, por exemplo, para determinar o posicionamento do Império Almorávida no contexto do Mediterrâneo, a postura de D. Afonso Henriques no cisma dos anos de 1130 ou tão-pouco a queda de Lisboa em mãos cristãs em 1147. O historiador necessita destas mudanças de escala, sabendo que, de cada vez que observa o seu objeto de estudo, ainda que siga uma abordagem próxima do realismo pungente de Robert Frank, está a transformar esse objeto, está a contar a história à sua maneira. Precisa ainda de ter consciência de que, ao contrário do objeto de William Klein, que era reativo, respondendo à objetiva com a consciência de estar a ser transformado, irritado ou provocado, o material de estudo do medievalista, por definição, não tem capacidade para contrapor, para responder, ainda que possa mentir ou esconder. A capacidade de interagir é sobretudo uma prerrogativa do objeto observado pelo jornalista ou por um investigador de campo, como o sociólogo. Mas, com esta exceção, o recurso a Klein e à sua forma de estar continua a ser operativo para o historiador. E contar a história é também tomar uma decisão consciente sobre o modo de fazê-lo: se adotando um estilo mais académico e formal, se preferindo uma fórmula mais vívida e próxima da velocidade dos factos, os quais se agregam como átomos para produzirem contextos e depois se repelem para permitirem novas formações. A presente investigação optou pela segunda. Neste processo intencional de simplificação – que não é, de todo, simples –, alguns termos, como é o caso dos nomes das tribos berberes, foram aportuguesados ao longo do texto, outros mantidos na sua formulação original, em itálico, sobretudo quando correspondem a conceitos. A assimilação é uma tendência natural das línguas vivas. Quanto à norma que preside à redação, optou-se pelas bases do Acordo Ortográfico de 1990. Uma palavra igualmente para a norma usada na transcrição dos antropónimos e topónimos de origem árabe: neste caso, foi tomada como referência a Encyclopaedia of .62 Mas, por uma questão de facilidade tipográfica, e ainda de leitura, não foram marcados o hamza, o ayn,

62 Gibb et al. 1986-2004. guerra pela fronteira 33 as vogais longas e os sinais diacríticos que assinalam as consoantes enfáticas e aspiradas. Os diacríticos encontram-se igualmente ausentes nas referências em hebraico. Ao simplificar a forma, emerge a riqueza do conteúdo. A mensagem segue o seu rumo.

Transliterações

Consoantes Vogais longas Vogais breves não a َ a ا ى q ق z ز marcado ء u ُ u و k ك s س b ب i ِ i ي l ل sh ش t ت m م s ص th ث n ن d ض dj ج Árabe h ه t ط h ح w و z ظ kh خ não y ي marcado ع d د at / a ة gh غ dh ذ al / l ال f ف r ر

Consoantes não p / f ף פ t ט marcado א tz ץ צ y י b / v ב k ק k / kh כ g ג r ר l ל d ד

s / sh ש m ם מ h ה Hebraico t ת n ן נ v ו s ס z ז não marcado ע h ח

1093-1106 HOMENS DO DESERTO TORNAM-SE SENHORES DO AL-ANDALUS

1. O FIM DAS TAIFAS

1093. Hesitando entre as pressões do norte cristão e do sul almorávida, um homem temia pela vida. Com a sua escolha, iria determinar o destino de Santarém, de Lisboa e de Sintra, seu satélite.1 Umar b. Muhammad b. al-Aftas, conhecido pelo título califal (laqab) de al-Mutawakkil ou “o que confia em Deus”, optou pela proteção de Afonso VI, que se declarara Imperator Totius Hispaniae em 1077, depois da anexação de Navarra. Como garantia da sua integridade física, este poeta e cavaleiro2 entregou as referidas praças do Baixo Tejo ao imperador.3

Queda de Badajoz

A reação almorávida abateu-se sobre al-Mutawakkil na forma de condenação à morte. Cansado das promessas de lealdade dos senhores andaluzes para depois descobrir pactos de igual natureza firmados com o inimigo Afonso VI, Yusuf b. Tashfin decidiu destituir todos os reis de taifas, justificam Ibn al-Kardabus4 e Ibn Khaldun.5 O “emir dos muçulmanos e defensor da religião”

1 Al-Himyari refere-se a Sintra como “uma das cidades que dependem de Lisboa” (al-Himyari [1200-1399?] 1938, 138). 2 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 69. 3 Bosch Vilá 1998, 154. A Chronica Gothorum diz que Afonso VI conquistou estas praças em 1093 (Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 10), mas, tendo em conta que al-Mutawakkil foi executado por negociar com o rei cristão, é mais credível a versão de que as entregou sem dar luta. 4 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 128. 5 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:80. 38 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

não perdoou aquilo que considerava uma traição. Enviou a Badajoz um dos seus generais, Sir b. Abu Bakr, que conquistou a cidade e fez executar al-Mutawakkil e dois dos seus filhos. A crónica anónimaal-Hulal al-Mawsiyya avança mais pormenores: “[Yusuf] deu o governo do al-Andalus a Sir b. Abu Bakr e mandou-o sitiar Sevilha, com instruções para, de seguida, atacar Badajoz.”6 A chegada dos cavaleiros do deserto do Sara ao xadrez do al-Andalus fora precipitada pela política cristã de pressão militar e fomento da sedição junto dos pequenos e precários reinos muçulmanos (taifas). Entre os cristãos e os berberes, os muçulmanos do al-Andalus apelaram ao auxílio dos norte-africanos, que saíram vitoriosos da Batalha de Zallaqa, em 1086. A ajuda teria um preço elevado, com a perda dos territórios para os almorávidas, o exílio dos reis de Sevilha, de Granada e de Málaga e a execução dos senhores de Badajoz. Abd Allah b. Buluggin, último rei da taifa de Granada, deixou-nos um livro de memórias, al-Tibyan an al-Haditha al-Kaina bi-Dawlat Bani Ziri fi Gharnata, que Évariste Lévi-Provençal e Emilio García Gómez traduziram muito justamente sob o título O Século XI na Primeira Pessoa. Testemunha dos eventos que varreram o pulverizado al-Andalus das taifas e deram lugar à unificação do território sob o domínio almorávida, Abd Allah acabou os seus dias no exílio de Aghmat, onde al-Mutamid b. Abbad, o também deportado rei de Sevilha, comporia algumas das suas mais celebradas peças poéticas.7 A narrativa de Abd Allah traça um quadro de intriga, traição, conluio e jogo político a envolver o ocaso dos pequenos reinos do al-Andalus. Neste contexto de astúcia e traição, explica Abd Allah, o general almorávida Sir b. Abu Bakr, que sitiava Badajoz, conseguiu que a porta do castelo fosse aberta aos seus homens durante a noite. Um cenário que não espanta, se tivermos em conta que, de acordo com a mesma fonte, os habitantes da taifa já não respeitavam o soberano devido às hesitações e às falsas provas de submissão aos almorávidas.8

6 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 87. 7 Alves 1996; 1998, 241-273. 8 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 339. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 39

Prenderam o velho Ibn al-Aftas [al-Mutawakkil] e os filhos al-Fadl e al-Abbas, e apoderaram-se das consideráveis riquezas do soberano. Mais tarde, ao ver a grande baixeza de alma deste, Sir obrigou-o a entregar toda a sua fortuna e, como castigo por ter feito acordos com os cristãos e ter-lhes entregado castelos, condenou-os à morte. A seu mando, foram executados Ibn al-Aftas e dois filhos seus.9

Ibn Khaldun refere que o soberano de Badajoz e os filhos, que já tinham entregado Lisboa, Sintra e Santarém a Afonso VI, negociaram secretamente com o imperador para lhe cederem também a capital da taifa e que, por isso, Sir os mandou executar.10 Abd al-Wahid al-Marrakushi, por sua vez, refere que os companheiros de Yusuf b. Tashfin mataram a sangue frio al-Mutawakkil e os filhos al-Fadl e al-Abbas, pondo fim a um reino que protegia as gentes das letras, de que destaca Ibn Abdun de Évora, secretário do rei de Badajoz e autor de poesia de fino recorte.11 Também al-Maqqari, no século XVII, e recuperando a obra de Ibn al-Khatib, um cronista do século XIV, alude aos eventos de Badajoz. Segundo relata, Sir b. Abu Bakr pôs cerco à cidade, fez o rei prisioneiro e, algum tempo depois, executou-o, a ele e aos dois filhos.12 Abd Allah menciona ainda um terceiro filho, al-Mansur, que, segundo afirma, transferiu a sua lealdade para os cristãos, a quem ajudava a atacar o território muçulmano, devido ao ressentimento com o desfecho do pai e dos irmãos.13 Cerca de 20 anos mais tarde, as fontes irão, todavia, encontrá-lo no grande exército almorávida que atacou Coimbra.14 A solução para a taifa de Badajoz acabou, assim, por mostrar-se muito mais dura do que a reservada aos reis de Granada, de Málaga e de Sevilha, deportados para o Magrebe com as suas famílias, onde, contudo, viveram sob vigilância apertada. A justificar esta decisão de exceção estiveram as hesitações de al-Mutawakkil e a negociação que empreendeu com o imperador cristão. Em vez de garantir a sua sobrevivência, a entrega de Santarém, Sintra e Lisboa a Afonso VI foi, em grande medida, a causa da morte de mais este rei poeta.

9 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 341. 10 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 81. 11 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 69-70. 12 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:296-297. 13 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 342. 14 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 151. 40 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Pressão de Afonso VI sobre os reis do al-Andalus

A desagregação e o caos no al-Andalus foram fomentados pela política de imposição de às taifas, seguida por Fernando Magno, como relatam a Crónica de Paio Bispo de Oviedo15 e o Chronicon Compostellanum,16 e levada às últimas consequências por Afonso VI. Apesar de tudo, Fernando Magno não foi o primeiro líder cristão a impor tributo aos reinos de taifas. O condado de Barcelona, o reino de Navarra e o reino de Aragão precederam-no nesta exigência, podendo os primeiros pagamentos remontar logo aos anos iniciais da fitna, isto é, do colapso do califado de Córdova, portanto, à primeira década do século XI.17 Significa que o discurso das fontes, que pretende caracterizar Fernando Magno como o principal monarca com intervenção na política do al-Andalus, necessita de ser recentrado, de resto, à semelhança do que se irá passar com Afonso VI, também ele obrigado a disputar as parias e a influência política com os líderes cristãos levantinos. Seja como for, a exigência de tributo pelos cristãos, aliada à procura de proteção pelos muçulmanos, semeou a desestabilização entre os reis do al-Andalus, que, face à pressão, foram forçados a apelar à proteção almorávida. Ibn al-Kardabus acusa Afonso VI: “A sua ganância fortaleceu-se à custa dos muçulmanos. Na sua falsa conclusão, concebeu reclamar para si toda a península do al-Andalus, sem se preocupar em enviar algaras e contínuas incursões.”18 Ibn Khallikan relata que o monarca cristão se tornou tão poderoso que os reis de taifas foram obrigados a aceitar a paz e a pagar-lhe tributo. Explica que até al-Mutamid, que excedia todos os outros em território e poder, tinha de satisfazer as exigências do monarca cristão.19 Já o Chronicon Compostellanum, fonte cristã, como seria de esperar, regozija-se com esta política de imposição de tributo: “O rei Afonso subjugou à sua vontade

15 “Causou sempre muitos danos aos sarracenos, que lhes pagavam pontualmente, todos os anos, o tributo a que se tinham obrigado os seus reis” (Crónica Escrita por Pelayo Obispo de Oviedo [1125-1153?] 1852-1853, 2:529). 16 “Os de Saragoça e Toledo pagavam tributo ao rei Fernando Magno” (Chronicon Compostellanum [1126-1130?] 1913, 85). 17 Negro Cortés 2016, 69-71. 18 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 96. 19 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:189. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 41 todo o reino das Espanhas e tanto tempo inquietou as terras dos sarracenos até que conseguiu para si parte delas, conquistando Toledo e muitas outras cidades e castelos, e tornando a restante parte tributária.”20 Todas as fontes, cristãs ou muçulmanas, são bem evidentes quanto às estratégias do imperador no sentido de enfraquecer o já de si pouco homogéneo bloco muçulmano, para oferecer depois segurança em troca de riquezas. Yusuf b. Tashfin, em carta dirigida ao soberano da cidade de Mahdia, na atual Tunísia, diria no rescaldo da vitória em Zallaqa:

Ficámos a saber que os cristãos (Deus os elimine!) se tinham apoderado dos Estados e dos castelos do al-Andalus, obrigavam os senhores a pagar tributo, assolavam as suas regiões, destruíam as suas terras, uma depois da outra, sem temerem que um exército os atacasse nem dispersasse as suas hostes e desfizesse as suas fileiras, matando velhos e jovens e aprisionando mulheres e crianças. Recebemos cartas de toda a parte convidando-nos a passar ao al-Andalus, mas demorámos a decidir, até ao momento em que surgiu o decreto divino.21

Evidentemente, este excerto é uma peça de propaganda almorávida: Yusuf não necessitaria de grande convencimento para tomar a decisão de passar ao al-Andalus. Mas não deixa, ainda assim, de conter elementos verificáveis, que se tornam mais percetíveis quando lhes acrescentamos as informações provenientes de outras fontes. Por exemplo, Abd Allah b. Buluggin, rei de Granada, também desabafa razões contra Afonso VI no seu livro de memórias:

Enviou-me o seu embaixador, sendo esta a primeira vez que entrávamos em negociações. Tratava-se de Pedro Ansúrez, que me exigiu a entrega de um tributo. Neguei-me a tal, decidido a não fazer nada e pensando que nenhum mal teria a temer da parte de Afonso, por existirem entre nós as terras de um terceiro soberano, ou seja, as de Ibn Di-l-Nun [taifa de Toledo], pois não podia imaginar que alguém se aliasse a um cristão contra um muçulmano.22

20 Chronicon Compostellanum [1126-1130?] 1913, 89. 21 Lévi-Provençal et al. 1950, 125. 22 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 178. 42 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Abd Allah queixa-se de que, ao saber da sua recusa em pagar tributo a Afonso VI, no valor de 20 mil dinares, Ibn Ammar,23 vizir da taifa de Sevilha, subiu a oferta e prometeu 50 mil dinares a Pedro Ansúrez. Em troca, pretendia firmar um pacto pelo qual, depois de as respetivas forças militares se abaterem sobre Granada, todas as riquezas caberiam a Afonso VI, enquanto o território reverteria para a taifa de Sevilha. O plano foi mesmo para a frente. Com as hostes aliadas já na várzea de Granada, Abd Allah acabou por ceder e prometer tributo a Afonso VI. Na qualidade de mediador, surgiu a figura de Ibn Di-l-Nun, de Toledo, o qual, nas palavras do narrador, procurava também agradar ao imperador. Segundo Abd Allah, esperava que Afonso VI destruísse o reino de Granada, a fim de alargar os seus territórios para sul.24 Este episódio ilustra bem a extrema divisão entre os ricos, mas militarmente débeis reinos de taifas, condição que os deixava vulneráveis aos ataques. Da luta entre predadores, Afonso VI saiu derrotado em favor dos almorávidas. Mas, se as fontes muçulmanas em geral acusam Afonso VI, outras mais próximas dos interesses almorávidas não poupam críticas aos reis de taifas. Ibn al-Kardabus diz que se mostravam mais interessados na vida mundana do que em fazer a guerra, destacando como principais falhas o consumo de “bebidas alcoólicas e a propriedade de escravas cantoras”. Segundo se queixa, “cavalgavam o pecado e ouviam alaúdes” e, sempre que chegavam riquezas do Oriente, competiam entre si para as enviarem a Afonso VI, de modo a ganharem a sua boa vontade.25 Ibn al-Kardabus é violento e vai ao ponto de atribuir a Afonso VI as seguintes palavras, alegadamente transmitidas ao embaixador do rei de Sevilha:

Como permito a uns homens desordeiros que se designem pelo nome dos seus califas, reis e príncipes, como al-Mutadid [o que implora a proteção de Deus], al-Mutamid [o que se apoia em Deus], al-Mutasim [o defendido por Deus], al-Mutawakkil [o que confia

23 Poeta e companheiro de al-Mutamid, era originário de Estômbar, Silves (Alves 1998, 133-150). O seu valor literário é elogiado por Abd al-Wahid al-Marrakushi ([1224-1230?] 1955, 87-100). Ibn Khallikan também lhe dedica uma entrada do seu dicionário biográfico, destacando a rivalidade com Ibn Zaidun. Segundo o autor, eram os dois grandes poetas da época. Acrescenta que Ibn Ammar era detestado pelos príncipes do al-Andalus devido à sua veia satírica ([1256-1274?] 1843-1871, 3:127-130). Ibn Said al-Maghribi refere que nenhum outro poeta da Hispânia poderia compor uma qasida (tipo de composição poética) em que as belezas estivessem de tal modo equilibradas que o ouvido não pudesse esquecer um só verso, como aquela em que Ibn Ammar elogiava al-Mutamid ([1230-1286?] 1942, 155). 24 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 178-180. 25 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 96. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 43

em Deus], al-Mustain [o que implora a ajuda de Deus], al-Muqtadir [o poderoso com Deus], al-Amin [o fiel], al-Mamun [o fidedigno], e que nenhum desembainhe uma espada em sua defesa nem liberte o seu povo de injustiças e castigos, praticando publicamente a libertinagem e a iniquidade e frequentando constantemente lugares de prazer e música?26

Bastante minuciosa quanto aos títulos califais e insistindo num pretenso pecado associado à fruição da música, a crítica mais parece formulada por um doutor de leis muçulmano do que por um rei cristão, que certamente estaria pouco interessado na conduta ou na moral dos seus inimigos. A produção literária e a proteção das artes em geral, atribuíveis aos reis de taifas, por certo seriam falhas graves aos olhos de muçulmanos recém-convertidos, como os almorávidas. Outro aspeto que acrescentaria desconfiança aos guerreiros do deserto seria a delegação da governação em judeus. Ibn al-Kardabus generaliza e acusa: por estarem ocupados com os assuntos do mundo, os príncipes andaluzes abstinham-se de governar. Lamenta o surgimento de judeus em cargos de mordomos do palácio, vizires e secretários, o que, segundo afirma, tinha levado à degradação do governo.27 O rei de Granada, Abd Allah, vai ao encontro desta ideia, ao afirmar que, no território que dominava, vários elementos de uma família de judeus tinham servido no cargo de vizir desde os tempos do seu avô, o rei al-Muzzafar. Chega a acusar uma destas personagens, Josef b. Nagrela, de intriga e do envenenamento do seu pai, o rei Sayf al-Dawla.28 Mas a presença de judeus nas cortes das taifas era generalizada. Em Sevilha, por exemplo, al-Mutadid recorria a Josef b. Migash para missões diplomáticas, Isaac b. Abalia foi nomeado astrólogo da corte em 1069 e Abraham b. Mair b. Muhajir ocupou o cargo de vizir ao tempo de al-Mutamid.29 Foi nesta conjuntura conturbada que os almorávidas entraram no al‑Andalus. Tal como explicam as fontes, caso de Abd al-Wahid al-Marrakushi e de Ibn Khallikan, al-Mutamid foi o gatilho que precipitou esse evento,30 mas o relato do segundo parece claro quanto às circunstâncias: os reis de taifas

26 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 108-109. 27 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 97. 28 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 125-132. 29 Ayoun 1988, 7. 30 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 75; Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:189-190. 44 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

temiam os almorávidas e só receando a pressão dos cristãos se dispuseram a pedir auxílio aos homens do deserto.31 Abd al-Wahid al-Marrakushi acrescenta que, em 1086, o rei de Sevilha cruzou o mar com destino a Marraquexe, onde foi honradamente recebido pelo emir almorávida e viu o seu pedido de auxílio aceite. Yusuf reuniu um exército de 7000 cavaleiros e “grande número de infantes” entre as tribos berberes e atravessou o estreito de Gibraltar partindo de Ceuta rumo a Algeciras.32 Al-Himyari também relata como al-Mutamid terá incitado os restantes reis de taifas a escreverem aos almorávidas pedindo ajuda.33 Ibn al-Khatib aponta no mesmo sentido: o rei de Sevilha chamou Yusuf para fazer a guerra santa no al-Andalus, onde os cristãos se tinham apoderado de Coria e de Toledo.34 As informações são confirmadas por Ibn Khaldun. Segundo relata, Ibn Abbad convidou o emir dos muçulmanos a deslocar-se ao al-Andalus para proteger o islão, no que terá sido apoiado pelos doutores de leis e membros da elite. Isso não significa que os reis andaluzes não temessem as ambições de Yusuf, como fica claro pela leitura de al-Maqqari (que retoma Ibn al-Khatib), o qual diz que, submetido o Magrebe, a intenção do emir era atacar o al-Andalus.35 Mas, antes de fazer a guerra santa aos cristãos, Yusuf b. Tashfin precisava de garantir Ceuta, cidade controlada por al-Muizz b. Saqut, da tribo dos bargauatas, rival dos almorávidas e da taifa de Sevilha pelos mesmos motivos de controlo das rotas comerciais que ligavam o Magrebe ao Mediterrâneo.36 Para esta empresa, o emir almorávida teve a ajuda da frota de um al-Mutamid talvez convencido de que tal atitude lhe garantiria o seu favor. Estava dado o mote para a Batalha de Zallaqa, que havia de custar uma pesada derrota a Afonso VI, em 23 de outubro de 1086.37 Uma fonte cristã tardia, o Chronicon Mundi, da autoria de Lucas de Tui, também se interessa pela chegada dos almorávidas ao al-Andalus, mas transmite uma versão repleta de erros grosseiros. Vale a pena ler a prosa que o bispo de

31 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 4:150. 32 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 100-101. 33 Al-Himyari [1200-1399?] 1938, 107. 34 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 143. 35 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:275. 36 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:77; Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 56-57. 37 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 106. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 45

Tui deixou fluir da pena em meados do século XIII, já os almorávidas tinham sido substituídos pelos almóadas no domínio do Magrebe e do al-Andalus:

Com o acordo de Benabeth [al-Mutamid b. Abbad], [Afonso VI] chamou às partes da Hispânia gentes bárbaras ultramarinas, conhecidas como almorávidas e almóadas. Pensava o rei Afonso que as ditas gentes lutariam com os outros sarracenos e os destruiriam. Mas os ditos sarracenos almóadas submeteram os sarracenos de Espanha, parte pela espada e parte por acordo, e impuseram-lhes o seu rei, a que, de forma honrosa, chamam miramolim. Feito o acordo entre sarracenos, hispanos e africanos, os ditos bárbaros causaram graves moléstias ao rei Afonso e negaram-lhe qualquer tributo. Assassinaram o rei Benabeth, que era secretamente cristão e tinha amor e era próximo do rei Afonso.38

Rivalidades no controlo dos tributos

Apesar de uma intervenção direta no al-Andalus e de ser grandemente responsável pela pressão que forçou o pedido de auxílio formulado pelos reis de taifas aos almorávidas, não podemos pensar que Afonso VI detivesse o monopólio dos tributos muçulmanos – já vimos que o seu pai, antes de si, também não era o único soberano a impor parias aos adversários políticos de religião contrária. A Historia Roderici, igualmente designada por Gesta Roderici Campidocti, que descreve alguns eventos da vida de Rodrigo Díaz de Bívar, é bem elucidativa desta realidade. O epíteto de Cid, corruptela do árabe saiyyd ou “senhor”, revela o respeito devotado a esta personagem controversa, produto de uma fronteira onde as lealdades nem sempre tinham que ver com fatores religiosos. A crónica narra a exigência de tributo por Afonso VI aos reis de Sevilha e de Córdova. Mas, continua a fonte, o rei de Sevilha, al-Mutamid, era inimigo do monarca de Granada, Abd Allah b. Buluggin. Em certa ocasião, os grandes de Castela juntaram-se ao rei de Granada e prepararam as suas hostes para irem contra Sevilha. Ao ter conhecimento dos planos, Rodrigo Díaz terá enviado cartas aos cristãos para desistirem. Não sendo bem-sucedido, o próprio Rodrigo atacou os cristãos, fez prisioneiros entre as elites, manteve-os durante

38 Lucae Tudensis [1238?] 2003, 305-306. 46 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

alguns dias, espoliou-os e deixou-os partir. Depois, dirigiu-se a Sevilha, onde al-Mutamid lhe entregou o tributo devido a Afonso VI, e foi confirmada a paz entre ambos os monarcas.39 Esta passagem prova que o autointitulado imperador de toda a Hispânia não controlava a ação dos seus vassalos, que também procuravam tirar partido da riqueza fácil das taifas. O texto não indica uma data, mas estaríamos em cronologia anterior à entrada de Afonso VI em Toledo, que ocorreu em 1085. Outros exemplos refletem o relativo insucesso de Afonso VI em dominar totalmente os assuntos relacionados com o al-Andalus, sobretudo no que respeita ao Levante. O avô de D. Afonso Henriques tinha, desde logo, de contar com o reino de Aragão e com outros potentados locais, como o condado de Barcelona, que, apesar de submetido ao primeiro, perseguia interesses políticos distintos. As fontes produzidas nestas regiões também procuram atribuir preeminência aos seus líderes. A Crónica de San Juan de la Peña, de origem aragonesa, hiperboliza a dimensão do rei Sancho Ramírez na política ibérica: “Tinha os castelhanos tão oprimidos que poder algum lhes conseguia trazer remédio. Então, o rei de Castela rogou a Abderraman, rei de Huesca, para lhe fazer a guerra, violando as tréguas que existiam entre ele e o rei de Aragão.”40 Testemunha da rivalidade entre Aragão e Afonso VI, esta crónica assegura que Sancho Ramírez tanto pressionou a cidade de Huesca que o rei muçulmano lhe prometeu tributo, mas que, em segredo, também o fez a Afonso VI, após este se ter apossado da cidade de Toledo.41 Pagaria, assim, a ambos os senhores. Se, no episódio do ataque dos magnatas castelhanos a Sevilha, o Cid apareceu ao lado de Afonso VI, nem sempre assim seria. A Historia Roderici relata um episódio de 1083 em que o imperador foi contra os interesses de Rodrigo, protetor da taifa de Saragoça. Quando o governador de Roda se rebelou contra o rei de Saragoça, o último pediu a intervenção de Afonso VI, a quem prometeu o castelo do primeiro. Mas, explica a Historia Roderici, era uma armadilha: “Cavaleiros e soldados a pé, que guardavam o castelo, atingiram os

39 Historia Roderici [1180-1199?] 1990, 49-50. 40 Crónica de San Juan de la Peña [1342?] 1969, 55. 41 Crónica de San Juan de la Peña [1342?] 1969, 58. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 47 magnatas do imperador com pedras, e muitos nobres morreram. O imperador voltou aos seus domínios muito triste.”42 A rivalidade entre Afonso e Rodrigo torna-se evidente à medida que a Historia Roderici evolui. Concebida para enaltecer o Cid, a fonte refere inveja e sentimentos negativos da parte de Afonso VI.43 Descontado o tom de uma narrativa composta para glorificar um herói, não deixa de conter alguns elementos factuais, uma vez que Rodrigo Díaz competia com o imperador pelas riquezas das taifas, e os laços de vassalagem que os uniam fluíam consoante a conjuntura. O Cid tanto atacava cristãos como muçulmanos. Vejamos um exemplo. Pouco depois de Toledo cair nas mãos de Afonso VI, seguindo uma ordem do rei muçulmano de Saragoça, Rodrigo Díaz avançou contra Aragão, destruindo, saqueando e fazendo cativos.44 Logo de seguida, empreendeu uma algara para castigar o irmão do rei de Saragoça, que controlava as regiões de Lérida e Tortosa. A fonte refere que provocou grande destruição, sobretudo nas montanhas de La Morella. Não houve nesta terra, acrescenta, casa que não destruísse nem bem que não levasse.45 O irmão do rei de Saragoça apelou para o auxílio de Sancho de Aragão. Porém, segundo a fonte, as forças aragonesas tiveram de fugir, perseguidas pelo Cid, que acabou por capturar muitos notáveis, entre os quais o bispo Raimundo da Dalmácia (prelado de Roda), assim como algumas figuras de destaque de Aragão, Navarra, Leão, Castela, Galiza e do Condado Portucalense. Depois de espoliá-los, libertou-os e deixou-os seguir para as suas terras.46 A presença de notáveis de todas as regiões cristãs peninsulares vem confirmar o apelo dos rendimentos do saque numa época em que o al-Andalus se encontrava em ebulição. Ibn al-Kardabus explica, de resto, que todos os anos os cristãos atacavam, fazendo cativos, saqueando e destruindo. Neste final do século XI, a todos os principais agentes do bloco cristão acabavam por chegar benefícios a partir das taifas. É igualmente disso exemplo uma carta

42 Historia Roderici [1180-1199?] 1990, 55-56. 43 Historia Roderici [1180-1199?] 1990, 56. 44 Historia Roderici [1180-1199?] 1990, 56. 45 Historia Roderici [1180-1199?] 1990, 56-57. 46 Historia Roderici [1180-1199?] 1990, 57-58. 48 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

outorgada pelo rei Sancho Ramírez de Aragão, entre 1086 e 1094, pela qual doava ao Mosteiro de la Sauve-Majeure, na região francesa da Gironda, o dízimo dos tributos que recebia das localidades de Ejea e Pradilla, ambas na zona de Saragoça, ou seja, uma instituição eclesiástica cristã beneficiava de rendimentos coercivamente coletados em meio muçulmano. Na fronteira, os aliados de hoje eram, com frequência, os oponentes de amanhã e vice-versa. A única fidelidade que Rodrigo Díaz parece manter entre 1081 e 1086, quando Afonso VI pôs cerco a Saragoça, é para com a taifa sediada nesta cidade, talvez por manter liberdade para desenvolver as suas operações e concretizar escolhas políticas. O al-Bayan al-Mugrib sugere ligações entre o Cid e os Banu Hud47 ainda em 1094, a propósito dos eventos relacionados com a tomada de Valência pelo primeiro, operação para a qual apelou ao auxílio de Afonso VI.48 Outro exemplo de lealdades voláteis chega-nos através de um documento aragonês, que coloca as hostes do rei Sancho Ramírez, em 1083, entre as localidades de Monzón e Pomar de Cinca, não longe de Saragoça. O motivo era a punição das razias perpetradas pelos muçulmanos de Saragoça e Lérida.49 Lembremos que, mais tarde, o rei muçulmano de Lérida iria apelar para a proteção de Sancho Ramírez de Aragão contra Rodrigo. Não existia, pois, uma noção do outro fundada em motivos ideológicos rígidos, mas uma interpretação flutuante, segundo interesses conjunturais – veja-se ainda os casos de Geraldo Geraldes ou de al-Mansur, filho do defunto rei da taifa de Badajoz, que oscilaram entre os blocos cristão e muçulmano de acordo com conjunturas específicas. Eram estes programas políticos ajustados ao momento que permitiam, de resto, a recuperação das relíquias de santos, centrais no contexto das peregrinações e, assim, dos rendimentos obtidos pelas instituições eclesiásticas. Por exemplo, em 1063, os restos mortais de Santo Isidoro foram trasladados de Sevilha para Leão, fruto da negociação de Fernando Magno

47 O termo “Banu” refere-se à descendência de uma determinada personagem – no caso, Hud. O termo “Banu Hud” deve, por isso, ser entendido como uma família, que até poderia constituir-se como um ramo tribal. Por exemplo, os Banu Ifran, no Magrebe, constituíam um ramo dos zanatas. 48 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 82-84. 49 Arco 1947, 3:301. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 49 com a taifa abádida;50 e, em 1080, idêntica operação teve como alvo as relíquias de Santo Idalécio e Santiago, seu discípulo, transferidas da Almeria dos Banu Sumadih para o Mosteiro de San Juan de la Peña, no reino de Aragão.51

Fronteira dinâmica

As interações entre cristãos e muçulmanos em finais do século XI, traduzidas nos acontecimentos políticos que precipitaram a substituição do sistema de taifas pelo Império Almorávida, são altamente devedoras de uma eficaz rede comunicacional. A uma ação de um dos blocos, corresponde quase automaticamente uma reação do oponente, uma dinâmica bem patente, por exemplo, na Historia Roderici. Também o Liber Feudorum Maior, mesmo não passando de um cartulário, com os eventos não organizados de forma narrativa e, aparentemente, desconexos, transmite-nos o fio condutor da ação e reação: uma malfeitoria que exige reparação ou um roubo que requer restituição são exemplos bem evidentes de uma realidade que, em tempos de conflito e instabilidade, parece sempre evoluir à velocidade da luz. A rapidez da resposta faz supor o recurso a uma tessitura de agentes da comunicação, cujas informações permitem analisar intenções políticas, posições geográficas, estratégias, embustes e astúcias dos opositores. No século XX, Marshall McLuhan formulou um conceito que se tornou referência quanto à teoria da comunicação: o de aldeia global, resultante das transformações sociais ao nível planetário devido à introdução dos meios de comunicação de massa. A aldeia, no caso peninsular medieval, é local ou regional, mas o conceito pode ser regressivamente aplicado. A sociedade de fronteira corresponde igualmente a um meio ligado por estreitas relações políticas, sociais e económicas, onde quem controlava a informação obtinha vantagem na conservação do poder. Mensageiros, batedores, embaixadores ou espiões, distribuídos por redes defensivas, ocupavam necessariamente o terreno, embora nem sempre as

50 Lucae Tudensis [1238?] 2003, 291; Pérez de Urbel 1995, 275-277. 51 Crónica de San Juan de la Peña [1342?] 1969, 56. 50 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

fontes os mencionem – um dos raros exemplos é a referência, no al-Bayan al-Mugrib, aos espiões que, a partir de 1130, o governador-geral do al-Andalus, Tashfin b. Ali, pôs no terreno para controlar as fronteiras com os cristãos52 –, e constituem os canais que ligam os emissores aos recetores quase em tempo real e lhes permitem tomar decisões. A esta circulação da informação chamou Hermenegildo Fernandes o “elemento quase invisível”, pelos exíguos traços que deixa nas fontes, mas que é imprescindível em sociedades de fronteira, por natureza militarizadas.53 O equilíbrio instável entre os muçulmanos pagadores de tributo e os cristãos fornecedores de proteção precipitou-se com a pressão crescente de Afonso VI e o surgimento dos almorávidas na equação, que mudariam a face da Península Ibérica. Mas, apesar de toda a pressão sobre as taifas, cuja eficácia dependeria também destas redes de comunicação, Afonso VI não evidenciava grandes ambições militares antes da conquista almorávida do al-Andalus. Depois da recuperação de Toledo, em 1085, e de Santarém, Lisboa e Sintra, em 1093, ou seja, asseguradas as linhas do Tejo, mais pela imposição, chantagem e negociação do que através de operações militares de reconquista, apostou sobretudo em campanhas de razia e desgaste. Nem mesmo Toledo foi conseguida com uma operação tradicional de conquista. Ibn Khaldun explica que Afonso VI hostilizou os reinos muçulmanos e tirou proveito das dissensões entre os mesmos para pôr cerco à cidade, cujo soberano acabou por render-se devido à fome e à doença que atingiram a população, com a promessa de ajuda da parte do imperador na conquista de Valência, projeto que veio a pôr em prática em 1086.54 Embora a narrativa das fontes tenda a construir a imagem de Afonso VI enquanto um grande conquistador, a teoria não resiste a uma análise mais minuciosa. Aliás, o próprio Abd Allah b. Buluggin, rei da taifa de Granada, raciocina na mesma direção:

O que queria era apoderar-se das nossas capitais, mas, tal como tinha dominado Toledo pela progressiva debilidade do seu soberano, assim pretendia fazer com os outros territórios. A sua linha de conduta não era, pois, sitiar nenhum castelo nem perder tropas

52 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 186. 53 Fernandes 2002, 57. 54 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:76-77. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 51

ao ir contra uma cidade, sabendo que era muito difícil tomá-la e que se lhe oporiam os seus habitantes, contrários à sua religião, mas impor-lhes tributos ano após ano e tratá-los duramente com toda a violência até que, reduzidos à impotência, caíssem nas suas mãos, como tinha acontecido a Toledo.55

Neste contexto, podemos suscitar a possibilidade de não ter sido o rei de Badajoz a oferecer os castelos da Marca Inferior (Lisboa, Sintra e Santarém) de livre vontade, mas Afonso VI a exigi-los. Na posse de Toledo desde 1085, estas eram as praças que lhe faltavam para dominar as linhas do Tejo. A introdução à al-Dakhira fi Mahasin Ahl al-Jazira, de Ibn Bassam de Santarém, revela algumas pistas. O autor começa por explicar que a obra “procede de um homem com o peito lastimável e cuja tranquilidade e alegria de espírito desapareceram entre as mudanças do tempo”. Acrescenta que, com alguns companheiros, teve de deixar a sua cidade rumo a Sevilha, tolhido pelo medo, depois de lhe terem sido arrebatadas todas as riquezas – tanto as que tinha recebido em herança como as que conseguira adquirir –, devido às incursões dos cristãos, os quais, nas suas palavras, destruíram a sua vida fácil e desafogada.56 Mas Ibn Bassam não refere a data em que tal ocorreu. Mohamed Meouak e Bruna Soravia indicam que, em 1110, Ibn Bassam se deslocou a Córdova para estudar e, nesse ano, iniciou a referida obra, dedicada ao grande senhor almorávida do Gharb al-Andalus,57 sem dúvida, Sir b. Abu Bakr. Se, em 1110, Ibn Bassam se encontrava afastado de Santarém devido à intervenção cristã, que operou “mudanças no tempo”, e a cidade reverteu para Afonso VI em 1093, podemos concluir que terá deixado a sua região por força desta transferência de poder. O relato de Ibn Bassam mostra que os cristãos assolavam a região com frequência, mas, como sabemos que só com a entrega, voluntária ou não, foram capazes de tomar posse da cidade, verificamos que estas operações militares não surtiriam o efeito desejado e que Santarém dispunha de capacidade defensiva. Por outro lado, estas algaras também não são suficientes para explicar a expropriação de bens de que fala Ibn Bassam: já a passagem da cidade para o domínio cristão sim. Tal situação

55 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 230. 56 Ibn Bassam al-Shantarini [1060-1147?] 1898, 213-214. 57 Meouak et Soravia, 1997, 221. Outros autores defendem que Ibn Bassam pode ter iniciado a obra um pouco antes, por volta de 1108 (Baker 1986, 77). 52 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

mostra que a aquisição de Santarém por Afonso VI terá conduzido à perda de influência das elites muçulmanas e à fuga de algumas personagens. Em 1093, Sevilha, possível destino desses êxodos, já se encontrava na posse de Sir b. Abu Bakr, a quem Ibn Bassam chama “a estrela que trouxe a felicidade e o poder”.58 Noutra passagem, não lhe poupa qualificativos, designando-o como “o mais sublime” e um “tesouro”.59 Sem capacidade para tomar cidades como Toledo, Santarém, Lisboa e Sintra pela via militar, ou talvez sem interesse num desgaste extremo das suas forças, Afonso VI terá optado pelo caminho da habilidade política, uma astúcia que lhe valeu durante largos anos o controlo de parte do fluxo de riquezas das taifas, tesouros que também têm de ser considerados na perspetiva dos almorávidas. Ao conquistarem o próspero território do al-Andalus, os berberes passariam a associá-lo às grandes rotas comerciais que já dominavam em África. Uma delas ligava Almeria ao rio Níger via Orão, na atual Argélia.60 As duas cidades estariam estreitamente ligadas durante o período almorávida, com a primeira a assumir preponderância na geopolítica do Mediterrâneo ocidental, disputando a navegação e os rendimentos do comércio com potentados navais como Pisa, Génova e a Sicília normanda, situação que terá ditado a sua aniquilação em 1147 por um Afonso VII coligado com estas cidades italianas e com o condado de Barcelona.61

Equilíbrio instável no bloco cristão

Na segunda metade do século XI, a instabilidade e a violência não eram, contudo, um exclusivo do al-Andalus: também permeavam o quotidiano cristão e, de certo modo, correspondiam à “normalidade”, a um equilíbrio altamente instável que constituía o dia-a-dia das populações. Como sublinha Francisco García Fitz, a guerra correspondia a um elemento inato da sociedade, a qual

58 Ibn Bassam al-Shantarini [1060-1147?] 1898, 214. 59 Ibn Bassam al-Shantarini [1060-1147?] 1997, 1:388. 60 Gibb et al. 1986-2004, 7:586. 61 Lourinho 2010, 37-57 e 67-74. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 53 era obrigada a adaptar as suas estruturas, as suas formas de organização e os seus mecanismos relacionais à omnipresença do conflito militar. E, embora tal condição não fosse diferente da realidade do resto da Europa, a guerra contra o islão fazia da Hispânia um território marcado pela excecionalidade.62 Façamos um périplo pelas várias regiões peninsulares através de alguns exemplos significativos. Desde logo, há a destacar o conflito resultante da divisão da herança de Fernando Magno pelos três filhos. Como explicam a Crónica de Paio Bispo de Oviedo63 e a Historia Silense,64 o imperador atribuiu Leão a Afonso, Castela a Sancho e a Galiza a Garcia, saindo o primeiro claramente beneficiado com os territórios mais apetecíveis. A guerra entre os três irmãos conduziria à morte de Sancho e de Garcia e à anexação dos seus territórios por Afonso. A Crónica de Paio Bispo de Oviedo refere que, logo depois, o monarca enviou embaixadores a Roma a pedir que fosse introduzido no seu reino o rito gregoriano,65 certamente moeda de troca para a legitimação do alargamento dos seus domínios. A reforma gregoriana, decretada no Concílio de Burgos de 1085, pouco depois da recuperação de Toledo por Afonso VI, seria mais um motivo de violentos conflitos. Coimbra resistiu à adoção das novas regras, em especial até à morte do alvazil Sisnando Davides, no mesmo ano de 1091 em que a Sevilha de al-Mutamid caiu em mãos almorávidas. Mas o tom dos enfrentamentos entre seguidores do rito moçárabe e os clérigos da reforma, estes sobretudo de origem franca, ainda demonstrava grande intensidade ao tempo do conde D. Henrique, razão pela qual se viu obrigado a ceder privilégios aos cavaleiros de Coimbra, por via do foral de 1111.66 Neste contexto de busca pelo poder, Afonso VI não só teve dificuldade em impor-se, como se via frequentemente envolvido em conflitos com os seus súbditos pela posse de propriedades e seres humanos: além de terras, as elites possuíam homens e as suas famílias. Num documento de 1079, Afonso VI, já

62 García Fitz 2016, 26-27. 63 Crónica Escrita por Pelayo Obispo de Oviedo [1125-1153?] 1852-1853, 2:529-530. 64 Historia Silense [1109-1118?] 1921, 87. 65 Crónica Escrita por Pelayo Obispo de Oviedo [1125-1153?] 1852-1853, 2:530. 66 Mattoso 2007, 28-29; Herculano et al. 1861-1917, Leges et Consuetudines 1, 3:348-350. 54 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

autointitulado “imperador de toda a Hispânia”, concedeu ao Mosteiro de São Vicente de Oviedo largas dezenas de homens seus (“homens da minha criação”), com as respetivas esposas, proles e propriedades.67 Um segundo documento, exarado em agosto de 1094, corresponde a um acordo de divisão de colonos para trabalhar as terras, firmado entre o mosteiro e Hermenegildo Rodrigues, representante das famílias livres de Brañes, a norte de Oviedo.68 Em Leão e Castela, quatro anos antes, a classe dos infanções insurgiu-se a propósito de herdades e vilas que possuía e que o imperador afirmava ter atribuído à diocese de Oviedo.69 As desavenças prolongaram-se, agora com o bispo de Leão. Um documento de 1093 reflete disputas entre este e vários infanções pela posse de algumas herdades, vilas e homens, levadas junto de Afonso VI para que o imperador lhes desse solução.70 Mais exemplos demonstram a propriedade da terra e dos homens, e as disputas – neste caso, latentes – daí resultantes. Um documento de 1071, integrado no cartulário do Mosteiro de Eslonza, confirmou a doação de Afonso VI à irmã D. Urraca de várias herdades na ribeira de Estola e do Mosteiro de Cisterna, com todos os seus habitantes, presentes e futuros.71 Destaca-se ainda a doação que, em 1084, o conde Gomes fez ao Mosteiro de San Salvador de Oña de um homem chamado André, com todas as suas propriedades e tudo o que viesse a adquirir.72 Resumindo, apesar de uma estratégia de centralização do poder, em que a adoção do título de imperador constituiu um passo importante, sobretudo porque decorrente da anexação de Navarra, e do esforço das fontes para comporem uma imagem de Afonso VI enquanto todo-poderoso, a verdade é que continuava a deparar-se com focos de instabilidade. O poder, na prática, não se encontrava tão centralizado assim. No Levante, onde o quadro social era muito diferente, com a existência de uma verdadeira estrutura feudal, os conflitos entre senhores e os seus vassalos, de que se destacam ataques às possessões alheias e quebras do dever de lealdade, estão bem patentes no Liber Feudorum Maior. Em causa, encontram-se

67 Cartulario de San Vicente de Oviedo [1200-1225?] 1929, 87-90. 68 Cartulario de San Vicente de Oviedo [1200-1225?] 1929, 120. 69 Flórez 1793, 38:29-31. 70 Flórez 1787, 36:40-43. 71 Hinojosa 1919, 27-28. 72 Hinojosa 1919, 34-35. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 55 sobretudo os condados de Pallares, Urgel e Barcelona. Cartas de convenção, acordos, sentenças, retratações de faltosos perante o seu senhor e juramentos de fidelidade, muitas vezes com a necessidade de confirmação através de documentos posteriores, dado o incumprimento das promessas, mostram bem o grau de conflituosidade em torno da propriedade da terra e da rede castral, disputada ao centímetro.73 Significa que, aqui, o poder se encontrava ainda mais pulverizado do que em Leão e Castela. No contexto da Marca Superior, jogavam-se também os interesses de Santiago de Compostela, que tirava partido do avanço da fronteira para sul. Um documento de 1098, cujo titular é Pedro I de Aragão, mostra como, na vontade de agradar a uma diocese detentora das relíquias do Apóstolo de Cristo, as elites cediam benefícios nas proximidades da taifa de Saragoça à igreja galega. Para remédio da sua alma e da dos seus parentes, o rei concedeu as casas e respetivas herdades em Huesca que tinham sido de Ibn Abu Talib e acrescentou várias propriedades na mesma região.74 A generosidade do rei continuou em 1099. Sempre em intenção da alma própria e da dos pais, doou a almuinha que tinha sido de Ibn Barbicula, no termo de Barbastro, norte de Saragoça. Concedeu ainda uma vinha junto à porta de Alfege, na mesma cidade de Barbastro.75 Os bens atribuídos localizavam-se no caminho francês de Santiago e, com algum grau de probabilidade, destinar-se-iam a suprir as necessidades de alimentação e pernoita dos peregrinos. Justamente da Galiza, chegam mais testemunhos da detenção de propriedades e homens e da permanente necessidade de constituir listas e inventários, prova, também nesta região, de uma conflituosidade associada à posse de bens fundiários. Um inventário atribuído a uma faixa cronológica entre 1038 e 1057, realizado pelo Mosteiro de San Julián de Samos, Lugo, elenca todos os homens e famílias da região de Lózara ligados por juramento de fidelidade à instituição e que lhe pagavam um rendimento.76 Testemunhos desta situação surgem ainda entre a documentação do Mosteiro de Celanova, igualmente na

73 Liber Feudorum Maior [1192-1194] 1945. 74 Lucas Álvarez 1998, 206-207. 75 Lucas Álvarez 1998, 205-206. 76 Lucas Álvarez 1986, 270-274. 56 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Galiza. Um diploma sem data enumera os habitantes de entre os rios Deva e Eires e determina quem deveria pagar ao mosteiro ou diretamente ao rei.77 Outro, de 1077, estabelece o mesmo tipo de divisão, mas para as terras de Pereiras, Noalla e Espiñoso, acrescentando que o acordo vinha dos tempos de Fernando Magno.78 Um terceiro, datado de 1102, aplica-se às terras de Límia.79 Os referidos documentos demonstram sobretudo um foco nos assuntos internos, como a fixação de jurisdições, pagamentos de impostos, doações às instituições eclesiásticas para salvação da alma e confirmação de privilégios por parte do poder régio. Não se sente a fronteira de forma evidente nestes corpora documentais, o que não traduz, porém, a sua ausência. Está lá. De forma subtil. Os servos muçulmanos, danos colaterais das algaras e razias, uma realidade, de resto, com contornos semelhantes no outro lado da fronteira, engrossavam as forças de trabalho de unidades de produção como os mosteiros. Um exaustivo diploma, realizado no Mosteiro de Sobrado, Galiza, em finais do século XI, dá-nos conta da genealogia dos servos sarracenos, propriedade da instituição. Ficamos, por exemplo, a saber que um irmão Paio Ribeira levou do Condado Portucalense um Ali, pedreiro de profissão. Este muçulmano tomou mulher e tiveram filhos e filhas. O documento desenrola-se noutros exemplos e mostra que, ao fim de algumas gerações, os descendentes dos primeiros muçulmanos, já convertidos e usando nomes cristãos, casaram entre a população local, ainda que tivessem mantido a sua condição de servos. No entanto, a conversão não era obrigatória: diz o documento que Ali Gordo e Fátima Reganada “morreram pagãos”.80 Eduardo de Hinojosa, de resto, chama a atenção para a existência de cativos na documentação navarra e aragonesa dos séculos XI e XII, designados como “mesquinhos”, termo derivado do árabe miskin e que significa “miserável” ou “pobre”.81 A apropriação destas expressões por uma língua romance constitui mais um testemunho da permeabilidade da cultura na fronteira. Os indivíduos

77 Andrade 1995, 1:206-207. 78 Andrade 1995, 1:209-210. 79 Andrade 1995, 1:217. 80 Hinojosa 1919, 43-45. 81 Hinojosa 1904, 523. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 57 em causa, como nota o autor, eram alienados juntamente com as propriedades a que estavam alocados. Apresenta como exemplo uma doação, efetuada em 1088, por García Blasco ao Mosteiro de San Juan de la Peña, de um palácio, com as suas herdades e os seus “mesquinhos”. O próprio rei Sancho Ramírez, em 1093, doou o Mosteiro de São Januário ao Mosteiro de Montearagón, com todos os seus “mesquinhos”.82 Os documentos multiplicam-se. Os mesquinhos pagavam ao senhor, que poderia ser o rei, uma parte do produto do seu trabalho, cobrável sob a forma de arrobas de trigo ou aveia, galinhas ou pães.83 Já os “exaricos”, também designados a partir de um termo com origem árabe, a significar “companheiro” ou “parceiro” sharik( ), poderiam ser colonos livres ou servos da gleba, mas em ambos os casos estavam obrigados ao tributo. Os “mesquinhos”, no geral, usavam nomes cristãos, enquanto os “exaricos” conservavam a onomástica muçulmana.84 A situação não era muito diferente no Condado Portucalense, e o final do século XI foi marcado pela perda de Lisboa e Sintra para os almorávidas e pelos conflitos em Coimbra decorrentes da tentativa de substituição do rito moçárabe pelo romano, fruto da reforma gregoriana em curso. Uma fronteira em ebulição constituía, por outro lado, uma oportunidade económica por via das razias e do produto do saque, que com frequência decidiam o destino dos seres humanos. Além de bens e animais, estas operações militares de desgaste – empreendidas por ambos os lados adversários – destinavam-se a fazer cativos, cujo desfecho mais frequente era a venda em hasta pública por uma cidade ou comunidade. Muitos forais previam a transação no mercado, e este tipo de comércio, equiparado ao do gado, difundiu-se por todo o território. A importância social do prisioneiro conferia prestígio ao proprietário, pelo que os mais distintos, no geral, eram entregues aos soberanos e os restantes divididos pelos captores: muitos acabavam a trabalhar no serviço doméstico ou na agricultura. Poderiam ser libertados por decisão do senhor, pelo cumprimento de um certo número de anos de trabalho, por troca com cativos em território adversário, pela conversão

82 Hinojosa 1904, 524. 83 Hinojosa 1904, 525. 84 Hinojosa 1904, 527-528. 58 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

à fé cristã ou por meio de pagamento. Por exemplo, através de um conhecido documento de 1116, o cavaleiro de Coimbra João Gondesendes85 e a mulher, Ximena Forjaz, libertaram os escravos convertidos Martim Mendes e Pedro Pais e atribuíram-lhes o usufruto vitalício de uma pequena propriedade, que deveria reverter para a sé após a morte de ambos. Mandaram também que, quando falecessem, todos os servos que estivessem nas suas propriedades fossem libertados, e que os muçulmanos – os não convertidos – fossem vendidos para resgatar cristãos aprisionados.86 A revenda, como vimos no caso do muçulmano levado do Condado Portucalense por um monge galego, era habitual e muito lucrativa. O cativeiro correspondia, pois, a um negócio com intermediários, que procurava o maior rendimento possível. Daí que, como explica Francisco García Fitz, a manutenção da vida do cativo se apresentasse como a opção mais lucrativa: vender o indivíduo, beneficiar do seu trabalho ou negociar a sua libertação eram bem mais interessantes do que simplesmente executá-lo.87

Conquista de Coimbra e reorganização do território

Na Marca Inferior, a conquista de Coimbra por Fernando Magno, em 1064, obrigou à reorganização e ao povoamento do território, com a propriedade a mudar de mãos e com um paulatino processo de concentração fundiária nas instituições eclesiásticas, quer por doação, quer por herança ou aquisição. A preocupação com a salvação da alma faz reverter para a Igreja Católica os mais variados tipos de bens, com destaque para os imóveis. Nesta cronologia, além da Sé de Coimbra, destacam-se os mosteiros do Lorvão e da Vacariça enquanto polos agregadores. As elites muçulmanas dão lugar às cristãs. Procuremos caracterizar um pouco as primeiras. Um documento de compra e venda de uma propriedade no termo de Coimbra exarado no Mosteiro do Lorvão e que

85 Segundo José Mattoso, seria aparentado da família de Marnel e adquiriu inúmeras propriedades nos vales dos rios Vouga e Paiva (Mattoso 1995, 1:181). Estas aquisições são, de resto, atestadas pelo Livro Preto da Sé de Coimbra. 86 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Maço 3, no. 22. 87 García Fitz, 2017, 207. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 59 faz parte do espólio do Cabido da Sé, embora tenha redação em latim, inicia-se com aquilo que parece ser uma adaptação da basmala muçulmana e é datado pela Hégira. Se tal não bastasse já para qualificá-lo como interessante, este diploma elucida ainda sobre a origem de algumas famílias da região de Coimbra no período taifal.88 A expressão “In deo nomine et eius misericordia”, com que o documento arranca, assemelha-se a uma interpretação da fórmula muçulmana “Em nome de Deus, o clemente, o misericordioso”. A data é indicada de forma híbrida: “Era CCCCVII mense Ragab”. Ora o mês de Rajab do ano de 407 corresponde a um período entre 4 de dezembro de 1016 e 2 de janeiro de 1017. Encontramo-nos, assim, no período taifal, cerca de 20 anos depois do repovoamento de Coimbra que se seguiu às incursões militares de al-Mansur b. Abi Amir em nome do califado de Córdova e menos de meio século antes da conquista por Fernando Magno. No documento, podemos detetar várias nisab (plural de nisba), marcas de origem no mundo muçulmano, no geral ilustre, que um moçárabe não ostentava. Todas as personagens que testemunham este ato jurídico são, seguramente, muçulmanas e de origem árabe. O título al-Husayni, grafado Alhuzani, aparece uma vez, sendo que a personagem que o usa é a primeira a ratificar o documento. Verdadeiro ou não, remete para a linhagem do Profeta, mais concretamente para o seu neto Husayn b. Ali. A nisba que se segue é Alamaui e surge associada a sete indivíduos citados no documento. Cyrille Aillet propõe corresponder a uma deturpação notarial de al-Ummawi ou “o omíada”.89 Al-Lahmi, na forma Allahumi, está presente três vezes. Trata-se de uma nisba bem conhecida, associada à antiga tribo árabe de lahm, usada por várias personagens que participaram na conquista do al-Andalus e que o governaram, incluindo-se no último apartado os abádidas de Sevilha.90 O título al-Qaysi, que aparece no documento uma vez, grafado Alkaizi, é também muito conhecido e estudado, remontando a outra ilustre tribo proveniente da Península Arábica que interveio na conquista andaluza. Já o designativo al‑Muradi aparece associado a um indivíduo, sob a forma Almuradi,

88 ANTT, Mosteiro de Santa Maria do Lorvão. Antiga Coleção Especial. Eclesiásticos. Maço 1, no. 15. 89 Aillet 2009, 81. 90 Abu-l-Qasim Muhammad b. Abi Amr Abbad b. Muhammad b. Ismail al-Lahmi al-Zafir, conhecido como al-Mutamid, o rei-poeta, foi uma das figuras que ostentaram esta nisba (Bin Sharifa 1999, 5). 60 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

e remete para outra tribo árabe, com raízes no Iémen. Finalmente, al-Zuhdi, que surge uma vez como Azuhdi, corresponde a um tipo de nisba que não indica a origem, mas que envia para um qualificativo, neste caso, “o eremita” ou “o asceta”, sendo que zuhd é um conceito que obriga à renúncia dos prazeres do mundo e do desejo carnal. O Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis possui um documento muito semelhante, apenas com pequenas variações. Por exemplo, está ausente a fórmula usada para abrir o diploma, possivelmente a imitar a basmala. A ordem dos confirmantes é também diferente. Mantém-se, no entanto, a datação pela Hégira.91 Ambos os documentos, que revelam soluções miscigenadas, traduzem a venda, por “Mohomad filius de Abderahman nepotus de Hasit”, de uma herdade em Vilela, Coimbra, ao Mosteiro do Lorvão. Recebera-a de seu avô (provavelmente materno; de contrário, seria referido no seu nasab ou ramo patrilinear), identificado como “Abderahmanfilius de Abdela Ibn Hasit”. A última personagem pode, pois, ter obtido as terras no período de repovoamento de Coimbra após o ataque de al-Mansur b. Abi Amir de 987. As designações de origem al-Amawi e al-Qaysi aparecem ainda noutro documento datado pela Hégira, também remontando ao mês de Rajab de 407 e incidindo sobre nova propriedade em Vilela, vendida ao Mosteiro do Lorvão.92 De resto, o Liber Testamentorum contém mais exemplos de documentos datados pela Hégira, ainda que não referindo o mês islâmico, alguns dos quais posteriores à reconquista de 1064. Tais documentos revelam, pois, a presença de personagens associadas às mais destacadas tribos árabes entre as elites de Coimbra no período taifal, o que sugere um cuidadoso processo de repovoamento em finais do califado omíada, pelo qual a ligação ao poder central se faria através de famílias que participaram na conquista do al-Andalus. Apesar de periférico, o território talvez fosse entendido como importante o suficiente para estas figuras aqui se instalarem ou, pelo menos, com ele manterem algum tipo de ligação.

91 Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis [1116-1117] 2008, 1:fol 8-8v. 92 Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis [1116-1117] 2008, 1:fol 7v-8. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 61

Outro documento do Liber Testamentorum fornece pistas para a autonomização de Coimbra na sequência da queda do califado de Córdova. Dando conta da venda de uma propriedade ao Mosteiro do Lorvão, está datado da seguinte forma: “Ano segundo do reino árabe. Era CCCCX”, dado aparentemente confirmado por “Era dos romanos. Milésimo quinquagésimo sexto”.93 Ora, o ano da Hégira de 410 desenrolou-se entre 9 de maio de 1019 e 27 de abril de 1020. Ao descontarmos 38 anos a 1056, chegamos a 1018, o que nos revela que o autor do documento cometeu um erro na datação, pois não existe uma coincidência de datas entre o calendário da Hégira e o gregoriano. Tal apenas aconteceria se, em vez de 1056, o documento referisse a era de 1057, ou seja, o ano de 1019. De qualquer modo, este erro não é impeditivo de um raciocínio quanto a uma possível autonomização de Coimbra. Descontando dois anos à data muçulmana, caímos num intervalo entre 1017 e 1018. No caso da data cristã, recuamos a 1016. Como tal, será seguro afirmar que o início desse “reino árabe” terá ocorrido algures entre 1016 e 1018. Resta saber se a cidade e a região se terão autonomizado sob a forma de um pequeno reino e foram conquistadas no momento em que as taifas mais poderosas no plano militar começaram a aglutinar as mais débeis (como aconteceu, por exemplo, a Silves, que reverteu para Sevilha) ou se a independência ocorreu em bloco, isto é, enquanto região integrada no reino de Badajoz. As fontes não são claras, mas podemos explorar hipóteses. A taifa de Badajoz, de acordo com a parte do al-Bayan al-Mugrib relativa à queda do califado omíada e com o Kitab Amal al-Alam, de Ibn al-Khatib, constituiu-se por iniciativa de Sabur al-Saqlabi, um liberto de al-Mansur Ibn Abi Amir.94 À partida, poderíamos afirmar que a indicação “reino árabe” apontaria para a possibilidade de uma autonomia de Coimbra enquanto taifa: Sabur não era árabe, pelo que não poderia estar relacionado com um pretenso reino com sede nesta cidade. Trata-se, no entanto, de um raciocínio muitíssimo frágil, que nos obriga a procurar alternativas.

93 Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis [1116-1117] 2008, 1:fol 11-11v. 94 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 196-198; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1956, 183. 62 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Sabur era leal ao poder omíada e, com a sedição que marcou os últimos anos do califado (fitna), a qual começou em 1009 com a deposição de Hisham II, é natural que se tenha tornado independente.95 No entanto, o califa afastado conseguiu regressar ao poder por um breve período, entre maio de 1010 e o mesmo mês de 1013,96 pelo que Sabur pode ter também retomado a obediência a Córdova. Mas, em 1013, Hisham II foi removido por Sulayman al-Mustain com a ajuda de contingentes berberes. Acontece que, nesta época conturbada, também al-Mustain durou pouco no poder. No ano de 406 (21 de junho de 1015 a 4 de julho de 1016), foi assassinado por Ibn Hammud, que se instalou em Córdova. Nesta conjuntura, diversas personagens reclamaram o poder, e em 1018 Ibn Hammud foi igualmente assassinado.97 Entre 1016 e 1018 – o intervalo a que chegámos com a análise documental –, muitos conflitos se sucederam, mas, em qualquer dos cenários, afastados de Córdova os legítimos califas, é possível que Sabur se tenha desligado do poder central e reclamado um reino para si, com cabeça em Badajoz. Seguindo uma proposta mais conservadora, e à falta de mais evidências, dir-se-ia que faz mais sentido que Coimbra se tenha tornado independente no contexto da taifa de Badajoz e que as elites árabes referidas no documento se tenham mantido primeiro debaixo da influência amirida, com Sabur, e depois aftássida, quando aquele foi removido do poder pelos antepassados do malogrado rei al-Mutawakkil, decapitado pelos almorávidas no final do século XI. Tenha Coimbra sido ou não cabeça de taifa, no momento da conquista de 1064, a configuração política é clara. O alcaide, um liberto de Ibn al-Aftas de Badajoz, de nome Rando, negociou a sua proteção em troca da entrega da cidade a Fernando Magno, embora tenha acabado decapitado por ordem do seu antigo senhor.98 Ou seja, não há margem para dúvidas de que, à data da conquista, Coimbra pertencia a Badajoz. De acordo com a tradição cristã, a cidade foi conquistada por Fernando Magno devido à intercessão de Santiago

95 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 60-65. 96 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 89-103. 97 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 106-111. 98 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 198-199. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 63

Matamouros.99 O Chronicon Complutense, por sua vez, diz que se rendeu ao fim de seis meses, pressionada pela fome.100 A conquista de Coimbra viria, como é evidente, alterar as configurações do poder, desde logo com a transferência de propriedades fundiárias de muçulmanos para cristãos, e Sisnando Davides foi o epicentro da mudança. Fernando Magno, e depois Afonso VI, concederam-lhe poderes para distribuir terras e outros bens conforme considerasse mais adequado, e outorgar o direito de transmissão por herança.101 Tal como sublinha Mário Barroca, tratou-se também de um período importante para o reforço defensivo, sobretudo das praças de Soure e de Penela, projeto em que Sisnando desempenhou igualmente um papel central.102 Os poderes que recebeu permitiram-lhe ainda criar uma rede de vassalos, minuciosamente estudada por Leontina Ventura.103 A Historia Silense explica algumas circunstâncias da vida de Sisnando, levado em criança por tropas da taifa de Sevilha, região onde viveu e foi educado:

Fez cônsul de Coimbra [Fernando Magno] um certo Sisnando, ilustre pelos seus conselhos. Foi raptado de Portugal pelo rei da província da Bética, Ibn Abbad. Trabalhou em muitas empresas e chegou a tanta claridade que era mais estimado pelo rei bárbaro do que todos os outros no seu reino, a quem nunca desiludiu em conselho ou empresa. Deixou o rei de Sevilha e pôs-se ao serviço do rei Fernando, com as suas habilidades.104

O exemplo de Sisnando só vem confirmar a ausência de rigidez na forma de encarar o outro, que observámos, por exemplo, no caso de Rodrigo Díaz de Bívar. Demonstra ainda que desde cedo se iniciou uma política de consolidação do território conquistado em 1064. Que maior incentivo poderá haver do que o de habitar, trabalhar e retirar rendimentos de propriedades ou infraestruturas que se sabe poderem ser deixadas aos filhos? A estratégia de povoamento de Sisnando passava, como é evidente, pela articulação com as

99 Lucae Tudensis [1238?] 2003, 284-287. 100 Chronicon Complutense [1065-1099?] 1913, 1:57. 101 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 23-27. 102 Barroca 1994, 30 e 34. 103 Ventura 2006, 37-52. 104 Historia Silense [1109-1118?] 1921, 77. 64 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

instituições eclesiásticas, que acabavam por retirar benefícios dessa “parceria”. Por exemplo, em abril de 1080, Sisnando confirmou ao abade Pedro a herdade de São Martinho do Bispo, anteriormente doada para povoamento e valorização.105 Em maio de 1085, Afonso VI garantiu a cidade de Toledo para o bloco cristão, e a posição de Coimbra na estratégia de controlo da fronteira saiu reforçada. A pedido dos habitantes, o imperador confirmou a distribuição de bens e os foros até então decididos por Sisnando.106 A terra estava cada vez mais nas mãos dos povoadores, que viam os seus privilégios atualizados. A fundação do Cabido da Sé de Coimbra pelo bispo Paterno e pelo alvazil Sisnando,107 atestada num documento datado de abril de 1086 – que Pierre David e Torquato de Sousa Soares dizem ser falso, mas que Maria do Rosário Morujão considera uma narração fundamentalmente verdadeira –, embora fosse uma inevitabilidade face à reforma gregoriana e à restruturação diocesana que esta trazia subjacente, também pode, de forma indireta, confirmar que as estratégias de povoamento começavam a coroar-se de sucesso. A dimensão do capítulo, com a obrigatoriedade de atribuir rendimentos às dignidades que o compunham, dependia igualmente da capacidade de gerar rendimentos, não apenas em meio urbano, como também no contexto rural. No momento fundacional, o número de cónegos ainda não atingiria os 30 estabelecidos pelo futuro bispo D. Gonçalo quando reorganizou esta estrutura eclesiástica, em data incerta, mas que terá ocorrido entre 1109 e 1130.108 No entanto, podemos já contar sete elementos no momento fundador, número que não estava limitado: a seguir ao nome dos membros iniciais, é acrescentada a fórmula “et cuicumque vobis placuerit, qui in societate vestra permanere voluerit”. Aliás, podemos até formular a hipótese de a necessidade de circunscrever o número de cónegos a 30 estar relacionada com esta fórmula, que deixava tudo em aberto. Para manter uma tal estrutura, a terra teria de ser trabalhada, de modo a produzir frutos, gerar rendimentos e possibilitar a recolha de impostos. Maria do Rosário Morujão propõe inclusivamente que o cabido possa ter sido

105 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 52-53. 106 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 23-27. 107 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 29-31. 108 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 841-842. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 65 instituído logo em 1180, com a instalação de D. Paterno em Coimbra,109 o que indica que, nesta data, a capacidade financeira já seria suficiente para sustentar o projeto. O cabido reforçava a posição da diocese, que passava a votar o nome dos seus bispos e a definir estratégias dentro do território. Embora com a reforma gregoriana a eleição tenha passado a carecer de confirmação de Roma, tal não retirava importância aos membros do cabido. As instituições eclesiásticas consolidavam paulatinamente os seus recursos materiais. Em março de 1087, o abade da Vacariça atribuiu os seus bens no concelho de Coimbra, que consistiam numa propriedade junto ao Mondego, localizada no sugestivo Campo da Presúria, à Igreja de São Martinho do Bispo, a qual, poucos anos depois, iria reverter para a própria sé.110 O testamento de Sisnando, elaborado na mesma data, refletia as preocupações de reforço da riqueza das instituições, mas também transmitia alguns exemplos das suas intervenções de povoamento numa faixa de território entre Coimbra e Viseu. Atribuía à Igreja de São Miguel, em Coimbra, um vasto conjunto de bens: as herdades que tinha povoado, metade de uma azenha com os seus moinhos, a vila de Sangalhos e metade das de Tentúgal e Cantanhede, propriedades em Santa Eulália, Arazede e Lamasma, a antiga almuinha do bispo D. Paterno com as suas vinhas, metade dos castelos de Penela e Arouze, que preencheu igualmente de habitantes, e as covas de Seia.111 A Sé de Coimbra, na pessoa do bispo, também não estava ausente das preocupações do cônsul. Em 1088, Sisnando confirmou ao prelado a doação de duas terras ermas para plantar hortos e vinhas e uma outra além-Mondego, em Vila Mendiga, “que, no tempo dos mouros, se chamava o horto de Ibn Arropollo”, com os seus moinhos, águas e fontes. Autorizou ainda o bispo a sair da cidade para cuidar da sua saúde, fosse em terras de cristãos ou de muçulmanos.112 Estes exemplos apontam para processos de continuidade entre os períodos muçulmano e cristão quanto à exploração agrícola do termo da cidade, fenómeno também investigado por

109 Morujão 2010, 201-203. 110 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 61-62. 111 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 38-39 e 125-126. 112 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 41-42. 66 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Leontina Ventura,113 e testemunham ainda a circulação de pessoas entre os dois lados da fronteira. As rápidas transferências de propriedade originavam com frequência conflitos entre instituições. Um documento atribuído a um intervalo cronológico entre 1087 e 1091 dá conta da disputa entre os mosteiros da Vacariça e do Lorvão pela posse da Igreja de São Miguel, como vimos, grandemente beneficiada pelo testamento de Sisnando, e da herdade de Recardães, em Águeda. O juiz e as autoridades de Coimbra, atendendo às provas, acabaram por decidir a favor do primeiro dos contendores.114 As doações a favor das instituições religiosas acabavam por ser complementadas com aquisições, que tinham um efeito potenciador dos rendimentos acumulados. A procura de vinhas era notória, como atestam múltiplos documentos. Neste período, destaca-se uma compra realizada pela sé na região de Montemor. Em setembro de 1091, Justa, filha de Eiza (Isa) Alvane, vendeu a sua parte nas vinhas que tinha recebido do pai.115 Mas a sé parecia querer anular o efeito de parcelamento decorrente de um processo de herança e voltar a unir a terra. Em outubro, era a vez do próprio Eiza Alvane, junto com outra filha, Maria Iben Eiza, alienar as suas vinhas.116 Anote-se à margem o erro no modo de grafar o patronímico, uma vez que ibn significa “filho” e a forma de apresentar uma mulher, filha, deveria ser bint. De ambos os documentos, emergem dois outros prováveis filhos de Eiza, ora nas confrontações, ora a testemunhar: Abdirahamen e João, ou seja, um nome árabe e muçulmano (Abd al-Rahman ou “servo do misericordioso”), e outro tipicamente cristão. Em fevereiro de 1093, este João acabou por vender a sua parte nas mesmas vinhas a um presbítero homónimo, sobrinho do bispo de Coimbra.117 Muçulmanos, moçárabes ou recém-convertidos ao cristianismo: não é possível determinar a origem destes elementos apenas com base nos elementos fornecidos. Certos parecem ser o hibridismo da onomástica e a continuidade entre as fases de domínio muçulmano e cristão.

113 Ventura 2006, 40. 114 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 181-182. 115 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 48-49. 116 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 482. 117 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 483. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 67

Uma terceira estratégia para ampliar os bens, além das doações e compras, consistia nas heranças. Em 1092, o Mosteiro de São Mamede e São Paio do Lorvão tornou-se beneficiário das últimas vontades de Maior, mulher de João Justes, recebendo em testamento um sexto da vila de Ventosa do Bairro, de uma vinha em Vila Mendiga e de uma casa com terreno em Coimbra, junto a São Pedro.118 A sé, evidentemente, era também destinatária de testamentos. Numa faixa cronológica entre 1092 e 1098, Vímara Pais deixou-lhe todos os bens de que dispunha, mas reservou o respetivo usufruto vitalício para a sua mãe e para a filha que teve de uma concubina. O produto da venda de quatro bois e três vacas deveria ser gasto em obras a favor dos pobres, das igrejas ou dos cativos, segundo o critério do bispo.119 Não sabemos em que data terá nascido a referida filha, mas, apesar da reforma gregoriana em curso, a manutenção de concubinas continuava a ser uma realidade, de resto, comum aos mundos cristão e muçulmano – basta lembrar o exemplo de Afonso VI. Já a preocupação com os cativos vem recordar-nos da realidade da guerra de fronteira, da economia do saque e do aprisionamento de seres humanos como fonte de rendimentos. Justamente, 1093 marcou uma mudança na organização da fronteira, com a transferência de Santarém, Lisboa e Sintra para o poder de Afonso VI. O imperador resolveu deslocar-se às suas novas possessões, na companhia do conde D. Raimundo e da sua clientela, e, em abril, chegou a Coimbra. Uma vez mais, a posição da cidade saiu reforçada, na medida em que Afonso VI renovou a confirmação de privilégios emitida em 1085.120 A necessidade de ratificar sucessivamente os direitos dos povoadores revela o interesse do rei nesta região, que, embora periférica, se revelava fundamental para consolidar a fronteira. Em fevereiro de 1094, a Igreja de São Martinho do Bispo foi entregue à diocese de Coimbra, por doação do abade da Vacariça.121 O documento que reflete esta transição é sobretudo interessante por testemunhar uma realidade prestes a mudar: diz o diploma que era o conde D. Raimundo reinante em Coimbra e toda a Galiza. A situação iria sofrer um revés em escassos meses, com a

118 ANTT, Mosteiro de Santa Maria do Lorvão. Antiga Coleção Especial. Particulares. Maço 1, no. 23. 119 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 551-552. 120 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 27-28. 121 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 58-60 e 276-278. 68 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

recuperação de Lisboa pelo poder almorávida e a perda de influência do conde neste território que havia de caber a D. Teresa e a D. Henrique. Mas continuemos com alguns eventos de 1094 atestados pela documentação. Em abril, Paio Soares deixou em testamento, também à Sé de Coimbra, uma vila em Coselhas, segundo o documento conseguida por presúria ao tempo de D. Sisnando, bem como uma casa em Coimbra, anteriormente de João Azeit (Zaid?), situada entre as portas de Iben Bodron e a alcáçova.122 Além das formas miscigenadas da onomástica, presencia-se novamente a transição da propriedade do mundo muçulmano para o cristão, segundo uma lógica de continuidade no uso. Com o calendário em agosto, João Peres, conhecido como Galib Alkarrac, e a mulher, Comba Domingues, em conjunto com o irmão do primeiro, também João Peres, mas dito Soleima Alkarrac, e a mulher, igualmente Comba, venderam ao bispo D. Crescónio bens na vila de Alcarraques, povoada pelos próprios com o cunhado Olidi (Walid?) e a esposa deste, talvez irmã de ambos.123 Todo o documento é curioso: a família que deu origem à atual povoação de Alcarraques, norte de Coimbra, parece ter-se convertido ao cristianismo coletivamente, adotando os homens um nome em comum e as mulheres outro, o que, como é evidente, terá ocorrido em data anterior à inscrita no diploma. O processo de fusão dos elementos muçulmanos na ordem política cristã encontrava-se inexoravelmente em marcha, assim como o reforço da posição da diocese. A 18 de novembro de 1094, D. Raimundo e D. Urraca atribuíram à Sé de Coimbra a propriedade do Mosteiro da Vacariça e de todos os bens que lhe pertenciam: “E isto é feito por nós para que vigore para sempre.” Executou o documento o chanceler do conde, Diego Gelmírez, que se tornaria arcebispo de Compostela e uma das mais controversas peças do xadrez peninsular em inícios do século XII. Testemunharam o ato jurídico os barões galegos, os clérigos de Santiago e de Coimbra e a elite da última cidade.124 Eram assim consolidados os poderes da diocese baseada na cidade-chave da fronteira do condado. Como veremos, apesar de organizar-se contra o mundo muçulmano, Coimbra não seria impermeável às trocas com os seus adversários.

122 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 538-540. 123 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 415-416. 124 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 132-134. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 69

Circulação da moeda e adoção de morabitinos

O sistema de parias imposto às taifas e a circulação de moeda do al-Andalus para os reinos cristãos teve a capacidade de mitigar as diferenças económicas entre um norte com menor capacidade produtiva e um sul abastado, onde a arquitetura, as artes e a poesia floresciam. Os arabistas e orientalistas do século XIX, como o holandês Reinhart Dozy, choraram o exílio do rei-poeta al-Mutamid e o fim de uma alegada ilustre cultura andaluza, a que os almorávidas, encarados como rudes cavaleiros do deserto, teriam posto um ponto final. Tal como bem observa Lynn H. Nelson a propósito do sistema de parias, “não pode ter escapado aos muçulmanos que, de facto, estavam a financiar potentados militares”.125 Mas, pelo menos durante um certo período, este recurso permitiu às taifas, acrescenta o autor, diversidade sem conflitos, ordem sem dominação e proteção face aos inimigos por um preço razoável. Tratava-se, de resto, de um jogo em que todas as partes saíam a ganhar. Os reis cristãos tornaram-se generosos patronos das instituições eclesiásticas: Nelson lembra que o ouro do al-Andalus rapidamente encheu os cofres de Cluny. Mosteiros e catedrais foram construídos. A própria Santa Sé passou a demonstrar interesse pela Península Ibérica. Os filhos de senhores peninsulares tornaram-se elegíveis para contratos de casamento. Um exemplo é, evidentemente, a união de um bisneto do rei de França com uma bastarda do imperador da Hispânia, de que nasceria o primeiro soberano de Portugal. Não obstante, como nota François Clément, o sistema de parias teve por efeito secundário o aumento da carga fiscal sobre a população muçulmana e, no fim do período das taifas, até um reino financeiramente pujante, como o de Sevilha, se ressentiu.126 E nada como o fardo dos impostos, ainda para mais não previstos no Corão e com o objetivo de financiar os reinos cristãos, contra os quais deveria ser, ao invés, desferida a guerra santa, para fazer germinar entre a população um sentimento de injustiça e revolta contra os reis de taifas. Os doutores de leis muçulmanos não tiveram, pois, dificuldade em legitimar

125 Nelson 1979, 197. 126 Clément 1997, 194-195. 70 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a sua deposição pelos almorávidas de Yusuf b. Tashfin, que, de início, como refere Pascal Buresi, gozavam de popularidade entre os habitantes do al-Andalus devido ao alívio fiscal e às provas dadas na luta contra os cristãos.127 Até Vincent Lagardère reconhece que a transição entre o mundo das taifas e o poder almorávida constituiu uma “vitória dos grandes cádis andaluzes”, com uma adesão em larga escala das elites a este programa de restauração.128 Apesar da circulação monetária decorrente do sistema de parias, os cristãos não se mostraram interessados em utilizar, no seu território, as moedas do mundo das taifas. Os cartulários falam pelo silêncio. As transações presentes na documentação de São Vicente de Oviedo entre 1075 e 1101, por exemplo, foram realizadas sobretudo em módios ou, com o avançar do século XI, em soldos de prata,129 a última uma moeda que Maria José Pimenta Ferro faz corresponder ao dirham do mundo islâmico.130 O mesmo acontece com as alienações atestadas nos tombos de São Julião de Samos e de Celanova, ambos os mosteiros na Galiza: os soldos foram a principal, senão única, moeda usada no período. Um fenómeno idêntico pode ser verificado nos conjuntos documentais respeitantes a Coimbra. É possível formular a hipótese de a moeda muçulmana não ter chegado a circular, provavelmente fundida para permitir outro tipo de usos. Num estudo sobre as moedas dos reinos de taifas, Almudena Ariza Armada destaca a pouca confiança nos espécimes provenientes dos pequenos reinos do al-Andalus. De todos, avança a investigadora, apenas o de Córdova, controlado pelos hamúdidas, teve a preocupação de emitir moeda de forma regular, pelo menos até ao primeiro terço do século XI, numa opção de continuidade face à época do califado.131 O crédito atribuído às moedas de prata hamúdidas é atestado pelas imitações realizadas no mundo cristão – por exemplo, pelos condes de Barcelona –, explica Ariza Armada. À estabilidade metrológica, vetor que transformava a moeda califal num poderoso instrumento do Estado, seguiram-se, ao tempo das taifas, numerosas alterações que degradaram a qualidade. A falta de fiabilidade,

127 Buresi 2003, 230. 128 Lagardère 1989a, 127. 129 Cartulario de San Vicente de Oviedo [1200-1225?] 1929, 85, 92, 97-99, 101, 107, 110, 114 e 130. 130 Ferro 1978, 1:55. 131 Ariza Armada 1995, 233. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 71 sobretudo das moedas de prata, cujo conteúdo neste metal caiu de 80 para 30 por cento ou menos, reforçou a cunhagem das moedas de ouro.132 E estas, em vez de estimularem a indústria cristã, regressavam muitas vezes ao al-Andalus em troca de produtos de luxo, sobretudo no caso do reino de Aragão. Já em Leão e Castela, eram entesouradas para patrocinar entidades eclesiásticas ou custear campanhas militares, o que, em última instância, significava que circulavam sobretudo entre as elites. François Clément traz mais luz à discussão, ao confirmar que, no seguimento da queda do califado de Córdova, a emergência de poderes autónomos não trouxe um florescimento monetário. Nos primeiros anos das taifas, com algumas exceções, a ausência de cunhagem foi a regra entre alguns dos principais reinos, como os de Granada, Badajoz e Saragoça. Foram sobretudo os reinos amiridas, fundados por libertos de al-Mansur b. Abi Amir, a produzir moeda. Clément argumenta que, por um lado, ainda se encontraria em circulação grande volume de moeda califal e, por outro, não existiria uma sólida vontade de cortar com o paradigma político e adquirir absoluta independência.133 A ausência de moedas do período taifal no tesouro encontrado nas escavações do claustro da Sé de Lisboa não deixa, pois, de confirmar as propostas de Almudena Ariza Armada e de François Clément.134 Centenas de moedas de prata (quirates) cobrem com fidelidade a sucessão das figuras que governaram o al-Andalus desde o início do califado omíada, em 929, até ao ocaso almorávida em Lisboa, no ano de 1147. No espólio, estão representados os três califas, Abd al-Rahman III, al-Hakam II e al-Hisham II, algumas figuras norte-africanas que governaram Ceuta, a taifa hamúdida de Córdova e os emires almorávidas, incluindo Abu Bakr b. Umar, que, de acordo com a numismática, viveu até 478 (29 de abril de 1085 a 18 de abril de 1086) e antecedeu Yusuf b. Tashfin. Nunca esta figura reinou no al-Andalus ou sequer pisou o lado europeu do Estreito de Gibraltar. Aliás, morreu pouco antes da Batalha de Zallaqa, quando os almorávidas ainda não tinham conquistado as terras hispânicas.

132 Ariza Armada 1995, 234-235. 133 Clément 1997, 230-236. 134 O relatório com a classificação das moedas, elaborado por José Rodrigues Marinho, integra o Processo S-3229 da Base de Dados Endovélico (Marinho 1990-1999). 72 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

A presença deste quirate no tesouro da sé suscita várias pistas de investigação. Desde logo, podemos pensar na longevidade das moedas almorávidas em termos de circulação. Outra possibilidade é o comércio entre o mundo das taifas, no caso a de Badajoz, que controlava Lisboa à época de Abu Bakr, e o mundo almorávida, em processo de conquista dos pontos-chave das rotas caravaneiras que ligavam a África subsariana ao Mediterrâneo. Awdaghust, cujas ruínas se localizam no sul da atual Mauritânia, era uma dessas ricas encruzilhadas. A sua conquista é descrita por al-Bakri, segundo o qual ocorreu em 1055.135 Do espólio do claustro da sé, fazem ainda parte quirates de Yusuf b. Tashfin, sozinho ou com o herdeiro, Ali b. Yusuf, e espécimes emitidos por este, também de forma isolada ou com o sucessor designado, Sir b. Ali, falecido em 1138, e depois com o substituto, Tashfin b. Ali, morto em 1145. Para a dinastia almorávida completa, falta o último emir, Ishaq b. Ali, assassinado no seguimento da conquista almóada de Marraquexe, em 1147. Contam-se ainda algumas dezenas de moedas do período que corresponde à chamada Terceira Fitna, emergindo da numismática figuras como Ahmad b. Qasi, que assumiu o poder em Mértola em 1144, e o seu emir em Beja, Abu Talib al-Zuhri, assim como Sidray b. Wazir, senhor de Évora e de Beja, individualmente e em conjunto com Ibn Hamdin, o qual se autoproclamou emir dos muçulmanos com a morte de Tashfin b. Ali, em 1145. Mais de 80 por cento das moedas pertencem ao longo reinado de Ali b. Yusuf. O período taifal, em que Lisboa se manteve debaixo da alçada de Badajoz, destaca-se pela ausência. Nem uma moeda testemunha esta época num tesouro que corresponde a uma estratigrafia do poder no al-Andalus e, sobretudo, no Gharb. Inversamente à moeda taifal, os numismas almorávidas parecem ter transmitido confiança desde cedo. A partir do momento em que começaram a controlar as rotas do ouro proveniente do Bilad al-Sudan, ou País dos Negros, os almorávidas conseguiram assegurar a estabilidade da moeda, que, como explica Shlomo Dov Goitein, passou a ter lugar preferencial nas transações comerciais no espaço económico do Mediterrâneo ocidental.136

135 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 317. 136 Goitein 1999, 1:235. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 73

Vincent Lagardère chama-lhes mesmo os “senhores do ouro”, um metal raro na Europa cristã.137 Uma carta encontrada entre o espólio da Geniza do Cairo,138 e publicada por Moshe Gil e Ezra Fleischer, mostra bem a importância da moeda almorávida no contexto mediterrânico. Datada de 1138, dá conta de um negócio entre Yosef b. Suayb, conhecido como Ben al-Nigra, e o comerciante Halfon b. Nethanel, personagem do círculo de amigos do filósofo, médico e poeta judeu Yehuda ha-Levi. Tendo nascido na segunda metade do século XI na Hispânia cristã, o último viveu na corte de Afonso VI, em Córdova, assim como em Granada e no Norte de África, e terá empreendido uma viagem à Terra Santa, especulando-se sobre se chegou ou não a entrar em Jerusalém.139 Regressando ao conteúdo da carta, diz Yosef que pediu e recebeu do respeitado comerciante judeu Halfon b. Nethanel parte do “melhor do seu dinheiro”, no caso 60 dinares morabitinos, “bem pesados e bons”, e lhes acrescentou o “melhor do seu dinheiro”, na quantia de 40 dinares morabitinos, para negociarem em conjunto e repartirem os lucros, como se de um fundo de investimento se tratasse. É significativa a escolha das palavras para designar a moeda almorávida: o melhor do dinheiro, a que são somados os qualificativos de “bem pesados” e “bons”.140 Também não deixa de impressionar o capital reunido por estas personagens, que se moviam em zonas de grande dinamismo comercial. O elevado grau de confiança nos morabitinos terá ditado que, na segunda metade do século XI, grande parte do comércio no Egito já fosse estabelecido nesta moeda.141 Uma fatwa (parecer jurídico) emitida a partir de Córdova pelo cádi Ibn Rushd em 1126, e analisada por Vicent Lagardère, traz mais elementos sobre a importância da moeda almorávida, que era cunhada em ouro puro, ao contrário dos espécimes orientais ou provenientes

137 Lagardère 2001, 21. 138 “A Geniza, cuja exploração foi o objeto das minhas viagens ao Oriente (1896-1897), é uma instituição judaica antiga. A palavra deriva do verbo hebraico ganaz, e significa ‘casa do tesouro’ ou ‘local de esconderijo’. Quando aplicada a livros, aponta praticamente para o mesmo que o enterro no caso dos homens. Quando o espírito parte, depositamos o corpo longe da vista, para protegê-lo da profanação. Da mesma forma, quando a escrita termina, escondemos o livro para preservá-lo dos abusos. O conteúdo do livro vai para o céu, tal como a alma” (Schechter 1908, 1). 139 Gil et Fleischer 2001, 365-368. Sobre Halfon b. Nethanel: Goitein 1973, 259-260. 140 José Rodrigues Marinho confirma que a moeda almorávida era “de bom fabrico”, sobretudo constituída por dinares (os morabitinos, em ouro) e pequenos quirates (em prata), sujeitos a fracionamento (Marinho 1998, 180). 141 Goitein 1999, 1:235-236. 74 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

da taifa abádida, fabricados com ligas de metais. Dizia o avô do sábio que ficou conhecido no mundo cristão como Averróis que, para o pagamento dos impostos, não era possível pesar os dinares almorávidas da mesma maneira que as restantes moedas, deixando claro que o valor era superior.142 As regiões peninsulares de fronteira parecem ter feito parte do novo movimento, com os morabitinos a penetrarem no território em cronologias recuadas, tal como atestam dois preciosos documentos. O primeiro data de 15 de julho de 1092 e traduz a venda de metade de uma herdade, por Munio Velásquez, mulher e filhos, a Ordonho Álvarez. A propriedade situava-se no termo de Ameves, junto ao Castelo de Tudela, norte de Saragoça, região onde se crê que o rabi Yehuda ha-Levi tenha nascido. O preço foi de três morabitinos.143 Caldeirão de culturas da fronteira, Tudela ainda se encontrava sob domínio muçulmano nesta conjuntura, já que a conquista cristã definitiva só ocorreu em 1118, pela mão de Afonso I de Aragão.144 Aqui circulavam não só as moedas almorávidas, como também espécimes cristãos. Em 1090, dois anos antes, os mesmos vendedores haviam alienado outra propriedade no Vale de Tudela ao referido casal, por cinco soldos de prata.145 E, em 1094, voltaram a vender uma herdade com as suas árvores de fruto, no termo de Ameves, por dez quarteiros.146 Portanto, o uso de morabitinos nesta região era ainda errático. O segundo documento a destacar o recurso à moeda almorávida na fronteira data de 1096 e foi emitido pelo Cabido da Sé de Coimbra. Sanciona a venda, por Gontina e seu filho, Fernando, de metade de uma vinha no local de Assamassa, termo de Coimbra. Compraram Gonçalo e mulher, Susana, e o preço foi de 20 morabitinos.147 O facto de os morabitinos serem usados em 1092, a propósito de uma compra e venda na região de Tudela, ou em 1096, em Coimbra, só vem reforçar, por um lado, a dinâmica da fronteira e, por outro, a falta de confiança na moeda das taifas. No caso de Tudela, há a notar que, em 1092, a dinastia almorávida

142 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 63. 143 Cartulario de San Vicente de Oviedo [1200-1225?] 1929, 117. 144 Lacarra 1946, 45-54. 145 Cartulario de San Vicente de Oviedo [1200-1225?] 1929, 114. 146 Cartulario de San Vicente de Oviedo [1200-1225?] 1929, 119. 147 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Caixa 27, rolo 2, no. 106. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 75 ainda não se encontrava solidamente implantada no al-Andalus. A taifa de Saragoça, zona-tampão entre o mundo cristão e os territórios controlados pelos almorávidas, não tinha sido conquistada pelos homens do deserto. Já o aparecimento de morabitinos na cidade de Coimbra em 1096, cerca de um ano depois de o general Sir b. Abu Bakr ter recuperado Lisboa das mãos dos cristãos, permite-nos considerar, desde logo, a possibilidade de a moeda almorávida ter atingido o território cristão devido à economia do saque ou ao pagamento de resgates. Todavia, se procurarmos nos cartulários de outra região de fronteira, como Viseu – por exemplo, o Diplomatário da Sé de Viseu –, onde há também que considerar a realidade do saque e do pagamento de resgates, não encontramos menções a morabitinos na mesma cronologia, o que, pelo menos, deixa alguma dúvida quanto a uma tal hipótese explicativa. Outra linha de raciocínio aponta para o comércio, uma vez que a cidade de Santarém se encontrava sob domínio cristão – só em 1111 reverteria de novo para o bloco muçulmano. Ora, necessitando de um porto para escoar os seus produtos agrícolas, poderia ter interesse em fazer negócios com a Lisboa muçulmana e, com a circulação de moeda, forçada por estas trocas comerciais, seria inevitável que os morabitinos chegassem também a Coimbra. Mas não temos dados que o confirmem. Uma série de cartulários mostra que, longe da fronteira, a moeda usada, mesmo já largamente no século XII, continuava a ser o soldo. Em Coimbra, a adoção de morabitinos, ainda a par da moeda tradicional, conservou a sua marcha. Um documento de 1114 atesta-o. Na venda de uma casa obtida por presúria, realizada pelo prior do Lorvão, Eusébio, esta foi a moeda envolvida.148 Mais três documentos de 1115, data em que Sevilha mudou de governação e se começaram a intensificar os ataques às linhas defensivas de Coimbra, também o demonstram. Em março, Domingos Eanes vendeu uma vinha em Vila Mendiga, Coimbra, por quatro morabitinos a Mendo Osores e sua mulher, Elduara Domingues.149 No mesmo mês, foi a vez de Martim Pais e mulher, Susana Eanes, alienarem a Pedro Pais e mulher, Belida Domingues, umas casas situadas nos subúrbios da cidade, junto à Colegiada de São Bartolomeu, pelo

148 Losa 1984, 8. 149 ANTT, Mosteiro de São Jorge de Coimbra. Maço 1, no. 5. 76 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

preço de 23 morabitinos.150 Já em novembro, o mercador Roberto e a mulher, Especiosa, com os filhos Estêvão, Susana e Ermesenda, venderam a João e mulher, Sonarilli, uma casa com o respetivo sótão, junto à aljazaria da cidade, onde o rei também possuía tendas. O preço foi de dez morabitinos.151 Em 1116, novo documento atesta a venda de uma vinha em Coimbra, junto ao Mondego, por três morabitinos e um soldo.152 A tendência de paralelismo ao nível da circulação de espécimes na cidade manteve-se na década de 1120, com o morabitino a ganhar terreno e a substituir completamente a antiga moeda a partir dos anos de 1130. Os “senhores do ouro”, assim apelidados por Vincent Lagardère, transformavam as relações económicas também no território portucalense.

150 ANTT, Colegiada de São Salvador de Coimbra. Maço único (caixa 8), no. 1. 151 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Maço 3, no. 20. 152 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Caixa 28, rolo 4, no. 88. 2. QUEM ERAM OS ALMORÁVIDAS?

Afadigado com a construção de uma cidade, futura capital de um império a haver, que, das margens dos rios Senegal e Níger, iria um dia desaguar às margens do Tejo hispânico, Abu Bakr b. Umar, chefe da tribo lamtuna, por certo não esperaria ser interpelado para acudir às suas gentes, que se viam atacadas pelos vizinhos gudalas. Matavam os homens e roubavam os bens, queixavam-se os emissários.1 Consciente da gravidade da situação, percebeu que se, por um lado, não poderia deixar de proteger os seus, por outro, não tinha como abandonar a construção da cidade a que chamariam Marraquexe. Segundo o al-Bayan al-Mugrib, de Ibn Idari, pediu a inspiração divina para encontrar um substituto, e a consulta revelou-lhe o primo Yusuf,2 filho de Tashfin (por sua vez, irmão de Umar, pai de Abu Bakr), a quem, segundo o al-Hulal al-Mawsiyya, deixou um terço do seu exército.3 Yusuf era já chefe militar do movimento almorávida e via-se agora transformado em líder político acidental de um partido em expansão,4 que visava quebrar a hegemonia dos

1 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 36. Ibn Abi Zar refere que Abu Bakr b. Umar saiu de Marraquexe não para fazer a guerra aos gudalas, mas para combater os negros ou “pagãos do Sudão” ([1310-1331?] 1918, 136). Ibn Khaldun, por sua vez, diz que o chefe dos lamtunas teve de debelar uma dissensão entre os massufas e que depois atacou o País dos Negros ([1375-1406?] 1852, 2:72). 2 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 43. 3 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 37. 4 Segundo Ibn al-Athir, Yusuf recebeu o poder das mãos do primo após a conquista de Sijilmassa, e o projeto da fundação de Marraquexe, incluindo a escolha do local, coube-lhe inteiramente ([1175-1233?] 1898, 466-467). Ibn Khaldun também atribui a Yusuf a construção de Marraquexe, cujo início posiciona no ano de 454, que se desenrolou entre 15 de janeiro de 1062 e 4 de janeiro de 1063 ([1375-1406?] 1852, 2:73). Djannabi, por sua vez, afirma que Abu Bakr encarregou Yusuf não da continuação das obras de 78 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

zanatas, uma confederação berbere rival, sobre o Magrebe ocidental.5 De acordo com o al-Bayan al-Mugrib, estávamos em 463, que decorreu entre 9 de outubro de 1070 e 28 de setembro de 1071.6 Retenhamos, para já, este ano de 463, sabendo, no entanto, que terá de ser revisto. Começava, assim, a carreira de Yusuf b. Tashfin como líder almorávida, que iria conquistar e unificar o al-Andalus, afastar os reis de taifas do território e perturbar os planos de Afonso VI quanto ao controlo político do bloco muçulmano.

Ascensão e legitimação de Yusuf b. Tashfin

A guerra entre as tribos do movimento almorávida, que Vicent Lagardère atribui à inveja dos gudalas, os quais, diz o historiador, manteriam um espírito clânico em lugar de se integrarem na confederação,7 é sobretudo explicável pela hegemonia dos lamtunas desde o início. Justamente o espírito clânico dos lamtunas presidiu sempre à atribuição de cargos no contexto do império em formação. E, ao percorrermos as fontes, percebemos que, com pequenas exceções, durante o meio século de poder almorávida, o governo das grandes cidades do al-Andalus pertenceu apenas a esta tribo. Ainda assim, as tensões intertribais não impediram milhares de gudalas e de massufas de participarem nas campanhas de conquista, tanto no Magrebe como no al-Andalus.8 Os conflitos com os gudalas, devido à iníqua repartição das riquezas entre as tribos que davam suporte à confederação, surgem como prenúncio dos

Marraquexe, mas da cidade de Sijilmassa logo após ter sido conquistada e que, com a morte do primeiro, as tribos se reuniram em torno do segundo ([1550-1590?] 1924, 285-359 e 356). O al-Hulal al-Mawsiyya coincide com o al-Bayan al-Mugrib, de Ibn Idari, tanto na versão como na data da saída de Abu Bakr para o deserto ([1381-1382] 1951, 37). Al-Sadi, que recupera parte do texto anterior, também afirma que o fundador de Marraquexe foi Abu Bakr e que este designou o primo como lugar-tenente (Abd al-Rahman b. Abd Allah b. Imran b. Amir al-Sadi [1610-1660?] 1900, 44). O Masalik al-Absar, de al-Umari, texto do século XIV, retém a tradição de que foi Yusuf quem construiu Marraquexe, começando por edificar o chamado Palácio de Pedra, e que foi Abd al-Mumin, primeiro califa almóada, quem aumentou e ornamentou a cidade, dotando-a de águas e plantações ([1342-1349?] 1927, 178). Cruzando todas as informações e dando mais crédito às cronologias propostas por al-Bakri, fonte coeva, parece claro que foi Abu Bakr quem iniciou a construção de Marraquexe e que Yusuf continuou as obras. 5 Monés 1967-1968, 54-55. 6 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 42. 7 Lagardère 1989a, 77. 8 Levtzion 1980, 35. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 79 sérios problemas que haviam de ocorrer por morte do emir Ali b. Yusuf, em 1143, os quais levaram à guerra civil e à transição da tribo massufa para a lealdade de um movimento almóada em crescimento. Em causa, estava sobretudo a discordância face à nomeação de Tashfin b. Ali, filho de uma escrava cristã, para herdeiro. Uma vez mais, os filhos de princesas massufas ficavam de fora do trono. Também o velho emir Ali b. Yusuf, nascido de uma escrava cristã, havia sido a opção encontrada pelo seu pai, Yusuf b. Tashfin, para evitar conflitos entre os filhos preteridos de princesas berberes. Se, no imediato, com maior ou menor dificuldade, Ali conseguiu afirmar-se no poder, a prazo, a estratégia de manter potenciais herdeiros de origem berbere fora do trono constituiu mais um elemento de desestruturação do movimento almorávida. A guerra entre as tribos lamtuna e massufa e a deserção da última agudizaram os problemas políticos nos últimos tempos do império. Durante os longos meses que durou o cerco a Marraquexe, que terminou a 23 de março de 1147 com a entrada triunfal do califa almóada na cidade, os lamtunas tiveram de defender sozinhos os muros que Abu Bakr começou a construir, Yusuf terminou e Ali reforçou. Sem apoios entre as tribos. Sem o favor das populações, que passavam fome e se viam martirizadas pelos impostos e pela guerra, tanto no Magrebe como no al-Andalus. Sem uma liderança militar forte, como Tashfin b. Ali e o cristão Reverter, falecidos entre finais de 1144 e o primeiro trimestre do ano seguinte. A maioria dos que sobreviveram ao cerco não resistiu à espada da execução sumária almóada. Em sensivelmente três quartos de século, a conjuntura do Mediterrâneo ocidental iria mudar de forma dramática e permitir o surgimento de um novo império. O califa Abd al-Mumin estava às portas do poder. 80 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Fig. 1: Zonas de influência das tribos berberes

Até lá, Yusuf b. Tashfin ainda teria de construir uma cidade e um império. Dizem as fontes, numa passagem bem conhecida da historiografia almorávida, que, ao sair para o deserto, Abu Bakr b. Umar se divorciou da mulher Zaynab e a recomendou para esposa de Yusuf, sugestão que este aceitou.9 As fontes são unânimes quanto à beleza e à inteligência de Zaynab, da tribo de nafza, e algumas atribuem-lhe até poderes de feiticeira.10 Mais interessante para o curso do movimento almorávida, referem que, pelo regresso de Abu Bakr do deserto dois anos depois,11 resolvidos que estavam os conflitos com os gudalas, Zaynab terá incentivado Yusuf a não devolver o poder.12 A história parece contada de forma conveniente, de modo a evitar uma imagem de Yusuf enquanto usurpador: à chegada de Abu Bakr, foi a mulher quem alegadamente o convenceu a manter a governação, como se aquele não a desejasse e apenas

9 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 44-45; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 136-137; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:72. 10 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 35-37; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 136. 11 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 50-51. 12 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 137; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:72. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 81 a instâncias de Zaynab se tivesse lembrado dessa possibilidade. Porém, aqui e ali, Ibn Idari vai admitindo que Yusuf se encantou com a governação13 e que tinha uma inclinação para os atrativos do reino e a honra conferida pelo poder.14 Também são significativas as informações fornecidas por Ibn Abi Zar, segundo as quais Yusuf recebeu Abu Bakr montado a cavalo, na companhia de um grande contingente de soldados, disposto a defender-se contra quem se lhe opusesse.15 Ibn al-Khatib também explica que o emir foi a cavalo ao encontro de Abu Bakr e resolveu não desmontar, como sinal de que se considerava um igual e não um súbdito.16 Já Ibn Khaldun afirma que Yusuf estava pouco disposto a reconhecer a autoridade do primo.17 É possível que tenha sido Zaynab a aconselhar Yusuf sobre a melhor forma de proceder face a Abu Bakr, mas parece evidente que este já tinha formado a ideia de tomar o poder. Ibn al-Khatib, de resto, refere que Abu Bakr regressou do deserto não só por ter resolvido os conflitos que o assolavam, como também ao saber do aumento de poder de Yusuf devido às conquistas no Magrebe, que entretanto empreendera, e que decidira destituí-lo,18 o que indica que estava consciente das intenções do primo. Além disso, por mais pio e desgostoso de derramar sangue muçulmano que fosse – como afirmam as fontes –, parece estranho que se tenha contentado com as riquezas carregadas em 1000 camelos e partido em paz para o deserto, de onde tinha acabado de regressar. Al-Nasiri chega ao ponto de dizer que Abu Bakr decidiu investir o primo de livre vontade, concedendo-lhe plenos poderes sobre o Magrebe e exortando-o a continuar a guerra contra as tribos inimigas: uma transição suave, limpa e sem conflitos, portanto.19 No entanto, quando falamos de Abu Bakr b. Umar, estamos a referir-nos a alguém que tinha uma ideia de império, pois estabeleceu uma capital em Aghmat e, quando esta se tornou pequena para os seus objetivos, tomou a

13 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 50. 14 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 51. 15 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 137. 16 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 142. 17 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:72. 18 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 141. 19 Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 140. 82 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

iniciativa de fundar outra cidade; alguém que mandou cunhar moeda em seu nome; alguém que tinha o apoio dos doutores de leis e alguém a quem o país obedecia.20 Estaria este indivíduo disposto a abdicar da sua posição de livre vontade para evitar o derramamento de sangue muçulmano? Ou, perante aquilo que parece ser a formação por Yusuf de um exército mais poderoso do que a terça parte das forças almorávidas, que lhe deixou quando se dirigiu ao deserto, chegou à conclusão de que não teria capacidade militar para vencê-lo, e desistiu? Teria em mente regressar mais tarde à cabeça de um contingente com maior poderio? Ibn Idari diz que Abu Bakr faleceu em 468 (16 de agosto de 1075 a 4 de agosto de 1076), Ibn al-Khatib e al-Nasiri defendem que desapareceu em 480 (8 de abril de 1087 a 27 de março de 1088).21 Ora, conhecem-se moedas cunhadas por Abu Bakr até 478, ano que se desenrolou entre 29 de abril de 1085 e 18 de abril de 1086, o que inviabiliza a hipótese de Ibn Idari, quem sabe formulada para afastar uma imagem de Yusuf enquanto usurpador, na medida em que não faz sentido emitir moeda em nome de um soberano morto. Quanto a Ibn al-Khatib e a al-Nasiri, a menos que se tenham perdido todos os exemplares eventualmente cunhados entre 478 e 480 ou que Abu Bakr não tenha emitido moeda neste biénio – o tratado de numismática de Antonio Vives y Escudero não regista moedas para os anos de 452 a 455, de 458 a 460 e de 463 a 46622 –, também não estarão corretos. A ideia de que Abu Bakr terá falecido no ano de 480 pode ter sido induzida por este ter sido também o primeiro da cunhagem por Yusuf. Mas exploremos outras possibilidades. Ao analisarmos o tratado de numismática de Vives y Escudero, verificamos que, nos últimos anos da sua vida, ou seja, depois de ter sido afastado de Marraquexe, Abu Bakr cunhou em ouro e a partir de Sijilmassa. Significa claramente que continuou a dominar o fluxo do ouro com origem no País dos Negros, e leva-nos a suscitar uma possibilidade: a da cooperação entre Abu Bakr e Yusuf. O último pode ter ficado com Marraquexe e território de

20 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 35. 21 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 55; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 142; Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 140. 22 Vives y Escudero 1893, 235-238. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 83 conquista para norte, mas dificilmente sobreviveria sem as mercadorias do País dos Negros. Houve um momento de tensão entre Yusuf e Abu Bakr, quando este pretendeu reaver o poder, e parece certo que prescindiu de Marraquexe a contragosto, talvez por ter capacidade militar inferior. Mas deve ter feito as contas ao que lhe restava – perdia Aghmat e Marraquexe, mas conservava Sijilmassa e o acesso ao ouro – e percebeu que lhe sobravam meios para controlar Yusuf. O poder económico efetivo encontrava-se em Sijilmassa, a cidade onde afluíam os comerciantes do Magrebe e de Ifrikiyya (atual Tunísia), o que lhe permitiria, por exemplo, desviar o fornecimento de bens para outras rotas e deixar Yusuf em situação difícil. Além disso, no início, Marraquexe não passaria de um modesto acampamento de nómadas. Admitindo a hipótese de um acordo como válida, Yusuf poderia até pagar tributo a Abu Bakr, na qualidade de verdadeiro emir, o único que emitia moeda. Aliás, Ibn Idari refere que Yusuf continuou a enviar presentes a Abu Bakr “até que o mataram os negros”,23 portanto, até ao fim da vida, o que constitui prova desse mesmo tributo. Podemos inclusive admitir que Yusuf não teria interesse em afrontar Abu Bakr, ocupado que estava com as conquistas no Magrebe e, mais tarde, no al‑Andalus. Por outro lado, Abu Bakr assumia as despesas da guerra contra as tribos negras pelo controlo do comércio do ouro, nas latitudes mais austrais, onde os perigos eram também acrescidos. Mas este casamento de conveniência teria os dias contados. Não sabemos se houve tentativas de Abu Bakr para reverter a situação, mas, um ano após a sua morte, e de acordo com Ibn Idari, o seu filho Ibrahim reclamou o poder, de que, dizia, Yusuf se tinha apropriado indevidamente.24 Também é claro que, da parte de Yusuf, o acordo durou apenas enquanto serviu os seus interesses: a vitória em Zallaqa e a tentativa de legitimação aos olhos dos ulemas da Umma mostram que pretendia reinar sozinho. A “relação conjugal” seria, certamente, plena de tensões e de intenções, de ambas as partes, de afastarem a outra na primeira oportunidade. Para Ibrahim, filho de Abu Bakr, o momento de viragem foi a morte do pai – no ano seguinte, resolveu ir a jogo.

23 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 55. 24 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 62. 84 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Mas não podemos tomar como rigorosa a cronologia proposta pela fonte para a exigência do poder: o ano de 469 (5 de agosto de 1076 a 25 de julho de 1077) não é crível para o evento, uma vez que se encontra em desacordo com a numismática, a qual nos diz que Abu Bakr viveu para lá desta data. Aliás, um indício de que esta fonte tem problemas de datação, no que se refere ao período de ascensão de Yusuf b. Tashfin, é o ano proposto para o nascimento do seu primeiro filho com Zaynab, al‑Muizz: 464 (29 de setembro de 1071 a 17 de setembro de 1072).25 Tanto a crónica anónima Kitab Mafakhir al-Barbar como Ibn Khaldun referem que o primogénito de Yusuf com Zaynab participou ativamente na conquista de Ceuta, que ocorreu em 1083.26 Se tomarmos esta data de nascimento como certa, o filho de Yusuf seria demasiado novo para liderar operações militares: apesar de poder acompanhar o pai, não assumiria um papel de destaque na guerra. Isto significa que o casamento de Yusuf com Zaynab também terá de ser posicionado em data mais recuada e, por maioria de razão, a saída de Abu Bakr b. Umar de Marraquexe para o deserto e a fundação da própria cidade. Assim sendo, o mais prudente será talvez somar um ano à data das últimas moedas de Abu Bakr que conhecemos, hipótese que nos leva a transferir a exigência de poder por Ibrahim para 479 (18 de abril 1086 a 7 de abril de 1087), o que coincide com o ano da campanha de Zallaqa, quando Ceuta e a passagem para o al-Andalus já se encontravam asseguradas por Yusuf, mas a questão das taifas estava por resolver e o poder do primo de Abu Bakr na Península Ibérica começava a dar os primeiros passos. De acordo com as moedas sobreviventes até aos nossos dias, Ibrahim foi emir de Sijilmassa nos anos de 462, 465 e 466. Se acreditarmos que o filho de Abu Bakr manteve o poder também em 463 e 464, tal corresponde, genericamente, a um período que vai de finais de outubro de 1069 a finais de agosto de 1074.27 A ausência de mais moedas – ou de outras fontes de informação – não permite, no entanto, perceber claramente quando Ibrahim ganhou e perdeu o domínio sobre Sijilmassa, mas é de crer que, à

25 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 46-48. 26 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 57; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:77. 27 Referência a três dinares cunhados por Ibrahim a partir de Sijilmassa em: Vives y Escudero 1893, 238. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 85 morte do pai, ou seja, pelo menos, até 1085 ou 1086, ainda o detivesse. Significa que Ibrahim tinha de si a noção de detentor do poder, já que a cunhagem de moeda é um dos atributos da governação, que, por sua vez, exige o acesso a matéria-prima. Como o emir de Sijilmassa cunhou dinares, tinha de recorrer ao ouro e estaria, assim, no controlo de, pelo menos, uma parte do seu comércio. Se, como diz Ibn Idari, chegou a Marraquexe acompanhado por um grande contingente militar de lamtunas, significa ainda que uma parte da principal tribo da confederação almorávida se encontrava do seu lado. Outro pensamento daí decorrente é a divisão da tribo entre duas fações e, de resto como defende Huici Miranda, a existência de dois poderes concorrentes28 numa conjuntura que pode ser muito mais avançada do que a historiografia sugere. Aliás, uma passagem muito breve na obra de al-Bakri vai ao encontro deste raciocínio: “Hoje, no ano de 460 [11 de novembro de 1067 a 30 de outubro de 1068], os almorávidas têm por emir Abu Bakr b. Umar, mas o seu império está partido e o seu poder dividido. Agora, ele permanece no deserto.”29 A data não é coincidente com a informação transmitida por Ibn Idari, mas a revelação é absolutamente preciosa e mais compreensível à luz destes dados – desgarrada e sem mais explicações no texto de al-Bakri, pode parecer algo difícil de interpretar com base na retórica oficial sobre a ascensão de Yusuf –, pois parece apontar para que o legítimo detentor do poder almorávida não fosse o agora senhor de Marraquexe. A história da desistência de Abu Bakr b. Umar pode ter sido mais ou menos fabricada por fontes favoráveis àquele que veio a tornar-se o “vencedor de Zallaqa”. Por outro lado, a data de 460 (11 de novembro de 1067 a 30 de outubro de 1068) para a existência de um poder bipartido mostra que Ibn Idari também não está correto quanto ao momento em que se iniciou a construção de Marraquexe e ao incidente que levou Abu Bakr b. Umar a deixar a cidade nas mãos de Yusuf. Se, por volta de 1067 ou 1068, a governação já se encontrava dividida, teremos de descontar, no mínimo, dois anos àquela data: é que Abu Bakr saiu de Marraquexe para conter os conflitos tribais, regressou dois anos

28 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 63. 29 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 320. 86 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

depois e, não podendo recuperar a governação, tomou de novo o caminho do deserto. Recuamos, pelo menos, até ao ano de 458 da Hégira, que decorreu entre 3 de dezembro de 1065 e 22 de novembro de 1066, para a saída de Abu Bakr com o objetivo de acudir à sua tribo, o que precede em cerca de cinco anos a cronologia apontada por Ibn Idari: o ano de 463 (9 de outubro de 1070 a 28 de setembro de 1071).30 Como al-Bakri é contemporâneo destes acontecimentos, por certo será digno de maior crédito. Aliás, Ibn Khaldun considera que a cidade de Marraquexe começou a ser construída em 454 (15 de janeiro de 1062 a 4 de janeiro de 1063).31 Em suma, de acordo com esta proposta, podemos posicionar o início da fundação desta cidade nos primeiros anos da década de 1060. Considerando que Abu Bakr viveu até cerca de 1086, concluímos que o poder bipartido no Magrebe se manteve por cerca de 20 anos. Durante duas décadas, um império do deserto, controlado por Abu Bakr a partir de Sijilmassa, concorreu com um império com potencial mediterrânico, comandado por Yusuf b. Tashfin a partir de Marraquexe.

Fig. 2: Estimativa das zonas de influência de Abu Bakr b. Umar e Yusuf b. Tashfin

30 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 42. 31 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:73. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 87

Ibrahim acabou por desistir dos intentos de reclamar a governação, afirma o mesmo Ibn Idari, porque o emir Mazdali, um dos leais companheiros de Yusuf, conseguiu convencê-lo a receber dinheiro e a regressar ao deserto. Uma vez mais se impõe a questão: trocou efetivamente a desistência por bens materiais, até porque já seria detentor de uma parte do comércio do ouro, ou chegou à conclusão de que não reunia poderio militar para derrotar Yusuf? As fontes não dão pistas sobre o desfecho da contenda, se foi travada alguma guerra entre fações ou se Ibrahim foi coagido a deixar a cidade de Sijilmassa para conservar a vida, mas estes episódios mostram que a confederação almorávida se encontrava dividida e que a legitimidade política seria frágil nos primeiros anos da carreira de Yusuf b. Tashfin. Também é significativo que os primeiros dinares conhecidos de Yusuf tenham sido cunhados justamente a partir de Sijilmassa, dois anos depois dos últimos atribuídos a Abu Bakr b. Umar,32 ou seja, um ano após a exigência do poder por Ibrahim. A morte de Abu Bakr em 478 (29 de abril de 1085 a 18 de abril de 1086) abre outra interessante janela de raciocínio. Podemos formular a hipótese de Ibrahim ter reclamado o poder durante a ausência de Yusuf para a campanha no al-Andalus, acreditando que Marraquexe estaria mais debilmente defendida. As fontes referem a presença de Ibn Aisha, Sir b. Abu Bakr e mercenários de várias tribos na composição do exército de Zallaqa.33 Não falam da participação de Mazdali. Evidentemente, tal não prova a sua ausência na batalha contra os cristãos, mas é possível imaginar que, ao sair da capital, Yusuf tenha deixado Mazdali ao comando – iria, aliás, fazê-lo governador de Granada e Córdova anos depois.34 Esta também pode ser a explicação para Ibrahim ter tido Mazdali como interlocutor, e não Yusuf. Resolvidas as questões no al-Andalus, o emir dos muçulmanos pode ter regressado para afastar de Sijilmassa o filho de Abu Bakr e assumir o poder total. De acordo com os exemplares disponíveis, só depois do desaparecimento de Abu Bakr e da campanha de Zallaqa, Yusuf

32 Vives y Escudero 1893, 239. 33 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 150-151. 34 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 142-143. 88 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

passou a emitir moeda. Ibn Abi Zar afirma que Yusuf começou a incluir o nome nas moedas cunhadas no seu território a partir de 473 (22 de junho de 1080 a 11 de junho de 1081), mas a verdade é que não existem estudos que referenciem espécimes com data tão recuada.35 Além disso, não faz grande sentido, pois Abu Bakr ainda se encontrava vivo nessa época e mantinha acesso ao ouro: Vives y Escudero inclui no seu tratado dinares deste emir cunhados em Sijilmassa no mesmo ano.36 Zallaqa pode, de resto, explicar o lapso de dois anos entre as últimas moedas de Abu Bakr e as primeiras de Yusuf. A historiografia tradicional assume uma continuidade entre Abu Bakr e Yusuf: morto o primeiro, o segundo teria começado a cunhar e, por isso, era forçoso que o primeiro tivesse falecido em 480, ano a partir do qual o segundo passou a emitir moeda. Mas pode não ter sido assim. Comparando as cronologias tão finamente quanto possível, surge a hipótese de um interregno associado à guerra no al-Andalus. E poderiam ter cunhado em simultâneo? Não parece crível, já que, de acordo com os indícios em Ibn Idari, o qual diz que Yusuf enviou presentes a Abu Bakr até que o mataram os negros, existia uma relação de vassalagem do primeiro para com o segundo. Mais: dos poucos exemplares de Ibrahim b. Abu Bakr disponíveis, existe um ano, o de 462, que coincide com a cunhagem do pai, o que sugere que estes, sim, poderiam emitir moeda em simultâneo. Ou seja, Abu Bakr por certo não encarava Yusuf como um herdeiro: essa condição caberia ao seu filho. As pistas apontam, assim, para que só um ano depois de Zallaqa o território magrebino tenha sido estabilizado, e após, tudo leva a crer, um processo de legitimação pleno de obstáculos. Idêntica fragilidade pode ser verificada no início do poder de Yusuf no al-Andalus. Também neste caso as fontes pretendem manter o emir ao largo de uma imagem de usurpador, de chefe militar que se dispõe a ajudar irmãos muçulmanos e acaba por fazer-lhes a guerra, um conflito militar que era interdito, porque direcionado contra indivíduos da mesma religião. No Magrebe e no Sael, as campanhas contra tribos não islamizadas estavam justificadas de acordo com os preceitos

35 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 145. 36 Vives y Escudero 1893, 237. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 89 da jihad. Já não deveria parecer aceitável proceder a operações de conquista entre muçulmanos. E, neste ponto, é claro o esforço das fontes no sentido de argumentarem a favor da culpa dos governantes do al-Andalus. Aliás, parecem querer transferir para a incúria dos reis de taifas toda a responsabilidade pela ascensão almorávida, como se, face às suas práticas condenáveis, entre as quais a pesada carga fiscal, que revertia a favor dos reinos cristãos por via das parias, a inexistência de operações de jihad contra os adversários e a preocupação com os prazeres do mundo, como a música, a literatura e as artes, os cavaleiros do deserto, enquanto verdadeiros seguidores do islão, não tivessem outra opção que não a apropriação do poder. Mesmo com todas estas falhas, pretendem transmitir as fontes, os almorávidas só entraram no al-Andalus após insistência da população e dos doutores de leis, que escreveram a Yusuf por diversas ocasiões. Na prática, apresentam a transição entre o sistema das taifas e o regime almorávida como uma inevitável obra pia de Yusuf. A vitória nos campos de Zallaqa, em 1086, da qual saiu na condição de campeão da religião muçulmana e que, como sublinha François Clément, constituiu um momento de redenção de uma comunidade martirizada pela injustiça,37 terá marcado o início do discurso legitimador do poder de Yusuf no al-Andalus, embora as raízes do descontentamento popular derivem, em grande medida, não apenas dos reis de taifas, mas do próprio sistema político. Um sentimento de insegurança e angústia pela incerteza quanto ao futuro do território repercutiu-se inclusive na poesia, com a ritha, género composto em honra de um defunto, a sofrer uma mutação e a passar a ser usada também para as cidades perdidas, entre as quais o caso de Toledo terá sido um dos mais dolorosos e inquietantes. Não só a poesia pressentiu a queda da cidade, certamente fruto da instabilidade, como depois lamentou o seu destino.38 Este desespero reverteu contra os reis muçulmanos, que não foram capazes de proteger e tranquilizar a população. Face à sua “culpa”, propaganda que foi fortemente disseminada entre a população, pois as fontes referem que esta não deu grande importância à queda dos governantes e, de início, até

37 Clément 1997, 196. 38 Foulon et Tixier du Mesnil 2009, 249-253. 90 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

saudou o movimento almorávida, os doutores de leis maliquitas, que muito contribuíram para o fim das taifas, apressaram-se a namorar o novo poder e a ratificar a deposição de al-Mutamid, de Abd Allah b. Buluggin e dos restantes monarcas, também eles encarados como usurpadores do poder califal de Bagdade. O caso de al-Mutawakkil de Badajoz seria ainda mais grave aos olhos dos ulemas, dada a entrega de Lisboa, Sintra e Santarém aos inimigos cristãos, e justificaria a pena de morte. Rachid El Hour designa por “política oportunista” a atitude dos doutores de leis do al-Andalus, que facilmente transitaram entre detentores da governação.39 François Clément vai no mesmo sentido e também fala de “puro oportunismo”.40 O investigador francês nota que, de início, foram os líderes políticos do al-Andalus a posicionar-se na vanguarda do apelo à intervenção almorávida para defender o território dos cristãos e que os ulemas só com a queda de Toledo para Afonso VI, em 1085, e de Sevilha para Yusuf, em 1091, começaram a pugnar pela queda das taifas.41 Três razões, segundo defende, explicam a opção: a pressão popular, catalisada pelo júbilo devido à vitória em Zallaqa, a propaganda almorávida que começou a circular no al-Andalus e os interesses pessoais dos próprios doutores de leis.42 François Clément defende ainda que a rejeição das taifas emanou sobretudo dos ulemas, que, muitas vezes, formalizaram a sua posição por escrito e de forma violenta, e que não era certo que a restante comunidade religiosa comungasse das mesmas ideias.43 Abd Allah b. Buluggin, por exemplo, relata que um doutor de leis de Sijilmassa, que se instalou em Badajoz e se encontrava ao serviço dos almorávidas, conspirava para a queda da taifa. Segundo diz, terá sido o medo deste Ibn al-Ahsan que terá levado o rei al-Mutawakkil a negociar com Afonso VI e a entregar-lhe as cidades de Lisboa, Sintra e Santarém.44 Também é notório o modo como o cádi Abu Muhammad b. al-Arabi, de Sevilha, preparou o terreno para a entrada dos almorávidas no al-Andalus, endereçando um pedido de parecer jurídico ao mestre oriental al-Ghazali,

39 El Hour 2006, 25. 40 Clément 1997, 94. 41 Clément 1997, 103-105. 42 Clément 1997, 106-111. 43 Clément 1997, 83. 44 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 338-339. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 91 numa carta que se assemelha a um manifesto a favor de Yusuf. O cádi começa por apontar as virtudes do emir – defensor da religião, protetor dos muçulmanos, detentor de uma origem árabe himiari (que, no entanto, pode ter sido fabricada)45 e vassalo do califa abássida – e continua a exposição com as faltas dos reis de taifas: usurparam o poder, usavam títulos califais de forma indevida, ordenavam que se pronunciasse em seu nome a khutba (oração em que, geralmente, era mencionado o califa), cunhavam moeda, fomentavam a dissensão entre si, tinham como assistentes escravos, libertos ou pessoas depravadas e pediam auxílio aos cristãos.46 Em poucas palavras, eram usurpadores e maus muçulmanos. Perguntava Ibn al‑Arabi se a Yusuf era legítimo combatê-los e, em caso de vitória, apropriar-se dos seus bens. A fatwa de al-Ghazali foi explícita: os muçulmanos, tanto governantes como súbditos, deveriam obedecer a Yusuf, pois este proclamava o califa abássida. Rejeitar a submissão a Yusuf equivalia, assim, a quebrar a fidelidade para com o “verdadeiro imam”, e justificava punição. Al-Ghazali refere um par de vezes que o facto de Yusuf ainda não ter recebido o documento que ratificava a sua investidura não anulava o dever de obediência dos muçulmanos para consigo,47 o que mostra que o pedido de legitimação e afastamento dos reis de taifas deve ter sido efetuado muito antes de a embaixada encabeçada pelo mesmo Abu Muhammad b. al-Arabi e pelo seu filho Abu Bakr ter partido rumo a Bagdade. Yusuf tentava segurar o poder por meio do parecer de um doutor de leis respeitado em toda a Umma enquanto não chegava o documento. Segundo Lévi-Provençal, num artigo de referência dedicado à legitimação do poder almorávida, o objetivo era obter do califado abássida a total legalização do exercício da governação,48 o que, dir-se-ia, anularia todos os “pecados originais” relacionados com a sua aquisição, tanto no Magrebe como no al-Andalus. François Clément vai mais longe e põe em causa o alegado motivo altruísta da viagem de Ibn al-Arabi, pai e filho, e sugere que seguiram para o Oriente, no

45 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:2-3; Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 51. 46 Viguera 1977, 351-352. 47 Viguera 1977, 353-355. 48 Lévi-Provençal 1955, 265-280. 92 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

início de 1092, depois da conquista de Sevilha,49 sobretudo por precaução, na esperança de que o rumo dos acontecimentos no al‑Andalus estabilizasse, de caminho reforçando os seus laços com o novo regime.50 A procura de legitimidade não é nada que Abu Bakr b. Umar ou o seu filho Ibrahim não tenham tentado garantir antes de Yusuf, como bem demonstram as moedas por estes emitidas, que deixam clara a tutela do califa abássida, através da fórmula “al-Imam Abd Allah Amir al-Muminin”. Antonio Vives y Escudero inclui no seu tratado apenas a transcrição, e não uma reprodução das moedas.51 Mas uma análise a imagens de numismas emitidos por Abu Bakr permite confirmar as informações do historiador espanhol. Aliás, fica claro que, quando começou a cunhar moeda, Yusuf se limitou a imitar o modelo de Abu Bakr e de Ibrahim. O próprio Lévi-Provençal, que afirma ter este chefe sariano sido muito menos obscuro do que se pensa, sem, no entanto, justificar a afirmação, regista que “Abu Bakr b. Umar, no mesmo espírito que havia de animar o seu sucessor, marca a sua homenagem, pelo menos teórica, ao califa abássida”.52 Sublinha ainda que já no século XI das taifas era, por vezes, incluída uma menção ao “imam Abd Allah”, uma personagem fictícia que, aos olhos dos soberanos do al-Andalus, representava o califa abássida. Tal inclusão, diz Lévi-Provençal, corresponderia mais a uma profissão de fé do que a uma vassalagem.53 Poderá ter sido também esta a condição de Abu Bakr b. Umar. Mas, independentemente de a sua homenagem ser ou não efetiva, as referidas informações vêm corroborar a tese de que tinha de si uma noção de soberano e que desde o início se preocupou com a legalidade do seu poder. Não deixa de ser interessante considerar a possibilidade de Yusuf se ter apressado a pedir a legitimação também devido ao perigo que representavam Abu Bakr b. Umar e seus herdeiros – lembremos que Ibn al-Arabi endereçou o pedido de parecer jurídico a al-Ghazali ainda antes de a embaixada partir para Bagdade –, questão que seria certamente mais fácil de ultrapassar com

49 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:13. 50 Clément 1997, 94-95. 51 Vives y Escudero 1893, 235. 52 Lévi-Provençal 1955, 265-256. 53 Lévi-Provençal 1955, 266. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 93 os argumentos de uma marcante vitória contra os cristãos e da conquista da Sevilha de al-Mutamid, o qual, como os restantes reis de taifas, se tinha apropriado do poder califal e cortado a obediência a Bagdade. Dir-se-ia que, para marcar a diferença face a Abu Bakr e à sua linhagem, e dar provas de maior merecimento da governação perante o califado abássida, Yusuf necessitava mesmo de atravessar o Estreito de Gibraltar e amealhar um sucesso sobre os cristãos: vitórias na jihad contra as tribos berberes e negras não islamizadas já Abu Bakr b. Umar incluía na sua carreira militar. A historiografia moderna tem, evidentemente, de matizar o alegado auxílio benévolo de Yusuf aos reis de taifas com os interesses políticos e económicos do líder almorávida, que passariam pela conquista do Magrebe e do al-Andalus e pela consequente ligação das rotas comerciais entre os dois territórios. Na subida ao poder, tanto no Magrebe como no al-Andalus, Yusuf b. Tashfin recorreu ao apoio dos ulemas maliquitas. Não por acaso, uma das primeiras medidas que tomou ao tornar-se emir foi a delegação do poder judicial nos cádis no território do Magrebe, a quem pagava do tesouro público54 – lembremos que Abd Allah b. Yasin, fundador do movimento almorávida, tinha o cuidado de gratificar os ulemas a partir do produto do saque. Além disso, sempre que necessário, Yusuf não hesitava em pedir pareceres a sábios muçulmanos estrangeiros, caso de al‑Ghazali, o mesmo cuja obra Ihya Ulum ad-Din (Revivificação das Ciências da Religião) seria queimada publicamente ao tempo do seu filho Ali e do seu neto Tashfin. Ibn al-Qattan al-Marrakushi dedica algumas linhas ao primeiro destes episódios de queima, instigado pelo cádi Ibn Hamdin e pelos doutores de leis de Córdova, em 503, que decorreu entre 31 de julho de 1109 e 20 de julho de 1110.55 Mas, se os doutores de leis maliquitas foram a base do poder almorávida desde o início, verificamos que outros atores políticos tiveram de encontrar alternativas. O movimento almóada é um exemplo evidente. Muhammad b. Tumart, seu fundador, ao procurar depor os almorávidas, necessitava de uma narrativa fraturante para justificar a sua ascensão, pelo que rejeitou o

54 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 140; El Hour 2006, 188. 55 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 70-72. 94 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

maliquismo, em que os senhores de Marraquexe se apoiavam. Apesar de utilizar um modelo semelhante para afirmar-se, que consistia no recurso a um líder espiritual sustentado por uma estrutura militar forte, foi obrigado a delinear uma nova estratégia: reclamou então a condição de mahdi, isto é, de messias profetizado pelo islão para governar no fim dos tempos, por natureza dotado de infalibilidade (isma), o que significava que as suas decisões não admitiam questionamento. Esta opção de Ibn Tumart, mais tarde, obrigaria Abd al-Mumin a produzir um discurso legitimador inesperado. Não podendo apoiar-se na rede judiciária maliquita – vemos, por exemplo, que, entre 1147 e 1148, o respeitado cádi Iyad, cuja principal preocupação seria o restauro da ortodoxia maliquita, fomentou uma revolta em Ceuta contra o poder almóada, que tinha acabado de conquistar a cidade56 –, forjou uma genealogia que remontava ao Profeta e ao mahdi Ibn Tumart, que também se dizia da linhagem de Maomé, o que lhe daria o direito de reclamar a condição de califa.57 Procurando tirar partido do enfraquecimento almorávida no al-Andalus a partir da morte do emir Ali b. Yusuf, em 1143, Ahmad b. Qasi foi outro líder que não pôde recorrer à classe de doutores de leis maliquitas para se legitimar. Tomando o sufismo como suporte do seu movimento político, também se afastava da ortodoxia. Para afirmar-se como líder independente durante a chamada fase das segundas taifas, tal como Muhammad b. Tumart, reclamou uma condição de messias. A opção traduzia um conhecimento profundo da realidade do Gharb al-Andalus, em cujo meio rural as tendências místicas se encontravam difundidas. A figura do mahdi, do “salvador”, consubstanciava a resposta a uma necessidade de voz política das camadas sociais desfavorecidas.58 As dificuldades impostas pela violência, das quais a instabilidade social, a incerteza do quotidiano, a fiscalidade elevada e, não raras vezes, a escassez de alimentos e a especulação associada ao respetivo preço, levavam as comunidades a depositar no sobrenatural a confiança para repor a justiça no mundo.59

56 Lourinho 2010, 21-22 e 41-42. 57 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928b, 32-35; Fierro 2003, 85. 58 Lourinho 2010, 9. 59 Fernandes 1996, 76-77. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 95

Esse papel de “salvador” terá Yusuf desempenhado, ainda que não formalmente, no início da sua intervenção tanto no Magrebe quanto no al-Andalus. Vítimas dos abusos dos zanatas, as populações de várias cidades do Norte de África viam os almorávidas como os agentes que iriam repor a ordem e o bem.60 Na Península Ibérica, não foi diferente. Com a evidente exceção de Sevilha, que ofereceu resistência durante um cerco de meses, as populações do al-Andalus não choraram a queda dos reis de taifas. As gentes de Badajoz, de acordo com as memórias de Abd Allah de Granada, ajudaram inclusive os almorávidas a entrar na cidade.61 Ironicamente, o final do domínio exercido pelos homens do deserto seria marcado a ferro e fogo pelo mesmo sentimento de injustiça catalisado pela excessiva carga fiscal de que se queixavam as populações que assistiram ao ocaso das taifas. Qualquer que seja a época, poucos motivos contribuirão mais para a impopularidade de um regime do que o fardo dos impostos, sobretudo sentido como um confisco quando são questionáveis os motivos que lhe subjazem.

Abd Allah b. Yasin e a guerra santa

Quando Yusuf b. Tashfin se apropriou do poder, de acordo com o que é possível inferir de al-Bakri por volta de 1065 ou 1066, já o mentor do movimento almorávida, Abd Allah b. Yasin, tinha morrido na guerra, e o partido levava, pelo menos, duas décadas de existência. Figura controversa, inclusive para as fontes, que estranham as suas doutrinas,62 a Ibn Yasin se deve a formação de um grupo militar de origem heterogénea, agregado com a força de uma ideologia: a guerra santa (jihad), que, nas primeiras décadas, foi sobretudo dirigida contra muçulmanos, algo que, apesar de impedido pelo Corão, contou com a procura constante de um discurso legitimador. As fontes não são coincidentes quanto às circunstâncias da sua chegada e permanência entre as tribos do Magrebe, a

60 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 114. 61 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 341. 62 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 319. 96 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

começar pelas datas. Em nota de rodapé à tradução do al-Bayan al-Mugrib, Huici Miranda explica que, de acordo com a fonte, temos de situar o aparecimento desta personagem em 1035 ou 1036, enquanto, segundo al-Bakri, Ibn Khaldun e o anónimo al-Hulal al‑Mawsiyya, é necessário transferir o evento para 1048 ou 1049.63 Já Djannabi, apesar de referir o começo dos almorávidas, mantém-se silencioso a propósito de datas. Concorda com a generalidade das fontes no que se refere à tese de Ibn Yasin ter sido chamado para ensinar a religião às tribos berberes, nomeadamente os gudalas, as quais seriam debilmente islamizadas. Algumas apenas conheceriam “a dupla forma da profissão de fé [‘só há um Deus e Maomé é o seu mensageiro’] e a oração [obrigatória cinco vezes ao dia]”.64 E, se este pedido para doutrinar os gudalas parece consensual, o mesmo não pode dizer-se do emissor do convite. Ibn Abi Zar refere que foi o emir daquela tribo, Yahia b. Ibrahim, que o Kitab Mafakhir al-Barbar diz ter sido o primeiro rei dos sanajas do deserto,65 de regresso da peregrinação ao Oriente e ao passar por Cairuão, quem pediu ao doutor de leis Abu Imran al-Fasi – bem representado na compilação de fatawa (peças de jurisprudência) organizada por al-Wansharisi – que lhe enviasse um discípulo disposto a aceitar a missão.66 O al-Hulal al-Mawsiyya, o Kitab Amal al-Alam, o Kitab al-Istiqsa e o al-Bayan al-Mugrib, pese embora o último esteja truncado em algumas passagens, encontram-se de acordo quanto a esta informação, mas acrescentam que, falando com os seus discípulos, nenhum aceitou o repto, e que Abu Imran indicou ao emir um conhecido que habitava na região do Sus, no extremo Magrebe, a quem deveria entregar uma carta da sua parte a explicar o sucedido, para que este designasse então alguém que se dispusesse a ensinar os gudalas.67 Por sua vez, o cádi Abu al-Fadl Iyad b. Musa b. Iyad al-Yahsubi, eminente figura da religião, política e literatura, que, entre outros, exerceu funções em Ceuta e foi autor da obra Tartib al-Madarik wa Taqrib al-Masalik,68 assim como

63 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 11-12; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 26. 64 Djannabi [1550-1590?] 1924, 355. 65 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 52. 66 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 122-123. 67 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 27-28; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 138; Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 115; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 11-12. 68 Ibn Bashkwal dedica-lhe uma entrada no seu dicionário biográfico. Estudou no al-Andalus e no Oriente, e foi juiz em Ceuta, Granada e Córdova ([1115-1183?] 2003, 539). Foi desterrado para 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 97 al-Nuwayri,69 dizem que um homem dos gudalas, conhecido como al-Jawhar al-Sakkur, no regresso da peregrinação a Meca, passou pelo Sus e entrou em contacto com um doutor de leis para que lhe enviasse um discípulo que ensinasse o seu povo.70 Ibn al-Athir também diz que o pedido foi efetuado por al-Jawhar, mas afirma que o encontro ocorreu não no Sus, mas em Cairuão, com Abu Imran.71 Djannabi é igualmente da opinião de que foi al-Jawhar quem fez a peregrinação e trouxe de Cairuão um jurista para ensinar as suas gentes: Abd Allah b. Yasin. Nesta versão, Ibn Yasin e al-Jawhar entraram primeiro em contacto com os lamtunas e só depois reforçaram os ensinamentos dos gudalas.72 Al-Bakri, fonte do século XI, mais próxima da ocorrência dos factos, refere, porém, que foi Yahia b. Ibrahim, o emir dos gudalas, quem empreendeu a viagem a Meca e, no regresso, abordou Abu Imran em Cairuão e, face à recusa dos discípulos deste em aceitarem o convite para ensinarem a sua tribo, rumou ao Sus para falar com outro homem, que havia de lhe indicar uma alternativa.73 Tanto Jacinto Bosch Vilá74 como Vincent Lagardère75 dão destaque à versão de que foi o emir Yahia b. Ibrahim a fazer a peregrinação e a apelar para Abu Imran em Cairuão. H. T. Norris procura desfazer o mistério sobre al-Jawhar e propõe que ele teria sido um jurista que acompanhou o emir Yahia b. Ibrahim na sua peregrinação a Meca e que, dado um possível deficiente conhecimento da língua árabe pelo último, teria desempenhado o papel de intérprete e intermediário nas negociações em Cairuão.76 Mas as incertezas impendem sobre aspetos com interesse relativo para a progressão do raciocínio, pois o objetivo não é estabelecer uma biografia de Ibn Yasin. Importante é o facto de este imam, proveniente do Sus, bastião maliquita numa região rural onde pululavam as heresias,77 ter alcançado as pouco

Marraquexe, onde morreu, depois de ter liderado uma revolta, em Ceuta, contra o poder almóada entre 1147 e 1148 (Lourinho 2010, 42). 69 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:180. 70 Iyad b. Musa b. Iyad al-Yahsubi [1100-1149?] 1971, 255-256. 71 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 463. 72 Djannabi [1550-1590?] 1924, 355. 73 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 312-313. 74 Bosch Vilá 1998, 49-50. 75 Lagardère 1989a, 45-46. 76 Norris 1971, 259. 77 Von Sivers 2000, 25. 98 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

islamizadas tribos do Magrebe e criado uma ideologia que depressa se tornaria o pano de fundo legitimador de um novo movimento político, financiado pelo controlo das ricas rotas comerciais a ligar a África subsariana ao Mediterrâneo. Também são perfeitamente ultrapassáveis as inúmeras dúvidas, contradições e versões sobre as circunstâncias do corte de Ibn Yasin com os gudalas e da sua implantação entre a tribo lamtuna. Vejamos o que dizem as fontes: • Ibn Idari refere que al-Jawhar incitou uma revolta contra Ibn Yasin e as regras rígidas que impunha, devido ao que designa por contradições.78 Mas não acrescenta explicações; • o al-Hulal al-Mawsiyya revela a mesma ausência de informações. Limita-se a referir que, quando Ibn Yasin percebeu o empenho da tribo lamtuna na guerra santa, lhe atribuiu o domínio sobre o Magrebe.79 Nem sequer refere a morte do emir Yahia b. Ibrahim como possível ponto de viragem para a saída de Ibn Yasin do seio dos gudalas; • Ibn Abi Zar é outra fonte que omite as circunstâncias que levaram Ibn Yasin a escolher os lamtunas. Menciona unicamente que, por morte de Yahia b. Ibrahim, Ibn Yasin quis nomear outro emir e deu preferência ao chefe dos lamtunas;80 • o cádi Iyad, por sua vez, diz que al-Jawhar foi mandado executar por Ibn Yasin por ter fomentado uma revolta;81 • Ibn al-Athir chega ao ponto de afirmar que Ibn Yasin transitou dos gudalas para os lamtunas, porque os primeiros não queriam oprimir as outras tribos e, assim, a honra de assumir o cargo de emir foi atribuída ao chefe dos lamtunas;82 • na opinião de al-Nuwayri e de Djannabi, depois de ensinar os lamtunas, Ibn Yasin e al-Jawhar chegaram aos gudalas: alguns membros da tribo aceitaram as suas predicações, mas outros recusaram-se a obedecer.

78 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 14. 79 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 30. 80 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 128. 81 Iyad b. Musa b. Iyad al-Yahsubi [1100-1149?] 1971, 259. 82 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 463-464. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 99

Então, segundo afirmam, Ibn Yasin insistiu para que escolhessem um chefe, e os gudalas apontaram o imam como solução. Ibn Yasin recusou e indicou al-Jawhar, que tão-pouco aceitou o cargo, pelo que ambos decidiram que o novo emir seria o homem forte dos lamtunas: de acordo com estas fontes, Abu Bakr b. Umar, o que constitui mais um erro grosseiro. A certa altura, continuam al-Nuwayri e Djannabi, al-Jawhar começou a ser acometido pela inveja, e Ibn Yasin e Abu Bakr decidiram que deveria ser sujeito à pena de morte;83 • muito interessado em enaltecer Abd Allah b. Yasin, al-Nasiri nem sequer fala da morte de Yahia b. Ibrahim ou da expulsão do imam, fazendo uma ligação direta entre a descrição dos ensinamentos deste, a vida num ribat rodeado por uma força militar e o começo das campanhas de guerra santa.84

Apesar de Ibn Idari, de o cádi Iyad, de Ibn al-Athir e de Ibn al-Khatib aludirem à rigidez imposta por Ibn Yasin junto dos gudalas, apenas Ibn Khaldun e al-Bakri esclarecem sobre a natureza dos seus preceitos e as razões por que teve de mudar de grupo de apoio. De resto, parecem as fontes mais credíveis, e aquilo que nos transmitem permite concluir que, mais do que um modesto imam, Ibn Yasin era um verdadeiro ator político. Ibn Khaldun explica que, por morte do emir dos gudalas, Yahia b. Ibrahim, surgiram revoltas entre as tribos e que Ibn Yasin foi obrigado a fugir devido à disciplina que impunha.85 Al-Bakri vai mais longe, sendo, na verdade, a fonte que fornece maior riqueza de informações. Segundo afirma, os gudalas obedeceram a Ibn Yasin até que, tendo notado contradições entre as exigências que fazia e a sua própria conduta, al-Jawhar se aliou a duas personagens da elite e conseguiu privá-lo do direito de impor regras à tribo. Retiraram-lhe a administração dos dinheiros públicos, destruíram a sua casa e deixaram que fosse pilhada. Tendo fugido das tribos sanajas, Ibn Yasin procurou o seu mestre no Sus, Wajjaj b. Zalui al-Lamti, o qual determinou que todos os que lhe desobedecessem fossem declarados inimigos da fé e separados do corpo dos verdadeiros crentes.

83 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:181-182 e 184; Djannabi [1550-1590?] 1924, 355-356. 84 Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 121-122. 85 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:68. 100 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Com esta decisão na bagagem, Ibn Yasin regressou para junto das tribos berberes e deu ordem para que fossem eliminados todos os que se tinham manifestado contra si. Pouco a pouco, tornou-se senhor das tribos do deserto, marchou contra os lamtunas e exigiu que estes lhe entregassem um terço dos seus bens para “purificar” o uso dos restantes dois terços. Condição aceite, a tribo entrou na confederação e, com o tempo, começou a destacar-se na guerra pela bravura, que levava os seus homens a preferirem a morte à fuga do campo de batalha. Além disso, o seu líder, Yahia b. Umar, manifestava uma obediência profunda a Ibn Yasin. Esta coragem e submissão – e, provavelmente, a animosidade dos gudalas, junto dos quais Ibn Yasin se sentiria desconfortável, dada a rebelião após a morte de Yahia b. Ibrahim – valeriam ao chefe dos lamtunas, mais tarde, a designação enquanto emir da confederação almorávida.86 Nada mais valioso do que um guerreiro destemido, que obedece cegamente às ordens do seu senhor. Aliás, as fontes são claras quanto ao verdadeiro detentor do poder, que não era o emir dos lamtunas. Rachid El Hour defende que Ibn Yasin concentrava os poderes político e religioso e, aos emires, era sobretudo reservado um papel executivo.87 Em Abd Allah b. Yasin, a perspetiva política, alicerçada num corpus ideológico de natureza religiosa, é a mais interessante. Líder carismático, conseguiu mobilizar as pouco islamizadas tribos berberes do deserto. Vincent Lagardère defende que deu origem a um movimento de renovação no mundo muçulmano e catapultou tribos desconhecidas para a vanguarda da história.88 Já as palavras de Hussain Monés contribuem para centrar o raciocínio: o historiador egípcio defende que Ibn Yasin não seria um modesto aluno de um doutor de leis, convocado para islamizar as tribos berberes, mas “um agitador político experiente”, que estudou durante vários anos no al-Andalus e começou por avaliar a possibilidade de uma base de apoio militar entre os bargauatas, para depois decidir que não eram suficientemente numerosos para os seus projetos. Tentou em seguida unir algumas tribos masmudas, que

86 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 313-315. 87 El Hour 2006, 187. 88 Lagardère 1989a, 180-181. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 101 mais tarde seriam o pilar do movimento almóada. Mas também terá acabado desiludido com as extremas dissensões entre estes povos.89 As mesmas ideias são, de resto, transmitidas por Ibn Idari no al-Bayan al-Mugrib.90 Ao desistir das suas intenções de arregimentar os masmudas, Ibn Yasin decidiu entrar para um círculo de estudiosos no Magrebe extremo, onde viria a ser contactado para a missão de ensinar os gudalas.91 O futuro caía-lhe no colo. Finalmente, poderia pôr em prática os seus planos. Hussain Monés, historiograficamente próximo dos almorávidas, não deixa de afirmar que Ibn Yasin, apesar de uma fé profunda, explorava a confiança de Yahia b. Ibrahim e usava a tribo dos gudalas para concretizar as suas aspirações.92 Rachid El Hour explica que, ao passar para a tribo dos lamtunas, com Yahia b. Umar, tornou-se o líder absoluto do movimento almorávida, desempenhando inclusive o papel de cádi e tomando decisões nem sempre em acordo com a lei.93 Apropriar-se de um terço dos bens dos membros das tribos para “purificar” o uso dos restantes dois terços, fazer estalar o chicote a propósito de qualquer pretexto que considerasse uma falha ou mandar executar um faltoso estavam entre as suas práticas mais frequentes. Os povos vencidos na guerra que desejavam entrar na confederação recebiam o mesmo tratamento.94 Também pouco convencional seria o recurso à guerra santa contra muçulmanos. Maomé pregava a jihad contra os que desafiavam a vontade de Deus, ou seja, os não-muçulmanos, opondo a chamada Dar al-Islam ou “casa do islão” à Dar al-Harb ou “casa da guerra”. Na prática, estabelecia o confronto entre os domínios islamizados e os territórios de potencial conquista, com a guerra entre muçulmanos interdita porque considerada blasfémia. Não menos vedada estava a sua prática contra os povos que, não sendo islamizados, aceitassem pagar tributo. A questão da guerra santa remete para mais uma controvérsia: o alegado ribat fundado por Ibn Yasin, trave-mestra do edifício ideológico do seu

89 Monés 1967-1968, 55-56. 90 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 17-18. 91 Monés 1967-1968, 55-56. 92 Monés 1967-1968, 57. 93 El Hour 2006, 187. 94 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 319-320. 102 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

movimento. Deste termo deriva, aliás, a designação “almorávida”: Ibn Yasin designa os seus seguidores por “homens do ribat”, como referem, por exemplo, Ibn Abi Zar95 e Djannabi.96 Mas, à semelhança de tantos outros aspetos associados ao início do movimento, não há consenso quanto à localização, às circunstâncias da sua fundação ou sequer à própria existência desta estrutura e, quando as fontes entram em conflito, os historiadores tendem a especular. Ibn Abi Zar menciona a construção de um ribat numa zona que se transformava em ilha com a subida da maré, a partir da qual Ibn Yasin teria organizado os seus seguidores para lançar as campanhas militares sobre os inimigos.97 A descrição remete para a ilha de Ayuni, indicada por al-Bakri na sua obra, sem que, no entanto, este refira uma implantação de Ibn Yasin no local.98 A única coisa que menciona é a construção de uma cidade – Aratnana – a mando do imam.99 Também nada dizem sobre um ribat Ibn Idari e Ibn al-Athir. Ibn Khaldun faz alusão a uma ilha ou, mais concretamente, a uma colina rodeada pelas águas do rio Níger, mas refere que Ibn Yasin se mudou para este local depois de ter sido expulso pelos gudalas no seguimento da morte de Yahia b. Ibrahim.100 H. T. Norris sugere que Aratnana, palavra berbere, possa significar “o nosso mato”,101 o que poderia ir ao encontro de Ibn Khaldun, que explica que a colina era coberta por matagal.102 Ibn al-Khatib, por sua vez, fala da reclusão numa ilha após Ibn Yasin ter sido expulso, mas afirma que Yahia b. Ibrahim, o emir dos gudalas, o acompanhou.103 Al-Nasiri refere apenas a reclusão num ribat, sem especificar nome, local ou circunstâncias.104 Por meio de um discurso que podemos ver recuperado na narrativa de al‑Nasiri, composta no século XIX,105 Ibn Abi Zar é detalhado sobre as atividades no ribat e diz que Ibn Yasin ensinou aos seus seguidores:

95 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 126. 96 Djannabi [1550-1590?] 1924, 355. 97 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 126. 98 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 323. 99 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 313. 100 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:68 101 Norris 1971, 258. 102 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:69. 103 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 139. 104 Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 120. 105 Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 120-121. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 103

O Corão, a sunna [tradição do Profeta], as abluções, a oração, as esmolas e os demais preceitos divinos. Depois de solidamente instruídos, começou a pregar-lhes, inspirando-lhes o desejo do Paraíso e o temor do fogo; aconselhou a piedade, a obediência às regras e o afastamento dos pecados e explicou-lhes quais os grandes prémios que Deus lhes dava por serem cumpridores. Depois, exortou-os à guerra santa contra os que se lhes opusessem das tribos sanajas.106

O treino terá sido de tal modo eficaz que, de acordo com a mesma fonte, bastaria uma ordem de Ibn Yasin para os seus discípulos assassinarem os próprios pais. Apesar de muitas das suas práticas não serem conformes ao islão, Ibn Yasin procurava justificá-las face à não submissão das tribos ao seu poder e, assim, à vontade de Deus, como refere Ibn Abi Zar,107 ou com as pretensas falhas das populações visadas, como aconteceu, por exemplo, na conquista de Awdaghust, cidade tratada com “rigor” devido à obediência ao soberano do Gana.108 No entanto, a tomada de Awdaghust seria uma inevitabilidade, pois, para que Ibn Yasin e os seus almorávidas se apoderassem da mais ocidental rota do ouro, precisavam de controlar esta cidade, que estava ligada a Sijilmassa pelas caravanas que iam e vinham da África subsariana. Ou seja, obedecendo ou não ao soberano do Gana, esta era uma operação militar que teria de ocorrer, se o novo movimento político queria afirmar-se: no fundo, fazia-o à custa de declarar todos os rivais como não-muçulmanos ou, pelo menos, como maus muçulmanos. A pretexto do desrespeito das tribos pela vontade de Deus, de que ele, Ibn Yasin, era o executor, legitimava os seus planos de conquista territorial e de união das tribos berberes debaixo de uma liderança forte, contornando o impedimento da guerra entre irmãos de religião. Podemos, aliás, observar que, mais tarde, Yusuf b. Tashfin procurou também nas falhas dos reis de taifas a justificação para a guerra contra muçulmanos. Com o seu filho, Ali b. Yusuf, o conceito de jihad conheceu outra importante transformação. Dados os perigos e a dificuldade em realizar a peregrinação a Meca, este emir consultou os doutores de leis para indagar se poderia substituir aquela obrigação. A resposta foi não só afirmativa, como sublinhou os méritos da guerra santa face aos da

106 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 126. 107 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 126. 108 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 317. 104 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

peregrinação.109 A prática da jihad tornou-se também pessoal, uma novidade no mundo almorávida, e rapidamente surgiram contingentes de voluntários a engrossar os exércitos, com frequência sem preparação militar e condenados ao massacre. Face ao advento do movimento almóada e ao acirramento da guerra a partir dos anos de 1130, os almorávidas foram obrigados a transferir tropas e equipamento militar do al-Andalus para o Norte de África, o que tornou mais urgente a guerra santa pessoal em território ibérico.110 A busca da redenção e dos favores divinos justificavam a aceitação do martírio.111

Submissão das tribos sanajas e constituição de um grupo de apoio

Não têm cidades. Não permanecem por muito tempo num lugar. Cruzam o deserto numa extensão de dois meses de largura por outros tantos de comprimento, entre as terras do islão e o País dos Negros. Assim é caracterizado por Ibn Hawqal,112 por al-Bakri,113 pelo anónimo al-Hulal al-Mawsiyya114 e por Abd al-Rahman al-Sadi, na sua Tarikh al-Sudan, que replica o conteúdo da fonte anterior,115 o modo de vida das tribos sanajas do deserto, futura estrutura da confederação almorávida. Ibn Hawqal acrescenta que não conheciam os cereais e se alimentavam de leite e, por vezes, de carne. No deserto, orientavam-se pelas estrelas e sabiam como encontrar água.116 A informação é confirmada por al-Bakri e por Ibn al-Khatib, que referem que estas tribos não praticavam a agricultura nem a recoleção e tinham como única riqueza os rebanhos, fazendo a sua dieta à base de leite e de carne.117 Al‑Bakri diz que alguns nem sequer sabiam da existência do pão e que outros só o experimentavam quando os

109 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 63 e 65. 110 Lagardère 1998, 173-181. 111 Penelas 2004, 454-456. 112 Ibn Hawqal [966-988?] 2001, 1:99. 113 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 310. 114 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 22-23. 115 Abd al-Rahman b. Abd Allah b. Imran b. Amir al-Sadi [1610-1660?] 1900, 42. 116 Ibn Hawqal [966-988?] 2001, 1:99. 117 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 310; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 137. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 105 comerciantes o traziam. As suas terras situavam-se a pouca distância do País dos Negros: consoante as tribos, poderiam estar a apenas seis dias de marcha.118 Sobre este autêntico estado pré-neolítico, que era o das tribos sanajas do deserto, as quais se dedicavam ao pastoreio e retiravam o sustento dos seus rebanhos, refletiu John Keegan. Embora os seus pensamentos sejam sobretudo direcionados para os povos das estepes da Ásia Central, como os hunos e os turcos, existem similaridades, pelo que a evocação da sua obra mantém a validade. Aliás, Ibn Khaldun já estabelecia um paralelo entre povos nómadas, “os mais selvagens seres humanos que existem”, patamar onde incluía os árabes, os berberes do Magrebe, os curdos, os turcomanos e os turcos.119 Para o especialista inglês em história militar, os pastores nómadas eram mais propensos à guerra do que os agricultores, e foi da sua tradição que descenderam os guerreiros mais temidos, na medida em que sabiam como esquartejar e matar sem provocar grandes danos nas carcaças, sabiam desferir um golpe letal de uma só vez, sabiam gerir o rebanho, dividi-lo em grupos fáceis de controlar e isolar os seus líderes, sabiam como abater os escolhidos e deixar os restantes sob domínio. “Foi essa gestão do rebanho, tanto no abate como no corte de carne, que tornou os pastores adeptos implacáveis do confronto físico com os agricultores sedentários das terras civilizadas”, conclui Keegan.120 Estavam, assim, mais aptos para a guerra e eram temidos pelas gentes das cidades ou, como dizia Ibn Khaldun, tinham mais tendência do que os povos sedentários para alcançarem a superioridade, graças à bravura e à solidariedade tribal.121 Se o modo de vida destas tribos se encontra perfeitamente caracterizado e não oferece dúvidas, o mesmo não poderá dizer-se sobre a sua origem, envolta em polémica. Segundo o al-Hulal al-Mawsiyya e a Tarikh al-Sudan, os sanajas descendiam do ramo da tribo iemenita de himiar que se converteu ao islão nos primeiros tempos de implantação da religião e foi obrigado a fugir para o Magrebe devido a perseguição. Os fugitivos optaram por velar o rosto para se esconderem e escaparem à morte, e esta prática acabou por

118 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 310. 119 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 93. 120 Keegan 2006, 218-219. 121 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 107. 106 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

transformar-se num símbolo da sua identidade.122 Ibn al-Khatib, no Kitab Amal al-Alam, explica que o grupo dos sanajas era composto por 70 tribos, todas descendentes de himiar.123 Ibn al-Athir e Djannabi também fazem remontar a origem dos sanajas à tribo de himiar e acrescentam que foram do Iémen para a Síria, depois para o Egito e finalmente para o Magrebe, nas forças de Musa b. Nusayr, conquistador do al-Andalus.124 Já segundo o anónimo Kitab Mafakhir al-Barbar, o epónimo dos sanajas foi Sanhaj b. Yasu b. Misur, de origem controversa: a fonte explica que alguns especialistas a faziam remontar a uma personagem de onomástica berbere, Yarb b. Qattan, enquanto outros estabeleciam uma ligação à tribo de himiar. Face à dúvida, remata com a fórmula “Deus é que sabe”.125 Também Ibn Khaldun dá conta destas dúvidas. Segundo explica, os genealogistas não eram consensuais quanto à origem dos sanajas: uns defendiam uma ascendência himiari;126 outros, linhagens berberes, mas nem estas eram coincidentes. Porém, o historiador tunisino parece dar maior credibilidade “aos genealogistas berberes mais rigorosos”, que propunham uma ancestralidade magrebina, e não árabe.127 Na prática, a alegada origem árabe dos sanajas, que as fontes vão repetindo por darem eco umas das outras, pode ter sido forjada para que aqueles obtivessem legitimação. Resta saber face a quem e em que momento. A carta que o cádi de Sevilha, Abu Muhammad b. al-Arabi, endereçou ao mestre oriental al-Ghazali entre a vitória de Zallaqa e a tomada da cidade do Guadalquivir pelos almorávidas, ou seja, entre 1086 e 1091, solicitando um parecer jurídico sobre a legitimidade de Yusuf b. Tashfin conquistar o al-Andalus, remover os reis de taifas e apropriar-se dos seus bens, já menciona esta pretensa origem himiari e pode constituir uma pista.128 Todas as outras fontes disponíveis que afirmam uma ancestralidade himiari são posteriores e podem ter emulado a missiva de Ibn al-Arabi, o qual muito se esforçou para

122 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 24-26; Abd al-Rahman b. Abd Allah b. Imran b. Amir al-Sadi [1610-1660?] 1900, 43-44. 123 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 137. 124 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 462; Djannabi [1550-1590?] 1924, 355. 125 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 51. 126 “Himiari” corresponde ao gentílico: “A tribo de himiar”, mas “uma origem himiari”. 127 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:2-3. 128 Viguera 1977, 351-352. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 107 conferir um respaldo legal ao poder almorávida no al-Andalus. Teria sido este prestigiado juiz a criar uma linhagem árabe para Yusuf ou será que a ideia de uma ascendência iemenita é mais antiga? Ou terá surgido para legitimar outra personalidade? Lembremos, por exemplo, que os ziridas, reinantes em Mahdia, mas também na taifa de Granada até 1090, constituíam outro ramo dos sanajas e que poderiam estar igualmente interessados numa origem árabe. Não existem respostas seguras para tais questões. Certo é que, a partir da primeira metade do século XI, estes nómadas, que não conheciam as cidades nem tão-pouco o pão e, no deserto, se orientavam pelas estrelas, iriam tomar as principais cidades do Magrebe, fundar uma capital, acrescentar Ceuta às suas possessões, ligar territorialmente as duas margens do Estreito de Gibraltar e alcançar a ultraperiférica fronteira do Gharb al-Andalus, onde conquistaram primeiro Lisboa e, já no século XII, Santarém, tornando-se no interlocutor do Condado Portucalense e dos primeiros tempos do reino de Portugal. Antes de lançar-se na expansão territorial, o núcleo inicial dos almorávidas, formado por Ibn Yasin com os gudalas, delineou como objetivo a submissão das tribos vizinhas. De acordo com Djannabi, “massacraram muitos dos seus adversários, de modo que as tribos do Sara se inclinaram perante si e o seu poder aumentou”.129 De acordo com al-Bakri, Ibn Abi Zar e Ibn Idari, os lamtunas, futura tribo principal da confederação almorávida, foram os primeiros a serem forçados a aderir.130 A guerra chegou, então, às restantes tribos do deserto, como relatam o al-Hulal al-Mawsiyya e Ibn Idari.131 Ibn Abi Zar é mais específico e refere que os massufas foram os seguintes e que, ao verem que esta tribo, juntamente com os gudalas e os lamtunas, já reconheciam a autoridade de Ibn Yasin, os demais ramos dos sanajas resolveram submeter-se e jurar-lhe obediência.132 Ibn al-Khatib refere de forma genérica que os lamtunas, os massufas e outras tribos sanajas se subjugaram a Ibn Yasin.133

129 Djannabi [1550-1590?] 1924, 355. 130 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 312-313; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 127; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 13. 131 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 29; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 13. 132 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 127. 133 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 139. 108 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

O poder e a riqueza da confederação almorávida tornavam-se cada vez mais fortes. Ibn Khaldun refere que Ibn Yasin autorizava os seus discípulos a aplicarem impostos às tribos submetidas.134 Ibn Abi Zar, uma vez mais com palavras que parecem ter inspirado al-Nasiri,135 é mais detalhado e explica que:

A todos os que se mostravam arrependidos, purificava com cem açoites e logo lhes ensinava o Corão e as leis islâmicas e lhes impunha a oração, a esmola legal e o dízimo, para o que constituiu uma casa do tesouro público, na qual reunia o dinheiro e com o que procurava soldados, comprava armas e raziava as tribos, até que se apoderou de toda a região do Sara, assumiu o comando das respetivas tribos, reuniu os despojos dos mortos nestas guerras e os deu em saque aos almorávidas. Enviou muitas riquezas, das que reuniu em esmolas, dízimos e quintos, aos sábios e aos chefes dos masmudas.136

Através desta passagem, percebemos que, ao mesmo tempo que submetia as tribos e o seu poder se consolidava, Ibn Yasin procurava ganhar o favor dos doutores de leis e dos chefes tribais com ricos presentes, de modo a cimentar a sua posição do ponto de vista legal. A mesma estratégia iria seguir Yusuf b. Tashfin para legitimar o poder, tanto no Magrebe, como no al-Andalus. Basta lembrar que, assim que subiu ao poder no Magrebe, começou a pagar aos cádis a partir do tesouro público, sobretudo constituído pelo produto do saque obtido nas operações de conquista. Merece ainda comentário o ritual de admissão ao grupo, pelo qual o candidato era sujeito a um castigo físico que marcava a sua submissão desde o início e o ligava aos demais elementos da estrutura de uma forma primeva e pulsional. O projeto corria de feição a Ibn Yasin até que morreu Yahia b. Ibrahim, emir dos gudalas, momento que, de acordo com algumas fontes, como vimos, constituiu um ponto de inflexão na estratégia do líder almorávida. No entanto, todas coincidem na ideia segundo a qual, atendendo à bravura dos lamtunas na guerra, Ibn Yasin nomeou esta tribo para cabeça da confederação e designou o totalmente devoto e submisso Yahia b. Umar para líder militar do movimento.137

134 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:69. 135 Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 122-123. 136 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 128. 137 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 314-315; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 128; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 18-20; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 30-31; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:69; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 139. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 109

O castigo físico enquanto cimento agregador do grupo era também aplicável ao líder militar. As fontes contam que Yahia b. Umar aceitou ser chicoteado por Ibn Yasin, porque ao mestre desagradou que se envolvesse pessoalmente na batalha: da vida do emir, dependia a manutenção do exército, alegava.138 Mas talvez Ibn Yasin, marcado pelas consequências da morte de Yahia b. Ibrahim, emir dos gudalas, estivesse mais preocupado com a potencial perda de outro líder tribal e, por extensão, da base de apoio do seu projeto político.

O triângulo Sijilmassa-Awdaghust-Aghmat e a morte de Ibn Yasin

Submetido grande número de tribos, o objetivo que Ibn Yasin delineou de seguida foi Sijilmassa, centro de um próspero hinterland, a mesma cidade onde em 1179 seria executado Geraldo Sempavor, por suspeita de traição ao califa almóada. Implantada numa planície onde abundava o sal e uma rede de cursos de água que convergiam num único rio, era circundada por vários arrabaldes e, no interior, albergava belos edifícios com grande número de jardins. Encontrava-se em parte abraçada por uma muralha cuja secção inferior era construída em pedra e a superior em tijolo, de fundação que remontava ao século VIII, embora não pudesse ser propriamente considerada uma praça-forte e constituísse uma presa algo fácil para os invasores.139 Todas as riquezas eram consequência da localização da cidade, às portas do deserto e a dois meses de distância do ouro do País dos Negros. Até chegar a este destino, os viajantes deveriam atravessar território por onde vagueavam os massufas, tribo que já tinha aderido à confederação almorávida. Tais informações sobre Sijilmassa provêm de al-Bakri, que escreveu no século XI e, por isso, foi contemporâneo dos primeiros anos do movimento almorávida.140 Mas, no século X, também Ibn Hawqal incluía a cidade nas suas

138 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 315; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 128. 139 Lessard 1969, 9. 140 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 283-284. 110 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

impressões de viagem, assemelhando-a a Cairuão pelo clima saudável, e já relatava um comércio constante com as terras do Sudão e outras paragens, com um vaivém ininterrupto de caravanas e rendimentos.141 Em meados do século XII, quando o Império Almorávida emitia o estertor final, al-Idrisi dedicava igualmente algumas linhas à cidade, designada como grande e populosa, e frequentada por viajantes. Cultivava frutos, caso da tâmara, assim como algodão, cominhos e hena, produtos que exportava para todas as partes do Magrebe e outros locais.142 No século XIV, Abu l-Fida e, sobretudo, Ibn Fadl Allah al-Umari continuavam a descrever Sijilmassa como uma das mais importantes urbes do Magrebe.143 Não só mantinha a sua condição de porta do Sara para o País dos Negros, como constituía um ponto nodal de uma rede de rotas comerciais que ligavam o mundo africano ao europeu.144 Já no século XVI, Leão Africano escrevia que a cidade, outrora dotada de altas e belas muralhas, se encontrava em ruína, abandonada pelas populações.145 O colapso e o abandono da cidade após 650 anos de atividade, que ocorreram no século XIV, deveram-se a múltiplas causas, entre as quais as guerras sucessivas no contexto do Império Merinida e a perda do monopólio do ouro proveniente do Bilad al-Sudan.146 A rota que ligava Sijilmassa às riquezas subsarianas não era exceção: como todas as outras, atravessava o deserto. Apesar das dificuldades, como o rigor do clima e os ataques dos ladrões, Hussain Monés sublinha vantagens à opção pelos caminhos do deserto, já que não cruzavam Estados, cujo aparelho administrativo sobrecarregava de impostos os mercadores. Evidentemente, ao passarem pelos territórios das tribos, também ficavam sujeitos ao pagamento de pecúnias, mas o peso seria inferior. Além disso, as rotas comerciais constituíam a ligação por excelência das tribos ao mundo exterior, que lhes levavam produtos desconhecidos, como o pão, ou necessários, como as armas, e, em última instância, garantiam a sua subsistência. Muitas vezes, os chefes ofereciam proteção, alojamento e alimentação aos comerciantes.147

141 Ibn Hawqal [966-988?] 2000, 47. 142 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 70. 143 Abu l-Fida [1321] 1848, 2:189; al-Umari [1342-1349?] 1927, 200. 144 Gibb et al. 1986-2004, 9:546. 145 Leo Africanus [1550] 1846-1848, 3:230. 146 Lightfoot et Miller 1996, 78 e 97-98. 147 Monés 1971, 9-11. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 111

Acontece que, quando Ibn Yasin chegou junto das tribos do deserto, Sijilmassa era controlada pelos zanatas, confederação de tribos do norte do Magrebe, que impediam os sanajas não só de acederem ao comércio, como também de conduzirem os seus rebanhos.148 De um ponto de vista político, a submissão de tribos que controlavam vastos domínios, como fez o movimento de Ibn Yasin, implicava o avanço territorial do projeto almorávida. Mas, não podendo controlar de forma efetiva e militar todos os locais de um vasto território, o domínio fazia-se sobretudo pela imposição de tributo. De acordo com uma perspetiva comercial, de acumulação de riqueza, as consequências acabavam por ser exatamente as mesmas. Subjugadas as tribos cujos territórios eram atravessados por rotas comerciais lucrativas, multiplicava-se o poder económico de Ibn Yasin. O passo seguinte seria dominar as cidades onde desaguavam essas riquezas. Compreende-se, pois, o interesse do líder dos almorávidas por Sijilmassa, até porque um dos seus objetivos políticos seria quebrar o poderio dos zanatas. Al-Bakri e Ibn Idari dizem que os almorávidas enviaram uma carta ao senhor de Sijilmassa, chefe de um emirado independente, exigindo submissão e que, face à ausência de uma resposta satisfatória, puseram em marcha um exército de 30 mil guerreiros,149 montados em camelos mehari, velozes e muito resistentes.150 Eliminaram o senhor da cidade, da tribo dos magrauas, um ramo dos zanatas, e deixaram uma guarnição a controlar a população. Após uma permanência de alguns meses,151 quando o grosso do exército regressou a casa, os habitantes de Sijilmassa, segundo Ibn Idari, com a ajuda dos zanatas,152 atacaram o contingente almorávida na mesquita aljama e executaram quase todos os seus elementos. Depressa a população se terá arrependido. Com medo de um regresso dos zanatas, pediram proteção a Ibn Yasin.153 O imam ordenou à confederação almorávida que lançasse a guerra aos zanatas: no fundo, era disso que se tratava, de tentar quebrar a hegemonia dos

148 Gibb et al. 1986-2004, 9:545. 149 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 315-316; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 23-24; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 31; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 129. 150 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:70. 151 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 24. 152 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 24. 153 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 315. 112 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

adversários. Segundo al-Bakri, todas as tribos acataram esta decisão, exceto os gudalas, que desafiaram a autoridade de Ibn Yasin e se retiraram para as suas terras, junto ao oceano. Ibn Yasin passou a ter duas frentes de batalha, separadas por milhares de quilómetros: precisava de controlar os gudalas, pelo que destacou Yahia b. Umar, seu chefe militar, para tomar posição no Jabal Lamtuna ou “Monte dos Lamtunas”, hoje no planalto de Adrar, Mauritânia, não longe da fronteira com o Sara Ocidental; e continuava a ter de resolver a questão de Sijilmassa, bem a norte, na divisão entre os modernos Estados de Marrocos e da Argélia, para contrariar o perigo proveniente dos zanatas, pelo que se viu obrigado a encabeçar um contingente militar rumo àquela cidade. De acordo com al-Bakri, corria o ano de 1055. Neste xadrez de interesses, e com forças dispersas por cerca de dois meses de distância,154 perdeu Yahia b. Umar, massacrado um ano depois, juntamente com grande número dos seus, por um massivo exército gudala.155 Em suma, as operações para se apoderar do eixo Sijilmassa-Awdaghust, que lhe garantiria o controlo de uma valiosa rota comercial e o afastamento dos adversários – zanatas a norte e reinos negros a sul –, não estavam a produzir os resultados pretendidos, com a agravante de ter visto desaparecer o seu chefe militar. O movimento corria, pois, o risco de morrer praticamente à nascença. A generalidade das fontes diz que, por morte de Yahia b. Umar, Ibn Yasin escolheu Abu Bakr, irmão daquele. Mas, de acordo com al-Bakri, Abu Bakr recebeu ordens de Ibn Yasin para assumir a liderança militar dos almorávidas enquanto Yahia se encontrava no sul, a combater os gudalas. Qualquer que seja a versão correta, parece que Abu Bakr já seria emir da região do Dra, não longe de Sijilmassa.156 Além disso, esta nomeação revela, uma vez mais, quem detinha verdadeiramente o poder. Ao contrário do que a tradicional historiografia transmite, construída para destacar a figura do “emir” – vejam-se os casos de Jacinto Bosch Vilá, de Vincent Lagardère e mesmo de Hussain Monés, o último

154 Se Sijilmassa ficava a dois meses de distância do País dos Negros, podemos concluir que também seria sensivelmente esta a diferença para o Jabal Lamtuna, onde se situava a fortaleza de Azuggi, na Mauritânia. 155 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 315-316; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 25-26; Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 127. 156 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 26-27. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 113 designando Abu Bakr b. Umar como “senhor” de Ibn Yasin157 –, as fontes demonstram bem que a posição deste não se encontrava associada ao efetivo exercício do poder, antes correspondendo a um chefe militar ao serviço do líder religioso. Alguns anos depois, a morte de Ibn Yasin, justamente na guerra, constituiu uma oportunidade para Abu Bakr transitar de uma liderança apenas militar para a total aquisição do poder. Embora Ibn Yasin perseguisse já um projeto de expansão territorial e de controlo de rotas comerciais, se esforçasse com êxito para construir um aparelho tributário, procurasse a formação de um exército moldado pela disciplina e orientado pela doutrina e demonstrasse estratégias de legitimação e manutenção do poder, como fica patente através da distribuição de parte do saque pelos doutores de leis, só com a sua morte o império ganhou dimensão global. Não obstante, os sinais parecem claros quanto às suas intenções. Resta saber se desejaria ser o líder de jure do império. A este propósito, seria interessante apurar se chegou a cunhar moeda, uma marca de poder. Ao controlar Sijilmassa, o centro que desde o século X detinha o monopólio da cunhagem do ouro proveniente do Bilad al-Sudan, esse seria um passo natural.158 Mas, por exemplo, os tratados de numismática de Francisco Codera e Antonio Vives y Escudero nada referem sobre Ibn Yasin. Pelo contrário, revelam um aspeto muito significativo: as primeiras moedas conhecidas de Abu Bakr b. Umar remontam ao ano de 450, que se desenrolou entre 28 de fevereiro de 1058 e 17 de fevereiro de 1059.159 Acontece que, segundo al-Bakri, Ibn Yasin morreu um ano depois,160 no que é confirmado pelo al-Hulal al-Mawsiyya161 e por Ibn Idari.162 O cádi Iyad recua o falecimento de Ibn Yasin um ano.163 Contudo, todos demonstram que, quando Abd Allah b. Yasin morreu, já Abu Bakr b. Umar cunhava moeda e, assim, assumia uma das prerrogativas da governação. Não é de supor que o último procurasse autonomizar-se face ao líder espiritual – as fontes

157 Monés 1967-1968, 63. 158 Lightfoot et Miller 1996, 78 e 82. 159 Vives y Escudero 1893, 235. 160 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 318. 161 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 32. 162 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 30. 163 Iyad b. Musa b. Iyad al-Yahsubi [1100-1149?] 1971, 257. 114 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

nada indiciam a esse respeito. Por outro lado, a emissão de moeda – como demonstram os espécimes encontrados –, associada ao califa abássida, mostra já uma ideia de império. Provavelmente, nesta fase, a figura do emir teria evoluído para um estado em que já não seria apenas o “general” ao serviço de Ibn Yasin. Isso não significa, porém, que o último tenha abdicado do exercício do poder de facto. Parece prefigurar-se aqui o modelo que seria replicado pelo regime almóada: um líder militar, ao serviço de um imam, que detém o verdadeiro poder. No caso do movimento almóada, esta dupla dimensão foi assegurada por Ibn Tumart e pelo seu general al-Bashir; só com a morte de ambos Abd al-Mumin ascendeu, adotando o título califal. Abu Bakr b. Umar também beneficiou com o desaparecimento de Ibn Yasin, que ainda teria tempo, no entanto, para mais algumas campanhas militares bem-sucedidas. Conquistada Sijilmassa, não admira que o passo seguinte, ainda no mesmo ano, tenha sido atacar Awdaghust. Localizada a sul do Jabal Lamtuna, na zona de pastoreio dos berberes gudalas, esta cidade começou a reconhecer a autoridade do rei do Gana, um não-muçulmano, na passagem do século X para o XI.164 A população era compósita, entre árabes, berberes de várias tribos e negros, e estava localizada a 15 dias de marcha do Gana.165 Também ela plataforma de acesso a importantes rotas, desempenhava para o comércio oriundo das terras dos negros o mesmo papel que Sijilmassa para o comércio magrebino.166 Segundo al-Bakri, Awdaghust era uma próspera urbe, grande e populosa, bordejada por jardins de tamareiras e construída num planalto arenoso e desprovido de vegetação. Aqui se cultivavam as abóboras e o trigo, o último apenas consumido pelas classes mais abastadas. Figueiras, vinhas e árvores de hena integravam também as culturas locais, numa cidade onde a água fresca abundava. Mel do País dos Negros e carne de vaca e de carneiro integravam os hábitos alimentares da população, que fazia comércio num mercado agitado e ativo. Tanta era a afluência que o barulho impedia de ouvir claramente uma

164 Von Sivers 2000, 25. 165 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 317. 166 Lessard 1969, 25. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 115 pessoa mesmo ao lado, diz al-Bakri, que também não poupa adjetivação à beleza e à cintura fina das mulheres locais. Destas paragens, partiam o âmbar cinzento e o ouro refinado, sob a forma de cordões.167 A opção por Awdaghust, onde afluía o ouro do País dos Negros, evitava que os comerciantes tivessem de viajar até ao sul para ir procurar este metal na origem.168 Ibn Hawqal, no século X, dizia que Awdaghust era uma agradável cidade que se assemelhava a Meca, uma vez que estava situada entre duas montanhas cortadas por ravinas.169 Mas, em meados do século XII, al-Idrisi já não transmitia o mesmo fervilhar de atividade, dando a impressão de que a cidade se encontrava em declínio: “Pequena cidade situada num deserto onde a água é rara. Como Meca, foi construída entre duas montanhas. A população é pouco numerosa e o comércio pouco considerável.”170 Esta decadência não foi retida pelo anónimo Kitab al-Istibsar fi Ajaib al-Amsar, obra de finais do século XII, que parece reproduzir as informações de al-Bakri.171 Autores posteriores, como Ibn Said al-Maghribi172 e Abu l-Fida, que replica parte da obra do primeiro,173 desinteressam-se por descrever as riquezas da cidade, limitando-se a referi-la como ponto de passagem dos caminhos ou a detalhar a sua geografia. Muhammad b. Ibrahim Watwat é mais sucinto, mas também destaca o milho consumido pelas elites e o ouro de grande qualidade, lamentando, no entanto, as frequentes doenças na região, entre as quais febres e problemas do baço.174 É como se a cidade tivesse passado por um declínio no final do período almorávida – que é a cronologia em que al-Idrisi escreve a sua obra –, mas depois retomasse a sua atividade, já sob uma nova configuração política. A hipótese ganha alguma credibilidade se tivermos em conta que, durante o ocaso almorávida, marcado pela guerra com os almóadas, estes atacaram a região de Sijilmassa, provocando graves problemas económicos, o que previsivelmente afetaria a rota comercial que a ligava a Awdaghust.175

167 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 299-301. 168 Lessard 1969, 29. 169 Ibn Hawqal [966-988?] 2000, 46. 170 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 38. 171 Kitab al-Istibsar fi Ajaib al-Amsar [1135-1191?] 2000, 143. 172 Ibn Said al-Maghribi [1230-1286?] 2000, 192. 173 Abu l-Fida [1321] 1848, 2:90. 174 Muhammad b. Ibrahim Watwat [1280-1318?] 1924, 54. 175 Goitein 1973, 265. 116 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Como relata al-Bakri, durante a campanha de conquista, os almorávidas tomaram Awdaghust de assalto, violaram as mulheres e declararam a legalidade de todo o saque que conseguiram reunir. As restantes principais fontes nada referem sobre esta conquista. Tomada a cidade e desferido um golpe sobre outro grupo social e político adversário – o povo do Sudão –, o movimento almorávida, que já detinha Sijilmassa, conseguia dois postos avançados no controlo do deserto, das suas tribos e do seu comércio. Era o momento de lançar o ataque ao terceiro vértice do triângulo: Aghmat, cidade nas montanhas do Alto Atlas, que iria conhecer o declínio com a ascensão de Marraquexe e seria a morada de exílio de Abd Allah b. Buluggin e de al-Mutamid b. Abbad no final do século XI. Se a campanha de Aghmat e seus correlatos marcariam, por um lado, o fim de Abd Allah b. Yasin, por outro, dariam a oportunidade a uma mulher de surgir na história dos almorávidas. Abu Bakr b. Umar estava prestes a conhecer Zaynab. Poucos anos depois de Awdaghust, em 449 (10 de março de 1057 a 27 de fevereiro de 1058) segundo al-Bakri, e em 450 (28 de fevereiro de 1058 a 17 de fevereiro de 1059), de acordo com Ibn Idari, o al-Hulal al-Mawsiyya e o Kitab Mafakhir al-Barbar, Ibn Yasin marchou em direção a Aghmat, conseguindo o reconhecimento de algumas tribos locais antes de entrar na cidade.176 Al-Bakri e o al-Hulal al-Mawsiyya tornam-se silenciosos quanto a Aghmat a partir deste momento, apenas se limitando a acrescentar que Abd Allah b. Yasin foi morto em território dos bargauatas.177 Ao ler Ibn Idari, fica a impressão de que Abu Bakr b. Umar e Ibn Yasin entraram em Aghmat sem luta, reconhecidos que foram pelos líderes da cidade.178 Mas Ibn Abi Zar afiança que os almorávidas montaram um cerco e lutaram de forma encarniçada até que conseguiram conquistar a urbe. Por esta altura, o cavalo terá começado a fazer parte dos equipamentos de guerra dos almorávidas, embora o camelo ainda tivesse preferência.179 O governador de Aghmat fugiu durante a noite e refugiou-se entre as tribos da região de Tadla. Os almorávidas permaneceram em Aghmat durante

176 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 317-318; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 29-30; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 32; Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 52. 177 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 318. 178 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 30. 179 Lagardère 1979, 104. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 117 algum tempo, até que saíram para raziar estas tribos; dizimaram-nas e mataram o governador fugitivo, marido de Zaynab, futura mulher de Abu Bakr.180 Al-Nasiri, que parece ter Ibn Abi Zar como uma das principais fontes para o Império Almorávida, também garante que os seguidores de Ibn Yasin capturaram a cidade após um cerco rigoroso.181 Em seguida, Ibn Yasin deixou novamente Aghmat para tentar subjugar os bargauatas, mas não teve o acolhimento desejado e foi mortalmente ferido num recontro militar na região de Tamasna, próximo da costa atlântica.182 Como nota al-Bakri, antes de morrer, no ano de 451 (17 de fevereiro de 1059 a 6 de fevereiro de 1060), data que é confirmada por Ibn Idari,183 por Ibn Abi Zar184 e pelo Kitab Mafakhir al-Barbar,185 conseguiu conquistar Sijilmassa e o seu território, o Sus inteiro, Aghmat, Nul e o deserto.186 A conquista de Aghmat, junto a um rio a desaguar no Atlântico, deve, pois, ter correspondido à aquisição de uma capital. No momento imediatamente anterior à morte de Ibn Yasin, podemos concluir que o império era já uma realidade consumada, ainda que instável, com um imam e um líder militar instalados numa capital, suportados pela riqueza do comércio e dos impostos, tal como decorre de uma leitura atenta das fontes, com destaque para al-Bakri e Ibn Idari. De resto, segundo as moedas descobertas, os primeiros dinares de Abu Bakr b. Umar só começaram a ser cunhados no ano de 450 (28 de fevereiro de 1058 a 17 de fevereiro de 1059), depois de controlado o fluxo comercial de Sijilmassa e Awdaghust e tomada a cidade de Aghmat, mas foram-no logo com a associação ao califa abássida. O império parecia articulado, mas em breve iria divergir. Não só uma nova capital – Marraquexe – substituiu Aghmat, cidade já demasiado pequena para uma população em crescimento, mas que permaneceu, nas palavras de al-Idrisi, rica e opulenta,187 como o movimento almorávida transitou de um “império do deserto” para um potencial “império mediterrânico”, com os dois modelos a coexistirem por cerca de 20 anos até o segundo subsumir o primeiro.

180 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 131. 181 Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 129. 182 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 30-31; Iyad b. Musa b. Iyad al-Yahsubi [1100-1149?] 1971, 257. 183 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 30. 184 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 134. 185 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 52. 186 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 318. 187 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 76-77. 118 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

O ouro dos negros

Quando Mansa Musa, imperador do Mali, empreendeu a peregrinação a Meca, em 1324, causou profundo espanto no mundo mediterrânico, não só pela vastidão dos seus acompanhantes, que, segundo Abd al-Rahman al-Sadi, historiador de Tombuctu, no rival Império Songai, seriam em número de 60 mil, como pela opulência que exibiam. De cada vez que montava a cavalo, era precedido de 500 escravos com barras de ouro na mão e 80 a 100 camelos carregados do mesmo metal.188 O ouro foi gasto de tal forma que, 12 anos depois de a comitiva ter passado pelo Cairo, a população ainda louvava o imperador do Mali e a moeda se mantinha desvalorizada, face à elevada quantidade de metal que entrou em circulação.189 Mas até para o imperador do Mali existia um limite. Na viagem de regresso, ao ganhar de novo o Cairo, já toda a riqueza tinha sido delapidada, o que o obrigou a contrair um empréstimo junto dos comerciantes locais. Abd al‑Rahman al-Sadi assegura que a dívida não chegou a ser paga na totalidade,190 uma informação também veiculada por Ibn Khaldun.191 Já o sírio al-Umari, funcionário do Império Mameluco, garante que não foi assim. Nobre, generoso e bondoso, relata, Mansa Musa deixou o seu país com 100 carregamentos de ouro, que foi distribuindo pelas tribos cujos territórios atravessava. Tendo gastado tudo o que tinha, de volta ao Cairo, viu-se obrigado a pedir empréstimos aos comerciantes. Mas, mais tarde, enviou o pagamento e, por cada 300 dinares emprestados, os mercadores auferiram um lucro de setecentos.192 Apesar da exibição de riqueza, conta Abd al-Rahman al-Sadi que, nos lugares santos da peregrinação, Mansa Musa não terá mostrado tanta generosidade. Vinte mil moedas de ouro terá sido tudo o que deixou nas duas cidades santas, quando Askia al-Hadj Muhammad, imperador songai, exibiu uma “fé” cinco vezes superior. Esquece-se de mencionar que entretanto

188 Abd al-Rahman b. Abd Allah b. Imran b. Amir al-Sadi [1610-1660?] 1900, 13. 189 Insoll 2003, 319. 190 Abd al-Rahman b. Abd Allah b. Imran b. Amir al-Sadi [1610-1660?] 1900, 14. 191 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2000, 323. 192 Al-Umari [1342-1349?] 1927, 75. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 119 tinham decorrido cerca de 170 anos. Mais discreto na sua viagem, Askia fez-se acompanhar de 500 cavaleiros e 1000 infantes e uma comitiva de escravos e notáveis, juntamente com 300 mil moedas de ouro do tesouro real, 100 mil das quais reservadas às duas cidades santas, outras tantas à manutenção da comitiva e as restantes às suas despesas.193 Desta viagem, realizada por volta de 902 (9 de setembro de 1496 a 29 de agosto de 1497), nos tempos que antecederam a chegada de Vasco da Gama à Índia, fala também a Tarikh al-Fatash, cuja autoria se atribui a Mahmud Kati b. al-Hadj al-Mutawakkil Kati, ulema de Tombuctu, mas que se especula também poder pertencer a um dos seus netos. A fonte refere ainda a esmola de 100 mil dinares de ouro aos pobres de Medina e Meca e a compra, na primeira cidade, de um jardim e de casas para abrigo dos ulemas, dos religiosos e dos desfavorecidos.194 A ostentação dos soberanos do País dos Negros, embora tardia face à cronologia almorávida, fornece uma amostra precisa e, em simultâneo, intuitiva da capacidade de produção aurífera na bacia do rio Níger, mas, se lhe juntarmos as informações fornecidas por fontes mais antigas, sobretudo de natureza geográfica, obtemos uma clara noção de continuidade, uma imagem do fluxo de exploração deste metal precioso, de que o império com capital em Marraquexe fez parte. Al-Yaqubi, no final do século IX, refere a existência de minas de ouro nas terras do Gana, cujo soberano dizia ser muito poderoso.195 Mais expressivo é Ibn al‑Faqih, que concluiu um Kitab al-Buldan no princípio do século X. De acordo com o seu relato, “diz-se que, para lá da nascente do Nilo [Nilo dos Negros ou Níger], existe escuridão e que, para lá da escuridão, existem águas que fazem o ouro crescer”. Acrescenta que o “ouro brota da areia como cenouras e é colhido ao amanhecer”.196 Por sua vez, al-Hamdani, na primeira metade do século X, informado pelo mestre que cunhava moeda na sua cidade, Sana, no Iémen, diz que a mais rica mina de ouro existente na Terra se encontrava no Gana, cujo acesso era dificultado pelos “desertos e pelo medo do País dos Negros”. Ao alcançarem estas terras, continua, os comerciantes

193 Abd al-Rahman b. Abd Allah b. Imran b. Amir al-Sadi [1610-1660?] 1900, 119-120. 194 [Mahmud Kati b. Al-Hadj al-Mutawakkil Kati?] [1650-1699?] 1913, 25-27. 195 Al-Yaqubi [872-873] 2000, 21. 196 Ibn al-Faqih [903-904?] 2000, 27-28. 120 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

sobrecarregavam os camelos, pois o ouro estava disponível em grande quantidade e sob diversas formas.197 Em meados do século X, na sua famosa obra Muruj al-Dhahab ou Planícies do Ouro, al-Masudi dá igualmente destaque ao ouro do Sudão, que “cresce como as plantas”. Esta obra recupera uma passagem de al-Fazari, cujos trabalhos entretanto perdidos podem remontar ao final do século VIII ou princípios do IX, e é a primeira a atestar o Sudão como “a terra do ouro”.198 Noutra fonte de sua autoria, Akhbar al-Zaman, al-Masudi diz que, “lá, toda a terra é de ouro, e a sua nascente é visível à superfície”. Refere também que todo o ouro que os comerciantes magrebinos obtinham era transformado em moeda na cidade de Sijilmassa.199 Ainda no século X, Ibn Hawqal dá notícia de que o rei do Gana era o mais rico em toda a Terra, devido aos seus tesouros e ao armazenamento de ouro.200 Em meados do século XI, em que viveram os almorávidas, al-Biruni descreve o ouro do Sudão como semelhante a pequenas contas e explica que as pepitas eram arrastadas pelas torrentes que desciam das montanhas. No Sudão, dizia, existiam as minas com maior capacidade de produção e o ouro mais puro que poderia encontrar-se, mas o acesso era dificultado pelo deserto.201 Toda esta riqueza suscitava a cobiça, não só dos povos vizinhos, como de nações mais afastadas. Lembremos que o ouro de Tombuctu foi um dos argumentos do Portugal dos Descobrimentos, contemporâneo do Império Songai. Quanto aos ainda pouco islamizados sanajas do deserto, de acordo com al-Bakri, apenas seis dias separavam os seus territórios de tamanhas riquezas.202 No final da centúria de IX, já estas tribos ocupavam a zona ocidental do deserto do Sara. Enquanto os gudalas viviam junto à costa, os lamtunas posicionavam-se para leste e os massufas dominavam as rotas que ligavam Sijilmassa a Awdaghust, numa distância de dois meses, e que associavam a última cidade ao Gana, o que levava dez dias a uma caravana ligeira.203 Controlavam as vias comerciais, serviam de guias, cobravam tributos

197 Al-Hamdani [890-950?] 2000, 29. 198 Al-Masudi [940-945?] 2000, 31-32. 199 Al-Masudi [940-945?] 2000, 36. 200 Ibn Hawqal [966-988?] 2000, 49. 201 Al-Biruni [1030-1050?] 2000, 58-59. 202 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 324. 203 Ibn Hawqal [966-988?] 2000, 46 e 49. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 121 aos mercadores e pilhavam caravanas. Diz Ibn Hawqal que, por cada camelo e carga que atravessasse o seu território, cobravam impostos aos comerciantes que iam fazer negócio ao Gana e regressavam com ouro na bagagem.204 E, como explica Nehemia Levtzion, embora exercessem autoridade política sobre Awdaghust, não habitavam a cidade – permaneciam nómadas – nem tinham um perfil de comerciantes urbanos, como os zanatas de Ifrikiyya. Até surgir o movimento almorávida, o islão fluiria para o País dos Negros nas caravanas do comércio, sem guerra nem proselitismo violento.205 Na transição do século X para o XI, os comerciantes do Norte de África, como os zanatas de Ifrikiyya, mantinham as suas bases em Awdaghust, que dava acesso ao império do Gana, com capital na cidade do mesmo nome, e em Tadmeka, porta para o território songai, à cabeça do qual se posicionava Gao, conhecida como Kaw-Kaw nas fontes muçulmanas.206 A conquista desta cidade zanata pelos almorávidas foi considerada uma vitória para o islão.207 Controlado pela tribo soninque, um ramo dos mande, especula-se que o império do Gana tenha sido fundado por volta do ano 300.208 Al-Bakri explica que a cidade do Gana era, na verdade, composta por duas urbes (separadas pelo rio Níger, diz Ibn Khaldun):209 uma habitada por muçulmanos, dotada de 12 mesquitas e homens da religião, do saber e das letras, e a outra pelo imperador, que possuía um palácio e diversas cabanas com telhados arredondados, protegidos por uma cintura semelhante a uma muralha, junto da qual existiam mais cabanas e bosques para os feiticeiros, que tinham a seu cargo o culto religioso.210 Era, portanto, um local onde as crenças tradicionais conviviam pacificamente com o islão dos comerciantes. A partir do início do século XIII, o império do Gana foi absorvido pelas conquistas de Sundjata Keita, da tribo dos mandingas, outro ramo dos mande, num processo que deu origem ao império do Mali, com capital em Nyeni. O Império Songai, terceiro dos pré-coloniais, surgiu

204 Ibn Hawqal [966-988?] 2000, 49-50. 205 Devisse, Polet et Sidibe 1998, 22. 206 Levtzion 2000, 63. 207 Lange 1991, 263. 208 Masonen 2005, 562. 209 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:110. 210 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 328-329. 122 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

no século XIV, pela mão de Sonni Ali. Gao era a capital e Tombuctu e Djenné assumiam-se como centros culturais e comerciais. Estes impérios foram os adversários, a sul, dos vários potentados berberes, que, ao longo de séculos, com eles ora negociavam, ora guerreavam pelo controlo das riquezas, as quais, de resto, suscitariam igualmente o interesse dos portugueses.211 As plataformas de Awdaghust e Tadmeka – a cidade mais parecida com Meca, habitada por berberes e muçulmanos em geral,212 a nove dias de Gao213 – permitiam negociar diretamente com o Sudão sem necessidade de procurar o ouro na origem, cuja produção os potentados sudaneses também não controlavam de forma direta, se bem que al-Bakri explique, por exemplo, que o imperador do Gana se reservava o direito de propriedade sobre todo o ouro extraído no território.214 Com as principais cidades situadas na margem norte do rio Níger, os monarcas destas regiões procuravam servir de mediadores da exportação, de modo a controlar o fluxo e o valor do metal precioso.215 Mas, do País dos Negros, não provinha apenas ouro. Como explica al-Zuhri, as caravanas afluíam ao Sael, a cidades como o Gana ou Gao, também em busca de escravos – capturados em raides sobre as tribos do território que hoje é a Guiné, tanto pelo povo do Gana, como pelo de Tadmeka216 –, pó de ouro, ébano, marfim, couro e escudos, entre outros produtos.217 Na prática, o que os portugueses dos Descobrimentos fizeram, num momento em que Sijilmassa já tinha colapsado, foi contornar estes centros, onde desaguavam as rotas terrestres, mais arriscadas e com uma complexa tessitura de interesses e equilíbrios, criando novas plataformas, junto à costa, que permitiam negociar sem aceder à origem das mercadorias, que continuava a envolver perigos. A estratégia subjacente é a mesma, embora tenham mudado as infraestruturas. Os navios permitiam o transporte de maiores quantidades e a massificação, por exemplo, do comércio de escravos.

211 Niane 1988, 135-189; Cissoko 1988, 207-228. 212 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 339-340. 213 Lange 1991, 251. 214 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 331. 215 Devisse, Polet et Sidibe 1998, 20. 216 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 181-182. 217 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 189-190. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 123

Regressando ao universo berbere, no final do século X, os habitantes de Awdaghust – e, em especial, os comerciantes zanatas –, que procuravam proteger os seus interesses, passaram a reconhecer a autoridade do imperador do Gana, o que afetou as fontes de rendimento dos sanajas do deserto.218 Lembremos que Sijilmassa e Aghmat também se encontravam em poder dos zanatas. As rotas que davam acesso ao ouro escapavam, assim, das mãos das tribos sanajas. Por isso, Vincent Lagardère defende que viviam “oprimidos pelos zanatas a norte e os sudaneses a sul”.219 De facto, como os zanatas se expandiram para sul, interferiam nas zonas de transumância das tribos sanajas da região do Dra, como os lamtas e os jazulas. Estas tribos não reuniam capacidade para afrontar o poderio dos zanatas, pelo que se compreende que, mais tarde, tenham aderido ao movimento almorávida.220 Dir-se-ia, pois, que Abd Allah b. Yasin chegou no momento certo, quando as gentes do deserto, despojadas de um certo controlo do fluxo do ouro, teriam interesse em unir-se para alcançar um objetivo maior. Tal pode explicar a notícia da submissão de algumas tribos sem que seja feita referência à guerra – por exemplo, em al-Bakri –, o que faz supor que o fizeram de livre vontade ou, quem sabe, pressionadas pelo poderio militar da confederação. Não será também por acaso que, ao formar um corpo de seguidores, Ibn Yasin tenha visado Sijilmassa, Awdaghust e Aghmat: descontado o discurso da jihad, apenso a estas operações por via das fontes, com o argumento de que os zanatas e outras tribos do norte, como os gomaras e os bargauatas, eram heréticos221 e os negros não reconheciam o islão, é evidente que pretendia reativar o domínio das rotas comerciais. E tanto era este o objetivo que, em meados do século XI,

218 Levtzion 2000, 63. 219 Lagardère 1989a, 107. 220 Levtzion 1980, 36. .no Norte de África (الخارجية) No século VIII, os zanatas e outros berberes professavam o carijismo 221 Subjugados pela carga fiscal, revoltaram-se contra o poder omíada de Damasco. Mas a origem do movimento remontava às guerras pela sucessão do terceiro califa, Uthman, falecido em 656, que foram travadas entre Ali, genro e primo de Maomé, e Muawiyah, governador da Síria e fundador da dinastia omíada, em 661. A certo ponto, Muawiyah propôs a arbitragem para resolver os conflitos, e Ali aceitou. Os carijitas rejeitaram os árbitros, os líderes que os designaram e todos os que concordaram com a solução. Na sua opinião, Ali deveria ser o califa e, ao aceitar uma solução de compromisso, cometera um pecado. Consideravam justos os califados de Abu Bakr e Umar, mas que era legítimo assassinar ou remover Uthman, que se tinha desviado do caminho certo nos últimos tempos do seu governo (Sardar 2014, 75-79; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:203-204). 124 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

os almorávidas desviaram parte do comércio do ouro do domínio exercido pelo império do Gana. Sem nunca acederem às regiões de produção, estabeleceram uma nova rota mais a ocidente, a passar pelo Jabal Lamtuna, local da fortaleza de Azuggi,222 a mesma onde, anos antes, tinha morrido Yahia b. Umar na guerra contra os gudalas. Mais: Ibn Yasin pretendia recuperar as rotas comerciais impondo tributo às cidades do Sael para obter um fluxo constante de metal precioso sem ter de pagar o seu justo valor. De contrário, não necessitaria de fazer a guerra ao País dos Negros. Sabemos que, desde o início, Ibn Yasin exigiu impostos e tributos às tribos conquistadas. Ibn Khaldun explica que os almorávidas devastaram o território do Gana, pilharam as propriedades dos seus habitantes, submeteram-nos à capitação e impuseram-lhes tributo.223 Não se pense, no entanto, que a jihad e o fervor islamizador eram pura retórica. Sem ideologia, não teria existido movimento almorávida, mas este corpo ideológico parece ter sido primeiramente direcionado para reforçar um sentimento de grupo e de pertença. Perante os tradicionais conflitos entre as tribos berberes, Ibn Yasin encontrou um cimento agregador. Podemos, de resto, detetar pistas interessantes no espólio de fatawa de al-Wansharisi: o roubo de animais, principal riqueza das tribos do deserto, era prática comum e motivo de graves e constantes conflitos.224 Estes grupos sociais mostravam-se, assim, demasiado caóticos e indisciplinados. Com as riquezas do Sudão mesmo ao lado, Ibn Yasin encontrou, de forma inteligente e reveladora de um conhecimento das conjunturas e das características dos povos, uma forma de obter unidade, disciplina e obediência. Sem a aliança das tribos, não teria à sua disposição um exército com capacidade para o plano de conquistas que delineou. Se compararmos, de novo, a sua estratégia com a que desenharia o fundador do movimento almóada, Muhammad b. Tumart, verificamos que este necessitava, primeiro, de cortar com o paradigma maliquita, seguido pelos almorávidas, e, depois, de contrapor-lhe um discurso que fosse reconhecido pelas populações. Originário da região do Sus, outrora sob domínio fatímida,

222 Devisse, Polet et Sidibe 1998, 21. 223 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:110. 224 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 175-176 e 418. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 125 onde fervilhavam as ideias messiânicas e se situava o ribat de Massa – local de peregrinação que atraía devotos, ascetas e personagens que procuravam a meditação –, reclamou para si uma condição de mahdi.225 É evidente que Ibn Yasin pretendia quebrar a hegemonia dos adversários: não só os negros, como também os zanatas. No século X, alguns grupos daquela confederação deixaram os territórios que correspondem à moderna Argélia central e instalaram-se no Magrebe, de que se tornaram governantes com o apoio dos omíadas do al-Andalus. Com a queda do califado, os zanatas constituíram feudos independentes, mas as guerras constantes entre os chefes tribais trouxeram grande instabilidade ao território.226 Como explica Ibn Abi Zar, “tiranizaram os seus súbditos, roubaram-lhes os bens, derramaram o seu sangue e violaram as suas mulheres”. Aumentou o medo, escassearam os alimentos, subiram os preços. Os dias que antecederam as conquistas almorávidas foram de “violência, injustiça e hostilidade para com os súbditos, de carestia extrema – que não se conheceu outra igual – e de graves revoltas”.227 Em suma, Ibn Yasin soube tirar partido do sentimento de perda dos sanajas e do ambiente de injustiça percecionado pelas populações, mas também teve a habilidade para beneficiar da insatisfação dos comerciantes. Ao perder a proteção dos sanajas, o comércio transariano tornou-se mais inseguro, prejudicando os interesses de quem fazia negócio com o País dos Negros.228 A estratégia de implantação dos almorávidas no al-Andalus iria, de resto, usufruir de condições idênticas: o descontentamento das populações justificou grandemente a conquista e o consequente afastamento dos reis de taifas. O mesmo destino sofreriam os próprios almorávidas às mãos dos almóadas. A guerra entre 1139 e 1147, agudizada nos últimos cinco anos deste intervalo, fez disparar a carga fiscal e propiciou fomes dramáticas e peste, o que pesou de forma decisiva contra o poder almorávida. A defeção das populações facilitou a ascensão do califa almóada. Os casos de insubmissão foram violentamente reprimidos.229

225 Lourinho 2010, 89. 226 Levtzion 1980, 35-36. 227 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 114. 228 Levtzion 1980, 36. 229 Lourinho 2010, 6. 126 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Comércio: traço de união entre as cidades de um império em construção

“Em meados do verão, quando as caravanas de Sijilmassa, em Marrocos, e da Tunísia chegavam ao Egito, e quando toda a gente se encontrava ao rubro para comprar bens para despachar por mar nos barcos que saíam em setembro, os negócios iam de feição.” As palavras são de Shlomo Dov Goitein e foram alinhadas com base em documentos da Geniza do Cairo datados do princípio do século XI.230 Em 973, a transferência da capital fatímida de al-Mansuriyya, perto de Cairuão, para o Cairo, como seria de esperar, afetou o comércio tunisino. Mas, por Cairuão, continuava a passar o fluxo comercial proveniente do al-Andalus, do Magrebe, do Oriente e até dos territórios cristãos.231 Em regra, eram estes – pisanos, genoveses, amalfitanos, venezianos, bizantinos, entre outros – quem se deslocava aos mercados muçulmanos, sendo a situação inversa mais pontual.232 As caravanas com origem em Sijilmassa, que distribuíam os produtos negociados no País dos Negros, tinham Cairuão como um dos pontos de destino ou passagem.233 Em 980, pouco depois de a corte fatímida se instalar no Cairo, os berberes zanatas conquistaram Sijilmassa com o apoio de al-Mansur b. Abi Amir, homem forte do poder omíada no al-Andalus. Ibn Abi Zar relata que o primeiro zanata que reinou no Magrebe foi Ziri b. Atiyya, o qual reclamou o poder em 368 (9 de agosto de 978 a 29 de julho de 979), em nome do califado de Córdova e do seu hajib al-Mansur.234 Uma das primeiras ações do seu governo foi, assim, a conquista de Sijilmassa. Alguns anos depois, somou Fez ao território, em prejuízo de outro ramo dos sanajas, os ziridas, e dos interesses do califado fatímida, suserano destes, mas também do modo de vida dos sanajas do deserto, como os lamtunas, os gudalas e os massufas, que tinham na proteção das caravanas uma das suas fontes de rendimentos. Com a mudança

230 Goitein 1999, 1:193; Goitein 1973, 30. 231 Goitein 1973, 28. 232 Goitein 1999, 1:211. 233 Goitein 1973, 28; Goitein 1999, 1:212. 234 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 103. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 127 de lealdade da cidade de Awdaghust para o imperador do Gana, as gentes do deserto passaram a viver entre os interesses de potentados mais fortes. Compreende-se que os ziridas não estivessem dispostos a abdicar de Sijilmassa nem de Fez. Diz al-Nuwayri que al-Mansur b. Yusuf Buluggin b. Ziri enviou um exército para recuperar ambas as urbes, tomadas pelos zanatas por morte do seu pai, mas que não foi bafejado pelo sucesso.235 Uma vez mais se percebe que, quando Abd Allah b. Yasin chegou junto dos sanajas para lhes ensinar os preceitos da religião e evoluiu para um plano de expansão territorial, não fez nada de novo: limitou-se a procurar o controlo das mercadorias provenientes da África subsariana, em itinerários sobejamente conhecidos, tal como já o tinham feito outros grupos sociais, noutras conjunturas políticas. As rotas comerciais dentro do mundo muçulmano combinavam pequenos e grandes itinerários, como decorre, por exemplo, da leitura de al-Bakri. A ligação entre as riquezas do País dos Negros e as principais plataformas do Mediterrâneo, como Cairuão, fazia-se por etapas. Se, de acordo com Ibn Hawqal, a viagem do Gana a Awdaghust levava apenas dez dias,236 a que fazia chegar as mercadorias do último ponto a Cairuão, segundo os trabalhos de al-Bakri, demorava 110 dias.237 Pelo caminho, esta viagem de três meses e meio passava por Sijilmassa e Fez, dois centros redistribuidores: por exemplo, havia ligação de Sijilmassa a Aghmat e de Fez a Ceuta ou a Tlemcen e da última cidade a Orão. As conquistas de Tlemcen, Orão e Ceuta – que tanto empenho exigiram a Yusuf b. Tashfin e aos almorávidas no período posterior ao afastamento de Abu Bakr b. Umar de Marraquexe – incidiram, pois, sobre cidades na orla mediterrânica, onde desaguavam e eram revendidos os bens provenientes do hinterland. De acordo com os estudos de Goitein, também se registaram momentos em que o comércio entre Sijilmassa e o Cairo foi suficientemente lucrativo para justificar a ligação direta entre as duas cidades.238 Quanto à segunda plataforma privilegiada de contacto com o País dos Negros, Tadmeka, as caravanas que daqui partiam precisavam de cumprir 50 dias

235 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:125. 236 Ibn Hawqal [966-988?] 2000, 49. 237 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 303. 238 Goitein 1999, 1:213. 128 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

para alcançar Cairuão.239 De Tadmeka, seguiam ainda itinerários para Gadamés, na atual Líbia, e daqui para Trípoli, mas também para Zawila e, em seguida, até ao Cairo e outros pontos do Império Fatímida. Se cruzados com as fontes escritas, os resultados das escavações arqueológicas conduzidas pela equipa de Sam Nixon, Thilo Rehren e Maria Filomena Guerra nas ruínas da antiga cidade de Tadmeka, em 2005, trazem mais algumas pistas sobre o comércio transariano e a posição hegemónica assumida pelos almorávidas. Os arqueólogos encontraram moldes em barro, de forma circular e com diâmetro interior de dois centímetros, semelhantes aos típicos artefactos utilizados na Idade do Ferro europeia para produzir moeda. Nestes recipientes, pó e pepitas de metal eram derretidos para formar discos, que, por sua vez, eram extraídos depois de os moldes serem quebrados. Os investigadores notam, de resto, a semelhança com os artefactos encontrados, 40 anos antes, na cidade de Awdaghust, que, na sua opinião, foram erradamente identificados como moldes para produzir contas de vidro. Contudo, a análise aos moldes de Tadmeka não deixa dúvidas: o laboratório detetou pingos de ouro com uma pureza superior a 98 por cento no interior de uma das peças, um valor superior ao encontrado nas moedas até então conhecidas no contexto da África ocidental, as quais oscilam entre 92 e 94 por cento. Segundo os investigadores, as moedas de Tadmeka cumpririam os padrões de tamanho e peso frequentes no mundo islâmico.240 De resto, é o próprio al-Bakri a referir-se às moedas aqui produzidas como “dinares carecas” de “ouro puro”, ou seja, discos em branco que eram exportados para as cidades do norte e depois gravados com as inscrições pretendidas.241 Um tal grau de pureza da moeda pode explicar porque os morabitinos almorávidas, cunhados a partir do mesmo tipo de ouro e certamente com as mesmas técnicas, eram considerados um meio de pagamento de confiança. A equipa de Sam Nixon sublinha que pouco se sabe sobre o que aconteceu à cunhagem de moeda em Tadmeka depois das informações fornecidas por al-Bakri em meados do século XI.242

239 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 340. 240 Nixon et al. 2011, 1357-1364. 241 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 339. 242 Nixon et al. 2011, 1365. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 129

De facto, se visitarmos a obra de al-Idrisi, que se reporta ao final do período almorávida, portanto, a meados do século XII, Tadmeka encontra-se ausente, apesar de existirem referências à importação de ouro através da rota que ligava Cairuão a Gao, percurso onde se situava aquela cidade.243 Já em período almóada, Abu l-Fida regista Tadmeka como uma urbe de grandes mercadores e, embora não mencione o comércio do ouro, indica que aqueles se deslocavam até ao País dos Negros na sua atividade, o que torna plausível a negociação do referido metal.244 Os referidos indícios tornam relativamente consistente a proposta de Sam Nixon de que o Império Almorávida terá afetado a cunhagem de moeda em ouro e o seu comércio em Tadmeka,245 até porque sabemos que o movimento iniciado por Abd Allah b. Yasin conseguiu desviar o fluxo deste metal precioso para o eixo entre Awdaghust e Sijilmassa, mais a ocidente.246 Por outro lado, as fontes também apontam para que a rota que passava por Tadmeka possa ter sido recuperada ao tempo almóada: após a conquista de Ifrikiyya pelo califa Abd al-Mumin, território que o Império Almorávida nunca integrou, esta região deixaria de ser um competidor comercial. Lembremos, de resto, que os almorávidas foram aliados dos hamádidas de Bugia, mas adversários dos seus parentes ziridas de Mahdia.

243 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 141. 244 Abu l-Fida [1321] 1848, 2:219. 245 Nixon et al. 2011, 1365. 246 Devisse et al. 1998, 21. 130 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Fig. 3: Principais rotas comerciais transarianas

Um tal desvio do comércio do ouro poderá inclusivamente explicar a razão da desvalorização das restantes moedas, incluindo a fatímida, tal como decorre das informações contidas nos documentos da Geniza do Cairo. Em meados do século XI, os dinares morabitinos, produzidos a partir do ouro do Sudão e conhecidos como bakriyya ou aghmatiyya, ora cunhados em nome do emir Abu Bakr b. Umar, ora sobretudo referindo-se à cidade de Aghmat, o que vem reforçar a ideia de esta ter sido a capital até à construção de Marraquexe, começaram a impor-se nas transações internacionais como moeda de confiança, em detrimento dos espécimes emitidos pelo califado fatímida, nomeadamente em Mahdia. Goitein revela como os comerciantes procuravam livrar-se da moeda do califado a todo o custo, que via o seu preço desvalorizado. Cada morabitino correspondia a mais de dois dinares de Mahdia.247 A moeda de elevada qualidade emitida pelos almorávidas ganhou o estatuto de necessidade nas grandes cidades do Egito, como o Cairo e Alexandria. Ao negociarem nestas grandes plataformas, os comerciantes do Magrebe começaram a exigir o pagamento dos seus bens em morabitinos.

247 Goitein 1999, 1:235-236. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 131

Existem inclusive registos de um banqueiro de Fustat, antigo Cairo, que, no final do século XI, já trabalhava preferencialmente com morabitinos, e não com dinheiro fatímida.248 Se pensarmos que os dinares de Tadmeka, de elevado grau de pureza, serviram as necessidades de cunhagem dos fatímidas até determinado momento – nem os trabalhos de Sam Nixon249 nem os de Goitein deixam dúvidas a esse respeito –, podemos interrogar‑nos sobre a razão de os comerciantes do Mediterrâneo preferirem a moeda almorávida e a encararem como meio de pagamento de maior confiança. Se ambas fossem produzidas em ouro praticamente puro, não existiria motivo para uma tal diferenciação. Neste caso, parece só haver uma possibilidade explicativa: justamente a do desvio do comércio do ouro para a esfera de influência almorávida e a de um menor fluxo em direção às rotas que serviam as cidades ziridas e fatímidas. Com menor quantidade de ouro, os soberanos seriam obrigados a adicionar outros metais ao fabrico das suas moedas, o que ditaria a respetiva desvalorização. Na prática, só os almorávidas seriam capazes de produzir moeda em ouro de elevado grau de pureza de forma permanente. No entanto, a continuação da cunhagem em ouro pelos fatímidas é prova de que o Império Almorávida não teria um monopólio absoluto do comércio do precioso metal, o qual, apesar de tudo, continuava a chegar aos seus adversários. Aliás, sabemos que, durante os anos de fome e guerra entre almorávidas e almóadas, as gentes de Mahdia trocavam ouro por cereais provenientes da Sicília normanda.250 Como é evidente, independentemente do fluxo deste metal para emissão de moeda (a equipa de Sam Nixon é da opinião de que a cunhagem em Tadmeka nunca terá cessado por completo)251 e do mais do que provável prejuízo imposto aos seus interesses pelo Império Almorávida, as cidades ziridas e fatímidas, como Mahdia, Alexandria ou o Cairo, nunca perderam o estatuto de importantes plataformas comerciais, como prova de forma inequívoca toda a documentação produzida pelos comerciantes judeus. Entre as mercadorias que afluíam ao Cairo de todas as partes do Mediterrâneo,

248 Goitein 1999, 1:236. 249 Nixon et al. 2011, 1356. 250 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 128. 251 Nixon et al. 2011, 1365. 132 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

encontravam-se, de acordo com as listas de dois comerciantes do século XI identificados nos documentos da Geniza daquela cidade, plantas para tingir, ervas medicinais ou destinadas à culinária, vidros, sedas, brocados, linhos, corais, cera, pedras de moinho, mobiliário, azeite, sabão, especiarias, metais, livros (Bíblia, Talmude, literatura, obras jurídicas, gramáticas e volumes em árabe), perfumes, joias, pedras semipreciosas, substâncias químicas, produtos alimentares, couros, peles, sapatos e madeira.252 Escravos de ambos os sexos provenientes de várias regiões do Mediterrâneo, vendidos e revendidos por vezes em muito tenra idade, eram também produtos muito procurados.253 Resumindo, no Cairo, transacionavam-se permanentemente bens de luxo, mas também de uso e consumo diário, satisfazendo por certo as necessidades de todas as classes sociais, não sendo difícil extrapolar um cenário idêntico para outras cidades mediterrânicas. Pequenos artífices que vendiam o seu trabalho, grandes negociantes que empregavam agentes, ou ainda revendedores: eram diversas as tipologias de comerciantes que participavam, em maior ou menor grau, nos lucros do Mediterrâneo.254 Mas, como indicia a coleção de fatawa de al-Wansharisi, nem todos estariam dispostos a arriscar a viagem para certos locais. Neste espólio, inclui-se o caso de um agente que teve de ser dirimido por um juiz de Cairuão em 1012. Tendo recebido fundos para se estabelecer em Tadmeka, acabou por viajar para o Gana e depois para Awdaghust, cidade onde se casou e permaneceu por 11 anos. Como contraiu dívidas, o cádi de Awdaghust mandou vender os seus bens e pagar aos credores. Entretanto, o comerciante que o mandatou, considerando-se lesado, também quis ser reconhecido como credor. A resposta foi clara: embora o agente não tenha respeitado as instruções recebidas, dados os riscos da viagem, não poderia ser responsabilizado; não obstante, o comerciante tinha a possibilidade de ser ressarcido enquanto credor.255 Apesar dos perigos, como se vê, o apelo do comércio atraía aventureiros ao País dos Negros, e esta fatwa demonstra ainda que, no início do século XI, a

252 Goitein 1999, 1:153-154. 253 Goitein 1999, 1:130-147. 254 Goitein 1999, 1:149-150. 255 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 382. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 133 rota que ligava o território zirida às regiões austrais do ouro se encontrava bem ativa, facto atestado pelo investimento na cidade de Tadmeka. Por outro lado, também posiciona Awdaghust na rota de interesses dos comerciantes e, assim, justifica, uma vez mais, a vontade de os almorávidas controlarem a cidade. Goitein diz-nos, a partir dos documentos que integram a Geniza do Cairo, que o ouro do Sudão alimentava toda a economia da época. Mas, por outro lado, também refere que, na mesma coleção, não existe nenhuma carta escrita a partir destas regiões mais austrais.256 A articulação de ambas as informações produz uma conclusão óbvia: apesar de implantados em Sijilmassa, como mostram as fontes,257 parece evidente que a maioria dos comerciantes judeus não se aventurava muito para sul. Podemos concluir igualmente que o epíteto de “porta do deserto” associado a Sijilmassa se torna ainda mais relevante, na medida em que correspondia ao local mais afastado a que os grandes negociantes pareciam dispostos a ir em busca do ouro e dos escravos do Sudão. Os berberes sanajas e, mais concretamente, o partido de Abu Bakr b. Umar, depois de o poder almorávida se dividir em dois, desempenhavam, assim, uma função importante, na medida em que ocupavam os espaços para onde poucos ousavam viajar e, daí, estarem na melhor posição para controlarem as mercadorias provenientes do Sudão, procurando “secar” as rotas mais orientais, que serviam os interesses da concorrência. Tal constatação conduz a várias interrogações. No final do século X, com o domínio de Sijilmassa pelos zanatas e de Awdaghust pelo Gana, as tribos do deserto deixaram mesmo de envolver-se no fluxo das caravanas? Algum grupo arriscaria substituí-los no terreno? Ou foram sobretudo as condições que se degradaram, por exemplo, com a exigência de tributos ou o impedimento de cobrar taxas pelos novos poderes dominantes? Será que alguma vez ficaram afastados por completo do comércio? Ou Ibn Yasin, ao formar um grupo de apoio, pretendeu simplesmente eliminar todas as partes envolvidas e assumir uma situação de monopólio, pelo menos, no que diz respeito às rotas comerciais mais a ocidente?

256 Goitein 1973, 23-24. 257 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 284. A Geniza do Cairo inclui documentos de comerciantes judeus com a nisba “al-Sijilmassi” (Goitein 1973, 14 e 203). 134 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Todas estas considerações nos levam a reforçar a ideia de que Abu Bakr b. Umar, que tinha o seu nome a circular no Mediterrâneo ocidental, inscrito nas moedas de confiança em que evocava o poder abássida, não poderia ser um soberano obscuro que tinha abdicado pacificamente do poder em favor de Yusuf b. Tashfin: apenas as fontes escritas parecem interessadas em construir um tal discurso. Ao contrário, era um soberano conhecido fora do seu território, sobretudo entre as fileiras do potentado vizinho, o califado fatímida, cujas moedas fazia desvalorizar, provavelmente devido a um desvio do fluxo do comércio do ouro proveniente da África subsariana. Além disso, teria grande liberdade de movimentos numa região cujas riquezas todos cobiçavam, mas para onde poucos ousavam viajar. A autonomia também seria, de resto, assegurada pelo reconhecimento de um imam distante, como o califa abássida, o que tinha a mais-valia de acrescentar legalidade à natureza do seu poder. Aliás, a assunção do califado fatímida enquanto adversário comercial, à partida, excluí-lo-ia como opção de suserano. 3. CONQUISTA DO MAGREBE

Morto Ibn Yasin, foi escolhido outro líder espiritual para substituí-lo, Sulayman b. Adu, que também morreu em combate um ano depois, diz Ibn Khaldun.1 Já Ibn Abi Zar refere que, “para as coisas da guerra”, os almorávidas elegeram Abu Bakr b. Umar, com a concordância de um Ibn Yasin gravemente ferido e consciente da proximidade da sua morte.2 Ao sublinhar que Abu Bakr se ocupava dos assuntos militares, faz supor que também houvesse alguém a controlar a vertente espiritual, mas a verdade é que nenhum nome é referido. Estas informações sugerem que, depois da morte de Sulayman b. Adu, Abu Bakr tenha procurado afastar do poder outros eventuais candidatos à sucessão espiritual. Sendo ou não verdade, facto é que, com o desaparecimento dos dois chefes religiosos, se operou uma transformação importante no Império Almorávida ao nível da liderança. Como é evidente, não se trata aqui de um processo de secularização: podemos, a propósito, evocar Ibn Hazm, para quem o príncipe é o garante da aplicação da lei religiosa, sem a qual a Umma não pode sobreviver.3 Como tal, Abu Bakr, na condição de príncipe, continuaria a deter legitimidade religiosa, mas agora assumia o poder sozinho. Podemos, também neste caso, estabelecer um paralelo em relação aos acontecimentos a envolver o movimento almóada a partir de 1130, com a morte de Muhammad b. Tumart e do seu líder militar, al-Bashir, e a subida ao poder de Abd al-Mumin. Assumindo-se

1 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:71-72. 2 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 134. 3 Clément 1997, 63. 136 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

como califa, figura que, por inerência, concentra a função de imam, reclamou igualmente a dimensão espiritual e, assim, cumpriu as prescrições de Ibn Hazm. Aliás, sendo o líder da comunidade, condição que lhe conferia o estatuto de califa, acabava por exceder estas mesmas prescrições.

Mequinez, Fez e Marraquexe: o legado de Abu Bakr b. Umar

Ao tornar-se senhor incontestado do movimento almorávida, Abu Bakr continuou as campanhas militares contra as confederações rivais, tantas vezes auxiliado por mercenários dessas mesmas tribos: masmudas, que incluíam os bargautas e os gomaras, e zanatas, compostos sobretudo por magrauas, djarauas e Banu Ifran.4 As fontes não são ricas em detalhes sobre os êxitos de Abu Bakr, talvez para deixarem brilhar Yusuf b. Tashfin como fundador ou, pelo menos, refundador do movimento almorávida. Mas Ibn Khaldun credita àquele emir sucessivos recontros militares contra os bargauatas, que terão conduzido à aniquilação desta tribo, a qual tinha sido responsável pela morte de Ibn Yasin.5 O último reduto dos bargauatas foi Ceuta, que Saqut al-Bargawati conquistou aos hamúdidas no princípio da década de 1060 e iria perder para Yusuf b. Tashfin cerca de 20 anos depois. Ibn Abi Zar também se refere às conquistas de Abu Bakr na região dos zanatas, nomeadamente em Mequinez e Luata.6 Nesta época, anterior à fundação de Marraquexe, já Yusuf b. Tashfin se destacava na guerra, enviado por Abu Bakr para as campanhas contra os zanatas, como decorre da leitura do al-Bayan al-Mugrib, de Ibn Idari.7 Já pela forma como Ibn Khaldun descreve as mesmas operações, podemos ser induzidos a pensar que era Yusuf o verdadeiro detentor do poder, pois nunca são feitas referências a Abu Bakr. É como se as campanhas militares tivessem sido exclusivamente

4 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 136. 5 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:132. 6 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 136. 7 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 37-38. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 137 decididas e conduzidas por Yusuf.8 No Kitab al-Ibar, Ibn Khaldun fornece informações sobre a conquista de Fez por Yusuf e o massacre da sua população, composta por elementos de várias tribos zanatas. O número de mortos obrigou, segundo a fonte, a abrir valas comuns, onde os corpos foram amontoados. Os sobreviventes refugiaram-se em Cairuão.9 Ibn Khaldun, mas também Ibn Abi Zar, falam de outra operação, agora sobre os gomaras, instalados na região do Rife, e da razia de várias populações no caminho até Tânger. O primeiro acrescenta que Yusuf ainda tomou posição na colina que domina esta cidade, na tentativa de conquistá-la, mas que teve de desistir face às defesas da urbe, controlada pelo senhor de Ceuta.10 As datas não são coincidentes para estas campanhas: Ibn Abi Zar fala no ano de 460 (11 de novembro de 1067 a 30 de outubro de 1069), Ibn Khaldun, em 455 (4 de janeiro a 24 de dezembro de 1063). Embora as fontes não sejam claras, parece, no entanto, certo que ocorreram durante o poder de Abu Bakr b. Umar. Nesse sentido, a proposta de Ibn Khaldun mostra-se mais aproximada, o que não será de espantar, uma vez que a obra de Ibn Abi Zar é conhecida pelas imprecisões ao nível da cronologia. Com estas vitórias, o império começava a espalhar-se como uma mancha rumo ao Magrebe central. Fez e Mequinez traziam mais plataformas comerciais aos domínios almorávidas. Basta percorrer a obra de al-Bakri para perceber que Fez dispunha de ligação a cinco rotas em direção a ocidente – duas para Ceuta, uma para Tânger, uma para Basra e outra para Aghmat –, uma para sul a conectar Sijilmassa, já em mãos almorávidas, e outra para nordeste, a atingir a distante cidade de Cairuão, a 40 dias de marcha, na atual Tunísia.11 De acordo com o mesmo autor, Fez era constituída por dois setores, um correspondendo ao bairro dos habitantes de Cairuão e outro ao bairro dos andaluzes, cada um deles amuralhado, e separados por um rio rápido dotado de várias pontes. No primeiro setor, cada casa era servida por um moinho privativo e enquadrada por um jardim com árvores de fruto e canais para a condução da água. A população judaica, com grande número de comerciantes, era mais

8 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:73-75 e 3:254. 9 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 3:254. 10 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 144; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:74. 11 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 272 e 370. 138 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

numerosa aqui do que em qualquer outra parte do Magrebe. De tal maneira a componente comercial era forte em Fez, que a maioria dos seus homens estava frequentemente ausente em viagem. Daí que, segundo um provérbio recuperado por al-Bakri, fosse “uma cidade sem homens”. No século XII, al-Idrisi continua a descrever Fez como uma cidade rica, dotada de belas casas e palácios, com dois setores separados por um rio de forte caudal, que fazia rodar os moinhos para transformar o trigo em farinha. A água circulava abundantemente no setor de Cairuão, mas não no andaluz. Cada uma das áreas era servida por uma mesquita aljama, com o seu imam, sendo frequentes os conflitos sangrentos entre ambas as comunidades.12 Já Mequinez era uma urbe de menor importância, que não sofreria nenhuma mudança assinalável durante o domínio almorávida, como nota al-Idrisi. Situada num terreno elevado de um caminho que dava acesso a Salé, era uma bela cidade a leste, da qual corria um pequeno rio que punha os moinhos em funcionamento. Encontrava-se rodeada de jardins e campos de cultivo, dotada que era de solo muito fértil.13 Do período entre a morte de Ibn Yasin e o momento em que Abu Bakr terá sido forçado a prescindir de Marraquexe, pouco mais se sabe do que estas referências algo confusas a campanhas militares, que incluíam as referidas cidades de Fez e Mequinez. As fontes parecem procurar retirar protagonismo a Abu Bakr, embora seja certo que a expansão para o Magrebe não tenha começado com Yusuf. Este limitou-se a continuar um programa de império que parece ter sido concebido por Abu Bakr b. Umar e por Abd Allah b. Yasin antes dele. Com efeito, as fontes são lacónicas. O al-Hulal al-Mawsiyya, por exemplo, passa diretamente da morte de Ibn Yasin para as razões da construção de Marraquexe, silenciando todas as conquistas averbadas pelo emir Abu Bakr. Outro exemplo evidente é transmitido por al-Nuwayri, em cuja obra a entrada relativa ao governo de Abu Bakr b. Umar indica a morte deste ainda antes da fundação de Marraquexe,14 procurando construir a ideia de uma transição harmoniosa entre os dois líderes. Do período entre a abdicação, por volta de

12 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 86-87. 13 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 88. 14 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:187. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 139

1065 ou 1066, e a morte, em 1085 ou 1086, menos ainda se conhece. Não fora a numismática e poderíamos acreditar na versão de Ibn Idari, que anuncia o seu falecimento no ano seguinte àquele em que desistiu de Marraquexe. É altamente provável que Abu Bakr tenha continuado com campanhas militares, dado o modo de vida destes chefes tribais. Nehemia Levtzion, que, embora reconheça a existência de dois poderes no Magrebe, não considera ter havido animosidade entre ambos,15 defende que Abu Bakr continuou as campanhas contra o País dos Negros, tomando como base Azuggi,16 a qual, segundo al-Zuhri, era a “capital” dos almorávidas.17 A proposta faz algum sentido, pois esta fortaleza situa-se na rota entre Sijilmassa e Awdaghust e, pela cunhagem a partir da primeira cidade, sabemos que Abu Bakr continuava a beneficiar do afluxo de ouro. Azuggi seria, provavelmente, a principal praça-forte junto do Bilad al-Sudan. Além de pistas em Ibn Khaldun, que revela que os almorávidas sujeitaram o império do Gana ao tributo18 – o que confirma o controlo das rotas comerciais e a conservação do acesso ao ouro –, não dispomos de informações mais concretas. Abu Bakr foi obliterado das fontes. De qualquer das formas, sob o seu domínio, o Império Almorávida, que já detinha Sijilmassa, Awdaghust e Aghmat, começou a construir Marraquexe e adquiriu, pelo menos, Mequinez, Fez e, como veremos adiante, provavelmente também Salé.

A caminho do Mediterrâneo

Quando Abu Bakr saiu de Marraquexe para o deserto, Yusuf b. Tashfin prosseguiu com a construção da cidade, que, de início, não passaria de um acampamento de nómadas. Diz-se que Abu Bakr terá declarado a propósito desta condição: “Somos gentes do deserto, temos os nossos rebanhos connosco.”19 Yusuf levantou muros e rasgou portas e, segundo Ibn Idari, mantinha correspondência com o primo a dar conta da evolução dos trabalhos.

15 Levtzion 1980, 40. 16 Levtzion 1980, 43. 17 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 190. 18 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:110. 19 Levtzion 1980, 30. 140 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

A mesma fonte diz que, em maio de 1071, casou com Zaynab e, no ano seguinte, criou uma casa da moeda onde cunhou em prata e ouro, em nome de Abu Bakr, e instalou a chancelaria (diwan); organizou o exército e, sem o primo disso ter conhecimento, chamou um grande grupo de familiares para junto de si, a quem prometeu riquezas e bens, ou seja, reforçou o seu poder e criou um grupo de fiéis. Mas, como vimos através de al-Bakri, estas datas devem ser corrigidas. Se Yusuf tiver casado com Zaynab pouco depois de Abu Bakr ter deixado Marraquexe, iremos cair próximo dos anos de 1065 ou 1066. Durante a ausência do primo, ainda teve tempo para fazer a guerra às tribos das regiões de Taza e do rio Muluya, no nordeste do atual território marroquino.20 Se, por um lado, procurava manter Abu Bakr descansado com a troca de missivas e a cunhagem de moeda, por outro, era já bem evidente que preparava o terreno para manter o poder. Aliás, Ibn Khaldun e Ibn Abi Zar contribuem para essa ideia, ao explicarem que, depois das referidas campanhas, atribuiu o governo das cidades do Magrebe a pessoas da sua confiança.21 Afastado Abu Bakr de Marraquexe, Yusuf continuou a expansão, agora em direção ao Atlântico. O al-Bayan al-Mugrib diz que, em 1073, enviou Mazdali à cabeça de um numeroso exército, que submeteu Salé sem combater, mas, tendo em conta os problemas de datação desta fonte para a faixa cronológica em análise, poderemos ter confiança na indicação?22 De população bargauata (masmuda), mas também Banu Ifran (zanata) e andaluza, assumia-se como um poderoso centro económico, cultural, intelectual e religioso.23 Em meados do século XII, al-Idrisi relata que este porto era frequentado por navios que vinham de Sevilha e de outros lugares do al-Andalus.24 Em 1163, aqui iria falecer o califa almóada Abd al-Mumin durante os preparativos de uma expedição punitiva contra o reino de Portugal, na fronteira com o qual uma personagem de origem obscura infundia o medo e o respeito às populações muçulmanas: Geraldo Geraldes, o Sempavor.

20 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 45-48; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 37-38; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:75; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 144; Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 53. 21 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:75; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 145. 22 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 55-56. 23 Brown 1971, 21. 24 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 83. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 141

Apesar de as fontes nada referirem, é muito provável que Salé já estivesse sob o domínio almorávida à época de Abu Bakr, uma vez que lhe atribuem o extermínio da tribo dos bargauatas, com forte presença na cidade, e também porque sabemos que Abd Allah b. Yasin, anos antes, se tinha dedicado a combater este grupo. Mais: existem evidências de que Abu Bakr conquistou Mequinez e Fez na década de 1060, mas as fontes revelam novas campanhas sobre estas cidades a partir de 1073 (data correta?),25 quase fazendo tábua rasa das anteriores expedições, como se fosse a primeira vez que os almorávidas atacavam estas cidades. Ibn Abi Zar e Ibn al-Khatib dizem que Yusuf entrou duas vezes na cidade de Fez26 e também parece certa uma segunda expedição à região de Tânger na mesma época.27 Tais informações levam a pensar que as referidas urbes possam ter-se desligado da obediência almorávida após o afastamento de Abu Bakr b. Umar. Nesse sentido, devemos creditar a Abu Bakr também a conquista de Salé – não pode ser de outra maneira. A verdade é que não é fácil reconstituir com rigor todos os passos de Abu Bakr e Yusuf nesta época. Não só as fontes pretendem claramente retirar protagonismo ao primeiro, preferindo atribuir-lhe a imagem do homem pio que, de livre vontade, abdicou do poder, como divergem quanto às operações de Yusuf e, quando coincidem, apresentam com frequência cronologias bastante distintas, o que, numa análise mais fina, levanta sérios problemas quanto à datação das campanhas de cada um dos emires. Estamos, grosso modo, a falar das operações militares que se desenrolaram em cerca de duas décadas, entre 1065 ou 1066, com o afastamento de Abu Bakr de Marraquexe, e 1083, ano que corresponde à conquista de Ceuta por Yusuf. Se podemos admitir que, numa perspetiva macro, esta reconstituição não seja absolutamente necessária, seria interessante analisar as opções políticas de ambos os líderes: não é despicienda a escolha das tribos a atacar nem a ordem de sucessão das campanhas militares. Evidentemente, quando as divergências entre textos são muito significativas, conduzindo não raras vezes a problemas

25 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 56-57; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 41. 26 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 144; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 143. 27 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 144. 142 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

na interpretação, o mais prudente será optar pelos pontos em que as versões se aproximam. Qualquer que seja a autoria e a data das campanhas militares, é muito evidente a dificuldade em dominar o território e a necessidade de vagas de exércitos para controlar as tribos. O processo é, de resto, semelhante ao que experimentaram os almóadas cerca de meio século depois. Contrariando o discurso marcadamente laudatório das fontes, que se trai nas entrelinhas, Abd al-Mumin teve de ultrapassar grandes obstáculos para impor-se e, no ano em que conquistou Marraquexe, 1147, perdeu de novo o controlo do território magrebino, devido a uma rebelião iniciada em Salé.28 Além de nenhuma dinastia se impor com facilidade, necessita sempre de um grupo de apoio para ascender ao poder. Os indícios mostram que um conjunto de fiéis ajudou Yusuf a consolidar a sua posição antes de Abu Bakr regressar do deserto e, por certo, deve ter constituído a vanguarda da força militar que lhe fez frente quando ambos se reencontraram, mas também poderá ter prestado auxílio posteriormente, quando pode ter sido necessário recuperar as cidades perdidas. Como seria natural, estes aliados foram recompensados em abundância ao longo do processo de transição de líderes, entre outros, com o governo de cidades. Não é difícil identificar algumas destas personagens: Mazdali, que garantiu Salé, defendeu o poder de Yusuf face às pretensões do herdeiro de Abu Bakr b. Umar e, como veremos a seguir, somou Tlemcen ao império; Sir b. Abu Bakr, que foi nomeado para Mequinez,29 o que faz supor a recompensa por um serviço ou, pelo menos, a nomeação de um homem de confiança; e Dawud b. Aisha, que Ibn Abi Zar diz ter sido designado para Sijilmassa em 467 (27 de agosto de 1074 a 16 de agosto de 1075) – algo impossível, pois existem moedas de Abu Bakr b. Umar cunhadas na cidade nesse ano30 – e que participou na campanha de Zallaqa.31 Estes fiéis estiveram com Yusuf desde o início e tiveram participação ativa na conquista e na governação durante os primeiros anos do poder almorávida no al-Andalus. Sir b. Abu Bakr manteve-se 20 anos à frente do governo do al-Andalus, desde a conquista de Sevilha até à sua morte.

28 Lourinho 2010, 90-92. 29 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 145. 30 Vives y Escudero 1893, 236. 31 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 148. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 143

Mazdali foi, em diversos períodos, governador de Granada e morreu na guerra de fronteira em 1115. Face à incerteza associada à aquisição do poder, tanto no Magrebe como na margem oposta do Mediterrâneo, é natural que Yusuf se apoiasse num grupo de leais seguidores e que o recompensasse com grandes honrarias: a estes homens devia o poder. Também lhes ficou a dever, de acordo com as fontes, a conquista de pontos-chave para a organização do império. Ibn Idari coloca um exército almorávida chefiado por Mazdali às portas de Tlemcen no princípio do outono de 1075, cujo governador, a troco de bens e honrarias, se rendeu sem dar luta. A cidade passou a ser governada por um filho daquele general almorávida.32 Ibn Abi Zar tem uma versão diferente dos acontecimentos: segundo relata, Mazdali destruiu a cidade e matou um dos filhos do governador.33 Também Ibn Khaldun refere que o general ordenou esta execução, mas, mais tarde, atribui outra expedição a Mazdali em Tlemcen, no decurso da qual foi morto o governador da cidade,34 o mesmo que, segundo Ibn Idari, depois de abdicar, se dirigiu a Marraquexe, onde recebeu ricos presentes de Yusuf, tendo depois voltado à sua residência.35 Em qual versão acreditar? Ou será que são compatíveis? Poderia o governador ter abdicado, num primeiro embate com os almorávidas, e depois procurado reassumir o poder, situação em que os senhores de Marraquexe decidiram encontrar uma solução definitiva para o problema? A hipótese não será descabida e poderia explicar a necessidade, segundo Ibn Khaldun, de várias operações sobre Tlemcen. A ser verdade, mais uma vez fica provada a dificuldade dos almorávidas em impor-se num território muitíssimo vasto e heterogéneo, povoado por tribos habituadas à guerra e aos acordos conjunturais. Se estivermos à espera de clarificações noutras fontes, as possibilidades são tudo menos amplas: por exemplo, o al-Hulal al-Mawsiyya limita-se a registar a data da conquista, atribuída a 1075.36 Como é evidente, se pensarmos de novo em função de uma perspetiva macro, podemos perceber que, depois das regiões de Mequinez, Fez e Taza,

32 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 60-61. 33 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 145. 34 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:76. 35 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 61. 36 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 41. 144 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Yusuf b. Tashfin continuava a visar os territórios dos zanatas, descrevendo agora um movimento rumo à atual Argélia e esforçando-se por chegar ao porto de Orão, mesmo em frente a Almeria. Mas, neste mesmo ano de 1075, diz Ibn Idari, cujas informações são confirmadas por Ibn Khaldun,37 Yusuf foi derrotado em duras batalhas pelo emir de Taza, o que prova que as campanhas anteriores nesta região não foram suficientes para controlar as tribos.38 A consolidação dos caminhos até ao Mediterrâneo, tanto para a atual Argélia como para o ocidente do Magrebe, nomeadamente para Tânger e Ceuta, permanecia uma tarefa difícil de alcançar. De resto, uma presença mais forte nos territórios da atual Argélia traria, por certo, grandes custos e talvez Yusuf não tivesse interesse em tal empresa. O caos provocado pelos árabes Banu Hilal, desde meados do século XI, poderia tornar a região pouco atrativa. O próprio Ibn Khaldun, que descreve a invasão com detalhe, revela que a riqueza destes territórios foi profundamente afetada por pilhagens, abusos, massacres, roubo de terras e conflitos, não só entre os invasores árabes e os berberes locais, como também entre as tribos estrangeiras.39 No princípio dos anos de 1050, um comerciante judeu de Mahdia chega a queixar-se de que a cidade está morta “devido ao que sofremos por causa do inimigo”.40 Durante décadas, a insegurança foi de tal magnitude que até os soberanos hamádidas foram obrigados a deixar al-Qala, a sua capital, e a instalar-se em Bugia.41 A coleção de fatawa de al-Wansharisi mostra bem que, cerca de 100 anos após a invasão, ainda se sentia o impacto na vida das populações. Os árabes obrigavam os agricultores a trabalhar as terras de que se tinham apropriado e aplicavam pesados impostos aos produtos que aqueles retiravam das suas próprias parcelas, fazendo perigar a respetiva subsistência.42 E, segundo al-Idrisi, apesar de os habitantes viverem em estado de trégua com os árabes, tal não impedia que surgissem conflitos, cujo desfecho era normalmente favorável aos primeiros, devido à impotência das autoridades.43

37 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:74. 38 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 64. 39 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 28. 40 Gil 2004, 180. 41 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:51. 42 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 26, 31 e 33. 43 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 109. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 145

Além disso, os príncipes hamádidas, um ramo que se separou dos ziridas no início do século XI, empreenderam incursões no Magrebe para dar luta aos almorávidas. Nos anos de 1060, diz Ibn Khaldun, chegaram a permanecer por algum tempo na cidade de Fez.44 Estes factos podem explicar, por um lado, o potencial desinteresse de Yusuf em prosseguir para a região central da atual Argélia e, por outro, contribuir para esclarecer a dificuldade em consolidar o território do Magrebe. Claro que a desorganização e o caos poderiam, em teoria, favorecer a conquista de Yusuf. Podemos, de resto, argumentar que, em meados do século XII, o califa almóada, Abd al-Mumin, foi bem-sucedido numa campanha militar contra o território quando este se encontrava em desagregação. Mas a verdade é que as conjunturas eram diferentes: a conquista almóada seguiu-se a um período de guerra prolongada contra os almorávidas, que ditou a escassez de alimentos, a fome grave e a morte generalizada. No século XI, pesavam, sobretudo, os abusos cometidos sobre a população, o que pressupõe capacidade militar dos Banu Hilal e talvez justifique a apatia dos príncipes hamádidas, reinantes na região, bem evidente na mudança de capital. Se, ao contrário do califa almóada, Yusuf não seguiu para o Magrebe central e para Ifrikiyya, talvez tenha feito uma leitura menos favorável da conjuntura para os seus interesses. Embora tenhamos de rodear-nos de grandes reservas quanto às datas indicadas pelas fontes para os eventos destas duas décadas entre o afastamento de Abu Bakr e a conquista de Ceuta por Yusuf, o anónimo al-Hulal al-Mawsiyya dá conta de uma reorganização e renovação do exército por Yusuf em 470 (25 de julho de 1077 a 14 de julho de 1078), processo no seguimento do qual o emir enviou emissários às tribos do deserto, entre lamtunas, massufas e gudalas, a informar sobre as vitórias no Magrebe e a convidá-las a aderir ao seu partido em troca de riquezas e cargos. Esta notícia suscita algumas reflexões. Primeiro, é possível que um acesso ao Mediterrâneo estivesse garantido: provavelmente, a questão de Tlemcen já estaria resolvida. Exceto Ibn Khaldun, as fontes não referem a situação da cidade costeira de Orão. Aliás, nesta fase, o al-Bayan al-Mugrib

44 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:47. 146 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

sofre uma truncagem muito significativa, que faz transitar a narrativa das derrotas sofridas pelos almorávidas em Taza, no Magrebe, para a imposição de tributo de Rodrigo Díaz de Bívar à cidade de Valência, no al-Andalus. O Kitab al-Ibar refere, no contexto de uma campanha sobre o Magrebe central, a submissão de Oujda, Tlemecen, Orão, Ténès, a região montanhosa de Ouanchariss e todos os pontos-chave junto ao Mediterrâneo até Argel.45 Ou seja, o movimento almorávida teria dado um golpe definitivo nos interesses das tribos zanatas. Já para ocidente, as campanhas não seriam tão simples, e sabemos sem margem para dúvidas que Tânger e Ceuta não estavam em poder de Yusuf, muito embora o mesmo Ibn Khaldun anote conquistas na região do Rife, como Guercif, situada sobre o rio Muluya, e como Nokour, já perto do Mediterrâneo.46 Apesar de não incluírem Tânger nem Ceuta, os territórios detidos por Yusuf riscavam uma impressionante linha no mapa do Magrebe, ligando Salé, junto ao Atlântico, a Argel, no Mediterrâneo. Pelo caminho, essa linha agregava Mequinez, Taza, Guercif, Oujda, Tlemcen, Orão e Ténès. Trata-se, de resto, de uma via que subsiste até aos nossos dias, ainda que interrompida pela fronteira entre Marrocos e a Argélia. Ao observar esta linha, com uma extensão de cerca de 1200 quilómetros, torna-se evidente o isolamento das cidades de Tetuão, Tânger e Ceuta, cujo território formava um triângulo com o acesso ao hinterland intercetado pelas cidades detidas por Yusuf. Como é óbvio, tal não era suficiente para ditar a ruína financeira de urbes com ligação privilegiada ao Mediterrâneo e ao Atlântico, mas dificultaria as trocas comerciais entre o interior e a costa.

45 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:76. 46 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:76. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 147

Fig. 4: Cidades conquistadas por Yusuf b. Tashfin antes de Tânger e Ceuta

Por outro lado, o envio de emissários às tribos do deserto por parte de Yusuf contribui para solidificar o argumento da dificuldade em submeter as populações, mas, mais interessante ainda, robustece a hipótese da existência de dois poderes em competição. Nesta cronologia, Abu Bakr b. Umar ainda estava vivo, e Yusuf procurava provavelmente minar a sua base de apoio, com a afirmação de que era um líder capaz – as vitórias no Magrebe eram disso prova – e com a oferta de riquezas e honrarias. Esta verdadeira operação de marketing político teve resultados frutíferos, de acordo com o al-Hulal al-Mawsiyya, e rendeu a Yusuf grande número de apoiantes, a quem atribuiu o governo de cidades, além de negócios e riquezas.47 A posição do emir consolidava-se no terreno militar, mas também na construção de uma rede clientelar cada vez mais ampla. Ao recrutar entre tribos inimigas, como os zanatas, os elementos para compor um séquito, procurava também “apaziguar” adversidades.48 Abu Bakr estaria, por certo, mais isolado. Tal como nos últimos tempos do movimento almorávida, os apoios transferiram-se para o lado adversário, muito provavelmente por já pressentirem a fação que sairia vitoriosa.

47 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 46. 48 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 46. 148 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Outra questão que se levanta é a de saber quem eram, de facto, os almorávidas nesta fase. Por outras palavras, quem entre Abu Bakr b. Umar e Yusuf b. Tashfin se reclamaria herdeiro de Abd Allah b. Yasin? Com a morte de Abu Bakr, segundo a tradição devido a uma seta envenenada quando guerreava no País dos Negros,49 e o afastamento do seu filho Ibrahim, Yusuf assumiu, de facto, a herança de Ibn Yasin, com quem as fontes nunca indicam que se tenha sequer cruzado, ou as narrativas contribuíram para a construção de uma tal ideia? Mais cru e provocador ainda: nesta conjuntura, seria Yusuf um almorávida ou apenas alguém que almejava o poder e necessitava de um discurso legitimador? Todas as fontes se esforçam por descrever o emir como um continuador, inclusive atribuindo-lhe uma pretensa conquista do império do Gana, apesar de não ter tido intervenção no território.50 O Kitab al-Istiqsa, composto por al-Nasiri no século XIX, numa época em que Marrocos se encontrava sob grande pressão das potências imperialistas, é exemplar a este respeito: omite todos os pormenores que possam ajudar ao questionamento de uma linhagem que começa em Ibn Yasin e segue sem sobressaltos até Yusuf b. Tashfin. Com a passagem de Yusuf ao al-Andalus, surge um fôlego de jihad semelhante ao que perpassou o início do movimento almorávida, o que justificava o ideário do grupo, mas, no período em que os dois poderes subsistiram, não existem elementos nas fontes que nos permitam concluir por uma continuidade, uma linha direta entre Ibn Yasin e o novo emir. Podemos inclusive suspeitar de que, depois da vitória em Zallaqa e da construção de uma imagem enquanto “príncipe dos muçulmanos e defensor da religião”, Yusuf necessitasse de argumentos que lhe permitissem recuperar uma narrativa fundacional: o seu poder decorria de uma linhagem sucessória que remontava, ininterruptamente, ao imam Ibn Yasin e passava a estar ratificado pelo califado abássida. Aliás, ao percorrermos as indicações de Ibn Hazm sobre o imamato, parece algo evidente que as fontes procuram cumpri-las.51 Piedade, integridade de caráter, humildade, modéstia e escrupuloso cumprimento dos deveres estão entre os atributos exigidos ao

49 Norris 1967, 634. 50 Masonen 1006, 78. 51 Clément 1997, 65. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 149 príncipe. Daí talvez também a necessidade de atribuir, por um lado, à mulher Zaynab o incentivo na toma do poder a Abu Bakr b. Umar – e a criação de uma narrativa em que este não se sente espoliado e até sai de Marraquexe em paz, satisfeito com a troca, para nunca mais regressar – e, por outro, às faltas graves dos reis de taifas a justificação para tomar nas mãos o al-Andalus. Mas esta construção narrativa deixa pistas, pequenas pedras no caminho, sobre a sua falta de coincidência com os factos.

Ceuta e a luta pelo controlo do estreito de Gibraltar

Enquanto Yusuf b. Tashfin se afadigava na conquista do território magrebino, no al-Andalus, os reis de taifas sofriam a pressão de Afonso VI, que impunha a sedição entre muçulmanos e exigia o pagamento de tributo em troca de segurança. Em breve, esta pressão resultaria na entrada do rei cristão em Toledo, cidade que capitulou face à fome e à degradação das condições intramuros,52 e deixou os corações dos habitantes do al-Andalus plenos de desesperança, como relata Abd Allah b. Buluggin.53 As fontes muçulmanas indicam o ano de 478, mas não precisamos de nenhum algoritmo de conversão entre os calendários gregoriano e da Hégira para obter a data que os textos cristãos exaltam: 25 de maio de 1085. O equilíbrio de forças no al-Andalus estava prestes a mudar. Segundo Ibn Abi Zar, no ano de 467, que decorreu entre 27 de agosto de 1074 e 16 de agosto de 1075, Yusuf recebeu um pedido de socorro de al-Mutamid, de Sevilha, para “fazer a guerra santa e defender o al-Andalus”, que o emir recusou por não possuir as cidades de Tânger e Ceuta. Segundo al-Maqqari, os reis do al‑Andalus não viam com bons olhos a aproximação do emir aos seus territórios, mas temiam incorrer na sua inimizade.54 Talvez por isso al-Mutamid tenha procurado uma composição com Yusuf b. Tashfin, disponibilizando a

52 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:77. 53 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 230. 54 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:275. 150 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

frota de Sevilha para que este pudesse bloquear Ceuta por mar. Não seria o único a procurar alianças com o novo homem forte do Magrebe. Segundo o al-Hulal al-Mawsiyya, al-Mutawakkil b. al-Aftas, de Badajoz, também enviou uma embaixada a pedir socorro contra Afonso VI.55 Abd Allah b. Buluggin, por sua vez, lamenta um repto lançado a Yusuf pelo seu irmão Tamim, senhor de Málaga, cujo objetivo era apoderar-se do reino de Granada. Acrescenta que todas estas dissensões eram de feição ao emir almorávida, que poderia pôr os reis de taifas uns contra os outros, para mais facilmente se apossar dos seus territórios.56 A estratégia, denunciada por alguém que viveu os referidos acontecimentos – Abd Allah –, era igual à perseguida por Afonso VI, o que prova, uma vez mais, que Yusuf não se deslocou ao al-Andalus propriamente para proteger os muçulmanos e defender a religião. O emir não foi, digamos assim, obrigado pela história a assumir esses territórios: fundou a própria história. Já havia uma clara intenção, que a retórica dos doutores de leis se encarregou de embelezar. Mas, para essa empresa alcançar o sucesso, Yusuf necessitava de conquistar Ceuta. Nem todas as fontes informam sobre estes eventos, e algumas, como Ibn al-Khatib e até Ibn Khaldun, são demasiado sintéticas. A primeira limita-se a dizer que Yusuf se apoderou da cidade e matou o seu governador, Saqut al-Bargawati.57 A segunda fornece mais alguns dados: as forças de Yusuf, lideradas por um dos seus filhos, atacaram por terra enquanto a esquadra de al-Mutamid empreendeu um bloqueio marítimo.58 O anónimo Kitab Mafakhir al-Barbar, que recupera a obra de Ibn Bassam, promete várias páginas de informações, agregadas sob o título “Guerra a Saqut al-Barghawati e ao seu filho, senhor de Ceuta e Tânger”, mas, ao analisarmos de forma mais aprofundada o conteúdo destas linhas, o valor informativo revela-se menos expressivo do que o desejado. Aqui se misturam considerações contra os reis de taifas com ataques aos governantes de Tânger e Ceuta, num tom laudatório de Yusuf b. Tashfin. Dos reis de taifas, diz Ibn Bassam que negligenciaram o gládio, decidiram seguir os perseguidores dos seus próprios seguidores e que o emir

55 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 47. 56 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 230-231. 57 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 143-144. 58 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:77. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 151 determinou a sua subjugação pelo afastamento, numa clara alusão à quebra do dever de fazer a guerra aos cristãos, ao pagamento de parias àqueles que eram inimigos do seu próprio povo e ao exílio a que os almorávidas submeteram reis como al-Mutamid e Abd Allah b. Buluggin. Acrescenta Ibn Bassam que Yusuf reuniu provas contra aqueles que designa por negligentes, os quais desistiram das suas responsabilidades, e lhes fez a guerra com a ajuda de um dos seus filhos, o que não é rigoroso, pois diversos familiares do emir participaram na conquista do al-Andalus. Além disso, os ataques a Saqut e aos reis de taifas não foram simultâneos: ocorreram em cronologias próximas, mas, ainda assim, sucessivas. De Saqut, diz que Yusuf o destruiu, assim como aos seus apoiantes, e perseguiu todas as manifestações de rebelião até à dissolução dos zanatas, o que corresponde a mais um erro. Os bargauatas, de que Saqut fazia parte, constituíam um ramo dos masmudas, como nos explica Ibn Khaldun,59 e não dos zanatas, os últimos mais implantados na região do Magrebe central. Ibn Bassam enaltece a destruição provocada por Yusuf no país de Saqut, o qual foi afastado “das suas luas e estrelas, do seu ambiente, da sua energia e das suas responsabilidades” e “os púlpitos nunca mais voltaram a pronunciar o seu nome”. A al-Muizz, filho de Saqut, Ibn Bassam chama “estrela cadente” e diz que, por sua causa, os poetas, que deixaram as misérias por que passou registadas para a posteridade, “encontraram o caminho para a prosa e falaram”, ou seja, como nada tinham a enaltecer, perderam as habilidades poéticas. Chega a dizer que a arte dos poetas não se engrandeceu com al-Muizz: pelo contrário, os seus feitos eram dignos de provocar sono.60 Só depois de um longo exercício na arte das perífrases, das metáforas e dos jogos de palavras se vislumbra alguma informação utilizável. Ibn Bassam regista um acordo entre al-Mutamid b. Abbad e o emir dos muçulmanos, pelo qual o primeiro cedeu a sua frota para auxiliar na conquista de Tânger e Ceuta, a última cidade com muralhas ditas monumentais e inexpugnáveis.61 Depois de conquistar Tânger em circunstâncias que se desconhece, mas que, a acreditar em Ibn Bassam, terão beneficiado da ajuda da armada de Sevilha,

59 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:125. 60 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 54-55. 61 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 56. 152 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Yusuf b. Tashfin terá semeado a destruição em Ceuta. Alguns navios de al-Muizz, filho de Saqut, foram em socorro da cidade, enquanto a maior parte do seu país sofria duras penas. Na prática, Ibn Bassam corrobora a tese de um ataque concertado por mar e terra. Nesta operação, a cavalaria demonstrou grande eficácia, com a opção pelo camelo a ficar em segundo plano.62 Al-Muizz ainda terá tido algum sucesso contra as naves de Sevilha, mas não conseguiu evitar a destruição das muralhas de Ceuta (o que faz supor o recurso a maquinaria de guerra instalada nas embarcações), nem tão-pouco a entrada dos almorávidas na cidade. O filho de Saqut terá procurado escapar por mar nesse conturbado mês de junho de 1083, mas um destacamento de almorávidas intercetou-o, deu-lhe combate, causou grandes baixas entre os seus apoiantes e conseguiu cercar o remanescente das suas tropas.63 Com esta vitória, Yusuf iniciava o processo de controlo do estreito de Gibraltar. Não por acaso, o primeiro objetivo no al-Andalus foi a conquista de Algeciras. Os almorávidas tinham atravessado o Mediterrâneo e, em breve, iriam ficar frente a frente com os cristãos.

Zallaqa ou o reencontro do al-Andalus com o Magrebe

Quando, a 23 de outubro de 1086, os cristãos se confrontaram nos campos de Zallaqa com os muçulmanos liderados pelos berberes sarianos, há muito que o al-Andalus conhecia os homens do Magrebe. Os exércitos da conquista, em 711, eram já grandemente formados por contingentes berberes, como relata Ibn Abd al-Hakam no seu Dikr Fath al-Andalus,64 berberes estes que acabaram por instalar-se nos territórios tomados aos cristãos e formar um grupo social e político que disputaria interesses no tabuleiro de xadrez peninsular. Mais tarde, o recrutamento de mercenários destas etnias pelos exércitos de Córdova foi uma prática impopular junto das populações do al-Andalus, mas que rendeu a al-Mansur b. Abi Amir um corpo de guerreiros fiéis. A desagregação

62 Lagardère 1979, 104. 63 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 56-57. 64 Ibn Abd al-Hakam [820-871?] 1858. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 153 do califado, no virar do século X para o XI, fez emergir alguns grupos de berberes à cabeça dos novos reinos de taifas. Os Banu Ziri, de Granada, os Banu Birzal, de Carmona, ou os arabizados Banu Di l-Nun, de Toledo, e, depois de afastarem os herdeiros do governador amirida Sabur al-Saqlabi, os Banu al-Aftas, de Badajoz, são os exemplos mais evidentes. Berberes no al-Andalus não eram, pois, propriamente algo desconhecido, tal como, salvas as devidas distâncias, não eram novidade os bárbaros dentro do Império Romano à data em que o poder dos Césares caiu nas mãos do germânico Odoacro. Mas, apesar de conhecidos, nem sempre seriam aceites. Se de início esta nova vaga de homens do deserto – os almorávidas – trouxe esperança às gentes do al-Andalus, como refere François Clément, uma comunidade martirizada pela injustiça,65 ao fim de algum tempo, começou a semear o mesmo descontentamento de que foram acusados os reis de taifas. É disso claro exemplo a rebelião de Córdova em 1121, que pôs em causa o poder de Marraquexe na Península Ibérica.66 O facto de os almorávidas velarem o rosto só faria crescer a desconfiança, como decorre da leitura de Ibn Abdun, que escreveu sobre Sevilha nos princípios do século XII. No seu tratado de hisba, género literário que prescreve regras sobre a responsabilidade divina dos governantes em aplicarem o bem e absterem-se do mal, refere que os mercenários berberes e negros, “gente sem escrúpulos”, infundiam o terror e praticavam toda a espécie de abusos a coberto do litham (véu), que, por isso, só deveria ser usado por quem de direito: as tribos sanajas.67 As fontes esforçam-se também por atribuir um significado e, se quisermos, um discurso legitimador ao uso do véu, esta peça de indumentária que os muçulmanos da Hispânia encaravam com tanta desconfiança. Abd al-Rahman al-Sadi, na sua obra Tarikh al-Sudan, que transmite uma ideia semelhante à que podemos obter através do al-Hulal al-Mawsiyya – ambas fontes mais tardias face ao período almorávida –, afirma que os “velados”, ou mulathimun, recorreram a esta estratégia para esconderem a sua identidade quando, nos primórdios do

65 Clément 1997, 196. 66 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 103-104; Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 525-526; al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:196-197. 67 Ibn Abdun [1050-1120?] 1948, 61-62. 154 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

islão, foram perseguidos por apoiarem o Profeta e tiveram de deixar o Iémen para refugiar-se nos confins do Magrebe. Porque o véu os salvou dos seus inimigos, afirmam ambas as fontes, entenderam continuar a usá-lo, e este tornou-se numa peça obrigatória da sua indumentária.68 Mas, se considerarmos que a origem iemenita das tribos que davam corpo aos almorávidas é provavelmente uma construção, então nada disto fará sentido e precisamos de procurar uma outra origem para o uso do véu. Seria uma simples proteção face às inclemências do deserto, na forma de sol, vento, areia e insetos, para a qual as fontes procuraram depois uma justificação mais nobre? Estas justificações não aparecem em fontes coevas do início do movimento almorávida, como al-Bakri, o qual se limita a referir que os homens do deserto usavam o niqab, véu de mulher, por cima do litham, de modo que apenas a linha dos olhos pudesse ser vista. O véu constituía uma segunda pele, a ponto de, quando retirado, parentes e amigos não reconhecerem o indivíduo que se lhes apresentava. Os povos que não o usavam eram, pelos seus portadores, designados por “boca de moscas”.69 Já antes da formação do partido almorávida, no século X, Ibn Hawqal explicava que “ninguém alguma vez viu a cara de nenhum deles, exceto os olhos, pois adotam o véu quando são crianças e são criados assim. Consideram que a boca é algo de vergonhoso, como as partes privadas, por causa do que sai dela, pois, na sua opinião, o que emana da boca tem um cheiro pior do que aquilo que emana das partes privadas”.70 Al-Nuwayri, fonte mais tardia, conta uma história que vai no mesmo sentido: certa vez, um velho almorávida fazia a higiene, nu, nas margens de um rio e, com a mão disponível, preferia tapar o rosto a cobrir os genitais.71 Estratégia de sobrevivência face a perseguição ou simples proteção no deserto, pouco importa: a verdade é que o véu passou a corresponder a uma marca de pudor, mas também a um símbolo da crença que estes povos mantinham de terem sido distinguidos por Deus.

68 Abd al-Rahman b. Abd Allah b. Imran b. Amir al-Sadi [1610-1660?] 1900, 44; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 25-26. 69 Al-Bakri [1050-1090?] 1913, 320-321. 70 Ibn Hawqal [966-988?] 2000, 49. 71 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:189. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 155

Armados com o véu da fé e a espada da guerra, os almorávidas compareceram a nordeste de Badajoz perante Afonso VI e os seus com um forte dispositivo de cavalaria.72 Segundo a tradição, haviam sido convocados por um al-Mutamid que, pressionado entre o norte e o sul, e antevendo a sua desgraça, preferia, de acordo com uma célebre passagem, apascentar camelos no Magrebe a ser criador de porcos em terras cristãs.73 Todas as principais fontes muçulmanas, com mais ou menos pormenores, mais ou menos enaltecimento de Yusuf b. Tashfin, fazem eco deste momento: Abd al-Wahid al-Marrakushi, Djannabi, al-Hulal al-Mawsiyya, Ibn Abi Zar, Ibn al-Athir, Ibn Khaldun, Ibn Khallikan, Ibn al-Khatib, al-Maqqari, al-Nasiri e al-Nuwayri. 74 A única fonte de referência que não inclui o relato dos eventos é Ibn Idari, mas a versão do al-Bayan al-Mugrib que nos chegou encontra-se muito truncada, pelo que é possível e até altamente provável que, na origem, contivesse tais informações. Os relatos nem sempre coincidem e, quando analisamos as memórias de Abd Allah b. Buluggin, que, de facto, participou na batalha, podemos perceber que, quanto mais afastadas dos eventos em termos cronológicos são as fontes, mais embelezadas e politicamente comprometidas parecem – é o caso de al-Maqqari e al-Nasiri –, com um discurso destinado a construir uma imagem específica para Yusuf. Segundo o que percebemos de Abd Allah, o papel de Yusuf não terá sido assim tão glorioso: evidentemente que, também aqui, teremos de descontar os interesses do rei de Granada, por um lado, ressentido com os cristãos e, por outro, com uma relação ambivalente face a Yusuf. Se lhe devia a destituição, também dependia dele para sobreviver no exílio de Aghmat, onde registou as suas memórias. Mas, relatando com grande proximidade face aos eventos e, com certeza, não suspeitando de todos os contornos do uso político que, mais tarde, seria feito de Zallaqa, as suas palavras tendem a ser mais dignas de crédito. Para si, a batalha não terá talvez passado de uma campanha militar

72 Lagardère 1979, 104. 73 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 59. 74 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 104-106; Djannabi [1550-1590?] 1924, 356-357; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 66-81; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 148-155; Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 482-486; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:78-79; Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:190-191 e 4:453-457; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 147-149; al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:279-289; Ahmed b. Khalid al-Nasiri [1895] 1925, 155-181; al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:98-100. 156 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

destinada a manter o al-Andalus longe das mãos dos cristãos. De acordo com as suas memórias, nesse momento, não recearia a destituição pelos almorávidas. O próprio confessa que, na altura, pensava que a vinda de Yusuf ao al-Andalus “era um benefício divino, tanto maior aos meus olhos quanto estarmos unidos por vínculos étnicos. Além disso, dizia-se no al-Andalus que os almorávidas eram gentes de bem, que vinham para assegurar o Paraíso na outra vida e que eram justos nas suas sentenças”.75 Abd Allah parecia convencido de que o espírito clânico, ou asabiyya, tão forte entre berberes, o pudesse livrar de problemas com os almorávidas: afinal, os ziridas, a que pertencia, também eram sanajas. Possivelmente, até pensava que esta ligação lhe permitiria manter-se nas boas graças de Yusuf e, por isso, ficaria com vantagem face aos restantes reis de taifas. A história provou que de nada lhe valeu a proximidade étnica. As palavras de Abd Allah são ainda interessantes por deixarem perceber a eficácia da propaganda pró-almorávida entre os muçulmanos da Hispânia. Quando chegaram ao al-Andalus, as tropas do emir já tinham um terreno favorável preparado. De acordo com o rei de Granada, antes de seguirem para Sevilha, local de encontro das forças dos reis de taifas, os almorávidas enviaram uma pequena força a Algeciras, liderada por Dawud b. Aisha,76 e conseguiram tomar a cidade. Depois da conquista de Ceuta, em 1083, esta ação equivalia a uma intenção de controlar o estreito de Gibraltar e constituía uma clara agressão aos interesses de al-Mutamid. Diz Abd Allah que, com tal medida, Yusuf evitou que al-Mutamid, eventualmente em conluio com Afonso VI, impedisse a sua travessia para o al-Andalus. A ser verdade, é também evidente – uma vez mais – que Yusuf não foi ao al-Andalus defender os reis de taifas benevolamente: já tinha um interesse muito marcado no território. Outra posição de força ou mesmo de intimidação será tomada ao instalar-se em Sevilha, com a convocação dos reis de taifas: “O emir enviou recado a todos os soberanos para que se apresentassem”, afirma o rei de Granada. Prova desta intimidação é a reação de Ibn Sumadih, de Almeria, que, provavelmente procurando evitar o contacto com os almorávidas, se escusou a participar na guerra, com o argumento da sua avançada idade. Abd Allah descreve

75 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 233. 76 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 231-233. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 157 também a sua atitude, não sem deixar transparecer debilidade e vontade de agradar: “Quanto a mim, apressei-me a pôr-me em marcha, muito contente com o rumo dos acontecimentos, depois de reunir para a guerra santa o dinheiro e os homens que pude. Antes, já tinha enviado um presente ao emir dos muçulmanos.”77 Abd Allah faz questão de sublinhar o seu empenho na guerra santa, apesar de outras fontes muçulmanas serem muito críticas com os reis de taifas, afirmando que, em plena batalha, todos, com a exceção de al-Mutamid, fugiram para Badajoz. Tal como as restantes fontes, o monarca de Granada explica que Afonso VI se embrenhou em território muçulmano, convencido dos números do seu exército e da menor força do inimigo. Mas, se a batalha lhe corresse mal, ao contrário dos muçulmanos, que tinham Badajoz nas costas, não dispunha de um lugar onde pudesse refugiar-se. Abd Allah concorda com as outras fontes quanto à escolha do local e à afirmação de que Yusuf não teria interesse em penetrar no território cristão, “até porque, acabados de chegar ao al-Andalus, os almorávidas nem sequer conseguiam distinguir os aliados dos adversários”.78 A última observação é muito curiosa e prova a proximidade cultural entre cristãos e muçulmanos da Hispânia. A mesma dificuldade experimentariam, por exemplo, os pisanos e os genoveses ao encontrarem gentes do condado de Barcelona na operação militar sobre as ilhas Baleares, em 1114,79 assim como os cristãos do norte da Europa que participaram na conquista de Lisboa, em 1147. Ao contrário de Abd Allah, as demais fontes asseguram que se frustrou uma tentativa de Yusuf para, de acordo com os preceitos do islão, converter Afonso VI à religião ou, não sendo possível, levá-lo a submeter-se ao mesmo tributo que impunha aos reis de taifas. A carta que Yusuf endereçou a Afonso VI determinava a guerra caso nenhuma das ofertas fosse aceite.80 Não é crível que Yusuf esperasse de Afonso VI que se conformasse a tais exigências, pelo que talvez tenhamos de encarar esta carta, independentemente de ser ou não verdadeira, como mais uma “prova” carreada pelas fontes no sentido de consolidar a imagem do emir enquanto rigoroso seguidor das determinações da

77 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 233. 78 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 234-235. 79 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 9. 80 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 70-71; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 149. 158 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

religião – só lhe era permitido atacar se nenhuma das propostas, qualquer delas inaceitável para o monarca cristão, fosse acatada. Também corresponde a uma evidente construção a história relatada, por exemplo, pelo al-Hulal al-Mawsiyya e por al-Nuwayri, de um sonho de Afonso VI na véspera de Zallaqa, em que se via montado num elefante enquanto tocava um tambor, cujo conteúdo remete para uma surata do Corão que anuncia a perdição dos infiéis, premonição literária, mas também por determinação de Deus, da derrota dos cristãos.81 Apesar de “avisado” pelo sonho – descodificado por um sábio do islão, dizem as fontes muçulmanas – Afonso VI preferiu confiar nos números do seu exército: de acordo com o al-Hulal al-Mawsiyya e Ibn Abi Zar, 80 mil cavaleiros, metade dos quais protegidos por armaduras, a que o segundo acrescenta 200 mil peões. Já segundo al-Nuwayri, as forças cristãs eram compostas por 50 mil homens com as suas montadas.82 Em qualquer dos casos, os números encontram-se evidentemente inflacionados. Os muçulmanos a cavalo, couraçados ou não, não passariam de 24 mil.83 As fontes fazem questão de sublinhar a desproporção de forças e meios, com desfavor para o lado muçulmano, que, no entanto, sairia vitorioso. Tal como também não deixam de incluir na narrativa um episódio segundo o qual al-Mutamid recorreu a um astrólogo para descobrir o desfecho do embate, o qual anteviu a derrota dos muçulmanos. A este vaticínio, pouca atenção terá dado Yusuf, acrescentam, devido à sua “aversão aos augúrios das estrelas”.84 Os textos empenham-se ainda em denegrir a ética de Afonso VI. As tropas de ambos os lados, dizem, acamparam num terreno riscado a meio pelo Guadiana. Alguns dias se passaram em negociações, até que ficou acordada a data do embate. Era quinta-feira e o futuro avô de D. Afonso Henriques terá sugerido que a batalha ocorresse numa segunda, para que se respeitasse a sexta, dia sagrado dos muçulmanos, o sábado, dos judeus, e o domingo, dos cristãos.85

81 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 67-69; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 152; al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:99. 82 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:100. 83 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 69-70. 84 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 71-72. 85 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 149; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 70-71; al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:100. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 159

Mas a batalha acabou por ocorrer na sexta-feira, porque os cristãos quebraram o acordo e atacaram “à traição”.86 Abd Allah não dá tantos pormenores sobre este episódio, mas também diz que a data foi combinada para depois ser desrespeitada pelos cristãos, que atacaram de surpresa. No entanto, descobre uma vantagem nesta ocorrência. Segundo diz, se os exércitos se tivessem encontrado em campo aberto no dia fixado, teriam existido perdas mais avultadas para o lado muçulmano. Num primeiro momento, os cristãos conseguiram uma vantagem, mas depois, tendo soado o alarme, a cavalaria foi em auxílio das tropas atacadas e conseguiu rechaçá-los, cansados que estavam pelo peso das armaduras e pela longa distância percorrida.87 Resumindo as palavras de Abd Allah, o facto de os cristãos se terem internado em território muçulmano, não terem esperado por uma batalha em campo aberto e terem usado equipamento pesado numa operação de assalto, a exigir rapidez e fluidez de manobras, foram as razões da sua derrota. Encarcerados nas suas armaduras, tornaram-se presas fáceis para a cavalaria ligeira muçulmana, que foi semeando os caminhos com os seus corpos. Mas, mais interessante do que os pormenores da peleja, suficientemente escalpelizados por Vincent Lagardère em Le Vendredi de Zallaqa,88 é o discurso das fontes e as consequências políticas que daí podem ser retiradas. Tal como a pretensa Batalha de Ourique iria, em 1139, constituir uma pedra decisiva para um reino em formação, cujo líder se mostrava capaz no manejo das armas e na defesa do seu povo, também Yusuf teve em Zallaqa o seu momento fundacional. Se D. Afonso Henriques foi beneficiado com a visão de Jesus na véspera da batalha, Yusuf conheceu a decisão de Deus através de um instrumento que era o seu rival – Afonso VI –, o qual, apesar de instado a passar para o lado dos justos e sabedor da sua perdição, preferiu combater os detentores da verdade, inclusive quebrando a palavra dada, apenas para sofrer as penas do castigo divino. Também Yusuf libertava o seu povo da tirania, tanto dos maus muçulmanos como dos cristãos infiéis, e demonstrava valentia contra um inimigo esmagadoramente superior nos números. Era, por isso, merecedor

86 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 72; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 150; al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:100. 87 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 235-236. 88 Lagardère 1989b, 185-224. 160 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

do poder e tinha o direito de invocar o título de “emir dos muçulmanos e defensor da religião”, até porque, ao contrário dos temerosos reis de taifas, simbolizados na narrativa por al-Mutamid, não tinha apreço pela astrologia nem por superstições: apenas a religião lhe interessava. Na diferença entre Abd Allah b. Buluggin e as restantes fontes, reside o discurso político de um recontro militar para mais tarde recordar. A cronística cristã também conservou memória deste evento, mas, evidentemente, o registo e o destaque são muito diversos. A Chronica Gothorum, igualmente conhecida como Chronicon Lusitano, é talvez a fonte cristã mais abundante em pormenores, não obstante procurar a valorização dos feitos do rei Afonso, que contou com a ajuda de grande número de tropas francas contra “todos os sarracenos da Hispânia” e Yusuf b. Tashfin, “que para si tomou o cargo de rei”, em conjunto com muitas tropas ultramarinas. “Mas o diabo esteve contra, e um grande medo apoderou-se de alguns de nós e muitos milhares fugiram.” O rei Afonso continuou a lutar até à noite. Nenhum dos seus inimigos, diz a Chronica Gothorum, poderia aguentar esta incursão, mas a verdade é que os sarracenos conseguiram eliminar muitos cristãos. As tropas de Afonso VI invadiram as linhas muçulmanas e alcançaram o acampamento de Yusuf, entrincheirado num vale. Enquanto tentava conquistar o aquartelamento almorávida, o rei cristão foi avisado de que os muçulmanos atacavam o seu próprio acampamento e viu-se obrigado a desistir para acudir aos seus, mas foi ferido por uma lança e perdeu muito sangue. Como não encontraram água, deram vinho ao monarca, que sofreu uma síncope e foi evacuado para Coria.89 Muito mais económico nas palavras, o Chronicon Mundi, de Lucas de Tui, também procura reverter os efeitos da derrota:

O rei Afonso, com o seu exército, travou uma batalha no local a que chamam Barduzo, isto é, Sacralias, e um número incontável dos nossos caiu. Mas ocorreu ao rei Afonso uma maravilha, pois, com a derrota, ficou mais animado para a guerra. No mesmo ano, foi reunido um grande exército contra Sevilha, que provocou incontável mortandade e regressou em paz.90

89 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 10. 90 Lucae Tudensis [1238?] 2003, 306. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 161

A crónica escrita por Paio, bispo de Oviedo, também se esforça por pôr Zallaqa em perspetiva. Começa por relatar todas as conquistas de Afonso VI, o pagamento de tributo pelos muçulmanos e as ações de povoamento cristão na Estremadura. Devido aos sucessos de Afonso VI na guerra contra os muçulmanos, acrescenta, al-Mutamid viu-se obrigado a pedir ajuda aos almorávidas, com que o rei cristão teve repetidos encontros e “em que foi muitas vezes vencido durante a sua vida”, incluindo na Batalha de Sacralias. Continua com a explicação de que Afonso VI foi ainda “protetor e patrono de todas as igrejas da Hispânia”.91 Outras fontes são bastante lacónicas. Os Anales Toledanos incluem apenas uma simples frase: “Os mouros derrotaram o rei D. Afonso em Zagalla.”92 O Chronicon Complutense limita-se a assinalar a “grande batalha”, sem sequer indicar vencedores ou vencidos.93 Os Anales Compostelanos conseguem ser ainda mais sintéticos, referindo que, na era de 1124 (1086), “foi a de Badajoz”.94 Já o Chronicon Compostellanum prefere silenciar esta derrota, dando destaque à imposição de tributo aos muçulmanos e à conquista de Toledo,95 que ocorrera no ano anterior. O mesmo faz Rodrigo Ximénez de Rada através da sua Historia de Rebus Hispaniae, na qual dedica muitos detalhes à conquista de Toledo, à transformação da mesquita aljama desta cidade em catedral e à substituição do rito moçárabe pelo romano.96 Também as Crónicas Anónimas de Sahagún passam uma borracha sobre o assunto, invariavelmente destacando a tomada de Toledo e as batalhas de Afonso VI contra os muçulmanos.97 Ora, ainda que fontes como Ibn Abi Zar aleguem que os cristãos foram tão humilhados que levaram cerca de 60 anos a levantar a cabeça,98 talvez tenhamos mesmo de aceitar o “conselho” das fontes do norte peninsular e pôr este evento em perspetiva. Zallaqa não foi o fim de Afonso VI, até porque os cristãos continuaram ativos na guerra, como demonstra bem, dois anos depois,

91 Crónica Escrita por Pelayo Obispo de Oviedo [1125-1153?] 1852-1853, 2:530. 92 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:343. 93 Chronicon Complutense [1065-1099?] 1913, 1:54. 94 Anales Compostelanos [1248-1299?] 1913, 1:70. 95 Chronicon Compostellanum [1126-1130?] 1913, 1:89. 96 Roderici Ximenii de Rada [1243?] 1987, 203-209. 97 Puyol y Alonso 1920a, 76:116. 98 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 152. 162 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

o sucesso na defesa de Aledo, castelo na região de Múrcia, que os almorávidas sitiaram, mas não conseguiram conquistar. A derrota de 1086 não fez perigar a manutenção do poder por Afonso VI. No entanto, é bem verdade que veio pôr um ponto final ao sistema deparias e a uma fonte de financiamento de fácil acesso, bem como à possibilidade de o rei cristão interferir de forma direta nos assuntos do al-Andalus e ao sonho de tornar-se suserano dos reis de taifas. Já para Yusuf a vitória assumia uma importância capital. Não por acaso, apressou-se a dar conta do sucesso a Tamim b. al-Muizz, senhor de Mahdia. Nesta missiva, fez questão de realçar que deu ao inimigo a possibilidade de converter-se ou pagar tributo para evitar a guerra e que os cristãos não respeitaram a data acordada, mas que Deus enviou dos céus a proteção aos seus fiéis servidores. Menciona o golpe sofrido por Afonso VI num fémur, devido ao golpe de uma lança, e que este foi obrigado a tomar refúgio numa montanha das proximidades para salvar a vida. Deste ponto elevado, viu o seu acampamento ser saqueado e destruído, o que o terá levado a “morder os dedos de raiva e desespero”. Da sua guarda pessoal de 500 cavaleiros, segundo o relato de Yusuf, apenas 100 regressaram a Toledo. O emir também critica os reis muçulmanos, que terão fugido para Badajoz, apesar de terem regressado ao campo de batalha temendo represálias, o que remete para o Corão, tal como explica Vincent Lagardère. Um muçulmano está impedido de fugir perante um infiel, sob pena de ter o Inferno como destino, a menos que o faça para reagrupar as suas forças militares e voltar a atacar.99 Ora, não foi isso que aconteceu, de acordo com Yusuf b. Tashfin, embora, por exemplo, Abd Allah b. Buluggin nada fale sobre o assunto: na sua muito conveniente versão, os reis de taifas fugiram e só regressaram por medo de serem castigados. O único que permaneceu na peleja, ainda de acordo com o “relato oficial”, foi al-Mutamid. Mas, em vez de louvar o rei de Sevilha, a carta prefere sublinhar que se encontrava com “um braço partido, crivado de feridas e triste”. Sem dúvida que o conteúdo deste texto se destinaria à divulgação, certeza esta conferida pelo acento colocado nos aspetos com interesse para a

99 Lagardère 1989b, 97. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 163 propaganda almorávida: bravura no campo de batalha e observação rigorosa dos preceitos religiosos por parte de Yusuf, traição dos inimigos cristãos e sua destruição, fraqueza moral e física dos reis de taifas. E, se seguiram mensagens para as elites, o povo também foi impregnado por uma quota de propaganda. Ibn Abi Zar refere que, depois de Zallaqa, Yusuf mandou cortar as cabeças dos cristãos, caídos aos milhares na peleja, e enviá-las às principais cidades do al-Andalus e do Magrebe, “a fim de que todos as vissem e dessem graças a Deus por tão grande mercê”.100

Obediência ao califado abássida

Zallaqa e o cuidadoso discurso composto à volta de Yusuf apontam para um só caminho: o projeto de legitimação do poder do novo emir almorávida junto do califado abássida. Podemos, pois, interrogar-nos sobre o momento em que passou a usar o título de “emir dos muçulmanos” (amir al-muslimin). Nas suas memórias, Abd Allah b. Buluggin refere-se sempre a Yusuf b. Tashfin por meio deste título. Mas, apesar de as duas personagens serem contemporâneas, tal não faz prova de que Yusuf já usasse o título antes de Zallaqa. Não podemos esquecer-nos de que esta obra foi escrita no exílio de Aghmat, quando, depois de cair em desgraça, dependia do emir para sobreviver. É natural que o deposto rei de Granada se dirigisse a quem lhe garantia a subsistência – e a própria vida – da forma mais deferente possível, mesmo reportando-se a eventos muito recuados no tempo. E, se o raciocínio vale para uma fonte contemporânea de Yusuf, aplica-se, por maioria de razão, aos restantes textos que lhe são posteriores: o facto de tratarem Yusuf por “emir dos muçulmanos” não dá garantias de nenhuma data para o início do uso do título. O al-Hulal al-Mawsiyya e Ibn Idari defendem que terá sido por volta de 466 (6 de setembro de 1073 a 26 de agosto de 1074) que Yusuf passou a reclamar esta distinção, por insistência dos chefes tribais. Na opinião de ambas as fontes,

100 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 152. 164 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

que recuperam informações da obra perdida de Ibn al-Sayrafi, os aliados de Yusuf, reunidos em assembleia, lembraram-lhe de que era lugar-tenente de Deus, pelo que merecia ostentar um título com maior importância do que o de simples “emir”, ao que aquele terá respondido que não queria usar um designativo a que só os califas abássidas tinham direito. Depois de alguma discussão, terá aceitado a fórmula “emir dos muçulmanos e defensor da religião”.101 Uma vez mais, as fontes fazem um esforço no sentido de atribuir a terceiros decisões relacionadas com Yusuf. Não foi ele quem quis o poder de Abu Bakr: foi a mulher Zaynab quem o pressionou a tomá-lo. Não foi ele quem quis o poder dos reis de taifas: foi o mau comportamento daqueles que o precipitou. Também não terá sido ele a desejar o título de “emir dos muçulmanos”: foram os chefes de tribos a insistir. E nunca, mas nunca, quis – ao contrário de Abd al-Mumin, futuro califa almóada – usurpar as prerrogativas dos legítimos detentores do poder: os soberanos abássidas. Por outro lado, Ibn al-Athir avança que, quando Abd Allah b. Yasin designou Abu Bakr b. Umar como chefe militar dos almorávidas, lhe atribuiu logo o título de “emir dos muçulmanos”.102 Não há como confirmar a veracidade de tal proposta, mas é certo que as moedas de Abu Bakr sobreviventes até aos nossos dias não contêm tal menção. Abu Bakr é referido como “emir”, mas não como “emir dos muçulmanos”, o mesmo acontecendo relativamente ao seu filho Ibrahim. Aliás, é de supor, uma vez que Yusuf parece ter imitado Abu Bakr nas fórmulas escolhidas para a numismática, que, se este tivesse recorrido a um tal título, o vencedor de Zallaqa lhe seguisse o exemplo. A questão é que Yusuf só começou a cunhar após Zallaqa (quando Abu Bakr já tinha morrido e, por certo, o seu filho Ibrahim foi afastado de Sijilmassa) e, nas primeiras moedas, além da invocação do califa abássida e da profissão de fé, incluiu unicamente a distinção de “emir”.103 Ibn Abi Zar e Ibn al-Athir argumentam, de resto, que, apenas depois de Zallaqa, Yusuf passou a designar-se como “emir dos muçulmanos e defensor

101 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 41-42; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 57-58. 102 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 464. 103 Vives y Escudero 1893, 239. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 165 da religião”. Trata-se de uma proposta muito mais credível. A primeira fonte refere que “este foi o primeiro que se chamou assim entre os reis do Magrebe”. Acrescenta que passou a cunhar moeda a partir do dia daquela vitória e que gravou nos seus dinares a fórmula “o emir dos muçulmanos Yusuf b. Tashfin”, que marcou a sua vassalagem a Bagdade através da expressão “al-Imam Abd Allah Amir al-Muminin al-Abbasi”.104 Se tudo aponta para que apenas depois de Zallaqa tenha começado a cunhar moeda, já não é correto que tenha sido desde aquele dia – tal ocorreu apenas no ano seguinte. Além disso, os primeiros espécimes que se conhecem não incluem “dos muçulmanos” e, apesar de referirem o califa abássida, através da expressão “al-Imam Abd Allah Amir al-Muminin”, também não recorrem à expressão “al-Abbasi”.105 Já Ibn al-Athir acrescenta uma ideia muito interessante: ao regressar a Marraquexe, Yusuf viu a sua autoridade reforçada sobre algumas regiões que não queriam reconhecê-lo, como o Sus, Wargha e Qalat Mahdi. Esta passagem só vem confirmar a dificuldade em impor-se perante os povos do Magrebe. Parece evidente que Zallaqa não só serviu como mote para afastar os reis de taifas e procurar legitimação e reconhecimento, como contribuiu para controlar as tribos que teimavam em recusar a submissão. Daí a necessidade de enviar as cabeças dos cristãos para o Magrebe: atestavam o poder de um líder destemido na guerra, favorecido por Deus no combate aos inimigos da fé. Continuamos, assim, sem dados precisos quanto à data em que Yusuf começou a usar o título de “emir dos muçulmanos e defensor da religião”. Évariste Lévi-Provençal argumenta que só muito tarde tal ocorreu, mas não concretiza a afirmação.106 Se recorrermos, uma vez mais, à numismática, verificamos que, das moedas recenseadas por Vives y Escudero e Codera nos seus tratados, nenhuma faz referência ao título, que será claramente incluído pelo seu filho Ali.107 A cunhagem é importante e oferece informações precisas. Mas é importante não confundir as coisas. Se, por um lado, faz sentido que Yusuf tenha mandado inscrever nas suas moedas o título só depois de Zallaqa,

104 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 140. 105 Vives y Escudero 1893, 239. 106 Lévi-Provençal 1955, 267. 107 Vives y Escudero 1893, 239; Codera y Zaidin 1879, 196-197; Lévi-Provençal 1955, 267. 166 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

por outro, não podemos fazer depender o início da cunhagem da vitória contra os cristãos, embora tal possa conferir-lhe credibilidade. O mais provável é que esse arranque da emissão de moeda se deva sobretudo à morte de Abu Bakr, ao afastamento do seu filho Ibrahim e ao controlo de Sijilmassa, porta para o ouro do País dos Negros. Sem Sijilmassa, nenhuma vitória no al-Andalus garantiria o fluxo de metal suficiente para uma cunhagem estável. Além disso, apesar da sua importância fundacional, Zallaqa não passa da antecâmara da união entre o Magrebe e o al-Andalus: os reis de taifas ainda teriam de ser destituídos e o território peninsular conquistado. E a propaganda, essa, teria de produzir efeitos. Apesar de muito favorável, logo após Zallaqa, a situação de Yusuf não seria de molde a justificar o uso de um tal título. Por outro lado, se quisermos, justamente, recuperar os argumentos da propaganda almorávida, ainda não estaria reparada na totalidade a injustiça de que eram vítimas os muçulmanos da Hispânia e o cabal respeito pelos preceitos da religião. Para isso, Yusuf teria de tomar o poder, e o processo, se bem que tenha começado com a queda de Granada e Sevilha, no período entre 1090 e 1091, só ficou concluído em 1095, com a conquista de Badajoz, Cáceres e Lisboa. Ibn Khaldun fornece alguns contributos para o raciocínio na sua Muqqadimah. Diz o historiador tunisino:

No tempo em que o nome e a influência do califado se extinguiram, o governante almorávida Yusuf b. Tashfin apareceu entre as tribos berberes no Magrebe. Tornou-se governante das duas margens. Era um homem bom e conservador, que, para cumprir as formalidades da sua religião, desejou submeter-se à autoridade califal. Dirigiu-se ao abássida al-Mustazhir e enviou dois xeques de Sevilha . . . Eles regressaram com a designação califal de Ibn Tashfin como governante do Magrebe . . . No documento, o califa dirigiu-se a Ibn Tashfin como ‘emir dos muçulmanos’, para honrá-lo e distingui-lo. Ibn Tashfin, assim, tomou este título.108

De acordo com esta versão, apenas depois de governar no Magrebe e no al‑Andalus e de receber a autorização de Bagdade, Yusuf passou a usar o título. E, se só no regresso de Abu Bakr b. al-Arabi – o pai faleceu na viagem, em

108 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 182. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 167

Alexandria, no início de 1099109 –, Yusuf se atreveu a reclamar a distinção, isso significa que teve de esperar sete anos, desde que a embaixada saiu de Sevilha, nos começos de 1092. Embora não seja tão claro quanto Ibn Khaldun, Ibn al-Athir providencia pistas que vão no mesmo sentido: “Depois do conselho dos sábios andaluzes de que não tinha o direito de exigir a obediência senão depois de proclamar o califa e receber dele a investidura para as regiões que governava, enviou uma embaixada a Bagdade.”110 Se não tinha o direito de exigir a obediência, podemos concluir que também não poderia reclamar o título. Na hipótese de a distinção só ter efetivamente surgido com a permissão califal, Yusuf só a terá usado, pelo menos de forma legal, durante cerca de sete anos, uma vez que faleceu em setembro de 1106. Tudo isto nos obriga a regressar a Abd Allah b. Buluggin, o mesmo que, nos anos de exílio, se referia a Yusuf como “emir dos muçulmanos”. Se, por um lado, este tratamento não proporciona certezas quanto ao uso recuado do título, é um fiel diapasão no que se refere ao presente. Por outras palavras, Abd Allah ainda descreve eventos muito posteriores a Zallaqa, como, por exemplo, os relacionados com a queda de Badajoz e a conquista de Valência pelo Cid, tudo em 1094. Aliás, as memórias terminam abruptamente no relato deste último evento, o que pode fazer suspeitar do falecimento de Abd Allah. Tal significa que, em 1094, provavelmente Yusuf já seria designado como “emir dos muçulmanos”, ainda que não tivesse a confirmação califal. De resto, podemos já verificar, no parecer que o cádi Ibn al-Arabi pediu a al-Ghazali, o qual é posterior a Zallaqa, mas precede a destituição de alguns reis de taifas, que existe uma intenção de Yusuf no sentido do uso do título, prática esta com a qual al-Ghazali concorda, na medida em que refere por duas vezes, na sua carta de resposta, que o facto de Yusuf ainda não ter recebido o documento de ratificação não anulava a obediência que os muçulmanos lhe deviam.111 O mesmo raciocínio serve para Ibn Bassam, mais uma fonte coeva dos acontecimentos de Zallaqa, que também trata Yusuf b. Tashfin por “emir dos muçulmanos”. Basta, por exemplo, atentar

109 Lévi-Provençal 1955, 270. 110 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 486. 111 Viguera 1977, 353-355. 168 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

nas passagens da obra al-Dakhira fi Mahasin Ahl al-Jazira referentes à conquista de Ceuta pelos almorávidas que são replicadas pelo anónimo Kitab Mafakhir al-Barbar: no relato destes eventos, que até são anteriores a Zallaqa (datam de 1083), Yusuf já recebe o título.112 Claro que, neste caso, importa apurar a data de redação da obra maior de Ibn Bassam. Bruna Soravia e Mohamed Meouak defendem que foi iniciada por volta de 1110.113 Já Khalid Lafta Baker, baseado nas informações diretas e indiretas contidas na obra, argumenta que os três primeiros volumes podem ter sido escritos por volta dos anos de 1108 a 1110, mas que a coleção não foi terminada antes de 1142.114 Evidentemente, qualquer que seja a data do início ou término da obra, é sempre posterior à morte de Yusuf b. Tashfin, que ocorreu em 1106, pelo que, apesar de Ibn Bassam ser coevo dos acontecimentos, não será por esta via que poderemos extrair conclusões quanto ao momento em que o senhor de Marraquexe passou a usar o título de “emir dos muçulmanos”. Resumindo, Yusuf deve ter começado a usar o título de “emir dos muçulmanos e defensor da religião” – ou, pelo menos, a permitir (ou até a pressionar) que os seus súbditos se lhe dirigissem desse modo – assim que conquistou as principais cidades do al-Andalus, designadamente Granada e Sevilha. Daí talvez Abd Allah referir‑se a Yusuf em 1094 como “emir dos muçulmanos”. Mas é provável que, sem a concordância califal, não se atrevesse a cunhar tal distinção em moeda. A ratificação do título só chegou em 1099, a escassos sete anos da sua morte,115 o que lhe daria tempo para emitir moeda com a referência, mas, dos exemplares referenciados por Vives y Escudero e Codera, como vimos, nenhum a contém. Chegados à corte de Bagdade em 1096, depois de uma longa viagem que incluiu um naufrágio ao largo de Barqa, na atual Líbia, e a peregrinação aos lugares santos do islão,116 Ibn al-Arabi, pai e filho, trataram de advogar os interesses almorávidas, o que é confirmado por al-Nuwayri.117 Na petição

112 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 54-58. 113 Meouak et Soravia 1997, 221. 114 Baker 1986, 77-79. 115 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:13. 116 Lagardère 1985, 93-94. 117 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:194-195. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 169 que apresentaram ao califa al-Mustazhir, pode ler-se que Yusuf b. Tashfin, defensor da fé, reclamou para si a condição de campeão do imamato abássida e do príncipe dos crentes. Durante 40 anos, combateu vitoriosamente os que se opunham ao reconhecimento desta causa e submeteu vastos territórios no Magrebe. Graças a Yusuf, mais de 2500 púlpitos pronunciavam agora a oração (khutba) em nome do califado legal, num império que se espraiava entre os domínios dos cristãos da Hispânia e os confins do Gana das minas de ouro.118

118 Lévi-Provençal 1955, 277.

4. FRONTEIRA DO GHARB NO FINAL DO SÉCULO XI

Entre almorávidas e cristãos, os reis do al-Andalus procuravam manter-se no poder a todo o custo nesse final do século XI. Ibn al-Kardabus refere que, apesar da ajuda militar prestada pelos berberes, negociaram secretamente com Afonso VI para lhes entregarem, à traição, os líderes almorávidas na condição de se manterem como governadores das cidades, recolhendo impostos para o monarca cristão.1 Com os almorávidas no território, lançavam mão de qualquer estratégia para conservar o poder. Mas Yusuf b. Tashfin, um após outro, acabou por depor todos os reis de taifas a partir de 1090.2 Abd Allah b. Buluggin foi o primeiro. De acordo com as suas memórias, antes de atacar o reino de Granada, Yusuf tê-lo-á prometido a al-Mutamid, mas o senhor de Sevilha não estaria certo das intenções do emir e temia ser exilado. Abd Allah refere ainda que nem os senhores de Badajoz e Almeria ousavam tomar uma atitude sem que ficasse claro o destino de Granada. Sitiado por forças almorávidas, Abd Allah resolveu, então, escrever aos outros reis, lembrando-lhes que aquilo que lhe estava a acontecer lhes caberia também em sorte, mas, sem apoio, teve de se render.3 O Rawd al-Qirtas, apesar de revelar algumas imprecisões, dá também conta do desamparo de Abd Allah b. Buluggin. No termo de dois meses de cerco, explica, o rei de Granada viu-se

1 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 125. 2 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 128 e 124-126. 3 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 328-330. 172 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

obrigado a pedir o perdão e a segurança (aman) a Yusuf b. Tashfin. Entregue a cidade ao almorávida, partiu para o Magrebe com a família, onde passou a viver com o recurso a uma dotação atribuída por Yusuf.4 O Kitab Mafakhir al-Barbar faz uma pequena referência à destituição de Abd Allah de Granada e do irmão Tamim, de Málaga, ambos descendentes de Zawi b. Ziri, o primeiro desterrado para Aghmat e o segundo para Nul.5

Destituição dos reis andaluzes e tomada de Sevilha

Depois de entrar em Granada,6 Yusuf enviou um exército contra Almeria, obtendo a submissão de todos os castelos à sua passagem. O rei desta cidade terá adoecido com as notícias. Não resistindo a uma congestão, diz Abd Allah, acabou por falecer.7 Ibn Bassam, citado por Ibn Khallikan, diz com ironia que deve ter havido um pacto secreto entre o monarca e Deus, pois morreu no exercício do poder, rodeado pela família, apenas alguns dias antes de o reino cair.8 O filho que lhe sucedeu, ao saber do fim da taifa de Sevilha, em 1091, fugiu para Argel, também segundo Abd Allah.9 Com a queda de Granada, al-Mutamid terá visto as suas angústias adensarem-se.10 De acordo com Abd Allah, Yusuf b. Tashfin esperava um pretexto para destituir o rei de Sevilha, pelo que decidiu convocá-lo à sua presença. Temendo pela vida, al-Mutamid recusou-se e pediu ajuda a Afonso VI, que o terá ignorado.11 Yusuf deu então ordens a Sir b. Abu Bakr para pôr cerco a Sevilha, num momento em que a maioria dos castelos da taifa já se tinha rendido. Abd al-Wahid al-Marrakushi, por sua vez, fala de conluio dos inimigos de al-Mutamid, à cabeça dos quais o rei de Almeria, para indispor o

4 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 157. 5 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 43-44. 6 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 51. 7 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 331-332. 8 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:204. 9 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 333. 10 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 333-334; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 157. 11 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 334-335. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 173

“emir dos muçulmanos” contra ele.12 Al-Maqqari, dando voz a Ibn al-Khatib, destaca a ferocidade do cerco a Sevilha e a guerra psicológica levada a cabo pelo general Sir b. Abu Bakr, que, depois de aprisionar e decapitar um dos filhos de al-Mutamid, passou a cabeça cravada numa lança diante dos muros da cidade. Sublinha que o rei se defendeu corajosamente durante um mês até os almorávidas conseguirem penetrar na cidade e ser obrigado a render-se.13 Al-Maqqari inclui ainda uma passagem da autoria do poeta Ibn al-Labbana, que conta como alguns homens de al-Mutamid planearam traí-lo durante o cerco.14 Ibn Khallikan fala de “firmeza e bravura” e “coragem inaudita” de al-Mutamid na resistência ao cerco.15 Al-Nuwayri alega que deu provas de valentia e bravura. Explica ainda que, ao saberem do cerco a Sevilha e com receio de serem atacados, os cristãos organizaram um contingente militar para atacar os almorávidas. Mas, ficando ao corrente dos planos, Sir b. Abu Bakr foi ao encontro destes cavaleiros, pô-los em fuga e regressou ao cerco a Sevilha.16 Neste momento, já o ex-rei de Granada se encontrava no exílio, primeiramente em Mequinez,17 e Córdova e Carmona caíam nas mãos dos berberes devido à falta de apoio da população ao cada vez mais isolado rei de Sevilha.18 A capital da taifa acabou por sucumbir em setembro de 1091, um ano depois de Granada, devido à traição de quem controlava as suas portas, lamenta Abd Allah. Os berberes saquearam a cidade e, segundo Abd al-Wahid al-Marrakushi, “não deixaram a ninguém coisa alguma”.19 Ibn Khallikan refere que a devastação se espalhou por cada bairro e que os habitantes se viram desapossados de tudo o que tinham: “Escondendo a nudez com as mãos, fugiram das suas casas.”20 Ao apoderar-se de al-Mutamid, Sir b. Abu Bakr tomou como reféns os seus “escravos de ambos os sexos, exceto as concubinas que lhe tinham dado

12 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 106-107. 13 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:297. 14 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:298. 15 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:191. 16 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:101. 17 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 335. 18 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 336-367; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:80. 19 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 112. 20 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:191. 174 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

filhos”, diz Abd Allah b. Buluggin. A família seguiu, então, para o exílio em Mequinez. Mais tarde, tanto al-Mutamid como Abd Allah foram transferidos para Aghmat. O último congratula-se de ter sido bem tratado pelo emir, que o instalou na parte do palácio anteriormente reservada ao harém.21 Abd al-Wahid al-Marrakushi refere que al-Mutamid permaneceu no exílio durante 20 anos, o que não é correto, pois faleceu em 1095, e elogia os seus feitos literários durante este período, que, sublinha, “outro não seria capaz em 100 anos ou mais”.22 Seria o fim daquele que, segundo relata Ibn Khallikan, era o príncipe mais liberal, hospitaleiro e poderoso do al-Andalus, cuja corte constituía um local de passagem de viajantes e um ponto de encontro de poetas.23 Badajoz seria a última cidade a cair, provavelmente em 1094. Com esta série de conquistas, os almorávidas, que beneficiavam do apoio dos ulemas maliquitas, os quais lhes proporcionaram a legitimação política, concluíam a conquista dos principais territórios do al-Andalus, unindo as duas margens do estreito de Gibraltar.

Normandos tomam posição no Mediterrâneo

Escassos meses antes de Sevilha reverter para os almorávidas, em fevereiro de 1091, e após 30 anos de esforços militares, dar-se-ia um evento que iria mudar a configuração política do Mediterrâneo ocidental: a total conquista da Sicília pelo normando Rogério de Hauteville, primeiro do nome, evento de que dá conta, entre outros, Ibn al-Athir.24 A partir dos anos de 1120, os normandos da Sicília – e o seu “protetorado” de Mahdia – iriam confrontar-se com os almorávidas pelo controlo do comércio no Mediterrâneo ocidental, tabuleiro de xadrez onde também jogavam atores políticos como Pisa, Génova e o reino hamádida de Bugia. Para vários autores, como Paul E. Chevedden, que recorre aos estudos de Carl Erdmann, a conquista normanda da Sicília inseriu-se no âmbito da

21 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 337-338. 22 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 84. 23 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 3:186. 24 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 498-504. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 175

Primeira Cruzada. Tal como explica, o papa Urbano II, o primeiro a apelar à cristandade no sentido de libertar o túmulo de Cristo, que se encontrava nas mãos dos muçulmanos, via a Primeira Cruzada enquanto um tríptico composto pela conquista normanda da Sicília, os sucessos cristãos sobre o al-Andalus, que incluiriam por certo a recuperação das linhas do Tejo e de praças-fortes como Lisboa, Sintra e Santarém, e a tomada de Jerusalém.25 Chevedden argumenta que tanto as fontes cristãs quanto muçulmanas descrevem a conquista da Sicília como o advento de uma era totalmente nova, embora tenha suscitado sentimentos diferentes entre os dois blocos políticos em oposição.26 Para os cristãos, trouxe esperança de uma inversão face a séculos de domínio muçulmano, enquanto, entre o islão, provocou alarme e fez soar as trombetas da necessidade de levar a guerra santa aos inimigos. Na nova configuração política da Sicília, o conde Rogério fez instalar cristãos, sobretudo oriundos da Península Itálica, ao lado de uma população maioritariamente muçulmana, mas que também incluía uma comunidade judaica, proximidade potenciadora de conflitos entre ambas.27 Estes novos grupos sociais trouxeram a ampliação de uma cultura híbrida temperada por elementos orientalizantes, que era já o húmus moldador da identidade local antes da conquista. O geógrafo Ibn Hawqal, que, no século X, passou pela Sicília, reporta que o casamento entre muçulmanos e cristãs era permitido, desde que um rapaz nascido dessa união seguisse a religião do pai e uma rapariga, a da mãe.28 Ao longo do período normando, os muçulmanos desempenhavam sobretudo atividades comerciais, agrícolas e oficinais, detendo a maior parte da produção de trigo, que a ilha trocava com o Norte de África por ouro, mas cujo controlo, progressivamente, passou para as mãos de mercadores de Pisa, Génova e Veneza.29 Ainda assim, vários intelectuais e outros funcionários muçulmanos pertenceram, de facto, ao círculo mais restrito de Rogério II, filho do conquistador, e ajudaram a projetar a sua imagem como soberano entre o

25 Chevedden 2010, 192. 26 Chevedden 2010, 200. 27 Metcalfe 2002, 292. 28 Ibn Hawqal [966-988?] 2001, 1:128-129. 29 Metcalfe 2002, 292. 176 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Ocidente e o Oriente, como foi o caso do geógrafo al-Idrisi. A referida troca de cereais por ouro é, de resto, bem atestada por uma fatwa de al-Mazari, emitida em Mahdia em 1141, numa época em que se agravava a falta de alimentos e, como relata Ibn al-Athir, a fome determinava a emigração para a Sicília.30 Mesmo perante as dificuldades das populações, que iriam agravar-se dramaticamente até 1147, ano em que a cidade de Mahdia caiu em mãos normandas, os doutores de leis reprovavam a troca de ouro por bens alimentares provenientes de um território sob o domínio cristão.31 Enquanto os normandos controlaram a Sicília, foi produzida escrita em árabe, grego e latim, as línguas dominantes no mundo mediterrânico, e tomou-se como referência cultural o mundo bizantino. Poesia em árabe ou grego e textos litúrgicos no segundo destes idiomas eram comuns.32 A catedral de Santa Maria Maior de Palermo chegou a celebrar a liturgia em grego, o que não será de todo surpreendente tendo em conta a influência bizantina até à conquista árabe, a qual decorreu entre os séculos IX e X. Uma coleção de documentos gregos e árabes, muitos deles redigidos em ambas as línguas, reunida por Salvatore Cusa na segunda metade do século XIX, mostra bem as fórmulas miscigenadas encontradas para traduzir a realidade da Sicília. A título de exemplo, o texto do primeiro diploma da recolha encontra-se em grego, mas dispõe de uma introdução aos confirmantes em língua árabe. Os nomes, todos de origem árabe, também surgem grafados nesta língua, embora o documento termine em grego. Atentemos no interesse da pequena frase introdutória à lista de confirmantes, em árabe no original: “Nomes dos homens da religião única / o Sultão da Igreja Grande / igreja santa e abençoada invocando Maria na cidade da Sicília.”33 A partir de um estudo dos documentos gregos coligidos por Cusa, Stergios Laitsos concluiu que obedeciam às fórmulas utilizadas pelo Império Bizantino, tanto na sua organização como no recurso frequente a frases específicas, como “o meu estado sereno”, “nossa serenidade”, “grande rei”, “poderoso rei” ou “o meu estado coroado divinamente”. A cidade de Palermo

30 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 562. 31 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 128. 32 Mallette 2003, 140-141. 33 Cusa 1868, 1-3. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 177 surge na documentação enquanto “a grande cidade de Panormus”, e a via pública, como “rua imperial”.34 Estas fórmulas, sublinha o autor, contribuíram de forma decisiva para a construção da identidade da Sicília, até porque acabaram por ser aceites pelos súbditos da monarquia normanda e transpostas para a documentação particular. Alguns autores defendem que a miscigenação ocorria sobretudo no plano literário e nas esferas mais elevadas da sociedade, porque, na prática, os muçulmanos estavam submetidos ao poder cristão.35 Outros, como Alex Metcalfe, defendem que a coexistência das três línguas não correspondeu propriamente a um plano concebido a partir da monarquia para reforçar uma identidade tripartida e, sim, a uma forma de tentar apaziguar e reconciliar uma sociedade recém-formada e dividida pela religião, pela cultura, pela forma de encarar a política e pela língua, e que esta comunidade particular poderá remeter de forma errónea para a moderna noção de tolerância religiosa.36 O ano de 1091, o tal da morte de Sisnando Davides em Coimbra e da intensificação dos esforços para a cidade transitar do rito moçárabe para o gregoriano, mas também da queda de Sevilha para os almorávidas, assistiu a mais transformações no contexto mediterrânico. O mesmo conde Rogério de Hauteville atacou a ilha de Malta e impôs-lhe tributo. Os seus sucessores acabaram por solidificar o controlo do território insular, com a substituição dos governadores muçulmanos por cristãos da sua confiança. Os normandos da Sicília estendiam, assim, a sua influência a mais um ponto fulcral para o equilíbrio do Mediterrâneo. Por morte de Rogério I, em 1101, assumiu o poder o filho Simão, criança que faleceu em 1105 e cujo desaparecimento abriu uma oportunidade para outro irmão. Adotando sucessivamente os títulos de conde da Sicília, duque da Apúlia e Calábria e rei da Sicília, o último a partir de 1130, Rogério, segundo do nome, transformaria a ilha num potentado comercial e marítimo, a rivalizar com todos os atores mediterrânicos, incluindo os impérios Almorávida e Bizantino e as cidades-estado italianas, mas igualmente com o Império Romano-Germânico.

34 Laitsos 2005, 238. 35 Dalli 2006, 75-6. 36 Metcalfe 2002, 302. 178 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Rogério II chegou a cunhar moeda em árabe, com a fórmula genérica “Não há deus senão Deus”,37 mas sem o final que confirmaria a fé muçulmana: “E Maomé é o seu mensageiro.”38 Em substituição, adotou uma forma usada no islão, mas que não correspondia a um compromisso com esta religião: “Sozinho, ele não tem companheiro”.39 E, à semelhança dos reis de taifas, afastados do poder alguns anos antes, mas cuja prática deveria persistir na memória coletiva, o monarca da Sicília iniciou uma tradição de uso de cognomes do tipo califal (laqab): al-Mutazz bi-llah ou “o que se glorifica na presença de Deus”. Os seus sucessores imitaram-lhe o exemplo ao longo do século XII: Guilherme I, Guilherme II, Tancredo I e Guilherme III.40 Para a Sicília normanda ascender a reino e potentado marítimo, temos, no entanto, de aguardar pela chegada do almirante Jorge de Antioquia às suas fileiras. Com carreira feita junto dos ziridas de Mahdia, este melquita grego arabófono ficaria numa posição delicada a partir de 1108, pela subida ao poder de Yahia b. Tamim, soberano que lhe era antagónico. Procurou refúgio na corte de Rogério II, ao serviço do qual ganharia um título que traduz de forma inequívoca o ambiente de “mestiçagem” no Mediterrâneo: amiratus amiratorum, a declinação latina do amir árabe, isto é, “emir dos emires” ou, mais exatamente, “almirante dos almirantes”. Com a intervenção de Jorge de Antioquia, Rogério II iria tentar a conquista de territórios-chave do Norte de África durante o declínio almorávida, caso do ataque a Ceuta, em 1144, e procurar as boas graças do papado através da grande campanha contra o Império Bizantino de finais de 1147 a 1148. Mas, no ano da conquista normanda da Sicília e da queda de Sevilha para os almorávidas, ainda estávamos longe desses dias.

.(ال اله اال الله) ”La illah ila Allah“ 37 .(و محمد رسول الله) ”Wa Muhammad rasul Allah“ 38 .Mallette 2003, 146-147 .(وحده ال شريك له) ”Wahid la sharik lahu“ 39 40 Mallette 2003, 148. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 179

Conquistas almorávidas de Badajoz e Lisboa

Tomada Sevilha, as atenções almorávidas voltaram-se para Badajoz, onde um al-Mutawakkil assustado oscilava entre Afonso VI e os berberes, como diz Abd Allah, talvez por saber que a sua prisão seria uma questão de tempo.41 O anónimo al-Hulal al-Mawsiyya refere que, depois de se apossar de Sevilha, Yusuf ordenou ao general Sir b. Abu Bakr que se dirigisse aos domínios de Badajoz.42 Aconselhado por um dos filhos a submeter-se ao emir almorávida, al-Mutawakkil preferiu voltar a negociar com o rei cristão e, provavelmente pressionado por este, entregou-lhe Santarém, Lisboa e Sintra. Quando Sir b. Abu Bakr chegou a Badajoz, obrigou-o a abdicar dos seus territórios e condenou-o à morte, juntamente com dois filhos. As mulheres e as filhas, conta Abd Allah de Granada, foram incluídas no saque, o que constituiu uma atitude bem mais agressiva do que a demonstrada para com al-Mutamid,43 que seguiu em direção ao exílio acompanhado da família, incluindo as concubinas que lhe tinham dado descendência. François Clément defende que a cidade de Badajoz foi tomada em 1095, quatro anos após a queda de al-Mutamid.44 Já segundo Ibn Khaldun, a execução de Ibn al-Aftas e dos filhos ocorreu em novembro de 1096.45 O problema é que a obra de Abd Allah de Granada é abruptamente interrompida com a narração da conquista de Valência pelo Cid – que sabemos ter ocorrido em junho de 109446 –, supondo-se que a explicação para este final tenha sido o falecimento do soberano. Como é evidente, o facto de Abd Allah ter escrito sobre Badajoz e Valência não significa que tenha morrido no mesmo ano: pode muito bem ter-se referido à sorte destas duas cidades em data bastante posterior aos acontecimentos. Mas a verdade é que o soberano zirida transmite a notícia de Badajoz entre a conquista almorávida de Sevilha, que ocorreu em 1091, e a passagem de Valência para o Cid, com data de junho de 1094. Abd al-Wahid

41 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 338. 42 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 87. 43 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 338-342. 44 Clément 1997, 201. 45 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:81. 46 Epalza 1990, 24-25. 180 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

al-Marrakushi alega que Ibn al-Aftas morreu no princípio do ano de 485,47 o qual arrancou a 12 de fevereiro de 1092 e terminou a 31 de janeiro de 1093. Apesar de esta proposta ser mais consentânea com a organização da obra de Abd Allah, também não estará correta, pois sabemos que Ibn al-Aftas cedeu Lisboa, Sintra e Santarém a Afonso VI em 1093, o qual, em abril desse ano, se deslocou a Coimbra para controlar as suas novas possessões,48 pelo que, como é evidente, o rei de Badajoz ainda estaria vivo nessa altura. Mais: a sua execução decorreu justamente da entrega destas cidades. Assim, o mais provável é que a conquista de Badajoz e a morte dos seus soberanos tenha sucedido algures entre o primeiro semestre de 1093 e o primeiro semestre do ano seguinte. Com a queda de Badajoz, o al-Andalus estava praticamente submetido ao domínio almorávida. Apenas os Banu Hud conservaram o poder devido a uma hábil política de diplomacia e, claro, a uma posição geograficamente excêntrica, o que lhes permitiu, no momento, continuarem a controlar a Marca Superior, que incluía pontos-chave como Saragoça, Tudela, Huesca, Barbastro e Lérida.49 Como observa François Clément, se a população do al-Andalus pouco ou nada fez para manter os reis de taifas no poder, abstendo-se de opor resistência aos exércitos almorávidas, as gentes de Badajoz colaboraram mesmo com os cavaleiros do ultramar.50 Mas figuras diretamente dependentes das redes dos reis de taifas não estariam tão suscetíveis a uma colaboração. No rescaldo da tomada do poder pelos almorávidas, uma personagem de Santarém tudo fazia para sobreviver: o poeta Ibn Sara. Como conta Ibn Khallikan, depois de muito se esforçar para encontrar um patrono, conseguiu um cargo de secretário de um governador provincial, mas as conquistas almorávidas obrigaram-no a procurar refúgio em Sevilha, onde teve de ganhar a vida como encadernador de livros.51 Assegurada a cidade de Badajoz, é natural que o território da antiga taifa fosse mais simples de controlar, e não é difícil aceitar que, dada a sua posição geográfica, Lisboa tenha sido das últimas praças a conquistar. A historiografia

47 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 69. 48 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 27-28; Bosch Vilá 1998, 154. 49 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 88. 50 Clément 1997, 198-202. 51 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 2:50. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 181 de origem espanhola, secundada acriticamente por investigadores portugueses, produziu a ideia, tantas vezes repetida que foi encarada como verdadeira, de que Sir b. Abu Bakr recuperou a cidade de Lisboa em novembro de 1094.52 Seguidas as pistas sobre as referências a esta data em vários trabalhos, é possível chegar à nascente: Rámon Menéndez Pidal, na obra La España del Cid, primeiramente editada em 1929. Em extensa nota de rodapé na página 536 do segundo volume, o historiador revela o raciocínio que lhe permitiu chegar a tal conclusão.53 Cruza a referência na Historia Compostelana a uma operação militar liderada pelo conde D. Raimundo sobre a Lisboa muçulmana, com a doação do Mosteiro da Vacariça à diocese de Coimbra, a qual ocorreu a 18 de novembro de 1094. A Historia Compostelana não indica a data da incursão cristã sobre Lisboa, em que também participou o ainda jovem secretário do conde, Diogo Gelmírez. Por outro lado, analisando a identidade dos confirmantes da carta de doação, que diz serem companheiros de armas de D. Raimundo, Menéndez Pidal conclui, sem mais elementos, que, depois de Lisboa ter sido conquistada pelos almorávidas, o conde saiu com D. Urraca e a sua hoste das terras do norte, passou por Coimbra para fazer uma doação e foi tentar libertar a cidade do Tejo. Como o documento de doação é de 18 de novembro de 1094, com certeza granítica, atribui uma cronologia à conquista de Lisboa: novembro de 1094. Como é evidente, a associação desta passagem da Historia Compostelana, que não indica data, à carta de doação da Vacariça não faz prova de absolutamente nada. Menéndez Pidal presume, sem evidências, que D. Raimundo presidiu à doação e depois foi socorrer Lisboa. Mas o que nos impede de pensar que aconteceu exatamente o contrário: que foi primeiro a Lisboa e depois a Coimbra? Ou melhor, de que elementos dispomos para afirmar que estes dois eventos se sucederam? Podem muito bem ter ocorrido em ocasiões distintas. Nesta argumentação, só uma coisa parece certa: a presença de D. Raimundo em Coimbra a 18 de novembro de 1094. Aliás, mesmo que existissem provas da união dos dois acontecimentos por uma linha temporal sucessiva, a conclusão de Menéndez Pidal conteria os próprios argumentos da sua crítica. Para aceitarmos

52 Viguera 1992, 176. 53 Menéndez Pidal 1929, 2:536. 182 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a proposta do historiador, de que Lisboa foi conquistada pelos almorávidas em novembro de 1094, temos de concluir que tal ocorreu entre os dias 1 e 18 desse mês. Seriam duas semanas suficientes para o conde tomar conhecimento da conquista muçulmana, reunir a sua hoste e os seus fiéis, incluindo D. Urraca, o que pressupõe uma comitiva com vários elementos de origem não militar, e chegar a Coimbra? Para, no dia 18, presidir ao ato de doação do Mosteiro da Vacariça, não teria de existir uma fase preparatória, que exigisse a presença em Coimbra antes dessa data? A ser verdade, o conde teria ainda menos de duas semanas para reagir ao ataque almorávida. Resumindo, Lisboa até pode ter sido conquistada em novembro de 1094, mas não são os elementos aduzidos por Menéndez Pidal que fazem a prova. Se queremos alguma segurança nas afirmações, as pistas só nos permitem afirmar que a cidade terá sido recuperada por Sir b. Abu Bakr algures entre a conquista de Badajoz, que pode ter acontecido entre o primeiro semestre de 1093 e o primeiro semestre de 1094, e o foral de Santarém, outorgado em 13 de novembro de 1095.54 Na altura em que o último documento foi emitido, se Lisboa, que tinha sido entregue em conjunto com Santarém a Afonso VI, ainda se encontrasse em mãos cristãs, provavelmente, teria recebido um corpo normativo idêntico. Não necessitaria o Condado Portucalense, ainda mais do que no caso de Santarém, de manter Lisboa, que se encontrava na linha da frente face ao território muçulmano, solidamente do seu lado, o que só se faria com benefícios para as populações? Mas a verdade é que só Santarém beneficiou de foral. Tal leva-nos a supor que esta cidade assumisse agora a posição de linha da frente que antes tinha pertencido a Lisboa. Mas, integrasse o Condado Portucalense as cidades de Lisboa e Santarém ou apenas esta última, a doação do Mosteiro da Vacariça parece constituir sobretudo uma questão interna e não tanto um assunto relacionado com a fronteira. Reforçava os poderes da diocese de Coimbra, sim, mas não era um foral, destinado a fixar gentes na terra: talvez se tratasse principalmente de uma forma de desequilibrar as forças políticas para o lado da reforma gregoriana.

54 Herculano et al. 1861-1917, Leges et Consuetudines, 1, 3:348-350. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 183

Lembremo-nos de que Sisnando Davides, defensor da manutenção do rito moçárabe, tinha morrido três anos antes e que a causa da reforma gregoriana estava longe de assegurada. A prová-lo está, por exemplo, a confirmação desta doação, que o papa Pascoal II operou em 1101 ao bispo de Coimbra, agora Maurício Burdino, dando como válidos os antigos limites da diocese, esboçados na divisão de Teodomiro, “que os mouros e os moabitas [almorávidas] detiveram”. Atribuiu-lhe ainda a administração das dioceses de Viseu e Lamego enquanto não fossem restauradas.55 O problema é que, independentemente de a doação do Mosteiro da Vacariça consolidar a posição da diocese de Coimbra – isso será indiscutível –, não podemos afinar a cronologia da conquista almorávida de Lisboa de forma segura recorrendo ao respetivo documento, pois o esforço conduz a raciocínios demasiado voláteis. Nunca saberemos se esta doação constituiu uma reação à perda da cidade do Tejo ou à frustrada tentativa de recuperá-la. O mais sensato será deixar cair a referência à Vacariça – consideremos que nada tem que ver com os episódios relacionados com Lisboa – e procurar novas pistas. Apesar de não indicar data para a operação militar cristã, a Historia Compostelana revela que o acampamento de D. Raimundo, instalado perto de Lisboa, foi fortemente atacado pelos muçulmanos, que causaram avultadas baixas e prisioneiros. Diego Gelmírez, futuro arcebispo de Compostela, foi dos poucos que escaparam, pelo que a fonte inclui o episódio entre os alegados milagres com que terá sido agraciado.56 Ora, Diego Gelmírez foi nomeado chanceler do conde em 1092, pelo que a operação não poderia ter ocorrido antes. Por outro lado, não é possível que tenha sucedido depois de 1096, ano em que D. Raimundo deixou de estar implicado nos assuntos do Condado Portucalense, território transferido para D. Henrique e D. Teresa. Esta faixa cronológica de 1092 a 1096 leva-nos aos factos que já sabíamos: só em 1093 Ibn al-Aftas entregou Santarém, Lisboa e Sintra a Afonso VI; e a conquista de Badajoz pelos almorávidas precedeu a de Valência pelo Cid, que teve lugar em junho de 1094. Se considerarmos que a campanha almorávida

55 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 833-834. 56 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 391. 184 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

para reaver Lisboa terá sido posterior à conquista de Badajoz e acrescentarmos ao argumento o foral de Santarém, emitido em novembro de 1095, e que não beneficiou a atual capital portuguesa, podemos datar a anexação desta pelo império de Marraquexe num intervalo que começa entre o segundo semestre de 1094 e o final do ano seguinte. Mais: admitindo que Lisboa terá sido uma das últimas cidades da antiga taifa a caírem e que as operações militares preferem o verão, quem sabe o poder almorávida não desenvolveu a campanha apenas na época estival de 1095, poucos meses antes do foral de Santarém. A aceitarmos uma tal proposta, a campanha de D. Raimundo para recuperar Lisboa ocorreu depois disso, ainda no verão ou já no princípio do outono de 1095. Mas, com os elementos disponíveis, não é possível estreitar mais a cronologia. Certo é que, com Lisboa em mãos almorávidas, terá caído Sintra, empurrando a fronteira de novo para norte. O cruzamento entre as fontes muçulmanas e cristãs, incluindo-se no último apartado algumas sagas nórdicas, demonstra que este par de castelos mudou de mãos ou, pelo menos, de influência, algumas vezes ao longo do período em que os senhores de Marraquexe dominaram o al-Andalus.

Foral de Santarém e outras estratégias de construção da fronteira

Já com as principais cidades da defunta taifa de Badajoz na sua posse, os almorávidas aproximavam-se perigosamente das linhas do Baixo Tejo: Santarém era a peça do puzzle em falta. Sem capacidade militar para contrariar os planos muçulmanos, o bloco cristão jogava a sua cartada, com a procura de fixação de gentes à terra e o contentamento de uma população habituada ao pragmatismo das escolhas na fronteira e à mudança frequente de líderes políticos. Em novembro de 1095, Santarém recebeu foral das mãos de Afonso VI. Pelo documento, o rei confirmou a posse da terra aos cristãos, que a podiam transmitir por herança aos filhos ou, segundo a sua vontade, fazer doações a beneficiar instituições eclesiásticas. O imperador pressionava ainda para que a 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 185 cidade se mantivesse bem povoada, e defendida por cavaleiros, o que reflete certamente a preocupação com a rápida progressão almorávida. Apesar disso, este diploma não é especificamente direcionado para a classe militar, como o será, por exemplo, o foral de Coimbra de 1111. Os privilégios cabiam sobretudo aos povoadores.57 Ora, torna-se mais plausível que o soberano tenha atribuído o foral a Santarém depois de uma tentativa frustrada de reconquistar Lisboa do que logo após a perda desta cidade. O documento parece ter sido mais uma solução para tentar mitigar as consequências de um desaire militar do que uma estratégia mais ampla de povoamento, pois não se assiste à entrega de forais na mesma época a outras localidades, como Salamanca, que só vem a ser povoada em 1102. Além disso, com a presumível conquista almorávida de Cáceres logo depois de Badajoz, as povoações sobre a Via da Prata situadas entre a última urbe e Salamanca não estariam sujeitas a um poder definido. Por sua vez, cidades como Ávila e Segóvia haviam sido repovoadas após a conquista de Toledo, na década de 1080. A título de exemplo, os Anales Toledanos falam do povoamento da cidade de Segóvia em 1088, “que foi erma muito tempo”.58 Estes indícios conferem ao foral de Santarém um caráter de solução pontual e não de estratégia concertada. Note-se que o conde e D. Urraca já nem sequer aparecem como confirmantes do foral de Santarém, concedido por Afonso VI em novembro de 1095 na presença dos bispos de Toledo, Leão e Coimbra e dos barões portucalenses e galegos, uma ausência, de resto, que vem reforçar a ligação deste ato jurídico à perda de Lisboa e à tentativa falhada de recuperá-la. Além de atos de maior expressão política, como os forais, as estratégias para conter a fronteira integravam outros menos solenes, mas também fundamentais. A presúria, seguida de ratificação jurídica, era prática comum: servia para ocupar espaços e eliminar bolsas de população de religião contrária de locais considerados estratégicos, enfim, destinava-se a “limpar o terreno” e homogeneizar o domínio cristão. Em fevereiro de 1095, o conde D. Raimundo e D. Urraca ainda confirmaram aos presores das terras de Montemor, as

57 Herculano et al. 1861-1917, Leges et Consuetudines, 1, 3:348-350. 58 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:343. 186 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

quais incluíam casas, vinhas, herdades e hortas, a propriedade desses bens e a possibilidade de transmiti-los aos herdeiros. Redigiu o documento Diego Gelmírez. Um dos presores, Soleima Godins, que alcançou preeminência social em Coimbra, recebeu ainda a vila de Mira e um moinho junto a uma fonte. A lista dos presores contemplava também um Brandie Besteiro e membros do clero,59 o que evidencia a dimensão militar destas operações, mas também a preocupação em dotar os territórios ocupados de organização religiosa. Procurava-se, assim, ocupar as regiões mais ou menos vazias, com a terra pacientemente disputada, e os meios de produção, como os moinhos, a obedecerem a uma lógica de continuidade entre o domínio muçulmano e o cristão. Este documento é ainda importante se tivermos em conta que acaba por sedimentar as elites que se tinham começado a construir em Montemor ao tempo de Sisnando Davides. Como observa Leontina Ventura, as propriedades dos mais destacados vassalos do alvazil distribuíam-se por Montemor e Coimbra.60 A primeira localidade aparece, deste modo, como uma das mais antigas âncoras de fixação de população, localizada na órbita da segunda. Um derradeiro interesse do mesmo diploma é o de provar que, em fevereiro de 1095, D. Raimundo ainda geria os assuntos do Condado Portucalense, uma informação que também consolida o argumento de a conquista almorávida de Lisboa ter ocorrido no verão de 1095 e não em novembro de 1094, como alega a historiografia. Entre a presúria e o respetivo sancionamento jurídico, poderiam, no entanto, mediar largos anos. Tal realidade é atestada, por exemplo, através de um documento com data de abril de 1097, pelo qual Paio Soares, que ficamos a saber ter sido presor da região de Coimbra ao tempo de Sisnando Davides, doou à sé da mesma cidade uma propriedade que lhe coube à época, a vila de Coselhas, e que foi alvo de confirmação por D. Raimundo e D. Urraca.61 Paio Soares foi um dos próximos de Sisnando Davides, que Leontina Ventura aponta também como possível presor de Montemor, localidade de que veio a ser alcaide à época do conde D. Henrique.62

59 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 193-194. 60 Ventura 2006, 49-52. 61 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 425-426. 62 Ventura 2006, 51. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 187

Outro instrumento usado para fixar as gentes à terra era a carta de povoamento. Em outubro de 1102, Eusébio, prior do Mosteiro do Lorvão, recorreu a este tipo de documento tendo como alvo Santa Comba e Treixedo, ambas as localidades no corredor Coimbra-Viseu.63 O diploma é interessante pela referência a Afonso VI, “reinante com o seu genro, o conde D. Henrique”. Embora este ocupasse a segunda posição na hierarquia do Condado Portucalense – cabendo ao seu suserano a primazia –, a fórmula escolhida para a redação, sem demais contextualizações nem precisões, como que lhe atribui o segundo lugar na pirâmide do “império”, embora saibamos que tal não era verdade, até porque D. Raimundo ainda estava vivo. Certa era a preeminência de D. Henrique em termos militares. Ibn al-Kardabus coloca-o “na região de Castela” em 1102, provavelmente no verão ou, pelo menos, em época propícia às lides da guerra. Diz a fonte que um contingente de Córdova atacou Toledo e o “maldito Henrique” combateu batalhas sangrentas nas suas imediações.64 O afastamento do conde do território portucalense será, de resto, frequente. Uma disputa pelo referido Castelo de Santa Comba dá-nos a conhecer o seu paradeiro no ano seguinte. O prior do Lorvão e o alcaide de Besteiros apelaram à mediação de D. Henrique e D. Teresa para decidirem a propriedade daquela praça. Um documento lavrado em maio de 1103 avança que, por ausência do conde nas lides da Terra Santa, os litigantes concordaram em esperar pelo seu regresso. O conflito acabou resolvido por Afonso VI, pois o alcaide não quis aguardar D. Henrique.65 Bernard F. Reilly, num trabalho de referência quanto à história de Leão e Castela, considera este documento “um enigma”.66 Percorrendo a mesma coleção de diplomas que Torquato Sousa Soares nos apresenta numa pesquisa de 1975,67 Reilly coloca o conde, em finais de fevereiro de 1103, na corte itinerante de Afonso VI em Sahagún e, em julho do mesmo ano, junto a Guimarães. Interroga-se, por isso, se teria tempo suficiente para, no intervalo, empreender a viagem à Terra

63 ANTT, Mosteiro de Santa Maria do Lorvão. Antiga Coleção Especial. Particulares. Maço 2, nos. 6 e 7. 64 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 132-133. 65 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 127-129. 66 Reilly 1988, 315. 67 Soares 1975, 378-379. 188 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Santa.68 Sem apoiar diretamente Sousa Soares, deixa no ar a possibilidade de o conde nunca ter viajado até Jerusalém. Já o historiador português dá como certa, neste período, uma viagem a Roma, onde o aguardaria D. Geraldo, arcebispo de Braga, e que teria sido mantida em segredo por ter como objetivo pugnar junto do papa pela autonomia do Condado Portucalense face a Leão e Castela. Ora, a impossibilidade de uma viagem ao Médio Oriente não autoriza a conclusão de que D. Henrique viajou para Roma. Nesta cronologia, ainda com D. Raimundo vivo, o conde teria menos possibilidades de suceder ao sogro na liderança do “império”. Mas a pretensa luta por um Condado Portucalense independente pode não passar de uma efabulação ou, pelo menos, de um desejo historiográfico, já que o conde, ao longo da sua carreira, pouco interesse parece demonstrar por este território ultraperiférico, demasiado afastado dos centros de poder, nos quais sempre procurou afirmar-se, quer mostrando resultados na guerra, quer fazendo-se presente na corte. De qualquer modo, para a análise da conjuntura, numa perspetiva da defesa das linhas de fronteira, pouco importa para onde viajou o conde. Importa que se encontraria ausente. No período em que D. Henrique alegadamente se deslocou ao Oriente, que corresponde ao ano da Hégira de 496 (15 de outubro de 1102 a 4 de outubro de 1103),69 Yusuf b. Tashfin empreendeu a sua quarta e última travessia do estreito de Gibraltar. Viajou na companhia do já herdeiro, o filho Ali, nascido de uma escrava cristã, que preferiu aos descendentes que teve das esposas berberes, incluindo Tamim, fruto do casamento com Zaynab. Este cuidado na escolha do sucessor tinha a sua justificação, pois as disputas entre as tribos eram, muitas vezes, fomentadas pelas esposas reais, a favor dos filhos varões. Conhecedor desta realidade, Yusuf preferiu para sucessor o filho de uma mulher não-sanaja. Mas, embora se tenha recusado a indicar Tamim,70 reservou-lhe uma posição de destaque: seria ele, depois da morte do pai, a liderar as forças almorávidas na Batalha de Uclés. Também não ficaria à margem da repartição das cidades do al-Andalus: ao tempo de Ali b. Yusuf, em diversas ocasiões governou o território a partir de Granada, em nome do irmão emir.

68 Reilly 1988, 315. 69 Ibn al-Kardabus fala no ano de 497, que decorreu entre 5 de outubro de 1103 e 23 de setembro de 1104 (Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 133). 70 Gibb et al. 1986-2004, 1:389. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 189

Com o conde D. Henrique longe do território portucalense, Yusuf inspecionou os seus domínios,71 e destituiu e empossou alguns governadores.72 Diz o al-Hulal al-Mawsiyya que, para designar Ali como herdeiro, impôs a condição de este equipar 17 mil cavaleiros e distribuí-los pelo al-Andalus, dos quais 7000 destinados a Sevilha, 1000 a Córdova, 1000 a Granada, 4000 ao Levante e os restantes 4000 ao guarnecimento das fronteiras com os cristãos.73 Independentemente de ter ou não ocorrido, tal repartição demonstra bem o valor estratégico que Yusuf atribuía a cada região. Embora Granada possa, em algumas ocasiões, ter assumido o papel de capital, o local preferencial para estacionar tropas seria Sevilha, provavelmente mais interessante devido ao porto de Cádis, mas também às estradas que a ligavam, caso da Via da Prata. É ainda a esta cronologia que Henrique Barrilaro Ruas atribui um episódio típico da guerra de fronteira: o chamado desastre de Vatalandi, relatado pela Chronica Gothorum.74 Um destacamento militar cristão, integrado por Soeiro Fromarigues de Grijó, pai do magnata do norte portucalense Nuno Soeiro, juntamente com Mido Crescones, por sua vez, pai de uma figura da elite de Coimbra, João Mides, foi massacrado por tropas almorávidas quando se dirigia a Santarém.75 A fonte refere que estes eventos tiveram lugar em 1110, mas Barrilaro Ruas, depois de analisar diversos documentos em que Soeiro Fromarigues apareceu envolvido, propõe um recuo da cronologia para o primeiro semestre de 1102 ou de 1104. O historiador sublinha que esta personagem deixa de aparecer na documentação a partir de dezembro de 1101, o que, por si só, é insuficiente para fazer prova.76 Já se torna convincente o argumento de que, em junho de 1104, os filhos de Soeiro Fromarigues doaram ao Mosteiro de Grijó, de que este senhor era patrono, diversas propriedades que tinham sido do pai. Fizeram-no tanto pelo remédio da sua alma, como em atenção à alma do progenitor.77 Parece, assim, e

71 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 91. 72 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 133-134. 73 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 93. 74 Ruas 1949. 75 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 11. 76 Ruas 1949, 10. 77 Ruas 1949, 13. 190 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a menos que a datação deste diploma esteja incorreta, que em 1104 o benfeitor de Grijó já não se encontrava entre os vivos. O facto de, em meados de 1102, a esposa surgir como protetora do mosteiro em conjunto com os filhos também merece destaque, dando pistas de que Soeiro Fromarigues já pudesse ter falecido. É desta forma que Barrilaro Ruas baliza a cronologia do desastre de Vatalandi, sugerindo ainda que D. Henrique estava longe do condado. Se tivermos em conta que Ibn al-Kardabus o posiciona em Castela por volta de 110278 e, seja na Terra Santa ou noutro lugar, o conde voltou a ausentar-se durante boa parte de 1104, sem haver certezas quanto ao seu paradeiro no entremeio, não será por via do afastamento de D. Henrique que conseguiremos delimitar mais rigorosamente a cronologia. No entanto, podemos chamar à discussão a conjuntura muçulmana. Entre 1102 e 1104, os almorávidas assistiram aos derradeiros anos de Yusuf enquanto líder dotado de força política. A partir da última data, foi acometido pela doença, e as fontes são claras quanto aos benefícios que os cristãos retiraram da notícia, forçando fronteiras e atacando o território adversário. Mas, em 1102, a presença almorávida ainda surge consistente, consolidada por mais uma travessia de Yusuf ao al-Andalus entre o final deste ano e o término do seguinte. A posição de força era evidente: fez-se presente e mostrou-se tanto aos seus como aos adversários cristãos. Ao confrontarmos a indicação de uma mais sólida presença muçulmana nas fronteiras com a ausência de D. Henrique, temos de eliminar, pelo menos, 1104 da cronologia de Barrilaro Ruas e atribuir este ataque almorávida a Santarém a uma faixa temporal entre o primeiro semestre de 1102 e o ano de 1103. A ter acontecido ainda no primeiro semestre de 1102, as forças muçulmanas não teriam, no entanto, recorrido aos reforços militares ordenados por Yusuf, que beneficiariam amplamente Sevilha e as fronteiras em geral, já que esta decisão de ampliar os contingentes das principais cidades terá ocorrido, de acordo com o al-Hulal al-Mawsiyya, no ano de 496, que se desenrolou entre 15 de outubro de 1102 e 4 de outubro de 1103.79 Se a tentativa de conquistar

78 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 132-133. 79 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 91. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 191

Santarém tiver decorrido deste possível reforço das forças militares de Sevilha, então, talvez a tenhamos de atribuir a 1103. Já se tiver sido encetada apenas com os contingentes que existiam antes do reforço, pode ser datada de meados de 1102. Seja como for, será sempre anterior ao início da doença de Yusuf b. Tashfin, que teve lugar em 1104. Por outro lado, parece seguro afirmar que, ainda durante o reinado de Yusuf b. Tashfin, os almorávidas procuraram a recuperação total das linhas do Tejo, por certo pela mão de Sir b. Abu Bakr, o governador de Sevilha. Apesar do massacre dos cristãos, Santarém resistiria por mais algum tempo. No entanto, anote-se à margem, uma data de 1110 para o recontro de Vatalandi, como adianta a Chronica Gothorum, também não se mostraria incoerente. Nesta época, o exército almorávida encontrava-se a um passo de conquistar Santarém, o que ocorreu em maio do ano seguinte. A movimentação de tropas nos caminhos para a cidade não seria de excluir, mas as observações sólidas de Barrilaro Ruas quanto às fórmulas utilizadas pelos filhos de Soeiro Fromarigues na doação ao Mosteiro de Grijó não podem ser ignoradas, o que obriga a afastar a proposta em função destes dados. Na ausência do conde D. Henrique, surgiram na defesa da fronteira figuras associadas ao norte portucalense, investigadas por José Augusto Pizarro.80 Provavelmente filho de Fromarigo Viegas e Ausenda, Soeiro Fromarigues fez uma rica doação ao Mosteiro de Grijó em 1093. Destacou-se ainda por uma intensiva política de aquisição de terras entre 1074 e 1101, transformando-se numa das mais poderosas figuras da região de Gaia e do Vouga e mantendo algumas relações na corte. Apesar da presença entre a hoste massacrada nos arredores de Santarém de algumas personagens da elite de Coimbra, parece haver uma predominância da nobreza nortenha, sobretudo se tivermos em conta que o governo da Santarém cristã foi entregue a Soeiro Mendes da Maia. Pertencente a uma família bem estudada por José Mattoso, atingiu na sua época, nas palavras do historiador, o cume da riqueza e do poder.81 Com alguma probabilidade, a sua mulher era irmã de Ximena Moniz, mãe de D. Teresa.82

80 Pizarro 1987, 160, 166-167 e 374-378. 81 Mattoso 1982, 51. 82 Mattoso 1982, 52. 192 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Uma secundarização das principais figuras de Coimbra nos assuntos da fronteira, em conjunto com as tentativas de substituição forçada do rito moçárabe pelo gregoriano, serão ingredientes mais do que suficientes para as revoltas a que iremos assistir em 1111, conjuntura que obrigou o conde D. Henrique a conceder foral à cidade e especiais direitos à classe dos cavaleiros.

Consequências da doença e morte de Yusuf na geografia da fronteira

Na fronteira cristã, persistiam as estratégias de povoamento e consolidação do território, e o eixo entre Coimbra e Viseu continuava a ser robustecido. Em junho de 1104, o bispo de Coimbra, Maurício Burdino, devolveu a Bermurdo Gulfariz a Igreja de Santiago do Mato, em São Pedro do Sul, que o mesmo tinha doado ao mosteiro local para remédio da sua alma. Ficou com a responsabilidade de povoar e edificar.83 No mês seguinte, o mesmo prelado concedeu carta de povoamento a São Martinho do Bispo, estimulando a fixação de um grupo de homens, mas apelando a todos os que quisessem habitar esse espaço.84 A partir do fim do verão desse ano de 1104, espalhou-se pelo al-Andalus a notícia de que o emir almorávida, Yusuf b. Tashfin, padecia de doença preocupante, com o cronista Ibn Idari a queixar-se de que os governadores e os funcionários da administração lhe aumentavam as dores, imaginavam calamidades decorrentes da sua morte e acendiam os fogos da dissensão.85 As notícias, acrescenta a fonte, acabaram por chegar a Afonso VI, que se terá sentido suficientemente seguro para organizar uma algara à região de Sevilha, em que participaram 3500 cavaleiros. De tal modo devastador, o ataque obrigou o governador da cidade, Sir b. Abu Bakr, a refugiar-se num castelo das proximidades, onde recebeu reforços de Granada que lhe permitiram rechaçar o inimigo.86 Com o passar dos meses, como adianta

83 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 470. 84 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 275-276. 85 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 107. 86 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 108. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 193 ainda Ibn Idari, a doença de Yusuf instalou-se, e este acabou por falecer a 2 de setembro de 1106,87 tomando sepultura em Marraquexe. Ibn Idari pode lamentar-se de que os governadores do al-Andalus, com a sua maledicência face à doença de Yusuf, precipitaram as algaras de Afonso VI. Mas talvez a atmosfera de algum enfraquecimento militar fosse já pressentida. Ainda antes de a notícia se propagar, já o imperador lançava as suas hostes sobre o Castelo de Medinaceli, importante para a defesa de Toledo e a caminho de Saragoça, que, após um cerco de meses, veio a capitular em julho de 1104, de acordo com os Anales Toledanos.88 Ibn Said al-Maghribi designa esta cidade por “capital da Fronteira Média”.89 Não admira, pois, que tenha sido uma das praças mais fortificadas, como atesta Ibn Ghalib, fundada pelos muçulmanos pouco depois da conquista de Tariq b. Ziyad,90 muito provavelmente para proteger o eixo Toledo-Saragoça. Daí, como é evidente, o interesse de Afonso VI na sua conquista. Ibn Idari dá também conta deste ataque: “Afonso, filho de Fernando, sitiava a cidade de Medinaceli com um numeroso exército de cavaleiros e infantes.”91 Bernard F. Reilly afirma que “as fontes muçulmanas” indicam que o cerco ocorreu em 1103, com base num estudo de Ambrosio Huici Miranda publicado na coleção Estudios de Edad Media de la Corona de Aragón, sob o título “Los Banu Hud de , Alfonso I y los Almoravides”.92 Mas, entre Ibn Idari, Abd al-Wahid al-Marrakushi, Ibn Abi Zar, Ibn Khaldun e o anónimo al-Hulal al-Mawsiyya, as fontes muçulmanas mais conhecidas, apenas a primeira menciona o evento. De facto, no referido estudo, Huici Miranda remete para o al-Bayan al-Mugrib, mas, quando procuramos a informação na fonte, todo o texto a envolver os eventos de Medinaceli se encontra demasiado truncado para interpretações seguras em relação a um começo do cerco em 1103. Aliás, pelo encadeamento dos acontecimentos na narrativa de Ibn Idari, a data apontada pelos Anales Toledanos para a conquista deste castelo parece a mais provável:

87 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 109; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:82. 88 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:344. 89 Ibn Said al-Maghribi [1230-1286?] 1958, 319. 90 Ibn Ghalib [1100-1199?] 1975, 377. 91 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 105-106; Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:344. 92 Huici 1962, 13. 194 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

julho de 1104.93 Huici baseia-se na presença em Valência, entre novembro de 1103 e junho de 1104, do governador almorávida de Granada para afirmar que este chefe militar se terá aliado a Abd Allah b. Fatima com o objetivo de atacar Toledo, de modo a forçar Afonso VI a levantar o cerco a Medinaceli. Mas, ainda que Ibn Idari indique que esta aliança se formou para raziar o território cristão, não refere que o propósito seria o levantamento do cerco. Além disso, as datas continuam por provar: 1103 é uma possibilidade para o início do assédio, mas não uma certeza. A simples chegada do governador de Granada a Saragoça não é prova contundente, apenas um indício. Mais: Huici diz que este general almorávida morreu durante os referidos eventos, interpretando, uma vez mais, os vazios provocados pelas truncagens de texto. No entanto, um par de páginas à frente, o mesmo governador de Granada aparece associado à contenção dos ataques cristãos que se seguiram ao anúncio da doença de Yusuf b. Tashfin,94 o qual ocorreu no final do verão de 1104, já Medinaceli tinha caído. Bernard F. Reilly deixa nas entrelinhas a possibilidade de D. Henrique ter participado na referida algara que se sucedeu ao conhecimento da enfermidade do emir almorávida.95 Sabemos que, por volta de 1102 a 1103, se encontrava ausente do território portucalense, fosse a exercer as artes da guerra, na Terra Santa ou em Toledo, fosse em viagem a Roma, admitindo a proposta de Sousa Soares.96 No verão de 1104, pode também ter integrado as fileiras de Afonso VI, como sugere Reilly. Estes afastamentos supõem um menor investimento nos assuntos do dia-a-dia do condado e um maior interesse na geopolítica do “império”. Pese embora o auxílio de Soeiro Mendes da Maia na governação durante as ausências,97 o afastamento prenuncia a ação política que D. Teresa iria ter entre 1112 e 1128. Em agosto de 1106, poucos dias antes de Yusuf deixar o mundo dos vivos, o conde D. Henrique e D. Teresa acrescentaram uma peça ao minucioso puzzle de reforço do território, com a doação aos presbíteros João Ciz e Fáfila

93 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 105-106. 94 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 108. 95 Reilly 1988, 318; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 107-108. 96 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 127-129; Reilly 1988, 315; Soares 1975, 378-379. 97 Mattoso 1982, 52. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 195 de uma importante propriedade: uma herdade em Seia para construção de casas, povoamento e plantação de vinhas.98 Aqui, seria construído o Mosteiro de São Romão, destinatário de inúmeras doações nas décadas de 1130 e 1140, tal como atesta o Livro Santo de Santa Cruz.99 Estabeleceria uma forte relação com o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, também ele recetor de propriedades na região.100 Era, assim, reforçado o povoamento de um ponto-chave da defesa de Viseu, cuja importância pode ser intuída na sua atribuição, mais tarde, a Bermudo Peres de Trava e na relutância deste em devolver a praça a D. Afonso Henriques, já em 1131, o que levou o príncipe a expropriar alguns partidários do nobre galego.101 Outra prova dessa mesma importância será o ataque almorávida de 1133 à região, com a destruição de um castelo que tudo indica ser o da Idanha, mencionado por Ibn al-Qattan al-Marrakushi.102 Entretanto, além da doação da herdade de Seia por D. Henrique e D. Teresa, há a assinalar para o mês de agosto de 1106 mais um testemunho do poder do Mosteiro do Lorvão, outra entidade organizadora do território. Os seus domínios e rendimentos saíram ampliados, ainda que longe do contexto da fronteira, com a atribuição, pelos condes portucalenses, de metade da vila de Cacia, na região de Aveiro.103 Ao período de doença de Yusuf b. Tashfin, que se prolongou por cerca de dois anos até culminar na sua morte, correspondeu uma fase de desestabilização nas fronteiras. O ocaso de um líder político era sempre motivo de enfraquecimento e uma oportunidade de ataque para os adversários, mas fica claro que Yusuf previu esta fragilidade e aconselhou Ali, seu herdeiro, a consolidar a defesa das fronteiras. Atendendo à relativa facilidade com que se desenrolaram algaras cristãs, ou Ali não seguiu o conselho do pai ou o reforço ficou aquém das necessidades. Ibn Idari parece querer desvalorizar o contexto de instabilidade nas fronteiras associado à morte do emir, mas acaba por deixar tal leitura nas entrelinhas. Atribui a desestabilização aos rumores postos em

98 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 205-206. 99 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 213-216 e 219-225. 100 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 230, 232 e 234. 101 Azevedo 1958, 139-140 (“Exerdo illos pro que sunt meos rebeles et intrarunt in Sena in meo contrario cum meos inimicos sine mea culpa et cine malefeito qui ego fecisset eos”). 102 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 230. 103 ANTT, Mosteiros de Santa Maria do Lorvão. Antiga Coleção Especial. Particulares. Maço 2, nos. 12 e 13. 196 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

circulação pelos governadores do al-Andalus, designando-os por “notícias desfiguradas”. Na sua opinião, ao chegarem a Afonso VI, este pensou que “o país dos muçulmanos estava sem homens nem defensores e que tinham desaparecido os valentes; pensou que, com este incidente, se tinham perturbado os assuntos e descomposto a ordem da administração”.104 Apesar de apresentar erros na datação, Ibn al-Athir também relata ataques das forças de Afonso VI ao al-Andalus como consequência da morte do emir.105 Se ainda não forem suficientes as provas da rutura decorrente do desaparecimento de Yusuf, chamemos mais eventos à discussão. Desde logo, temos de pensar na primeira das muito discutidas três deportações de moçárabes relatadas nos Anales Toledanos, que a fonte indica ter ocorrido em 1106.106 Estas decisões políticas, que podemos associar a momentos de fragilidade para o poder dos berberes do deserto do Sara, foram sucessivamente apontadas pela historiografia antialmorávida como argumentos definitivos da sua rudeza e implacabilidade contra os cristãos. Os Anales Toledanos falam de expulsão dos moçárabes de Málaga, sem nomear a razão. Mas, à luz do perigo suscitado pela doença e morte de Yusuf b. Tashfin, com sucessivas incursões cristãs em território muçulmano, a exclusão de elementos potencialmente desestabilizadores do poder poderá corresponder a uma decisão política ponderada e não a um ato arbitrário de violência, ainda que, como é evidente, fosse perturbador do equilíbrio e bem-estar das comunidades cristãs. De resto, se tivermos em conta a conjuntura de 1126, quando ocorreu a segunda deportação de moçárabes, podemos verificar que a incursão prolongada do rei de Aragão no al-Andalus, que terá sido apoiada por estas comunidades, pôs a nu as debilidades defensivas do território muçulmano. Já em 1138, ano da terceira expulsão anotada pelos Anales Toledanos, os almorávidas enfrentavam o perigo almóada no Magrebe e necessitavam de tropas para defender o império, pelo que o al-Andalus acabou por sofrer uma perda de contingentes militares, transferidos para o Norte de África, o que desguarneceu a sua defesa.

104 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 107. 105 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 519-520. 106 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:344. 1093-1106. homens do deserto tornam-se senhores do al-andalus 197

Já na Marca Inferior, Lisboa e Sintra podem ter mudado de esfera de influência neste período da doença e morte de Yusuf, ou voltado a pagar tributo a Afonso VI. Um forte indício a traduzir tal possibilidade é avançado pela Chronica Gothorum. Em julho de 1109, diz a fonte, o conde D. Henrique recuperou Sintra para os cristãos, pois, sabendo da morte de Afonso VI, que ocorreu no mês anterior, os muçulmanos aproveitaram para se rebelar.107 Estas praças foram recuperadas por Sir b. Abu Bakr, general almorávida, talvez no verão de 1095, após a queda da taifa de Badajoz. Se, em 1109, procuraram sacudir o ascendente cristão, é porque, algures nesses 14 anos de permeio, passaram a estar sob a influência de Afonso VI e D. Henrique. Este domínio pode não ter assumido a forma de conquista, mas é de supor que, pelo menos, os habitantes de Lisboa e Sintra estivessem obrigados a pagar tributo para manterem a sua integridade: como é evidente, só faz sentido que o conde tivesse necessidade de reaver uma cidade sublevada se antes se encontrasse sob a sua alçada. O período mais provável para esse ponto de inflexão seria, precisamente, a fase de doença e morte de Yusuf, que incrementou o ímpeto das algaras cristãs sobre o al-Andalus. Portanto, temos de considerar a hipótese de Lisboa e Sintra terem passado para a esfera de influência cristã entre 1104 e 1106. José Mattoso, replicado por investigadores como Armando de Sousa Pereira, rejeita a possibilidade de o conde ter submetido Sintra em 1109. Argumenta que seria pouco provável que conseguisse tomar um castelo que diz inexpugnável e próximo de Lisboa, num momento em que, afirma, a ofensiva almorávida era mais intensa.108 Mas as fontes muçulmanas são unânimes quanto à desestabilização das fronteiras a partir de 1104, com a doença de Yusuf b. Tashfin, e ao aproveitamento da conjuntura pelos cristãos para pressionarem o bloco muçulmano. A notícia avançada pela Chronica Gothorum é, portanto, totalmente plausível. Após a morte de Yusuf, em 1106, o poder almorávida só recuperou o fulgor no al-Andalus com a vitória em Uclés, em 1108, e com a grande campanha de jihad no verão de 1109, que, no Gharb al-Andalus, teve a liderança do incontornável Sir b. Abu Bakr. Provavelmente, D. Henrique

107 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 11. 108 Mattoso 1992-1993, 34-35; Pereira 2005, 27. 198 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

chegou a Sintra pouco antes de esta operação militar de grande envergadura se desenrolar. Durante essas semanas, outras personagens passariam por ali. Com a morte de Yusuf, desaparecia também uma certa forma de fazer a guerra: o camelo deixou de ser usado nas campanhas militares, tanto no al-Andalus como no Magrebe.109

109 Lagardère 1979, 104.

1106 -1130 DE TOMBUCTU A LISBOA, UM IMPÉRIO ESCULPIDO COM O OURO DO BILAD AL-SUDAN

1. RENOVAÇÃO NO BLOCO ALMORÁVIDA

A morte de Yusuf b. Tashfin, em setembro de 1106, levou ao poder o seu filho Ali. Apesar de reconhecido em Marraquexe pelo irmão Tamim e pelos representantes dos lamtunas e restantes tribos da confederação sanaja, a questão não foi inteiramente pacífica. Após a proclamação, o novo emir escreveu a todas as partes do seu território a anunciar o falecimento do pai e a exigir o reconhecimento enquanto sucessor.1 Terá recebido a homenagem pretendida de todas as cidades, exceto de Fez, cujo governador era Yahia, neto de Yusuf b. Tashfin por parte do filho mais velho, Abu Bakr, entretanto desaparecido, e de uma sariana, razão por que era conhecido como “al-Sahrawi”. Ibn al-Kardabus dá-nos informações sobre este príncipe para 1099, quando se dirigiu ao al-Andalus e, na companhia de Sir b. Abu Bakr, levou a guerra santa à região de Toledo, cujo saldo foi o habitual saque e grande número de prisioneiros.2 Ibn Khaldun, por sua vez, diz que ajudou a conquistar os últimos territórios controlados pelos reis de taifas, com a exceção de Saragoça.3 Em 1106, rebelou-se contra o tio Ali, apoiado por um grupo de notáveis lamtunas. Ali foi obrigado a sair de Marraquexe com o seu exército para controlar a dissensão, e Yahia b. Abu Bakr – personagem que, a partir de março de 1147, com a queda da dinastia almorávida, encarnou um projeto de ressurgimento, apoiado pelo

1 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 161-162. 2 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 131; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 150. 3 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:81. 204 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

então governador do al-Andalus, Yahia b. Ghaniyya, de Córdova4 – foi forçado a desistir dos seus intentos e a reconhecê-lo. Estávamos em 1107.5 Ibn al-Khatib também destaca a rebeldia de Yahia, que, numa primeira fase, se recusou a reconhecer Ali, mas depois acabou por submeter-se.6

Ascensão de Ali b. Yusuf e reorganização do poder

Só depois de “pacificado” o Magrebe, Ali b. Yusuf pôde tomar o pulso ao al-Andalus. Cruzou o mar entre Ceuta e Algeciras, relata Ibn Idari, e aí recebeu figuras destacadas, entre juízes, doutores de leis, chefes militares, eruditos e poetas. Distribuiu favores e cargos, começando por contentar o irmão preterido para a sucessão, Tamim, com a responsabilidade de liderar os destinos de Granada. Depois, transferiu o governador de Córdova para Fez, e mais tarde para Valência, e colocou na ex-capital omíada um ilustre da sua tribo lamtuna.7 Significa que deixou as principais cidades nas mãos de gente da sua confiança – lembremos que Sevilha continuava na posse de Sir b. Abu Bakr. De resto, o favorecimento de elementos das tribos lamtuna, ou massufa, casados com princesas lamtunas, será uma marca da governação almorávida. Por outro lado, quer dizer que, entre a doença e a morte de Yusuf (1104-1106) e a aquisição do poder pelo novo emir (1106), com a necessidade de controlar as rebeliões magrebinas (1107) e a chegada ao al-Andalus (1107), as fronteiras com os cristãos se mantiveram pouco controladas por uns três anos, apesar das algaras ordenadas por Ali b. Yusuf logo após a sua ascensão ao poder.8 Na fronteira entre o Condado Portucalense e o Gharb al-Andalus, continuavam as estratégias de povoamento e de organização do território. Um documento datado de 1107, mas que reporta a uma cronologia anterior, dá-nos conta da venda efetuada por Paio Tresulfes e mulher, Elvira, de uma herdade

4 Lourinho 2010, 15, 21-22, 26 e 42-43. 5 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 162. 6 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 151. 7 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:83; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 115; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 101. 8 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 134-135. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 205 que obtiveram por presúria e herança em Sobradinho, no termo de Viseu.9 A presúria, juridicamente confirmada, correspondia a uma forma legítima de obtenção da terra e acabava por produzir um duplo efeito: o de ocupação de um espaço e consolidação da fronteira e, em simultâneo, a obtenção de riqueza a partir de regiões anteriormente improdutivas, que passavam a ser tributadas pelos governantes. Este ano de 1107 é ainda importante para as aspirações de Diego Gelmírez, investido na dignidade de bispo desde 1100. Em diploma datado de 17 de maio, Afonso VI e a rainha Isabel, na presença de D. Raimundo e D. Urraca, do infante Sancho, de D. Henrique e D. Teresa e de Bernardo, arcebispo de Toledo, concederam-lhe o direito de cunhar moeda, “devido à presença das relíquias do apóstolo”.10 A estratégia rumo ao arcebispado, cujo principal argumento seria justamente a detenção das relíquias de Santiago e de outros santos, algumas das quais furtadas a igrejas de Braga, conheceu aqui uma etapa significativa. Uma incursão por terras portucalenses, que lhe permitiu apropriar-se dos restos mortais de vários santos, é descrita de forma deliciosamente eufemística pela Historia Compostelana: “Em 1102, no segundo ano do seu episcopado, decidiu visitar, como é devido, as igrejas, capelas e herdades que em terras de Portugal pertenciam juridicamente à igreja compostelana.”11 Nada, de resto, que mercadores venezianos não tivessem feito, quando, por volta de 828, furtaram de Alexandria as relíquias de São Marcos, patriarca da cidade, numa época em que o Egito era controlado pelo califado abássida.12 Na primavera de 1107, D. Raimundo ainda assistiu a mais este passo de Gelmírez em direção ao poder, mas, em setembro, despediu-se da vida depois de a doença o consumir, não sem antes requerer a presença do bispo de Compostela e de agraciar a diocese com mais doações, sob a forma de igrejas e privilégios.13

9 Ventura et Matos 2010, 77. 10 Lucas Álvarez 1998, 167-169; Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 123-124. 11 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 94. 12 Carile et Cosentino 2004, 123. 13 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 121-122. 206 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Batalha de Uclés

O desaparecimento do conde D. Raimundo corresponde como que a um prenúncio da grande instabilidade que atingiria, no ano seguinte, a constelação formada por Leão, Castela, Galiza e Condado Portucalense. Ainda em 1107, depois da distribuição de poderes por Ali b. Yusuf em Algeciras, o irmão Tamim começou a preparar uma grande ofensiva contra os cristãos a partir de Granada, que resultaria em mudanças drásticas na sucessão de Afonso VI: a Batalha de Uclés, castelo importante para a defesa de Toledo. Ibn Idari conta que o exército de Tamim saiu da cidade de Granada em princípios de abril de 1108 e tomou a direção de Jaén, onde passou alguns dias e recebeu o reforço de tropas provenientes de Córdova.14 Provavelmente, terá levado cerca de uma semana a alcançar a cidade das montanhas, onde, apesar de as fontes não o afirmarem taxativamente, podemos deduzir que terá permanecido durante o Ramadão, mês que, nesse ano, começou a 14 de abril e se prolongou até 13 de maio. Tal proposta é facilmente articulável com a data do embate entre as forças cristãs e muçulmanas: 29 de maio. A ser verdade que Tamim saiu de Jaén após o Ramadão, significa que terá gastado cerca de 15 dias até alcançar as portas do Castelo de Uclés, optando por um trajeto mais longo, mas também menos montanhoso. Uma permanência em Jaén durante o Ramadão explicaria a demora de dois meses entre Granada e o destino. Este exemplo vem juntar-se a dois outros de grande relevância, dando corpo à proposta de que as operações militares muçulmanas se deteriam durante o mês sagrado. Por um lado, há a considerar as circunstâncias da morte de Tashfin b. Ali, emir almorávida, sitiado pelas forças almóadas em Orão, em março de 1145. Os exércitos do califa Abd al-Mumin só três dias após o Ramadão desferiram o ataque final à fortificação onde Tashfin se aquartelou.15 Por outro lado, o ataque de D. Afonso Henriques a Santarém, em 15 março de 1147, ocorreu dois meses após a conquista almóada de Sevilha, a 18 de janeiro

14 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 116-117. Em nota à tradução do al-Bayan al-Mugrib, Huici indica março de 1108. No entanto, o texto refere que Tamim saiu em finais do mês de Shaban de 501, data que, convertida para o calendário cristão, corresponde a princípios de abril de 1108. 15 Lourinho 2010, 86. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 207 do mesmo ano. O rei teria conhecimento de que uma guarnição de Santarém, tal como todas as do Gharb al-Andalus, à exceção da que protegia Lisboa, tinham participado na conquista em nome dos almóadas e que, devido ao início do Ramadão, iriam ficar retidas na cidade do Guadalquivir. Por isso, terá esperado pelo fim do mês sagrado para atacar com um pequeno grupo de homens e numa altura que lhe permitia usufruir de melhores condições atmosféricas.16 Chegado às imediações de Uclés, o exército almorávida acampou à vista da fortificação, segundo relata Ibn Idari. Conseguiu tomar as muralhas de assalto, mas os habitantes refugiaram-se na alcáçova. Entretanto, diz a fonte, “chegou ali o filho de Afonso, Sancho, nascido da mulher de al-Mamun,17 a que se fez cristã, com cerca de sete mil cavalos”.18 Façamos o percurso das fontes para descobrir o que nos dizem sobre Uclés. O Rawd al-Qirtas dá grande destaque a esta incursão militar, explicando, tal como o al-Bayan al-Mugrib, que os exércitos liderados por Tamim cercaram o castelo até que nele conseguiram entrar, enquanto a população se refugiou na alcáçova e pediu a ajuda de Afonso VI. Mas acrescenta pormenores. Assegura que foi a esposa do monarca cristão que o aconselhou a não ir pessoalmente em auxílio do castelo e a enviar o infante Sancho, para se enfrentar com outro filho de rei. Ao saber da chegada das forças cristãs, segundo a fonte, Tamim terá querido desistir, mas foi aconselhado a manter a posição pelos seus generais. O combate fez muito mais mortos entre cristãos do que muçulmanos, sucumbindo o herdeiro de Afonso VI na companhia de 23 mil soldados, um número provavelmente exagerado pela fonte.19 O al-Bayan al-Mugrib também relata a morte do infante Sancho, seguida do regresso de Tamim a Granada. Acrescenta que este “foi um sinal de sorte e bênção para o governo de Ali b. Yusuf no princípio do seu reinado”, devido à morte do príncipe cristão e, ao fim de um ano, também do rei.20 Ibn al-Kardabus revela algumas imprecisões na transmissão dos acontecimentos. Diz o cronista que Afonso VI reuniu as gentes do seu país e se dirigiu ao leste do al-Andalus,

16 Lourinho 2010, 50-51. 17 Um dos filhos de al-Mutamid de Sevilha, decapitado pelos almorávidas durante os eventos que levaram à queda da taifa (al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:297). 18 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 117. 19 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 163. 20 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 117-118. 208 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

quando foi ao seu encontro o emir Tamim, algo que não corresponde à verdade dos factos, pois o monarca cristão não travou esta batalha. Apesar de uma luta encarniçada, afirma a fonte, Deus atribuiu a vitória aos muçulmanos: Afonso foi ferido, o seu filho morto e, junto com ele, o exército acabou aniquilado ou reduzido ao cativeiro.21 Outras fontes, como o Nazm al-Juman, de Ibn al-Qattan al-Marrakushi, e ainda uma carta em nome do emir Tamim a relatar a vitória a Ali b. Yusuf, encontrada por Abd al-Aziz al-Ahwani entre os documentos da Biblioteca do Escorial e publicada por Huici Miranda, dão-nos mais informações sobre Uclés.22 A primeira fala de uma “brilhante e notável batalha”, que obrigou os cristãos que habitavam na parte baixa da cidade a refugiar-se na alcáçova, pelo que o rei Afonso teve de enviar 10 mil cavaleiros com o seu filho para auxiliar a praça assediada. No recontro, além de Tamim, terão participado, pelo menos, mais dois grandes generais almorávidas: Ibn Aisha e Ibn Fatima. As forças conjuntas chacinaram os cristãos. Ibn al-Qattan refere que o infante Sancho ainda se refugiou num castelo das proximidades juntamente com um pequeno grupo, mas que acabaram por ser executados.23 A edição em árabe do Nazm al-Juman, organizada por Mahmoud Ali Makki, revela um pormenor do maior interesse: a possibilidade de forças portucalenses terem participado na batalha, mas a formulação da frase não é inequívoca.24 O texto diz que Álvar Fáñez, que sabemos ter sido chefe militar de Afonso VI, se encontrava entre os cristãos, do lado de Portucale. Não faz sentido entender aqui Portucale como um ponto cardeal, pois, se o autor quisesse apontar para ocidente, teria outros territórios mais imediatos: Castela e Leão. Mais lógica será uma interpretação que aponte para que Álvar Fáñez estivesse com os cristãos, ao lado das forças militares de Portucale. E, se houve um contingente portucalense em Uclés, é plausível que tenha sido liderado pelo conde D. Henrique, cujo paradeiro, em 1108, é localizado por Bernard F. Reilly, para o final do verão, na corte de Afonso

21 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 135. 22 Huici 1956, 108. 23 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1956, 119-120. 24 “Albar Hanish estava com os cristãos no lado de Burtuqal” (“kana Albar Hanish li l-nasara bi jahati .Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1956, 63 .(كان البار هانش للنصارى بجهة برتقال :”Burtuqal 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 209

VI.25 Outro documento mostra que, em 1108, D. Henrique teve atividade no Condado Portucalense, ao atribuir carta de povoamento a Tentúgal, Montemor, juntamente com D. Teresa.26 Se nos detivermos agora na carta de Tamim ao irmão Ali, verificamos que aquele saiu de Granada nos últimos dias do Ramadão e que o seu exército foi aumentando à medida que prosseguiu caminho. Terá acampado na região de Baeza, onde recebeu mais reforços. Ao entrar em território cristão, dirigiu-se a Uclés, cidade que constituía a primeira linha de defesa adversária. O combate começou a 27 de maio. Embora esta versão nada refira sobre a estada em Jaén, é notório que, também aqui, estão ausentes conflitos militares durante o mês sagrado. Ainda segundo a carta, os muçulmanos conseguiram provocar grande destruição na parte baixa da cidade, a qual se derramava pela encosta de um monte, e obrigaram os resistentes a tomar refúgio na alcáçova. Afonso VI reuniu os seus mais ilustres magnatas e enviou-os em auxílio dos sitiados. A carta refere igualmente um traidor, que terá passado aos muçulmanos informações sobre o campo cristão. Tamim convocou, então, Ibn Aisha e Ibn Fatima e abateu-se sobre as linhas adversárias. No final, mandou reunir as cabeças dos derrotados.27 Já uma crónica cristã próxima destes eventos em termos cronológicos, a Historia Compostelana, relata os acontecimentos da seguinte forma:

Os almorávidas, a que o calor do sol faz semelhantes a etíopes, atacaram com mais força do que o costume os acampamentos e as populações junto a Toledo e, mortos os homens que se opunham à sua bravura, posto que defendidos pela força dos seus soldados, não temiam as flechas dos inimigos; instalaram ali o seu acampamento como se estivessem colocados em local seguro. Quando escutou isto o filho do rei, Sancho, a cuja custódia de acordo com a ordem do pai estava confiado o domínio de Toledo, depois de ter levado consigo os mais destacados de entre a nobreza, protegido pela virtude e por uma milícia de nobres varões, partiu rapidamente para pôr em fuga os destruidores da sua pátria. E, derrubando-os com frequentes ataques e duras incursões, os desejos saíram-lhe ao inverso, porque desgraçadamente o mesmo, junto com toda a sua nobreza, sucumbiu debaixo das flechas dos mouros.28

25 Reilly 1988, 360. 26 Azevedo 1958, 16. 27 Ibn Sharaf [1108] 1956, 126-133. 28 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 125. 210 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Os Anales Toledanos, em estilo sintético, limitam-se a anotar a derrota cristã e a morte do infante Sancho e do conde Garcia Fernandes, a 28 de maio de 1108, perto de Uclés.29 Outras fontes, já tardias, também mencionam esta batalha. O Chronicon Mundi, de Lucas de Tui, é uma delas, mas o tom demasiado enfático e os erros grosseiros retiram fiabilidade às informações:

O rei Afonso, com uma coluna de muitos cristãos, veio acorrer ao castelo conhecido como Uclés e entrou na batalha, desde manhã até à noite, que invencivelmente foi travada contra os incontáveis milhares que vieram da outra parte. Morreram Sancho, filho do rei, o conde Garcia Fernandes, o conde D. Martim e muitos mais. O rei Afonso perguntou aos sábios porque é que os seus soldados não foram capazes de suportar o labor da guerra. Eles responderam que se dedicavam aos banhos e tinham modos delicados. Então, o rei mandou destruir os banhos do seu reino e mandou os soldados suarem em exercícios.30

A Historia de Rebus Hispaniae, saída da inspiração de Rodrigo Ximenes de Rada, arcebispo de Toledo, também tardia, é mais acertada quanto ao conteúdo:

Após trabalhos e muitas guerras, o rei Afonso, que viveu muito e de forma magna, abatido pela doença e a idade, foi confrontado com o assédio de Uclés pelo amiramominin,31 que se chamava Ali. Por causa da idade avançada, enviou o conde Garcia Fernandes com o seu filho Sancho, ainda jovem, e os magnatas e os soldados do seu reino, para enfrentarem a multidão de sarracenos . . . O cavalo do infante Sancho foi gravemente atingido e caiu morto. O conde desceu do cavalo e foi ajudá-lo, mas não conseguiu protegê-lo e morreram ambos. Muitos cavaleiros e magnatas tiveram de fugir.32

29 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:344. 30 Lucae Tudensis [1238?] 2003, 306-307. 31 Apropriação romance da expressão árabe amir al-muminin, que significa “príncipe dos crentes” ou “califa”, título que foi usado por Abd al-Mumin, fundador da dinastia almóada, mas não pelos soberanos almorávidas. Note-se que o emir Ali b. Yusuf, reinante à época da Batalha de Uclés, não esteve presente no confronto e que, por outro lado, Rodrigo Ximenes de Rada é contemporâneo do período almóada, razão que talvez explique a referência ao título por que era conhecido o soberano desta dinastia e não ao usado pelos emires almorávidas (“emir dos muçulmanos e defensor da religião”). 32 Roderici Ximenii de Rada [1243?] 1987, 216-217. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 211

Guerra pelo trono cristão

Só ao velho rei deve ter pesado a morte do infante Sancho, que, segundo investigação de Bernard F. Reilly, começou a confirmar a documentação de Afonso VI no princípio de 1103 e governava o Castelo de Medinaceli, fundamental para a defesa de Toledo, pelo menos, desde 1107.33 Fontes muçulmanas e cristãs falam da dor do rei,34 que terá precipitado a sua morte no ano seguinte. A Historia de Rebus Hispaniae traduz o desespero do monarca com as seguintes palavras: “Onde está o meu filho, alegria da minha vida, consolação da minha velhice, meu único herdeiro?”35 Também Ibn al-Kardabus procura transmitir a angústia de Afonso VI, atribuindo-lhe o desabafo “a vida, para mim, será agradável depois de passar”.36 Este desaparecimento espoletou uma luta pela sucessão, em que foram atores, de forma mais ou menos direta, Diego Gelmírez, os condes da Galiza, D. Teresa, D. Henrique, D. Urraca e o rei Afonso de Aragão. Em Uclés, Afonso VI não perdeu apenas o herdeiro, mas também elementos do seu núcleo mais próximo. O verão de 1108 seria, pois, palco de movimentações do velho monarca, no sentido de encontrar uma solução para o impasse. Bernard F. Reilly propõe que, em agosto desse ano, teria assegurado a D. Urraca que seria a herdeira.37 Nesse mesmo mês, os Anales Toledanos registam, de forma sintética, um massacre de judeus na cidade de Toledo,38 evento que pode estar relacionado com o ambiente produzido pela pesada derrota cristã em Uclés, a qual, por sua vez, suscitou a crise dinástica. Tal como explica Naomi E. Pasachoff, o advento almorávida, percecionado como negativo pela comunidade judaica da Hispânia cristã, levou muitos dos seus elementos a integrarem os exércitos que combatiam os muçulmanos. Contudo, face às derrotas militares, a responsabilidade era também atribuída aos judeus, que se viam atacados por multidões enfurecidas.

33 Reilly 1982, 40. 34 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 163. 35 Roderici Ximenii de Rada [1243?] 1987, 217. 36 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 135-136. 37 Reilly 1988, 356. 38 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:344. 212 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Um destes ataques, no princípio de maio de 1108, portanto, cerca de três semanas antes da Batalha de Uclés, resultou na morte de Solomon b. Farissol, líder da comunidade judaica de Castela. A autora acrescenta que todos estes eventos transformaram o tom da poesia do rabi Yehuda ha-Levi, que exaltava o amor e a amizade, e passou a sublinhar a honra dos judeus.39 Num ambiente de instabilidade e desalento face a Uclés, Afonso VI procurava um herdeiro para o seu “império”, e a escolha recaiu na filha Urraca. Mas, como é sobejamente conhecido, o velho monarca exigiu uma condição, impondo a D. Urraca o casamento com o rei de Aragão – um eventual filho do casal teria preferência na herança do poder. A decisão indispôs a nobreza que orbitava ao redor de Afonso VI e, em especial, os barões galegos, pouco interessados numa mais do que provável soberania do monarca conhecido como Batalhador,40 o que ditaria a perda de influência de Pedro Froilaz de Trava, que detinha a tutoria de Afonso Raimundes41 e, numa breve conjuntura, entre as mortes de D. Raimundo e a atribuição da Galiza a D. Urraca, governou sem intermediários. As ambições dos Travas eram, de resto, partilhadas por Diego Gelmírez, que procurou preeminência eclesiástica sobre toda a Hispânia cristã e coroou Afonso Raimundes em 1111, na idade de 6 anos.42 O futuro havia, aliás, de sorrir-lhe, com a ascensão, em 1119, de Guy de Vienne, irmão de D. Raimundo, à cadeira de São Pedro, sob o nome de Calisto II. Não por acaso, logo no ano seguinte, Compostela, liderada pelo bispo que sempre tinha defendido os interesses do sobrinho do papa, seria elevada à dignidade de arquidiocese. Compreensivelmente, o redator da Historia Compostelana não poupa predicados a Calisto: “Nascido de linhagem real, sobressaía pela sua prudência, a sua humildade, a sua castidade e a sua honestidade de costumes.”43 No verão de 1108, outro dos descontentes com as opções do velho imperador era o conde D. Henrique. Procurou manter-se ao lado do sogro, sobretudo após a morte de D. Raimundo, e participou nas campanhas militares

39 Pasachoff 1992, 23. 40 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 156-157. 41 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 154-155. 42 Mattoso 2007, 34-35. 43 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 313; Puyol y Alonso 1920a, 76:7-26, 111-122, 242-257, 242-257, 339-356, 395-419 e 512-519; Puyol y Alonso 1920b, 77:51-59 e 151-192. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 213 contra os muçulmanos, tudo levando a crer que o terá socorrido na aflição de Uclés, quando o herdeiro do velho rei e muitos dos seus mais ilustres sucumbiram. É natural que esperasse ser o escolhido. Não faz, por isso, sentido a proposta de Torquato de Sousa Soares, segundo a qual D. Henrique poderia estar interessado na autonomização do Condado Portucalense. Batalhar junto do papado por uma parcela de um território que poderia receber por inteiro não deveria fazer parte dos planos do bisneto do rei Roberto II de França, este filho de Hugo Capeto, fundador da dinastia dos capetíngios. Mas, apesar dos pergaminhos linhagísticos e militares de D. Henrique, presença habitual na corte desde 1103,44 Afonso VI optou pela aliança com Aragão, o que poderia unificar os territórios cristãos sob uma única liderança. D. Henrique e D. Teresa terão marcado presença na corte logo depois de Uclés, durante os eventos associados à designação do herdeiro, como sugere a documentação analisada por Bernard Reilly.45 Frustradas as suas pretensões, regressaram ao condado na primavera de 1109, pouco antes de Afonso VI falecer, e aí terão permanecido, perdendo a proclamação de D. Urraca em Toledo e logo depois as exéquias reais.46 Com alguns pormenores imprecisos, a Historia de Rebus Hispaniae, redigida um século e meio depois por encomenda do rei Fernando III de Leão e Castela – aquele que conquistou Córdova e Sevilha aos muçulmanos, a primeira em 1246 e a segunda dois anos mais tarde –, dá conta do compreensível desagrado de D. Henrique:

Homem bom, justo, corajoso e temente a Deus, resolveu rebelar-se. Afastou-se com os seus homens para as suas terras de Portugal, que os agarenos tentavam retirar-lhe marchando contra si. O rei chamou-o à corte e, devido ao facto de Henrique se estar a defender dos ataques dos muçulmanos, perdoou-lhe.47

O desaparecimento do imperador foi o pretexto para muitos nobres galegos rasgarem o acordo de finais de 1107, pelo qual juraram fidelidade a D. Urraca após a morte do conde D. Raimundo, surgindo em todo o território

44 Reilly 1982, 38. 45 Reilly 1988, 360. 46 Reilly 1988, 362. 47 Roderici Ximenii de Rada [1243?] 1987, 226-227. 214 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

“a guerra, a sedição e a fome”, com a terra privada de mãos que a cultivassem e justiça que a regesse, de acordo com a Historia Compostelana. A mesma narrativa aponta o conde Pedro Froilaz de Trava, aqui designado por “cônsul”, como um mediador dos conflitos, que, por palavras ou atos, procurava reprimir as rebeliões dos barões galegos.48 Estaria, evidentemente, a prover sobretudo aos seus interesses, procurando conservar o domínio que alcançara durante o período de indefinição no governo da Galiza.

Jihad no al-Andalus

Se, em 1109, os galegos viram uma oportunidade para defenderem a sua agenda política, os muçulmanos também passaram à ação. Diz a Chronica Adefonsi Imperatoris que, depois da morte de Afonso VI, “o mais excelente dos homens”, o imperador Ali b. Yusuf assumiu um poder absoluto sobre os almorávidas e os muçulmanos da Hispânia. “Reinou como a serpente cuja sede aumenta com o calor”, acusa a fonte. O emir reuniu, segundo a crónica, “todas as forças almorávidas e todos os mercenários árabes disponíveis”, formando um exército com milhares de cavaleiros, arqueiros e infantes, “tão numeroso como as areias da praia” e equipado com escadas e máquinas de guerra, tanto de madeira como de ferro. O objetivo era recuperar Toledo e destruir os castelos das suas linhas defensivas.49 Mas, se, como relatam as fontes muçulmanas, o grande exército alcançou o al-Andalus em julho de 1109 e o imperador morreu a 29 de junho, talvez este não fosse o motivo da campanha, e a crónica pretenda associar uma grande resposta muçulmana ao falecimento do imperador, para sua glorificação. Em 1108, com o desastre de Uclés e o fim do projeto de elevar o infante Sancho ao trono, Afonso VI começou a morrer também numa perspetiva política. Parece mais plausível que, no momento em que o imperador faleceu, o exército almorávida já se encontrasse em marcha, animado pela vitória em Uclés e preparado para desferir o golpe final sobre Toledo.

48 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 154-155. 49 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:96. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 215

Ali b. Yusuf conseguiria semear destruição nas linhas defensivas da antiga capital visigótica, mas não seria capaz de conquistar a cidade. Seja como for, quando desembarcou em Sevilha, os seus planos eram ambiciosos e provavelmente o emir apostaria numa maior debilidade cristã, fruto do elevado número de mortes em Uclés, das rebeliões e da desorganização provocada pela morte de Afonso VI, incluindo-se aqui os vários ataques à comunidade judaica. Quem nos dá pistas sobre esta possibilidade é o papa Pascoal II. Em carta dirigida aos habitantes do reino de Afonso VI, com data provável de 25 de março de 1109, ou seja, ainda no rescaldo de Uclés, condena os que deixavam as suas terras para peregrinarem ou combaterem no Oriente, posto que eram “atacadas pelas frequentes incursões de mouros e almorávidas”. Por isso, ordenou o regresso de alguns barões de um Afonso VI velho e doente, juntamente com as suas hostes, e apelou a todos os habitantes que permanecessem nas suas terras e lutassem com todas as suas forças, onde poderiam igualmente fazer penitências e receber o perdão e a graça dos apóstolos Pedro e Paulo.50 A adesão ao projeto das cruzadas, com a desmilitarização de uma zona de conflito, situação agravada pela elevada mortalidade na Batalha de Uclés, deveria ser suficientemente grave para justificar uma intervenção do papa. As fontes muçulmanas falam de uma grande campanha de jihad, que, à luz do nervosismo evidente de Pascoal II, talvez tenhamos de pensar como um golpe de misericórdia no seguimento do desastre de Uclés. Provavelmente, nenhuma outra conjuntura viria a ser mais favorável a Ali b. Yusuf. Segundo Ibn Idari, no ano da Hégira de 503, que se desenrolou entre 31 de julho de 1109 e 20 de julho de 1110, o emir dos muçulmanos deixou Marraquexe para fazer a guerra santa. Cruzou o mar em direção ao al-Andalus e tomou Talavera, de onde se dirigiu a Toledo. A campanha ter-se-á prolongado por 40 dias, durante os quais os exércitos almorávidas destruíram os arredores da cidade.51 Ibn Abi Zar coincide na informação e acrescenta pormenores. Refere que, no ano de 503, o emir dos muçulmanos, Ali b. Yusuf, passou ao al-Andalus a partir de Ceuta com mais de 100 mil cavaleiros, para fazer a guerra santa. Sitiou Toledo durante

50 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 146-147. 51 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 122-124. 216 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

um mês, raziou os arredores e, “depois de humilhar [a cidade], regressou a Córdova”.52 Por sua vez, o anónimo al-Hulal al-Mawsiyya sublinha que o emir foi ao al-Andalus para “fazer a guerra santa, defender a religião e glorificar a palavra revelada”.53 Também Ibn Khaldun dá conta destes acontecimentos: “Em 503, Ali b. Yusuf atravessou o estreito de Gibraltar, cercou Toledo e levou a destruição ao território cristão.”54 Outra fonte a fazer eco da campanha é Ibn al-Qattan, que diz que o emir Ali b. Yusuf levou a jihad ao território cristão e raziou e conquistou Talavera.55 Ibn al-Kardabus regista igualmente o evento, afiançando que o emir se apoderou da famosa almuinha nos arrabaldes de Toledo, bem como de muitos castelos, uma vez que os seus exércitos se disseminaram por aquelas regiões. Então, continua, o medo apoderou-se das gentes de Castela, que procuraram refúgio nos castelos mais inexpugnáveis, pois estavam certas de que Ali b. Yusuf iria no seu encalço. Contudo, este regressou a África, à sede do seu poder.56 Já al-Maqqari, que recupera parte da obra de Ibn al-Khatib, acrescenta que Ali não conseguiu submeter Toledo, devido à força das suas muralhas, embora tenha conquistado Talavera, Madrid, Guadalajara e outras fortalezas da região, derrotando os cristãos de cada vez que lhe davam combate e reunindo grande número de riquezas. Prossegue com informação importante: “Entretanto, o seu general Sir b. Abu Bakr estava a infligir terríveis golpes aos cristãos do Gharb, que, beneficiando da ausência dos almorávidas, tinham alargado as suas conquistas nestas partes.”57 Fica, assim, a impressão de uma campanha articulada com os massivos ataques a Toledo. As conquistas combinadas de Toledo, Lisboa e Santarém permitiriam recuperar a totalidade das linhas do Tejo para os muçulmanos. Um ataque simultâneo impediria ainda as forças cristãs de se auxiliarem, permanecendo divididas entre várias frentes de batalha: a capacidade numérica do exército almorávida possibilitaria o plano. O reconhecimento de que a ausência dos almorávidas na fronteira tinha dado origem às conquistas cristãs é ainda muito interessante, pois reforça a

52 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 164. 53 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 102. 54 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:83. 55 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1956, 69-70. 56 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 137. 57 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:303. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 217 hipótese de o conde D. Henrique ter ganhado algum ascendente sobre Sintra e Lisboa no período de doença e morte de Yusuf b. Tashfin, numa faixa cronológica a prolongar-se de 1104-1106 até 1109, tal como sugere a Chronica Gothorum. O Rawd al-Qirtas, fonte conhecida por alguma falta de rigor cronológico e de alguns exageros, devidamente desmontados por Ambrosio Huici Miranda num artigo de referência publicado na revista Hespéris-Tamuda,58 também nos fala da conquista de Lisboa pelo general lamtuna Sir b. Abu Bakr, mas transfere-a para 1111, o ano da tomada da cidade de Santarém.59 Infelizmente, a fonte não satisfaz a curiosidade quanto aos resultados da campanha de jihad de 1109.

Recuperação almorávida de Lisboa e Sintra: as informações nas sagas nórdicas

As oscilações do poder na fronteira do Gharb al-Andalus entre 1093 e 1147 nunca foram inteiramente estabelecidas pela historiografia. As fontes cristãs peninsulares quase ignoram o assunto, e as muçulmanas nem sempre fornecem dados satisfatórios. Sabemos das recuperações de Lisboa, talvez em 1095, e de Santarém, em 1111, logradas por Sir b. Abu Bakr. Mas, se o conde D. Henrique se viu obrigado a esmagar uma rebelião em Sintra logo após a morte de Afonso VI, em 1109, é porque outras geografias da fronteira podem ter sido desenhadas no referido intervalo. Ao chamarmos à argumentação fontes de origem nórdica, mais concretamente as que fixam na escrita os feitos dos reis da Noruega, podemos extrair alguns pormenores suscetíveis de clarificar este contexto. Interessa-nos o percurso de Sigurd Jórsalafari. Convertido ao cristianismo, este chefe viking integrou o movimento das cruzadas e, nos primeiros anos do século XII, passou uma temporada em Jerusalém: a cidade de Jórsalir, designação em nórdico antigo. Várias sagas relatam a viagem de Sigurd, mas, de forma direta ou indireta, acabam todas por ir beber à Morkinskinna ou a uma narrativa sinóptica como

58 Huici 1960, 513-541. 59 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 195. 218 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a Fagrskinna. A Heimskringla, que o islandês Snórri Sturluson escreveu na primeira metade do século XIII, e que é provavelmente a mais conhecida das sagas nórdicas, baseia-se em ambas.60 Para a argumentação, conta sobretudo a Morkinskinna, texto anónimo do século XIII que reporta a um período entre cerca de 1025 e 1157 e contém informação que, não sendo abundante, adquire relevância se cruzada com as fontes muçulmanas. Tal como a generalidade das sagas, explica que a aventura de Sigurd começou na primavera de 1107, quando deixou a sua cidade natal, Bergen, à cabeça de uma frota de 60 navios. Alcançou Inglaterra no inverno, onde permaneceu até à primavera do ano posterior, na corte de Henrique I. Passou ainda pela Normandia e pela Galiza, terra que lhe deu abrigo no inverno de 1108 e de onde partiu na primavera de 1109, rumo à costa do atual território português e à fronteira com o al-Andalus. Ao largo de Sintra, Sigurd encontrou, nas palavras da fonte, um grupo de “piratas muçulmanos” que navegavam em sete ou oito galés. O espanto face às naves muçulmanas é bem revelador de um choque de culturas, mas também de uma ampliação da força do inimigo para glorificação própria: “Grandes navios quase inexpugnáveis”,61 eis as palavras usadas. Este espanto seria, de resto, uma constante nos encontros entre navios vikings e outras embarcações que cruzavam o Mediterrâneo, patente nos poemas contidos nas sagas, estudados por Kari Ellen Gade. Uma estrofe da autoria de Rǫgnvaldr Kali Kolsson, que foi feito conde dos arquipélagos de Orkney e Shetland (Escócia) pelo rei Sigurd, alude à captura de um drómon por volta de 1152, perto da Sardenha, numa viagem de cruzados à Terra Santa. Navio de guerra bizantino, tal como recomendava o imperador Leão VI (866-912)­ na sua Tactica, não deveria ser nem demasiado pesado, para evitar lentidão, nem demasiado leve, para resistir à ondulação.62 Com 30 a 50 metros de comprimento e cinco a sete de largura, era propulsionado por remadores e equipado com balistas que lançavam dardos metálicos, sifões que disparavam fogo grego e um espigão que destroçava as naves inimigas. A desproporção

60 Snórri Sturluson [1220-1235?] 1844. 61 Morkinskinna [1220?] 2000, 315. 62 Leão VI (imperador bizantino) [886-912?] 2004, 292. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 219 face aos pequenos barcos vikings é evidente, e levou Rǫgnvaldr a consultar os seus homens sobre a viabilidade de atacar o drómon. O otimismo de uns venceu o receio de outros, tendo a empresa sido levada por diante. A armada viking conseguiu tomar o drómon, que alguns defendem, dada a enorme diferença tecnológica, ter sido apenas um grande navio e não uma verdadeira embarcação bizantina. A tripulação foi morta, e os homens do norte apoderaram-se de grandes riquezas: “Sangue foi abundantemente tirado das pessoas; homens valentes cobriram de vermelho espadas afiadas.”63 Tratando-se ou não de um drómon, a menção da palavra drómundi no poema acentua a importância destes navios no contexto mediterrânico e testemunha a necessidade de o poeta (skáld) medir a força, a bravura e a coragem dos vikings face àqueles que, seguramente, considerava mais poderosos: o feito torna-se épico pelo desequilíbrio de forças. Mas os muçulmanos também pareciam apreciar as qualidades dos vikings. Al-Zuhri, por exemplo, destaca a energia, a coragem, a força, as capacidades navais e o medo que infundiam com as suas campanhas, para as quais, no geral, mobilizavam 40 barcos, número que poderia subir para cem.64 O encontro entre nórdicos e muçulmanos ao largo de Sintra, em 1109, levou a uma batalha que redundou na captura dos navios pelas forças de Sigurd. Diz a Morkinskinna que os muçulmanos que conseguiram sobreviver se atiraram ao mar.65 É muito interessante cruzar a existência desta pequena força naval, que parece assumir a função de controlo da costa, com a descoberta, pelos arqueólogos de São Miguel de Odrinhas, de um ribat na Praia das Maçãs, localizado num promontório com o sugestivo nome de Ponta da Vigia.66 Todavia, a Morkinskinna torna-se ainda mais apelativa quando relata a conquista de Sintra com pequenos detalhes ausentes da Heimskringla. A saga afirma que este castelo “tinha sido ocupado pelos pagãos” – sublinhemos o verbo utilizado, “ocupar” – e que Sigurd entendeu atacá-lo para alargar a cristandade. Os muçulmanos de Sintra pouco se preocuparam: pensavam estar

63 Rǫgnvaldr Kali Kolsson [1152?] 2009, 2:602. 64 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 215. 65 Morkinskinna [1220?] 2000, 315. 66 Gonçalves 2015. 220 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

em segurança, já que se encontravam defendidos por uma “força de elite”67 (mannval ou “homens de eleição”, no original). Numa das peças de poesia que a fonte inclui, da autoria de Halldórr Skvaldri, obtemos mais dados que podem ajudar a esclarecer a identidade destes guerreiros muçulmanos que defendiam Sintra: “Recusaram aceitar as leis de Deus que lhes foram oferecidas.”68 Ou seja, preferiram a morte à conversão.69 Não parece, assim, que estejamos perante tropas habituadas aos compromissos e flutuações da vida na fronteira, mas diante de uma força militar bem treinada que, sem hesitação, aceitava morrer em nome da sua religião. Se tivermos em conta que uma parte do exército almorávida de 1109 se dirigiu ao Gharb al-Andalus, os indícios parecem apontar para que, a partir do verão deste ano, e por certo depois da rebelião esmagada por D. Henrique, que ocorreu em julho, o Castelo de Sintra tenha passado para o controlo de uma força de elite que, talvez motivada pelo rubor da jihad, preferiu morrer pela espada a converter-se ao cristianismo que lhe foi oferecido em salvação, guerra santa que, de resto, concedia a oportunidade de deixar este mundo no louvado estatuto de mártir. E, se Sintra já pertencia aos berberes sarianos, faz sentido que o mesmo destino conhecesse Lisboa. Ao considerarmos que os habitantes de Sintra se rebelaram por morte de Afonso VI, e que o conde foi obrigado a deslocar-se para esmagar a revolta, então, não estariam satisfeitos debaixo da influência cristã. Este dado, aliado à ausência de uma narrativa muçulmana a glorificar as conquistas de Sintra e Lisboa, sustenta a possibilidade de terem recebido de bom grado o exército almorávida, quem sabe por esta anexação as manter associadas ao lucrativo comércio do Mediterrâneo – daí uma “ocupação” em lugar de uma “conquista”. Começa, pois, a esboçar-se um intervalo cronológico para a aquisição de Lisboa e Sintra pelo poder almorávida: julho de 1109, data em que D. Henrique esmagou a rebelião em Sintra, será o seu limite inferior. Tentemos afinar a linha do tempo com recurso aos eventos que levaram a armada de Sigurd a

67 Morkinskinna [1220?] 2000, 316. 68 Halldórr Skvaldri [1107-1110?] 2009, 2:485. 69 Morkinskinna [1220?] 2000, 316. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 221 entrar no xadrez da fronteira do Gharb al-Andalus. O chefe viking deixou a sua cidade, Bergen, no outono de 1107. Destino: a Terra Santa das cruzadas. Ao sair de Bergen, dirigiu-se a Inglaterra e passou o inverno na corte do rei Henrique I. Na primavera, prosseguiu até às regiões ocidentais de França, mais concretamente à Normandia. No outono de 1108, ganhava já as terras da Galiza, para passar o segundo inverno.70 O rei norueguês foi bem recebido por um conde local, cuja identidade as fontes não revelam, mas que, pela preeminência política alcançada em 1108, depois da morte de D. Raimundo e antes do desaparecimento de Afonso VI, poderia ser Pedro Froilaz de Trava. Na mesma conjuntura, intitulava-se principis Gallecie, governando o território sem intermediários. Seja como for, o conde referido na saga firmou um acordo com os homens do norte, pelo qual lhes era facultado o acesso a um mercado onde poderiam adquirir os alimentos para o seu sustento. Mas as promessas, diz a saga, duraram apenas até ao Natal, quando o conde lhes retirou o apoio, e os vikings tiveram dificuldade em prover às suas necessidades. Sigurd encontrou uma justificação para endurecer argumentos e levou as suas forças contra um castelo que pertencia ao conde. Saqueou a fortaleza e encheu os porões dos seus navios com alimentos e outras riquezas. Nada que piratas ingleses, contratados como mercenários por rebeldes contra o poder de D. Urraca, não fizessem em terras galegas uns três anos mais tarde.71 De resto, os frequentes ataques à costa galega, não só por ingleses, como também por vikings e muçulmanos, levaria à construção de torres e muralhas defensivas, como atesta a Historia Compostelana.72 A Morkinskinna diz que os vikings deixaram Compostela no princípio da primavera daquele que já seria o ano de 1109 e tomaram o sentido da Hispânia muçulmana.73 Desde o início de abril até aos primeiros dias de agosto, medeiam cerca de quatro meses, o que parece excessivo para a frota sair de Compostela e chegar a Sintra. Mas é possível levantar a hipótese de a armada ter consumido tempo a pilhar outros cristãos até ao sul. O episódio da Galiza parece cuidadosamente justificado com a quebra de uma promessa pelo conde – mas

70 Snórri Sturluson [1220-1235?] 1844, 3:149-150. 71 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 186. 72 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 343. 73 Morkinskinna [1220?] 2000, 315. 222 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

nada diz sobre a razão dessa quebra –, como se os recém-convertidos vikings pretendessem demonstrar que só atacaram outros cristãos com um motivo legítimo. Não será, contudo, de descartar a possibilidade de terem feito mais incursões pelo território da Galiza ou mesmo do Condado Portucalense. As evidências sugerem, assim, que os vikings tenham encontrado em Sintra não apenas muçulmanos habituados aos compromissos conjunturais da fronteira, mas almorávidas. Se tivermos em conta que o conde D. Henrique foi obrigado a esmagar a rebelião em julho de 1109 e que o exército da jihad só pode ter chegado a seguir, é provável que Sigurd tenha alcançado Sintra a partir dos finais daquele mês ou já em agosto. Será este o limite superior do intervalo cronológico para a apropriação de Lisboa e Sintra pelos almorávidas. Não nos esqueçamos de que a conjuntura se desenrolou rapidamente e que, até chegarem à corte do então jovem Rogério II da Sicília, os vikings ainda montaram cerco a Lisboa, desferiram um ataque a Alcácer, sobreviveram a mais um recontro com muçulmanos no estreito de Gibraltar e atacaram as Baleares em busca de mantimentos. Tudo em escassos meses, pelo que, para empreenderem todas estas façanhas, e admitindo que encontraram almorávidas em Sintra, o ataque a este castelo terá ocorrido ainda em agosto ou, na pior das hipóteses, no início de setembro. Depois de Sintra, Sigurd dirigiu-se à atual capital portuguesa, onde encontrou uma população que a Morkinskinna considera “metade cristã, metade pagã”,74 uma das mais famosas passagens da historiografia associada ao moçarabismo, multicopiada a partir dos trabalhos de Reinhart Dozy para justificar uma forte presença de cristãos arabizados em Lisboa à data da sua conquista por D. Afonso Henriques. Diga-se, contudo, que em 38 anos as conjunturas sofrem mudanças profundas, sobretudo quando o elemento da guerra está em jogo. Ninguém garante que, entre 1109 e 1147, a população moçárabe de Lisboa se tenha mantido estável. Mas, por ora, acompanhemos Sigurd e as suas máquinas de guerra até às muralhas de al-Ushbuna. “Para oeste e sul daquela cidade, estende-se a Hispânia

74 Morkinskinna [1220?] 2000, 317. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 223 pagã”, diz a Morkinskinna, a qual acrescenta que Lisboa constituía a linha divisória entre cristãos e muçulmanos.75 Os conselheiros de Sigurd foram da opinião de que seria uma grande honra capturar a cidade, pelo que o chefe viking selecionou as suas tropas a partir de qualidades como “inteligência e coragem”. Mostrava-se confiante, já que considerava que os cristãos da cidade o ajudariam na sua causa. Enganar-se-ia nos cálculos, até porque, pouco antes, Sintra e Lisboa podem ter procurado libertar-se da influência cristã, como parece indicar a rebelião subsequente à morte de Afonso VI. O empenho de Sigurd e dos seus homens foi elevado: “Uma árdua batalha foi travada ao redor da cidade, e o ataque dos nórdicos foi tão forte que conseguiram romper as muralhas com catapultas e entrar na cidade.” Alguns muçulmanos aceitaram aderir ao cristianismo, e Sigurd, depois de saquear a cidade, regressou aos seus barcos em direção a Alcácer, que teve tratamento idêntico ao de Lisboa.76 A fonte não fornece mais pormenores, mas é certo que Sigurd não terá conseguido entrar na alcáçova de al-Ushbuna. Se o objetivo dos vikings era a Terra Santa, compreende-se que não desejassem um conflito prolongado, que poderia tornar-se pouco lucrativo a todos os níveis. Com os navios repletos de riquezas, talvez o ataque a Alcácer se destinasse, como sugere a Morkinskinna, a perseguir a glória na luta contra os muçulmanos tirando partido de uma pequena cidade próxima da costa, cujo acesso era facilitado por um largo estuário, de resto, como Lisboa. Após passar o estreito de Gibraltar e atacar as Baleares, Sigurd instalou-se na corte de Rogério II da Sicília. No verão de 1110, dizem as sagas, chegou à cidade de Acre, na Palestina, onde foi recebido pelo rei Balduíno I.77 Permaneceu em Jerusalém durante o outono e o início do inverno, quando a sua armada reforçou o cerco a Sídon, que reverteu para Balduíno a 5 de dezembro. À partida, o percurso de Sigurd em 1110 já não teria interesse para a conjuntura da fronteira do Gharb al-Andalus. Todavia, uma linha historiográfica escandinava defende que, com o ataque a Lisboa, o chefe viking estaria a ajudar o conde D. Henrique a recuperar a cidade. Nas notas à tradução da Morkinskinna, Theodore Murdock

75 Morkinskinna [1220?] 2000, 317. 76 Morkinskinna [1220?] 2000, 318. 77 Snórri Sturluson [1220-1235?] 1844, 3:156. 224 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Andersson e Kari Ellen Gade fazem eco desta possibilidade,78 baseados na informação obtida através de uma coleção de estudos escandinavos, Íslenzk Fornrit, mas que, consultada, não refere a fonte.79 Segundo a última obra, o conde D. Henrique conquistou Sintra em 1109, provavelmente com o apoio de Sigurd, e tentou a recuperação de Lisboa em 1110. A origem desta hipótese remonta a finais do século XIX, quando o historiador Gustav Storm foi encarregado pelo governo norueguês de traduzir a Heimskringla para a sua língua nativa.80 Dotada de belas ilustrações, a edição destinava-se a sublinhar os argumentos de uma nação antiga, com um passado repleto de heroísmo, num contexto político em que o território procurava separar-se da Dinamarca e da Suécia. Não podemos esquecer-nos, por outro lado, de que estávamos em plena fase positivista, quando, muitas vezes, as hipóteses formuladas se tornavam, intencionalmente ou não, verdades sólidas, ainda hoje nem sempre fáceis de desconstruir. Storm não fala da conquista de Sintra pelo conde D. Henrique em 1109, mas pelos muçulmanos após a morte de Afonso VI, o que é rigorosamente verdade, embora talvez se estivesse a referir à Chronica Gothorum e ao episódio do esmagamento da rebelião em Sintra, informação insuficiente para explicar a conjuntura: faltam as fontes muçulmanas. Dir-se-ia que terá acertado por intuição. No entanto, o historiador norueguês afirma taxativamente o apoio de Sigurd ao conde a partir de 1110, tanto na empresa de recuperar Sintra, como de sitiar Lisboa. Só que não demonstra a sua hipótese e, ainda que fossem verdadeiros, tais eventos nunca poderiam ter ocorrido na cronologia proposta, quando o rei norueguês já se encontrava longe, na Sicília, com destino à Terra Santa e a poucos meses de participar na conquista do porto de Sídon aos fatímidas. Bastaria a Storm ter lido com atenção a própria saga que traduziu para verificar a impossibilidade da cronologia. Como é evidente, a hipótese de um auxílio de Sigurd ao conde assume contornos apelativos: significaria que, quase quatro décadas antes do filho, D. Henrique teria beneficiado de uma frota para o projeto de recuperar

78 Morkinskinna [1220?] 2000, 452. 79 Aðalbjarnarson 1979, 28:242-243. 80 Snórri Sturluson 1899, 549. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 225

Lisboa, num modelo de ataque semelhante ao que viria a conhecer sucesso em 1147. Nesse caso, o assalto dos vikings a Alcácer teria de oferecer outra leitura. Conquistada Sintra e sem resultados em Lisboa, os aliados tentariam tomar a cidade do Sado para exercerem um movimento de tenaz sobre a atual capital portuguesa. Mas nenhuma das propostas tem sustentação, sobretudo quando atribuída a 1110, já Sigurd se encontrava a caminho da Terra Santa. Para termos mais certezas, podemos inverter o ponto de observação e procurar o paradeiro de D. Henrique no verão de 1109. Um importante documento do cartulário da Sé de Coimbra mostra que, a 29 de julho, se encontrava ao lado de D. Teresa, provavelmente em Viseu, para uma doação de cariz político.81 Esta presença vem reforçar a possibilidade de o esmagamento da rebelião de Sintra ter ocorrido em meados de julho. Em causa, estava a transferência do Mosteiro do Lorvão e respetivos bens para a diocese de Coimbra. A manobra política não era nova: em novembro de 1094, D. Raimundo e D. Urraca, numa época de incerteza da reforma gregoriana e em plena expansão almorávida, tinham ampliado os poderes da mesma diocese, com a doação do Mosteiro da Vacariça.82 O Mosteiro do Lorvão, instituição de enquadramento da comunidade moçárabe, foi doado à Sé de Coimbra cerca de um mês depois da morte de Afonso VI, novamente num momento de forte expansão almorávida e quando D. Henrique e D. Teresa tentavam afirmar-se na geopolítica de Leão e Castela. Resolver a questão moçárabe seria uma mais-valia face aos apoiantes da reforma gregoriana e, em última instância, poderia angariar as simpatias do próprio papa. Presentes neste ato, além de vários bispos e das elites de Coimbra e Viseu, encontravam-se o arcebispo Bernardo de Toledo, o conde Pedro Froilaz de Trava, vários nobres de Leão e Castela e outras personagens que Bernard F. Reilly identifica como tendo estado ao serviço do falecido imperador e que, provavelmente, se oporiam ao casamento de D. Urraca com o rei Afonso de Aragão e ao novo equilíbrio de forças políticas.83 D. Henrique era agora o mais forte elemento do chamado partido franco, apoiante das políticas do arcebispo

81 Azevedo 1958, 19-21. 82 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 132-134. 83 Reilly 1982, 41. 226 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de Toledo, e pode ter querido beneficiar da questão moçárabe para angariar apoios ao mais alto nível, o que incluía o papa. Mil cento e nove seria ainda o ano em que a diocese de Coimbra conheceria um novo bispo, com a designação de D. Gonçalo Pais. Apesar da reforma gregoriana, liderada pelo arcebispo de Toledo desde 1086 e apoiada pelo papado, a condição de Coimbra enquanto território periférico garantiu-lhe alguma autonomia. Mas o projeto encontraria redobrado fulgor com o novo bispo e com o conde D. Henrique. Uma bula de Pascoal II de janeiro de 1110 é clara quanto ao rumo político e social traçado para Coimbra. O papa congratulava-se com a eleição de D. Gonçalo, instando-o a auxiliar o conde. Pelo caminho, prometia tratar da causa da Sé de Coimbra quando o prelado visitasse Roma.84 Não se conhece, imediatamente após a doação do Mosteiro do Lorvão, ou seja, já em agosto, a localização do conde D. Henrique. Em Viseu, com D. Teresa, para acompanhar o nascimento de mais um filho, que poderia garantir-lhe uma posição sólida na linha sucessória? Noutro lugar? As interrogações não conduzem a respostas seguras. Nesta conjuntura, e após um ato jurídico em que parecem estar conjuradas as personagens que apoiariam as pretensões de D. Henrique, a questão sucessória talvez fosse muito mais pertinente do que a empresa de conquistar Lisboa aos almorávidas, ao contrário do que sugere a historiografia de origem norueguesa. Observando os conflitos gerados pela morte de Afonso VI e todos os esforços políticos empreendidos por D. Henrique para garantir o seu sangue na herança do imperador, Lisboa parece uma peça demasiado distante para ser considerada. Voltamos a ter notícias do conde por via da documentação em dezembro de 1109, quando outorgou uma carta à Sé de Braga, pela qual delimitava o respetivo couto.85 Já no início de 1110, também se encontrava indisponível para ser ajudado por Sigurd: a 24 de janeiro, tomou parte na Batalha de Valtierra, que opôs as forças de Afonso de Aragão à taifa de Saragoça.86

84 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 824 e 840. 85 Azevedo 1958, 21-22. 86 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 137. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 227

Nascimento de D. Afonso Henriques

O nascimento do primeiro rei de Portugal é tema que envolve paixões, sobejamente conhecidas para nos determos demasiado na exposição das várias teses. A hipótese de Armando de Almeida Fernandes, genericamente aceite pela comunidade científica, incluindo José Mattoso na biografia que traçou do primeiro monarca,87 aponta para que o nascimento tenha ocorrido em meados de agosto de 1109, na cidade de Viseu. O investigador recorre à informação da Chronica Gothorum, texto que afirma ter sido este o ano do nascimento de D. Afonso Henriques, e analisa a documentação em que esteve envolvida D. Teresa, para concluir que passou grande parte de 1109 naquela cidade. Na verdade, já estaria no condado desde a primavera, tendo deixado a corte do seu pai pouco antes de este falecer. Se o primeiro rei de Portugal veio mesmo ao mundo em agosto de 1109, compreende-se a opção por Viseu. Dir-se-ia que seria a mais plausível face a uma conjuntura de extrema violência e a uma insuficiência de meios na defesa da fronteira, como decorre das preocupações demonstradas pelo papa Pascoal II. Viseu constituía uma plataforma afastada dos conflitos que grassavam no verão desse ano e que conferia algumas alternativas de fuga em caso de necessidade. Na Galiza, surgiram rebeliões após a morte de Afonso VI, com os barões divididos entre os que apoiavam Pedro Froilaz de Trava, o bispo Diego Gelmírez e o jovem Afonso Raimundes, e os que eram fiéis a D. Urraca. É de admitir que os nobres do norte portucalense, ligados por laços de sangue às elites da Galiza, se envolvessem neste conflito sangrento que, segundo a Historia Compostelana, deixou o território sem pão nem justiça. Guimarães tornava-se, assim, um local demasiado perigoso para quem queria assegurar o nascimento de um possível herdeiro, que daria ao conde novas aspirações políticas. Apesar de filha ilegítima, D. Teresa reclamava a herança a, pelo menos, uma parte do território governado por Afonso VI, tal como Fernando Magno tinha dividido o reino pelos três filhos.88

87 Mattoso 2007, 25-27. 88 Mattoso 2007, 31-32. 228 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Em Leão, D. Henrique e D. Teresa não seriam bem-vindos. Provavelmente em virtude de não aceitar D. Urraca como sucessora, o conde foi banido da corte pelo velho imperador.89 Por outro lado, a região de Toledo e toda a sua linha defensiva encontravam-se a ferro e fogo, mercê da campanha de jihad conduzida pelo emir Ali b. Yusuf. A mesma instabilidade era partilhada por Coimbra. Embora os conflitos não fossem um estado de exceção nesta cidade, a conjuntura era de especial violência, em resultado da designação de um bispo afeto à linha gregoriana e do golpe nos interesses da comunidade moçárabe, com a diluição do Mosteiro do Lorvão nos bens da diocese de Coimbra. Além disso, sobre esta cidade, pairava a ameaça externa. Com algum grau de probabilidade, Lisboa e Sintra já teriam revertido para o poderio do general almorávida Sir b. Abu Bakr e os alvos seguintes poderiam ser as cidades imediatamente a norte, como Santarém e Coimbra. Tendo em conta as várias zonas de conflito, Viseu, que tinha usufruído do estatuto de cidade real ao tempo Ramiro II das Astúrias, na primeira metade do século X, surge como o local mais seguro. Olhando para a conjuntura, podemos verificar uma coincidência: ao mesmo que tempo que D. Afonso Henriques nascia em Viseu, a cidade de Lisboa, que havia de conquistar aos 38 anos, estaria a entregar-se ao exército de Sir b. Abu Bakr.

89 Puyol y Alonso 1920a, 76:246-247. 2. CONJUNTURA DE TRANSIÇÃO

De acordo com a Historia Compostelana, a rainha Urraca lamentou o casamento a que a obrigou o seu pai. A fonte, interessada em denegrir Afonso de Aragão, denuncia maus-tratos verbais e físicos contra D. Urraca e identifica o rei Batalhador como o mal de toda a Hispânia.1 Escrita de acordo com a perspetiva do bispo Diego Gelmírez, esforça-se por diabolizar o rei aragonês, cujos interesses colidiam com os seus. Sem surpresa, as Crónicas Anónimas de Sahagún vão na mesma direção.2 Este projeto de união entre os reinos peninsulares, segundo afirma, a poucos terá agradado entre as fileiras de Leão, de Castela e, sobretudo, da Galiza. Mas tenta justificar a decisão de Afonso VI, ao afirmar que o imperador reconheceu o perigo na ascensão ao trono de uma mulher e que, casando-a com um líder militar, procurou blindá-la contra os desejos dos seus barões, incluindo muito provavelmente D. Henrique. Através da análise de documentos que a já rainha emitiu em finais de setembro de 1109, Bernard F. Reilly argumenta que o casamento com Afonso de Aragão ocorreu no início de outubro deste ano,3 depois da morte de Afonso VI e dos ataques almorávidas às regiões de Toledo e do Gharb al-Andalus. O mesmo autor observa, com pertinência, que, mais do que a instabilidade política face ao casamento, terá sido a impossibilidade de gerar um herdeiro a determinar o fim do enlace. Um filho teria, ainda na opinião de

1 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 171-173. 2 Puyol y Alonso 1920a, 76:122. 3 Reilly 1982, 60. 230 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Reilly, cimentado a posição do casal e angariado apoiantes para a sua causa.4 A sua ausência conduziu ao inverso, com a guerra a devastar a Galiza, enquanto os almorávidas pressionavam as linhas do Tejo.

Batalha de Valtierra e conquista almorávida de Saragoça

D. Henrique empenhou-se, como sempre, para não ficar de fora da nova geometria do poder. Depois de fixar os limites do couto da diocese de Braga, em dezembro de 1109,5 seguiu para o Levante e engrossou as fileiras do rei Batalhador na luta contra os Banu Hud de Saragoça, o que ocorreu em finais de janeiro do ano seguinte.6 A derrota muçulmana em Valtierra, com a morte do rei de taifa al‑Mustain7 e a impossibilidade cristã de reter o território, precipitou a intervenção almorávida em maio de 1110, situação que conduziu à conquista do vale do Ebro pelos homens do deserto.8 Lérida cairia quatro anos depois sob o domínio de Marraquexe. A Batalha de Valtierra terá constituído uma campanha de retaliação face a uma algara muçulmana sobre território cristão. Segundo Ibn al-Khatib, recuperado por al-Maqqari, depois de massacrarem al-Mustain, perto de Tudela, as forças do rei de Aragão voltaram as suas atenções para Saragoça.9 No entanto, diz Ibn Idari, os almorávidas apoderaram- ‑se da cidade antes que o Batalhador pudesse levar avante os seus intentos e, em julho de 1110, não lhe restou senão cercá-la,10 mas um forte dispositivo militar não foi suficiente para conduzir a operação ao sucesso, pois um exército berbere conseguiu assegurar a cidade.11 Ainda de acordo com as fontes muçulmanas, os cristãos mostraram-se bastante ativos na guerra de fronteira no ano de 1110. No mês de Shawal, que se desenrolou entre 23 de abril e 22 de maio, Ibn al-Qattan regista, se bem que

4 Reilly 1982, 60-61. 5 Azevedo 1958, 21-22. 6 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 137; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 130. 7 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 138; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 126. 8 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 127; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 164. 9 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:303. 10 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 128-129. 11 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:303-304. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 231 de forma muito breve, uma razia que matou 1000 muçulmanos e queimou 61 aldeias.12 Fica por saber onde se localizavam e se o conde D. Henrique também terá participado. Apesar da intervenção militar em Valtierra, de moldes nada explicados pelas fontes, mas que, porventura, se terá desenvolvido num contexto em que D. Urraca e o Batalhador ainda estariam unidos no mesmo projeto político e D. Henrique desejaria manter-se próximo do poder, o conde teria interesses bem firmados na sucessão de acontecimentos na Galiza. Território que ascendeu à condição de reino autónomo após as partilhas de Fernando Magno, não perdeu o estatuto com a anexação por Afonso VI.13 Pelo menos, em finais de março, ou seja, dois meses cumpridos sobre Valtierra, o conde já estaria de volta ao território portucalense, para atribuir carta de couto ao Mosteiro de Tibães, Braga, na companhia de D. Teresa.14 Em julho, confirmou semelhante privilégio à Sé de Viseu, inicialmente concedido por Fernando Magno15 e, em agosto, mandou exarar carta de doação e couto a um barcelonês de nome Bernardo, conhecido pelo apodo de Franco, a recair sobre cinco casais em Vila Boa, Sátão. Nota-se, pois, alguma atenção para com o território de Viseu numa conjuntura em que D. Afonso Henriques, com algum grau de probabilidade nascido na cidade, teria apenas meses. A união de interesses entre o conde D. Henrique e Afonso de Aragão ainda terá durado algum tempo, a julgar pela argumentação de Bernard F. Reilly, que recorre a um documento emitido em Sahagún, a 20 de dezembro de 1111, mencionando as seguintes fórmulas: “Reinante o rei Afonso em Leão, em Carrión, bem como em Aragão... Conde Henrique, [senhor] em Zamora e em Astorga, bem como em Portugal.”16 Aliás, em março de 1112, a cerca de um mês da sua morte, D. Henrique apareceu a favorecer o conde Froila Díaz, apoiante de D. Urraca,17 com a doação de um solar em Astorga,18 ato jurídico confirmado

12 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1956, 70. 13 Mattoso 2007, 44. 14 Azevedo 1958, 23. 15 Azevedo 1958, 25-26. 16 Reilly 1982, 78. 17 Reilly 1982, 79. 18 Azevedo 1958, 37-38. 232 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

pela rainha e pelo filho, Afonso Raimundes. Ainda em março, D. Urraca, em conjunto com D. Henrique e D. Teresa, confirmaram à Sé de Oviedo as doações e os privilégios concedidos pelos reis anteriores,19 o que mantinha os pais de D. Afonso Henriques próximos do poder. Presentes estiveram o arcebispo de Toledo, os bispos de Leão e de Astorga e os barões de Castela. Enquanto o casal real não produzisse um herdeiro e o cálculo político fosse efetuado apenas em torno de Afonso Raimundes, D. Henrique e D. Teresa poderiam ter esperanças numa distribuição do território a beneficiar o seu próprio filho. Talvez a presença do conde em Valtierra se explique também pelo nascimento de um herdeiro, que lhe daria protagonismo político na sucessão de Afonso VI.

Luta pela fronteira com Coimbra em ebulição

Ainda em janeiro de 1110, praticamente ao mesmo tempo em que se desenrolou a Batalha de Valtierra e al-Mustain de Saragoça perdeu a vida, o papa Pascoal II emitiu a tal bula pela qual definiu os seus intentos em relação a Coimbra. Mas o conturbado ano de 1109 trouxe um obstáculo à reforma gregoriana, que potenciou a instabilidade em Coimbra: algures no segundo semestre, Martim Moniz, genro do falecido Sisnando Davides, reassumiu o governo da cidade.20 Na carta de doação do Mosteiro do Lorvão à Sé de Coimbra, datada de finais de julho de 1109, ainda não surgia no elenco das elites da cidade. Todavia, em dezembro, quando D. Henrique delimitou o couto da Sé de Braga, já se encontrava entre os confirmantes, mais concretamente na segunda posição da lista.21 Martim Moniz é referido de forma expressa numa bula papal sem data precisa, mas atribuída a uma cronologia entre 1110 e 1112, que talvez possa ser afinada para um intervalo cujos limites vão de 1110 aos primeiros meses de 1111. Neste documento, Pascoal II dirigiu-se ao prior do cabido da Sé de Coimbra, D. Martinho, a todos os membros do mesmo capítulo,

19 Azevedo 1958, 38-40. 20 Azevedo 1958, 19-21. 21 Azevedo 1958, 21-22. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 233 a Martim Moniz e a D. Henrique, enaltecendo a Igreja local, agradecendo ao conde a doação do Lorvão à diocese local e abençoando os combatentes contra os muçulmanos. O tom conciliatório entre as várias personalidades da cidade faz supor uma tentativa de ultrapassar conflitos.22 Esta carta ganha mais sentido logo depois da transferência do Mosteiro do Lorvão para a sé e da subida ao poder de Martim Moniz, mas ainda antes do ataque almorávida a Santarém, que teria lugar em maio de 1111. Ao aumentarem as pressões em Coimbra para a substituição do rito moçárabe, parece recrudescer a resposta da comunidade, enfrentamento que culminaria com a atribuição de um foral com privilégios direcionados sobretudo para a classe dos cavaleiros. Neste contexto, merecem referência as ricas doações à Sé de Coimbra, que reforçavam a sua posição tanto em termos territoriais como na acumulação de rendimentos, operadas por Ximena Forjaz, em novembro de 1110, e pelo seu marido, o cavaleiro João Gosendes, simbolicamente a 25 de dezembro do mesmo ano. A primeira atribuiu propriedades em Sever do Vouga, Oliveira de Azeméis, Tondela, Albergaria, Águeda, Lafões e no termo de Coimbra.23 Idêntica doação fez o seu marido sobre bens fundiários em Coimbra, Feira, Lafões e Sever do Vouga. A presença de D. Henrique e de D. Teresa confirmou a dimensão política deste ato jurídico.24 Depois da atribuição de propriedades a um franco na região de Sátão, e ainda antes da ameaça almorávida sobre Santarém em 1111, D. Henrique deveria pressentir a necessidade de maior consolidação das linhas de Viseu. Face à posição de Sátão, ligeiramente a nordeste da última cidade, e tendo em conta a passagem de Salamanca para o reino de Leão a partir da conquista de Toledo – a primeira destas cidades beneficiou do repovoamento por D. Raimundo em 1102 –, o pai de D. Afonso Henriques poderia querer blindar Viseu, não só contra os adversários muçulmanos, como também contra eventuais investidas dos seus vizinhos cristãos. Não obstante uma possível ligação ao rei de Aragão nesta conjuntura, o que garantiria, à partida, alguma estabilidade na fronteira,

22 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 839-840. 23 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 67-68. 24 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 234-235 e 670-671. 234 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

D. Henrique poderia manter uma desconfiança em relação ao reino de Leão, até porque estas alianças, com grande frequência, assumiam um caráter fugaz e conjuntural. Quaisquer que fossem as suas intenções, a 9 de maio de 1111, o conde atribuiu foral aos habitantes de Sátão.25 Entre os benefícios outorgados, destacavam-se os reservados aos cavaleiros: as famílias dos que falecessem mantinham os privilégios da sua classe. Além disso, quem aqui quisesse viver poderia transmitir as suas propriedades aos herdeiros, uma medida fixadora de gentes à terra.

Fig. 5: Sátão e Viseu: duas praças fundamentais na defesa da fronteira

Provavelmente, a tentativa de conter as fronteiras, pressionada por uma presença almorávida mais forte e pela instabilidade em Leão, estaria já na mente do conde quando Sir b. Abu Bakr, governador de Sevilha, voltou a ganhar uma importante batalha e a posicionar as linhas entre cristãos e muçulmanos

25 Azevedo 1958, 30-31. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 235 mais a norte. Só assim se explica que, no mesmo dia em que Santarém caiu sob domínio almorávida, 26 de maio de 1111, Coimbra estivesse a receber foral. Como é evidente, não faz sentido pensar que esta cidade obteve um foral devido à perda de Santarém para as linhas muçulmanas no mesmo dia, pelo que o documento, que exigiria certamente preparação e negociação, já estaria a caminho. Contemplando sobretudo os cavaleiros, refletia de forma inequívoca o mal-estar entre a população local e as novas elites de Coimbra, entre estas personagens do norte portucalense e estrangeiras. D. Henrique, que evidenciava alguma habilidade para manter o equilíbrio de poderes na sucessão a Afonso VI, foi aparentemente incapaz (ou não teve interesse) na interpretação das idiossincrasias religiosas, políticas e sociais da região de Coimbra e viu-se obrigado a uma manobra de recuo. Apesar de reservar para si uma parte dos rendimentos do saque obtido por fossado – vincando a sua posição de governante –, o conde isentou os cavaleiros de impostos e atribuiu-lhes outros benefícios, como a possibilidade de recrutarem quem desejassem para serviço nas suas herdades. O foral circunscrevia ainda as situações em que a nobreza do norte portucalense podia adquirir propriedades na cidade: “Um infanção não tenha em Coimbra casas nem vinhas, a menos que queira aqui morar e servir como os habitantes locais.” D. Henrique prometia, finalmente, não associar aos assuntos de Coimbra personagens que, pela formulação do texto, seriam do desagrado dos habitantes: Munio Barroso e Ebraldo. Rematava assegurando que esqueceria a animosidade que os habitantes da cidade tinham manifestado contra si. As sucessivas tentativas do papa para conciliar a cidade sob a nova obediência religiosa, a par das reivindicações que transparecem do texto do foral, fazem prova da instabilidade em Coimbra, potenciada pela omnipresente ameaça muçulmana, que, de resto, viria a concretizar-se de forma tangível uns cinco anos mais tarde. Também nessa altura o papa iria apelar ao consenso na cidade. Ao mesmo tempo que os privilégios dos cavaleiros de Coimbra saíam reforçados, e a contraciclo face à estratégia do conde para reforçar a fronteira com a outorga de forais, a cidade de Santarém caía em poder do general almorávida Sir b. Abu Bakr. Na batalha pelo território, enquanto o norte cristão parecia retirar a sua força sobretudo das gentes que se fixavam no espaço, o sul 236 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

muçulmano respondia com operações militares mais estruturadas. A conquista de Santarém escapou à generalidade das fontes muçulmanas. Ibn Abi Zar, por exemplo, limita-se a atribuir a campanha a Sir e a posicioná-la no mês de Du-l-Qadah do ano de 504 (11 de maio a 9 de junho de 1111), mas, repleto de imprecisões, inclui no rol as conquistas de Badajoz, Évora, Lisboa e Porto.26 Em compensação, Abd al-Wahid al-Marrakushi, uma fonte de origem almóada, reproduz a carta que o general almorávida terá endereçado ao emir Ali b. Yusuf, a dar conta das circunstâncias da vitória, simbolicamente escrita a partir do interior das muralhas.27 O documento constitui um importante instrumento para perceber as relações entre as populações de fronteira. Segundo as palavras de Sir, aqui recuperadas, o Castelo de Santarém era um dos mais fortificados e sólidos baluartes cristãos utilizados na guerra contra os muçulmanos, conquistado de acordo com as instruções do próprio emir. A ideia de Santarém ser a mais sólida praça da fronteira do Gharb é confirmada pela parte do al-Bayan al-Mugrib relativa ao final do califado omíada e ao início do sistema de taifas.28 Quanto ao conteúdo da carta, Sir b. Abu Bakr enaltece os sucessos militares almorávidas – os seus –, ao explicar, ao emir Ali b. Yusuf, que as forças muçulmanas sempre tinham conseguido rechaçar as colunas cristãs e atacar em diversas ocasiões os seus mais bravos guerreiros, o que é, por exemplo, confirmado por aquela que ficou conhecida como Campanha de Vatalandi. No entanto, Sir afirmava que esta destacada praça-forte, que dominava a região, se encontrava “gravemente doente” e “não poderia curar-se”, razão por que entendeu atacar de surpresa. A concertação de vagas de algaras entre tropas ligeiras e pesadas e a pressão do cerco pelos flancos garantiram o sucesso almorávida. Estas informações apontam para um enfraquecimento do poder cristão na fronteira entre 1109 e 1111, algo que poderá ser justificado, por um lado, pela instável conjuntura interna de Coimbra, pelas guerras na Galiza e pelo maior interesse de D. Henrique na sucessão de Afonso VI e, por outro, pelo maior fulgor na prática da jihad por parte do poder almorávida.

26 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 165. 27 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 120-124. 28 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 198. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 237

Sir explica, com algum desdém, que a população de Santarém preferiu humilhar-se a perecer: mais uma prova do pragmatismo das escolhas na fronteira, a contrastar com a conduta manifestada pelos guerreiros de Sintra, que, perante Sigurd e os seus homens, escolheram a morte em detrimento da conversão. O general almorávida não concedeu semelhante benefício aos cavaleiros e às elites de Santarém, que, à exceção de um pequeno grupo de guerreiros que pediram misericórdia e “não poderiam trazer danos para o Deus único”, acabaram por ser executados. Mesmo assim, apenas o fizeram depois de “o seu confidente” (um padre? um bispo?) assegurar a submissão. Na carta dirigida a Ali b. Yusuf, o general faz ainda questão de mencionar a fertilidade e a beleza dos campos que circundavam Santarém, uma questão que parece fulcral e que talvez tenha determinado a atuação almorávida. Eliminadas as cúpulas com o objetivo de estabilizar o poder, convinha obter a submissão e a satisfação de alguns interesses da restante população, para que continuasse a extrair a riqueza destes campos, sem que a volatilidade de uma nova conjuntura a levasse a transferir o seu apoio para o lado cristão. Os muçulmanos pareciam procurar tirar partido do mais forte recurso do bloco cristão na disputa pela fronteira: seres humanos para fixar à terra, o que exigia a garantia da sua lealdade. Pelos indícios revelados nas fontes, dir-se-ia que o ambiente social de Santarém era muito diferente do vivido em Lisboa. Desde logo, nada aponta para que se tenha rebelado em 1109, por morte de Afonso VI, e, em 1147, é possível que se tenha associado a D. Afonso Henriques no momento da conquista.29 Podemos questionar se esta aparente preferência se deveria aos benefícios concedidos por meio do foral de 1095, outorgado ainda antes do recebido por Guimarães. Daqui decorre outra observação: para Santarém se manter fiel ao poder almorávida entre 1111 e 1147, por certo, os interesses da população foram minimamente assegurados. Nestes, teria de incluir-se a liberdade de culto, embora, com elevado grau de probabilidade, calibrada segundo regras precisas. Uma plataforma de análise possível será a da sobrevivência documental até aos nossos dias. Se, da Coimbra muçulmana, que os almorávidas nunca governaram,

29 Lourinho 2010, 47-48. 238 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

nos chegou um razoável volume de documentos produzidos em instituições cristãs, fazendo prova de uma prática, o mesmo não podemos dizer de Santarém nem tão-pouco de Lisboa. Permitiria o poder almorávida, sobretudo em cidades de fronteira, habituadas às oscilações de humor entre o domínio muçulmano e cristão, a existência de mosteiros a funcionar em pleno, ambientes de escrita e potenciais centros de contestação ou instabilidade, pela sua capacidade de enquadrar as comunidades de acordo com um sentimento de pertença? Poderá a informação sobre a destruição de um templo dedicado aos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia, situado na cidade de Lisboa,30 ser compreendida num tal contexto? Ao que tudo indica, o poder almorávida terá, no entanto, autorizado algum clero secular, o que permitia manter o culto religioso e, assim, a estabilidade social e alguma lealdade da parte das populações cristãs. Podemos observar a tão debatida notícia de um bispo em Lisboa por esta perspetiva.31 Mas a ausência de documentação e de mosteiros a funcionar em pleno, mais do que uma perseguição religiosa pura e simples, corresponderia a uma forma de controlo social, já que ao poder almorávida não repugnava, por exemplo, a incorporação de mercenários cristãos nos seus exércitos. O al-Hulal al-Mawsiyya refere que o emir Ali b. Yusuf foi o primeiro a fazê-lo no Magrebe, equipando estes contingentes militares com armas e cavalos,32 o que constituía um risco óbvio se não ficasse garantida a lealdade cristã. Algumas personagens cristãs alcançaram inclusive grande preeminência no seio almorávida. Foi o caso do nobre catalão conhecido como Reverter, visconde de Barcelona, que, durante a guerra que opôs almorávidas e almóadas no Magrebe, entre 1139 e 1147, ascendeu ao cargo de general dos exércitos do emir Tashfin b. Ali. A sua morte, em finais de 1144, poucos meses antes de o próprio emir ter também desaparecido na guerra, representou um duro golpe para as aspirações da tribo lamtuna quanto à manutenção do poder em Marraquexe.33 Todos estes indícios nos pressionam no sentido de repensarmos a tão propalada destruição almorávida, repetida até ao infinito pela historiografia.

30 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 79. 31 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 139. Garcez Ventura 2008, 40, 42 e 47; Pradalié 1975, 19-20. 32 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 100. 33 Lourinho 2010, 84-85. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 239

Uma vez mais, podemos formular a hipótese de uma estratégia seletiva para dar solução aos problemas propostos por determinada conjuntura e não tanto de uma política para atacar indiscriminadamente os adversários devido a diferenças religiosas. O exílio dos reis de taifas e as deportações de moçárabes operadas em 1106, talvez devido à instabilidade suscitada pela morte de Yusuf b. Tashfin, podem ter constituído soluções a inscrever-se nesta lógica. De um ponto de vista almóada, de resto, provavelmente o caminho teria passado pela eliminação física, solução a que o califado fundado por Abd al-Mumin recorreu com frequência e em números massivos.34 Com o desenrolar da cronologia, iremos assistir a mais exemplos que poderão reforçar a possibilidade de o poder almorávida ter procurado soluções pontuais, ainda que drásticas, para problemas concretos. Quanto a D. Henrique, se já deveria sentir a instabilidade na faixa de território entre cristãos e muçulmanos antes da conquista de Santarém, teria de acelerar o passo no plano de defesa, sobretudo de Coimbra, agora mais exposta aos ataques almorávidas. A Vita Martini Sauriensis, escrita depois do aprisionamento de São Martinho de Soure pelos almorávidas de Santarém, ou seja, após 1144, mas reportando a uma época claramente anterior em algumas décadas, fala de atalaias muçulmanas nos campos junto a Pombal, razão de as terras adjacentes não serem cultivadas,35 o que mostra que a disputa pelo território se faria quase às portas de Coimbra. É possível que estes pontos de vigia estivessem já ativos à época do conde D. Henrique, sendo de admitir ainda a hipótese de só terem desaparecido depois da construção do Castelo de Leiria, na década de 1130, uma vez que Pombal fica a norte e não faz sentido que se mantivessem atalaias muçulmanas entre duas fortalezas cristãs. Seja como for, logo em junho de 1111, Soure, na margem sul do Mondego, recebeu um foral em termos semelhantes aos do concedido a Coimbra, com os cavaleiros a saírem de novo privilegiados. Marcaram presença várias personagens de Coimbra, Montemor e Soure.36 Além de alguma reorganização nas regiões mais expostas ao perigo almorávida, procurada nos forais, e da conquista muçulmana de Santarém, 1111

34 Lourinho 2010, 91-92. 35 Vita Martini Sauriensis [1144-1149?] 1998, 227. 36 Azevedo 1958, 33-34. 240 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

assistiria a um evento fundamental para a geopolítica peninsular: a coroação de Afonso Raimundes como rei da Galiza,37 território que mantinha a dignidade real obtida na sequência das partilhas de Fernando Magno. As pretensões do bispo de Compostela e dos Travas estavam, de momento, asseguradas, embora persistisse o perigo de D. Urraca gerar um herdeiro. D. Henrique teria, pois, de manter-se próximo do casal real para conservar as suas aspirações acesas. Ao mesmo tempo, o conde procurava fortalecer as defesas de Viseu. Depois de Sátão, a nordeste daquela cidade, chegou a vez do Castelo de Tavares, a sudeste, já na região de Mangualde. Em fevereiro de 1112, recebeu foral, mas agora direcionado para o povoamento.38 O documento refere que a praça se encontrava “entre mouros e cristãos”, mas, apesar dos indícios que apontam para uma proximidade com D. Urraca e Afonso de Aragão, é provável que, novamente, a fronteira com o reino de Leão também preocupasse o conde. Mas D. Henrique morreu em abril, nos seus domínios de Astorga, interrompendo os planos para dotar a fronteira de mecanismos jurídicos de defesa e fixação de gentes. Um dos últimos atos jurídicos por si protagonizados foi a carta de couto atribuída à Sé de Braga, com indicação dos deveres fiscais para com o poder real.39 D. Teresa prosseguiria os esforços de D. Henrique até 1128, data em que desapareceu da cena política, com a derrota dos seus partidários em São Mamede. Entretanto, teve a oportunidade de assinar a paz com a irmã Urraca, em data desconhecida, mas de forma segura entre 1112 e 1126,40 esta última a da morte da rainha leonesa, tréguas que com mais probabilidade se reportarão aos primeiros anos do intervalo, dados os conflitos que se desenrolaram entre as duas filhas de Afonso VI, com um extremar de posições em 1116.

37 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 170-172. 38 Azevedo 1958, 35-36. 39 Azevedo 1958, 40-41. 40 Azevedo 1958, 42. 3. A FRONTEIRA DE COIMBRA

D. Teresa iria procurar uma estratégia de maior equilíbrio político em Coimbra, talvez não logo no início da sua governação, mas seguramente ao longo dos anos, sem perder de vista as questões da defesa e do povoamento. Um documento de cronologia imprecisa, mas atribuível a um período entre 1113 e 1120, datado de 25 de janeiro, mostra que, numa primeira fase, parece certo que se esforçou por continuar a estratégia do conde D. Henrique. Com o foral atribuído aos habitantes de Ferreira das Aves, na região de Sátão, indicia que talvez procurasse uma ação complementar face ao foral de 1111, concedido à última localidade. As disposições para Ferreira das Aves eram semelhantes às de que beneficiava Tavares, na região de Mangualde, ou seja, incidiam sobre a fixação de gentes e a produção de riqueza, mas revelavam um âmbito mais alargado, regulando mais aspetos da vida quotidiana, como, por exemplo, os impostos a pagar pelos bens de produção agrícola, as penas aplicadas a crimes cometidos ou as regras de atribuição de terras abandonadas a potenciais povoadores.1

1 Azevedo 1958, 48-50. 242 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Estratégias de D. Henrique em marcha

Um ano depois da morte de D. Henrique, em abril de 1113, D. Teresa emitiu outro documento que pode também inscrever-se na estratégia do conde, privilegiando as elites associadas à reforma gregoriana em Coimbra. Na companhia do infante Afonso e com a presença do bispo, D. Gonçalo, e de Fernando Soleimás, figura da comunidade moçárabe, fez uma doação a Anaia Vestrariz, pai do futuro bispo D. João Anaia e figura próxima do falecido conde, que recebeu os castelos de Góis e Bordeiro pelos limites antigos. Posicionadas no eixo Coimbra-Viseu, entre Soure e Seia, as fortificações localizavam-se nas proximidades do rio Ceira.2 A comunidade moçárabe, no entanto, não perdia totalmente a ligação ao momento, com a presença de Fernando Soleimás. Mas, tendo em conta a documentação sobrevivente até aos nossos dias, teríamos de esperar por 1126 – e pela superação de muitos episódios – para Randulfo Soleimás, líder dos moçárabes,3 também receber de D. Teresa uma doação de relevância, consubstanciada em dois terços das herdades de Souto Seco e Pombeiro, em Arganil, não longe de Góis, que incluíam pastagens, terrenos cultivados e por cultivar, montes, entradas e saídas, contra as obrigações de construção e plantio.4 Ainda assim, esta doação traduz funções de fixação à terra e não propriamente de defesa, como a que beneficiou Anaia Vestrariz. Enquanto em Coimbra tinham lugar os conflitos entre partidários da reforma gregoriana e a comunidade moçárabe, em outubro de 1113, desaparecia em Sevilha o general Sir b. Abu Bakr, conquistador do al-Andalus. Durante cerca de um ano, sucedeu-lhe um filho. Mas depois, a partir de 1115, Sevilha ficou a cargo de um neto, Abu Muhammad Abd Allah b. Muhammad b. Fatima, nascido da sua filha Fatima,5 que vinha do governo de Ceuta e iria dar novo fôlego à guerra de fronteira no Gharb.6 Não obstante, este ano de 1115 seria desfavorável para o poder almorávida, que sofreu baixas de vulto no combate aos cristãos. Em março,

2 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 564-565. 3 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 46-48. 4 Azevedo 1958, 21. 5 Lagardère 1989a, 173. 6 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 134-135 e 146. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 243 desapareceu Mazdali, o governador de Granada e Córdova, que tão lealmente havia servido o emir Yusuf b. Tashfin. Em junho, morreu um dos filhos de Mazdali, que o substituíra em Córdova. Já em novembro, caiu no campo de batalha o senhor de Saragoça. O poder lamtuna perdia, assim, três figuras de destaque.7 Enquanto isso, no ano seguinte, emergem novamente da documentação as operações cristãs de apropriação do território. Eusébio, abade do Mosteiro do Lorvão, vendeu a Soeiro Tedones uma casa obtida por presúria, situada no lugar de São Pedro. A propriedade, diz o diploma, confinava a ocidente com uma casa de Fernando Soleimás.8 A moeda utilizada neste contrato de compra e venda foi o morabitino dos almorávidas. Considerando que o Lorvão era a instituição de enquadramento da comunidade moçárabe, os indícios sugerem que este grupo social tenha sido beneficiado, após a conquista da cidade, em 1064, com propriedades detidas por muçulmanos na zona onde iria instalar-se a Colegiada de São Pedro. De resto, logo em 1064, Fernando Magno doou ao Mosteiro do Lorvão a Igreja de São Pedro de Coimbra, que constituía, assim, uma zona de aglutinação moçárabe desde a recuperação definitiva da cidade.9 Os anos de 1114 e 1115 desenrolaram-se pródigos em transações entre particulares, com bens imóveis da região de Coimbra a mudar de mãos, transferências patentes no Livro Preto da Sé de Coimbra10 e nos fundos do Mosteiro do Lorvão,11 do Mosteiro de São Jorge12 e da Colegiada de São Salvador.13 Através de um documento datado de junho de 1116, com confirmação régia já ao tempo de Afonso II, tomamos conhecimento de uma informação crucial sobre uma medida de D. Teresa neste lapso temporal. Integrando o fundo do Mosteiro de São Paulo de Almaziva, o diploma refere-se à doação de uma herdade no lugar de Lordemão, junto à referida instituição, a Gonçalo Alvane (ou seja, mestre pedreiro), pelos bons serviços prestados na construção das

7 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 142 e 144-145. 8 ANTT, Mosteiro de Santa Maria do Lorvão. Antiga Coleção Especial. Particulares. Maço 2, no. 17. 9 Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis [1116-1117] 2008, 2:546-547. 10 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 72-73, 164-165, 453-454, 561, 568-569, 599-600, 648-650, 842-843, 847-849 e 889-890. 11 Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis [1116-1117] 2008, 2:574, 574-575 e 575. 12 ANTT, Mosteiro de São Jorge de Coimbra. Maço 1, no. 5. 13 ANTT, Colegiada de São Salvador de Coimbra. Maço único (caixa 8), no. 1. 244 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

torres da Porta do Sol, em Coimbra.14 Considerando que a doação ocorreu no verão de 1116 e que uma obra desta envergadura levaria algum tempo a ser terminada, podemos concluir que D. Teresa terá sentido a necessidade de reforçar as defesas de Coimbra por volta de 1115 ou talvez até antes. As razões podem ser variadas, mas, além da conjuntura da região, ainda em ebulição devido à questão moçárabe, não é possível ignorar o perigo almorávida, reanimado em Sevilha com um novo governador após a morte de Sir b. Abu Bakr e a destituição do seu filho. A aceitarmos esta explicação, os cálculos de D. Teresa não estariam desajustados, já que logo em 1116 os castelos da defesa de Coimbra sofreriam um ataque devastador pela mão de Ibn Fatima, nas palavras da hagiografia de São Martinho de Soure, “um dos mais execráveis chefes dos muçulmanos”,15 e que, em 1117, a cidade seria obrigada a resistir a um massivo cerco liderado pelo próprio emir Ali b. Yusuf. A perceção de instabilidade interna poderá explicar outro ato jurídico de D. Teresa, já em maio de 1117, poucas semanas antes do grande ataque almorávida, pelo qual doou propriedades em Azarede ao cavaleiro Soeiro Guterres, na influente região de Montemor, que anteriormente pertenciam a Munio Barroso, personagem pouco grata em Coimbra e referida no foral de 1111. Argumentava D. Teresa que Munio fugira com o gado que lhe pertencia e que, como compensação, apreendia a sua herdade, agora transferida para alguém da elite local. O gesto parece apaziguador e destinado a acalmar os ânimos na região.16

Mais instabilidade na cidade

Afinemos, então, a cronologia de 1116 para Coimbra, de modo a compreendermos um pouco melhor os problemas internos que antecederam o grande ataque almorávida de 1117. Alguns documentos transmitem bem os conflitos entre a comunidade moçárabe e os reformadores gregorianos.

14 ANTT, Mosteiro de São Paulo de Almaziva. Maço 1, no. 25. 15 Vita Martini Sauriensis [1144-1149?] 1998, 227. 16 Azevedo 1958, 59-60. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 245

A 19 de março, podemos assistir a um aparente recuo de D. Gonçalo face à comunidade moçárabe, com a restauração do Mosteiro do Lorvão. Mas o bispo dava com uma mão e moderava com a outra. Para abade, nomeou D. Eusébio, que já o tinha sido ao tempo de Sisnando Davides. Restituiu-lhe os bens do mosteiro, não deixando de reservar para a sé o poder de ratificar os nomes dos abades eleitos. Randulfo Soleimás e Fernando Soleimás, da comunidade moçárabe e provavelmente irmãos, confirmaram o documento. Mas Anaia Vestrariz, apoiante do falecido conde D. Henrique, também esteve presente nesta solenidade.17 Os moçárabes pareciam compreender bem o significado deste aparente emendar de mão face ao Mosteiro do Lorvão. Provavelmente no mesmo dia da restauração do Lorvão, quando D. Gonçalo transformou o seu testamento num acontecimento público que se pretendia de algum equilíbrio, pois congregava as elites eclesiásticas e laicas de Coimbra, os moçárabes não compareceram. Como o bispo havia demonstrado alguma boa vontade ao restaurar o Mosteiro do Lorvão, ainda que em moldes limitados, o mais provável é que tenham sido os próprios moçárabes a decidir a sua ausência. Pelo contrário, Anaia Vestrariz, do partido gregoriano, encontrava-se entre os presentes. Mais do que o conteúdo do documento, que, naturalmente, decide diversas doações a favor da diocese, são os pormenores a transmitir a importância do ato. Por exemplo, o documento foi datado pelo ano de Cristo e não pela era hispânica. A confirmar a proposta de que o Lorvão terá sido restaurado em circunstâncias limitadas, assumindo sobretudo a forma de um ato político para tentar apaziguar uma certa camada da sociedade, surge um documento inserido no Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis, pelo qual este mosteiro estabelecia uma lista das usurpações e dos abusos cometidos pelos vários bispos de Coimbra sobre propriedades daquela instituição. Diz o documento que o bispo D. Gonçalo, ao restaurar o mosteiro, não devolveu as herdades que a instituição possuía junto a Coimbra, tendo ainda destruído algumas igrejas e obrigado os homens de Pampilhosa, que eram do Lorvão, a povoar a Vacariça.18

17 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 46 e 48-49. 18 Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis [1116-1117] 2008, 2:552-553. 246 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Em abril de 1116, Randulfo Soleimás esteve, no entanto, presente na ratificação de um negócio jurídico que aponta para a considerável riqueza da comunidade moçárabe à época. Um grupo de proprietários vendeu uma herdade no território de Coimbra, a sul do Mondego, junto ao Mosteiro de São Jorge, e a quarta parte de outra propriedade, com fontes, águas, pastos, pomares e hortas. A onomástica de alguns dos compradores remete, à partida, para um universo moçárabe: além de Egas Pais e Salvador Domingues, surgem João Fadal, Pedro Fadal e João Arraquiz.19 Em junho, voltamos a ter notícias do papa Pascoal II, que emitiu uma bula a exortar os habitantes de Coimbra para que fossem exemplares no comportamento, amando a Deus, honrando a Igreja, socorrendo os pobres, promovendo o culto e mantendo-se fiéis ao bispo D. Gonçalo.20 A necessidade de desdobrar-se ao longo dos anos em apelos desta natureza só faz sentido à luz da instabilidade na cidade e, apesar dos esforços da diocese, da persistência do rito moçárabe. Mas a riqueza fundiária e a manutenção do rito não são necessariamente sinónimos de voz política, e notam-se sinais de um decréscimo a este nível. A ausência de Randulfo Soleimás da cerimónia a envolver o testamento de D. Gonçalo grita no silêncio e adquire maior relevância quando, em outubro desse ano, o líder moçárabe entendeu lavrar as suas últimas vontades em conjunto com a filha Maior. Datado pela era hispânica, o documento, que Leontina Ventura considera um primeiro testamento,21 instituía o Mosteiro do Lorvão como o destinatário de toda a sua riqueza, concretamente, herdades, casas, vinhas, terras cultivadas e por cultivar, moinhos, vilas e bens móveis. O ato revestia-se de um evidente caráter político. Em certo sentido, parecia querer recuperar para a instituição monástica o poder de outrora, mas a evolução dos acontecimentos provaria tratar-se de uma quimera, até porque, associado à diocese de Coimbra em maior ou menor grau, o Lorvão estava definitivamente comprometido e nunca mais poderia recuperar o estatuto de

19 ANTT, Mosteiro de São Jorge de Coimbra. Maço 1, no. 6. 20 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 819-820. 21 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 46. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 247 bastião moçárabe. Aliás, Maria do Rosário Morujão explica que, apesar de ter readquirido alguma autonomia e parte dos seus bens, o mosteiro continuou debaixo da jurisdição episcopal e que o Cabido da Sé de Coimbra chegou a receber uma fatia do património que tinha sido do cenóbio.22 Talvez consciente desta situação frágil para os interesses moçárabes e também da necessidade de estabelecer equilíbrios na sociedade de Coimbra, mais tarde, D. Afonso Henriques encontrou espaço para a fundação de outro mosteiro, o de Santa Cruz, que enquadraria a comunidade, não nos moldes do Lorvão dos séculos X ou XI, mas mitigando um certo sentimento de injustiça, instituição que seria, de resto, recetora de doações do próprio Randulfo Soleimás. Ao contrário do pai, mas como a mãe ao longo da sua experiência governativa, D. Afonso Henriques parece ter entendido a necessidade de estabilidade social, apesar do inexorável processo de fusão dos moçárabes no todo gregoriano. Talvez não por acaso, os descendentes de Anaia Vestrariz e de Randulfo Soleimás tenham acabado por unir-se em matrimónio: Martim Anaia, irmão do futuro bispo D. João Anaia e cavaleiro de D. Afonso Henriques, como explica Leontina Ventura na introdução ao Livro Santo de Santa Cruz, casou com Toda Randulfes; e Pedro Randulfes contraiu casamento com Ermesinda Martins Anaia, filha de Martim Anaia.23 Para os Anaias, as vastas propriedades dos Randulfes seriam certamente um atrativo. Já da parte dos últimos, a necessidade de casarem fora da comunidade, com destacados elementos da elite gregoriana, mostra algum enfraquecimento político e prova justamente que a fusão se encontrava em curso. Com efeito, em poucas gerações, a questão moçárabe parece ter-se resolvido por si só, por via da diluição. O aparecimento, na documentação, de personagens com o epíteto “mozarave” a partir de meados do século XII só vem reforçar o argumento. O Livro de D. João Teotónio é rico em testemunhos destas resistências identitárias: Pedro Mozarave, Martim Mozarave e Maria Mozarava, por exemplo, surgem por diversas vezes neste códice entre 1162 e

22 Morujão 2010, 49. 23 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 46-51. 248 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

1167,24 encontrando-se também alguns exemplos no Livro Preto.25 Em fim de ciclo, parece emergir uma necessidade mais forte de afirmar uma identidade em processo de desaparecimento. Aliás, o fenómeno pode ter sido idêntico na cidade de Lisboa pós-conquista cristã.26 O designativo “moçárabe” é sobretudo sublinhado quando o grupo está enfraquecido e em fusão no todo cristão.

Maurício Burdino, conflitos entre Braga e Compostela e investidura em Roma

Nas vésperas dos ataques muçulmanos ao território de Coimbra, o condado debatia-se com mais um foco de instabilidade, que envolvia a Galiza e que acabou por assumir repercussões extraterritoriais. Bispo de Coimbra entre 1099 e 1108, Maurício Burdino, prelado de origem franca enviado à Península Ibérica para intervir no processo da reforma gregoriana, tornou-se arcebispo de Braga em 1109, no regresso de uma viagem de quatro anos à Terra Santa. Ao ascender à mais elevada dignidade eclesiástica do condado, começariam os seus problemas com Diego Gelmírez e Bernardo de Toledo. A instâncias de Afonso VI, e apoiado por Cluny, o papa Urbano II restaurou a arquidiocese de Toledo em 1088, três anos após a conquista cristã. Bernardo, o novo arcebispo, defendia que Coimbra, Viseu e Braga se encontravam sob a jurisdição de Mérida. Como esta cidade integrava o bloco muçulmano, as referidas dioceses deveriam reverter para Toledo. Por sua vez, Diego Gelmírez aspirava a tornar-se arcebispo, a partir do argumento de que, em todos os lugares da Terra em que descansava o corpo de um apóstolo, existia o papado, um patriarcado ou, pelo menos, uma arquidiocese, parecendo-lhe ultrajoso que tal não acontecesse em Compostela, uma vez que Santiago tinha sido, segundo dizia, parente de Cristo e um dos seus mais próximos e prediletos discípulos.27

24 ANTT, Livro de D. João Teotónio, fl. 78 (imagens 240 e 241, Digitarq), fl. 81 (245 e 246), fl. 108v-109 (300 e 301) e fl. 149-149v (383 e 384). 25 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 111-112. 26 Fialho Silva et Lourinho 2015, 167-168. 27 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 300-301. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 249

Na prática, uma arquidiocese só poderia surgir em prejuízo de Maurício, quer se concretizasse a criação de uma nova província na Galiza, quer se verificasse a perda do título de Braga e sua atribuição a Compostela, ou ainda a transferência da dignidade de uma antiga metrópole hispânica não reconquistada, como Mérida. O papa escolheria a última solução, tal como dá conta uma carta dirigida a Diego Gelmírez com data de 28 de fevereiro de 1120: “Encomendamos-te a nossa representação sobre as províncias de Mérida e de Braga e honramos a Igreja de Santiago com a glória da dignidade metropolitana.”28 Até 1120, Gelmírez empreendeu diversas tentativas para minar a autoridade de Braga com a ajuda dos seus colaboradores, entre os quais Hugo, outro prelado de origem franca, nomeado bispo do Porto por sua pressão.29 A disputa entre Maurício e Bernardo de Toledo pela jurisdição de Leão, diocese criada com a Reconquista, veio dar mais argumentos a Gelmírez para atacar o arcebispo de Braga. Embora não se intitulando bispo de Leão, Maurício chegou a assinar documentos relacionados com os destinos da diocese.30 O conflito culminou com a suspensão de Maurício pelo arcebispo de Toledo, que instou todos os clérigos e laicos dependentes da metrópole de Braga a desobedecerem-lhe, deixando espaço a Gelmírez para se imiscuir nos assuntos da arquidiocese portucalense. Em simultâneo, o papa manteve a suspensão de Maurício e a supressão da obediência no seu território.31 Em 1114, estavam, assim, reunidos os argumentos que levariam Maurício Burdino a Roma para procurar explicar as suas razões. A defesa provou ser frutífera, pois o papa ordenou a Coimbra que se mantivesse na obediência de Braga. O conflito estendia-se a sul, com o bispo do Porto, aliado de Gelmírez, a tentar obter influência sobre a ainda por restaurar diocese de Viseu, que, no entanto, se encontrava sob administração de Coimbra. Pelas resoluções do Sínodo de Compostela, em novembro de 1114, o bispo de Coimbra, D. Gonçalo, foi convidado a fazer as pazes com Gelmírez e com os prelados de Tui,

28 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 335. 29 David 1947, 457-459. 30 David 1947, 459. 31 David 1947, 462. 250 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Mondonhedo, Lugo, Ourense e Porto.32 Ficou ainda firmado um acordo entre os bispos de Coimbra e do Porto a fixar que a fronteira entre as duas dioceses se faria pelo rio Douro, a menos que Coimbra cedesse voluntariamente território ao Porto.33 Ainda assim, D. Hugo não se sentiria limitado pelos termos negociados e, entre 1115 e 1116, conseguiu obter do papa a administração da diocese de Lamego, em prejuízo de D. Gonçalo. Mas o bispo de Coimbra foi capaz de provar em Roma que, ao contrário do que defendia o prelado do Porto, a sua diocese não se tinha expandido com a Reconquista, mas perdido territórios a partir da morte de Afonso VI,34 que ocorreu em 1109. Esta informação só vem reforçar os dados avançados por Ibn al-Khatib via al-Maqqari, sobre a campanha de jihad desferida, em 1109, por Sir b. Abu Bakr em simultâneo com os ataques na região de Toledo, liderados pelo emir Ali b. Yusuf. O próprio cardeal Boso de Santa Anastácia, legado papal, no contexto do Concílio de Burgos, em fevereiro de 1117, reconheceu que as incursões muçulmanas subsequentes à morte de Afonso VI haviam causado a devastação de castelos e vilas.35 Outro indício que confirma a operação militar almorávida é indicado pela hagiografia de São Martinho de Soure. Segundo explica, a reedificação do Castelo de Soure, conquistado por Fernando Magno ao mesmo tempo que a cidade de Coimbra, em 1064, foi interrompida por morte do rei Afonso VI, pois “a fúria execranda dos mouros começou novamente a conspirar contra a fé dos cristãos”.36 Entretanto, os conflitos pelas jurisdições mantinham-se ao rubro. Em 1115, Gelmírez enviou o bispo do Porto a Roma, para convencer o papa sobre a elevação de Compostela a arquidiocese, empresa que Hugo não conseguiu levar a bom termo. No entanto, aproveitou para obter privilégios para o Porto, entre os quais o alargamento da diocese à custa de Braga e de Coimbra. Ainda no verão de 1116, Maurício empreendeu nova viagem com destino a Roma. Em causa, estava a perda de territórios de Braga para o Porto, mas também levava na bagagem a queixa da perda da jurisdição sobre as dioceses do Porto

32 Erdmann 1935, 79-80. 33 Erdmann 1935, 80-81. 34 Erdmann 1927, 169-170. 35 Erdmann 1927, 171-172. 36 Vita Martini Sauriensis [1144-1149?] 1998, 227. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 251 e de Lamego.37 No entanto, o Concílio de Burgos, em fevereiro de 1117, iria dar um passo atrás, ao reconhecer que a diocese de Coimbra, longe de expandir-se, tinha sido reduzida e devastada na fronteira sul. Daí o concílio decidir pela conservação da administração de Lamego nas mãos de Coimbra.38 A presença de Maurício na Santa Sé acabou por levá-lo a interpretar mais um episódio de luta pelo poder e a tornar-se antipapa, com o nome de Gregório VIII. A história conta-se rapidamente. Em 1111, Pascoal II propôs que a Igreja renunciasse a todos os bens, direitos e rendimentos detidos em território germânico, desde que o imperador Henrique V se abstivesse de intervir na eleição dos bispos. Contudo, a proposta não colheu a melhor das aceitações: durante a coroação do imperador em Roma, o papa foi preso e, dois meses mais tarde, obrigado a reconhecer-lhe o direito de investir os prelados, desde que a eleição fosse livremente realizada, sem violência nem coação – formulação subjetiva –, algo que indignou os partidários da reforma gregoriana, que, no Concílio de Latrão, anularam os termos acordados com o imperador. Em 1116, Pascoal II estava em conflito com a maioria das personagens pertencentes às elites de Roma. No início do ano seguinte, o imperador chegou à Cidade Eterna, e o arcebispo de Braga, que aí se encontrava, foi designado pelo papa para o cargo de intermediário nas conversações entre ambas as partes. Com a morte de Pascoal II em janeiro de 1118, a escolha do conclave, Gelásio II, não agradou ao imperador, que, pouco mais de um mês depois, fez eleger Maurício enquanto antipapa. Perseguido pelos apoiantes do imperador, Gelásio teve de refugiar-se em Cluny no segundo semestre de 1118, onde veio a falecer, em janeiro do ano seguinte. Os cardeais que o acompanharam elegeram para o seu lugar o arcebispo Guy de Vienne, irmão do falecido conde D. Raimundo, que tomou o nome de Calisto II. Entretanto, em Roma, Gregório VIII controlava a Basílica de São Pedro e o Castel Sant’Angelo, beneficiando da proteção dos apoiantes do imperador Henrique V.39 Mas, em breve, perderia o amparo, já que o imperador tinha laços familiares com o novo papa: Gregório VIII foi

37 David 1947, 473. 38 Erdmann 1927, 171-172. 39 David 1947, 480-497. 252 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

obrigado a fugir, perseguido pelas forças de Calisto II, que o capturaram em 1121 e o obrigaram a viver em reclusão em diversos mosteiros até ao fim dos seus dias. Cerca de um ano depois de ter sido investido, o papa Calisto elevou Compostela a arquidiocese, por transferência do título pertencente a Mérida. Mais de 20 anos ao lado de D. Raimundo, boa parte dos quais a defender os interesses do filho deste – o futuro imperador Afonso VII – tinham finalmente rendido frutos a Gelmírez. A Historia de Rebus Hispaniae, redigida no século XIII por Rodrigo Ximenes de Rada, arcebispo de Toledo, rival de Compostela, mostrou-se muito interessada em denegrir a memória de Maurício Burdino, que designa com desdém por “homem astuto”. Acusou-o mesmo de oferecer dinheiro ao papa Pascoal II para obter a dignidade de pontífice de Toledo em prejuízo do arcebispo Bernardo. Querendo punir a sua malícia, diz a fonte, o papa terá recebido o dinheiro sem atender o pedido. Nesse tempo, continua, a Igreja sofria de um problema grave: o imperador capturou o papa Pascoal II e os seus cardeais, e o mesmo Burdino, atingido pela ganância, colocou-se ao serviço do imperador cismático. E, quando outro nome foi escolhido para a cadeira de São Pedro – Gelásio –, o imperador ordenou, atendendo à astúcia de Burdino, que este fosse escolhido para o mais alto cargo da dignidade apostólica.40 Pierre David tenta repor algum equilíbrio analítico face a Burdino, destacando-lhe qualidades e argumentando que foi vítima de preconceito e de uma campanha para denegrir a sua imagem.41 Algures entre um extremar de posições, estará o justo ponto de observação. O afastamento do arcebispo de Braga e os conflitos com as dioceses da Hispânia, além de terem agravado a instabilidade entre cristãos, podem ter reforçado a perceção do bloco muçulmano face à debilidade no território. Os ataques almorávidas de 1116 e 1117 encontravam, assim, um ambiente favorável, não só internamente, na cidade de Coimbra, como também nos conflitos regionais que acabaram por envolvê-la, até porque, durante esta conjuntura, o bispo D. Gonçalo estava ao lado do antipapa Gregório VIII, que,

40 Roderici Ximenii de Rada [1243?] 1987, 210-212. 41 David 1947, 441-501. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 253 em bula de março de 1118, a partir de Roma, lhe reiterou amizade e prometeu auxílio.42 Apesar da aproximação aos Travas e à política da Galiza, D. Teresa mantinha o interesse no fortalecimento da diocese de Braga. Em abril de 1115, emitiu carta de couto da Igreja de São Mamede de Riba-Tua, Alijó, a favor da última43 e, em junho, doou-lhe dois casais em São Miguel de Paredes, Amares.44 Mas não existem evidências de que apoiasse Maurício na sua aventura como antipapa.

Disputas pela sucessão ao trono cristão

Outro conflito regional teria impacto na conjuntura que propiciou a deslocação do emir de Marraquexe, Ali b. Yusuf, à fronteira do Gharb al-Andalus em 1117: a disputa associada à sucessão de Afonso VI, que se mantinha viva desde 1109. A guerra entre os apoiantes de D. Urraca e do filho, Afonso Raimundes, devastou a Galiza. A Historia Compostelana reflete esta realidade, em que as forças de Pedro Froilaz de Trava atacavam os interesses do bispo Diego Gelmírez.45 Neste tabuleiro de influências, D. Henrique procurou agradar a uns e a outros, nunca se mantendo demasiado afastado do poder. Pelo menos de início, D. Teresa terá seguido a mesma estratégia, esforçando-se por firmar a paz com D. Urraca, mas a conjuntura iria evoluir e, frequentemente, as irmãs estariam em campos opostos. Os próprios Travas acabariam por fazer as pazes com o bispo de Compostela, jurando-lhe fidelidade, assim como à causa de Afonso Raimundes contra um eventual herdeiro produzido por D. Urraca e Afonso de Aragão.46 Prova desta nova fidelidade, a Historia de Rebus Hispaniae refere que o conde Pedro Froilaz criava o filho de D. Urraca e de D. Raimundo na Galiza.47 Após muitas desavenças e reconciliações entre Gelmírez e D. Urraca, a qual não reconhecia o próprio filho como rei da Galiza, a rainha acabou cercada

42 Erdmann 1927, 173-174. 43 Azevedo 1958, 54-55. 44 Azevedo 1958, 55-56. 45 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 262-263. 46 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 237-238. 47 Roderici Ximenii de Rada [1243?] 1987, 217-218. 254 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

em 1116, no Castelo de Sobroso, Pontevedra, região dominada por um apoiante do jovem monarca. Diz a Historia Compostelana que: “O conde Pedro, aio do rei, e a infanta Teresa, irmã da rainha e senhora de todo o Portugal, assediaram a rainha com um grande exército na fortaleza de Sobroso. Mas a rainha, depois de chamar o seu exército, escapou e regressou a Compostela.”48 D. Teresa parecia ainda patrocinar a instabilidade, com o apoio a conflitos espoletados por nobres que lhe eram afetos: é o caso de um Mendo Nunes, que se rebelou contra D. Urraca na região de Límia, mas que a rainha conseguiu controlar, de acordo com a Historia Compostelana.49 O envolvimento de D. Teresa nos assuntos da Galiza deveria, por certo, adensar a perceção de instabilidade entre os adversários muçulmanos.

48 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 261. 49 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 251. 4. GUERRA DE FRONTEIRA E GUERRA NAVAL

Face à instabilidade interna e aos diversos estratos de conflitos regionais, a transferir as prioridades de D. Teresa para norte, sem, no entanto, que a mãe de D. Afonso Henriques parecesse perder de vista as fragilidades de Coimbra, ordenando inclusive o reforço das suas defesas, a cidade deveria ser encarada pelo poder de Marraquexe como uma presa relativamente fácil.

Ataques almorávidas à região de Coimbra

Talvez assim se compreendam melhor as interceções de contextos que terão propiciado os ataques de 1116 a Santa Eulália e Miranda, sumariamente relatados pela Chronica Gothorum e, com alguma riqueza de detalhe, pela Vita Martini Sauriensis. Diz a primeira fonte que “os sarracenos capturaram o Castelo de Miranda, onde deixaram grande destruição e fizeram muitos cativos”. No início de julho, “capturaram o Castelo de Santa Eulália, a sul de Montemor. Diogo Galina e muitos outros foram aprisionados e enviados para o ultramar”.1 A Vita Martini Sauriensis, por sua vez, explica que uma “multidão de agarenos devastou com toda a crueldade os termos de Coimbra”. Num recontro junto a Miranda, terão sido mortos muitos nobres portucalenses, o mesmo destino conhecendo os defensores do Castelo de Santa Eulália, que, embora se encontrasse bem fortificado, acabou reduzido à ruína.

1 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 11. 256 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

De acordo com o relato, as atenções almorávidas voltaram-se, em seguida, para Soure, mas os habitantes, temendo a fúria muçulmana, incendiaram o castelo e fugiram para Coimbra. Esta fortificação, que permitia o controlo da via entre Coimbra e Montemor,2 terá permanecido abandonada até que, 61 anos após a reconquista da cidade, ou seja, em 1125, D. Teresa mandou reconstruir e povoar o lugar.3 Mas, como a mesma fonte refere que a fortaleza começou a ser reedificada logo depois da conquista, pela mão de Sisnando Davides, e que estas obras foram interrompidas por morte de Afonso VI, devido às incursões almorávidas – provavelmente, a campanha de jihad de 1109 –, podemos depreender que existiram dois períodos de construção. Daqui decorre outra conclusão: por um lado, os poderes cristãos mostraram-se sempre interessados em reforçar a segurança de Coimbra no seu flanco sul e, por outro, os muçulmanos empreenderam diversas tentativas para minar essas mesmas linhas defensivas. O Nazm al-Juman, de Ibn al-Qattan al-Marrakushi, coincide com as fontes cristãs e, para o ano de 509, que ocorreu entre 27 de maio de 1115 e o dia 15 do ou ghazua) perpetrado غزوة) mesmo mês, mas do ano seguinte, destaca um ataque por Abd Allah b. Fatima com as forças de Sevilha, sem, no entanto, esclarecer o exato destino.4 Mas, tendo em conta as informações nos textos cristãos, podemos concluir com alguma segurança que o governador e os seus exércitos se dirigiram à fronteira do Gharb al-Andalus. Significa que o contingente deve ter saído da cidade do Guadalquivir, pelo menos, na primeira metade de maio, mas provavelmente ainda antes, para atingir Santa Eulália em julho, depois de se abater sobre Miranda. Estes ataques apontam para uma destruição das linhas de defesa a sul do Mondego, quem sabe com vista à preparação do grande ataque a Coimbra, já que esta cidade nunca é mencionada como tendo sido alvo durante a campanha de 1116. Neste ano, coincidência ou não relativamente ao sucesso almorávida em terras cristãs, o emir Ali b. Yusuf escreveu a Ibn Fatima, incitando-o a manter a justiça na sua governação.5 A confiança no governador de

2 Barroca 1994, 31. 3 Vita Martini Sauriensis [1144-1149?] 1998, 227-229. 4 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1956, 76. 5 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 149-150. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 257

Sevilha parece evidente. Já em 1117, os almorávidas, chefiados pelo emir Ali b. Yusuf, chegaram aos muros de Coimbra e, segundo as fontes cristãs, eram mais numerosos do que as areias da praia. Mas por que razão seria necessário preparar o terreno destruindo as defesas de Coimbra, fazer um compasso de espera de um ano e só depois atacar a cidade, já com o emir à frente da campanha militar? A resposta pode residir numa pista contida na Chronica Gothorum, solidificada por informações nas fontes muçulmanas: “O rei dos sarracenos, Ali b. Yusuf, veio do ultramar e, com um grande exército, sitiou Coimbra, em conjunto com o exército que estava perto da costa, com um número [de soldados] incontável, como a área do mar.”6 A leitura desta passagem indica um ataque concertado entre forças terrestres, que seriam originárias de Sevilha e do Gharb al-Andalus, e tropas transportadas por via marítima, as últimas lideradas pelo próprio emir Ali b. Yusuf. E, como é evidente, o transporte marítimo supõe a existência de uma frota e a viagem pelo Atlântico, até ao estuário do rio Mondego. A tese adquire alguma solidez se investigarmos a conjuntura do Mediterrâneo ocidental. Sabemos, por exemplo, através de Ibn al-Kardabus, que os almorávidas passaram a partir (قائد البحر) a ter a figura de um “alcaide-do-mar” principal ou qaid al-bahr de 1115. Ancorado nas ilhas Baleares no momento do ataque conjunto de Pisa, Génova, Barcelona e Montpellier, em 1114, Muhammad b. Maymun, que veio a ser o alcaide-do-mar almorávida, conseguiu escapar ao bloqueio e pedir ajuda junto de Denia, que se encontrava sob o domínio dos emires de Marraquexe.7 Originário da mesma cidade, de onde partiam operações de corso no período taifal,8 Ibn Maymun representaria o espírito de uma época, elevando Almeria a partir dos anos de 1120 ao estatuto de urbe mais rica e industrializada do al-Andalus,9 animada que era por intensas trocas comerciais com o Norte de África e o Oriente. A campanha das Baleares encontra maior riqueza de informações no Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus, extenso poema que relata a conquista

6 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 11. 7 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 143-145. 8 Al-Himyari [1200-1399?] 1938, 95. 9 Al-Idrisi [1145-1166?] 1974, 189. 258 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

deste arquipélago, destacando a liderança pisana. O essencial da operação pode ser resumido em algumas linhas: procurando castigar as atividades corsárias do arquipélago, Pisa mandou construir navios e angariou aliados. A frota fez-se ao mar em 1113, passou pela Sardenha, onde permaneceu durante algum tempo, e chegou às Baleares em 1114. Os aliados conquistaram as ilhas e montaram cerco a Maiorca. O soberano tentou negociar com os atacantes cristãos, por temer as verdadeiras intenções de um auxílio almorávida, mas os seus esforços foram recusados e os governantes das Baleares não tiveram alternativa. Na época natalícia, um navio furou o bloqueio e levou uma carta a pedir ajuda e a oferecer submissão ao poder de Marraquexe, que aceitou o repto. Entretanto, o cerco deu frutos, e os cristãos entraram na cidade, que foi pilhada e fortemente destruída. O rei das Baleares tentou fugir, mas foi capturado. Espalhou-se então a notícia de que os almorávidas se afadigavam na construção de uma armada. Os cristãos, com os objetivos alcançados, levantaram ferro e, quando os almorávidas chegaram, encontraram as ilhas destruídas, mas vazias de atacantes e sem soberano. Analisemos agora com maior detalhe as informações no Liber Maiolichinus, que podem revestir-se de interesse para a compreensão do ataque a Coimbra de 1117. A fonte menciona a contratação de mercenários pelo rei das Baleares, que se via atacado pelos cristãos. Desde o colapso do califado de Córdova que o arquipélago se encontrava em situação de autonomia: numa primeira fase, integrou a taifa de Denia; com a queda desta cidade nas mãos dos almorávidas, tornou-se um reino independente.10 Berberes, árabes, persas, líbios e hispânicos são referidos como tendo integrado as forças que, numa primeira fase, auxiliaram o soberano das Baleares contra o conglomerado cristão. Independentemente do rigor quanto às origens, parece evidente o recrutamento de tropas entre várias nações, tropas estas que foram derrotadas pelos cristãos e que, talvez por isso, o poema tenha o cuidado de descrever. Mas, apesar do dinheiro despendido pelo rei das Baleares e de guerreiros de várias proveniências, os esforços não foram suficientes para eliminar o perigo representado pelos cristãos: exaltado pela fonte o valor do inimigo vencido, era sublinhada a dimensão da vitória.

10 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 127. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 259

Se pensarmos agora nas tropas almorávidas, que também foram chamadas em auxílio das Baleares, mas que já encontraram o arquipélago vazio, uma vez que os cristãos o abandonaram antes da sua chegada, o poema não teve necessidade de caracterizar a respetiva proveniência. No entanto, sabemos que a incorporação de mercenários era prática comum dos senhores de Marraquexe, pelo que esta operação não deve ter escapado à regra. O próprio Ibn al-Kardabus vai nesse sentido, ao referir que os guerreiros que se deslocaram às Baleares eram “almorávidas, combatentes da guerra santa e outras espécies de gentes”.11 Outra prova do recurso a mercenários pelos almorávidas é a queixa de Ibn Abdun, em passagem sobejamente conhecida, sobre as exações dos combatentes berberes e negros em Sevilha, no princípio do século XII.12 Se quisermos um exemplo anterior, vemos que já em Zallaqa os almorávidas incorporaram mercenários de várias tribos, tal como dá conta Ibn Abi Zar.13 Mais: em finais dos anos de 1050, quando Abu Bakr b. Umar assumiu o poder após a morte de Abd Allah b. Yasin, também se socorreu de berberes de tribos rivais, entre os quais os masmudas, futura base de apoio do movimento almóada. Quem no-lo diz é o mesmo Ibn Abi Zar.14 E, se provas ainda faltarem, são as próprias fontes cristãs a reforçar a tese. Por exemplo, a Chronica Adefonsi Imperatoris atesta que, em 1109, quando o emir Ali b. Yusuf procurou recuperar Toledo, reuniu “todas as forças almorávidas e todos os mercenários árabes disponíveis”.15 Segundo outra fonte itálica, a Gesta Triumphalia per Pisanos Facta, a cidade de Maiorca foi conquistada em março de 1115.16 Já de acordo com o Liber Maiolichinus, Ibn Maymun quebrou o bloqueio cristão para pedir ajuda em janeiro de 1115,17 e Ibn al-Kardabus refere que o auxílio almorávida, sob a forma de 300 navios, não demorou mais de um mês.18 É, contudo, pouco credível que tantos navios tenham sido construídos em tão reduzido prazo, quando, por exemplo, Ibn al-Athir refere que, para o ataque a Mahdia, em 1087, os

11 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 145. 12 Ibn Abdun [1050-1120?] 1948, 61-62. 13 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 150-151. 14 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 136. 15 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:96. 16 Gesta Triumphalia per Pisanos Facta [1115-1199?] 1725, 94. 17 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 177-178. 18 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 145. 260 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

pisanos e os genoveses demoraram quatro anos a produzir o mesmo número de embarcações.19 A fazer fé em Ibn al-Kardabus, os almorávidas ter-se-ão apoderado das Baleares, abandonadas pelos cristãos e já sem soberano, que caiu em mãos inimigas,20 ainda no primeiro trimestre de 1115. O Liber Maiolichinus sugere que os cristãos deixaram o arquipélago pela Páscoa de 1115, que se celebrou em abril,21 embora a Gesta Triumphalia per Pisanos Facta garanta que tal só ocorreu em 1116.22 Se o grande ataque a Coimbra de 1117 contou com forças transportadas por mar, ou seja, com uma frota que levou o próprio emir de Marraquexe até à fronteira do Gharb al-Andalus, é de admitir que se tratasse daquela que foi fabricada para resolver a questão das Baleares. Ibn al-Kardabus revela que os guerreiros angariados pelo emir dos muçulmanos auxiliaram na reconstrução de Maiorca,23 tarefa que, atendendo ao elevado nível de destruição descrito pelo Liber Maiolichinus, facilmente demoraria largos meses. A recuperação de muralhas, torres, habitações e infraestruturas em geral, fundamental para a consolidação almorávida no arquipélago, poderia justificar a retenção da frota até depois do verão de 1116. O mesmo se aplica, evidentemente, caso esteja correta a proposta da Gesta Triumphalia per Pisanos Facta, de o abandono das Baleares pelos cristãos só ter ocorrido em 1116, ainda que esta data pareça menos provável. Se dermos como plausível o recurso à frota acabada de construir para o ataque a Coimbra, talvez assim se explique o compasso de espera de um ano para a campanha face à destruição das defesas da cidade em 1116. De acordo com a hagiografia de São Martinho de Soure, em 1116, os ataques às estruturas defensivas de Coimbra começaram em Miranda, a sul do Mondego, para depois incidirem sobre Santa Eulália, acima do referido rio, junto a Montemor, atravessando de novo esta barreira natural e descendo para Soure, poucos quilómetros a ocidente da primeira fortaleza atacada, quase riscando um triângulo no território. Tal percurso só adquire sentido se considerarmos a

19 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 487. 20 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 197. 21 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 201. 22 Gesta Triumphalia per Pisanos Facta [1115-1199?] 1725, 94. 23 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 145. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 261 divisão das tropas muçulmanas em duas colunas de ação simultânea: uma a atacar Miranda e a outra a visar Santa Eulália, que protegia Coimbra das incursões oriundas da costa. Teria esta eventual segunda coluna sido transportada por via marítima? A verdade é que os guerreiros almorávidas atingiram a margem norte do rio, pelo que ou entraram pela foz ou, em algum ponto, atravessaram o curso de água a vau. Ao deixar Miranda em ruínas, a eventual primeira coluna poderá ter-se dirigido a Soure, mesmo ao lado, encontrando, no entanto, a fortaleza destruída e abandonada pelos habitantes. A estratégia de ataque concertado, multiplicando as frentes de conflito, só seria possível, evidentemente, com um contingente militar numeroso. A hipótese de duas colunas abre linhas de raciocínio muito interessantes além do óbvio: a existência de um exército rápido, cirúrgico e com muitos efetivos. Fica claro o objetivo de enfraquecer Coimbra, mas também, talvez, a consciência de que este exército, ainda que rápido, cirúrgico e numeroso, seria insuficiente para tomar a cidade. A conquista talvez só fosse possível com uma frota que bloqueasse o Mondego e um exército verdadeiramente massivo, composto pelas forças andaluzas e, com alguma probabilidade, por mercenários que participaram na recuperação das Baleares, condições que só foram reunidas em 1117. A ser verdade, a campanha liderada pelo emir Ali b. Yusuf em 1117 pode ter sido uma das primeiras ações de guerra, com transporte de tropas por mar para combate em terra, em que participou o almirante Muhammad b. Maymun, senhor da futura frota de Almeria. Tudo leva a crer que os almorávidas tenham apostado fortemente na conquista de Coimbra, mobilizando homens e equipamentos sofisticados. O domínio territorial do emir Ali b. Yusuf já se estendia bem acima do Tejo, em virtude das conquistas de Uclés, em 1108, do reino de Saragoça, em 1110, de Lérida, em 1114, e, na Marca Inferior, de Cáceres e Lisboa, entre 1094 e provavelmente 1095, e Santarém, em 1111. A queda de Coimbra deixaria a cidade de Toledo isolada e em posição algo insustentável, ainda que Salamanca se mantivesse em mãos cristãs. Para surpreender a antiga capital visigótica, os muçulmanos poderiam ativar as forças na fronteira do Médio Tejo e, em simultâneo, atacar pela retaguarda. Aliás, se conquistassem Toledo, seria Salamanca a ficar em 262 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

posição insustentável. Talvez assim se compreenda melhor o investimento em Coimbra, até porque em 1113, pouco antes de falecer, Sir b. Abu Bakr, senhor de Sevilha e governador-geral do al-Andalus, terá empreendido uma derradeira tentativa para conquistar Toledo, mas, não obstante as algaras, a destruição, o saque e o aprisionamento de cativos, as forças muçulmanas conheceram, de novo, o insucesso.24 Obter Coimbra significaria uma mudança de estratégia: o emir, que saiu de Marraquexe e cruzou o estreito de Gibraltar a 1 de junho de 1117,25 pode ter procurado um ataque massivo por terra e mar para obter uma cidade cujas linhas defensivas já se encontravam destruídas. Mas, ao fim de três semanas de cerco cerrado, como dão conta a Chronica Gothorum26 e o al-Bayan al-Mugrib,27 as forças muçulmanas desistiram, sem indicação do motivo por nenhum dos lados do conflito. A Chronica Gothorum atribui a Deus a resistência de Coimbra, o al-Bayan al-Mugrib prefere destacar o saque obtido com a campanha. Apesar das forças mercenárias, dos contingentes do al-Andalus motivados para a guerra santa,28 da frota possivelmente liderada por Muhammad b. Maymun, apesar da presença do emir e da experiência no terreno do novo governador de Sevilha, Abd Allah b. Fatima, Coimbra conseguiu resistir o suficiente a este ataque até os muçulmanos desistirem. Em nota de rodapé à tradução do al-Bayan al-Mugrib, Huici Miranda defende, face ao insucesso de 1117, que, “mais uma vez, ficou provada a incapacidade almorávida para assaltar cidades importantes bem amuralhadas”.29 Mas o argumento tem fragilidades, pois as forças almorávidas conquistaram cidades de grande dimensão, com destaque para Sevilha em 1091, pela qual também esperaram pacientemente durante meses. Talvez tenhamos de procurar outras razões. A incorporação de mercenários, motivados em especial pelos rendimentos da campanha, funcionaria como um elemento de pressão sobre o emir: ou conseguia conquistar rapidamente, esmagando o opositor pela

24 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 142; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 133-134. 25 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 150. 26 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 11. 27 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 150-151. 28 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 151. 29 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 151. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 263 superioridade numérica, ou veria a situação degradar-se nas suas hostes. Temos de pensar ainda que uma frota, nos moldes que vingaram no Mediterrâneo ocidental, assumia um papel central na economia das comunidades, constituía uma unidade de produção de riqueza, fosse pelas trocas ou pelos rendimentos do saque, além de ser móvel por natureza, flexível nos seus objetivos, adaptável às conjunturas. Veremos evoluir estas frotas, sobretudo em confronto, mas também conjunturalmente em aliança, ao longo de toda a primeira metade do século XII: Pisa, Génova, o reino da Sicília (e sobretudo a sua esquadra palermitana) e Almeria, mas também os ziridas de Mahdia e os hamádidas de Bugia disputarão cada légua marítima de um Mediterrâneo de riquezas provenientes da Europa, dos confins da África subsariana e do Oriente. Os documentos da Geniza do Cairo deixam adivinhar que, com os anos, a frota de Almeria se ampliou e diversificou, com navios preferencialmente destinados ao comércio e outros alocados à guerra.30 Os conflitos de natureza aparentemente religiosa a envolver estas forças marítimas terão sempre subjacentes questões políticas e económicas e a disputa por rotas comerciais. O exemplo mais evidente será a campanha sobre Almeria, em 1147, que congregou forças de Pisa, Génova, Barcelona, Montpellier, Leão e Castela e se traduziu na aniquilação da mais poderosa cidade do al-Andalus com vocação marítima.31 Manter indefinidamente uma frota com tais características às portas de Coimbra seria insustentável, porque corresponderia a uma perda de riqueza. Gorado o impacto inicial de um ataque que se queria rápido e massivo, estaria ainda frustrado o objetivo de conseguir a cidade. Neste sentido, os ataques de 1116 teriam funcionado como um trabalho de sapador, numa efetiva preparação do terreno, para que a campanha de 1117 fosse tão rápida, objetiva e eficaz quanto possível, não desperdiçando tempo, nem sofrendo contrariedades com o controlo de possíveis resistências. A apoiar esta tese, surge o referido diploma emitido pelo cardeal Boso de Santa Anastácia, em fevereiro de 1117, portanto ainda antes do grande ataque a Coimbra. Após reconhecer a destruição de castelos e vilas pelos muçulmanos como consequência da morte de Afonso VI, refere-se

30 Gil et Fleischer 2001, 420-426. 31 Lourinho 2010, 69-74. 264 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a eventos que podemos perceber serem muito posteriores ao desaparecimento do imperador, com a perda de milhares de homens e a destruição pelo fogo do subúrbio da cidade de Coimbra, acrescentando que, dentro das muralhas, a rainha conservou a vida a custo.32 Estas informações são mais consistentes com o cenário de 1116, até porque o documento foi emitido no inverno de 1117, portanto, antes do ataque liderado pelo emir Ali b. Yusuf. Todavia, ao contrário do que defende José Mattoso ou mesmo refreando um pouco as palavras do legado papal, exageradas para impressionar no que respeita à dificuldade de D. Teresa em salvar-se, não parece que tenha havido propriamente um cerco,33 mas antes uma operação de terra queimada e debilitação de estruturas, a menos que tenha ocorrido um ataque a Coimbra em 1116, que as fontes não tenham documentado. Será, porém, pouco provável, sobretudo quando existem tantos detalhes para os ataques às fortificações que integravam as suas linhas defensivas. Não sabemos o que aconteceu em Coimbra no ano de 1117, nem por que razão os almorávidas desistiram. A eventual pressão dos contingentes mercenários é uma possibilidade. Ou então nada das anteriores conjeturas é verdadeiro, e o ataque a Coimbra constituiu tão-somente uma expedição punitiva, destinada a enfraquecer o inimigo, prática muito comum à época. Veja-se a destruição de Bona (Annaba, na atual Argélia), em 1034, Mahdia, em 1087, das Baleares, entre 1114 e 1115, ou de Almeria, em 1147 – ou o saque de Palermo, em 1063 –, em todos os casos envolvendo Pisa e, por vezes, também Génova. Em nenhuma destas conjunturas as cidades-estado italianas pretenderam conquistar, mas sempre debilitar e afastar a concorrência comercial. Mas teria Coimbra o mesmo estatuto que estas cidades destruídas? Mais: o objetivo do ataque teria de ser suficientemente relevante para que o emir se envolvesse a título pessoal. Seja como for, podemos tomar como certo um fator de extrema mobilidade associada a estas frotas do Mediterrâneo ocidental, bem percetível nas fontes. A volatilidade da conjuntura seria outra hipótese para a desistência, embora as fontes não refiram nenhum evento direto. O mais próximo que é

32 Erdmann 1927, 171-172. 33 Mattoso 2007, 41. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 265 possível encontrar, ainda que sem certezas, é um repto do senhor de Marraquexe, relatado pelo Rawd al-Qirtas para 511 (maio de 1117 a abril de 1118): o rei Afonso de Aragão aproveitou um contexto de indefinição almorávida em Saragoça, ditado pela morte do seu governador, para cercar a cidade e atacar também Lérida. O emir Ali b. Yusuf escreveu, então, aos governadores andaluzes para acorrerem em auxílio das cidades sitiadas, a que terão respondido as tropas de Córdova e Valência.34 Beneficiariam as forças aragonesas do auxílio das frotas de Pisa e Génova – como aconteceu a Rodrigo Díaz de Bívar na campanha sobre Valência35 –, que, por exemplo, poderiam estar a pressionar a entrada do Ebro, junto a Tortosa? Necessitariam os almorávidas de embarcações para contrariar uma tal ação? Não podemos senão conjeturar. Contudo, pelo encadeamento dos acontecimentos no Rawd al-Qirtas, este pedido do emir parece ter ocorrido já em 1118, talvez depois do insucesso em Coimbra, até porque há notícia de o novo legado para a Península Ibérica, o cardeal Deusdedit, muito interessado na conquista de Saragoça, se ter encontrado com o rei de Aragão antes do cerco à cidade, prelado que era portador de uma carta emitida pelo papa, datada de novembro de 1118.36 A necessidade de um número elevado de combatentes, de infraestruturas navais e de um laborioso processo de desgaste das defesas de Coimbra tornariam tais campanhas demasiado dispendiosas e exigentes do ponto de vista da organização para que a conjuntura voltasse a permiti-las. A disputa dos rendimentos do comércio no Mediterrâneo ocidental seria, talvez, mais interessante. Além disso, a partir de 1125, as incursões de Afonso de Aragão no al-Andalus iriam exigir maior esforço militar ao poder almorávida e provocar reorganizações significativas na defesa do território.

34 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 166-167. 35 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 7. 36 Reilly 1982, 134. 266 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Guerra na fronteira marítima

Diferente programa face a estas armadas, que incorporavam a estratégia política de um reino ou potentado, assumiriam as frotas das cidades andaluzas, que sazonalmente atacavam o território cristão segundo a lógica da guerra de fronteira. Podemos perceber a sua ação na Historia Compostelana, quando, por volta de 1115, o bispo de Compostela, Diego Gelmírez, enviou mensageiros às cidades cristãs com maior capacidade técnica na construção naval: justamente, Pisa e Génova. Acedeu ao repto um mestre genovês, que construiu duas galeras para defender as terras compostelanas.37 Os ataques muçulmanos, que ocorriam todos os anos entre abril e outubro e causavam morte, destruição, saque, aprisionamento de seres humanos e, por vezes, conduziam à conquista de castelos, começaram, segundo a fonte, com o desaparecimento de Afonso VI e partiam de Almeria, Sevilha, Saltes, Cacela, Silves e Lisboa.38 A narrativa aponta ainda para algum nível de articulação entre Sevilha e Lisboa, que, em determinado momento, terão enviado 20 naves contra Compostela. Não seria de espantar, uma vez que Lisboa era a última grande cidade costeira do Gharb al-Andalus, referida pelo geógrafo al-Zuhri como destino de rotas de navegação.39 As frotas do Gharb acabavam, assim, por levar a guerra de fronteira ao plano marítimo, provocando o paulatino desgaste de um inimigo sempre presente. A construção das embarcações por Gelmírez equivale à aceitação das regras dessa mesma guerra de fronteira. A Historia Compostelana mostra que, lançados os barcos ao mar, os cristãos se comportaram exatamente da mesma forma nas regiões muçulmanas. O reduzido número de embarcações mandadas construir por Gelmírez será prova do elevado investimento necessário para manter uma frota, o que explica o regozijo sempre que se afigurava possível aprisionar naves inimigas, satisfação, de resto, partilhada pelos vikings de Sigurd no episódio em que tomaram sete ou oito galeras ao largo de Sintra, em 1109. Mesmo uma diocese

37 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 340. 38 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 244 e 339. 39 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 216-217. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 267 como Compostela, detentora das relíquias do apóstolo de Cristo e, assim, lugar de peregrinação, de feiras e de produção de rendimentos, não conseguia ir além de duas galeras, número muito longínquo do mobilizado pelas frotas do Mediterrâneo ocidental, suportadas por lucrativas redes comerciais. Até as cidades do Gharb al-Andalus, que não poderiam igualar a riqueza, por exemplo, de Sevilha ou de Granada, alcançavam um número mais expressivo, o que leva a concluir que idêntico dinamismo comercial não conheceria, certamente, Compostela: na redistribuição da riqueza proporcionada pelos impostos e outros rendimentos, o fluxo amealhado pela diocese não seria de molde a sustentar uma armada expressiva. A Historia Compostelana alude ainda a “naves” detidas por D. Teresa por volta de 1120, quando esta se viu atacada no Castelo de Lanhoso pelas forças de D. Urraca, aliadas com o já arcebispo de Compostela, Diego Gelmírez.40 A narrativa diz que, face à eventualidade de D. Urraca trair Gelmírez e o aprisionar, a mãe de D. Afonso Henriques ofereceu refúgio ao arcebispo nos seus castelos ou, em alternativa, a possibilidade de regressar a Compostela nas naves que lhe punha ao dispor. A que tipologia obedeceriam estas embarcações e que número atingiriam não o sabemos. No entanto, teriam capacidade para sair do rio Minho e, mar adentro, rumar a norte em direção à costa galega. Se as rias da Galiza, tão fustigadas pelos vikings, eram favoráveis à navegação, a passagem pelo Atlântico oferecia dificuldades. Podemos notar ainda que a expressão “naves”, usada pela fonte para se referir às embarcações de D. Teresa, é a mesma a que recorre para referir os navios construídos por Gelmírez. Reuniria D. Teresa meios para enfrentar os inimigos em ambiente marítimo e jogar a guerra de fronteira também neste palco? Precisamos de mais evidências para afirmá-lo, mas os indícios dizem-nos que, pelo menos, teria alguma capacidade naval e que manteria ao seu serviço gente especializada nas lides do mar, o que também traduz disponibilidade financeira. Teria D. Teresa apelado ao saber de mestres genoveses ou pisanos, que por esta cronologia estavam em contacto com a Galiza? Lembremos, por

40 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 363. 268 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

exemplo, que foi nas duas primeiras décadas do século XII que os morabitinos almorávidas começaram a surgir em Coimbra com mais frequência nas transações fundiárias, tal como atestam os cartulários locais. Significa que não será de excluir a existência de trocas com o mundo muçulmano, e sobretudo por via dos impostos, o comércio acabaria por beneficiar quem se posicionava no topo da pirâmide social. D. Teresa era ainda senhora de um território considerável, que lhe rendia outros meios financeiros. A propriedade de uma frota, por mais pequena que fosse, é uma boa pista de que seria uma governante abastada. Já vimos que, apesar da sua preeminência política, Gelmírez não foi além de duas naves. Podemos formular a hipótese de, na missão de defender Coimbra em 1116 e 1117, D. Teresa ter, como os almorávidas de Ali b. Yusuf, transportado tropas nas suas naves até ao Mondego. De resto, segundo as pistas na Historia Compostelana, é de admitir que as embarcações de D. Teresa tivessem capacidade para navegar no Atlântico. Nesta guerra na fronteira marítima, o ribat na costa de Sintra, possivelmente de onde partiram as galeras que enfrentaram a armada de Sigurd em 1109, deveria assumir um papel importante na contenção dos ataques provenientes de Compostela a visar Lisboa. Se Coimbra era a primeira e a última cidade cristã, Lisboa seria o seu espelho, o seu contraponto em território muçulmano. A partir de 1117, com o poder almorávida a desistir de grandes campanhas militares contra o Gharb al-Andalus, fosse pela mudança conjuntural, que deslocaria os interesses da marinha de guerra para o palco do Mediterrâneo, ou, a partir da década de 1120, com o advento de Ibn Tumart no Magrebe, que rapidamente obrigou à mobilização de recursos para a guerra contra os almóadas – um verdadeiro sorvedouro de homens, maquinaria e capital – ou ainda pelos ataques de Afonso de Aragão a partir de 1125, os enfrentamentos entre cristãos e muçulmanos passariam a corresponder sobretudo a operações de menor envergadura. Mas Ali b. Yusuf faria ainda uma quarta travessia para o al-Andalus no ano 515 da Hégira (março de 1121 ao mesmo mês do ano seguinte), à cabeça de um exército de sanajas, acompanhados por mercenários zanatas, masmudas e de outras tribos berberes, para controlar uma revolta em 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 269

Córdova.41 Diz o anónimo al-Hulal al-Mawsiyya que foi durante esta campanha que recebeu a notícia da autoproclamação de Ibn Tumart enquanto mahdi, o que o terá levado a regressar a Marraquexe,42 certamente por ter avaliado o evento como uma ameaça política. Como é evidente, os ataques das frotas locais não invalidam as campanhas da “marinha do estado”, e a própria Historia Compostelana o sugere, quando fala dos ataques muçulmanos a castelos galegos.43 A fonte menciona uma “multidão de sarracenos” que penetrou no território e explorou as defesas das fortificações. Parece estarmos já na presença de um dos padrões de comportamento do alcaide-do-mar Muhammad b. Maymun, de transporte de tropas para ataques terrestres. A suspeita adensa-se quando a Historia Compostelana refere que o “príncipe” dos atacantes, na sua língua, é designado por “alcaide”, título atribuído ao marinheiro de Denia a partir de 1115. As cartas da Geniza do Cairo contêm algumas referências a Muhammad b. Maymun, aqui designado em árabe grafado no alfabeto hebraico),44 ,אלקאיד) ”simplesmente como o “alcaide em termos muito semelhantes aos utilizados pela Historia Compostelana, o que faz supor um reconhecimento em todas as zonas de influência do Mediterrâneo. Aliás, fontes como a Chronica Adefonsi Imperatoris, laudatória do rei Afonso VII, ou o Kitab al-Djarafiyya, da autoria de al‑Zuhri, são bem reveladoras da multiplicidade das regiões atacadas por Ibn Maymun e pelos seus familiares, e desse mesmo reconhecimento,45 que incluíam outras partes do Mediterrâneo. Os Annales Ianuenses, de Caffaro, o mesmo que relatou as conquistas cristãs de Almeria e Tortosa ocorridas entre 1147 e o ano seguinte, e que, como o nome indica, compilam factos de interesse para o universo genovês, mencionam o “caito Maimono Almarie” e exultam face ao apresamento, em 1137, de naves almorávidas com um precioso carregamento.46 Esta preeminência em todas as partes do Mediterrâneo iria custar caro a Almeria, com a conquista e destruição da cidade por forças cristãs aliadas em 1147, no ocaso do Império Almorávida.

41 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 103-104. 42 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 105. 43 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 344. 44 Gil et Fleischer 2001, 371-373 e 420-426. 45 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:104; al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 232. 46 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1890, 1:29. 270 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Das areias do deserto à lide dos mares: a frota enquanto modelo de expansão económica e política

“Sevilha, a capital dos domínios de al-Mutamid, era uma das mais belas cidades que existiam. Quando Yusuf ali chegou, viu que estava situada junto a um grande rio navegável, através do qual os barcos traziam mercadorias do Magrebe.”47 O relato é de Ibn Khallikan e refere-se ao período que sucedeu à vitória em Zallaqa, quando al-Mutamid convidou o emir de Marraquexe para a sua corte e quando este já se tinha assenhoreado da passagem do estreito de Gibraltar. A tentação de ligar as rotas comerciais provenientes do Magrebe às do al-Andalus, se dela não existissem mais pistas, parece aqui enunciada. A viagem relacionada com Zallaqa pode ter servido igualmente, como se lê nas entrelinhas de Ibn Khallikan, para investigar as condições no terreno do al-Andalus. Sabemos por Ibn Bassam, recuperado pelo anónimo Kitab Mafakhir al‑Barbar, que Yusuf necessitou do auxílio da frota da taifa de Sevilha para expulsar os bargauatas de Tânger e de Ceuta.48 Já Ibn Khallikan transmite-nos a informação de que, ao conquistar o Magrebe, o que só ocorreu em 1083, ou seja, três anos antes da vitória contra os cristãos em Zallaqa, o emir Yusuf b. Tashfin mandou construir galés e outros navios para fazer a travessia para o al-Andalus.49 Não existem dados precisos sobre a tipologia e o número das embarcações, mas este dado, pelo menos, aponta para que, entre 1083 e 1086, Yusuf tenha procurado afastar a dependência de terceiros no que toca à expressão naval. Aliás, sem capacidade a este nível, seria muito difícil lograr a conquista de Sevilha – e não poderia pedir navios emprestados a al-Mutamid para o efeito. Tanto a tentativa de tomada da cidade por Ahmad b. Qasi, em finais de 1144, como a conquista almóada de 1147 ou ainda a cristã, em 1248, dependeram do recurso a uma frota para operar um bloqueio,50 algo que pode, de alguma forma, consolidar a afirmação de Ibn Khallikan sobre a ordem de Yusuf para construir navios que lhe permitissem atravessar para o al-Andalus.

47 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 4:457. 48 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 56-57. 49 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 4:449-450. 50 Lourinho 2010, 13. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 271

Mas, apesar da existência de barcos, dificilmente os momentos que antecederam Zallaqa correspondem ao nascimento da marinha de guerra almorávida: o desenvolvimento deste instrumento de expansão económica e política corresponderá mais a um processo dependente da evolução das necessidades do que a um evento fundacional único, sempre tão apreciado pela historiografia, porque mais fácil de localizar e categorizar. Até à sua morte, em 1106, Yusuf empreendeu mais três travessias para o al-Andalus, como atestam as fontes. Atentemos no al-Hulal al-Mawsiyya por uma questão de facilidade, visto ser uma narrativa sintética e sistemática a apresentar a informação. A primeira passagem para a Península Ibérica ocorreu, como sabemos, por ocasião da Batalha de Zallaqa, a segunda dois anos depois, devido aos avanços de Rodrigo Díaz de Bívar no Levante, a terceira em 1090, para destituir os reis de taifas, e a quarta, já no fim da vida de Yusuf, em 1103, para inspecionar o território e preparar a sucessão.51 Naturalmente, em todas estas ocasiões, Yusuf e a sua comitiva necessitaram de navios para atravessarem o estreito de Gibraltar. Desde a conquista do al-Andalus, o mesmo problema se apresentaria a outros indivíduos, como tropas, membros da administração, povoadores ou comerciantes. O império que começou no deserto e alastrou ao Magrebe precisava agora de navios para cruzar o Mediterrâneo. A conquista dos reinos de taifas terá rendido a Yusuf capacidade naval, mercê da absorção das respetivas frotas, ainda que Christophe Picard afirme, aparentemente baseado em Ibn al-Athir, que os almorávidas incendiaram a marinha de Sevilha com o objetivo de obrigar a cidade a render-se. Consultado Ibn al-Athir, o relato não é coincidente: diz o historiador oriental que as forças de Sir b. Abu Bakr, general enviado por Yusuf, entraram pela cidade do lado do rio e pilharam e destruíram tudo à sua passagem,52 uma versão semelhante à que podemos ler, por exemplo, em al-Nuwayri.53 Como é evidente, a notícia de que os almorávidas destruíram tudo à sua passagem e que chegaram pelo lado do rio, por si só, não basta para concluir que a frota

51 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 81-82, 87 e 91. 52 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 494-495. 53 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:101. 272 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de Sevilha foi aniquilada. Independentemente da dureza do cerco, das opções radicais que possam ter sido seguidas para garantir a vitória e da possibilidade de os almorávidas já contarem com alguma expressão naval e ter ocorrido um recontro entre navios de ambas as partes, com prejuízo para os governantes de Sevilha, não faz grande sentido aniquilar por completo equipamentos de elevado valor, que poderiam ser utilizados no futuro. Parece razoável afirmar que, pelo menos, uma parte da marinha de Sevilha, das infraestruturas portuárias e das rotas comerciais foi conservada pelo novo império. Este processo de transferência, tal como explica o próprio Picard, não era novo e revestia-se de interesse para os poderes que se sucediam, já que as marinhas taifais correspondiam, em grande medida, a heranças dos tempos do califado de Córdova, resultantes da necessidade de conter os ataques dos vikings.54 No século X, a rede de cidades do al-Andalus com vocação marítima, entre outras, incluía Lisboa, Alcácer, Silves, Sevilha, Denia e Tortosa – Almeria iria ascender a este estatuto sobretudo no século XII. Daquelas cidades, Denia e Sevilha assumiriam um papel de destaque no período das taifas. No princípio do século XI, o reino de Denia, conduzido por Mujahid, liberto de al-Mansur, fez carreira nas ondas do Mediterrâneo e, vários séculos depois, al-Himyari conservava memória dos seus feitos: “Era daqui [de Denia] que saíam os navios dos muçulmanos.”55 Ibn al-Khatib, por sua vez, transmite-nos as aspirações de Mujahid quanto à conquista da Sardenha, “grande ilha dos rum [cristãos]”. O “senhor de Denia e das ilhas do Levante” saiu das suas terras com 120 navios e 1000 cavaleiros.56 Ibn Idari diz que a expedição ocorreu no ano de 406 (21 de junho de 1015 a 9 de junho de 1016), foi ordenada por al-Muayti, personagem de origem omíada que Mujahid proclamou no Levante enquanto califa depois da queda do poder de Córdova, e envolveu 120 navios grandes e pequenos.57 Acrescenta que, na sequência do ataque, o filho de Mujahid, ainda criança, foi feito prisioneiro pelos cristãos e que só largos

54 Picard 1997, 99. 55 Al-Himyari [1200-1399?] 1938, 193. 56 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1956, 219. 57 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 105. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 273 anos mais tarde o soberano de Denia conseguiu resgatá-lo.58 Al-Nuwayri afirma igualmente que Mujahid atacou a Sardenha com 120 barcos e 1000 cavaleiros, mas indica que a operação ocorreu 40 anos depois, o que não oferece rigor.59 Também as fontes cristãs deixaram registo desta campanha. É o caso das Chroniche della Città di Pisa, redigidas por Bernardo Marangone, as quais revelam a tentativa do rei Musetto, também conhecido como Mugetto, de conquistar a Sardenha em 1015, pouco depois da fragmentação do califado omíada, e cujos intentos foram refreados pelos esforços dos pisanos.60 Os Annales Pisani, do mesmo autor, e o Chronicon Pisanum, um anónimo, dão igualmente conta destes acontecimentos, mas de forma mais breve.61 Mujahid, no entanto, não desistiu: as fontes italianas assinalam novos ataques em 1019, 1021 e 1028. Com as Baleares e a Sardenha na sua posse, poderia controlar as rotas comerciais no Mediterrâneo ocidental, interferindo, assim, nos interesses de Pisa e de Génova,62 repúblicas recém-formadas e que se uniram em expedições punitivas para contrariar os projetos de Mujahid, como explica Mohamed Bazama.63 Mas nem só operações militares eram desenvolvidas a partir do porto de Denia. Os documentos da Geniza do Cairo registam a ligação direta a Alexandria durante os séculos X e XI, o que confirma a atividade de Mujahid nas principais plataformas comerciais do Mediterrâneo e, mais tarde, do seu filho Ali. Ibn al-Khatib, por exemplo, relata que esta “nação rica”, durante a fome de 446 (12 de abril de 1054 a 1 de abril de 1055) no Egito, enviou ao território grandes barcos repletos de alimentos para fazer negócio.64 Uma vez mais se nota, pois, um processo de continuidade face ao período do califado. Esta linha de continuidade era ainda marca do programa naval de Sevilha. “Os abádidas”, explica Christophe Picard, “não fizeram mais do que perpetuar uma tradição solidamente estabelecida, pois, no início do século XI, Sevilha era uma importante base naval, munida de estaleiros de construção e um dos portos

58 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 136-137. 59 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:110. 60 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1748, 318-319. 61 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 4; Chronicon Pisanum [1116-1139] 1725, 100. 62 Bruce 2010, 239. 63 Bazama 1988, 133-134. 64 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1956, 221-222. 274 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

comerciais mais ativos do al-Andalus”.65 A partir de meados do século XI, com a ascensão de al-Mutadid b. Abbad e a política de expansão territorial, Sevilha tornou-se a mais poderosa das taifas, e a conquista de Algeciras permitiu à dinastia abádida o domínio sobre uma das margens do estreito de Gibraltar.66 Do outro lado, em Ceuta, posicionavam-se os inimigos bargauatas, 25 anos depois removidos pelos almorávidas. A rivalidade era intensa: apoiado em Ibn Bassam, Picard refere, por exemplo, que, em 1076, depois de Sevilha e Ceuta reduzirem à condição de prisioneiros diversos comerciantes da cidade adversária, o rei da taifa do Guadalquivir fez um bloqueio ao porto do estreito de Gibraltar com 80 navios.67 Numa análise mais à superfície, a carreira marítima assumida pela taifa de Denia, com uma rivalidade muito marcada face a outros adversários, caso das cidades-estado italianas, parece ser a que mais se aproxima da estratégia adotada mais tarde pelo Império Almorávida. Porém, é preciso não esquecer que Yusuf absorveu as infraestruturas e as redes comerciais da taifa de Sevilha, pelo que, na prática, ambas as posturas estão contidas na visão marítima almorávida, que acabava por não ser diferente da perseguida pelos seus competidores. Comércio e guerra eram as duas faces de uma mesma moeda. Vejamos. As arquirrivais cidades de Pisa e Génova sabiam unir-se perante um inimigo comum, o que aconteceria, por exemplo, no auxílio a Rodrigo Díaz de Bívar na conquista de Valência, e mostrariam ao poder almorávida que queriam disputar o xadrez político e comercial do Mediterrâneo ocidental. Um ano após a grande vitória em Zallaqa, que Yusuf b. Tashfin fez questão de relatar em tom propagandístico ao soberano zirida de Mahdia, Tamim b. al-Muizz, esta última cidade foi destruída por um consórcio pisano-genovês, de acordo com um modelo de ataque muito semelhante ao que seria usado em Almeria, em outubro de 1147, já depois de o Império Almorávida ter caído no Magrebe e no al-Andalus. Se o rei Afonso VII e os seus aliados (pisanos, genoveses e aragoneses) não parecem ter deixado pedra sobre pedra naquele que era considerado o centro de operações de guerra

65 Picard 1997, 109. 66 Ibn Idari [1311-1312?] 1993, 202; Ibn Bassam [1060-1147?] 1997, 2:36-37. 67 Picard 1997, 111. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 275 do al-Andalus, o porto onde se equipavam os barcos muçulmanos para levar a devastação a todos os reinos cristãos,68 fica claro que, em Mahdia, a destruição também visou a diminuição da capacidade comercial e militar do poder zirida. De resto, a mesma intenção de debilitar presidiu à campanha das Baleares, em 1114, embora, neste caso, tenhamos menos informações das atividades corsárias do arquipélago entre o momento em que se separou de Denia, por via da conquista da cidade pelos almorávidas, e a destruição operada pelas cidades-estado italianas, pelo que a comparação com Almeria acaba por ser menos frutífera do que se considerarmos Mahdia. Os documentos da Geniza do Cairo dão testemunho privilegiado do poderio económico da capital zirida ao longo do século XI e das suas ligações a outras plataformas comerciais no Mediterrâneo, como Alexandria e a Sicília islâmica, ou seja, antes da conquista normanda completa, em 1091.69 As embarcações dos soberanos ziridas, onde viajavam indivíduos e mercadorias, são frequentemente designadas neste espólio como os “navios do sultão”, uma clara referência ao detentor do poder em Mahdia, deixando evidente o benefício que este retirava da atividade naval. Ibn Khaldun diz que os genoveses enviaram 300 navios e 30 mil soldados contra Mahdia e que, depois de conquistarem e destruírem a cidade e os seus arredores, concretamente Zawila, devolveram-nos a Tamim b. al-Muizz, seu soberano, pela quantia de 100 mil moedas de ouro.70 Al-Nuwayri aumenta o número de navios para 400 e acrescenta que os cristãos aproveitaram a ausência das tropas de Tamim, ocupadas a combater rebeldes face ao poder zirida, para atacar e fazer destruição. Segundo informa, Tamim foi obrigado a pedir a paz e a devolução dos cativos na posse dos pisanos e genoveses, contra 80 mil moedas de ouro.71 Ibn al‑Athir refere que os aliados cristãos demoraram quatro anos a construir uma frota para atacar Mahdia e que o soberano desta cidade foi avisado por muçulmanos, através de mensagem enviada por pombo, do ataque e do número de inimigos, mas que não se preparou devido ao desentendimento entre os seus generais e à necessidade de combater rebeldes. Confirma a destruição

68 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:311; Lourinho 2010, 67-75. 69 Goitein 1973, 128-135. 70 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:24. 71 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:162-163. 276 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de Zawila e o pagamento por Tamim, mas reduz o valor para 30 mil moedas de ouro.72 Os Annales Pisani, por sua vez, explicam que Pisa e Génova conquistaram duas cidades riquíssimas no dia de São Sisto: 6 de agosto. Mataram muitos sarracenos e pilharam ouro, prata e ornamentos, com que foram beneficiadas as igrejas da primeira cidade e foi construído um templo dedicado ao mesmo São Sisto.73 Outra fonte de Pisa, o Carmen in Victoriam Pisanorum, como o nome indica, deixou em verso os feitos dos habitantes desta cidade, chegando a comparar a destruição que provocaram à que os romanos fizeram abater sobre Cartago. Mahdia, “cidade ímpia junto ao mar”, que “forçava às grilhetas milhares e milhares de cristãos”, era governada por “Tamim, perverso sarraceno”. “Tinha um belo porto, com muralhas sólidas e o seio preenchido de navios.” Era repleta de “ricas mercadorias e muita gente”. Saqueava as costas da Gália, da Hispânia e de Itália, predava todos os territórios até Alexandria. Não havia lugar que oferecesse segurança: Rodes, Chipre, Sardenha e Sicília,74 nenhuma terra escapava aos ataques ordenados pelos ziridas.75 O Carmen in Victoriam Pisanorum, a fonte que proporciona mais informação sobre a campanha de Mahdia, explica que os pisanos e os genoveses atacaram primeiro Zawila, onde não houve rua que não tivesse ficado manchada pelo sangue dos mais de 100 mil cadáveres que tombaram. Depois, entraram na cidade, saquearam a mesquita aljama, atacaram o porto, incendiaram os navios, destruíram as torres das muralhas, mataram os cavalos do sultão, roubaram ouro e prata e lançaram-se sobre o palácio real, sem, no entanto, conseguirem adentrar. Tamim pediu, então, a paz: estava disposto a entregar riquezas para que os cristãos desistissem dos seus intentos.76 Os ataques desestruturaram o

72 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 487-488. 73 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 6-7. No ano de 1063, uma campanha sobre a Sicília muçulmana rendeu a Pisa as riquezas necessárias para erguer uma catedral, que foi dedicada a Santa Maria (Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 5-6; Bernardo Marangone [1125-1186?] 1748, 325-327). 74 À época da destruição de Mahdia, estava em curso a invasão que conduziu à conquista normanda da Sicília, em 1091. Quando o Carmen in Victoriam Pisanorum indica ataques ziridas sobre a ilha, está provavelmente a referir-se às regiões já conquistadas por Rogério I, que tinha iniciado a campanha militar 28 anos antes. Interessado em estender o seu controlo sobre a costa africana, o soberano normando, de resto, recusar-se-ia a participar na operação para destruir Mahdia (Goffredo Malaterra [1098?] 1927-1928, 3). 75 Carmen in Victoriam Pisanorum [1100-1150?] 1969, 47-48. 76 Carmen in Victoriam Pisanorum [1100-1150?] 1969, 51-54. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 277 território, e o comércio, como atesta uma fatwa recolhida por al-Wansharisi, não foi exceção. Quando os cristãos deixaram a cidade, surgiram conflitos entre, por um lado, os detentores de títulos de penhora e os artesãos e, por outro, os seus clientes. Os doutores de leis emitiram pareceres a impor aos primeiros a prova, através de testemunhos irrefutáveis, de que os bens que se encontravam à sua guarda haviam sido destruídos ou roubados pelos atacantes,77 problema que, para exigir regulação jurídica, parece ter afetado uma parte significativa da população. Ainda que eventualmente exagerado pelo engenho literário pisano, o Carmen in Victoriam Pisanorum é revelador das atividades marítimas dos ziridas e da amplitude dos seus ataques. Também entre a coleção de fatawa de al-Wansharisi podemos encontrar para 1141, cronologia ainda contemporânea do poderio naval almorávida e de cidades como Pisa e Génova, testemunhos das incursões corsárias dos senhores de Mahdia. Um parecer jurídico emitido por al-Mazari determina que Abd Allah al-Rais, o corsário, ou melhor, Abd Allah b. Sadaqa al-Ansari, deveria conceder o divórcio à sua mulher se se ausentasse por mais de quatro meses com os navios do sultão (marakib al-sultan) sem que lhe deixasse meios de subsistência. Vinte anos antes, após a consumação do casamento, Abd Allah tinha partido para a Sicília durante um longo período (nesta fase, já sob domínio cristão), sem prever recursos para a esposa. Da mesma forma, noutra ocasião, tinha rumado a Trípoli do ocidente, onde permaneceu cerca de quatro meses.78 As queixas da mulher de Abd Allah permitem-nos, por um lado, formar uma ideia da vastidão de interesses territoriais do poder zirida e, por outro, concluir que, apesar da destruição de 1087, os senhores de Mahdia foram capazes de recuperar a sua posição económica e política no Mediterrâneo ocidental. Ibn Khaldun, por exemplo, refere que o filho de Tamim b. al-Muizz, Yahia, que reinou entre 1108 e 1116, se dedicou à construção de uma frota para atacar os cristãos e que enviou diversas expedições para depredar as zonas costeiras francas, assim como Pisa e Génova, cidades a que impôs o pagamento de tributo. Devido a tais incursões, Yahia ganhou grande prestígio na lide

77 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 317. 78 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 85. 278 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

dos mares.79 Não só a cidade de Mahdia recuperou, como manteve relações comerciais com a Sicília, de onde, também por volta de 1141, durante o período de desestruturação provocado pela guerra entre almorávidas e almóadas no Magrebe, importava alimentos, mau grado as reticências dos doutores de leis, que, tal como mostra a mesma coleção de fatawa, rejeitavam os negócios com o lado cristão.80 A proximidade geográfica implicava, pois, alguma colaboração entre Mahdia e a Sicília e, por vezes, consubstanciava-se numa aproximação política, como atesta Ibn Khaldun. No princípio dos anos de 1120, Ali, filho de Yahia e neto de Tamim b. al-Muizz, chegou a manter correspondência com Rogério II, o que terá enfurecido o poder almorávida.81 Uma descrição muito semelhante à das atividades de Mahdia é feita pelas fontes cristãs a propósito da intervenção almorávida no Mediterrâneo ocidental e inclusivamente no Atlântico. Vejamos o que diz a Chronica Adefonsi Imperatoris sobre Muhammad b. Maymun, o alcaide-do-mar que atuava a partir de Almeria:

Na corte do rei Ali, havia um homem chamado Alimenon. Era um bravo e experiente marinheiro, que comandava a frota dos almorávidas. Quando via que o tempo estava bom, levava uma armada e navegava para norte até à costa da Galiza e ao Canal Inglês. Ou então navegava pelo Mediterrâneo, atacando a Sicília, Constantinopla ou Ascalão, na costa palestiniana. Atacava Bari, no mar Adriático, e outros portos na região. Alimenon assaltava a zona de Barcelona e também os reinos francos. Deixou ruína por todo o lado e matou e massacrou os cristãos. Trouxe todos os cativos para a corte do rei Ali, seu senhor. Por isso, havia um número considerável de nobres cristãos e gente comum na sua corte.82

Pelo recurso aos exemplos de Mahdia e de Almeria, podemos afinar a teoria sobre os referenciais da esquadra almorávida. Se as taifas de Sevilha e Denia podem ter influenciado a política naval dos emires de Marraquexe, parece inegável que a matriz é mediterrânica e que todos os atores que desempenhavam um papel de destaque no comércio tinham uma postura semelhante. As campanhas levadas a cabo por Pisa e Génova sobre Mahdia,

79 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:25. 80 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 128 e 316. 81 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:26. 82 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:104. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 279 em 1087, e Almeria, em 1147, mostram que a competição era agressiva e que os cristãos se comportavam exatamente da mesma forma do que os muçulmanos. Outro exemplo de um modus operandi partilhado por adversários é fornecido por Caffaro, através dos seus Annales Ianuenses, que assinalam uma grande vitória para Génova em 1137 sobre o “caito Maimono Almarie”, ou seja, o alcaide Ibn Maymun de Almeria, a quem conseguiram apresar um navio e riquezas.83 O mesmo Caffaro, de resto, seria o autor da mais completa narrativa sobre a conquista, uma década mais tarde, da cidade de Almeria. Segundo explica o escritor, diplomata e marinheiro genovês, em Almeria, os cristãos usaram torres de assalto e máquinas de guerra – que os muçulmanos tentaram destruir, dia e noite, com fogo, armas e engenhos. Os genoveses, cujo papel é naturalmente destacado face ao dos restantes aliados, conseguiram introduzir-se na cidade, capturar duas torres do castelo e destruir 18 passos da muralha. “Foram mortos 20 mil sarracenos e uma parte da cidade foi derrubada”, o que terá provocado mais 10 mil baixas. Outros 10 mil indivíduos, entre mulheres e crianças, viram-se nas malhas do cativeiro.84 O próprio geógrafo al-Idrisi lamenta a sorte de Almeria: “Os seus encantos desapareceram, os habitantes foram reduzidos à escravidão, as casas e os edifícios públicos destruídos e já nada subsiste de tudo quanto tinha.”85 Acrescentemos o caso da Sicília cristã ao raciocínio. Nicetas Coniates e João Cinamo, historiadores bizantinos, narram os ataques perpetrados pelo almirante Jorge de Antioquia, a mando de Rogério II, sobre o império com sede em Constantinopla, no ano de 1147, ao mesmo tempo que Lisboa caía nas mãos de D. Afonso Henriques, Almeria revertia para Afonso VII e os grandes da cristandade faziam a Segunda Cruzada na Terra Santa. Nicetas Coniates fala de um transporte de tropas para combater em terra. As forças da Sicília, acusa, eram “como aqueles monstros marinhos que procuram alimento tanto no mar como em terra”, com um “desejo insaciável por dinheiro”, não encontrando resistência à sua passagem. A caminho de Constantinopla, pilharam as ilhas gregas, de onde carrearam ouro, prata, tecidos preciosos e cativos para os

83 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1890, 1:29. 84 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1973, 29. 85 Al-Idrisi [1145-1166?] 1866, 241. 280 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

seus navios; em Corinto, chegaram a pilhar os ícones das igrejas. Só depois de grande devastação o imperador Manuel II Comneno procurou contrariar os normandos. Mandou reparar e construir trirremes com capacidade de projetar fogo grego, a que juntou “pequenas e rápidas galés de piratas”,86 mas somente em abril de 1148 a resposta bizantina estava preparada para afastar os invasores do território.87 João Cinamo também refere a depredação e ocupação das ilhas gregas pelo exército de Rogério II da Sicília, mais tarde recuperadas pelos bizantinos com uma “formidável” frota de 500 trirremes.88 A fonte é lisonjeira face à capacidade naval do basileus, pois sabemos que, pressionado pela conjuntura, foi obrigado a pedir auxílio a Veneza, o que nos leva a concluir que a “formidável frota” não fosse inteiramente de origem bizantina.89 Sobre o ataque a Constantinopla, João Cinamo também nada adianta. Já Ibn al-Athir refere que os normandos chegaram à entrada do porto, onde se apoderaram de diversas embarcações, fizeram prisioneiros e chegaram a disparar flechas em direção às janelas do palácio imperial.90 Os relatos destes eventos, em conjunto com os dados fornecidos para Mahdia, Almeria, Pisa e Génova, revelam aspetos muito interessantes, que nos ajudam a caracterizar, por comparação e cruzamento de dados, as esquadras do Mediterrâneo ocidental durante o período almorávida. Desde logo, ainda que nem sempre o fossem, todas estas plataformas se comportavam como cidades-estado e, embora as questões religiosas servissem, muitas vezes, de pano de fundo às campanhas, como destaca Gino Benvenuti a propósito das atividades marítimas de Pisa, raciocínio que pode ser extensível aos restantes contendores, “não se tratava de cruzadas, mas de expedições punitivas organizadas pela aristocracia mercantil, para libertar os mares das incursões muçulmanas”. Não teriam um exclusivo fim religioso nem eram patrocinadas por príncipes ou papas, ainda que beneficiassem do seu consentimento: visavam sobretudo defender as rotas dos seus navios e impor tributo a regiões ricas em matérias-primas.91

86 Nicetas Coniates [1170-1210?] 1984, 45. 87 Fulquério de Chartres [1098-1127?] 2014, 46. 88 João Cinamo [1170-1180?] 1836, 92. 89 Carile et Cosentino 2004, 127. 90 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 568-569. 91 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 5-6. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 281

A vocação marítima e os interesses comerciais e políticos muito marcados, de procura agressiva de hegemonia, são, assim, outros eixos comuns a estas cidades, todas dotadas de portos muralhados. Mas a configuração das respetivas frotas nem sempre é clara. É certo que Christophe Picard, na sua obra L’Océan Atlantique Musulman, reúne uma pequena lista com termos em árabe que procuram designar tipologias de navios e descreve as suas características; mas, por um lado, fixa-se sobretudo no mundo muçulmano e não no Mediterrâneo em geral e, por outro, nem sempre consegue fazer corresponder uma utilização específica o mais utilizado nas ,(مركب) a cada embarcação.92 Atentemos no termo markab fontes muçulmanas para designar “barco”. Picard refere que este é o “navio por excelência”, que concentra todas as funções, capaz de transportar mercadorias ou de fazer a guerra. Seria, por esta ordem de ideias, um “híbrido”, adaptado tanto às necessidades militares como comerciais. Procura justificar-se com o facto de existirem variações como al-markab al-bahriyya (“navio marítimo”), destinado a viagens no alto mar; al-markab al-harbiyya (“navio de guerra”), para operações militares; markab al-tujjar (“navio comercial”), para transporte de mercadorias; e markab al-hammala (“navio de transporte”), tanto para guerra como para o comércio. Mas, apesar de estas expressões terem o termo markab como elemento comum, tal prova mesmo a existência de um único barco com várias funções ou aponta para uma multiplicidade de tipologias? E qual a diferença entre markab Picard reconhece a dificuldade em estabelecer ?(سفينة) e, por exemplo, safina essa distinção. Se alargarmos a pesquisa a fontes cristãs, podemos trazer mais riqueza ao debate. Uma passagem de Nicetas Coniates, a propósito da pilhagem dos normandos às ilhas gregas entre 1147 e 1148, faz a demonstração, ainda que indireta, de que existia diferença entre os navios dedicados à guerra e os destinados ao comércio:

Poderia dizer-se, com toda a razão, que os trirremes sicilianos não eram navios de piratas, mas navios comerciais de grande tonelagem de tal modo se encontravam sobrecarregados com ricas mercadorias, a ponto de submergirem até muito próximo do banco dos remadores de cima.93

92 Picard 1997, 303-305. 93 Fulquério de Chartres [1098-1127?] 2014, 45. 282 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

A mesma fonte explica que, para enfrentar os normandos, o imperador Manuel II Comneno mandou reparar a frota, construir novos trirremes, que depreendemos serem navios de guerra, e equipar embarcações com fogo grego.94 Outro dado interessante é a inclusão de “pequenos e rápidos esquifes de piratas” nesta armada. Se recorrermos à Historia Compostelana, obtemos mais um testemunho desta variedade de embarcações no contexto da estratégia militar naval. A propósito de um ataque de muçulmanos a Santiago, que, pela cronologia e pela designação dada ao comandante da frota – “que, na sua língua, se chama alcaide” –, sugere ter sido perpetrado por Muhammad b. Maymun com as forças de Almeria, ficamos a saber que este recorreu a uma “nave libúrnia com 20 homens muito experientes e preparados” para explorar o lugar e as suas fortificações e defesas.95 Inspirada nas galés usadas pelos piratas da Libúrnia, que, do atual território croata, atuavam no Adriático, a nave com o mesmo nome foi usada no período romano e na Idade Média. Correspondia a uma embarcação com uma fila de remadores, uma vela e uma proa com aríete, muito ligeira, veloz e manobrável, ideal para tarefas como raides, patrulhamento, perseguição de piratas ou comunicações rápidas. Seriam desta categoria as sete ou oito embarcações muçulmanas que faziam a vigilância da costa e, ao largo de Sintra, deram combate a Sigurd Jorsálafari e às forças vikings em 1109? Lembremos que tais embarcações provocaram espanto, pela sua dimensão, nos corações dos normandos, o que nos leva a concluir que, embora mais pequenas e rápidas do que os birremes e trirremes, seriam bastante maiores do que os mais rudimentares drakkars e snekkars dos homens do norte. Vale ainda a pena considerar os trabalhos de Shlomo Dov Goitein, baseados na documentação da Geniza do Cairo. Diz o historiador judeu que o termo markab, convertido para karabos pelos bizantinos, tanto era genericamente usado para significar “barco”, como designava a mais comum das categorias de navios, com utilização quer no Mediterrâneo, quer no Nilo. Daí talvez a perceção de Picard de que se trataria de um híbrido. Mas seria exatamente igual ao nível da forma, não obstante o seu uso em múltiplos contextos? Na opinião

94 Fulquério de Chartres [1098-1127?] 2014, 45. 95 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 344. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 283 de Goitein, o markab deveria ser resistente, pois, segundo refere, transportava grandes cargas e, na documentação judaica, surge regularmente mencionado como capaz de percorrer longas distâncias. Com frequência, era acompanhado ,que lhes prestavam serviço. Em caso de mau tempo ,(قارب por barcas (qarib ou embarcações mais pequenas tinham maior probabilidade de sobreviver e resgatar os passageiros e alguma carga dos navios maiores, embora também pudessem viajar de forma independente. Outro grande barco além do markab, que também parece ter um uso híbrido, é o qunbar, comum sobretudo no Mediterrâneo oriental.96 Os venezianos chamavam-lhe gombaria e reservavam-no ao transporte de carga pesada e de passageiros, enquanto os bizantinos o designavam por ou (غراب) kombarion e lhe davam um uso militar. A galé, conhecida como ghurab “corvo”, mais pequena e rápida, era também utilizada pelos cristãos. Movida a remos, podia virar e escapar com facilidade e encontrava-se menos dependente de ventos favoráveis, mas requeria uma grande quantidade de homens para operar. Era, muitas vezes, usada por piratas ou para escapar aos seus ataques. Mais raramente, transportava mercadorias e pessoas.97 De todas estas considerações, podemos procurar extrair algumas conclusões. Ainda que a utilização de alguns navios possa ser considerada “mista”, outros há que não oferecem tantas dúvidas. Os trirremes ou birremes, onde eram instalados dispositivos de lançamento de fogo grego ou máquinas de assalto, eram usados na guerra. E, ainda que pudessem transportar tropas, equipamentos bélicos, víveres e o produto do saque, não se adequavam propriamente a cargas pesadas. O imperador bizantino Leão VI, na sua Tactica, cerca de 200 anos antes, recorre a uma fórmula interessante para caracterizar estas embarcações: “Navios ditos trirremes, hoje designados por drómones.”98 Ou, por outras palavras, se os drómones eram trirremes e a guerra se fazia com drómones, os trirremes eram necessariamente navios destinados a operações militares. Já os navios comerciais deveriam possuir grande tonelagem, de modo a acomodarem as mercadorias. De contrário, Nicetas Coniates não teria sido irónico face aos barcos dos normandos, visivelmente “afundados”

96 Aparentemente, uma palavra não mencionada em nenhum dicionário de árabe (Goitein 1999, 1:306). 97 Goitein 1999, 305-307. 98 Leão VI (imperador bizantino) [886-912?] 2004, 292. 284 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

devido ao peso do saque. Por sua vez, os piratas, pela natureza da sua atividade, necessitavam de embarcações pequenas e rápidas, como as galés e as libúrnias. E, se estas também integravam a estratégia de guerra dos potentados marítimos no patrulhamento e nas comunicações, significa que os birremes ou os trirremes não alcançariam uma velocidade idêntica. Mas trata-se de conclusões preliminares. Temos de acrescentar termos à equação. Se regressarmos a Leão VI e à sua Tactica, verificamos que o imperador prescreve alguns cuidados na construção de uma frota: além de drómones de várias dimensões, cujo casco não deveria ser nem demasiado pesado, a fim de evitar a lentidão de manobras, nem muito leve, para não se danificar com o impacto das ondas ou com os ataques dos inimigos, propunha a conceção de navios mais pequenos, como as “ditas galés”, rápidas e leves, a utilizar no patrulhamento. Ainda mandava construir “navios para o transporte de víveres ou de cavalos, à guisa de comboio para a bagagem, os quais transportarão todas as provisões dos soldados, para evitar que os drómones sejam sobrecarregados, em especial durante o combate”.99 Ou seja, os navios de guerra deveriam estar libertos da tarefa do transporte de cargas para atingirem a máxima eficácia nos recontros com os inimigos. Esboça-se aqui uma preocupação da tratadística em atribuir diferentes funções a navios com características específicas, isto é, parece haver uma necessidade ou, pelo menos, um ideal de especialização. Aliás, igualmente no campo bizantino, vemos, por exemplo, como o imperador Maurício, no seu Strategicon, se debruçou sobre a frota fluvial,100 a qual, na análise de Salvatore Cosentino, constituía “um corpo auxiliar do exército, que agia em sintonia com este e em função deste, segundo um modelo operativo que se desenhou a partir do século IV”.101 Com uma tonelagem inferior à dos navios de guerra do alto Império Romano e do período médio-bizantino, adianta Cosentino, as embarcações adaptavam-se para navegarem nos rios ou fornecerem apoio logístico às ações do exército.102 Uma vez mais, percebe-se aqui uma adaptação à função e a necessidades concretas.

99 Leão VI (imperador bizantino) [886-912?] 2004, 292-294. 100 Maurício (imperador bizantino) [582-602?] 2004, 238-239. 101 Carile et Cosentino 2004, 212-213. 102 Carile et Cosentino 2004, 213-214. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 285

Como compatibilizar, então, as preocupações da tratadística, que prescrevem sobretudo uma especialização, com os vários exemplos carreados por Goitein e por Picard, que remetem para uma flexibilidade no uso? Aliás, Goitein pode inclusive acrescentar confusão: por um lado, explica que a linha de separação entre um navio de guerra e outro destinado ao comércio não era absoluta, porque até os segundos, muitas vezes, se encontravam preparados para ripostar em caso de ataque e, por outro, afirma que existiam navios utilizados em determinadas funções e que, no que à tática militar diz respeito, o sucesso dependia de uma combinação de embarcações pesadas e ligeiras.103 Para tornar o raciocínio ainda mais complexo, podemos verificar que a segunda proposta de Goitein não é mera especulação. Basta voltar a uma operação militar em que já nos detivemos. O mesmo recurso a uma combinação de tipologias de embarcações pode ser encontrado no Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus, mais concretamente na parte em que o poema se refere à preparação da frota pisana para atacar as ilhas Baleares, em 1114. Drómones, galés, barcas, lintres (usados para transportar mercadorias e pessoas), paliscarmos (grandes navios de serviço, movidos a remos) e outros tipicamente italianos foram construídos para o ataque.104 Para escapar ao impasse, uma solução é recorrer às reflexões de Francisco Contente Domingues. Ainda que incidentes sobre o período dos Descobrimentos portugueses, são perfeitamente operativas para explicar a questão que nos ocupa: “Os tipos e características dos navios definem a sua utilização preferencial em um ou mais quadros navais específicos, mas não são classificáveis em função deles.”105 Contente Domingues estabelece as diferenças entre navios mercantes e navios de guerra, lembrando que, à partida, os primeiros são propulsionados pela força do vento sobre as velas, ao passo que os segundos recorrem ao músculo de remadores, o que, embora favoreça a agilidade das manobras, deixa muito pouco espaço para tonelagem e armazenamento na embarcação. Conclui que “os navios a remos são desde a Antiguidade navios de guerra por excelência, pela sua óbvia

103 Goitein 1999, 1:307. 104 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 22-23. 105 Domingues 2004, 223-224. 286 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

inutilidade como navios de transporte em larga escala, utilizáveis de preferência em mares fechados ou junto à costa”.106 Esta afirmação vai ao encontro das prescrições dos imperadores bizantinos Leão V e Maurício, que podem, de resto, ser transportadas para o Portugal de Quinhentos, quando Fernando Oliveira, um contemporâneo de Damião de Góis, de André de Resende e do cosmógrafo-mor Pedro Nunes, o último dos quais com quem manteve acesa polémica, se inspirou em modelos clássicos para compor O Livro da Fábrica das Naus, o primeiro tratado de náutica produzido na Península Ibérica. Um excerto da obra é bem elucidativo a este respeito: “Por que se hão de seruir para carrega, e mercancia [os navios], hão meter hũa fabrica, e per guerra outra.”107 Mas, depois de definir uma dicotomia entre navios de guerra e navios comerciais, Contente Domingues desconstrói as suas bases, ao afirmar que “omite múltiplas situações particulares: navios redondos [com a proa arredondada, à partida menos adaptados a operações militares] preparados para a guerra . . . ou galés empregues no comércio são apenas algumas delas”. Ou seja, mais do que uma especialização, deveremos reter aqui a ideia de uma utilização preferencial associada a opções de flexibilidade, um quadro que terá certamente norteado também a experiência naval no Mediterrâneo medieval e que consegue conciliar as posições de Picard, de Goitein e da tratadística. Regressando ao argumento de que a frota almorávida se comportava exatamente como qualquer outra no Mediterrâneo, muçulmana ou cristã, e que recorreria a uma composição de embarcações semelhante à usada pelos seus competidores, concluímos que, num mundo agressivo e competitivo, as estratégias, os tipos de ataques e os interesses económicos e políticos eram quase decalcados entre adversários. Se transportarmos o raciocínio para os dias de hoje, podemos pensar em corporações multinacionais, que se espiam e copiam, em busca de um produto de sucesso. Exemplo desta emulação será o fogo grego, a que o investigador sardo Paolo Cau chama a “arma secreta dos bizantinos”, e que lhes permitiu refrear as tentativas do califado omíada de Damasco para conquistar Constantinopla e dominar o Mediterrâneo. Não surpreendentemente,

106 Domingues 2004, 241-242. 107 Loureiro 2006, 100; Domingues 2004, 95. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 287 o segredo acabou por ser descoberto e, no século IX, durante alguns recontros militares, os muçulmanos mostraram ao mundo que possuíam a tecnologia.108 Também podemos argumentar que, por exemplo, as naves libúrnias e outras embarcações, como o qunbar, eram usadas tanto por cristãos como por muçulmanos. Impõe-se, pois, a questão: num contexto altamente competitivo, existiriam mesmo embarcações tão distintas entre blocos regionais ou religiosos, quando as necessidades eram iguais? A questão adquire ainda mais sentido se pensarmos que estes blocos regionais ou religiosos correspondiam a espaços de grande mobilidade, que trocavam mestres, marinheiros e tecnologias. Um caso conhecido, e que reforça a argumentação, é o do almirante Jorge de Antioquia. Vejamos o que dele diz Ibn Khaldun:

Jorge era um cristão do Oriente que emigrou para Ifrikiyya, depois de ter feito bons estudos e adquirido um conhecimento perfeito da aritmética e da língua árabe. Acolhido com grande satisfação por Tamim [Ibn al-Muizz, senhor de Mahdia], ganhou a sua total confiança. Mas, por morte deste príncipe, encontrou um pretexto para se oferecer junto da corte de Rogério [rei da Sicília] e evitar o ódio que Yahia [filho de Tamim e seu sucessor] lhe votava. Rogério acolheu-o de forma cordial e transformou-o em almirante da sua frota.109

Jorge de Antioquia era, pois, um cristão que dominava a língua árabe e se pôs ao serviço do poder muçulmano de Mahdia, para depois regressar às fileiras cristãs, agora debaixo da tutela de Rogério II da Sicília, descrevendo um percurso que não causava estranheza. Assim como não seria descabida a circulação dentro de um mesmo bloco religioso: a Historia Compostelana mostra que, no momento de produzir navios para conter os ataques dos muçulmanos, o ainda bispo Diego Gelmírez sondou Pisa e Génova, pois “havia ali os melhores construtores e hábeis marinheiros”, tendo recebido resposta positiva da segunda cidade.110 Mais tarde, já na condição de arcebispo, comissionou a um pisano a construção de um birreme, “a que vulgarmente se chama galera”.111 Também o geógrafo al-Zuhri refere que os pisanos eram os mais bravos na guerra,

108 Cau 2000, 48-51. 109 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:26-27. 110 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 246. 111 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 450. 288 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

engenhosos e especialistas no mar, os mais hábeis na construção de manganéis, torres e catapultas para o combate naval e o lançamento de projéteis de nafta.112 Tal como Diego Gelmírez, assim procedeu o rei D. Dinis, já no século XIV: quando pretendeu constituir uma marinha de guerra, fez seu almirante o genovês Manuel Pezagno. Também é sobejamente conhecido que a coroa portuguesa, ao lançar o projeto dos Descobrimentos, recorreu aos conhecimentos técnicos de muçulmanos e judeus. Num espaço em que os intervenientes se influenciavam e mimetizavam, não faz sentido, pois, que as embarcações fossem assim tão diversas, até porque, diz a lógica, para combater um trirreme, talvez faça falta outro trirreme, tal como deveria bem saber o imperador Manuel II Comneno ao ordenar o restauro da frota bizantina para repelir os normandos da Sicília. E, se existia diversidade de tipologias no interior das frotas, teriam de ser produzidas várias unidades de cada uma delas, sobretudo no caso de grandes plataformas comerciais, como Almeria e os seus diretos concorrentes. Mais: se os navios fossem os mesmos, teríamos, por absurdo, de interromper o comércio para fazer a guerra e vice-versa. Ora, independentemente do contexto político, o comércio ou o transporte de pessoas não poderiam deter-se na totalidade, ainda que sofressem perturbações, tal como podemos confirmar, por exemplo, através das fatawa de al-Wansharisi, em que surgem casos de indivíduos com dificuldade em cumprir a peregrinação aos lugares santos do islão devido à instabilidade e aos conflitos.113 Em localidades pequenas, geradoras de menores rendimentos, não existiriam condições financeiras para manter um leque de embarcações diferenciado: lembremos os três navios mandados construir por Diego Gelmírez. Mas estas pequenas localidades, onde as embarcações teriam de ser certamente polivalentes, também não reuniriam ambições ao nível do controlo do Mediterrâneo. No caso destas quase “cidades-estado” de vocação marítima, estatuto que alcançou Almeria em resultado de um processo que se iniciou em 1115, quando o poder almorávida pretendeu reverter a conquista pisano-genovesa das Baleares, a diversidade de embarcações seria mesmo uma necessidade.

112 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 229. 113 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 27-31 e 63. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 289

Não faz sentido, por exemplo, que o alcaide-do-mar almorávida se encontrasse mesmo a bordo de uma embarcação comercial referida como “o barco do alcaide Ibn Maymun”114 numa carta da Geniza do Cairo, redigida em 1138 por Itzhak b. Baruk, a partir de Almeria, ao comerciante Halfon b. Nethanel, que se encontrava em Alexandria.115 Tal como não terá nenhum sentido pensar que a viagem do rabi Yehuda ha-Levi entre o al-Andalus e o Norte de África, que, em 1140, Amran b. Itzhak, em Alexandria, anunciou com grande alegria e ansiedade que se realizaria no “novo barco do sultão”116 ao mesmo Halfon b. Nethanel, que já se encontrava em Fustat, tenha tido ao comando o dito sultão, personagem não especificada na missiva, mas que Goitein defende corresponder a Yahia b. Abd al-Aziz, último soberano hamádida de Bugia, na atual Argélia.117 Nesta carta, surge uma nova referência aos “barcos do alcaide” – Ibn Maymun –, em que viajaram os judeus que contaram a Amram sobre a chegada do polímata andaluz.118 Um poema de Yehuda ha-Levi, composto justamente no mar, mostra as condições a que os viajantes se sujeitavam: “Enjoado, com medo dos piratas, das tempestades e dos muçulmanos. Ele senta-se porque não há espaço para ficar de pé. Deita-se e não tem lugar para os pés. O capitão é um bruto, a tripulação é irresponsável.”119

Amigos e inimigos: estratégias de controlo do Mediterrâneo ocidental

“Era Natal, quando Cristo, da Virgem nascido, banha o obscuro mundo com a divina luz. Enquanto se celebrava a pia festa com elevação, após refulgir o oitavo dia [depois do Natal, ou seja, 2 de janeiro de 1115] sobre o povo devoto, o rei ordenou que a Denia fosse Maimone e deu-lhe uma escolta. Este lançou a proa nas ondas do mar e os pisanos viram a nave, que assaz veloz

.(מרכב אלקאיד בן מימון :Markab al-qa’id Ben Maymun” (árabe grafado em hebraico“ 114 115 Gil et Fleischer 2001, 372. .(מרכב אלגדיד אלדי ללסלטאן :Markab al-gadid aladi li l-sultan” (árabe grafado em hebraico“ 116 117 Goitein 1999, 1:310. 118 Gil et Fleischer 2001, 425. 119 Yehuda ha-Levi [1140] 2011, 26. 290 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

acelerava o seu curso”, diz o Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus.120 Se a velocidade e a perícia de Ibn Maymun, o futuro alcaide-do-mar almorávida, não foram suficientes para salvar Maiorca da destruição infligida pelos pisanos e seus aliados, garantiram o arquipélago das Baleares ao império berbere e um lugar de destaque ao marinheiro de Denia na estratégia naval dos emires de Marraquexe. Tal como a de Bona/Annaba, em 1034,121 e a de Mahdia, em 1087, a primeira contra o poder hamádida e a segunda contra os ziridas, a grande campanha de 1114 a 1115 constituiu uma expedição punitiva contra as atividades corsárias de vários soberanos das ilhas Baleares. Desta luta entre adversários comerciais, saiu a ganhar o lado cristão, que destruiu a capacidade do seu opositor, mas também tirou rendimentos um terceiro contendor, que obteve o arquipélago sem o desgaste da batalha: o Império Almorávida, o qual, nas campanhas de conquista do al-Andalus, apenas tinha conseguido assegurar a fração continental da antiga taifa de Denia. O auxílio benévolo dos almorávidas a um território que escapava ao seu domínio terá, pois, de ser posto em causa, contrariando o discurso oficial das fontes. Se tivessem mesmo interesse nessa ajuda, não aguardariam tantos meses depois do início do cerco, nem necessitariam de um pedido de auxílio para intervir. O mais certo é terem esperado o enfraquecimento do território à custa da intervenção dos cristãos para beneficiarem da situação. Aliás, de acordo com o Liber Maiolichinus, os próprios governantes das Baleares sentiriam o perigo de tal “ajuda”. O soberano do arquipélago, vendo-se pressionado por pisanos e genoveses, considerou entregar o território aos “moabitas”, nome por que eram conhecidos os almorávidas, ou firmar um pacto com os atacantes, ao que os seus conselheiros terão respondido que não poderia esperar-se boa-fé dos primeiros, que oprimiam Denia e Tortosa. Sugeriram, então, que se fizesse um acordo com os cristãos, que estes vieram a recusar,122 prova de que o objetivo não seria apenas obter riquezas e cativos, mas sobretudo destruir o adversário. O autor das Chroniche della Città di Pisa queixa-se de que o rei de Maiorca, embora eunuco, era um valente guerreiro, que “não só depredava o mar Tirreno,

120 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 177-178. 121 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 5; Chronicon Pisanum [1116-1139] 1725, 100. 122 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 61-63. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 291 como também a [costa da] Hispânia [cristã] e a França até aos confins da Grécia” e tinha levado como escravos para as suas ilhas mais de 3000 cristãos.123 Também a Gesta Triumphalia per Pisanos Facta refere que o monarca das Baleares era “tirano, cruel e mau, apesar de eunuco”, pois aprisionava e reduzia ao cárcere muitos cristãos. Assim, “o fogo divino atingiu o espírito dos cidadãos de Pisa e de outros aliados das cidades da Toscana contra Maiorca”.124 Os Annales Pisani, não procurando justificar os motivos da expedição, referem que, beneficiando do incentivo do papa Pascoal II, o povo de Pisa atacou as Baleares com 300 navios. Conquistou a cidade de Maiorca com máquinas de guerra e obteve ouro, prata, vestes e prisioneiros em grande quantidade.125 Do lado muçulmano, atacaram Maiorca em 508 (روم) Ibn al-Qattan al-Marrakushi explica que os rum (7 de junho de 1114 a 27 de maio de 1115) e entraram nela pela força com a ajuda de 120 navios. Mataram muitas pessoas e reduziram outras ao cativeiro no seguimento de um duro cerco.126 Ibn Khaldun limita-se a afirmar que os genoveses se apoderaram de Maiorca no ano de 509 (1115 a 1116).127 Ibn al-Kardabus é, efetivamente, a fonte muçulmana que fornece mais informações. Explica de forma sumária a posição política das Baleares desde a queda do califado de Córdova e a situação de autonomia de que beneficiou a partir da conquista de Denia pelos Banu Hud, de Saragoça. Enaltece a defesa do território conseguida pelos seus soberanos e refere o ataque dos pisanos e dos genoveses com 300 navios, assim como o cerco a Maiorca.128 Ibn al-Kardabus, que atribui a iniciativa da operação a Pisa e a Génova, confirma, pois, a informação no Liber Maiolichinus. No entanto, como explica Flocel Sabaté, a expedição, liderada por Raimundo Berenguer III, era entendida do lado de Pisa como coisa de catalanenses – termo usado na fonte –, ainda que tivesse contado com destacada participação italiana.129 Certo é que estes intervenientes agiram de forma concertada. Um acordo comercial entre Pisa

123 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1748, 343. 124 Gesta Triumphalia per Pisanos Facta [1115-1199?] 1725, 90. 125 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 8. 126 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1956, 75. 127 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:83. 128 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 143-144. 129 Sabaté 2005, 240. 292 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

e o condado de Barcelona foi, de resto, firmado em setembro de 1113, pouco depois de a armada da cidade italiana se fazer ao mar, rumo às Baleares. Mas, apesar de uma parceria com evidentes benefícios, surgiram conflitos entre as partes, que tiveram de ser resolvidos com a mediação de um legado papal, o cardeal Boso de Santa Anastácia,130 bastante envolvido na política dos territórios cristãos do ocidente peninsular. O acordo não evitaria outro tipo de problemas, mais do foro cultural, entre os aliados, patentes no Liber Maiolichinus, o qual mostra que, quando as forças italianas chegaram ao arquipélago, encontraram gentes do condado de Barcelona. “Atacaram todos os que viram, crendo-os muçulmanos, mas alguns declararam-se cristãos e catalães, enviados pelo conde de Barcelona e Girona, Raimundo Berenguer III.” Além de o poema referir a expressão “catalães” por diversas vezes, recorre ao topónimo “Catalunha” para agregar uma realidade territorial que, embora fragmentada em diversos condados, começava a ser percecionada como um todo. De resto, desmontando os argumentos da historiografia catalã, a qual propõe que, desde o século XI, a preeminência do condado de Barcelona terá conduzido à unidade dos territórios debaixo do termo Catalunha, Flocel Sabaté explica que este processo de aproximação só começou a consolidar-se na centúria seguinte: “O século XII culmina, na realidade, as linhas de coesão que lentamente convergiram desde o século VIII”, acrescenta. E recorre justamente à expedição sobre as Baleares como momento em que, vistos a partir do exterior – neste caso, das cidades-estado italianas –, os condados do Levante começaram a ser entendidos como uma unidade cultural.131 Ainda sobre o Liber Maiolichinus, merece destaque a dificuldade em distinguir entre cristãos e muçulmanos peninsulares, uma realidade com que, por exemplo, os cruzados que participaram da conquista de Lisboa, em 1147, se veriam confrontados. Os cristãos peninsulares seriam mais semelhantes aos muçulmanos do al-Andalus do que aos seus congéneres italianos ou do norte da Europa.

130 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 9. 131 Sabaté 2005, 236-240. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 293

Ibn al-Kardabus e o Liber Maiolichinus coincidem noutro aspeto: em certa noite, uma nave comandada pelo qaid Abu Abd Allah b. Maymun, ou seja, Muhammad b. Maymun, escapou ao cerco a Maiorca para pedir auxílio junto do poder almorávida. Diz a fonte muçulmana que os cristãos ainda perseguiram o navio durante dez milhas, mas que não tiveram sucesso.132 Estas serão as mais antigas referências ao futuro alcaide-do-mar almorávida, as quais poderão levar a duas conclusões: por um lado, que Ibn Maymun regressou à cabeça dos 300 navios que o emir Ali b. Yusuf mandou construir para libertar as Baleares e, por outro, que a marinha de guerra almorávida terá aqui iniciado a sua carreira. Ambas serão precipitadas. Apesar de Ibn al-Kardabus reconhecer que, por esta altura, Ibn Maymun se tornou especialmente próximo do emir dos muçulmanos, não existem dúvidas de que o comandante da frota que se dirigiu às Baleares era outra personagem, Ibn Taqartas, também referido por Ibn Khaldun.133 Quanto à frota, evidentemente que a construção de 300 navios, necessários para segurar um território com especial interesse para o poder almorávida atendendo à sua posição geográfica, muito deve ter acrescentado ao poderio naval de Marraquexe e é até possível que, mais tarde, pelo menos uma parte, tenha revertido para os cuidados de Muhammad b. Maymun. Porém, sabemos que, desde Zallaqa, os almorávidas contavam com alguma capacidade naval e que, com a conquista das taifas, esta saiu certamente ampliada. Fica também claro, através do Liber Maiolichinus, que possuíam poder de ataque ainda antes da construção dos tais 300 navios: a fonte refere que, durante o curto período em que catalanenses, pisanos e genoveses permaneceram nas Baleares, Ali b. Yusuf mandou devastar as costas do condado de Barcelona.134 Ainda assim, o Império Almorávida não seria propriamente uma potência marítima. Talvez prova disso seja a incapacidade de apoderar-se das Baleares durante as campanhas de conquista do al-Andalus e, deste modo, adquirir a totalidade da taifa de Denia, esta, sim, uma potência dos mares. Como explica Gino Benvenuti, no final da primeira década do século XII,

132 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 144. 133 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 145; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:83. 134 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 143. 294 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

bastava abater os muçulmanos das Baleares para libertar o Mediterrâneo ocidental e tornar inofensivos os inimigos dos cristãos,135 já que os ziridas se encontravam debilitados pela destruição de Zawila e Mahdia, em 1087, e em fase de reconstrução da sua armada.136 A aniquilação das Baleares tornava as atividades corsárias do lado muçulmano menos devastadoras para os interesses cristãos, numa época em que o poder almorávida ainda não dava mostras de ser um adversário digno de nota. A situação estava, no entanto, prestes a mudar. As fontes não esclarecem sobre as exatas origens de Ibn Maymun, mas sabe-se que era proveniente de Denia. Pierre Guichard sugere que descenderia de berberes clientes dos omíadas e pertencesse aos sanajas,137 o que poderia justificar a aproximação ao emir Ali b. Yusuf, do mesmo ramo tribal. Também não é certo ao serviço de quem se encontraria o marinheiro quando os cristãos atacaram as Baleares. O Liber Maiolichinus avança que recebeu a ordem de levar a carta com o pedido de ajuda, o que poderia significar que devia obediência ao soberano do arquipélago. Ibn al-Kardabus é neutro, limitando-se a dizer que Ibn Maymun transportou a carta, pois estaria no lugar certo à hora certa. Seja como for, é razoável afirmar que um tal pedido de auxílio só pudesse ser entregue por intermédio de alguém de confiança, pelo que é de admitir alguma ligação entre Ibn Maymun e os governantes das Baleares. Até podemos avançar a hipótese de o alcaide ter tido uma quota-parte nas operações corsárias que tornaram o arquipélago um alvo a abater pelos cristãos e que, perdida a situação, tenha habilmente transitado para junto do poder almorávida, passando a atuar em nome dos emires de Marraquexe nos mesmos moldes em que o faria ao serviço do poder com sede nas Baleares. Mas analisemos com mais pormenor a carreira almorávida nas lides dos mares, nesta cronologia. O al-Bayan al-Mugrib refere um raide de Muhammad b. Maymun, já sob o título de alcaide da esquadra almorávida, a Cortona. O texto encontra-se muito truncado, mas, pelo encadeamento, estes eventos poderão remontar mais ou menos a 1118. Um avultado saque e grande número de cativos tiveram Almeria

135 Liber Maiolichinus de Gestis Pisanorum Illustribus [1115-1120?] 1964, 8. 136 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:25. 137 Guichard 1989, 11. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 295 como destino.138 Admitindo que a informação sobre Cortona está correta, como interpretar um ataque a uma cidade no coração da Península Itálica, mais exatamente na fronteira entre as regiões da Toscana e da Úmbria? Qual o interesse dos almorávidas numa tal campanha militar? Uma expedição punitiva contra um adversário? Ou teriam sido contratados como mercenários por outra potência? Ambas as possibilidades são problemáticas: para chegarem a Cortona, teriam provavelmente de entrar pelo rio Arno, passando por Pisa e também por Florença. Portanto, mesmo que contassem com o apoio de uma das cidades, teriam de lidar com potenciais atacantes da outra. E, embora não saibamos exatamente em que data este ataque ocorreu, podendo apenas suspeitar de que tenha acontecido por volta de 1118, lembremos que ligeiramente mais tarde, Pisa e Florença, que já mantinham uma rivalidade, se encontravam em conflito devido às questões que opuseram guelfos e gibelinos. Enquanto Florença escolheu defender o papado, que apoiava a casa de Welf na sucessão ao trono germânico, Pisa manteve-se do lado dos Hohenstaufen, senhores do Castelo de Waiblingen. Teriam os almorávidas interesse em imiscuírem-se em conflitos que dividiram profundamente as principais cidades italianas? Devemos, pois, admitir a possibilidade de um erro na identificação do local: lembremos que o nome teve de ser transposto para árabe pela fonte muçulmana e, de novo, convertido, neste caso para espanhol, uma vez que foi para esta língua que Huici Miranda traduziu o al-Bayan al-Mugrib. Já para não falar do facto de as fontes muçulmanas se replicarem entre si, ou seja, de recorrerem a textos anteriores na sua redação: nestas transposições, algo pode ter-se modificado. Na sua Storia di Cortona, Paolo Ucelli não descarta a possibilidade de a cidade ter sido alvo de ataques muçulmanos, “que infestaram principalmente a Itália meridional”, mas confessa não ter dados que o confirmem.139 Tal como o próprio Ucelli reconhece, estes ataques visaram sobretudo o sul do território, pelo que, na linha de ideias de um erro na fonte, podemos formular a hipótese de não se tratar de Cortona, mas da cidade de Crotone, também designada como

138 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 155. 139 Uccelli 1835, 13. 296 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Crotona ou Cotrona,140 e localizada na região da Calábria, mesmo à entrada do e à qual (قطرنة) Golfo de Taranto, que al-Idrisi regista sob o nome de Qutruna atribui construção antiga e população considerável.141 A costa da Península Itálica, e sobretudo o sul, foi fustigada pelas frotas muçulmanas, provenientes de África ou da Sicília, desde o século IX.142 Uma forma de fazermos a prova dos nove seria, evidentemente, consultar a edição em árabe ou o manuscrito que Huici Miranda utilizou para traduzir o al‑Bayan al-Mugrib. Mas, como o próprio explica, tanto na introdução à tradução da obra de Ibn Idari, como no artigo “La Salida de los Almorávides del Desierto y el Reinado de Yusuf b. Tashfin”, publicado na revista Hespéris, recorreu a fragmentos encontrados na zawiyya de Tamagrut, na região do Dra, em Marrocos, e na mesquita al-Qarawiyyin, em Fez, ampliando a informação nos manuscritos que já tinham sido editados por Dozy, Lévi-Provençal e Colin. O primeiro destes dois fragmentos alarga a cronologia abarcada pelos manuscritos do al-Bayan al-Mugrib conhecidos até então na parte relativa ao Império Almóada, fazendo-a começar em 1139, enquanto o segundo fornece informações sobre o movimento almorávida.143 A questão é que, segundo indica Mariano Arribas Palau na revista Hespéris-Tamuda, justamente numa recensão a propósito da tradução de Huici do al-Bayan al-Mugrib, a parte relativa aos almorávidas perdeu-se144 – o próprio Huici afirma que trabalhou com fotocópias do manuscrito. Ou seja, quanto a este fragmento, a tradução do arabista espanhol parece ser tudo o que temos. Somos, assim, obrigados a procurar entre as edições em árabe disponíveis e, na que foi organizada por Ihsan Abbas, em 1983, a sorte começa a sorrir. Apesar de a informação relativa ao Império Almorávida ser muito menos ampla do que aquela que podemos encontrar na tradução de Huici, existe menção à campanha que nos trouxe a este raciocínio. O texto é igual ao que encontramos

140 Por exemplo, o papa Gregório Magno, em 592, escreveu ao bispo de Squillace para designá-lo visitador da diocese de Crotona, de modo que fosse feita a eleição de um novo prelado. A missiva começa da seguinte forma: “A morte do bispo da cidade de Cotrona tem relação direta com o nosso anúncio.” Já em nota de rodapé, os editores explicam: “Crotona ou Cotrona . . . A cidade de Crotona é próxima de Squillace” (Ewald et Hartmann 1891-1899, 140). 141 Al-Idrisi [1145-1166?] 1836-1840, 2:118. 142 Carile et Cosentino 2004, 135. 143 Huici 1959, 155-160. 144 Arribas Palau 1963, 251-253. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 297 no “Bayan de Huici”, mas finalmente detetamos a forma para designar a cidade o que nos remete imediatamente para a Qutruna de al-Idrisi,145 ,(قطرون) atacada: Qutrun e de forma muito fiel para a Cotrona dos textos latinos, e nos leva a concluir que a opção de Huici por Cortona não terá sido a mais correta. O problema aqui é a posição desta passagem na narrativa. Se, pelo encadeamento textual na tradução de Huici, podemos levantar a hipótese de 1118, na edição de Ihsan Abbas, como aparece na sequência de uma notícia de 1123, o evento é transferido para o último ano. Mas, quer em 1118, quer em 1123, o território encontrava-se, evidentemente, em posse dos normandos da Sicília, o que demonstra que estes terão sido dos primeiros alvos dos almorávidas depois de os berberes estruturarem a sua política naval a partir de 1115, no contexto do ataque pisano-genovês às Baleares. Em causa, estaria muito provavelmente a influência que os normandos exerciam sobre o Norte de África e, em concreto, sobre o reino zirida de Mahdia. Mas, se dúvidas houver sobre a identificação desta cidade, podemos deter-nos em 1122, quando as várias edições do al-Bayan al-Mugrib, mas sobretudo Ibn Khaldun, no Kitab al-Ibar, aludem a um novo ataque almorávida contra os normandos da Sicília. Ibn Khaldun mostra que tanto os ziridas, a partir de Mahdia, como os seus parentes hamádidas, de Bugia, mantinham correspondência regular com os almorávidas e procuravam alojar-se nas graças dos soberanos de Marraquexe. Os ziridas, pela proximidade, detinham também um acordo de paz com a Sicília de Rogério II, facto suficiente para suscitar a ira almorávida. Certamente na tentativa de quebrar tais acordos e indispor os aliados entre si, uma esquadra liderada por Muhammad b. Maymun devastou as costas da Sicília, massacrou parte da população e reduziu outra ao cativeiro. O soberano normando convenceu-se de que o ataque havia sido instigado pelos ziridas, pelo que enviou duas frotas contra Mahdia. Face à maior debilidade desta cidade, que acabara de ser atacada, o soberano de Bugia, Yahia b. Abd al-Aziz, procurou tirar partido da situação e ordenou também um ataque por terra e mar. Ante o perigo, o príncipe zirida apressou-se a restabelecer a paz com os normandos da Sicília, que lhe prestaram auxílio e obrigaram os hamádidas a desistir.146

145 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 4:66. 146 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:26-27. 298 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Ibn Idari não fornece tantas informações, mas, ao contrário de Ibn Khaldun, refere que no início desta campanha o alcaide da frota de Ali b. Yusuf, Abu Abd Allah Muhammad b. Maymun, atacou uma cidade que se encontrava debaixo da influência de Rogério, senhor da Sicília: Baqutura, na tradução de Huici.147 Apesar de o texto ser igual na edição de Ihsan Abbas, o termo aqui ,Esta forma faz, evidentemente .(نقوطرة) registado para a mesma cidade é Naqutra lembrar a Qutruna de al-Idrisi ou a Qutrun da edição preparada pelo arabista palestiniano, reforçando o argumento de a primeira campanha naval almorávida ter sido organizada contra Crotona, hoje Crotone, e não Cortona. Ou seja, é provável que os almorávidas iniciassem os seus ataques à Sicília pelo sul da Calábria, “debaixo da influência de Rogério”, e descessem para as zonas costeiras da ilha. A ser verdade, o sul da Península Itálica permaneceria, como em séculos anteriores, um local muito apetecível para os ataques muçulmanos. Mais: na edição de Abbas, para o ano de 510 (16 de maio de 1116 a 5 de maio de 1117), é anotada de forma breve uma campanha ordenada por Ali b. Yusuf e executada pelo alcaide-do-mar, Muhammad b. Maymun, contra os cristãos, em que, nas palavras da fonte, foram raziados muitos lugares conhecidos.148 Embora não tenhamos noção dos alvos dos ataques, esta notícia mostra que o poder almorávida assumiu a prática do corso logo desde a campanha das Baleares e eventos correlacionados, quando terá estruturado a sua política naval, o que faz sentido, pois uma frota era um instrumento dispendioso, que deveria ser rentabilizado. E, no início da década de 1120, é evidente que o império de Marraquexe era já um ator geoestratégico a considerar. Senão, vejamos. Em 1115, interveio nas Baleares; em 1116, atacou territórios cristãos não identificados; em 1117, saiu do Mediterrâneo e subiu a costa atlântica para devastar Coimbra; em 1118 ou 1123, lançou-se contra Crotona; e, em 1122, devastou o sul da Península Itálica e a Sicília. Aliás, o poder almorávida seria já um novo ator desde Zallaqa e da conquista do al-Andalus. Acaba por ser esse o sentido da carta que Yusuf b. Tashfin dirigiu a Tamim de Mahdia após a vitória sobre os cristãos: posicionar-se como um competidor a não ignorar. Tanto assim

147 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 155. 148 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1983, 4:62. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 299 seria que alguns príncipes hamádidas, como explica Ibn Khaldun, mantinham correspondência – relações diplomáticas – com os emires almorávidas desde a conquista do al-Andalus.149A capacidade naval de Marraquexe deve ter crescido a ponto de forçar um acordo de paz com Pisa no início da década de 1130 e, pelos indícios disponíveis, também com Génova poucos anos depois, embora fique por explicar a quem terá pertencido a iniciativa em ambos os casos. A república de Pisa, como diz al-Zuhri, comerciava tanto por terra como por mar e chegava até ao extremo da Síria, de Alexandria e do Egito, ao extremo do Magrebe e ao al-Andalus.150 Já al-Idrisi refere que Génova era uma cidade antiga e rica, que se dedicava ao comércio por terra e mar, e cujas frotas formidáveis lhe permitiam fazer razias e manobras militares.151 Mas, se era evidente o poderio económico e naval destas duas cidades, também parece claro que as expedições punitivas que organizavam contra adversários comerciais visavam tirar partido de momentos de grande instabilidade, procurando atacar, não no auge da força do inimigo, mas quando se encontrava mais debilitado, prova de que todos os intervenientes no Mediterrâneo se vigiavam e estavam a par das conjunturas políticas por que passavam. Vejamos caso a caso. A campanha de Bona/Annaba, em 1034, ocorreu numa altura em que, por um lado, os hamádidas procuravam consolidar a sua posição enquanto dinastia autónoma do poder zirida e, por outro, o soberano de Mahdia, al-Muizz b. Badis, experimentava conflitos com o Cairo fatímida, por ter rejeitado as doutrinas xiitas dos seus suseranos, e tentava marcar posição política na Sicília (ainda) muçulmana. O saque pisano a Palermo, em 1063, ocorreu numa época em que normandos e ziridas se guerreavam para assumirem uma posição hegemónica na ilha, que os primeiros haviam de conquistar completamente em 1091. Já em 1087, o príncipe zirida de Mahdia, Tamim b. al-Muizz, filho do precedente, apresentava graves dificuldades em controlar um território que sofria com as consequência da invasão perpetrada pelos Banu Hilal com a conivência dos califas do Cairo, como vingança pela proclamação dos abássidas de Bagdade

149 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:52-53. 150 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 229. 151 Al-Idrisi [1145-1166?] 1836-1840, 2:249. 300 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

e pela recusa do xiismo. Em 1114, as Baleares encontravam-se em situação de isolamento político, escapando ao domínio de Marraquexe, que, talvez por falta de superioridade naval, não conseguia controlar o arquipélago. Por sua vez, a Almeria almorávida, em 1147, sofria o abandono do poder central, que se tinha desmoronado tanto no Magrebe como no al-Andalus. O caráter tardio da operação sobre esta cidade faz certamente prova da incapacidade naval cristã contra os homens do deserto, embora também possamos considerar, neste contexto, os acordos de paz firmados entre Pisa e com toda a probabilidade também Génova e o Império Almorávida. Efetivamente, os Annales Pisani assinalam um acordo, com a duração de dez anos, entre almorávidas, pisanos e uma terceira parte que não é de identificação imediata, mas que nem por isso suscita grandes dificuldades: “A.D. No ano da Incarnação de 1134, a 6 nonas de julho, foi firmada a paz por dez anos entre os pisanos, o rei de Marrocos, o rei de Tremisiana e o Gaidum Maimonem. Duas galés deles vieram a Pisa.”152 Se o alcaide (gaidum) Ibn Maymun e o rei de Marraquexe não oferecem problemas quanto à identidade, alguns autores, como Michele Amari, defendem que Tremisiana seria Tlemcen.153 Foneticamente, faz sentido. O problema é que o “rei de Tlemcen” era o “rei de Marraquexe”, ou seja, o emir Ali b. Yusuf, pelo que talvez a fonte tenha reproduzido erradamente o topónimo. O mais provável é que o acordo tenha envolvido o sultão hamádida de Bugia, aliado do poder almorávida e protagonista de uma política naval semelhante, tal como decorre dos trabalhos de Goitein.154 Seja como for, sabemos que duas galeras, lideradas por Muhammad b. Maymun, o representante do emir de Marraquexe, chegaram a Pisa em julho de 1134, a escassos meses de o papa Inocêncio II, protegido pelas elites da cidade, pelo imperador germânico e por prelados francos, como São Bernardo de Claraval, apelar a um concílio contra o antipapa Anacleto II, que tinha coroado Rogério I como rei da Apúlia, da Calábria e da Sicília, o último território com o estatuto de caput regni,155 e contava, por isso, com o apoio e a

152 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 9. 153 Amari 1872, 379. 154 Goitein 1999, 1:310 e 479. 155 Wieruszowski 1963, 48-49. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 301 expressão naval normanda. O concílio veio a realizar-se em maio de 1135. Com os conflitos ao rubro pela cátedra de São Pedro, outro pleito se desenrolava entre Pisa e Génova: a disputa pela soberania da Sardenha. O estatuto que Pisa procurou enquanto protetora de Inocêncio, fazendo a guerra aos normandos da Sicília durante anos consecutivos, situação bem clara tanto nas fontes pisanas como normandas, rendeu-lhe o reconhecimento do seu domínio sobre a ilha.156 A Córsega acabou dividida, em jeito de prémio de consolação para Génova, que viu o papa entregar a outra metade a Pisa.157 A esta última república, próxima do papado e com um papel ativo na Primeira Cruzada, preeminência capaz de elevar o seu bispo, Daiberto, a patriarca de Jerusalém, a qual somava um assinalável currículo de expedições punitivas contra os muçulmanos entre os séculos XI e XII, não repugnavam, pois, os acordos com o Crescente. O mesmo comportamento, de resto, demonstrava Génova. Temos notícia indireta de um acordo entre esta cidade e Marraquexe. Encontramo-la num documento proveniente de Marselha, com data de 1138, que traduz um acordo de cooperação entre esta cidade do sul de França e a república italiana. Prometiam os marselheses auxílio a Génova, em terra ou no mar, pelo período de dez anos. Dispunham-se ainda a compensar os genoveses, se conseguissem para Marselha a paz com o rei de Marrocos.158 O documento sugere, pois, que Génova já teria algum tipo de acordo com os almorávidas e que poderia interceder por Marselha, para obter idênticas condições. Não se sabe em que data terá sido celebrado o acordo, mas ainda em 1137 os Annales Ianuenses registaram um ataque de Génova a navios almorávidas,159 pelo que pode ter sido pouco depois, quem sabe por volta de 1138. Tais parcerias não corresponderam a situações pontuais, tornando-se mais a regra do que a exceção na carreira política de Pisa e Génova, que procurou uma estratégia de aproximação aos grandes potentados do Mediterrâneo. E, talvez sem surpresa, voltamos a encontrá-las ao tempo do Império Almóada. Michele Amari

156 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1748, 366; Alessandro Telesino [1127-1136?] 1724, 631, 634-635, 638 e 639. 157 Steinberg 1966, 40. 158 Mas Latrie 1866, 88-89. 159 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1890, 1:29. 302 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

publicou um conjunto de documentos que refletem a troca de correspondência, redigida em árabe, entre o então arcebispo de Pisa e os representantes do califa Abu Yaqub Yusuf (1163-1184). As cartas aludem a aspetos muito concretos da atividade comercial, mas, até pela adoção do árabe, percebe-se uma maior aproximação de Pisa ao califado, inevitavelmente com funcionários proficientes nesta língua ao seu serviço. Os formalismos iniciais da correspondência são dignos de nota, pelas soluções híbridas utilizadas, reflexo do pragmatismo no mundo dos negócios. Atente-se no primeiro diploma da coleção, produzido pela chancelaria almóada: “Ao ilustre e nobilíssimo arcebispo de Pisa160 e aos ilustres xeques, cônsules, condes e notáveis e ao povo dessa [cidade], que Deus o guie com o seu favor e pelo bom caminho.”161 Do lado de Pisa, os salamaleques não eram menores e, no segundo documento publicado por Amari, podemos ler:

Em nome de Deus, o clemente, o misericordioso. Graças a Deus como é devido. Ao príncipe dos crentes, cujo governo Deus favoreça e exalte com a vitória. Reverente da sua dignidade e pronto a servi-lo, Ubaldo, arcebispo de Pisa e primaz da Córsega e da Sardenha,162 os cônsules, os condes, os anciãos e os ministros da autoridade pública desta cidade saúdam sua majestade e desejam-lhe a clemência e a bênção de Deus.163

É ainda de assinalar a fórmula usada pelas chancelarias almóada e pisana para designar Ubaldo: ark. Se bem que esta já se encontre sob a forma de prefixo na palavra “arcebispo”, o seu uso enquanto termo isolado remete para o grego arkhon, termo que designa “chefe” ou “líder”. Sem surpresa, Génova também não quis ficar para trás, e os Annales Ianuenses sublinham, por exemplo, a designação, em 1191, de representantes junto de Yaqub al-Mansur, o califa almóada, que se encontrava em ascensão militar no al-Andalus.164 Quanto ao acordo que Pisa estabeleceu com o poder almorávida e com os soberanos hamádidas, deixava de fora dois óbvios competidores: por um

.(ارك بيشة) ”Ark Bisha“ 160 161 Amari 1863, 1. .(ابلده ارك بشة و صاحب كرسقة و سردانية) ”Ubaldu Ark Bisha wa Sahib Kursiqa wa Sardaniyya“ 162 163 Amari 1863, 7. 164 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1890, 2:41. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 303 lado, os ziridas de Mahdia, politicamente próximos da Sicília normanda (inimiga dos interesses de Pisa e de Inocêncio II) e ainda adversários dos senhores de Bugia e, por outro, Génova, a eterna rival da cidade da Toscana e preterida na questão da Sardenha, apenas compensada com metade da Córsega. Veneza, à partida, estaria automaticamente excluída, porque demasiado envolvida com os interesses bizantinos e do reino de Jerusalém para que pudesse intervir no Mediterrâneo ocidental. O afastamento de ziridas e genoveses do acordo tinha óbvias consequências. Por exemplo, em 1137, num momento em que já era aliado de Pisa, o Império Almorávida sofreu um ataque das naves de Génova, que lhe ditou a perda de embarcações e carga, tal como relatam com entusiasmo os Annales Ianuenses,165 fonte que já se regozijara devido a um ataque contra um navio de Bugia no ano anterior.166 Os genoveses procuravam, assim, debilitar as partes que firmaram o acordo. Pelos indícios que nos chegam da documentação de Marselha, talvez procurassem forçar um acordo com condições idênticas, tanto para si como para os seus aliados. Se o poderio naval almorávida entrou em fase de ascensão ao longo dos anos de 1120, as fontes revelam que a intervenção no Mediterrâneo se tornou mais diversificada. Al-Zuhri, traduzido para espanhol por Dolors Bramon, com base num manuscrito tradicionalmente conhecido como o Anónimo de Almeria, e editado em árabe por Mahammad Hadj-Sadok com base em oito manuscritos com informação mais ampla, faz alusão a várias campanhas dos Banu Maymun, família de marinheiros ao serviço do poder almorávida. O geógrafo refere que Muhammad b. Maymun, a partir da cidade de Almeria, e Isa b. Maymun, com ponto de partida em Sevilha, atacaram Arminiyya al-Kubra em vagas sucessivas, e que o último aqui faleceu e foi sepultado. Acrescenta que Muhammad b. Maymun conquistou este território da Arminiyya al-Kubra.167 Já o almirante de Sevilha, ainda nas palavras de al-Zuhri, chegou a atacar a cidade de Urfa.168 Outro dado relacionado com os Banu Maymun é referido

165 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1890, 1:29. 166 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1890, 1:28. 167 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 232. 168 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 232. 304 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

na entrada sobre Almeria do mesmo compêndio de geografia, informação esta ausente da tradução espanhola: Lubb b. Maymun atacava com frequência a al-Fanfar? Al-Fanafar? Al-Finafar?], segundo Hadj-Sadok também] الفنفر cidade de Minfar? Minafar? Manafar?], localizada no país de Arman, partindo] منفر grafada do grande porto do al-Andalus. Al-Zuhri declara: “E o povo desta cidade não tem paz nos seus corações nem nas suas almas, e muitos têm grande piedade dele.”169 Numa primeira leitura, estes ataques apontam para o Oriente, mas, por parecerem demasiado descentrados da área de interesses do poder almorávida, podem mesmo suscitar dúvidas quanto à sua veracidade. Procuremos, todavia, é, sem (عرفة ) dar-lhes algum sentido. Na tradução espanhola, a cidade de Urfa grandes surpresas, identificada como Edessa – a Encyclopaedia of Islam também estabelece a correspondência entre os dois topónimos.170 “A cidade de Edessa (Urfa) foi tomada por Isa b. Maymun.”171 Com esta frase termina o parágrafo 191 do tratado de al‑Zuhri, o qual segue para uma entrada sobre o território de Arminiyya al-Kubra. Eis a leitura de Dolors Bramon, vertida para português: “Continuando para norte, está localizada a cidade de Arminiyya al-Kubra, que é a mais fria da região, porque fica a norte. Habitam-na povos rum [cristãos], ainda que as suas origens sejam cazares. Mas os rum conquistaram-na e eles regem-se pela religião cristã.”172 Se, a estas declarações, juntarmos a informação no parágrafo 195, a qual diz que os povos que habitavam tal região faziam incursões naquilo que Dolors Bramon traduz por “mar dos cazares”173, ou seja, um dos nomes atribuídos ao mar Cáspio, todos os indícios parecem confirmar que os Banu Maymun atacavam com frequência a Arménia, a qual chegaram a conquistar, juntamente com a cidade de Edessa, ainda que não consigamos identificar vários dos topónimos referidos. Por exemplo, a que se refere al-Zuhri quando menciona “a cidade de Armniyya al-Kubra” ou “al-Fanfar”, com as suas possíveis derivações? As informações do geógrafo não incluem datas, mas temos de considerar que o território da Arménia se encontrava em poder dos

169 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 206. 170 Honigmann 1934, 993-998. 171 Al-Zuhri [1150-1170?] 1989, 132. 172 Al-Zuhri [1150-1170?] 1989, 132. 173 Al-Zuhri [1150-1170?] 1989, 132. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 305 turcos seljúcidas desde 1071, quando o Império Bizantino perdeu a Batalha de Manzikert, e que, no curso da Primeira Cruzada, os francos se apropriaram de Edessa e aí formaram um condado até dezembro de 1144, momento em que a cidade foi recuperada para o islão por Imad al-Din Zengi. Mesmo que estes factos coloquem evidentes dificuldades quanto às informações traduzidas por Dolors Bramon, já que os referidos territórios não possuem ligação direta ao mar e os Banu Maymun teriam de ultrapassar grandes obstáculos para alcançá-los, ainda para mais com a frequência mencionada, aceitemos o desafio de explorar algumas hipóteses explicativas. Comecemos por articular as informações de al-Zuhri (tal como no-las apresenta a tradução espanhola) com as avançadas nos Annales Pisani, sobre o acordo de paz entre o império de Marraquexe e a cidade do rio Arno. Atentemos, depois, no quadro geopolítico do Mediterrâneo no momento em que Muhammad b. Maymun aportou em Pisa para assinar o acordo em nome do emir Ali b. Yusuf. O conflito entre Inocêncio II e Anacleto II pela cadeira de São Pedro encontrava-se no auge, com as partes a procurarem aliados entre as principais forças políticas ocidentais. A Oriente, o Império Bizantino preparava-se para endurecer argumentos contra os Estados francos e, especialmente, contra o de Antioquia, cuja existência considerava uma afronta e uma traição, visto que o normando Boemundo de Taranto, no âmbito da Primeira Cruzada, depois de jurar devolver a Aleixo I Comneno todos os territórios conquistados aos turcos que antes tivessem pertencido a Constantinopla (de resto, como os restantes cruzados), se apropriou da cidade e aí estabeleceu um principado e uma linhagem. Antioquia constituiu um problema desde o início, atendendo também à natural desconfiança dos bizantinos face aos normandos, resultante do expansionismo dos segundos à custa dos interesses dos primeiros ao longo do século XI. Se a constituição dos Estados francos era um problema para os bizantinos, as repúblicas italianas desde há séculos que intervinham no Oriente, sustentando o poder de Constantinopla. Desde 1111 que Pisa era aliada do império, que concedeu aos seus habitantes vastos privilégios para comerciarem no território. Pelos termos destes acordos, Pisa reconhecia a suserania de Constantinopla e 306 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

apoiava todas as suas aspirações à recuperação dos territórios perdidos para os turcos e depois subtraídos pelos cruzados. E, embora os bizantinos não pudessem proibir os negócios pisanos com os Estados francos, como o lucrativo transporte de peregrinos, foi firmada uma aliança implícita para derrubá-los, já que o acordo deixava claro que Constantinopla via os cruzados como rebeldes, ou seja, gente que lhe jurara fidelidade e depois quebrara a palavra. Vários são os argumentos para justificar este acordo entre Pisa e o Império Bizantino. Segundo uma versão, poderia destinar-se a retirar o apoio pisano às campanhas militares do principado de Antioquia e a enfraquecer a sua posição. De acordo com outra teoria, poderia ter sido forçado por Pisa, para ampliar o seu poderio comercial, em troca de apoio naval ao império, francamente debilitado a este nível. Mas também era certo que Pisa mantinha conflitos com o reino de Jerusalém, devido à destituição do arcebispo Daiberto por Balduíno I, o que agradava a Constantinopla, e pode ter justificado a sua escolha em detrimento de Génova, cujos interesses na Síria eram demasiado fortes para que deles pudesse desistir.174 Já com Veneza o Império Bizantino tinha firmado um acordo comercial mais amplo, que, contra auxílio naval, incluía inclusive doações anuais às igrejas desta cidade.175 Veneza, de resto, também havia negociado com o reino de Jerusalém os termos do seu auxílio na conquista de Tiro, como nos conta Fulquério de Chartres. Por exemplo, em cada cidade do reino, os venezianos teriam uma igreja, uma rua, uma praça, balneários e um forno isento de impostos. Poderiam instalar-se livremente em Acre, embora estivessem sujeitos a limitações em Jerusalém. Receberiam igualmente um terço das cidades de Tiro e de Ascalão uma vez assegurada a sua conquista, e adquiriam o direito de estabelecer um tribunal para dirimir conflitos entre as suas gentes.176 Resumindo, à medida que o Império Bizantino foi perdendo centralidade, as cidades italianas começaram a expandir-se e a intervir no Oriente, mercê da necessidade de Constantinopla suster os ataques dos povos vizinhos, como os

174 Lilie 1993, 87-90. 175 Carile et Cosentino 2004, 125. 176 Fulquério de Chartres [1098-1127?] 2014, 89-91. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 307 seljúcidas. Veneza foi, de longe, a mais beneficiada, mantendo relações comerciais com o império desde o século IX. Mas, com o advento das cruzadas, Pisa ganhou também um lugar de destaque na geopolítica levantina. De resto, todas as principais cidades italianas, incluindo Amalfi antes da conquista normanda, tiveram interesses económicos no Oriente,177 mas também em territórios ocidentais. A título de curiosidade, o Muqtabis, de Ibn Hayyan, regista a chegada de amalfitanos ao al‑Andalus por duas vezes no ano de 942 para negociarem produtos de luxo, parte dos quais o próprio califa Abd al-Rahman III adquiriu.178 As cidades-estado italianas funcionavam, assim, como “agentes duplos” face ao Império Bizantino: beneficiavam de acordos comerciais para se enriquecerem em troca de ajuda militar, mas também atentavam contra os interesses de Constantinopla quando se associavam ao projeto das cruzadas, daqui procurando também extrair rendimentos. E, se não foram capazes de formar Estados no Oriente, procuravam tirar partido da sua existência e do nervosismo bizantino devido a essa mesma existência. Ora, com a morte do imperador Aleixo I Comneno, em 1118, e a ascensão do seu filho João II, os conflitos com os Estados francos agudizaram-se, e a recuperação de Antioquia tornou-se uma verdadeira urgência nos anos de 1130. Vejamos a situação dos territórios que mais problemas levantavam ao basileus nesta cronologia. Em 1136, a situação política no principado de Antioquia sofreu mudanças consideráveis, com a influência normanda a desvanecer-se quando a herdeira do trono, Constança, se casou com Raimundo de Poitiers, filho do duque da Aquitânia e tio de Leonor, futura mãe de Ricardo Coração de Leão e de João Sem Terra. Apoiada pelo reino de Jerusalém, a aliança irritou Constantinopla que em breve iria pôr cerco a Antioquia e forçar Raimundo a prestar vassalagem a João II Comneno, a permitir-lhe livre entrada na cidade e a hastear o estandarte imperial na alcáçova. Obrigou-o ainda a fornecer auxílio em campanhas militares e a prometer que, em caso de conquistar Alepo e Shaizar aos seljúcidas, estas cidades seriam trocadas por Antioquia.179 João Cinamo refere ainda que

177 Carile et Cosentino 2004, 123. 178 Ibn Hayyan [1000-1076?] 1981, 358-359 e 365. 179 Lilie 1993, 120-121. 308 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Raimundo foi forçado a deslocar-se a Constantinopla para prestar vassalagem ao basileus.180 Já o condado de Edessa, o mais vulnerável dos Estados francos, com a capital para lá do rio Eufrates e o único sem acesso ao mar, mantinha boas relações com o principado arménio da Cilícia, mas é dado por Guilherme de Tiro como inimigo de Antioquia. Diz o cronista, por exemplo, que, durante o ataque dos turcos a Edessa, em 1144, Raimundo de Antioquia, movido pelo ódio, recusou auxílio ao conde Jocelino II. Acusa ainda que nenhuma das partes se importava com a sorte da outra e até se alegrava se fosse atacada, o que, segundo afirma, foi o caso quando Zengi conquistou Edessa.181 Em 1138, Jocelino foi pressionado para se aliar ao imperador João II Comneno e a Raimundo de Antioquia no cerco a Shaizar, campanha que sairia gorada. Mas terá pouco depois instigado uma revolta contra os bizantinos, aproveitando um sentimento negativo das populações contra os senhores de Constantinopla. Portanto, tal como Antioquia, Edessa procurava afastar as tentações dos vizinhos bizantinos, preocupando-se, no entanto, em não suscitar demasiado a respetiva ira. Não sendo propriamente um Estado franco, o principado arménio da Cilícia atentava também contra os interesses de Constantinopla. Nos anos de 1130, os soberanos deste território, acostumados a combaterem os seljúcidas, direcionaram as suas campanhas contra os bizantinos. O basileus, que continuava a considerar o principado – formado por refugiados da Arménia Maior após a derrota infligida pelos turcos na Batalha de Manzikert, em 1071182 – como uma província bizantina, ripostou e, em 1137, conseguiu restaurar o controlo dos territórios, além de aprisionar o soberano e os seus dois filhos em Constantinopla.183 João II Comneno não aceitava estes potentados à sua porta, formados a expensas do Império Bizantino. Mas uma campanha massiva sobre Antioquia poderia desproteger a retaguarda do seu território e conduzir a um pedido de ajuda por parte do principado para um contra-ataque sobre Constantinopla,

180 João Cinamo [1170-1180?] 1836, 33-35. 181 Guillherme de Tiro [1145-1183?] 1976, 140-144. 182 Mateus de Edessa [1090-1140?] 2014, 28-31. 183 Lilie 1993, 108. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 309 tal como explica Ralph-Johannes Lilie.184 O perigo encontrava-se sobretudo associado à frota dos normandos da Sicília, demasiado poderosa para que o basileus pudesse ignorá-la. Daí que, antes de atacar, tenha preparado o terreno no plano diplomático. João II Comneno desdobrou-se em esforços para garantir a não intervenção de potenciais adversários. E é aqui que retornamos aos conflitos entre Inocêncio II e Anacleto II pelo papado. Ora, enquanto o primeiro contendor era apoiado pelos germânicos e pelos pisanos, o segundo obtivera o respaldo dos normandos. Tal como mostram os Annales Pisani, Pisa e Rogério II esgotaram-se em guerras sucessivas em virtude do cisma.185 Por isso, as forças sicilianas encontravam-se demasiado ocupadas e talvez desgastadas para que um ataque a Constantinopla se mostrasse viável. Em agosto de 1135, tal como assinalam os Annales Magdeburgenses – que, de resto, mostram bem de que lado do cisma se encontrava o poder germânico, entre outros, designando Inocêncio II por papa, e Anacleto II pelo seu nome secular, Pietro Pierleoni186 –, o imperador Lotário III recebeu os representantes do basileus de Constantinopla, que o honraram com presentes, com o objetivo de estabelecerem uma aliança contra o “tirano Rogério”, que “tinha vexado o Império Romano e também a terra dos gregos”.187 Esta embaixada, que integrava legados venezianos e fez questão de lembrar as “ofensas” cometidas por Rogério II contra o Império Germânico, foi ainda assinalada pelos Annales Pegavienses.188 Por sua vez, os Annales Pisani destacam a embaixada do mesmo imperador João II Comneno junto de Pisa no ano de 1137: ricos e numerosos presentes foram entregues à cidade,189 o que, embora não seja explícito no texto, significa a necessidade do apoio da república italiana ou, pelo menos, um incentivo para que mantivesse a Sicília entretida na guerra. As Chroniche della Città di Pisa explicitam que, após a conquista de Jerusalém, Pisa fez acordos com Constantinopla, que obrigavam o imperador a oferecer paramentos à Igreja

184 Lilie 1993, 112-113. 185 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 9-11. 186 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 183-184. 187 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 185. 188 Annales Pegavienses [1150-1250?] 1859, 257. 189 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 10. 310 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

da cidade.190 Resumindo, tanto as fontes germânicas como italianas levam à conclusão de que, garantida a não intervenção dos potentados marítimos nos assuntos do Oriente, o Império Bizantino pôde atacar Antioquia e os Estados francos sem obstáculos. Acontece que o Império Almorávida era aliado de Pisa desde 1134, e que al-Zuhri refere ataques, algo inesperados devido à distância e a uma aparente ausência de interesse político, das frotas de Almeria e de Sevilha sobre territórios que se encontravam em conflito com o Império Bizantino, como Edessa. Mas o geógrafo indica ainda várias campanhas sobre a Arminiyya al-Kubra, que, a corresponder à Arménia, se encontrava debaixo do domínio turco. A que título se aventurariam os Banu Maymun por terras do Oriente, em operações arriscadas, quando, porventura, visar os reinos cristãos mais próximos seria mais seguro a todos os níveis? Necessitaria o Império Bizantino de apoio militar, eventualmente fornecido pelos almorávidas, novos aliados da república de Pisa, que se encontrava imersa em guerras contra a Sicília normanda e não lhe poderia prestar auxílio? E como explicar um ainda mais bizarro interesse em atacar possessões seljúcidas? Mais: de que fala realmente al-Zuhri quando se refere a Arminiyya al-Kubra? Arménia Maior, a tradução literal de Arminiyya al-Kubra, é uma realidade que remonta à Antiguidade. Fundado no século IV a.C., este reino perdeu a autonomia em 69 a.C., subjugado por Roma. Ao longo de séculos, o território foi disputado e dividido por vários poderes: partos, sassânidas, bizantinos, muçulmanos. Já no século IX, os arménios conseguiram impor uma dinastia local, reconhecida tanto por Bagdade como por Constantinopla, mas o território continuou a ser alvo da cobiça dos vizinhos e, no século XI, bizantinos e turcos seljúcidas lutavam para impor o seu domínio. Se os bizantinos conseguiram forçar a dinastia arménia a entregar o poder em 1045, a Batalha de Manzikert, em 1071, que se saldou por uma pesada derrota para os gregos, permitiu ao sultão seljúcida Alp Arslan subjugar o território. Ora, o principado da Cilícia foi fundado por arménios que escaparam a estes conflitos e se estabeleceram junto à costa mediterrânica, num território

190 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1748, 368. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 311 bastante menos vasto, que se encontrava na área de interesse bizantino. À época do Império Almorávida, a antiga Arménia Maior estava sob o domínio turco, e o principado arménio da Cilícia procurava defender-se do Império Bizantino. Será que, quando al-Zuhri fala em Arminiyya al-Kubra, está a referir-se à Cilícia? No quadro dos acordos entre o Império Almorávida e Pisa, e entre esta cidade e o Império Bizantino, seria mais plausível que os Banu Maymun tivessem desenvolvido operações sobre a Cilícia do que sobre o antigo território da Arménia Maior, sem ligação à costa mediterrânica e controlado pelos turcos seljúcidas. Mas será esta proposta realmente convincente? Se a partilha da religião muçulmana não seria suficiente para garantir que almorávidas e seljúcidas não se defrontassem em conflitos militares, a menos que surjam informações nesse sentido, os emires de Marraquexe não teriam razões para atacar os turcos. Sem apoio adicional, seria, de resto, bastante arriscado que os contingentes almorávidas, por numericamente expressivos que pudessem ser, se internassem quilómetros a perder de vista em território desconhecido. A questão é que al-Zuhri, na parte em que enaltece as oliveiras de Ruma (uma referência à Grécia e à sua produção de azeite), parece deslocar o nosso raciocínio para outras geografias que não a Arménia ou a Cilícia. Da cidade de Ruma, segundo afirma, era exportado o precioso líquido para todas as partes: “Arménia, Constantinopla e outras no país dos rum.”191 Embora al-Zuhri não refira datas, ficamos com a impressão de que a Arménia a que se refere não poderia ser a região ocupada pelos seljúcidas desde a Batalha de Manzikert, mas um território dominado pelos cristãos. Até porque al-Zuhri escreveu no século XII, depois desta batalha, quando a Arménia – aquela que fica junto ao mar Negro – já estava nas mãos dos turcos. Afinal, as aparentes confirmações dentro da fonte, tal como é traduzida por Dolors Bramon (Arménia, mar Cáspio, etc.), além das interrogações iniciais, começam a evidenciar incoerências. De resto, se atentarmos na ligação entre os parágrafos 190 e 191, que integram a entrada sobre as oliveiras de Ruma, o geógrafo refere que, a oeste desta cidade, se encontra o território de Arminiyya

191 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 232. 312 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

al-Kubra. A que cidade se refere al-Zuhri quando fala de Ruma? Se a menção às oliveiras não for suficiente, basta recuar alguns parágrafos para perceber que se está a referir a Atenas: “Foi a capital política dos gregos, e há nela tantas coisas maravilhosas e extraordinárias, que não se podem abarcar.”192 Ora, a ocidente de Atenas, temos praticamente toda a Grécia, incluindo a Macedónia, e a Albânia. E é aqui que temos de entrar em linha de consideração com as desconfianças de Mahammad Hadj-Sadok, o qual considera que o território da Arminiyya al-Kubra se encontra mal identificado pela própria fonte, confundido com o país de Arman, na sua opinião, Rumaniyya.193 As hesitações do editor de al-Zuhri e as incoerências geográficas e políticas na identificação da Arminiyya al-Kubra como Arménia Maior levam-nos a explorar uma segunda linha de ideias. Os Banu Maymun não atacariam com frequência a Arménia Maior, nas mãos dos turcos, mas uma terra de rum, cristãos, uma Rumaniyya, localizada a oeste de Atenas. Como compatibilizar então esta possibilidade com a referência ao “mar dos cazares”, o Cáspio, onde se aventuravam os habitantes da Arminiyya al-Kubra? E a referência a Urfa, sem margem para dúvidas Edessa, ao norte da qual se localizava, segundo a fonte, o território da Arminiyya al-Kubra? A questão do “mar dos cazares” pode não passar de uma troca de diacrítico: na edição de Hadj-Sadok, vemos que a expressão utilizada por bahr al-khazar) ou “mar dos cazares”, que Dolors Bramon) بحر الخزر al-Zuhri é converteu em “mar dos jazares”. Mas basta colocar o diacrítico debaixo da letra para o sentido mudar completamente. Assim, passamos a ter a letra jim (خ) kha bahr al-jazar), que significa “mar das) بحر الجزرe a expressão converte-se em (ج) ilhas”, algo que aponta mais para o Egeu e já não para o Cáspio. Ou seja, temos mais um indício de que o território que os Banu Maymun atacavam poderia ficar algures nos Balcãs. Mas e Edessa? Ao atentarmos na história desta cidade da Mesopotâmia, verificamos que foi refundada por Seleuco I Nicator, general de Alexandre Magno, no local de um antigo povoamento, e rebatizada por Antíoco IV com um nome helenístico, muito provavelmente devido à antiga capital da Macedónia,

192 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 233. 193 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 81 e 232. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 313 localizada sobre a Via Inácia, entre Dirráquio e Salónica,194 uma estrada que, por exemplo, os normandos utilizaram quando atacaram o Império Bizantino. No primeiro quartel do século XII, esta cidade da Macedónia grega trocou o nome eslavo de Vodena pela designação Edessa, que tinha na Antiguidade. Todas as informações de al-Zuhri parecem agora adquirir algum sentido: a Edessa grega, a escassos 60 quilómetros da baía de Salónica, na qual desaguam os rios Vardar e Halicmon, com os seus afluentes – portanto, com acessos privilegiados – posiciona-se tanto a norte como a oeste de Atenas, a cidade de Ruma. O interesse dos Banu Maymun por esta área não era, pois, de estranhar. No século XII, Salónica correspondia a uma plataforma comercial que atraía mercadores de várias regiões, incluindo da Península Itálica e da Ibéria.195

Fig. 6: Via romana entre o Adriático e o Egeu

Na passagem do parágrafo 191 para o 192 da geografia de al-Zuhri, podemos ler que a cidade de Arminiyya al-Kubra se situa a norte de Edessa. Ora,

194 Honigmann 1934, 993. 195 Kazhdan et al. 1991, 2072. 314 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a norte de Edessa, continuamos a ter a Macedónia, assim como os modernos territórios da Albânia, do Montenegro, da Bósnia-Herzegovina, da Croácia e da Eslovénia. Grosso modo, estamos a falar da costa da Dalmácia, que Paul Stephenson mostra como alternou debaixo da influência do reino da Hungria, da república de Veneza e do Império Bizantino entre 1105 e 1180. Durante a maior parte do período almorávida, foi Veneza quem controlou esta zona.196 A região em torno de Dirráquio (atualmente Durres, na Albânia), mais a sul, pertencia a uma lógica territorial diferente, mantendo-se sob influência bizantina. Na verdade, constituía um tema, ou unidade administrativa e militar, e al-Idrisi coloca-a na terceira secção do quarto clima, juntamente com as cidades italianas do Adriático e da costa ocidental grega, informando ser uma cidade abundante em recursos, com numerosos mercados.197 Para o geógrafo, existe claramente uma fronteira entre o Império Bizantino e os territórios eslavos, sendo a cidade de Dirráquio a primeira sob a alçada de Constantinopla, ao passo que Ragusa é isto é, a Croácia.198 ,(جرواسية) indicada como a última da Jaruasiyya Local de várias batalhas desde a Antiguidade, Dirráquio sofreu em 1081 o cerco das forças normandas lideradas por Roberto Guiscardo.199 Seria a cidade de Arminiyya al-Kubra? Não parece, se tivermos de novo em conta as palavras de al-Zuhri para descrever as gentes desta terra: “Habitam-na povos rum [cristãos], ainda que as suas origens sejam cazares. Mas os rum conquistaram-na e eles regem-se pela religião cristã.” Ou seja, al-Zuhri parece dizer que se trata de populações com origem nas estepes, pelo menos em parte, mas convertidas ao cristianismo. Lembremos o que o imperador Constantino VII Porfirogénito diz dos cazares no tratado De Administrando Imperio, composto no século X: “Estas nações são adjacentes aos turcos.” Assim sendo, talvez tenhamos de excluir Dirráquio, uma cidade bizantina durante todo o período almorávida. Continuemos, pois, a procurar. Eis mais algumas possibilidades, agora na Dalmácia, uma realidade mais de acordo com a descrição de al-Zuhri: Ragusa, hoje Dubrovnik, Spalato/Split

196 Stephenson 2004, 198. 197 Al-Idrisi [1145-1166?] 1836-1840, 2:120. 198 Al-Idrisi [1145-1166?] 1836-1840, 2:268. 199 Stephenson 2004, 160-163. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 315 e Zara/Zadar. Comecemos por recordar que as frotas de guerra muçulmanas faziam incursões no Adriático, tanto nas costas da Península Itálica como nas da Dalmácia, desde o século IX.200 O mesmo imperador Constantino VII Porfirogénito alude a ataques de muçulmanos,201 pelo que podemos concluir que os referidos territórios não lhes eram desconhecidos e que poderia haver inclusive uma continuidade na prática do corso nestas regiões. Mas qual das três cidades indicadas será a melhor candidata? David Abulafia mostra como Ragusa procurou manter uma relação comercial e diplomática com as cidades-estado italianas localizadas na costa do Adriático entre meados do século XII e o princípio do seguinte, e ainda com Pisa, por via da negociação de acordos.202 Tal como Spalato e Zara, Ragusa era sede de arquidiocese, pelo que as três cidades seguiam a religião dos rum. Spalato e Zara mantiveram-se, no entanto, mais tempo sob a influência húngara,203 tal como demonstra o estudo de Judit Gál sobre as lealdades dos bispos e arcebispos da Dalmácia.204 As três cidades são referidas por al-Idrisi na sua obra Nuzhat al‑Mushtaq. Zara (Jadara é descrita como uma cidade vasta, de edifícios contíguos, com muralhas (جادرة ou banhadas pelo mar e habitada por dálmatas.205 Spalato, por sua vez, é grafada ,Asbalato) e indicada como uma cidade pertencente à Dalmácia) اسبالطو como bem construída, com dinamismo comercial e detentora de navios de guerra.206 al-Idrisi diz ,– (رغوسة) e Ragusa (رغورس) Já de Ragusa, com duas grafias – Ragurs ser habitada também por dálmatas, que possuem navios de guerra e são bravos e corajosos.207 O destaque do geógrafo ao nível da capacidade militar vai para Spalato e para Ragusa e, se tivermos em conta a dinâmica comercial apontada por David Abulafia, a última cidade teria preeminência. Ragusa parece, pois, a melhor candidata a “cidade de Arminiyya al-Kubra”. Mas, se de tal não há certezas, surge mais um indício de que o território de Arminiyya al-Kubra poderia corresponder aos Balcãs e, mais concretamente,

200 Carile et Cosentino 2004, 135. 201 Constantino VII Porfirogénito [913-959?] 1967, 127-129. 202 Abulafia 1976, 414. 203 Stephenson 2004, 198. 204 Gál 2014, 471-493. 205 Al-Idrisi [1145-1166?] 1836-1840, 2:267. 206 Al-Idrisi [1145-1166?] 1836-1840, 2:267. 207 Al-Idrisi [1145-1166?] 1836-1840, 2:268. 316 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

à Dalmácia, através da ligação entre as informações na geografia de al-Zuhri. Entre os parágrafos 195 e 196, faz-se a passagem da Arminiyya al-Kubra para a terra de al-Malf, ou seja, a região de Amalfi, “cujos povos são francos”. A fonte parece saltar dos Balcãs para a Península Itálica, o que geograficamente faz sentido. Também revela coerência a referência aos povos da região de Amalfi serem francos, “porque originários de uma cidade cujo nome é Falanda”. Ou seja, a região encontrava-se debaixo do domínio dos normandos, que, de facto, eram povos francos, originários da Normandia, não muito longe da atual Flandres francesa. Nesta entrada, al-Zuhri alude ainda aos tecidos de Aflanda, que se supõe ser a Flandres, e segue então para as regiões mais a ocidente, como Barcelona. Portanto, segundo esta interpretação dos dados, tudo parece adquirir um sentido mais apurado, incluindo a ordem geográfica na apresentação da informação. Resta-nos tentar identificar a cidade de al-Fanfar, com todas as suas possíveis grafias, que al-Zuhri diz ter sido frequentemente atacada por Lubb b. Maymun, a tal que se localizava no país de Arman – que Hadj-Sadok identifica como Arminiyya al-Kubra – e cujo povo não tinha paz na alma nem no coração. Varvara, “Bárbara”, ou na forma Hagia Varvara, “Santa Bárbara”, poderia ser uma opção. O problema é que existem dezenas de localidades com este nome, desde a Bulgária à Grécia, passando pela Bósnia-Herzegovina ou pela Macedónia. Por outro lado, uma das principais cidades da antiga Libúrnia era Varvaria, hoje Bribir, na costa da Croácia, que poderá ter recebido o ius italicum ao tempo de Júlio César.208 Mas o imperador Constantino VII Porfirogénito, no século X, já a menciona como Breberi no tratado De Administrando Imperio,209 uma forma que pouco se aproxima de al-Fanfar. Mais semelhante será o topónimo Pharos, também referido pelo imperador,210 e que hoje corresponde à ilha de Hvar, na costa croata entre Spalato (Split) e Ragusa (Dubrovnik), a que os romanos chamaram inicialmente Pharia211 e mais tarde Fara,212 e que os croatas converteram, ainda na Idade Média, na forma atual. Segundo explica Paul

208 Dzino 2005, 86-87. 209 Constantino VII Porfirogénito [913-959?] 1967, 145. 210 Constantino VII Porfirogénito [913-959?] 1967, 145. 211 MacGeorge 2002, 19. 212 Jakus 2015, 267-290. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 317

Stephenson, Veneza mantinha interesses na ilha de Hvar, a qual em 1142 foi motivo de conflitos entre o doge daquela cidade e o poder húngaro. Com o apoio do papado, os venezianos fundaram uma diocese em Hvar, expulsando os clérigos da confiança dos húngaros.213 Stephenson indica ainda que esta era uma das cidades com vocação marítima no território da Dalmácia, a par, por exemplo, de Ragusa, Spalato e Zadar.214 A ilha de Hvar demonstra, assim, alguma viabilidade: tinha capacidade marítima, deveria ser comercialmente apelativa para ser alvo de disputas e estar em condições de receber uma sede de diocese, está localizada numa área que parece coerente com as indicações de al-Zuhri e o nome apresenta uma sonoridade aproximada. Mas tão-pouco existem certezas absolutas. Apesar de al-Zuhri se referir por diversas vezes a ataques perpetrados pelos Banu Maymun no Mediterrâneo oriental, trata-se de uma única fonte, o que, à partida, poderia enfraquecer o argumento. Mas, se chamarmos ao raciocínio o testamento de Theoktistos de Patmos, com data de setembro de 1157, que foi publicado por Franz Miklosich e Joseph Müller na coleção Acta et Diplomata Graeca Medii Aevi Sacra et Profana, verificamos que o abade do Mosteiro de São João, o Teólogo, se queixa de ataques desferidos por “sarracenos vindos de Espanha”.215 Embora Theoktistos não indique uma data para estes ataques, sabemos que se manteve no Mosteiro de Patmos durante 30 anos, entre 1127 e 1157.216 Se é verdade que, entre 1127 e 1147, os “sarracenos vindos de Espanha” seriam sempre almorávidas e, certamente, liderados pelos Banu Maymun, já no período entre a queda do império de Marraquexe e o ano de 1157, poderão surgir algumas dúvidas. No entanto, se dedicarmos um pensamento mais aprofundado à questão, verificamos que, provavelmente, continuaremos a falar, não já do Império Almorávida, é certo, mas dos Banu Maymun ou, pelo menos, de Muhammad b. Maymun, na medida em que, segundo al-Zuhri, Isa morreu em Edessa;217 Lubb deixa de ser mencionado nas fontes; e, de acordo com a crónica de al-Baydaq, Ali b. Isa, o almirante da frota de Cádis que auxiliou Ahmad b.

213 Stephenson 2004, 227-228. 214 Stephenson 2004, 120. 215 Miklosich et Müller 1860-1890, 106-110. 216 Magdalino 1993, 138. 217 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 232. 318 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Qasi no seu projeto político – provavelmente filho de Isa –, foi assassinado pelo príncipe almorávida Yahia al-Sahrawi em 1148.218 Com a queda de Almeria em outubro de 1147 para o domínio de Afonso VII e seus aliados, Muhammad b. Maymun refugiou-se nas Baleares, um bastião que o poder almóada teve dificuldade em submeter. Sabemos ainda que, em 1160, para conquistar a cidade de Mahdia aos normandos da Sicília, que a tinham subtraído aos ziridas em 1147, o califa almóada, Abd al-Mumin, contratou os serviços de Muhammad b. Maymun, tendo, face ao sucesso, mandado repartir 12 mil dinares de ouro pelos marinheiros. Ou seja, apesar de o Império Almóada se ter imposto em 1147, conheceu muitas dificuldades para consolidar a sua posição, tanto no Magrebe como no al-Andalus, e tudo leva a crer que nos primeiros tempos não possuísse uma marinha de guerra organizada. Esta pode ter sido desenvolvida já na década de 1170, quando surgem os combates navais entre almóadas e portugueses, bem patentes na Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques.219 Tudo isto leva a uma conclusão: embora não saibamos exatamente em que data ou datas ocorreram os ataques a Patmos – existe uma janela que vai de 1127 a 1157 –, é de admitir que, depois da queda do Império Almorávida, Muhammad b. Maymun tenha continuado as suas atividades, ora como corsário, ora como mercenário. Ao adicionarmos à informação de al-Zuhri e às queixas de Theoktistos de Patmos a descrição que a Chronica Adefonsi Imperatoris faz de Muhammad b. Maymun, consolidamos um quadro de atuação almorávida no Mediterrâneo oriental:

Quando via que o tempo estava bom, levava uma armada e navegava para norte até à costa da Galiza e ao Canal Inglês. Ou então navegava pelo Mediterrâneo, atacando a Sicília, Constantinopla ou Ascalão, na costa palestiniana. Atacava Bari, no mar Adriático, e outros portos na região. Alimenon assaltava a zona de Barcelona e também os reinos francos. Deixou ruína por todo o lado e matou e massacrou os cristãos.220

Esta passagem mostra que existia uma intervenção no Adriático, mas que Muhammad b. Maymun também se aventurava até ao Médio Oriente. Ou seja,

218 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 176-177. 219 Lourinho 2010, 37-41. 220 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:104. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 319 tal como a própria fonte refere, atacava os interesses cristãos onde quer que se encontrassem, desde o Mediterrâneo ocidental até aos Estados cruzados da Palestina. E, se numa interpretação menos crítica da geografia de al-Zuhri tudo levava a crer que o poder almorávida pudesse ter, numa conjuntura específica, auxiliado o Império Bizantino contra os Estados francos, a verdade é que não só a análise mais aprofundada parece demonstrar que tal não teve lugar, como as informações proporcionadas por Theoktistos e pela Chronica Adefonsi Imperatoris vêm indicar precisamente o inverso. O Império Bizantino seria um dos alvos preferenciais do poder almorávida – e eventualmente de Muhammad b. Maymun após a queda dos senhores de Marraquexe –, mas, se aceitarmos a proposta da Dalmácia, teremos de acrescentar Veneza à lista dos visados pelos Banu Maymun, república esta que, como vimos, era aliada de Constantinopla. Já o Império Almorávida havia firmado a paz com pisanos e, tudo leva a crer, genoveses.

Fig. 7: Alguns alvos visados pelos Banu Maymun a partir de Almeria e Sevilha

As três fontes mencionadas apontam para uma prática contínua de operações de corso por parte das frotas almorávidas no Mediterrâneo oriental. 320 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Mas, se estas atividades, à partida, parecem algo naturais durante a década de 1130, quando os almóadas se encontravam inativos, podemos ainda interrogar-nos sobre o interesse dos almorávidas em tais campanhas a partir do momento em que a guerra no Magrebe começou a agudizar-se. À primeira vista, não existiria pressão económica, devido ao controlo do ouro do Bilad al-Sudan pelo império de Marraquexe. No entanto, se o esforço de guerra e a necessidade de tropas e equipamento conduziram à desmilitarização do al-Andalus desde 1138 e à desproteção das suas fronteiras, facilitando as algaras e as conquistas cristãs, o mesmo terá de ser eventualmente considerado para o sul do império. A escassez de tropas pode ter levado a uma menor capacidade para submeter os povos negros e controlar o ouro. No mesmo sentido vai uma proposta de Tadeusz Lewicki, segundo a qual o último quarto de século do poder almorávida foi marcado por uma dificuldade no domínio dos povos negros e que tal declínio explicaria as honras com que Ali b. Yusuf recebeu em Marraquexe o rei de Zafun,221 território no Bilad al-Sudan. Pekka Masonen defende mesmo que não se tratou de uma visita de um vassalo, mas de dois soberanos em pé de igualdade.222 Ou seja, Marraquexe procuraria pela diplomacia aquilo de que não seria capaz pela força das armas. Sabemos que, à medida que a guerra contra os almóadas evoluiu, os almorávidas foram perdendo a base de apoio, por uma deficiente capacidade política, mas também por dificuldade em pagar às clientelas. Uma carta da Geniza do Cairo parcialmente publicada por S. D. Goitein e editada e traduzida por Amira K. Bennison e María Ángeles Gallego na sua totalidade, com data de 1141, revela as queixas de um comerciante judeu face à queda de preços que atingiu a região do Sus, a sul de Marraquexe e que se estendia até Sijilmassa, quando os almóadas a conquistaram.223 Este documento aponta para que, tal como os almorávidas cerca de 90 anos antes, a “porta do deserto”, a cidade que controlava o fluxo do ouro proveniente da África subsariana, possa ter sido um dos alvos preferenciais dos almóadas quando a guerra se intensificou. Interessante é também o facto de o referido comerciante

221 Lewicki 1971, 506. 222 Masonen 2006, 78. 223 Goitein 1973, 265; Bennison et Gallego 2007, 47. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 321 mencionar Abd al-Mumin como “al-kharaji”. O documento declara, em língua árabe grafada em hebraico, “o carijita conquistou o Sus”.224 Também Ibn al-Khatib, que escreve já no século XIV, usa a mesma expressão na sua obra Ihata para descrever o ataque almóada sobre o emir Tashfin b. Ali, refugiado na fortaleza de Orão: “E depois os exércitos almóadas carijitas foram sobre ele [Tashfin].”225 As autoras da edição da carta do comerciante judeu traduziram “al-kharaji” como “rebelde”, enquanto Goitein havia proposto “usurpador”. A opção de Bennison e Gallego é, no entanto, mais precisa, na medida em que a palavra que significa “sair”, até porque “usurpador” nos ,(خرج) deriva do verbo kharaja leva imediatamente para uma ação concluída e, à data da carta – 1141 –, embora já tivesse conquistado algumas regiões, o movimento almóada ainda não se tinha apoderado do Império Almorávida, pelo que não faria sentido que o comerciante judeu assim se referisse ao respetivo líder: o desfecho não era certo. Diríamos que Goitein fez uma leitura com base naquilo que sabia que veio a acontecer. Basta pensarmos que a expressão indicada – al-kharaji – é ainda usada por Ibn Khaldun para caracterizar Abd al-Rahman b. Marwan al-Jiliqi, Sadun al-Surunbaqi e os seus companheiros de armas, que, na segunda metade do século IX, se rebelaram contra o emir de Córdova, para concluirmos de vez que Bennison e Gallego trazem mais rigor ao raciocínio. Diz o historiador tunisino: “E ele [Sadun al-Surunbaqi] encontrava-se entre os carijitas que estavam com ele [Ibn Marwan].”226 Mas temos de considerar que a expressão pode igualmente remeter para “herético”, uma vez que se encontra associada ao movimento carijita, que cortou a obediência a Damasco. Na verdade, “rebelde” e “herético” são termos que andam de mãos dadas no mundo muçulmano, pois não existe no islão uma verdadeira separação entre política e religião. Todos estes dados nos ajudam a recentrar o debate quanto à ascensão ao poder de Abd al-Mumin. Apesar de as fontes mais próximas dos almóadas, como al-Baydaq, se esforçarem por legitimar a sua procura do poder, as populações, assim como outros textos, caso da Ihata de Ibn al-Khatib, poderiam ter uma

.Goitein 1973, 265; Bennison et Gallego 2007, 47 .(נזל אל כארגי עלי אלסוס) ”Nazala al-kaaragi alai al-Sus“ 224 [?Ibn al-Khatib [1350-1375 .(ثم رمى الجيوش الموحدين الخارجين عليه) ”Thuma rama al-jayush al-muwahidin al-kharijiin alayhi“ 225 2009, 1:890-891. .Ibn Khaldun [1375-1406?] 1999, 7:289 .(و هو من الخارجين معه) ”Wa hua min al-kharajiin maahi“ 226 322 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

perceção diferente. Segundo uma tal linha de ideias, Abd al-Mumin seria um rebelde, alguém que se revoltou contra os legítimos detentores do poder, e não tanto um califa por direito próprio. Estes dados permitem questionar igualmente o favor que a historiografia tem dispensado ao movimento fundado por Ibn Tumart. Maribel Fierro usa mesmo a expressão “revolução almóada” para designar a implantação deste movimento. Num artigo homónimo, reconhece que os argumentos almóadas contra os almorávidas, como as acusações de heresia, configuravam táticas de propaganda. Mas, depois, parece identificar-se com as alegações nas fontes e endossar essa dita revolução, que, na sua opinião, terá renovado desde a religião às artes, passando pela literatura. Aliás, recusa as críticas aos chamados impérios berberes, “pelo menos, no caso almóada”, sob cujo domínio, diz, se produziu um “florescimento cultural”, que permitiu o surgimento de figuras como Ibn Tufayl, Averróis e Maimónides.227 Ora, não podemos esquecer, primeiro, que estas figuras nasceram e se desenvolveram durante o período almorávida, segundo, que Maimónides trocou o al-Andalus pelo Egito e, terceiro, que a produção cultural correspondia a um contínuo, a uma transmissão de saberes de geração em geração, e não a uma erupção decidida pelos almóadas, ainda que estes a possam ter favorecido. Averróis (Ibn Rushd), por exemplo, vinha de uma família de cádis que ocuparam o cargo em Córdova ao tempo almorávida: foi o seu avô quem emitiu a fatwa de expulsão dos moçárabes em 1126. Como vimos, estas famílias transitaram de bom grado do período das taifas para o domínio almorávida, pelo que também não é possível afirmar que foram os fundadores de Marraquexe os responsáveis pelo seu desenvolvimento cultural: uma vez mais, tratava-se de um processo contínuo. Ou seja, mais do que um favorecimento da cultura operado pelos almóadas, talvez tenhamos de ver aqui a mesma perpetuação do statu quo que os almorávidas tinham permitido. E, a avaliar pelas queixas das populações, de que os comerciantes judeus seriam uma parte muito sensível, tanto pela sua condição de tributários como pela necessidade de estabilidade política para conduzirem os seus negócios, a chegada dos almóadas não terá sido um passo

227 Fierro 2014, 130. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 323 rumo à salvação. Depois, teremos de discutir o uso do termo “revolução” – para Maribel Fierro, não há usurpação nem rebeldia, mas um processo positivo e renovador. Devemos interrogar-nos porque são os almóadas favorecidos face aos almorávidas, quando ambos os movimentos se comportaram exatamente da mesma forma. Talvez seja demasiado ambicioso exigir que as populações consigam ver, ao fundo do túnel, estes potenciais benefícios que a historiografia trata de descortinar a posteriori: como é evidente, não pensam a longo prazo, mas nas exigências do imediato. Sofrem com o impacto da guerra e anseiam por soluções. E, certamente, os assassinatos e as purgas em números expressivos, assim como as mortes decorrentes de uma guerra que se arrastou por largos anos, não seriam percecionados como algo de positivo. Vemos isso mesmo através de outra carta da Geniza do Cairo, editada em árabe grafado em hebraico, e traduzida para esta última língua por Jacob Moses Toledano e Jacob Mann. A missiva mostra as preocupações de Shlomo ha-Cohen al-Sijilmassi, que, de Fustat, escreveu em 1148 ao seu pai, o qual vivia no Iémen. Fala com detalhe das campanhas de Abd al-Mumin, que, depois de destruir os exércitos do emir Tashfin b. Ali em Orão (e o próprio emir) e matar toda a gente em Tlemcen, seguiu para Sijilmassa.228 O comerciante troca a ordem das campanhas, pois os almóadas tomaram primeiro Tlemcen e só depois Orão, e afirma, erradamente, que os almóadas mataram Tashfin b. Ali, quando o emir morreu devido a um acidente, mas fica claro que, após o falecimento deste, uma das prioridades foi Sijilmassa. Como o emir morreu em março de 1145, e depois destas campanhas o califa almóada visou a cidade de Fez, a conquista de Sijilmassa deve ter ocorrido pela mesma altura. Ou seja, os almóadas tentaram desestabilizar as rotas comerciais, provocando disrupções com impacto significativo na vida das populações, mas também na capacidade almorávida de se financiar por via do ouro do Bilad al-Sudan, antes de organizarem uma campanha militar propriamente dita contra Marraquexe. Tal significa que, devido às campanhas militares almóadas, os almorávidas perderam progressivamente o controlo do ouro que lhes permitira conservar

228 Toledano et Mann 1927, 450. 324 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

o poder, o mesmo ouro que, tudo leva a crer, teriam desviado do domínio de outros adversários, como o califado fatímida. Num tal contexto, é possível que as frotas com intervenção no Mediterrâneo oriental, como as de Almeria e Sevilha, rendessem preciosos proventos à dinastia almorávida. E, se previsivelmente Marraquexe não poderia prescindir dos serviços da marinha de guerra de Almeria – al-Baydaq, a propósito da campanha almóada sobre Tetuão, em 1144, refere que Muhammad b. Maymun se mantinha ao largo da cidade, pronto para qualquer eventualidade229 –, talvez tivesse interesse em manter a de Sevilha no Oriente, citada por al-Zuhri com mais frequência. Ora, com a desagregação do império, sobretudo a partir da morte do emir Ali b. Yusuf, em 1143, esta armada de Sevilha poderia sentir que já não teria casa para onde regressar. E que relação têm todos estes eventos com a fronteira do Gharb al-Andalus? Diríamos que podem ter sido decisivos. Se a frota de Sevilha se encontrava ausente com frequência, e se ocorreu um sangramento da capacidade defensiva do al‑Andalus para o Magrebe, mais elementos temos para explicar a relativa facilidade com que Ahmad b. Qasi, o místico de Silves, se rebelou e fez desmoronar o poder almorávida, atrevendo-se a organizar campanhas para tomar Sevilha e Córdova. Da Revolta dos Muridinos, são, de resto, subsidiárias as conquistas definitivas de Santarém e Lisboa, em 1147. Mais: será que estas ausências da frota de Sevilha, aliadas ao envolvimento da esquadra de Almeria na guerra contra os almóadas, acrescentaram ousadia aos normandos da Sicília, libertos do cisma por morte de Anacleto II em 1138, e ansiosos por agradarem ao papado, como veio a provar a campanha sobre Bizâncio em 1147? Em julho de 1144, tirando partido da grande debilidade almorávida, o almirante Jorge de Antioquia, ao serviço de Rogério II, bloqueou Ceuta com 150 navios, como nos dá conta Ibn Idari.230 Se a frota de Sevilha se encontrasse a postos, talvez uma tal campanha tivesse sido impensável. Mas o pior ainda estava por chegar. Apesar do acordo de paz que, tudo leva a crer, teriam com os almorávidas, os genoveses decidiram atacar Almeria em 1146, certamente sentindo a fragilidade dos seus aliados e, assim,

229 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 150-151. 230 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 236. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 325 a inutilidade do tratado. Poderiam já antever a vitória dos almóadas – ou até pretender contribuir para esse cenário –, com quem, de resto, passariam a comerciar. Em 1146, uma série de ataques bem-sucedidos sobre Almeria e as ilhas Baleares animaram as gentes de Génova a proporem ao imperador Afonso VII de Leão e Castela uma campanha massiva que desferisse o golpe final.231 A conjuntura não poderia ser mais favorável: em 1146, no Magrebe, tinha-se iniciado o cerco a Marraquexe e, no al-Andalus, um exército almóada acabara de desembarcar para submeter os senhores do Gharb e obrigá-los a conquistar Sevilha. E os eventos continuariam de feição para o lado cristão. No verão de 1147, quando os exércitos de Afonso VII iniciaram a marcha que os levaria ao encontro dos aliados italianos e barceloneses, que operaram o bloqueio marítimo, já os almóadas tinham estilhaçado o poder almorávida. Sevilha tinha caído em janeiro desse ano e Marraquexe dois meses depois. A 23 de março de 1147, Abd al-Mumin entrou na cidade fundada por Abu Bakr b. Umar e por Yusuf b. Tashfin, na condição de senhor do Magrebe e do al-Andalus.

231 Lourinho 2010, 71.

5. ASPIRAÇÕES POLÍTICAS DE D. TERESA

Um dos primeiros alvos da nova política naval de Marraquexe foi o Gharb al-Andalus, que em 1117 sofreu um ataque das forças almorávidas, transportadas por terra e mar, e lideradas pelo próprio emir Ali b. Yusuf. Em 1116, as tropas do governador de Sevilha, Ibn Fatima, tinham já devastado os castelos que integravam a defesa da cidade do Mondego, ataques a que D. Teresa conseguiu resistir, escapando às dificuldades com autoridade reforçada, mas sofrendo reveses noutras frentes políticas.

A “rainha” D. Teresa e a disputa pelo poder

Em junho desse ano de 1116, o papa Pascoal II enviou uma carta aos arcebispos de Toledo e de Braga, aos bispos de Tui e de Salamanca, a D. Teresa e a alguns dos seus barões. Dirigiu-se à filha de Afonso VI, a partir da cidade de Paliano, como “T. Reginae”.1 Em causa, estavam as disputas territoriais entre os bispos do Porto e de Coimbra, com o último a argumentar, junto da Santa Sé, ter perdido território após a morte de Afonso VI devido às incursões muçulmanas, procurando, assim, reaver o bispado de Lamego, pretensão atendida pelo papa. O tratamento que o Sumo Pontífice reserva no documento a D. Teresa faz supor que esta já usasse o título de rainha antes de 1117, ano que a historiografia aponta para o início desta prática.

1 Erdmann 1927, 169-170. 328 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Outros documentos dão conta do recurso ao título em data anterior a 1117, mas deixam demasiadas dúvidas para que possam ser tomados como fontes de informação fiáveis. Através de uma carta datada de 10 de maio de 1112, ou seja, poucas semanas após a morte do conde D. Henrique, D. Teresa vendeu a parte que detinha na Igreja de Santa Leocádia, em Baião, a Froila Spaici.2 Rui de Azevedo põe a data em causa3 e nota que o documento corresponde a uma cópia, realizada ainda no século XII, sendo que algumas pistas no diploma permitem, efetivamente, concluir pelo erro cronológico. É o caso da referência ao “conde Fernando” e ao facto de o ato jurídico ter sido consumado “ao tempo daquela rainha e deste conde de nome Fernando”. A associação de D. Teresa aos Travas e a Fernão Peres é posterior a 1112, remontando o seu início talvez a 1116. Novo dado interessante é o que aponta para que a carta tenha sido produzida “quando o rei mouro de nome Brafimi [Ibrahim] quis vir à cidade de Coimbra, mas não conseguiu entrar nela”. A afirmação parece remeter para o ataque de 1117, mas, nesse caso, o nome do líder almorávida não estaria correto, nem tão-pouco poderíamos pensar que se tratava do governador de Sevilha, que o terá acompanhado na operação: Abd Allah b. Muhammad b. Fatima. Ao percorrermos a lista de governadores de Sevilha arrolada pelo al-Bayan al-Mugrib, verificamos que Ibn Fatima morreu logo no ano seguinte ao do ataque de 1117 e foi substituído por Ibrahim b. Yusuf b. Tashfin,4 filho de Yusuf, emir de Marraquexe até 1106. Podemos considerar duas possibilidades: ou o autor do documento confundiu os governantes que atacaram Coimbra por aqueles anos ou, gorada a tentativa de 1117 e morto Ibn Fatima, o poder almorávida tentou de novo a sua sorte a partir de 1118. Um pequeno indício que poderá contribuir para esta segunda teoria será a datação que o notário faz do ataque: Sábado de Aleluia, em vez de julho, mês em que sabemos ter tido lugar a operação de 1117. A Chronica Gothorum, por seu turno, refere um grande ataque a Coimbra em 1122, que se estendeu do rio Tejo até ao rio Minho.5

2 Azevedo 1958, 43. 3 Luís Carlos Amaral e Mário Barroca também põem a data em causa, mas não avançam nenhuma explicação (Amaral et Barroca 2012, 376). 4 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 242. 5 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 11. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 329

A data de 1122 ainda seria compatível com a permanência de Ibrahim b. Yusuf b. Tashfin em Sevilha – o tal rei Brafimi –, que, de acordo com o al-Bayan al-Mugrib, foi destituído no verão deste ano.6 Quanto à datação do documento, teremos de deslocá-la para depois das campanhas almorávidas de 1116 e 1117, pois, como é evidente, só faz sentido referir um ataque após ter ocorrido: é este o sentido de “quis vir à cidade de Coimbra, mas não conseguiu entrar nela”. Outra pista permite afinar um pouco a cronologia e, eventualmente, consolidar a possibilidade de um segundo ataque à cidade do Mondego pouco depois do perpetrado em 1117. Entre os confirmantes do documento, encontram-se os bispos de Coimbra e do Porto, assim como Afonso Raimundes, D. Afonso Henriques, o conde Fernando e outras personagens da elite próxima de D. Teresa, notando-se a ausência do arcebispo de Braga. Tendo em conta que o documento está datado de maio e que Maurício Burdino se tornou antipapa no início de 1118 e só foi substituído na arquidiocese de Braga no verão desse ano, talvez possamos atribuir o ato jurídico justamente ao primeiro semestre de 1118. Ao considerarmos a pista da datação pelo Sábado de Aleluia, é mesmo possível limitar a cronologia a um intervalo entre a primavera e o verão de 1118, uma época em que seguramente D. Teresa já usava o título de rainha. Resumindo, o documento não pode remontar a 1112, pelo que não constitui prova de que D. Teresa se tenha proclamado rainha em data tão recuada. No entanto, reveste-se de grande interesse, por indiciar um novo ataque almorávida entre o ano seguinte ao da grande campanha contra a cidade e o ano de 1122. Interessante é ainda notar que, se os cristãos atacavam os muçulmanos durante o jejum semanal, caso de D. Afonso Henriques na conquista de Santarém, em 1147, os últimos também não deixavam de tirar partido dos momentos em que os adversários se encontrariam mais frágeis, em termos militares, devido à celebração de festas religiosas. O conhecimento do outro, da sua cultura e das suas práticas religiosas fazia parte do modo de estar na fronteira. Mais intrigante é outro documento, emitido pelo conde D. Henrique e por D. Teresa, que o notário reporta à era de 1159, mês de janeiro, ou seja, ao ano

6 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 242. 330 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

da encarnação de 1121, data em que o conde há muito tinha falecido. Por meio deste diploma, D. Henrique doava aos habitantes de origem franca da vila de Guimarães um campo situado junto ao paço real. O privilégio era atribuído pelo casal e obedecia à seguinte fórmula: “Conde Henrique, com a minha esposa, a ilustre rainha D. Teresa, filha do grande rei Afonso.”7 Igualmente publicado nos Documentos Medievais Portugueses, este diploma, que, numa análise ao original, não deixa dúvidas sobre ser uma cópia do século XIII,8 não é considerado uma falsificação por Rui de Azevedo.9 Sendo verdadeiro, levantar-se-ia a hipótese de D. Teresa ter passado a usar o título de rainha ainda em vida do marido. Poderíamos inclusive entender aqui um projeto político que consistiria numa resposta à elevação da Galiza a reino, ocorrida em setembro de 1111. Mas, apesar de a teoria ser atraente, as provas apresentam-se demasiado frágeis. Admitindo como certa a premissa de o documento não ser uma falsificação, temos de concluir, desde logo, que se encontra mal datado e, eventualmente, que o notário do século XIII que copiou o original, talvez habituado a lidar com documentação antiga, tenha recorrido a uma fórmula conhecida para tratamento de D. Teresa – de resto, num documento emitido em 1135, cinco anos após a sua morte, o papa Inocêncio II ainda se lhe refere como rainha.10 Por outro lado, temos de pensar que, a fim de invocar o título de rainha para a sua mulher e equiparar o condado ao estatuto recém-adquirido pela Galiza ou ao de Leão e Castela, o conde D. Henrique teria necessariamente de rodear-se de um forte grupo de apoio, tal como fez, por exemplo, quando da transferência do Mosteiro do Lorvão para a diocese de Coimbra. Uma tal reivindicação política não poderia ser produzida sem a congregação de alianças, que teriam de estar patentes entre os confirmantes. Seria o caso do arcebispo de Braga, do bispo de Coimbra (o do Porto era aliado do bispo de Compostela e, talvez, pouco recetivo para apoiar um tal projeto) e de personagens das elites portucalense, coimbrã, galega e castelhano-leonesa. Tal como não se pode iniciar

7 Azevedo 1958, 69. 8 ANTT, Coleção Gavetas. Gaveta 8. Maço 1, no. 4. 9 Rui de Azevedo suscita, no entanto, a dúvida quanto a outro documento erroneamente datado, pelo qual D. Henrique e D. Teresa confirmaram privilégios a São Martinho de Mouros (Azevedo 1958, 71-72). 10 Erdmann 1927, 185. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 331 uma guerra sem armas, é desprovida de sentido uma afirmação política deste porte tendo como confirmantes odapifer da cúria e duas ou três personagens do norte portucalense, indicadas no documento. A doação de terras a uns francos de segunda geração, por mais reconhecido que o conde se mostrasse ao pai daqueles, também não seria o evento mais relevante para o efeito. Como só os factos contam, a menos que surjam provas contundentes, temos de rejeitar a tese do uso do título de rainha em vida de D. Henrique. Bernard F. Reilly argumenta que a assunção do título, que também defende ter sido usado primeiro em maio, juntando-lhe a expressão “de Portugal” em novembro de 1117, corresponde a uma consciência de que D. Teresa não conseguiria assegurar a coroa de Leão e Castela para si ou para o seu filho e ao início de um processo de autonomização de Portugal.11 Mas a argumentação não colhe. Além de ser certo que seria tratada como rainha, pelo menos, um ano antes da data estabelecida, D. Teresa parece nunca ter desistido. Além disso, a doação de umas terras na região de Coimbra a um partidário que mantinha nesta cidade, referida no documento indicado pela historiografia como sendo o primeiro em que usou o título, também não seria de molde a reclamar um projeto político. Veja-se o caso de Afonso Raimundes, que usou pela primeira vez o título de imperador – evidenciando uma clara tomada de posição política – em dezembro de 1117, num documento ratificado pela presença do arcebispo de Toledo, dos bispos de Leão, Oviedo, Salamanca e Astorga e de barões como Pedro Froilaz de Trava. Deixaria entretanto cair este designativo enquanto a mãe foi viva, só tendo ocorrido uma cerimónia de coroação em 1135, como sabemos. Temos de raciocinar um pouco mais sobre a data de maio de 1117,12 fixada pela historiografia como aquela em que D. Teresa começou a recorrer ao título, acrescentando-lhe “de Portugal” a partir de novembro do mesmo ano.13 O que significa exatamente usar um título? Talvez tenhamos aqui de distinguir entre um uso oral e um uso escrito, embora os ecos que temos do primeiro sejam também necessariamente escritos. Vamos por partes. As pistas apontam para

11 Reilly 1982, 117. 12 Azevedo 1958, 59-60. 13 Azevedo 1958, 60-62. 332 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

que D. Teresa já fosse tratada como rainha antes de maio de 1117, mas o registo dessa realidade na chancelaria do Condado Portucalense, a menos que surjam documentos até agora desconhecidos, parece ter-se apenas iniciado na data que a historiografia aponta. Parece, pois, que a escrita veio lacrar uma realidade que já era evidente, e, se D. Teresa não se atrevia a registar essa dignidade na documentação, o papado não teria problemas em fazê-lo. A verdade é que falta documentação credível que ateste o uso primeiro do título de rainha por D. Teresa. Para reclamar esse estatuto, teria necessidade de um grupo de apoio com expressão política. Sabemos que, por volta de 1116, já se encontrava aliada aos Travas, e que, em conjunto, atacaram a rainha Urraca no Castelo de Sobroso. Precisaria ainda de um território, sendo que as suas possessões saíram bastante ampliadas com as doações de D. Urraca por ocasião do acordo de paz entre ambas. Sem data, mas prudentemente atribuído por Rui de Azevedo a um período entre maio de 1112, o mês seguinte ao da morte do conde D. Henrique, e março de 1126, quando do falecimento de D. Urraca, o documento que atesta este acordo mostra que D. Teresa se tornou senhora de um vasto território na Estremadura, o qual compreendia, entre outras cidades, Zamora, Salamanca, Toro, Coria e Simancas, adquirindo ainda posições na Galiza e em Castela,14 sem esquecer que dominava Ourense e Astorga. Detentora dos direitos de domínios alargados, que extravasavam o Condado Portucalense, e mãe de um potencial herdeiro de Afonso VI, D. Teresa transformava-se também numa peça de peso no xadrez político do ocidente peninsular, condição que não deve ter escapado aos Travas. Efetivamente, esta família parece jogar os seus trunfos em várias frentes, por um lado, apoiando as pretensões de Afonso Raimundes e, por outro, não perdendo de vista D. Teresa e D. Afonso Henriques. E não podemos pensar que D. Teresa retiraria mais benefícios da aliança do que o inverso, pois, na perspetiva dos condes de Trava, numa época em que todas as possibilidades se encontravam em aberto, de um destes dois ramos da descendência de Afonso VI sairia a sucessão do falecido imperador. Mas, sabendo mover-se na arena política com habilidade, talvez os Travas conseguissem negociar também uma aliança com D. Urraca e Afonso de

14 Azevedo 1958, 42. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 333

Aragão, se o casal concebesse um filho. Entretanto, sem lhe nascer herdeiros, o futuro residiria num dos dois netos de Afonso VI existentes. O mesmo raciocínio podemos, de resto, aplicar ao papa Pascoal II. Uma vez que todas as probabilidades se encontravam em aberto, seria interessante manter boas relações com as partes em conflito, através da mediação do seu legado na Península Ibérica. Por exemplo, em fevereiro de 1117, Boso de Santa Anastácia encontrava-se em Burgos, tal como atesta a documentação.15 Infelizmente, os documentos de Pascoal II publicados não ajudam a esclarecer a situação: nem os dados à estampa por Carl Erdmann, na coleção Papsturkunden in Portugal, nem os coligidos por Jacques Paul Migne no âmbito da Patrologia Latina.16 Mas sabemos que os conflitos entre o Império Germânico e o papa, que decorriam desde há alguns anos, se encontravam em fase aguda no período em que o chefe da Igreja se dirigiu a D. Teresa como rainha. Estávamos a pouco tempo de o arcebispo de Braga, então em Roma, ser enviado como intermediário junto do imperador e, em vez de defender os interesses do seu mandatário, ter abraçado a causa germânica.17 Em suma, numa fase em que o desfecho era incerto, procurar o favor de todos os contendores poderia ser uma boa opção para um papa que necessitava de aliados poderosos. E, objetivamente, D. Teresa seria uma aliada poderosa, que, com a evolução da conjuntura, poderia adquirir uma posição ainda mais sólida. Não se sabe quando D. Teresa entrou na posse do considerável território que incluía a atual Estremadura espanhola, mas é fácil supor que a propriedade de terras e direitos e o trunfo de um herdeiro de Afonso VI a tenham levado a pretender mais do que ser uma “boa irmã”, tal como estabeleciam as condições do acordo de paz com D. Urraca. Esta conjugação de fatores e a construção de uma base de apoio, sem perder de vista o pormenor da ausência de filhos entre D. Urraca e Afonso de Aragão, podem tê-la levado a reclamar-se “rainha”. Havia precedentes. Todos os filhos de Fernando Magno tinham recebido território por sua morte, assim como, mais tarde, foram beneficiados

15 Erdmann 1927, 171-173. 16 Erdmann 1927, 154-173; Migne 1844-1865, 68:31-470. 17 David 1947, 480-497. 334 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

os herdeiros de Afonso VII. Afonso VI não tinha deixado filhos varões, pelo que a divisão teria de ser concretizada entre as filhas. Diga-se que a atitude de D. Teresa deve ter parecido suficientemente legítima aos olhos do papado, que, na sua correspondência, não hesitou em dirigir-se-lhe enquanto rainha. Todavia, se havia precedentes na divisão do território entre herdeiros reais, o mesmo não era verdade quanto ao uso do título régio. É certo que, por exemplo, Sancho I de Portugal, desde o início do seu reinado, associou os filhos à sua documentação na qualidade de “reis” e “rainhas” e que, genericamente, consideramos que, na Idade Média, filho de rei era igualmente rei. Se, no primeiro documento da sua chancelaria atestado como verdadeiro – a confirmação de privilégios a Santa Cruz de Coimbra, de janeiro de 1186 –, a prole ainda não aparece, no segundo, que corresponde ao foral de Gouveia e data de um mês depois, o filho de D. Afonso Henriques institui esta prática.18 Mas, na época de D. Teresa, tal não se verificava. Uma análise atenta à chancelaria de Afonso VI é quanto basta para concluir pela originalidade da alegação de D. Teresa. Nem as irmãs de Afonso VI – Urraca e Elvira –, nem as filhas Urraca e Teresa ou tão-pouco o infante Sancho alguma vez foram designados pelo título de rainha ou de rei. De uma forma genérica, as primeiras eram referidas como filhas de Fernando Magno ou como irmãs de Afonso VI. Já as segundas surgem como filhas de Afonso VI ou esposas, respetivamente, de D. Raimundo e D. Henrique. Já o infante Sancho é mencionado sobretudo como puer e infans, mas também como filho de Afonso VI.19 Apenas quando D. Urraca se tornou rainha, em 1109, passou a usar o título correspondente na sua chancelaria. E nem mesmo o facto de, a partir de 1115, associar esporadicamente o filho Afonso à sua documentação, usando este o título de rei (por exemplo, “filio meo rege domno Adefonso”), prova que D. Teresa se limitou a copiar uma prática vigente, já que o infante havia sido coroado rei da Galiza em 1111.20 Daqui se pode retirar que o recurso de D. Teresa ao título terá sido uma novidade, ou seja, mais um ato político do que propriamente um direito que lhe assistia enquanto filha de um monarca.

18 Azevedo 1979, 5-10. 19 Gambra 1997-1998, 1:480-488. 20 Ruiz Albi 2003, 460-462. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 335

Mas, embora não saibamos em que data precisa passou a fazê-lo, parece certo que, em 1116, D. Teresa, que reuniria o apoio dos Travas e algum reconhecimento do papado, já era tratada como rainha de um território pouco homogéneo. Daí talvez a dificuldade em designá-lo como um todo agregado sob a mesma identidade: os territórios doados por D. Urraca não faziam parte do Condado Portucalense. Ao designar-se “rainha”, deixava, também ela, todas as hipóteses em aberto; ao intitular-se “rainha de Portugal”, estaria a limitar o âmbito do seu poder. À luz da documentação sobrevivente até aos nossos dias, o uso deste designativo só aconteceu a partir de novembro de 1117. Ora, entre maio e novembro, ocorreu a grande ofensiva almorávida a Coimbra, cidade que D. Teresa teve de defender. Por outro lado, temos conhecimento de que, pelo menos desde 1116, estaria em guerra com a irmã, o que pode ser comprovado através dos episódios do cerco a Sobroso e das rebeliões patrocinadas pela primeira contra a segunda na região de Límia, relatados pela Historia Compostelana. A reivindicação de um projeto político que levava apenso o título de rainha não deve ter certamente agradado a D. Urraca. Bernard F. Reilly argumenta que esta terá beneficiado do cerco almorávida a Coimbra para consolidar ou até alargar a sua influência sobre regiões anteriormente atribuídas à irmã, como as de Toro e Zamora, com base num documento datado de agosto de 1117, em que D. Urraca fazia referência a uma personagem da sua confiança, Fernando Mendes, como dominando os mesmos territórios.21 Uma pesquisa na chancelaria de D. Urraca permite reconhecer pistas de que a rainha, de facto, lançou mão de várias táticas que, em última instância, lhe permitiriam controlar os movimentos da irmã. São disso exemplo os exercícios de aproximação ao bispo de Compostela, tanto com os dois pactos de amizade, um de 1115 e outro de 1116, como através de doações ao prelado e ao cabido, no mesmo ano de 1116.22 Depois, talvez não possamos encarar como inocentes as doações aos hospitalários, uma em junho e a outra em novembro de 1116, de povoações que hoje se localizam na Estremadura espanhola, na zona de influência de D. Teresa.23

21 Reilly 1982, 125. 22 Ruiz Albi 2003, 462-463, 483-484 e 470-471. 23 Ruiz Albi 2003, 471-473 e 480-482. 336 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Mais: em março e abril de 1117, cumprindo as disposições do Concílio de Palência, ocorrido em 1113, D. Urraca aproveitou para reorganizar o bispado de Mondonhedo, confirmando-lhe os bens, e para doar um couto ao bispo e à diocese.24 Ou seja, procurou ter intervenção numa diocese que era sufragânea de Braga. Regressando ao argumento de Bernard Reilly, teria D. Urraca conseguido desapossar a sua irmã dos territórios pertencentes à atual Estremadura espanhola e perturbar a influência desta na região de Límia? Lembremos que, além do grande ataque almorávida de 1117, a cidade de Coimbra e os castelos da sua defesa tinham sido atacados justamente em 1116, oportunidades para D. Urraca, que via as atenções da irmã virarem-se para sul. Seja como for, pelos termos do acordo de paz, D. Urraca reuniria motivos para destituir a irmã, que teria deixado de ser “amiga” e pessoa “de boa-fé” e “sem engano”. O facto de, a partir de novembro, D. Teresa ter passado a acrescentar “de Portugal” ao título pode remeter para a perda de territórios exteriores ao condado. No limite, é possível que as ofensivas almorávidas tenham tido como dano colateral a determinação dos contornos orientais do futuro reino de Portugal. Sem forças que defendessem os seus interesses contra D. Urraca na Estremadura, D. Teresa pode ter pretendido reclamar um título mais preciso para o seu território como resposta face ao revés. Restou-lhe a vitória no embate contra os muçulmanos, algo que provavelmente convinha enfatizar perante os seus adversários. Aliás, a posição de Luís Carlos Amaral e Mário Barroca não parece incompatível com esta argumentação. Os autores da biografia de D. Teresa defendem que passou a “reivindicar de forma mais expressiva a sua linhagem régia” num contexto em que a ofensiva almorávida de 1117 lhe tinha reduzido seriamente as hipóteses de “participar com sucesso no cenário político da Galiza e do conjunto do reino, pelo menos, durante algum tempo”.25 Em lugar de uma desistência, o título de “rainha de Portugal” parece corresponder, uma vez mais, a uma tentativa de não ficar para trás na luta pelo poder. E o facto de pretender para Portugal a dignidade de reino não significa necessariamente que se contentasse apenas com este território. A autonomização

24 Ruiz Albi 2003, 488-490 e 490. 25 Amaral et Barroca 2012, 193-194. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 337 da Galiza a partir de 1111 não impediu, de resto, Afonso Raimundes de ascender ao trono de Leão e Castela nem de vir a tornar-se imperador. Continuando a beneficiar do apoio dos Travas, com Fernão Peres a ter mais presença e poder no território portucalense a partir deste ano de 1117 e de forma ainda mais acentuada depois de 1122, a viúva de D. Henrique acompanhava o passo veloz dos acontecimentos. Na verdade, nem D. Teresa, nem mais tarde D. Afonso Henriques, parecem ter desistido de lutar por algo mais do que o Condado Portucalense, como também atestam os ataques do último à região de Límia, relatados pela Chronica Adefonsi Imperatoris.26 Mesmo depois de Afonso VII produzir descendência e, com isso, assegurar a continuidade da sua linhagem, D. Afonso Henriques procurou colocar um neto seu no trono do reino de Leão, ao casar a filha Urraca com Fernando II, união de que nasceu o futuro Afonso IX. Defender que, ao assumir o título de “rainha de Portugal”, D. Teresa desistiu da herança do seu pai, como faz Reilly, parece um pensamento condicionado pelos eventos que vieram efetivamente a ocorrer. Em lugar de centrar o raciocínio nos acontecimentos que desaguaram na cronologia precisa de 1117, em que todas as possibilidades se mantinham em aberto, o historiador parece argumentar a partir daquilo que sucedeu, como se não pudesse ter sido de outra forma.

Rescaldo do ataque almorávida

Após a ofensiva almorávida de 1117, D. Teresa iria viver momentos difíceis. Logo no ano seguinte, com Maurício Burdino em Roma a desempenhar o papel de antipapa Gregório VIII, teve lugar a eleição de um novo arcebispo para Braga. Saído da nobreza portucalense, Paio Mendes, o deão da catedral de Braga, foi designado em Segóvia, num concílio realizado em junho, junto dos meios controlados pela rainha Urraca, que pode ter manipulado a eleição.27 Seja como for, a escolha provaria ser do desagrado de D. Teresa, animosidade que terá alcançado um pico em 1122, com a prisão do prelado por sua ordem.28

26 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:74-78. 27 Reilly 1982, 129; Amaral et Barroca 2012, 214. 28 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 409-410. 338 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Nesta conjuntura, serão significativos os privilégios concedidos ao bispo do Porto. Aliado do bispo de Compostela e inimigo dos interesses da diocese de Braga, D. Hugo recebeu de D. Teresa o burgo do Porto e respetivo couto para si e para os seus sucessores, em abril de 1120.29 Com o ato jurídico, D. Teresa parecia posicionar-se ao lado dos interesses de Gelmírez, pelo menos conjunturalmente, pois a Historia Compostelana, fonte laudatória do bispo de Compostela, assesta à mãe de D. Afonso Henriques duras críticas e acusações, evidência de que a consideraria uma adversária política de peso. Quem sabe para indispor o novo arcebispo de Braga, D. Teresa entendeu reforçar os poderes de gentes que eram fiéis à sua causa no território desta cidade. Salvador Mendes, a quem designa por “um cliente meu”, recebeu em junho uma parte da vila de Palmeira.30 Note-se que, em 1120, D. Teresa continuava a ser alvo da fúria de D. Urraca, talvez mais uma pista de que não terá desistido de reclamar a herança paterna. Neste ano, sofreu um ataque concertado entre a irmã e Diego Gelmírez no Castelo de Lanhoso, com o objetivo de minar a sua posição na região de Tui.31 Mas D. Teresa conseguiu negociar com a irmã, que, num volte-face, acabou por prender o já arcebispo,32 provando que a posição deste não era tão sólida como gostaria. Como bem sublinha José Mattoso, a vida do arcebispo de Braga também não foi fácil.33 No tabuleiro de interesses do noroeste peninsular, Paio Mendes não terá saído favorecido pela eleição de Calisto II para o papado: o bispo de Compostela, que visava a elevação a arquidiocese, detinha um trunfo de peso, corporizado na tutela do mais provável herdeiro de Afonso VI, sobrinho do novo papa. Apesar de Calisto não ter retirado a dignidade de arquidiocese a Braga, optando pela sua supressão a Mérida, nas mãos dos muçulmanos, deixou-a em posição fragilizada, pois Compostela poderia exercer o seu poder sobre os bispados portucalenses e leoneses a sul do Douro, entre os quais Coimbra e Salamanca.

29 Azevedo 1958, 66-67. 30 Azevedo 1958, 68. 31 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 363. 32 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 363-370. 33 Mattoso 2007, 43. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 339

Mais a sul ainda, na fronteira com os muçulmanos, D. Teresa parecia agora seguir uma política de equilíbrios: se é de admitir o auxílio dos Travas na defesa de Coimbra, também parece plausível o apoio das forças locais, que, durante os ataques de 1116 e 1117, se terão mantido do lado da filha de Afonso VI. Apesar de terem passado mais de 50 anos sobre a conquista de Fernando Magno, o que permitiria a consolidação de uma população cristã, as comunidades da fronteira encontravam-se bem habituadas às oscilações do poder, e uma fatia considerável das gentes de Coimbra mantinha resistências face à nova ordem social e política. Não seria de todo descabida uma transferência de lealdade para o lado almorávida no caso de serem negociados termos vantajosos, até porque temos de admitir a possibilidade de um novo ataque a partir de 1118 pelo tal “rei Brafimi”, quando os conflitos eclesiásticos no condado se encontravam bem acesos. A documentação disponível não é abundante, mas fornece pistas de que D. Teresa terá procurado balancear as forças no terreno ou, pelo menos, aliciar o líder dos moçárabes. Tal é sugerido por um documento com data de janeiro de 1121, pelo qual o Mosteiro do Lorvão recebeu em doação a vila de Pinheiro, no termo de Coimbra, das mãos do casal Pedro Pais e Maria Nunes: um dos confirmantes era Randulfo Soleimás, que surgia na qualidade de alcaide.34 De resto, como nota Leontina Ventura na introdução ao Livro Santo de Santa Cruz, o líder moçárabe foi alcaide entre 1121 e 1125.35 Resta saber se esta aproximação a D. Teresa constituía um benefício para a comunidade ou apenas para a pessoa de Randulfo Soleimás. Se tivermos em conta o percurso de D. Afonso Henriques, que se parece inspirar na ação política da sua mãe, talvez possamos concluir por algum protagonismo para a comunidade. Tal como explica Leontina Ventura, o futuro rei compreendeu a diversidade social em Coimbra e procurou um equilíbrio logo desde os primeiros anos de poder, com doações tanto ao bispo, D. Bernardo, pró-gregoriano e anticompostelano, como a D. Telo, fundador de Santa Cruz, mosteiro que se destinava a enquadrar um grupo de cavaleiros que, além de pretenderem uma nova espiritualidade, o

34 ANTT, Mosteiro de Santa Maria do Lorvão. Antiga Coleção Especial. Particulares. Maço 2, no. 28. 35 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 13. 340 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

ajudariam a consolidar a sua posição.36 Muito provavelmente, esta sensibilidade para ler as forças no terreno seria uma herança de D. Teresa.

Apoio dos Travas e revolta dos nobres portucalenses

Em 1122, a mãe de D. Afonso Henriques conservava uma posição relativamente forte na Galiza37 e continuava a beneficiar do apoio dos Travas, o que significa que estes a considerariam uma peça importante na trama política peninsular. A título de contrapartida, Fernão Peres saiu largamente beneficiado, tal como atestam as vastas doações de que foi alvo. O ano de 1122 é bem eloquente a este respeito: a 24 de maio, pelos bons serviços prestados à “rainha”, recebeu o Castelo de Seia, numa zona estratégica que tanto revelava impacto na defesa de Viseu como na de Coimbra;38 e, a 3 de novembro, foram acrescentados às suas propriedades os castelos de Santa Eulália e Soure, assim como a vila de Quiaios, na região da atual cidade da Figueira da Foz. Teve, no entanto, mais tarde de ceder o Castelo de Coja à diocese de Coimbra.39 Estas doações demonstram que D. Teresa tomou a decisão de confiar a defesa da fronteira sul aos cuidados de Fernão Peres de Trava – designado na documentação por “senhor de Coimbra”40 –, quer em termos terrestres, corporizados nos perigos vindos das regiões abaixo do Mondego, quer originários do mar, procurando proteger a entrada deste rio, o que justificaria a entrega de posições junto à Figueira da Foz e em Santa Eulália. Se tivermos em conta que, entre 1125 e 1128, o seu irmão mais velho, Bermudo Peres, controlava a zona de Viseu e Seia, concluímos que as principais praças da fronteira sul se encontravam nas mãos dos Travas.41

36 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 14-20. 37 Uma carta de 17 de fevereiro de 1122, pela qual D. Teresa garantia proteção aos moradores de Ourense, instituía um mercado mensal na cidade e doava à respetiva diocese bens e direitos senhoriais, o que demonstra a sua força política nesta conjuntura (Azevedo 1958, 75-76). 38 Azevedo 1958, 62 e 77. 39 Azevedo 1958, 78 e 79-80. 40 “Conde Fernando, senhor de Coimbra” (Azevedo 1958, 72-73). 41 Ventura et Matos 2010, 57. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 341

Ao manter Fernão Peres longe de doações mais a norte, além de posicionar um indivíduo do seu círculo numa zona considerada vital e onde poderia ser‑lhe efetivamente útil, revelava dupla sensatez: por um lado, evitava o potencial descontentamento dos barões locais e, por outro, um eventual apetite dos Travas no sentido de ligarem as suas possessões na Galiza a outras em domínios portucalenses. Mas a opção não constituiria a quadratura do círculo, pois o afastamento dos senhores portucalenses da fronteira com os muçulmanos, campo de fortuna para os filhos segundos, seria mais uma acha para a fogueira das queixas contra D. Teresa. Lembremos que, durante o breve período em que os cristãos controlaram Santarém na vigência do Império Almorávida, entre 1093 e 1111,42 a liderança desta praça-forte coube aos senhores da Maia, na pessoa de Soeiro Mendes, destacando-se ainda nas lides da fronteira os senhores de Grijó. Os benefícios fundiários concedidos aos Travas saíram reforçados por uma ligação matrimonial, também a partir de 1122, entre Urraca, filha de D. Teresa, e Bermudo Peres, filho mais velho de Pedro Froilaz,43 o que constitui outro indício da força política da “rainha” portucalense e da sua mais-valia na perspetiva da família galega. Por causa disso mesmo, os nobres portucalenses estavam longe de satisfeitos face ao crescente poder de Fernão Peres e, ainda em 1121, começaram a afastar-se da cúria, caso de alguns senhores de Sousa, de Ribadouro e da Maia. Em pouco tempo, a debandada ter-se-á estendido a dezenas de barões das regiões do Douro e de Entre Douro e Minho.44 José Mattoso refere que muitos destes senhores, cujas terras eram das mais densamente povoadas e dotadas de recursos naturais e, como tal, constituíam o núcleo mais prestigiado da corte formada pelo conde D. Henrique, desapareceram da documentação mandada exarar por D. Teresa a partir de 1122. Três anos mais tarde, verificou-se, segundo explica, uma nova vaga de deserções, agora a envolver sobretudo senhores de linhagem inferior. O historiador avança a possibilidade de Fernão Peres, depois

42 Exclui-se, evidentemente, o escasso período entre 15 e 23 de março de 1147, ou seja, entre a conquista definitiva de Santarém pelos cristãos e a queda do império no Magrebe, com a entrada do califa almóada em Marraquexe. 43 Amaral et Barroca 2012, 222. 44 Amaral et Barroca 2012, 223-224. 342 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de ascender a figura forte de Coimbra, os ter excluído de posições de destaque no combate ao islão.45 A insatisfação começava a preparar o caminho para o embate em São Mamede. A nova configuração política e a instabilidade no seio do Condado Portucalense, que iriam agravar-se até à guerra entre fações, em 1128, constituíam uma oportunidade para o Império Almorávida, goradas as tentativas de 1117, e eventualmente de 1118 a 1122, de conquistar Coimbra. Mas, em 1121, pouco antes de os senhores portucalenses começaram a abandonar o círculo político de D. Teresa, surgiu uma revolta em Córdova, que assumiu proporções gravosas, a ponto de justificar mais uma travessia do emir Ali b. Yusuf entre o Magrebe e o al-Andalus. Nem todas as fontes muçulmanas são explícitas quanto ao teor da rebelião. Enquanto o Kitab al-Ibar, de Ibn Khaldun, deixa de fora este evento, o al-Bayan al-Mugrib, de Ibn Idari, surge demasiado truncado para que o texto faça algum sentido.46 Já o Rawd al-Qirtas, de Ibn Abi Zar, apresenta uma versão sintética, que põe o acento na composição do exército que Ali b. Yusuf conduziu até ao al‑Andalus e na preocupação demonstrada pelo emir face ao controlo das fronteiras.47 O anónimo al-Hulal al-Mawsiyya é um pouco mais esclarecedor e avança que os conflitos terão surgido devido à polémica nomeação de um governador para a cidade, que terá suscitado o saque dos bens da cúpula almorávida. Ibn al-Athir, na obra al-Kamil fi l-Tarikh, e al-Nuwayri, no Kitab Nihayat al-Arab, são os mais pródigos em informações: durante uma festividade, um escravo negro, propriedade do novo governador da cidade, tentou molestar uma mulher, que apelou para o socorro da população, gerando-se uma escaramuça generalizada, que durou várias horas e só terminou com o cair da noite. As principais figuras da cidade propuseram, então, ao governador que executasse o culpado, pedido que foi recusado: o recém-nomeado líder da cidade preferiu, no dia seguinte, atacar a população, que se uniu, entre pobres e ricos, para rechaçar a investida, obrigando o líder almorávida a tomar refúgio no seu palácio. Mas o edifício foi cercado e pilhado, e o governador só a custo

45 Mattoso 2007, 51-53. 46 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 155-156. 47 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 166. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 343 conseguiu escapar. Com a confusão instalada, as propriedades dos almorávidas foram pilhadas e incendiadas, e estes expulsos da cidade.48 Com certeza ciente do perigo, o emir almorávida foi obrigado a sair de Marraquexe para sitiar Córdova à frente de um numeroso exército, que incluía elementos das tribos zanatas e masmudas, as últimas das quais constituiriam mais tarde a base do movimento almóada. Acabou por perdoar à cidade e exigir apenas a reparação das perdas sofridas pelos almorávidas.49 Se tivermos em conta que, entre o momento em que Ali b. Yusuf recebeu a notícia da revolta, reuniu os exércitos e empreendeu a viagem, devem ter decorrido alguns meses, concluímos que Córdova se manteve fora do domínio almorávida durante um período considerável. Pierre Guichard e Vincent Lagardère, por sua vez, formulam a hipótese de os conflitos não terem sido espoletados pelo motivo indicado por Ibn al-Athir e al-Nuwayri, mas devido a uma possível anulação da venda dos bens de alguns reis de taifas, incluindo o de Sevilha, que tinham sido depostos cerca de 30 anos antes, e cujo produto deveria reverter para o tesouro público. Apoiam-se, para tal, numa fatwa que alude à venda destes bens, embora em nenhuma passagem o documento faça a ligação à revolta de Córdova e os autores não apresentem nenhuma outra prova da sua afirmação.50 Rachid El Hour também põe em causa o motivo, mas, não propondo nenhuma alternativa, sublinha apenas que a revolta terá sido instigada ou, pelo menos, ratificada pelo cádi, Ibn Rushd, e pelos doutores de leis da cidade, o que aponta, segundo defende, para que fossem lícitas as pretensões da população, justificando-se que o emir Ali b. Yusuf se tenha contentado com a simples reparação dos danos sofridos pelos almorávidas, prescindido de pena mais gravosa para os revoltosos. El Hour diz mesmo que, apoiado pela classe de juízes e envolvendo toda a população de Córdova, este era um conflito que os almorávidas não poderiam ganhar.51 Talvez a verdade esteja a meio caminho. Se é certo que as fontes referem que o emir se limitou a pedir a reparação das perdas e a perdoar à cidade, o que

48 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 525-526; al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:196-197. 49 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 103-104. 50 Guichard et Lagardère 1990, 207-208. 51 El Hour 2000, 82-83. 344 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

poderá remeter para alguma debilidade política, temos de pensar que os juízes e a população talvez não acedessem a tal se o emir não se tivesse apresentado à frente de um exército de números expressivos, dissuasor de comportamentos rebeldes. As fontes dão-nos mais matéria para reflexão, ao referirem por diversas vezes que as revoltas se desenrolaram entre “cordoveses” e “almorávidas”, o que vinca um distanciamento entre as elites que governavam a cidade e os seus habitantes. Esta separação pode, de resto, ser intuída no tratado de hisba de Ibn Abdun, quando formula boas práticas de governação para a cidade de Sevilha na mesma época. Os almorávidas comportavam-se como estrangeiros, que efetivamente eram, atitude que não deixa de evidenciar uma certa fragilidade no controlo do espaço, talvez mais conservado pela força das armas do que pela capacidade governativa. Não admira que, face a decisões que desagradavam às populações, surgissem conflitos violentos com vista a substituir as elites: ao eliminá-las, existia a possibilidade de o poder cair. E, nesta aparente fragilidade ao nível do controlo do poder, a qualquer momento, um rastilho de pólvora, como a queda de uma importante cidade devido a um motivo aparentemente fortuito, parecia pôr em perigo a posição almorávida em todo o al-Andalus. Por ora, Ali b. Yusuf conseguiria anular a instabilidade no coração do território. Mas os problemas iriam agravar-se nos anos seguintes. Não só Ibn Tumart começou a pregar no Magrebe por esta altura, como, a partir de 1125, o emir teve de lidar com as incursões de Afonso de Aragão na região de Granada, que, sem margem para dúvidas, vieram pôr o dedo na ferida das debilidades no controlo do território. O Condado Portucalense podia respirar de alívio. Desde o início da debandada da corte portucalense, em 1121, ainda teriam de ser cumpridos sete anos até ao enfrentamento entre os apoiantes de D. Afonso Henriques e os partidários da sua mãe, e, com ou sem o agrado das elites, esta parecia continuar a perseguir uma estratégia para a fronteira. Em maio de 1123, depois das vastas doações que consolidavam a posição de Fernão Peres em Coimbra, entendeu reforçar a defesa e o povoamento de Viseu, outorgando aos seus habitantes carta de foral, pela sua “fidelidade” e “bons serviços prestados”.52 Com a revolta dos senhores portucalenses nos anos

52 Azevedo 1958, 81-83; Ventura et Matos 2010, 95-96. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 345 imediatamente anteriores, não deixa de ser significativa a referência à lealdade das gentes de Viseu – mas não esqueçamos que Bermudo Peres de Trava era senhor de Seia. Através deste documento, os cavaleiros saíram amplamente beneficiados, o mesmo se aplicando aos clérigos, que puderam manter as suas herdades e dispor de elementos daquela classe ao seu serviço. Interessante é também a troca de propriedades entre Fernão Peres e a Sé de Coimbra, com data de janeiro do mesmo ano. O bispo D. Gonçalo entregou ao cônsul metade de umas casas perto da muralha, “junto à porta que os árabes chamam Alcouz”, e em contrapartida recebeu a vila de Ázere, em Tábua, no eixo Coimbra-Viseu, com os seus termos e adjacências e o alargamento dos limites do Castelo de Coja.53 Ainda em 1123, D. Teresa começou a delinear uma estratégia para Soure, baluarte destruído na campanha almorávida de 1116 e que havia de provar a sua utilidade na guerra de fronteira a partir de 1128, por meio da instalação dos cavaleiros templários. No mês de outubro, com o acordo da “rainha”, o bispo D. Gonçalo entregou a respetiva igreja ao presbítero Martinho Arias e ao seu irmão Mendo, para que fosse restaurada, recaindo sobre ambos o dever de pagar direitos anuais à diocese de Coimbra.54 Sabemos que D. Teresa e o bispo de Coimbra também doaram a Igreja de Miranda, no caso ao presbítero Aires – resta saber em que data –, templo que tinha sofrido “as adversidades dos sarracenos”. A atestá-lo, encontra-se o documento de 1138 pelo qual o clérigo acabou por vender a igreja à própria diocese,55 que em 1130 veria, de novo, os seus poderes ampliados. Em fevereiro, o papa Honório II tomou-a sob proteção apostólica e confirmou todos os seus bens, incluindo os mosteiros do Lorvão e da Vacariça, o Castelo de Coja e a administração das dioceses de Viseu e de Lamego.56 A última confirmação reveste-se de especial importância, pois cerca de cinco anos antes, com o apoio de D. Teresa, D. Gonçalo tinha rechaçado a tentativa dos clérigos de Viseu de restaurarem a diocese e elegerem autonomamente um bispo.57

53 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Maço 3, no. 38. 54 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 372-374. 55 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 381-382. 56 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 797-799. 57 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 613 e 826. 346 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Já em maio de 1125, um ano importante para a fronteira do Gharb al‑Andalus, com o surgimento de D. Afonso Henriques na arena política, temos mais um testemunho das estratégias de ocupação do espaço e de fortalecimento do património da diocese de Coimbra. O prior da sé, Martinho, entregou um terreno inculto localizado em São Martinho do Bispo, no lugar conhecido como Vale de Mouriscas, pelos seus termos antigos. Martinho Almatem e a mulher, Unisco, deveriam trabalhá-lo e, todos os anos, reservar um nono dos rendimentos para a diocese.58

D. Afonso Henriques na arena política

Além da defeção de mais um grupo de nobres da corte e do fortalecimento das posições de Fernão Peres, por um lado, e de D. Gonçalo, por outro, que pareciam ser os pilares de D. Teresa na região de Coimbra, um novo evento marcou este ano de 1125: a investidura de D. Afonso Henriques como cavaleiro, em Zamora.59 Como nota José Mattoso, a cidade pertencia ao senhorio de D. Teresa, pelo que é plausível que a mãe do futuro rei de Portugal estivesse de acordo com o ato e, por extensão, também Fernão Peres o apoiasse. O historiador vai mais longe, ao considerar que esta pode ter sido uma estratégia para apaziguar os descontentes, dando sinais de que D. Afonso Henriques seria o herdeiro do Condado Portucalense.60 Se assim foi, somos obrigados a tirar uma derradeira conclusão: a de que D. Teresa seria mais independente face a Fernão Peres do que pretende a historiografia, na medida em que não prejudicou os interesses do seu filho. Nem isso faria muito sentido. A sua força emergia, em grande medida, de ter gerado um neto de Afonso VI, simultaneamente descendente da monarquia franca, a qual tinha em anos recentes dado um papa à Santa Sé, Calisto II, impulsionador da reforma gregoriana. Este descendente permitia-lhe bater-se na arena política com a irmã Urraca. O mesmo não sucederia se gerasse

58 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 283-284. 59 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 151. 60 Mattoso 2007, 56. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 347 um filho de Fernão Peres. A aliança com os Travas garantia-lhe sobretudo poder militar e um lugar no contexto galaico-portucalense.

Afonso de Aragão ameaça o al-Andalus

No ano em que D. Afonso Henriques se fez cavaleiro, quando os conflitos se tornavam cada vez mais graves em território portucalense, outro guerreiro agitou as linhas do al-Andalus, porventura desviando novamente as atenções almorávidas do condado. As fontes muçulmanas dedicam grande pormenor às incursões de Afonso de Aragão na região de Granada, a partir de onde Abu l-Tahir Tamim governava o al-Andalus em nome do irmão Ali b. Yusuf. Explicam ainda que estes ataques motivaram a deportação de moçárabes para o Norte de África. Os Anales Toledanos transmitem ambas as notícias, mas de forma bastante sucinta e, de certo modo, desgarrada, como se não mantivessem relação alguma, quem sabe para enfatizar o lado negativo da deportação.61 Esta é, de resto, uma das mais graves acusações da tradicional historiografia contra o poder almorávida: o desterro de cristãos por três ocasiões. A que ocorreu em 1106 poderá ter estado relacionada com a morte de Yusuf e a perda de controlo sobre as fronteiras. No período entre 1125 e 1126, que os Anales Toledanos antecipam erradamente para 1123-1124, o poder almorávida foi confrontado com uma decisão idêntica. Num artigo publicado no Anaquel de Estudios Árabes, Delfina Serrano sintetiza a disputa entre Dozy e Codera sobre as causas da deportação de moçárabes em 1126. Genericamente, o primeiro argumentava que os almorávidas perseguiam os cristãos de forma gratuita, ao passo que o segundo, mais moderado, defendia que, se tinham quebrado o pacto de obediência aos cavaleiros do deserto, pois haviam formulado um apelo à intervenção do rei de Aragão, seria de esperar que fossem expulsos.62 Analisemos o que dizem as fontes.

61 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:345. 62 Serrano Ruano 1991, 163-182. 348 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Como explica Huici Miranda em nota de rodapé ao al-Bayan al-Mugrib, tanto Ibn Idari como o anónimo al-Hulal al-Mawsiyya se baseiam em Ibn al-Sayrafi, cuja obra entretanto se perdeu, para transmitir as notícias da campanha de Afonso de Aragão e do desterro dos moçárabes.63 O primeiro texto, embora mais lógico ao nível do encadeamento dos eventos, encontra-se bastante truncado em diversas passagens, pelo que o último acaba por trazer mais riqueza de informações. Em conjunto, permitem perceber os acontecimentos com alguma clareza, muito embora nenhum elucide verdadeiramente sobre a motivação dos ataques perpetrados por Afonso de Aragão. Fala-se nas inúmeras riquezas de Granada, mas a explicação parece insuficiente para justificar uma campanha militar que visou o então centro político do al-Andalus e durou mais de um ano.64 De acordo com as duas fontes referidas, os moçárabes da região de Granada enviaram cartas ao rei de Aragão a pedir que tomasse a cidade, oferecendo-se para combater ao seu lado e para revelar-lhe os pontos fracos da defesa da região.65 Reunido o seu exército, o rei saiu em campanha em setembro de 1125,66 rumo a Saragoça e Valência, arrasando o território à sua passagem. Daqui, acompanhou a linha da costa, por Alcira, Denia, Xátiva e Múrcia, e depois derivou para o interior, em direção à Serra Nevada, por Purchena, Baza, Graena e Guadix.67 Na última cidade, os contingentes moçárabes foram ao seu encontro.68 As forças aliadas acamparam nas cercanias de Granada em janeiro de 1126, cidade onde a população se abrigou devido ao pânico. Ibn al-Khatib, através de al-Maqqari, refere que a oração contra o medo foi proferida em todas as mesquitas quando a população avistou as tendas do acampamento de Afonso de Aragão.69 O mau tempo e a chegada de contingentes muçulmanos terá impedido a continuação do cerco e a eventual tomada da cidade.70 As hostes cristãs seguiram, então, para a região de Córdova, que pilharam e destruíram durante seis semanas, sem, no entanto, tentarem o cerco à cidade.71

63 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 160. 64 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 115. 65 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 160; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 109-110. 66 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 161. 67 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 110-111. 68 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 162. 69 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:305. 70 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 163; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 112. 71 Lagardère 1998, 109. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 349

Só em janeiro de 1126, com o perigo às portas de Granada, chegaram tropas, reunidas em Mequinez, Fez, Múrcia, Valência e Sevilha, para ir ao encontro do rei de Aragão, o que demonstra grande dificuldade em conter os ataques dos cristãos, que permaneceram no território durante largos meses sem oposição.72 Enquanto isso, as forças aragonesas continuaram a receber o apoio dos moçárabes, que, além de engrossarem as suas fileiras, providenciavam preciosos mantimentos. Mesmo assim, não terão prestado um auxílio tão expressivo quanto o prometido, o que terá deixado Afonso descontente. Apesar do arrojo da operação e do medo incutido no poder almorávida, o que iria desencadear algumas estratégias de defesa e reorganização territorial nos anos subsequentes, o rei de Aragão não conseguiu tomar nenhuma praça amuralhada.73 Face ao caos instalado, nesse ano de 1126, o cádi de Córdova, Ibn Rushd, avô do mestre Averróis, delineou um plano para castigar os moçárabes de Granada, que, no seu entender, tinham violado o pacto de proteção estabelecido com os almorávidas, ao instigarem as investidas do rei aragonês. Deslocou-se a Marraquexe, onde foi recebido pelo emir Ali b. Yusuf, e expôs as suas queixas. Segundo defendeu, o castigo mais leve que se lhes poderia aplicar era a expulsão. Ibn Rushd emitiu então uma fatwa, um parecer jurídico, que determinou a deportação para o Magrebe e que foi executada, talvez simbolicamente, no mês de Ramadão de 520, que correspondeu, grosso modo, a outubro de 1126. Outros doutores de leis proferiram opinião semelhante. As figuras mais ilustres da comunidade moçárabe foram então expropriadas e enviadas para Mequinez, Salé e outros lugares do Magrebe.74 Alguns milhares poderão, no entanto, ter seguido para Aragão com as hostes do rei Afonso.75 A deportação revestiu-se, pois, de um caráter inteiramente político. Ibn al-Khatib considera mesmo que os moçárabes eram traidores que mereciam ser castigados.76 Ter-se-á tratado sobretudo de mais uma medida de segurança face ao perigo de manter no terreno populações de lealdade volátil, e não de uma

72 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 163 e 165-166. 73 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 115. 74 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 168; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 108. 75 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 164; Lagardère 1998, 105. 76 Al-Maqqari [1600-1632?] 1840-1843, 2:307. 350 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

perseguição gratuita, movida por fanatismo religioso. E mesmo a destruição da Igreja de Granada em 1099, por ordem de Yusuf b. Tashfin, seguindo umafatwa emitida pelos doutores de leis, poderá eventualmente inscrever-se nessa lógica, apesar de ter ocorrido um quarto de século antes.77 Talvez não possamos ver aqui uma marca de intolerância religiosa, mas sobretudo uma estratégia política para desestruturar e enfraquecer uma população numerosa e de lealdade duvidosa. Lembremos que, de acordo com as fontes, os líderes moçárabes enviaram a Afonso de Aragão uma lista de homens dispostos a combater ao seu lado, que contava com 12 mil nomes.78 Se evidenciavam capacidade para mobilizar um número tão expressivo de tropas, descontando eventuais exageros, então é forçoso concluir pela existência de uma comunidade de dimensão expressiva, enquadrada por uma instituição religiosa com raízes antigas (Granada/Elvira tinha sido sede episcopal) e que, assim, constituía um perigo para o poder almorávida. Mas, evidentemente, também é possível argumentar que este risco acabou por derivar de um círculo vicioso: com receio dos perigos políticos de uma comunidade de religião diferente, o poder almorávida atingiu-a no mais fundo da sua identidade, e aquela, sentindo-se perseguida e injustiçada, resolveu apelar a um protetor cristão externo, transformando-se, de facto, num perigo e trazendo, assim, à vida os fantasmas que os conquistadores berberes mais temiam. Alguns autores defendem, no entanto, que os deportados viveram no Norte de África sob as mesmas condições de que usufruíam no al-Andalus, que os respetivos sacerdotes foram autorizados a exercer as suas funções e que a comunidade pôde inclusive construir uma igreja em Marraquexe. Uma fatwa de 1135 da autoria de Ibn al-Hajj, de Córdova, vai nesse sentido, ao determinar que cada grupo de cristãos expulsos do al-Andalus pelo emir dos muçulmanos teria direito a construir um convento ou uma igreja na localidade onde se instalasse.79 Outra fatwa, sem data, mas emitida na Tunísia, é da opinião de que os cristãos transferidos para o Magrebe poderiam edificar os templos que solicitassem, acrescentando que a instalação destas comunidades conduzira a um aumento

77 Lagardère 1998, 104. 78 Lagardère 1998, 100. 79 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 66. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 351 considerável da produção de riqueza, a qual permitia combater o inimigo.80 Ainda que aqui não seja identificado o “inimigo”, podemos supor que se trataria do movimento almóada. Estes dois pareceres jurídicos revelam alguma “boa vontade” das autoridades muçulmanas e até os benefícios que retirariam da presença dos cristãos no Norte de África. Mas, pelo menos, um deles surge uma década após a expulsão, deixando claro que a situação ainda não se encontraria totalmente pacificada. Mais: se houve recurso à mediação dos doutores de leis, é porque existiriam conflitos e, assim, a necessidade de dar-lhes uma solução. A tensão inter-religiosa mostra-se, aliás, de acordo com a realidade que perpassa as fatawa recolhidas por al-Wansharisi, a qual reflete uma convivência de séculos. São múltiplos os casos de queixas relativas a judeus e cristãos a viverem entre muçulmanos que não usavam no vestuário sinais distintivos da sua condição de “tributários”. Além disso, a construção de templos parecia ser sempre um assunto melindroso. Por exemplo, em Córdova, no ano de 914, o conselho de juristas aprovou a demolição de uma sinagoga recentemente edificada, acrescentando que os judeus e os cristãos não poderiam construir templos nas cidades muçulmanas, no meio das comunidades islâmicas.81 Cyrille Aillet refere que, em Córdova, as fontes registam apenas um local de culto cristão – a Basílica de São Cipriano – em período califal e que a comunidade que em torno deste templo se organizava sentia a urbe como “fundamentalmente estranha ao cristianismo”.82 Já em Cairuão, em 1012, um judeu obteve autorização para edificar uma sinagoga, mas foi obrigado a abandonar o projeto porque o cádi se manifestou contra.83 Os cristãos da mesma cidade, por volta de 1038 a 1039, foram também impedidos de aumentar a altura da igreja e substituir tijolos por pedra, recebendo apenas autorização para fazer obras no interior ou na porta.84 Outro parecer jurídico, emitido na cidade de Saragoça em 1084, dizia que um imam que deixasse entrar um judeu em sua casa, contactando com a sua mulher e os seus filhos, era um homem de baixeza moral.85

80 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 39. 81 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 55. 82 Aillet 2010, 76-77. 83 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 24. 84 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 24. 85 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 61. 352 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Por outro lado, a permissão concedida pelos almorávidas para que os moçárabes expulsos construíssem templos no Magrebe vem, de certo modo, confirmar que a destruição da Igreja de Granada em 1099, por ordem de Yusuf – e talvez de outras instituições cristãs no al-Andalus, como o mosteiro que existia em al-Ushbuna, dedicado aos mártires Veríssimo, Máxima e Júlia –, terá relevado de uma decisão política. Talvez se entendesse que os moçárabes, já no exílio, não teriam número suficiente, nem força política ou tão-pouco proximidade com o mundo cristão para ameaçarem o poder almorávida, justificando-se a autorização para manterem as suas práticas religiosas. Outro indício que vai no mesmo sentido é o facto de uma parte dos moçárabes de Sevilha, instalados em Mequinez, terem preservado a hierarquia eclesiástica, tal como demonstra uma carta pela qual o emir Ali b. Yusuf pediu um parecer ao jurista do al-Andalus Abu l-Qasim Ahmad b. Muhammad b. Ward, publicada por Pierre Guichard e Vincent Lagardère.86 Aliás, a parte da comunidade moçárabe de Sevilha que não foi expulsa do al-Andalus manteve o seu bispo, de resto como aconteceu em Niebla, prelados que, aquando da conquista da cidade do Guadalquivir pelo movimento almóada, em 1147, fugiram para Castela.87 Apesar da expulsão, é bem evidente que os governantes almorávidas não recusavam liminarmente o mundo cristão. Além de Ali b. Yusuf e de Tashfin b. Ali terem nascido de escravas cristãs, escolhidos para a sucessão do trono de Marraquexe, em detrimento dos filhos de princesas oriundas das tribos que sustentavam a confederação, temos de considerar, como já referido, a incorporação de mercenários nos exércitos dos emires almorávidas. Alguns destes cristãos alcançaram lugares de grande destaque, como Reverter, originário do condado de Barcelona, que foi companheiro de armas do emir Tashfin b. Ali e chegou a comandar contingentes de muçulmanos. Como refere Vincent Lagardère, estes contingentes cristãos possuíam um bispo como capelão supremo.88 Ibn Khaldun explica que os muçulmanos, habituados à tática do “toca e foge”, reconheceram a utilidade de tropas que costumavam fazer a guerra

86 Guichard et Lagardère 1990, 204. 87 Lagardère 1998, 111. 88 Lagardère 1998, 112. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 353 cerrando fileiras e formando uma sólida linha atrás dos combatentes,89 embora François Clément considere esta explicação incompleta, pois os contingentes cristãos, menos sensíveis aos jogos políticos berberes, tinham como principal, senão única, missão a de proteger o emir,90 quem sabe por falta de confiança na volatilidade das tribos. A Chronica Adefonsi Imperatoris refere que, depois da morte de Ali b. Yusuf, o seu filho Tashfin, que lhe sucedeu, “tratava os cativos cristãos benevolentemente, como o seu pai tinha feito”.91 Acrescenta que, quando Reverter morreu na guerra contra os almóadas, “até o rei Tashfin e toda a sua casa” ficaram abatidos.92 François Clément formula, inclusive, a possibilidade de Reverter não ter sido um cativo enviado para a corte de Ali b. Yusuf, mas um homem que, de livre vontade, se juntou ao filho daquele na luta contra os almóadas a partir de 1139, argumentando, para tal, que nunca tentou fugir e que os seus filhos tinham liberdade para circular entre os mundos muçulmano e cristão.93 Não se podendo falar propriamente em tolerância é, pois, possível argumentar em favor da partilha de um espaço entre muçulmanos e cristãos. Mas a partilha de um espaço, como é evidente, não poderia deixar dúvidas quanto à hegemonia política muçulmana. E a campanha de Afonso de Aragão ao al-Andalus é prova disso mesmo. Ainda no Ramadão de 520 (outubro de 1126), Abu l-Tahir Tamim, herói de Uclés, que governava o al-Andalus em nome do irmão, foi destituído e chamado a Marraquexe.94 As fontes não o dizem explicitamente, mas é difícil deixar de considerar que a inabilidade política para lidar com os moçárabes – mais uma prova de que os almorávidas governariam de cima para baixo, sem grande ligação às populações? – e a lentidão na resposta aos ataques cristãos, o que permitiu a permanência de um exército inimigo no território durante mais de um ano, causando devastação e incutindo medo no coração do al-Andalus, não tenham estado na origem da decisão, até porque, como explica Pascal Buresi, ao tempo almorávida, as vitórias na guerra santa pertenciam ao Estado e eram louvadas nas mesquitas como estratégia de

89 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 226-227. 90 Clément 2003, 85. 91 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:105. 92 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:196. 93 Clément 2003, 87. 94 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 169; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 116. 354 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

propaganda, mas os insucessos recaíam em exclusivo sobre os governadores provinciais.95 De tal modo o problema se mostrou grave que, para resolvê-lo, foi necessário reunir todos os exércitos das principais cidades do al‑Andalus e recrutar no Norte de África. Tamim acabou por morrer um mês depois, em novembro de 1126.96 A incapacidade berbere para lidar com os moçárabes de Granada voltaria, de resto, a suscitar problemas a Ali b. Yusuf em 1128, quando o governador desta cidade, à época Inalu al-Lamtuni, nomeado pouco tempo após a deportação, suscitou queixas junto do emir, por injustiças cometidas contra a comunidade.97 Esta personagem já se tinha, aliás, envolvido em sérios conflitos com os sábios e os doutores de leis de Jaén.98 Chamado à presença do emir, foi preso e acabou por morrer no cárcere.99 Os almorávidas parecem ter levado bem a sério as ameaças externas, tanto no al-Andalus como no Magrebe. Logo depois de estabilizarem o território peninsular, lançaram-se no projeto de reforço das muralhas das principais cidades, como Granada, o porto de Almeria,100 Sevilha e Córdova.101 O al-Bayan al-Mugrib refere que os impostos foram aumentados em Granada para dar seguimento à construção, que o governador Inalu, que ficou no cargo pouco mais de um ano e meio, conseguiu terminar à custa de pressão tanto sobre os habitantes, para entregarem os fundos necessários, como sobre os construtores, no sentido de acelerarem a obra. A urgência imposta pelo governador, por todos temido, ditou erros que conduziram a desabamentos junto a duas portas da muralha e mataram um número incalculável de pessoas, adensando as reclamações contra os trabalhos, até por haver acusações contra os tesoureiros, que deveriam guardar as verbas e as delapidaram, mas também contra a brutalidade de Inalu.102 Em Almeria, diz a mesma fonte, foi um companheiro de armas do alcaide-do-mar Muhammad b. Maymun quem assumiu o projeto de reforço das fortificações. Neste caso, o dinheiro reunido foi corretamente

95 Buresi 2003, 230. 96 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 116. 97 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 178. 98 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 174. 99 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 179. 100 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 170-171. 101 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 172. 102 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 170-171. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 355 despendido e a muralha terminada sem queixas da população.103 Em Córdova e Sevilha, também não se registaram problemas: segundo a fonte, as gentes de ambas as cidades participaram nas obras, que se desenrolaram sem desvio de fundos.104 Marraquexe, que, segundo as fontes deixam entender, não seria amuralhada ou, pelo menos, contaria com defesas algo débeis, não ficou fora dos planos. Na base da decisão, terá estado o perigo que a pregação de Ibn Tumart, reconhecido pelas tribos das montanhas como mahdi,105 e o movimento almóada já representavam.106 Apenas quatro anos depois da construção da nova muralha, em 1130, as forças lideradas por Abd al-Mumin iriam tentar o assalto à cidade de Marraquexe.107 Dessa vez, o poder almorávida conseguiria rechaçar o perigo e dizimar o inimigo, mas assim não seria em março de 1147, quando o califa entrou finalmente na cidade, ordenando a chacina dos contingentes lamtunas e fazendo cair o império dos guerreiros do deserto. Raciocinando ainda sobre a campanha de Afonso de Aragão, muitas questões permanecem no ar. Desde logo, por que razão os moçárabes estariam descontentes com o poder almorávida, a ponto de arriscarem um apoio aberto ao rei cristão, o qual aceitou iniciar uma campanha no fim do verão, sabendo que poderia prolongar-se por vários meses? De onde adviria a urgência? Sentiria alguma debilidade política ou defensiva? A fraca capacidade de resposta das forças do governador-geral do al-Andalus confere alguma força a essa possibilidade. Estaria o emir Tamim incapacitado por alguma doença em 1125, já que faleceu no ano seguinte? Lembremos que, no período de doença e morte de Yusuf b. Tashfin, entre 1104 e 1106, os cristãos aproveitaram para desestabilizar as linhas defensivas muçulmanas. Se tivermos em conta que, no Magrebe, com a proclamação de Ibn Tumart, se iniciaram, desde 1124, diversos confrontos militares entre almorávidas e almóadas, concluímos que as palavras breves e pouco contextualizadas de Ibn Abi Zar, sobre campanhas promovidas por Marraquexe para esmagar rebeliões nas montanhas, as quais

103 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 171-172. 104 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 172. 105 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 173. 106 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 115-116. 107 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 536. 356 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

absorveram tropas que não puderam auxiliar o al-Andalus, têm relação com esta conjuntura.108 Provavelmente, o timing de Afonso de Aragão deveu-se não só a uma débil defesa estática almorávida no al-Andalus, mas também à consciência de que o território não poderia ser auxiliado com celeridade por meio de tropas enviadas do Magrebe. Ainda assim, sem Valência assegurada para o lado cristão, a conquista de Granada seria um objetivo distante, pelo que, apesar da magnitude da campanha, esta acabou por ser sobretudo uma ação de pilhagem e desgaste.

Contenção da fronteira e doação do Castelo de Soure aos templários

Em 1126, ano em que faleceu D. Urraca e, no al-Andalus, Afonso de Aragão desenvolvia uma campanha militar que culminou com a deportação de moçárabes, D. Teresa continuava a distribuir privilégios aos senhores de Coimbra. Abriu o ano a doar a Randulfo Soleimás herdades na região de Arganil, compostas por pastagens, terrenos cultivados e por cultivar, montes, entradas e saídas, e exigindo como contrapartida construção e plantio.109 Trata-se de mais um exemplo das estratégias de consolidação territorial nas regiões de fronteira, que, de resto, D. Teresa prosseguiu ao conceder a Anaia Vestrariz, em dezembro do mesmo ano, carta de povoamento do Castelo de Góis,110 fortaleza que este tinha adquirido por doação no ano de 1113. Apesar do esforço no sentido do equilíbrio, até porque os bens doados se encontravam na mesma região, a menos de 20 quilómetros de distância, é evidente que o antigo apoiante de D. Henrique usufruía de maior preeminência política do que o moçárabe. O recebimento de um castelo indica que D. Teresa esperava que Anaia Vestrariz participasse na defesa da fronteira. Ainda assim, a doação a Randulfo Soleimás pode revestir-se de relevo extra se considerarmos que, nesse preciso momento, Afonso de Aragão, auxiliado pela comunidade moçárabe descontente com o poder almorávida,

108 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 173. 109 Azevedo 1958, 91. 110 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Maço 4, no. 3. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 357 se encontrava às portas de Granada, depois de ter devastado o território de Saragoça até à orla costeira. Com a questão moçárabe premente no al-Andalus, teria D. Teresa optado por beneficiar também um grupo social de cultura híbrida, que tanto poderia direcionar a sua lealdade para cristãos como para muçulmanos, a fim de evitar males maiores? Ou a recompensa surgia tendo em conta a maior aceitação da reforma gregoriana por Randulfo Soleimás, comprovada pelos casamentos entre filhos seus e descendentes de Anaia Vestrariz? O ano de 1127 seria testemunho de mais transações relacionadas com a comunidade moçárabe de Coimbra. Em maio, Fernando Soleimás e a mulher, Urraca, decidiram beneficiar por testamento a Colegiada de São Pedro com uma herdade nas ricas terras do Mondego, em Vila de Mato, dotada de um casal bem povoado.111 Assistiram ao ato Randulfo Soleimás e outra personagem cujo nome indicia também uma origem moçárabe: Suleiman Aires. Destaca-se ainda a presença de Gonçalo Dias, genro de Anaia Vestrariz, o que mostra que as ligações entre Randulfo Soleimás e a família do pai do futuro bispo de Coimbra eram uma realidade. Já em novembro, Salvador Alcarraque e a mulher, Justa, compraram a Soeiro Guterres e mulher, Elvira, parte de uma vila em Alcarraques, por 20 morabitinos. Entre outros, testemunharam João Almatem e Zaden, outros dois nomes que parecem remeter para um universo moçárabe. Os anos seguintes não seriam menos conturbados para D. Teresa. Além da instabilidade na fronteira, dos problemas crescentes entre nobres portucalenses e galegos e, com algum grau de probabilidade, ainda de memória fresca face aos eventos do al-Andalus provocados por Afonso de Aragão, a “rainha” teve de suportar uma campanha de retaliação de Afonso VII e dos seus apoiantes, que durou seis semanas e incluiu um cerco a Guimarães. Na origem do assédio estava uma tentativa de D. Teresa de conquistar territórios na Galiza, devido à debilidade da posição do sobrinho, recém-chegado ao trono de Leão e Castela.112 Mas, mostrando que dificilmente aceitava os contratempos, decidiu uma manobra ousada: a doação de um castelo de fronteira e seu termo a uma ordem

111 ANTT, Colegiada de São Pedro de Coimbra. Maço único, no. 1. 112 Amaral et Barroca 2012, 227-228; Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:55. 358 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

religiosa militar com cerca de dez anos, mal conhecida e antes de ser confirmada pelo papado.113 Estávamos em março de 1128, a poucos meses da morte política de D. Teresa, ditada pelo insucesso em São Mamede, quando os templários tomaram posse da praça de Soure, destruída em 1116 no decurso dos ataques almorávidas. Como nota José Mattoso, a solenidade do ato foi reforçada pela confirmação de Afonso VII e de alguns dos principais nobres portucalenses e galegos, “como se entre eles não houvesse divisões”. O historiador argumenta que, face ao ideal da cristandade, os conflitos seriam remetidos para segundo plano. Acrescenta que este ato correspondia à participação do Condado Portucalense no movimento de expansão europeia e projeção do mundo cristão para lá dos seus territórios de origem.114 A acreditar na Vita Tellonis, o rescaldo de São Mamede traria a Coimbra mais instabilidade, com a morte do bispo D. Gonçalo e a sua substituição – forçada pelo arcebispo de Braga, Paio Mendes, adversário político de D. Teresa – por Bernardo, arcediago de origem franca a exercer na arquidiocese de Braga, presumível autor da Vita Beati Geraldi. A primeira fonte, redigida por Mestre Pedro Alfarde, sugere mesmo que se D. Teresa não tivesse sido vencida, Bernardo não teria sido eleito, atribuindo a responsabilidade de tal escolha a um D. Afonso Henriques ainda jovem e influenciável pelos “inimigos da igreja”.115 Todavia, como defende Maria do Rosário Morujão, a escolha não terá sido um ato irrefletido de um príncipe imaturo, mas, e endossando uma teoria de Aires do Nascimento, uma forma de afirmar a supremacia de Braga face a Toledo, pois D. Telo tinha servido o falecido bispo D. Gonçalo, que agira em favor da segunda arquidiocese.116 Seja como for, apesar de a nomeação de um clérigo estrangeiro poder ter sido mal aceite pela população, que preferia D. Telo, arcediago da diocese de Coimbra e futuro fundador do Mosteiro de Santa Cruz,117 a verdade é que com esta opção o jovem príncipe se aproximava do arcebispo de Braga. Não muito depois da doação de Soure aos templários, no lado muçulmano, Ali b. Yusuf, então no poder há 22 anos, convocou os sábios e doutores de leis

113 Azevedo 1958, 101. 114 Mattoso 2007, 81. 115 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 59-60. 116 Morujão 2010, 100. 117 Martins 2003, 189. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 359 para o aconselharem na escolha do herdeiro. No mês de maio de 1128, Abu Muhammad Sir foi proclamado em todas as cidades e regiões do império.118 No ano seguinte, o emir decidiu promover a estabilidade no território do al-Andalus e nomeou para Granada e Almeria o filho Tashfin, até que, em 1130, destituiu o governador de Córdova e somou esta cidade às possessões do novo homem forte da Hispânia muçulmana.119

Batalha de São Mamede e afastamento de D. Teresa

No Condado Portucalense, a instabilidade iria atingir um novo pico no verão de 1128. D. Teresa, argumentam Luís Carlos Amaral e Mário Barroca, parecia insistir na restauração do reino da Galiza, não compreendendo que os interesses do condado eram divergentes dos que perseguia o território mais a norte.120 Com os conflitos cada vez mais agudizados entre os partidários galegos de D. Teresa e Fernão Peres de Trava, por um lado, e os barões portucalenses, por outro, que beneficiavam de uma aliança com D. Afonso Henriques desde o cerco de Guimarães,121 começava a desenhar-se no horizonte a silhueta da guerra, catalisada pela apropriação do poder por parte do príncipe. Atos como a atribuição de carta de couto ao eremitério de São Vicente de Fragoso, em dezembro de 1127, e ao Mosteiro de Manhente, terras de Neiva, em janeiro de 1128, a confirmação do foral de Guimarães, em abril do mesmo ano,122 e, no mês seguinte, já bem próximo do enfrentamento de São Mamede, a confirmação e ampliação do couto que D. Urraca e o infante Afonso Raimundes tinham, em 1120, atribuído à arquidiocese de Braga,123 mostram que D. Afonso Henriques, que tinha jurado obediência a Afonso VII depois do cerco de Guimarães, estava já a disputar abertamente o poder à sua mãe.

118 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 180-181. 119 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 182-183. 120 Amaral et Barroca 2012, 229. 121 Mattoso 2007, 61. 122 Mattoso 2007, 61. 123 Amaral et Barroca 2012, 230. 360 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Pressionado pelos nobres portucalenses, que viam com desconfiança a união entre o condado e a Galiza, ou consciente da herança do seu pai, a verdade é que D. Afonso Henriques acabou por assumir a liderança dos revoltosos.124 Os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis referem que, no mês de junho, o infante reuniu os seus partidários e se envolveu numa batalha no campo de São Mamede, perto do Castelo de Guimarães, contra os apoiantes da mãe, que pretendia afastá-lo do governo do território.125 A nobreza portucalense saiu vitoriosa, mas, como nota José Mattoso, não se tratava de uma rejeição de todos os galegos, pois alguns, como Fernão Peres Cativo, estavam com D. Afonso Henriques: o objetivo era afastar Fernão Peres de Trava, que representava os interesses da mais influente família da Galiza e poderia permitir a interferência do arcebispo de Compostela. E, para tal, não se limitaram a expulsar um estrangeiro, mas a escolher para chefe aquele que poderia garantir a autonomia do grupo: D. Afonso Henriques.126 Apesar da autonomia, este não foi, ao contrário do que a tradicional historiografia pretende, um plano de independência nacional estruturado a partir dos territórios do norte. Luís Carlos Amaral e Mário Barroca são perentórios: “Só com uma enorme faculdade imaginativa qualquer contemporâneo dos sucessos poderia conceber semelhante interpretação.”127 Tanto assim não foi que, em breve, D. Afonso Henriques se iria afastar deste universo, com uma mudança de residência para Coimbra e a formação de um grupo de apoio em que pontificavam personagens com novas origens, muitas socialmente elevadas devido ao desempenho na guerra. Vencidos no campo de batalha, D. Teresa e Fernão Peres de Trava, além de afastados do exercício do poder, viram-se obrigados a deixar o território e refugiar-se na Galiza. D. Afonso Henriques ascendia, finalmente, ao comando das terras portucalenses, e um dos seus primeiros atos seria o reforço dos poderes da diocese de Coimbra, pela atribuição do couto do Castelo de Coja, um bem fundiário que tinha pertencido a Fernão Peres de Trava alguns anos antes e que se localizava na região da fronteira. Nesta carta, o doador é apresentado como

124 Oliveira Marques 1996, 24. 125 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 152. 126 Mattoso 1979, 16-19. 127 Amaral et Barroca 2012, 228; Oliveira Marques 1996, 25. 1106-1130. de tombuctu a lisboa, um império esculpido com o ouro do bilad al-sudan 361

“Afonso Henriques, neto do gloriosíssimo imperador da Hispânia e filho do cônsul Henrique e da rainha Teresa”,128 uma escolha que deve ser seguramente interpretada de um ponto de vista político. Um novo líder, legitimado pela vitória no campo de batalha, mas também pela linhagem, chegava ao poder e procurava alianças políticas a sul.

Os novos rostos da fronteira

Afonso de Aragão permaneceu mais de um ano em território muçulmano sem grande oposição, o que levou o emir Ali b. Yusuf a ordenar o reforço das defesas das principais cidades. Mas, no seu plano político, não seguiu a mais sensata das estratégias. A nomeação de Inalu para Granada, que suscitou queixas dos moçárabes129 e dos sábios de Jaén, poderia ter-lhe custado caro. Afastado Inalu, procurou corrigir a opção: em maio de 1128, a proclamação de Abu Muhammad Sir como herdeiro do trono de Marraquexe coincidiu com a nomeação de outro filho, Abu Hafs Umar, para Granada,130 que, todavia, durou apenas quatro meses no cargo. Com estas hesitações, Ali b. Yusuf ainda não parecia inteiramente convencido das medidas a tomar para segurar o território, porventura mais preocupado em beneficiar as suas clientelas nas nomeações do que em delinear uma estratégia credível. Só com a nomeação do filho Tashfin para Granada e Almeria, em 1129, se produziria uma viragem mental. Em 1130, quando Afonso VII se via a braços com a rebelião dos senhores de Lara,131 Tashfin adquiriria também o comando de Córdova, onde se instalou,132 talvez para se manter mais perto da fronteira e procurar maior eficácia na defesa do território. Córdova detinha uma posição que permitia controlar a Via da Prata e o eixo Granada-Uclés. O príncipe guardava ainda Almeria na sua posse, a rica cidade de vocação marítima, em expansão sob o leme dos Banu Maymun.

128 Azevedo 1958, 117-118. 129 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 178. 130 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 180-181. 131 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:18-23. 132 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 188. 362 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

E, a partir do momento em que a família de marinheiros se instalou na cidade, esta passou a ser o entreposto comercial do al-Andalus; a Sevilha de al-Mutamid deixava de ser vital, ainda que contasse com uma esquadra articulada com a da cidade do Andarax. Em pouquíssimos anos, mudavam os rostos da fronteira entre cristãos e muçulmanos. Em 1126, D. Urraca faleceu e transmitiu o lugar a Afonso VII. Em 1128, D. Teresa foi derrotada no campo de batalha para abrir caminho a D. Afonso Henriques, no mesmo ano em que desapareceu Pedro Froilaz de Trava do mundo dos vivos. Agora, em 1129, uma sucessão de erros na organização política e administrativa do al-Andalus, posta a nu pelas campanhas de Afonso de Aragão, trazia à marca outro príncipe: Tashfin b. Ali. Com o rodar do calendário para 1130 e depois para 1131, tanto o líder muçulmano como D. Afonso Henriques iriam aproximar-se mais das linhas de fronteira, o primeiro com a mudança para Córdova e o segundo com a instalação em Coimbra. Ambos iriam dar provas de eficácia na guerra de fronteira.

1130-1147 NOVO EQUILÍBRIO DE FORÇAS NO GHARB AL-ANDALUS

1. DESAFIO DO PODER NO MAGREBE

“O derramamento do vosso sangue é lícito, os vossos bens constituem um saque justificável.”1 No início dos anos de 1120, o Magrebe foi palco da predicação de uma figura carismática: Muhammad b. Tumart, autoproclamado reformador das leis e dos costumes. Tal como Abd Allah b. Yasin e o movimento almorávida décadas antes, o filho da tribo de harga veio para premiar os justos e fazer a guerra aos injustos, à cabeça de um grupo de fiéis que anunciava a unicidade de Deus: chamou-lhes al-muwahhidun, mas o mundo cristão conheceu-os como “almóadas”. O Magrebe nunca mais seria o mesmo.

Contestação de Ibn Tumart e reforço dos sistemas defensivos almorávidas

Dirigido aos almorávidas, o excerto de carta aqui reproduzido recorda a argumentação a que recorreu o cádi de Sevilha, Ibn al-Arabi, num pedido de parecer jurídico ao mestre al-Ghazali, quando pretendia legitimar a conquista do al-Andalus por Yusuf b. Tashfin. Em ambos os casos se procurava a legalidade de ações de guerra dirigidas contra grupos que partilhavam a religião muçulmana. A diferença reside provavelmente na virulência do discurso e na fonte legitimadora. Enquanto no caso almorávida os doutores de leis maliquitas

1 Ibn Tumart [1120-1130?] 1928, 18. 368 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

constituíram o respaldo da intervenção política e militar de Yusuf b. Tashfin, o movimento almóada, que cortou com a ortodoxia, reclamou a condição de mahdi para Ibn Tumart, passando este a fornecer, sozinho, a justificação legal para as suas decisões, que não admitiam contestação, porque emanadas de um líder religioso dotado de infalibilidade (isma), um atributo que, todavia, só poderia ser associado ao profeta Maomé, segundo Ibn Hazm.2 Não deixa de ser curioso que o mesmo al-Ghazali que contribuiu para o discurso legitimador dos almorávidas tenha sido instrumentalizado para efeitos idênticos no caso almóada, agora alegadamente apelando à destruição daqueles que tinha defendido no início. Contam Abd al-Wahid al-Marrakushi e o al-Hulal al‑Mawsiyya que Ibn Tumart encontrou al-Ghazali no Oriente e que este, ao saber da queima do seu livro Ihya Ulum ad-Din (Revivicação das Ciências da Religião), ordenada por Ali b. Yusuf em 1109 por pressão do cádi de Córdova, lhe disse: “Destrói o reino deles, tal como eles destruíram o meu livro, e acaba com o império deles, tal como eles o queimaram.” A passagem é, claro, demasiado conveniente. Também Ibn al-Khatib faz menção a al-Ghazali, que, segundo diz, “adivinhou as coisas que haviam de acontecer-lhe [a Ibn Tumart] e proclamou publicamente o que pensava dele”.3 Ibn Tumart surge, assim, empossado nas fontes por um mestre reconhecido na Umma, que deslegitima aqueles que anteriormente tinha ratificado. Mas autores como O. Saidi dão como provado que, ao contrário do que defende a hagiografia de Ibn Tumart, este nunca se encontrou com al-Ghazali ou seguiu os seus ensinamentos, nem tão-pouco recebeu dele o propósito de reformar o islão magrebino ou de eliminar os almorávidas.4 De facto, se a queima do livro de al-Ghazali ocorreu em 1111, mesmo que se tenham cruzado no Oriente, que preeminência política ou religiosa teria Ibn Tumart nesse momento, ele que se declarou mahdi apenas uma década depois, para ser digno de receber uma tal missão das mãos de um reputado imam? De início, Ibn Tumart até seguiu a tradição maliquita, mas deve ter compreendido que, para afrontar o emir Ali b. Yusuf, poucos anos antes

2 Fierro 2003, 82. 3 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 159. 4 Saidi 1988, 41. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 369 confirmado no poder pelo califa abássida,5 teria de optar por uma estratégia diferente. Os almóadas alegavam pretender regressar à pureza do islão sunita, mas, ao agregarem à sua doutrina a figura do mahdi, mesclavam-lhe elementos xiitas, no fundo seguindo uma ideologia à la carte, talhada segundo os seus interesses. Apesar de o Magrebe ser profundamente maliquita, Ibn Tumart parecia ajustar-se às características da população, muito fragmentada por várias interpretações da religião e influenciada pelo xiismo fatímida e pelo misticismo.6 Foi num tal quadro de ebulição de ideias sobre a religião que os almóadas desafiaram o poder dos almorávidas. Entre as acusações que lhes dirigiam para lhes retirarem legitimidade religiosa e, assim, política, encontravam-se a apostasia, a opressão, a falsidade, a mentira e a prática da injustiça e do mal. Mais tarde, já no século XIII, fontes como Abd al-Wahid al-Marrakushi chegaram a utilizar uma tradição mais matriarcal das tribos do deserto como prova da inabilidade de Ali b. Yusuf para governar, afirmando que eram as mulheres quem tratava dos negócios do Estado, as quais se rodeavam de conselheiros “perversos, malvados, salteadores de caminhos, bêbedos e libertinos”, perante a passividade do emir, que preferia recolher impostos e dedicar-se ao ascetismo.7 Em suma, os almóadas alegavam que os senhores de Marraquexe teriam de pagar com a vida os crimes contra Deus, e que eles seriam os executores da vontade divina,8 um discurso aparentemente preciso, mas na sua essência vago e de largo espetro, que lhes permitia construir uma carreira política sobretudo com base na oposição e na diferença. Após anos de estudo, que, segundo algumas fontes, incluíram viagens ao al-Andalus e ao Oriente em busca de conhecimento, e o exercício da profissão de mufti (consultor jurídico) a título gratuito, Ibn Tumart estava pronto para desafiar os emires de Marraquexe.9 Cinco anos no Oriente, dizem os textos, terminaram com uma viagem em direção à capital do império, deixando pelo caminho as principais cidades de Ifrikiyya e da atual Argélia. Ao cruzar o último

5 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 105-106. 6 Saidi 1988, 37-41. 7 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 135. 8 Clément 2005, 223. 9 Lourinho 2010, 74-75. 370 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

território, conheceu o jovem Abd al-Mumin b. Ali, futuro califa, que se tornou seu discípulo. Já em Marraquexe, por ocasião de uma oração de sexta-feira, encontrou o emir Ali b. Yusuf na mesquita aljama e abordou-o com críticas severas. Obrigado a confrontar-se com os doutores de leis maliquitas, as fontes asseguram que conseguiu ganhar o embate teológico. Ainda assim, teve de fugir de Marraquexe rumo a Aghmat,10 o que mostra que, tendo ou não vencido, a sua posição política era frágil. Qual o objetivo, então, de afrontar Ali b. Yusuf no seu meio, quando não teria condições para derrotá-lo? Este evento aparentemente imponderado, que o levou depois a debater com os doutores de leis apoiantes do regime almorávida, pode constituir o anúncio do novo movimento político, num lugar simbólico e público – a mesquita aljama na oração de sexta-feira – e perante o líder que desejava depor. A demonstração de coragem, justamente pelo desequilíbrio de forças, seria, por certo, espalhada pelo Magrebe, funcionando como publicidade positiva. Ibn Tumart mostrava que teriam de contar consigo daí em diante. Depois deste evento e da fuga para Aghmat, decidiu instalar-se permanentemente em Tinmal.11 A região encontrava-se habitada, mas tal não constituiu um problema. Ibn Idari fala de 15 mil mortos entre a tribo hazmira, natural das montanhas de Tinmal, onde Ibn Tumart, depois de apropriar-se dos respetivos bens, veio a edificar a sua base fortificada. Mandou executar todos os que duvidavam da sua condição de mahdi e questionavam as suas decisões.12 Este massacre expressivo mostra que não seria já um modesto pregador e contaria com uma base de apoio militar, que lhe permitiria decidir o local que entendesse para o seu quartel-general. A escolha de Tinmal não terá sido, de resto, produto do acaso. Ninho de águias nas montanhas do Atlas, tratava-se de um ponto inexpugnável, como informam as fontes. Só era possível aceder à fortificação por um caminho de madeira, que poderia ser removido em caso de ataque. Sem este trilho, quem se aventurava pela montanha sujeitava-se a

10 Al-Zarkashi [1364-1392?] 1895, 3-4; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 176-177; al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 108-112; Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 143. 11 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 117-118. 12 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 159-160. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 371 perder a orientação e a encontrar a morte no abismo.13 A facilidade com que fez de Tinmal a sua base é ainda bem reveladora do fraco controlo almorávida das regiões montanhosas, debilidade de que os almóadas retiraram partido e que, em última instância, ditaria a sua vitória sobre os primeiros, construída ao longo de três décadas. Em 1122, segundo o al-Hulal al-Mawsiyya, e em 1124, de acordo com Ibn Idari, Muhammad b. Tumart, que as fontes agora confirmam que já tinha um grupo de apoiantes entre as tribos das montanhas do Atlas, reclamou o estatuto de mahdi, o messias anunciado por Deus para governar no fim dos tempos.14 Mas alguns fragmentos de manuscritos encontrados em Marrocos e traduzidos por Évariste Lévi-Provençal sugerem que, pelo menos, desde o princípio de 1118 Ibn Tumart usava esse título.15 Aliás, por volta de 1121, quando o emir Ali b. Yusuf se esforçava para controlar a grande rebelião em Córdova, que quase custou aos almorávidas o controlo sobre o al-Andalus, o imam pregava nas montanhas e já recebia seguidores, que “fugiam para junto de si”.16 Ou seja, começava a crescer o seu grupo de apoio. Uma vez mais, as semelhanças face aos métodos de Ibn Yasin são inegáveis. Se o imam dos almorávidas se refugiou num ribat de localização incerta na companhia dos seus apoiantes, que disciplinou com mão de ferro, Ibn Tumart aquartelou-se num ponto igualmente estratégico, de difícil acesso, e formou um exército pelo fio da espada, provando-se em ambos os casos que o poder começa a cair nas periferias e só depois atinge o Estado central. A diferença residirá nos métodos: Ibn Yasin parecia interessado em converter os seus apoiantes a uma ideologia com a argumentação do chicote, processo mais moroso, ao passo que Ibn Tumart operou a adesão sobretudo por via do terror infundido com a eliminação em massa dos recalcitrantes, uma estratégia provavelmente mais célere. Ambos os líderes, no entanto, assumiram o poder de forma absoluta. Um chefe religioso disciplinador, uma base fortificada e um exército são os pontos de aproximação entre almorávidas e almóadas, nada

13 Kitab al-Istibsar fi Ajaib al-Amsar [1135-1191?] 1900, 179; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 135-136. 14 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 140; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 158. 15 Lévi-Provençal 1925, 370. 16 Lévi-Provençal 1925, 366. 372 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

surpreendentes se tivermos em conta que as tribos das montanhas, além de governadas pelos emires de Marraquexe, integraram desde o início os exércitos por estes conduzidos, tanto nas campanhas no Magrebe como no al‑Andalus. Portanto, o mimetismo seria o passo natural. A ideologia, essa, teria de ser diferente. Os almorávidas procuraram sempre a legitimidade dentro da ortodoxia do islão, rejeitando o estatuto de califa para o seu líder. Já os almóadas forjaram genealogias para Abd al-Mumin que remontavam a Maomé, o que lhe permitia anunciar-se como legítimo califa. Por sua vez, Ibn Tumart, ao proclamar-se mahdi, prescindia dos doutores de leis maliquitas, mas também falava ao coração do povo de uma região pouco urbanizada e, por isso, sem forte presença de letrados, habituada ao messianismo e à proliferação de personagens que reclamavam esta condição.17 Outra marca forte do movimento almóada era a propaganda. Não que se encontrasse ausente do percurso almorávida, mas o discurso tornava-se agora mais eficaz e intencional. Todas as ações de Ibn Tumart parecem concebidas para serem difundidas, desde a afronta a Ali b. Yusuf até às execuções dos inimigos políticos, passando pelas alegadas demonstrações de virtude moral, bem sublinhadas pelas fontes, com al-Baydaq à cabeça. A violência sem propaganda perde eficácia, não infunde terror, terror este que funciona como cimento agregador, pelo menos, a um nível mais superficial. Depois, é necessário recompensar os seguidores, para que se mantenham unidos em grupo. Ibn Tumart recorria ainda a medos na memória coletiva. A sua propaganda ressuscitava os tempos da opressão zanata,18 a mesma que os almorávidas, anos antes, usaram a seu favor para ganharem o apoio das populações, ao assumirem o papel de salvadores. Formado um exército de fiéis e um círculo de apoio com 50 elementos e, dentro deste, outro mais restrito com apenas dez escolhidos, de que o cronista al‑Baydaq fazia parte, Ibn Tumart não perdeu tempo e, tal como Ibn Yasin, lançou-se em campanhas militares, já com alguns sanajas, ramo tribal a que

17 Ferhat 1994, 54. 18 Lévi-Provençal 1925, 368. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 373 pertenciam os almorávidas, entre as suas lealdades mais próximas.19 Todos estes seguidores pagavam tributo ao mahdi, sem exceção para “os cegos e os inválidos”, e estavam obrigados a fornecer homens para a guerra.20 O poder económico e militar de Ibn Tumart encontrava-se em expansão e, novamente, os métodos parecem decalcados dos adotados por Ibn Yasin no início do movimento almorávida. Al-Baydaq é a mais criteriosa das fontes a relatar as expedições militares em que, à semelhança de Ibn Yasin anos antes, o mahdi participava como guerreiro. Toda a década de 1120 foi pontilhada por ataques almóadas a interesses almorávidas, mas a guerra longa, dura e realmente destrutiva ainda estava para vir. Al-Baydaq fala de nove expedições antes de os dois exércitos se encontrarem, em 1130, às portas de Marraquexe.21 O cruzamento das fontes permite concluir que os ataques almóadas eram, muitas vezes, simultâneos com conflitos no al-Andalus, obrigando à dispersão das forças almorávidas e explicando certamente a dificuldade em mobilizar tropas para resolver todos os conflitos. Por exemplo, por volta de 1125 a 1126, quando os almóadas atacaram interesses almorávidas, Afonso de Aragão entrou com as suas forças no al-Andalus sem grande oposição. Todos estes conflitos pressionaram o poder almorávida no sentido do reforço das suas defesas e talvez tenhamos de ponderar novamente a deportação de moçárabes para o Magrebe em 1126: à luz destas informações, parece sobretudo uma decisão tomada sob grande tensão por uma linhagem que tentava manter-se no poder, procurando acorrer a todas as frentes de conflito em que se via envolvida. Se as cidades do al-Andalus foram obrigadas a organizar-se para consolidar as muralhas, o Magrebe também não foi deixado de parte. Diz Ibn Idari que Ali b. Yusuf mandou construir atalaias e bloquear os caminhos que davam acesso a Marraquexe, pelos quais os seguidores de Ibn Tumart desciam para atacar as planícies e depois regressavam às montanhas.22 Não é referido o exato contexto em que tal ocorreu, mas o al-Hulal al-Mawsiyya leva a pensar que tenha sido logo depois de Ibn Tumart se instalar em Tinmal. Diz a crónica anónima

19 Lévi-Provençal 1925, 364-365. 20 Lévi-Provençal 1925, 368. 21 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 119-126. 22 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 174. 374 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

que o emir Ali b. Yusuf encarregou um afamado salteador de estradas, originário do al-Andalus, da defesa das fronteiras de Marraquexe, com o objetivo de cortar o acesso à capital.23 Ibn al-Qattan acrescenta que o emir construiu fortificações para controlar os almóadas e impedi-los de descer as montanhas.24 Não há grandes dúvidas de que os sucessivos ataques almóadas, combinados com a campanha aragonesa sobre o al-Andalus, foram argumentos definitivos a favor do reforço defensivo. Diz o al-Hulal al-Mawsiyya, no que é apoiado por Ibn al-Qattan al-Marrakushi, que as obras na capital do império, que começaram no verão de 1126 e ficaram concluídas em oito meses, foram aconselhadas a Ali b. Yusuf pelo cádi Ibn Rushd quando da sua permanência na cidade para resolver a questão da deportação dos moçárabes.25 Al-Zarkashi, segundo o qual ficaram a dever-se a Ali b. Yusuf as muralhas, um reservatório, a mesquita aljama e o palácio real, bem como o anónimo Kitab Mafakhir al-Barbar, também aludem à fortificação de Marraquexe, mas o último texto avança a data até 1128.26 Se, por um lado, é razoável a decisão de consolidar as defesas da principal cidade do império, também parece notória uma certa demissão – talvez pela incapacidade – de controlar as montanhas, onde residia o perigo emergente. E Ibn Tumart aproveitou a situação da melhor forma possível para minar um emir cada vez mais entrincheirado no seu reduto. Justamente, como nota o investigador Yassir Benhima, a rede de fortificações mandadas erigir por Ali b. Yusuf, que só mais tarde seria provida de guarnições permanentes, serviu sobretudo para defender grandes cidades, deixando de fora o mundo rural. Estas fortificações serviam mais como local de agrupamento de forças mobilizadas noutras regiões do que para uma proteção efetiva.27 Um tal sistema defensivo estava condenado ao insucesso face à extrema mobilidade dos guerreiros almóadas, os quais, depois de atacarem as planícies, voltavam a tomar refúgio nas montanhas.28 Nas zonas vazias de poder, o império começava a ruir, e

23 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 136. 24 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 132-133. 25 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 150-151. 26 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 8; Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 53. 27 Benhima 2002, 263. 28 Lourinho 2010, 80-81. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 375

Ibn Tumart pressionava as populações para aderirem ao seu partido. O desafio a Ali b. Yusuf era constante, como se comprova pela seguinte passagem: “O imam mahdi libertou os súbditos e os companheiros de Ali b. Yusuf da submissão a este príncipe e informou todo o povo da sua destituição; alguns seguidores de Ibn Tumart chegaram a anunciar publicamente nas mesquitas a deposição do príncipe.”29 Ibn Tumart comportava-se como um legítimo detentor do poder, que cobrava impostos, obrigava à participação no exército, impunha uma ideologia, fazia executar um código de conduta e controlava uma vasta região onde os almorávidas não tinham penetração. E, embora não conste que cunhasse moeda, uma das mais importantes prerrogativas da governação – talvez por não ter o controlo do ouro do Bilad al-Sudan –, a soma dos indícios nas fontes leva a crer que, tal como no início de Yusuf b. Tashfin, em que a governação se encontrava fragmentada, também a partir do começo da década de 1120 o Magrebe era dominado por dois poderes. Se antes um “império do deserto”, controlado por Abu Bakr b. Umar, coexistia com um “império com potencial mediterrânico”, liderado por Yusuf b. Tashfin, neste momento, um “império das montanhas” procurava absorver um “império das planícies e das cidades”, cada vez mais entrincheirado, mas conservando o controlo do ouro que animava a economia. A grande campanha militar iniciada em 1139, já sob o comando de Abd al-Mumin, corresponde ao arranque desse processo de sucção das cidades pelas montanhas. Podemos, assim, concluir que, após a subida ao poder de Yusuf b. Tashfin, o Império Almorávida se manteve livre de competidores diretos apenas pouco mais de 30 anos, entre o afastamento de Abu Bakr b. Umar e da sua descendência, por volta de 1087 a 1088, e o surgimento de Ibn Tumart, cerca de 1120. A morte de Ibn Tumart, em 1130, permitiu-lhe respirar de alívio durante uma década: foi nesta época que ocorreu também a expansão marítima para oriente, consequência da estruturação de uma política naval desde 1115. Mas, a partir de 1139, o califa Abd al-Mumin precisaria apenas de oito anos para destruir o poder almorávida.

29 Lévi-Provençal 1925, 363. 376 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Cerco almóada a Marraquexe, morte de Ibn Tumart e elevação de Abd al-Mumin a califa

No princípio de 1130,30 dizem as fontes que Ibn Tumart ordenou uma purga entre os seus seguidores. Explica al-Baydaq que determinou uma “triagem”, de modo a “excluir dos almóadas os dissidentes, os hipócritas e os velhacos, para os pérfidos serem separados dos justos”, decisão que se saldou no assassinato de membros de cinco tribos.31 O ressentimento resultante desta chacina parece ter sido intenso. A eliminação recaiu maioritariamente sobre idosos, sem vontade de abraçar uma nova aventura política e com receio de represálias almorávidas. Os mais jovens e ambiciosos receberam a tarefa de executar parentes próximos.32 Na prática, os mais novos foram “reprogramados” em função da ideologia almóada, para não manterem outras lealdades que não a da causa. Ibn Tumart dava um passo em frente rumo à modelação de um grupo de seguidores que não questionava a liderança, sem ligações à identidade dos pais ou da tribo: quebrava, no fundo, o poder da asabiyya ou espírito clânico. Ou melhor, construía uma nova asabiyya em torno de si e do seu movimento, acima de qualquer tribo e do poder de qualquer sheikh, uma vez que sem a solidariedade entre seguidores e líder, o projeto político não teria futuro. Como se conclui da obra de Ibn Khaldun, um grupo unido ao redor do líder pelo sentimento clânico era condição obrigatória para o sucesso.33 Mas, se pensarmos bem, uma vez mais, esta opção não era propriamente novidade. Uma via semelhante tinha sido experimentada por Abd Allah b. Yasin, fundador do movimento almorávida. A disciplina forjada à base de castigos corporais, aplicada inclusive ao emir da tribo lamtuna, teve como resultado, se recordarmos as palavras de Ibn Abi Zar, uma lealdade tal que, a uma ordem do líder religioso, os elementos do movimento almorávida não hesitavam em eliminar os próprios pais.34 Talvez no caso almóada esta prática tenha sido levada

30 Lévi-Provençal 1925, 377. 31 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 126-127. 32 Lourinho 2010, 77. 33 Ibn Khaldun [1375-1406?] 2005, 126-127. 34 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 126. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 377 a um extremo, com recrutamentos forçados e assassinatos em números bem mais expressivos ou, pelo menos, assim nos quer levar a crer a propaganda de Ibn Tumart. De qualquer modo, as execuções terão correspondido a apenas uma fase do plano. A conquista de Marraquexe, com a distribuição do saque pelas tropas, pareceu a opção certa para apaziguar o ressentimento espoletado pela obrigação de os novos eliminarem os velhos. De resto, a ideia de tomar a capital do império não era nova. Algum tempo antes, as forças almóadas tinham conseguido eliminar um número expressivo de almorávidas num confronto junto às muralhas de Marraquexe, mas não tinham sido capazes de tomar a cidade.35 Na campanha de abril de 1130,36 chefiada por al-Bashir, que o al-Hulal al-Mawsiyya designa por caudilho dos almóadas e que integrava o círculo restrito de Ibn Tumart,37 o exército passou pela cidade de Aghmat. Os fragmentos anónimos que relatam os primórdios do movimento almóada, que Lévi-Provençal traduziu, referem que os “acampamentos dos inimigos foram todos tomados”, com grandes perdas entre a população.38 É sugerida a ideia de que Aghmat foi conquistada ou, pelo menos, controlada, o que seria uma mais-valia, visto poder funcionar como guarda avançada, a primeira cidade das montanhas em direção a Marraquexe, mas também por ser uma urbe importante, a primeira capital almorávida. As fontes afirmam que, em 1130, Ibn Tumart adoeceu e, por isso, não participou na campanha de Marraquexe, que, de resto, se traduziria num desastre militar: as contas dos guerreiros caídos pesaram fortemente para o lado almóada. Após um cerco de 40 dias,39 os 40 mil homens mobilizados sob a liderança de al‑Bashir, apesar de começarem por ganhar, tal como relata o al-Hulal al-Mawsiyya, foram praticamente todos chacinados, incluindo o caudilho do exército, e os sobreviventes tiveram de fugir para as montanhas.40 Abd al-Mumin foi o herói da campanha e conseguiu proteger a retirada desses 400 guerreiros que conservaram a vida.41 No entanto, a vitória

35 Lévi-Provençal 1925, 382-383. 36 Lourinho 2010, 78. 37 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 139. 38 Lévi-Provençal 1925, 381-382. 39 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 137. 40 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 536. 41 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 137; al-Zarkashi [1364-1392?] 1895, 7. 378 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

almorávida teve um sabor amargo. Quando Ali b. Yusuf ordenou a perseguição dos sobreviventes para desferir o golpe de misericórdia sobre o inimigo, não conseguiu penetrar nas montanhas. Al-Baydaq diz que as forças almóadas foram atacadas por quatro exércitos almorávidas, que não foram capazes de quebrar a sua resistência.42 Tal incapacidade iria custar o poder aos descendentes do emir de Marraquexe. Com Abd al-Mumin à cabeça, o movimento almóada iria renascer das cinzas e regressar mais forte. Mas não agora. Alguns meses depois da dura derrota, as fontes alegam que Ibn Tumart, já muito doente, designou para sucessor Abd al-Mumin e acabou por falecer.43 O desaparecimento do líder almóada foi mantido em segredo pelos servidores da sua casa, incluindo uma irmã, que, de acordo com as fontes, nem com o próprio marido partilhou o acontecimento.44 Dois ou três anos após o falecimento do mahdi, Abd al-Mumin foi finalmente proclamado líder. O novo homem forte dos almóadas, nascido perto de Tlemcen, teria cerca de 35 anos. Numa primeira análise, poderíamos pensar que este silêncio algo incompreensível se deveu a um receio de que o movimento, assente na liderança carismática do mahdi, pudesse sucumbir também, sobretudo quando tinha perdido base de apoio, com a morte de milhares dos seus apoiantes na guerra. Mas, considerando que al-Bashir era o líder do exército almóada, e não Abd al-Mumin, surge a interrogação: se o primeiro não tivesse falecido durante a tentativa de conquistar Marraquexe, teria Abd al-Mumin sido escolhido? Embora não seja totalmente inequívoco, al-Baydaq aponta para que tenha sido al-Bashir a sugerir a “triagem” entre os apoiantes do movimento e a consequente eliminação de gente de cinco tribos. O companheiro de Ibn Tumart chega a entusiasmar-se e a dizer que “Alá gratificou o mahdi com os conselhos de al-Bashir”.45 Ibn al-Athir também confirma que foi al-Bashir, de seu nome Abu Abd Allah al-Wansharisi, quem levou Ibn Tumart a tomar esta decisão. Na sua obra, é muito claro o ascendente que esta personagem, que, pelo nome, teria origem nas montanhas do território que hoje corresponde à Argélia,

42 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 129. 43 Lourinho 2010, 78. 44 Lévi-Provençal 1925, 386. 45 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 126. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 379 conseguiu junto do mahdi dos almóadas. Aliás, al-Bashir é até apresentado como um burlão e aventureiro, capaz de qualquer esquema para ganhar a confiança de Ibn Tumart,46 uma imagem que dele al-Baydaq não dá, mas que, por exemplo, al-Nuwayri deixa clara.47 E, se al-Baydaq designa a operação com vista à conquista de Marraquexe como a “expedição de al-Bashir,”48 Ibn al-Athir é muito mais direto e declara que, depois de organizar um grupo de 40 mil homens, na sua grande maioria combatentes a pé, “onde também seguia Abd al-Mumin”, Ibn Tumart entregou a chefia desse exército a al-Bashir.49 Todas estas informações indicam que al-Bashir seria o elemento com mais destaque a seguir ao líder religioso e que não teria apenas uma dimensão militar: revelava ainda habilidade política. Abd al-Mumin é claramente uma figura secundária no círculo de Ibn Tumart. Mas, face à morte de al-Bashir no assalto a Marraquexe, Ibn al-Athir diz que os sobreviventes se reuniram em seu redor e lhe pediram que liderasse o exército.50 Ou seja, o pupilo de Ibn Tumart só parece assumir relevância na retomada do movimento almóada. Manter a morte de Ibn Tumart em segredo não faz sentido, se, como alegam as fontes, Abd al-Mumin tivesse efetivamente sido designado sucessor. Pelo contrário, o novo líder teria interesse em anunciá-lo tão cedo quanto possível para firmar a sua posição. Aliás, quando Abd Allah b. Yasin, fundador dos almorávidas, se encontrava próximo da morte devido a ferimentos na guerra, convocou uma assembleia e escolheu Abu Bakr b. Umar, forçando, assim, a obediência do movimento ao escolhido. Uma tal atitude seria o mais lógico, até porque, dizem as fontes, a doença de Ibn Tumart foi prolongada: teria tempo para reunir os seus seguidores e investir Abd al-Mumin. Além disso, al-Baydaq afirma que, antes de falecer, o imam convocou uma assembleia para pregar junto dos seus partidários, e não é referida em parte alguma a designação de um herdeiro.51 Este silêncio de dois ou três anos só adquire sentido se o primeiro califa almóada não tiver sido designado pelo mahdi. Morto al-Bashir e desaparecido

46 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 533-535. 47 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:203-205. 48 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 127. 49 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 536. 50 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 536. 51 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 131. 380 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Ibn Tumart, viu uma oportunidade e usou-a a seu favor. Dois ou três anos dar-lhe-iam margem de manobra para se impor como líder, construir alianças e angariar apoios militares, para que, quando se apresentasse, pudesse conter eventuais contestações. Na concretização deste plano, não pode ter estado sozinho. A lealdade dos servidores da casa de Ibn Tumart, que incluíam a irmã deste, estaria garantida, tivesse ou não sido obtida com coação. E esta suposição leva-nos a uma outra: se Abd al-Mumin não foi designado como herdeiro, necessitou do auxílio de gente letrada na construção da sua narrativa de legitimação, de que fazem parte as famosas genealogias a remontar a Maomé. Delicada filigrana, estas linhas de hereditariedade ligavam ao Profeta, não apenas Abd al-Mumin, como também o próprio Ibn Tumart, o que os tornava parentes e reforçava a possibilidade de o primeiro suceder ao segundo, afastando outros eventuais familiares. Lembremos que os irmãos do mahdi, Abd al-Aziz e Isa, também fizeram carreira no seio do movimento almóada, mas que Abd al-Mumin acabou por ordenar a sua execução nos anos de 1150. O passo seguinte será considerar a hipótese de o próprio al-Baydaq, que integrava o círculo íntimo de Ibn Tumart e, à maneira de um verdadeiro mestre da propaganda política, compôs a narrativa da formação do movimento almóada, tenha participado nessa estratégia de transição do poder ou inclusive a tenha concebido. Terá al-Baydaq forjado Abd al-Mumin? A possibilidade não é tão excêntrica se pensarmos que era letrado e integrava o círculo restrito que tinha conhecimento de que o mahdi havia falecido. Mais: a aceitar que a origem himiari dos sanajas, e por extensão de Yusuf b. Tashfin, pode ter sido uma fabricação para legitimar o vencedor de Zallaqa quanto à conquista do al-Andalus, a invenção de uma genealogia já teria um precedente, mas agora as consequências eram mais vastas. O herói da campanha de Marraquexe, que, por certo, teria obtido legitimidade militar devido à façanha, já contaria, pois, com o apoio das principais elites: dois ou três anos teriam de ser suficientes para ganhar as bases. As cautelas com que se rodeou revelam que, apesar da grande mortandade entre os partidários do movimento, o que poderá ter eliminado muitos competidores, ainda temia possíveis focos de contestação. Sem surpresas, acabou mesmo por ter de impor-se pela força, quando um companheiro próximo propôs o seu 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 381 assassinato ao emir almorávida. Ali b. Yusuf ainda cedeu uma força militar para executar a operação, mas o traidor foi morto pelos almóadas e o corpo crucificado em Tinmal.52 Nesse ano de 1130, todas as peças do xadrez do Magrebe e do al-Andalus começaram a mover-se para adquirirem novas posições suscetíveis de mudar o jogo. Dotado de grande ambição e habilidade política – ou, no mínimo, rodeado de conselheiros com tais características –, Abd al-Mumin encontrava-se a um passo de quebrar os cânones e fundar um califado no Mediterrâneo ocidental. O movimento almóada, tal como ficou conhecido, será muito provavelmente uma criação sua e dos seus apoiantes, assente na figura referencial de Ibn Tumart, de onde continuou a emanar a legitimidade, mas, em simultâneo, já distante desse modelo original. No al-Andalus, os rostos da fronteira também se renovaram em poucos anos. Em 1126, morreu D. Urraca, e o governador do al-Andalus, Abu l-Tahir Tamim, viu-se afastado do cargo. Em 1128, D. Teresa saiu da cena política mercê da derrota nos campos de São Mamede. Afonso VII, Tashfin b. Ali e D. Afonso Henriques iriam dar origem a uma nova fase. A decisão, dos dois últimos, de se instalarem em regiões de fronteira entre 1130 e 1131 mostra que estava a despertar um fulgor redobrado na guerra, com algum grau de certeza espoletado pela débil defesa almorávida e pela necessidade de o império se reorganizar e contra-atacar. Como que a confirmar o fim de uma era, Afonso de Aragão, o rei Batalhador, desapareceu em 1134. Sem descendência, deixou os seus bens às ordens dos templários, hospitalários e do Santo Sepulcro. Com a subida ao trono do seu irmão Ramiro, foi restaurado o reino de Navarra, até então submetido a Aragão.53 Os novos detentores do poder procuraram discursos alternativos para obviar aos problemas de legitimação. Beneficiando da morte de al-Bashir e Ibn Tumart, Abd al-Mumin soube aproveitar um vazio para renovar o movimento almóada e impor-se como califa, uma novidade entre berberes. Afonso VII era neto de imperador, mas o seu percurso até ao poder foi tudo menos um dado adquirido. Se a morte do avô, sem deixar herdeiros masculinos diretos, lhe

52 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 137-138. 53 Mattoso 2007, 140. 382 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

abriu uma janela de oportunidade, o segundo casamento da mãe poderia ter deitado tudo a perder. A sua ascensão, protegida pelas elites galegas, também encontrou contestação, e Afonso VII teve, por exemplo, de anular as pretensões dos senhores de Lara. Tashfin b. Ali, por sua vez, substituiu o tio no governo do al-Andalus. Instalou-se em Córdova, para se manter mais perto da fronteira, e demonstrou eficácia na defesa do território e no combate ao adversário cristão. Uma vez mais, o fator acaso interveio e, por morte do herdeiro designado, o irmão Sir, teve de abandonar o al-Andalus para acompanhar os assuntos do império no Magrebe, onde se destacou no campo militar contra os almóadas. Por morte do pai, em 1143, tornou-se emir dos almorávidas, mas teve de enfrentar forte contestação, que levou à guerra no seio da confederação que encabeçava. Quanto a D. Afonso Henriques, foi obrigado a afastar a mãe e o seu protegido, Fernão Peres de Trava, para assumir o território portucalense, que teve a habilidade política de transformar num reino. Também não o fez sozinho: um líder político é sempre um projeto coletivo. Muitos agentes participaram na formação de uma força militar, na construção de uma narrativa legitimadora, na organização e defesa do território, na gestão da guerra e na procura de equilíbrios entre as forças de apoio, com vista à estabilidade social. Em breve, estes novos rostos da fronteira iriam confrontar-se e, com isso, forçar novas unidades territoriais e administrativas. 2. OS ANOS DO APOGEU ALMORÁVIDA

“Excitaram a sua ambição e provocaram a sua avidez, animando-o com a descrição de Granada e das suas vantagens sobre as demais regiões, a sua abundância em trigo, cevada e linho e as suas muitas riquezas em seda, vinhas, azeite e diversos tipos de fruta, as muitas fontes e rios, a fortificação da alcáçova, a fidelidade dos seus súbditos e a boa vontade da capital abençoada, a partir da qual são dominadas as outras regiões.”1 Assim descreve o al-Hulal al-Mawsiyya os tesouros que, em 1125, teriam levado a comunidade moçárabe a suscitar o interesse de Afonso de Aragão pela conquista de Granada. Evidentemente, as razões terão sido mais profundas do que as simples riquezas da cidade.

Organização territorial do al-Andalus

As notícias sobre a campanha do rei aragonês abrem linhas de reflexão sobre a organização do poder almorávida no al-Andalus. Por que razão Granada, e não Córdova, antiga capital omíada, ou Sevilha, o rico centro urbano de al-Mutamid, foi escolhida para cabeça do império em território europeu? Embora possa parecer uma opção menos evidente, as fontes não oferecem dúvidas quanto ao estatuto da cidade neste período. Por exemplo, o mesmo al-Hulal al-Mawsiyya

1 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 109. 384 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

reforça que Abu l-Tahir Tamim, irmão do emir de Marraquexe, “tinha a sua residência na capital, Granada”.2 Ibn Idari, através do al-Bayan al-Mugrib, confirma o estatuto de Granada. Segundo refere, tratava-se da região que dominava as demais e chama-lhe mesmo a espinha dorsal do al-Andalus.3 Acrescenta um pormenor interessante: em outubro de 1126, face ao fracasso na contenção dos ataques do rei de Aragão, o emir Ali b. Yusuf destituiu o irmão Tamim “de Granada e Córdova”,4 e nomeou em sua substituição um governador para cada uma das cidades. Significa que, pelo menos durante o governo de Tamim, Córdova seria cidade-satélite de Granada. O al-Bayan al-Mugrib mostra, de resto, que estes centros urbanos já tinham estado agregados noutras ocasiões, inclusive com Tamim no governo. O irmão de Ali, segundo Lévi-Provençal, filho da preferida de Yusuf, Zaynab,5 comandava ambas as cidades em 1111, imediatamente antes de ter sido transferido para o governo de Tlemcen, no Magrebe.6 Mas não as deve ter recebido em conjunto, pois, em 1107, depois de Ali ascender ao poder, de acordo com Ibn Idari, entregou a Tamim o governo de Granada e a outra personagem o de Córdova.7 Em 1111, com a saída do irmão, Ali nomeou para Granada, Córdova e Almeria o emir Mazdali, também da tribo lamtuna, que morreu na guerra contra os cristãos em março de 1115.8 Segundo adianta Ibn Idari, por morte de Mazdali, Ali atribuiu o governo de Granada a um filho daquele e o de Córdova a outro,9 o último dos quais também faleceu na guerra de fronteira, em junho de 1115, e foi substituído por um primo do emir.10 A entrega de Granada e Córdova, primeiro, a Mazdali e, em 1115, separadamente aos seus filhos e a um primo do emir, significa provavelmente que a cabeça do território, nesta altura, não se encontrava em nenhuma destas cidades, a menos que as referidas personagens tivessem assumido a honra de

2 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 111. 3 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 161. 4 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 169. 5 Lévi-Provençal 1986-2004, 389. Vincent Lagardère recusa que Tamim fosse filho de Zaynab, mas não se justifica nem propõe alternativas (Lagardère 1989a, 176-177). 6 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 132-133. 7 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 115-117. 8 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 142-143. 9 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 142-143. 10 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 144-145. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 385 governador-geral do al-Andalus.11 Mas também não seria impossível, se tivermos em conta que Mazdali esteve com Yusuf b. Tashfin desde o início e o ajudou a consolidar o seu poder. Em 1128, Ibn Idari volta a dar notícias de Granada, agora liderada por outra figura, Inalu al-Lamtuni, que aí permaneceu durante um ano e nove meses, até que foi substituído por um filho de Ali b. Yusuf.12 Nessa altura, o governador de Sevilha era outro filho do emir e Córdova estaria desarticulada de Granada, com governador próprio.13 O senhor de Granada permaneceu apenas quatro meses no seu posto,14 tendo sido rendido por outra personagem da tribo lamtuna, recém-chegada do Magrebe.15 Somados todos estes tempos de permanência no cargo de governador de Granada, chegamos sensivelmente a 1130. Assim sendo, entre 1107 e 1130, temos algumas indicações sobre os senhores desta cidade pela voz de Ibn Idari. Se atentarmos agora na Ihata, de Ibn al-Khatib, sabemos que os seus dois primeiros governadores foram Abu al-Hasan Ali b. al-Hajj e o seu irmão Musa,16 que devem ter recebido a cidade após a rendição de Abd Allah, rei da antiga taifa, em 1090.17 Mas, como a lista de Ibn al-Khatib não inclui datas, ficamos apenas a saber os nomes dos governadores até a cidade ter sido entregue a Tamim, em 1107. As fontes muçulmanas mostram que, por volta de 1125 a 1126, Granada detinha o estatuto de capital, mas também revelam que nem sempre mereceu tal destaque. Por exemplo, sabemos que, depois de conquistar Sevilha, Sir b. Abu Bakr recebeu o governo do al-Andalus das mãos de Yusuf b. Tashfin, que se retirou para o Magrebe.18 Ao percorrermos a lista de governadores de Sevilha elencada pelo al-Bayan al-Mugrib, verificamos que, além de todos os nomes provirem da tribo lamtuna, dominante na confederação almorávida,

11 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 111; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 161. 12 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 174-175. 13 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 178. 14 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 179. 15 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 179. 16 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 2009, 1:269-270. 17 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 305-310. 18 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 87. 386 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

existe uma grande mobilidade no poder.19 A exceção é Sir. Enquanto as restantes personagens permaneceram no cargo, no máximo, cerca de dez anos, mas, muitas vezes, apenas alguns meses, Sir foi senhor vitalício das antigas taifas de Badajoz e grande parte da de Sevilha. O Kitab Mafakhir al-Barbar designa-o por “príncipe”, em pé de igualdade com os descendentes de Yusuf b. Tashfin,20 o que não será uma surpresa. Sir era filho de um tio de Yusuf e casado com Hawwa, irmã deste, da qual teve dois filhos: Yahia e Fatima.21 Yahia foi governador de Sevilha por morte do pai, tendo sido destituído para dar lugar ao filho da irmã, Ibn Fatima, que assumiu o cargo em 1115 e teve um papel de destaque na guerra de fronteira contra o Condado Portucalense. Percebe-se a importância de Sir para Yusuf: sendo filho de um tio do emir e casado com uma irmã daquele, poderia ser considerado um irmão. A deferência estendia-se ao pai do general, tio materno do emir. Abd Allah, rei da taifa de Granada, refere este indivíduo nas suas memórias, designando-o como “o sariano” e afirmando que Yusuf fez questão de o honrar depois da conquista de Sevilha, com a oferta de presentes.22 Talvez esta proximidade de parentesco, mas também os bons serviços militares, expliquem que Yusuf tenha entregado a principal cidade e o governo do al-Andalus a Sir b. Abu Bakr. O respeito deveria ser de molde que, não obstante a elevada rotatividade nos cargos de governador, Sir nunca tenha sido removido. Mais ainda: até à sua morte, não parece ter havido intervenção direta dos emires de Marraquexe no Gharb al-Andalus. O general lamtuna conquistou as taifas de Sevilha e Badajoz, recuperou Lisboa, Sintra e Santarém, possivelmente entre 1095 e 1111 e, durante a grande campanha de jihad de 1109, enquanto Ali b. Yusuf atacava a região de Toledo, fez a guerra santa na fronteira do ocidente. Não é evidente que tenha beneficiado do auxílio de

19 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 241-244. O anónimo Kitab Mafakhir al-Barbar também lista alguns governadores de cidades do al-Andalus (Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 81-82). Apesar de não poder contribuir para a análise, por omitir as datas e as durações de permanência nos cargos, faz Enquanto personagens como Sir b. Abu Bakr e os .(أمير) e amir (قائد) uma distinção interessante entre qaid filhos e netos de Yusuf b. Tashfin são designados por “príncipe” (amir), outros parentes mais afastados dos senhores de Marraquexe, como Abu Muhammad Abd Allah b. Fatima, neto de Sir, recebem apenas o título de governador (qaid). O al-Bayan al-Mugrib também estabelece esta distinção, mas não o faz de forma sistemática: apenas com uma leitura minuciosa é possível identificar as personagens, e os seus títulos, ao longo do texto. 20 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 81. 21 Lagardère 1989a, 172-173. 22 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 338. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 387

Marraquexe, nem tão-pouco ambicionado mais do que a reposição da fronteira nos termos em que se encontrava ao tempo de al-Mutawakkil, rei da taifa de Badajoz. Por exemplo, a morte de D. Henrique, em 1112, seria um bom motivo para atacar as defesas do Condado Portucalense, mas não há notícia de operações fortemente organizadas, como as de 1116 ou 1117 sobre Coimbra. A hagiografia de São Martinho de Soure apoda Ibn Fatima, neto de Sir, de “execrável”, devido às suas incursões militares em território cristão, que, de resto, se resumiram ao período de 1116 a 1117, pois este general morreu em janeiro de 1118.23 Mas de Sir b. Abu Bakr, que se manteve mais de 20 anos no poder, nada fala.24 Aliás, as fontes indicam que Sir terá prestado auxílio militar em várias campanhas sobre Toledo, uma das quais em 1113, pouco depois do desaparecimento de D. Henrique,25 mostrando que talvez não tivesse grande interesse em dilatar o seu território à custa do Condado Portucalense. Os domínios de Sir parecem, assim, ter funcionado como um Estado dentro do Estado. Se as fontes referem Sir b. Abu Bakr como governador-geral do al-Andalus, temos de dar como certa a condição de Sevilha enquanto capital entre 1091, data da sua conquista pelos berberes, e 1113, ano da morte do general. Trata-se, de resto, da escolha mais evidente para capital: a taifa de Sevilha tinha sido claramente a mais rica, com pretensões de restaurar o califado omíada em seu nome e mantendo relações comerciais com o Norte de África.26 Interessante é também notar que, mesmo nos momentos em que Granada foi capital, Sevilha não deixou de ter importância, atestada pela escolha de elementos da tribo lamtuna e, muitas vezes, de filhos do próprio emir para a sua governação, o que nos leva a uma interrogação pertinente. Seria Granada apenas uma capital fictícia, para acomodar os interesses de Tamim, irmão do emir, e afastá-lo da rica cidade de Sevilha? Mas, se Sevilha era uma cidade abastada, temos de pensar que, a partir dos anos de 1120, a afirmação da frota de Almeria nos negócios do Mediterrâneo tornaria Granada, a que aquela cidade se encontrava associada, num centro igualmente apetecível do ponto de vista económico.

23 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 154. 24 Vita Martini Sauriensis [1144-1149?] 1998, 227. 25 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 130-131 e 142. 26 Picard 1997, 110-111. 388 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

A atribuição de cargos de governação pelo emir de Marraquexe parecia, assim, obedecer a um cuidadoso exercício de equilíbrios. Mas talvez também possamos ver esta política como uma forma de afastar do verdadeiro centro do poder personagens belicosas, que tinham a oportunidade de gastar as suas energias contra o inimigo cristão, ao mesmo tempo que usufruíam das riquezas das cidades do al-Andalus, evitando rebeliões no Magrebe e disputas pelo império. E, neste jogo de pesos e contrapesos, o estatuto de capital não preocuparia grandemente o poder de Marraquexe. Procuremos alguns exemplos para refletir. Quando Mazdali morreu e Granada e Córdova foram divididas pelos seus filhos, em Sevilha, ascendeu Ibn Fatima. Onde estaria a capital nesse momento? A carta em que o emir Ali b. Yusuf atribui a Ibn Fatima poderes para administrar a justiça de Sevilha como entender, com redação de 1116, é bem demonstrativa da confiança que nele depositava, mas não o dá como governador-geral do al-Andalus. Um segundo exemplo: em 1122, Tamim saiu de Granada para governar Sevilha, substituindo um irmão. Ou seja, durante algum tempo, até 1122, Granada e Sevilha eram comandadas por dois filhos de Yusuf b. Tashfin. Onde estaria a capital nessa altura? Um terceiro exemplo, já para 1128, quando, por um breve lapso de tempo, Granada e Sevilha foram governadas por dois filhos do emir Ali b. Yusuf: qual das duas cidades seria a capital? Por fim, lembremos que, durante a crise provocada por Afonso de Aragão, enquanto Tamim estava à frente de Granada, que assumia o estatuto de capital, um filho do emir Ali era o senhor de Sevilha e auxiliou o tio com os seus exércitos.27 Mas, se o estatuto de capital poderia ser pouco importante – e flutuante consoante as necessidades políticas –, o poderio financeiro das duas cidades também não parece totalmente determinante. Ou seja, é verdade que, no momento de conquista das taifas pelos almorávidas, Sevilha era a mais pujante das cidades do al-Andalus em termos económicos, culturais e simbólicos. Mas, a partir da década de 1120, com os rendimentos proporcionados pela expansão marítima de Almeria, temos de admitir a possibilidade de Granada se ter aproximado em termos financeiros. Ainda assim, verificamos que, a partir da

27 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 165. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 389 morte de Sir b. Abu Bakr, o notável em quem ninguém ousou tocar, Sevilha foi sempre mantida na mão de elementos da tribo lamtuna, sobretudo de filhos ou genros do emir.28 Este facto dirá alguma coisa sobre a importância de Sevilha, nem que seja ao nível simbólico e do prestígio que conferia a sua posse. À extrema rotatividade da elite lamtuna pelas principais cidades do al-Andalus e à ausência de uma noção consolidada de capital, características da administração almorávida, temos de acrescentar a evidente inexistência de um Estado unificado. Observamos sobretudo uma federação de territórios, com alguns núcleos urbanos de maior relevância, mas nem sempre submetidos a uma cidade dotada de centralidade. O que ressalta das fontes é uma utilização das estruturas das antigas taifas nas três primeiras décadas de domínio almorávida, modelo fragmentário, mas talvez o mais adequado para o modo de estar berbere, assente na lealdade tribal. Aliás, esta fragmentação é também evidente no contexto magrebino, ficando por apurar se é causa ou consequência da incapacidade almorávida para controlar, de forma eficaz, muito mais do que as grandes cidades. Face ao sistema de nomeações baseado exclusivamente nas relações clânicas e à ausência de estabilidade governativa, podemos ainda interrogar-nos sobre o que significava ser governador no contexto do Império Almorávida, sobretudo no al-Andalus. Se os governadores circulavam com grande frequência, sem submissão a um mandato, não teriam propriamente um plano para as cidades e as suas regiões. Como não será de supor que estas se autogerissem, surge a dúvida quanto a quem detinha o poder executivo e tomava decisões. As fontes referem que, por exemplo, Inalu al-Lamtuni, que foi governador de Granada entre finais de 1126 e 1128 e acabou no cárcere a mando do emir devido às suas exações, era auxiliado por um secretário judeu, cujo mau comportamento terá sido motivo para exonerar o seu senhor.29 Uma vez mais, este exemplo evoca o governo das taifas. Remete-nos diretamente para as memórias de Abd Allah de Granada, o qual faz referência às personagens que governavam o seu território em conjunto com os soberanos, entre as quais uma “dinastia” de vizires judeus.30

28 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 287. 29 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 179. 30 Abd Allah b. Buluggin [1090-1095?] 2010, 117-142. 390 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Se Ibn al-Kardabus, fonte que evidencia um discurso muito crítico dos reis de taifas e mais próximo do Império Almorávida, acusa os primeiros de terem delegado a governação dos seus territórios,31 nomeadamente em membros da comunidade judaica, talvez a mesma pecha deva recair sobre as elites almorávidas que circulavam pelas cidades do al-Andalus. Por outras palavras, sem uma rede de vizires e de juízes, não seria possível submeter os governadores a um tal nível de rotatividade. Aliás, Rachid El Hour explica precisamente que, quando os almorávidas chegaram ao al-Andalus, depararam com uma forma de controlo do poder por famílias, na sua grande maioria descendentes de juízes, que se tinham aproximado dos reis de taifas após a queda do califado. Era, por exemplo, o caso dos Banu Hamdin e dos Banu Rushd em Córdova, cujos conflitos levariam ao assassinato do cádi da cidade na mesquita aljama em 1135, perante Tashfin b. Ali, filho do emir de Marraquexe e então governador-geral do al-Andalus. Em Silves e em Sevilha, duas destas famílias tinham mesmo assumido o poder: respetivamente, os Banu Muzayn e, evidentemente, os Banu Abbad.32 A função judicial e religiosa era, portanto, transmitida por via hereditária, e estas elites tinham um importante papel na administração do território, sendo que os almorávidas respeitaram o statu quo e mantiveram as principais famílias em tais cargos. Não será, pois, de estranhar que, com a morte de Tashfin b. Ali no Magrebe, em março de 1145, o cádi de Córdova, à altura Ibn Hamdin, se tenha reclamado “emir dos muçulmanos”, o título reservado aos soberanos almorávidas.33 De resto, Ibn al-Abbar considera o período entre o fim do Império Almorávida e o princípio do almóada como a época em que os cádis chegaram ao poder.34 Mas, ainda que os governadores almorávidas parecessem assumir sobretudo o papel de reis de um pequeno território, como que reis de taifas, a sua principal atividade, ao contrário dos seus antecessores, era fazer a guerra aos inimigos cristãos. E a elevada rotatividade nos cargos pode estar precisamente associada às derrotas militares, se tivermos em conta que Tamim, irmão do

31 Ibn al-Kardabus [1150-1250?] 2008, 97. 32 El Hour 2006, 28-29 e 33. 33 Lourinho 2010, 19; Fierro 1994, 91. 34 Fierro 1994, 87. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 391 emir, foi removido após o embaraço que constituiu a campanha de Afonso de Aragão ou que, no seguimento do fracasso numa campanha sobre Talavera, em 1129, o emir destituiu o governador de Sevilha e obrigou-o a resgatar os cativos.35 Estes exemplos vêm reforçar a ideia de que, ao tempo almorávida, ser governador de uma cidade significava sobretudo assumir as funções do chefe militar que defendia a comunidade face aos inimigos cristãos. O caráter aleatório do sucesso na guerra seria, assim, um elemento de instabilidade governativa para as cidades. A partir de todos estes dados, é possível traçar um esboço da organização administrativa almorávida no al-Andalus. A tal espinha dorsal de que falava Ibn Idari poderia assentar no eixo Granada-Uclés, que articulava Córdova, e dava acesso direto a Toledo e ao centro político do reino de Castela. No ocidente, podemos perceber outro eixo. Com a implantação no Gharb al-Andalus, Sir b. Abu Bakr tornou-se senhor das cidades que conquistou entre 1091 e 1094: Sevilha e Badajoz, ambas localizadas na Via da Prata, estrada de origem romana que dava acesso ao reino de Leão e ao Condado Portucalense. Na região do Sharq al-Andalus, o eixo principal seria o de Huesca, Saragoça e Valência, aquele que Afonso de Aragão tomou na campanha de 1125 a 1126. Esta fronteira mostrava-se mais instável, pois os almorávidas foram incapazes de conquistar Saragoça antes de 1110 e de conservar Valência depois de 1118. A estratégia almorávida parece, assim, recorrer a três vias principais: uma a conciliar as antigas taifas de Badajoz e Sevilha, outra a associar os reinos de Granada e Almeria, juntando-lhe Córdova, que pertencia anteriormente à taifa de Sevilha, e uma terceira a conjugar os domínios de Múrcia e Saragoça. Em breve, parte desta organização seria transformada, com a nomeação de Tashfin b. Ali para governador-geral do al-Andalus. Não só a capital passou a ser Córdova, que o filho do emir de Marraquexe tomou para sua residência, como, até 1138, a guerra contra os cristãos se revelou mais eficaz. Tudo leva a crer que Córdova tenha conservado o estatuto de capital até ao fim do Império Almorávida, em 1147, pois Yahia b. Ghaniyya, seu governador, emergiu durante a sedição provocada por Ahmad b. Qasi – a famosa Revolta dos Muridinos –

35 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 186-187. 392 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

como o líder dos almorávidas em território do al-Andalus. Isso não significa que Sevilha tenha perdido preeminência: a lista de governadores elencada por Ibn Idari mostra que continuou a constituir um feudo da tribo lamtuna. Talvez não por acaso, a primeira grande campanha almóada em território europeu, em janeiro de 1147, visou esta cidade, que simbolizava o poder político almorávida em solo europeu. A década de 1130 iria assistir ao apogeu de outro tipo de capital: Almeria, centro económico articulado com Granada.

Calma antes da tempestade

Fortificou os seus castelos, protegeu as fronteiras, lançou espiões contra o inimigo, escolheu os seus soldados, e favoreceu apenas os que se esforçaram . . . deu-lhes cavalos e equipou-os com armas, ampliou as provisões, aumentou o número de arqueiros, fê-los montar a cavalo e elevou o seu bem-estar. Ocupou-se das expedições e de fazer a guerra, derrotou exércitos, tomou castelos, foi temido pelo inimigo, só avançou como vencedor e nunca regressou senão triunfante. Inundou o país com a sua energia e dominou as almas dos seus súbditos com equidade e os corações dos seus soldados com justiça.36

Ainda no final de 1129, Granada e Almeria ganhavam um novo governador, com jurisdição sobre todo o al-Andalus, e as fontes muçulmanas deixam bem claro o ímpeto reformador com que Tashfin, filho do emir de Marraquexe, chegou às novas funções. Numa conjuntura de tensão crescente com o movimento almóada no Magrebe, que iria esbater-se durante algum tempo a partir de 1130, devido à derrota dos seguidores de Ibn Tumart em Marraquexe, parecia evidente a intenção, por parte do poder almorávida, de evitar ataques como o perpetrado pelo rei de Aragão, que revelou as suas fragilidades defensivas e organizacionais. Pouco depois, Tashfin ganhou também o governo de Córdova e, de acordo com uma carta reproduzida por Ibn Idari, cujo texto se encontra muito truncado, recebeu ordem do pai para delegar o governo de Granada.37 O emir Ali b. Yusuf mostrava não estar disposto a perder

36 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 186; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 147. 37 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 199-200. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 393 o al-Andalus, e beneficiou grandemente das dificuldades de Afonso VII em controlar Leão e Castela nos primeiros anos do seu poder. A vida do filho de D. Raimundo e D. Urraca não foi fácil. Obrigado a afastar as pretensões dos senhores de Lara, teve ainda de expulsar as forças aragonesas do seu território, resquícios do casamento da sua mãe com Afonso, o Batalhador, e de controlar sucessivas rebeliões, em geografias muito diversas dos seus domínios de influência, como Navarra, as Astúrias, a Galiza ou mesmo o Condado Portucalense. A Chronica Adefonsi Imperatoris encontra-se recheada destes episódios. Por exemplo, revela que, em maio de 1130, Afonso VII se encontrava ocupado com a recuperação dos castelos de Castrojeriz, Herrera e Castrillo,38 não longe da cidade de Burgos, em território castelhano, até então ocupados pelos aragoneses. A mesma fonte anota ainda uma rebelião em 1132, encabeçada pelo conde Gonçalo Pais, das Astúrias, que iria repetir este tipo de ação ao longo da década de 1130.39 A necessidade de pacificação do território ditou que o primeiro fossado de Afonso VII ao al-Andalus só tivesse ocorrido em 1133, numa altura em que a estratégia de Tashfin b. Ali era já bem-sucedida. “[Tashfin e os almorávidas] destruíram o Castelo de Aceca [na região de Toledo, margem norte do Tejo] e mataram todos os cristãos que encontraram”, confirma a Chronica Adefonsi Imperatoris.40 Acrescenta que a fortificação foi demolida até às fundações e que o comandante, Telo Fernandes, se viu reduzido ao cativeiro e foi enviado para o Magrebe.41 Ou seja, os almorávidas procuravam desmantelar os esforços defensivos cristãos. Afonso VII organizou então uma expedição punitiva, que teve como alvo a região de Sevilha e que penetrou até à foz do Guadalquivir, junto a Cádis. De acordo com a mesma fonte, a operação foi aconselhada por Zafadola (Sayf al-Dawla), senhor de Rota, na região de Saragoça, o qual jurou vassalagem a Afonso VII, ressentido com a perda de privilégios associada à subida ao poder do movimento almorávida.

38 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:24-26. 39 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:30-32. 40 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:33. 41 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:109. 394 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Se os Anales Toledanos passam por este evento de forma breve,42 fontes muçulmanas como Ibn al-Qattan fornecem alguns pormenores interessantes. Segundo refere, o “pequeno sultão43 cristão passou o Tejo com [Zafadola] e entrou no país dos muçulmanos”, atravessando o território até Sevilha e Jerez, onde [as suas forças] entraram e mataram todos os que encontraram.44 “Pequeno sultão” foi o nome que os andaluzes atribuíram a Afonso VII por ter sido coroado rei da Galiza aos 6 anos.45 Mas, como nota François Clément, o “título” continuou a ser usado pelos almóadas – Ibn al-Qattan é uma fonte deste período –, de forma depreciativa.46 Contudo, o primeiro fossado de Afonso VII levou devastação a uma cidade que, nesta conjuntura, talvez não beneficiasse de defesa eficaz. Se analisarmos a lista de governadores de Sevilha recuperada no al-Bayan al-Mugrib, de Ibn Idari, verificamos que, no verão de 1132, Abd Allah b. Abu Bakr b. Tashfin foi destituído, encarcerado e substituído por Tashfin, que era governador-geral do al-Andalus e detinha a cidade de Córdova. A acumulação de Sevilha pode ter sido uma solução de recurso, já que a situação durou apenas um ano. No verão de 1133, mais concretamente em julho, damo-nos conta de que o governador de Valência transitou então para as rédeas de Sevilha. O relativamente fácil fossado de Afonso VII talvez tenha mostrado que a cidade precisava mesmo de um governador e de um contingente militar próprios, pois Tashfin não teria capacidade para defender de forma eficaz todo o território. Todavia, o novo senhor de Sevilha, que tinha assumido Valência em 1130,47 era Yintan b. Ali, filho do emir de Marraquexe e, portanto, irmão do governador-geral do al-Andalus.48 Tashfin abdicava da cidade do Guadalquivir, mas esta mantinha-se agregada aos estritos interesses da família real lamtuna. De acordo com a Chronica Adefonsi Imperatoris, pouco depois de regressar do al-Andalus, Afonso VII teve de lidar com mais uma rebelião do

42 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:346. .(سلطان) em vez de sultan ,(سليطين) e sulitayn (سليطن) Pequeno sultão”: sulitan“ 43 44 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 229 e 266. 45 Reilly 1982, 103. 46 Clément 2005, 225. 47 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 189. 48 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 205. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 395 conde Gonçalo Pais das Astúrias. Entretanto, a morte de Afonso de Aragão, em 1134, conduziu à autonomização do reino de Navarra e constituiu uma desculpa para Afonso VII ocupar Saragoça. As mudanças no Levante tiveram como consequência a submissão do rei de Navarra e dos condes de Barcelona, Toulouse e Montpellier,49 até que, em 1135, foi declarado o império. A narrativa oficial tratou de sublinhar que se tratava da consequência natural de todos estes nobres já prestarem vassalagem ao monarca de Leão e Castela,50 mas tal parece uma inversão de argumentos. Na verdade, Afonso VII manobrou os equilíbrios políticos e pressionou para obter as referidas submissões, tendo beneficiado em muito com a morte de Afonso de Aragão. O objetivo sempre fora o de restaurar o império do seu avô e assumir-se como um grande monarca, com influência no al-Andalus. Sem a morte do rei aragonês, situação que facilitou o domínio sobre os nobres da sua zona de influência, talvez o império não tivesse obtido condições para se tornar uma realidade. Estas acabam por ser as razões de Afonso VII ter prestado menos atenção à defesa da fronteira. Ao contrário do que argumenta José Mattoso, o monarca não se “dedicou intensamente à guerra com os mouros”.51 Aliás, o conde Rodrigo Gonçalves de Lara, primeiramente rebelde, mas feito governador de Toledo após apresentar a sua submissão, parece ter tido uma ação mais intensa na guerra de fronteira neste período. “Travou guerras com os mouros; matou muitos e tomou outros como prisioneiros; também trouxe grande quantidade de saque das terras deles”, diz a Chronica Adefonsi Imperatoris,52 no que é confirmada pelo al-Bayan al‑Mugrib. Por exemplo, a fonte muçulmana transmite a notícia de que, em 1130, o conde de Lara entrou com as suas tropas no “país do islão” e atacou com sucesso a região de Sevilha.53 Ibn al-Qattan também fornece informações a este respeito: os cavaleiros cristãos abateram-se sobre a região de Sevilha, onde fizeram grande mortandade.54 Já em 1132 outra expedição saiu de Toledo rumo a Córdova, mas foi derrotada.55 Também conheceu o

49 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:62-66. 50 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:69-72. 51 Mattoso 2007, 140. 52 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:23. 53 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 190-192. 54 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 226-227. 55 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 197. 396 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

insucesso uma nova campanha que visou Badajoz, Évora e Beja, em 1134, e agregou “os mais ilustres dos cristãos,”56 de que fala igualmente a Chronica Adefonsi Imperatoris.57 Já segundo Ibn al-Qattan, os cristãos atacaram a região de Évora e Tashfin foi ao encontro deles. “Derrotou-os, matou-os e salvou o saque.”58 Também Ibn al-Khatib dá grande destaque a esta campanha, incluindo parte de uma qasida (composição poética) da autoria de Ibn al-Sayrafi, secretário de Tashfin, a comemorar a vitória. O ataque ocorreu, segundo relata, numa zona inesperada, mas o príncipe almorávida conseguiu intercetá-lo na zona de Badajoz. Elogia o sangue frio e a estratégia de Tashfin, que lhe valeram uma vitória onde décadas antes o seu avô, Yusuf, tinha alcançado a glória. Acrescenta que um dos seus escravos negros conseguiu atingir “o conde cristão” – por certo, uma referência ao governador de Toledo – e fazê-lo cair do cavalo.59 É a própria Chronica Adefonsi Imperatoris a sumarizar as razões de Afonso VII para não fazer a guerra aos muçulmanos – basicamente, devido à necessidade de esmagar rebeliões. Acrescenta que o rei de Navarra e “o rei Afonso de Portugal” combinaram fazer a guerra em simultâneo ao monarca de Leão e Castela, de modo a provocar a divisão das suas forças. Em 1134, no caso de D. Afonso Henriques, estavam em causa as incursões no sul da Galiza e a construção e guarnição do Castelo de Celmes, na região de Límia, que se traduziram numa “repreensão” de Afonso VII, com o cerco à referida fortificação e a derrota das forças do futuro rei de Portugal.60 De acordo com José Mattoso, D. Afonso Henriques pretendia alargar os seus territórios para lá dos rios Minho e Lima e desejava deixar claro que tinha o direito de aceitar vassalos em território galego sem a necessidade de pedir autorização a Afonso VII.61 As fontes não indicam uma data precisa para a expedição punitiva do monarca de Leão e Castela. Mas, se considerarmos que apenas depois da morte de Afonso de Aragão Navarra voltou a ser um reino independente, isso significa que só após 7 de setembro de 1134, data do falecimento do rei Batalhador, e não na primavera

56 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 202-204; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 147-149. 57 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:122-124. 58 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 227-228. 59 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 153-155. 60 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:73-78. 61 Mattoso 2007, 138. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 397 deste mesmo ano, como defende Bernard Reilly, retomado por José Mattoso,62 poderão ter ocorrido. Ao termos ainda em conta a total imersão de Afonso VII nos negócios do seu território e a elevação a imperador, que ocorreu em maio de 1135, talvez só depois deste evento o agora Imperator Totius Hispaniae pudesse deslocar-se à região de Límia para castigar D. Afonso Henriques pessoalmente. Se pensarmos ainda que o primo portucalense e o rei de Aragão foram as únicas figuras políticas peninsulares de destaque que não compareceram na cerimónia de coroação, evitando prestar vassalagem ao soberano de “toda a Hispânia”, talvez a vontade de punir D. Afonso Henriques se tenha agudizado, pelo que a campanha para quebrar a hegemonia deste na região de Límia ganha mais força para o período posterior à elevação a imperador. Em suma, “por causa destas guerras, o imperador não empreendeu expedições para sul, no território dos mouros, e eles ganharam muita força em território cristão”: a Chronica Adefonsi Imperatoris não deixa dúvidas quanto à ausência de intervenção direta de Afonso VII na guerra contra os muçulmanos durante a primeira metade da década de 1130. Mas talvez tenhamos de estender estas dificuldades no tempo, na medida em que nem D. Afonso Henriques desistiu do sul da Galiza, nem o conde Gonçalo Pais das Astúrias deixou de rebelar-se enquanto viveu, e a sua morte ocorreu apenas em 1138. Em 1136 e 1137, o futuro rei de Portugal procurou exercer novamente a sua autoridade em Límia e no condado de Toronho.63 Chegamos, deste modo, à conclusão de que, em todo o período em que Tashfin b. Ali governou o al-Andalus, até 1138, Afonso VII esteve demasiado ocupado com assuntos internos para poder dar-lhe resposta. Independentemente da capacidade militar do líder almorávida, temos, pois, de matizar os seus sucessos, louvados nas fontes muçulmanas, e explicá-los também pelo menor contraponto castelhano-leonês. Por outro lado, Tashfin não foi capaz de conquistar nenhuma praça de destaque, ou seja, se descontarmos os sucessos na guerra de fronteira, com a destruição de castelos, o saque e o aprisionamento de seres humanos, não se verificou propriamente recuperação de território, mas

62 Mattoso 2007, 139. 63 Mattoso 2007, 140; Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:78. 398 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

sobretudo contenção e uma defesa que poderá dizer-se agressiva e que parecia ter como objetivo principal desgastar Toledo. De resto, com a exceção de uma breve ocupação de Saragoça e da recuperação de Sintra, Lisboa e Santarém, o mesmo aconteceu no período imediatamente anterior a Tashfin. Vejamos os argumentos que sustentam a afirmação. A Chronica Adefonsi Imperatoris regista, sem data, mas após a destruição do Castelo de Aceca, uma campanha muçulmana que se saldou na morte do governador de Toledo, Guterre Armildes, e no cativeiro do governador de Mora, Munio Afonso, que foi levado para Córdova – a cidade do governador-geral –, e resgatado algum tempo depois contra a entrega de ouro, prata, gado e armas.64 Mais tarde, outra incursão à região de Toledo teve como desfecho a morte do governador de Escalona, noroeste de Toledo, e o aprisionamento do governador de Hita, nordeste da mesma cidade, na região de Guadalajara.65 Destas duas operações também dá conta Ibn al-Qattan, que, ao contrário da Chronica Adefonsi Imperatoris, lhes acrescenta data. Segundo o erudito de Marraquexe, no ano de 531, que decorreu entre 29 de setembro de 1136 e 18 de setembro de 1137, ,e derrotou os cavaleiros cristãos (عطية ) Tashfin raziou a aldeia do Castelo de Atya .(أشكلونة) dos quais reteve saque. Depois, desferiu outra razia sobre Ashkaluna Os muçulmanos entraram no castelo “pela força da espada e mataram todos os que nele se encontravam”, capturaram as mulheres dos cristãos, fizeram grande saque e regressaram a Córdova vitoriosamente.66 Mas a Chronica Adefonsi Imperatoris também averba uma pesada derrota para Tashfin b. Ali e as suas forças na região de Lucena.67 E Ibn al-Qattan fala da preparação de um ataque muçulmano, que acabou frustrado pelas tropas cristãs. Estávamos possivelmente entre 1132 e 1133, e os exércitos de Córdova, Sevilha e Évora escolheram como ponto de encontro o lugar conhecido como Albacar, a norte da primeira cidade, onde montaram acampamento. Na noite seguinte, foram surpreendidos por uma hoste cristã, que atacou e matou muitos muçulmanos. Os sobreviventes, entre os quais Tashfin, tiveram de esconder-se,

64 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:111-112. 65 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:113. 66 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 251-252. 67 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:116-118. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 399 até que regressaram a Córdova.68 Apesar do menor envolvimento de Afonso VII, a década de 1130 parece pautar-se por um impasse em termos de expansão territorial: nenhum dos blocos adversários avançou. No Magrebe, devido à reorganização a que foi obrigado Abd al-Mumin após a pesada derrota dos almóadas em Marraquexe, parece ter decorrido um período de relativa calmaria. Ibn Abi Zar defende que “a primeira razia do califado” ocorreu em janeiro de 1130, contra a região de Tadla,69 nas montanhas do Atlas e, portanto, sujeita a um menor controlo por parte do poder almorávida. Mas a informação não pode estar inteiramente correta, pois, nessa data, ainda antes do desastre de Marraquexe, Abd al-Mumin encontrava-se longe do califado. Não significa que não pudesse ter comandado o referido ataque, a mando de Ibn Tumart, o líder espiritual, ou de al-Bashir, que tudo indica ter sido o primeiro chefe militar do partido almóada. Ibn al-Qattan também fala num ataque a Tadla, ao Dra e a Tasgimut no ano de 526 (23 de novembro de 1131 a 11 de novembro de 1132).70 Tratar-se-á da operação de que fala Ibn Abi Zar? A data estará incorreta? A estar certa, até podem ter ocorrido ataques em 1130 e dois anos depois. Significaria que Abd al-Mumin, após proclamar-se califa, já dispunha de um exército suficiente para fazer campanhas militares e reconstruir fidelidades entre as tribos das montanhas. No entanto, estas operações ainda não se traduziam propriamente num assalto ao poder almorávida. A verdade é que al-Baydaq, o “biógrafo” do movimento fundado por Ibn Tumart, não refere nenhuma campanha ao longo da maior parte da década de 1130. Aquele que o letrado muçulmano descreve como tendo sido o primeiro embate entre Abd al-Mumin e Tashfin b. Ali71 – entretanto convocado ao Magrebe pelo pai, o emir Ali b. Yusuf, para ajudar na guerra e pouco depois assumir a sucessão – é atribuído por Ibn Idari ao ano de 533 (8 de setembro de 1138 a 28 de agosto de 1139).72 Nesta peleja, já al-Baydaq diz que Tashfin se encontrava acompanhado por “al-Shanyur”, provavelmente

68 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 241-242. 69 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 192. 70 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 223. 71 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 136. 72 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 220-223. 400 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

uma apropriação da palavra “senhor”, que corresponderá a Reverter, o caudilho cristão que foi companheiro de armas do príncipe almorávida. Aliás, Ibn al-Qattan também se refere a esta campanha, considerando igualmente que ocorreu no ano da Hégira de 533, e informa que “com ele [Tashfin] estava al-Rubartir”,73 que Ibn Idari designa como “o alcaide dos cristãos”.74 Todavia, parece estranho que Tashfin tenha sido chamado ao Magrebe para auxiliar o pai na luta contra os almóadas sem que se tivessem registado ataques nos anos anteriores, pelo que alguma alteração deve ter ocorrido. O emir Ali b. Yusuf deve ter percecionado um perigo real, pelo menos, devido a movimentações de tropas ou mudanças de lealdades das tribos nas montanhas. Aliás, Ibn al-Qattan al-Marrakushi informa que, no ano de 530 (11 de outubro de 1135 a 29 de setembro de 1136), Abd al-Mumin raziou a região de Tadla75 e que, em 532 (19 de setembro de 1137 a 8 de setembro de 1138), atacou e derrotou os zanatas, numa operação na zona de Taza em que participou também o príncipe herdeiro de Marraquexe, Sir b. Ali b. Yusuf, juntamente com tropas almorávidas.76 Talvez estas operações militares, e sobretudo a última, contra tribos aliadas, mas não diretamente contra o poder almorávida, não constituíssem uma ameaça às principais redes comerciais e permitissem a Marraquexe continuar a governar e a dominar, mas fossem motivo de nervosismo, para forçarem Ali b. Yusuf a ordenar o regresso do filho Tashfin do al-Andalus. Deveria compreender os objetivos de Abd al-Mumin, que estaria a recuperar os apoios tribais existentes ao tempo de Ibn Tumart, algo que, por exemplo, Yusuf b. Tashfin foi igualmente obrigado a fazer na década de 1060 após ter afastado Abu Bakr b. Umar de Marraquexe. Talvez para evitar problemas como os causados pelos moçárabes entre 1125 e 1126, o poder almorávida voltou a transferir, em 1138, população cristã do al-Andalus para o Magrebe.77 Ibn Abi Zar refere que, pouco antes de passar ao Magrebe, o príncipe almorávida atacou Segóvia, onde fez 6000 cativos, que

.Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 263 .(ومعه الربرتير) ”Wa ma’ahi al-Rubartir“ 73 .Ibn Idari [1311-1312?] 1983, 4:153 .(قائد الروم) ”Qa’id al-rum“ 74 75 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 249. 76 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 253-254. 77 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:140. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 401 levou consigo para o Norte de África.78 A informação aponta no sentido de uma necessidade de indivíduos para os exércitos almorávidas e indicia uma preparação para enfrentar o perigo almóada, mas lateralmente também prova a persistência de uma desconfiança face à atuação desta comunidade na fronteira do Gharb al-Andalus. Ibn Abi Zar também se refere nesta conjuntura a Shayur, uma variante do tal designativo que deve corresponder a “senhor” e ao líder Reverter, o que vem mais uma vez demonstrar que, na luta contra os almóadas, os almorávidas recrutaram tropas cristãs. A ideia é confirmada por várias passagens doal-Bayan al-Mugrib. Por exemplo, sabemos que muitos cristãos, entre os quais um de nome Bashir, acompanharam o emir Tashfin até ao fim, no cerco almóada a Orão, onde aquele perdeu a vida, em março de 1145.79 E, quando a cidade de Fez se encontrava sitiada pelos exércitos almóadas, também há registo de cristãos entre os defensores almorávidas.80 A terceira deportação de moçárabes, que as fontes cristãs apontam como argumento da crueldade almorávida, terá também de ser recentrada de acordo com esta perspetiva, e é talvez a própria Chronica Adefonsi Imperatoris a fornecer as melhores pistas:

[Tashfin] levou muitos cristãos com ele, que eram designados por moçárabes, os cristãos que viviam há séculos no sul da Hispânia, sob o domínio muçulmano. Levou consigo todos os cativos que fez durante a sua estada na península e colocou-os em cidades e castelos com outros prisioneiros cristãos. Estes tiveram de enfrentar os almóadas, que estavam a atacar todo o território dos almorávidas no Norte de África.81

De qualquer modo, entre 1130 e 1139, o controlo das fronteiras no al‑Andalus e a ausência de contestação séria no Magrebe permitiram ao movimento almorávida viver talvez o seu período de apogeu. Foi nesta fase, em 1134, que surgiu o acordo com a república de Pisa e, por volta de 1138, com Génova, e que as frotas de Almeria e Sevilha se envolveram em ataques no Oriente. Certamente fruto de uma maior estabilidade no Magrebe, o comércio expandiu-se. Percebemos, através da documentação da Geniza do Cairo, como a

78 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 168. 79 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 260-261. 80 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 270. 81 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:140. 402 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

frota almorávida terá caminhado para algum nível de especialização, com navios alocados preferencialmente ao comércio e outros destinados à guerra.82 Não faria sentido que, por hipótese, enquanto os navios de Almeria ou Sevilha levavam a guerra ao Oriente, o comércio ou o transporte de pessoas entre estas cidades e o Norte de África fosse interrompido por escassez de embarcações. Nos seus trabalhos sobre o espólio da Geniza do Cairo, Goitein indica documentos que evidenciam a ligação comercial entre Almeria e Tlemcen em 1138.83 Dentre as cartas publicadas por Moshe Gil e Ezra Fleischer, encontram-se outros exemplos de atividade comercial: em 1130, deparamos com ligações entre Alexandria e o al-Andalus;84 em 1135, entre Alexandria e Almeria;85 e, em 1138, entre Alexandria, Almeria e Tlemcen, entre Alexandria e o Magrebe e entre Almeria e Tlemcen.86 Também sabemos que o comerciante judeu Halfon b. Nethanel, viajante que, nas palavras de Goitein, “num ano, poderia estar em Aden e na Índia e, no seguinte, na Hispânia ou no Norte de África”, visitou o al-Andalus em 1128, 1130, 1135 e 1138,87 o que significa que as ligações marítimas terão sido contínuas ao longo de todo o período áureo almorávida, sem prejuízo de interrupções pontuais, e que uma presença no Oriente durante esta época não bloqueou o fluxo dos negócios. Na década de 1130, os pisanos e os genoveses firmaram um acordo com um império que parecia ter anulado o perigo almóada, estava a controlar os cristãos na fronteira do al-Andalus e assumia a sua condição de potência dos mares. Nesta fase, talvez ninguém adivinhasse a hecatombe que iria começar a desenhar-se apenas alguns anos depois. Incapaz de erradicar os resquícios dos exércitos almóadas após a vitória em Marraquexe, no ano de 1130, o emir Ali b. Yusuf teria agora de confrontar-se com um Abd al-Mumin mais forte e com uma estratégia renovada: em vez de atacar diretamente a capital, procurou minar as cidades, muitas vezes em operações simultâneas, para dividir as forças almorávidas. O primeiro embate entre Abd al-Mumin e Tashfin b. Ali

82 Gil et Fleischer 2001, 372 e 425. 83 Goitein 1973, 259-261. 84 Gil et Fleischer 2001, 332-340. 85 Gil et Fleischer 2001, 359-364. 86 Gil et Fleischer 2001, 371-373 e 379-386. 87 Goitein 1973, 259-260. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 403 prenunciou o desfecho do império construído pelos homens do deserto do Sara a partir do ouro do Bilad al-Sudan. O exército do príncipe herdeiro, diz Ibn Idari, foi derrotado pelo autoproclamado califa do Magrebe.88

D. Afonso Henriques, génese de um rei

Na fronteira ocidental, D. Afonso Henriques teria a vida mais facilitada do que Afonso VII: não só controlava um território bem mais reduzido do que aquele que se encontrava à guarda do primo, como também estava menos exposto às grandes expedições de Tashfin b. Ali, as quais visavam sobretudo o centro e o levante da Península Ibérica. Aliás, a avaliar pela informação nas fontes, que é muito parca quando comparada com a fornecida para outras regiões do al-Andalus, as campanhas militares direcionadas para a fronteira com o Gharb normalmente não envolviam mais do que as forças dos governadores de fronteira, por vezes, aliadas com as tropas provenientes de Sevilha. D. Afonso Henriques também beneficiou de uma quase ausência de contestação interna na ascensão ao poder. Apenas em 1131 as fontes registam uma rebelião no Castelo de Seia, perpetrada por Bermudo Peres de Trava,89 associado ao partido de D. Teresa, derrotado em São Mamede três anos antes. Como punição, D. Afonso Henriques expropriou os apoiantes do nobre galego,90 num claro ato de afirmação do poder. A condição de ultraperiferia do Condado Portucalense e a menor instabilidade política no território permitiam ao príncipe fazer avançar as suas peças no xadrez das linhas defensivas com alguma facilidade, simultaneamente procurando garantir os seus interesses a norte, na região da Galiza. Isso não significa que, numa primeira fase, se mostrasse muito ativo em termos ofensivos. José Mattoso observa com pertinência que a primeira ação de ataque desferida pelo príncipe portucalense terá correspondido ao fossado da Ladeia, provavelmente já em 1136.91 Mas tal também não significa que se mantivesse

88 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 221. 89 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 152; Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 12. 90 Azevedo 1958, 139-140. 91 Mattoso 2007, 159. 404 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a salvo dos ataques muçulmanos. A política galega ocupou-o sobremaneira e constituiu uma oportunidade para os líderes almorávidas desferirem ataques na fronteira sul. Mas façamos uma revisão cronológica. Em setembro de 1128, pouco depois de ter derrotado as forças leais à sua mãe nos campos de São Mamede, D. Afonso Henriques atribuiu carta de couto do Castelo de Coja à diocese de Coimbra.92 O bispo D. Gonçalo, aliado do seu pai, tinha falecido recentemente, e o príncipe parecia procurar firmar alianças com o arcebispo de Braga, Paio Mendes, que terá forçado a eleição do novo prelado, D. Bernardo. Por motivos diferentes, esta eleição contrariava os interesses do arcebispo de Compostela, Diego Gelmírez,93 e de alguns setores da sociedade de Coimbra, tal como relata a Vita Tellonis.94 Ainda em 1128, no mês de dezembro, D. Afonso Henriques doou à mesma diocese de Coimbra quatro casais em São Pedro do Sul e confirmou-lhe a posse da vila, indicando os respetivos limites.95 Com a atribuição de tais benefícios, servia simultaneamente os interesses de Braga, demonstrando boa-fé junto de Paio Mendes, e congregava alianças na diocese da fronteira, decisão astuta para um governante que desejava impor-se. Em março de 1129 ou 1130 – não há certezas quanto ao ano – prosseguiu a política de reforço das linhas defensivas, com a confirmação da doação do Castelo de Soure, que a sua mãe tinha feito aos templários em 1128.96 Mas, se a diplomática não consegue garantir uma data precisa para o documento, ao perspetivarmos esta doação no contexto internacional, talvez não restem grandes dúvidas de que aconteceu em março de 1130. No mês anterior, estalou o cisma que opunha o papa Inocêncio II, apoiado por Pisa e Génova, os germânicos e os francos, liderados por São Bernardo, ao antipapa Anacleto II, respaldado pela Sicília normanda. Mercê desta proteção, o conde Rogério II foi coroado rei da Sicília, Apúlia e Calábria em setembro de 1130, o que teve como condão irritar os grandes da cristandade, Império Bizantino incluído, que desde o

92 Azevedo 1958, 117-118. 93 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 535-537. 94 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 59-60. 95 Azevedo 1958, 118-119. 96 Azevedo 1958, 120-121. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 405 século XI vinha a perder influência no Mediterrâneo ocidental. As conquistas normandas no sul da Península Itálica, cortesia dos irmãos de Hauteville, Roberto Guiscardo e Rogério, o último pai do agora rei da Sicília, estavam na origem do conflito. É desta época o apodo derex tyranus, que polvilha de igual forma fontes bizantinas, germânicas ou italianas, aplicado a Rogério II. Não admira que, apesar de Anacleto reunir argumentos legais mais sólidos, os grandes da cristandade lhe tenham reservado o epíteto de antipapa: torná-lo ilegítimo seria também anular a decisão de elevar Rogério II a monarca. Mais grave e com mais estratos do que aquele que, entre 1118 e 1121, envolveu Gelásio II e Gregório VIII, este cisma arrastou-se por quase toda a década de 1130, ainda que, no conflito a que ficou associado o arcebispo de Braga possamos perceber já a génese daquilo que iria ocorrer cerca de dez anos depois. Em ambas as conjunturas, tudo se resumia a controlar o poder – e a legitimação desse poder – exercido pelos normandos da Sicília na Península Itálica. Portanto, se Gelásio foi apoiado pelos normandos e pelos francos, Gregório (Maurício Burdino) viu-se convertido em antipapa com o beneplácito do imperador germânico Henrique V. Aos bizantinos desagradava a influência normanda na Península Itálica, mas o sentimento era partilhado pelos germânicos, que aspiravam a controlar a nomeação dos papas e a Cúria Romana em geral. Por isso, a partir de 1130, o imperador Lotário III não teve problemas em aliar-se a francos, pisanos e genoveses para contrariar Anacleto, o papa dos normandos. As cidades-estado italianas também não viam com bons olhos a expansão de uma nova potência marítima, que disputava o comércio do Mediterrâneo e se tinha instalado no sul da península. Nada mais natural do que apoiarem o partido de Inocêncio. Quanto aos francos, não podemos encontrar razões comerciais, navais ou relacionadas com o território italiano. Os motivos terão sido, ainda assim, de natureza política. Tendo acompanhado o papa Gelásio II no seu exílio em França (aliás, tal como Anacleto), Inocêncio manteve-se ligado ao clero local e, no auge dos conflitos com o seu opositor, também foi neste reino que procurou refúgio e o apoio de São Bernardo de Claraval, que mantinha um ascendente sobre o papado, sobretudo evidente no caso do cisterciense Eugénio III. Ao olharmos para os acontecimentos do cisma, dir-se-ia que os dois 406 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

papas em conflito – Inocêncio e Anacleto – não eram mais do que marionetas dos principais atores políticos europeus, justificações para se digladiarem por motivos longínquos da religião. Toda a década de 1130 foi marcada pela guerra entre Pisa, apoiante de Inocêncio II, e a Sicília, que garantia poder militar a Anacleto II, e ainda pelas campanhas do Império Bizantino contra os Estados francos do Oriente. Os germânicos, que chegaram a auxiliar Pisa contra os normandos da Sicília, também apoiaram Inocêncio em termos militares, para que este pudesse afirmar-se em Roma, mas raramente com sucesso. Com a confirmação da doação de Soure aos templários, D. Afonso Henriques reforçava o seu favorecimento a uma ordem apadrinhada pelo papado. No fundo, interessava-lhe ficar na trincheira de São Bernardo, e iria desdobrar-se em esforços diplomáticos ao longo das décadas de 1130 e 1140 para alcançar os seus objetivos. Uma pista de que provavelmente esta confirmação estaria mais relacionada com razões políticas do que defensivas é também fornecida pelos nomes que ratificaram o documento, associados à nobreza condal e não exatamente à fronteira com os muçulmanos. Se o objetivo fosse sobretudo militar, seria de esperar que surgissem personagens ilustres da região de Coimbra, tal como na doação de D. Teresa, em 1128, em que aparecem, por exemplo, Gonçalo Dias, o alcaide da cidade, e Randulfo Soleimás, chefe da comunidade moçárabe. Aliás, sendo o objetivo de natureza política, a nobreza condal seria a plateia mais conveniente a D. Afonso Henriques, que deixava bem claro o seu objetivo perante os mais poderosos daqueles que pretendia governar. Por sua vez, Afonso VII não parecia necessitar de atribuir benefícios aos templários como forma de agradar ao papado e a São Bernardo – não precisava dos favores de ninguém para ser reconhecido como monarca. Em última instância, aqueles é que necessitariam do seu apoio. Como sublinha José Mattoso, escusou-se a fazer doações expressivas a esta ordem.97 Num contexto de rebeliões e instabilidade política, provavelmente receava manter uma força militar estrangeira no seu território, um Estado dentro do Estado, algo que talvez possa explicar, mais tarde, a preferência pela fundação de uma ordem de origem castelhana, como Calatrava. Quem sabe a proteção concedida por

97 Mattoso 2007, 86-87. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 407

Aragão e pelo Condado Portucalense à Ordem do Templo também constituísse motivo de desconfiança para Afonso VII, pelo perigo de se unirem contra Leão e Castela. O apoio do monarca a Inocêncio II, esse, é inequívoco em 1135, na coroação como imperador, que ocorreu na catedral de Leão no mês de maio e teve a presença do legado Guido de Vico. Também fica claro este respaldo em 1136, quando Afonso VII acolheu um concílio de Inocêncio em Burgos. Mas tão-pouco quanto ao período entre 1130 e 1135 existem dúvidas: em carta enviada ao arcebispo de Compostela, com data de agosto de 1130, Inocêncio designava Afonso VII como “nosso queridíssimo filho,”98 o que é revelador de um apoio político do monarca. Já Diego Gelmírez hesitava. Tanto Inocêncio como Anacleto se desdobraram em cartas, a pressionarem para obterem o apoio do arcebispo de Compostela, que parecia não querer comprometer-se com nenhuma das partes. Numa carta de fevereiro de 1131, Inocêncio chegou a elencar todos os seus apoiantes para impressionar Gelmírez.99 Em duas outras missivas, a primeira de 1130 e a segunda de 1131, repreendeu mesmo o arcebispo de Braga, Paio Mendes, a propósito da nomeação do bispo de Coimbra, certamente como forma de agradar a Gelmírez. Lembrava-o de que já Honório II o havia admoestado e convocado à sua presença, ordens por ele ignoradas, e instava-o a devolver a Gelmírez as vilas da arquidiocese de Braga que pertenciam a Compostela e que insistia em reter. Acusava, assim, Paio Mendes de “ousadia e desprezo pela Santa Igreja Romana”.100 Tanto queria agradar a Diego Gelmírez que a correspondência continuou e, em maio de 1134, lamentava de forma quase desesperada: “Estranhamos que, passado tanto tempo, não nos tenhas enviado nenhuma notícia sobre o teu estado e a tua saúde.”101 Anacleto também se apressou a pedir o apoio de Compostela, logo em abril de 1130. A carta que endereçou a Gelmírez é mais uma peça de diplomacia. Vejamos um excerto:

Tendo presentes os teus méritos e a antiga amizade que tiveste especialmente para com o meu pai de boa memória, Pierleone, recordando-o com atenção, desejamos

98 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 526. 99 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 535-536. 100 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 524-525 e 536-537. 101 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 560. 408 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

amar principalmente, depois da igreja dos apóstolos Pedro e Paulo, a tua pessoa e a igreja do apóstolo Tiago.102

Já em 1134, depois de se ter apossado de Roma, Anacleto reiterou o “grande amor fraterno com que amamos a tua pessoa e cremos ser igualmente amados por ela” e prosseguiu lamentando de forma algo desolada: “Já te enviámos várias cartas a partir da Sé Apostólica, confiando que nos visitarias frequentemente com as tuas cartas e os teus mensageiros.”103 As hesitações de Gelmírez não encontravam paralelo no Condado Portucalense de D. Afonso Henriques. No final de 1130, um mês depois da morte de D. Teresa, o príncipe faria outra doação que iria mudar o equilíbrio de forças em Coimbra: em dezembro, atribuiu ao arcediago Telo os banhos régios, “no arrabalde dos judeus”, situados na parte norte da cidade,104 local onde viria a ser construído o Mosteiro de Santa Cruz. A Vita Tellonis refere – e existe um diploma que o atesta105 – que o arcediago comprou logo de seguida ao bispo D. Bernardo, por 30 morabitinos, um horto contíguo à propriedade doada por D. Afonso Henriques, com uma abundante fonte de águas. Junto desta, mandou fazer um claustro e deu ordens para que a água corresse para o respetivo tanque.106 A confirmar o documento de doação dos banhos régios, encontravam-se os líderes de duas fações políticas, as quais o seu pai, o falecido conde D. Henrique, não soube apaziguar cerca de 20 anos antes: Anaia Vestrariz, associado ao antigo partido franco e à reforma gregoriana, e Randulfo Soleimás, chefe da comunidade moçárabe. Neste ato fundacional, se, por um lado, D. Afonso Henriques revelava a acuidade política que lhe permitiria construir novos equilíbrios de poder na fronteira, convocando os representantes da sociedade local, por outro, o projeto continha um potencial de instabilidade. Por certo que o príncipe teria consciência de que patrocinar a construção de um mosteiro que, pela obtenção de bens fundiários, rendimentos e benefícios de vária ordem, iria competir com

102 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 528. 103 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 560-561. 104 Vita Theotonii [1163] 1998, 165. 105 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 265-266. 106 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 63. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 409 a Sé de Coimbra, poderia originar, tal como sucedeu, conflitos acesos entre as duas instituições. O cabido quis forçar D. Telo a fazer testamento dos bens do mosteiro em favor da diocese e procurou por todos os meios impedir a construção e até destruir os trabalhos efetuados.107 Três anos antes, logo após a vitória em São Mamede e a eleição do bispo D. Bernardo, o príncipe havia marcado uma posição, ao beneficiar a sé com a concessão do couto do Castelo de Coja, e agora tomava uma decisão radicalmente contrária aos interesses da diocese. No calor dos conflitos entre Santa Cruz e o cabido, D. Afonso Henriques tomou o partido da instituição que apadrinhava e chegou a ofender os cónegos da sé, chamando-lhes “meretrizes”.108 A necessidade de segurar o apoio de Paio Mendes no início da sua carreira política, deixando-o fazer eleger o bispo da sua preferência, que terá originado descontentamento em Coimbra, parecia agora matizada, quem sabe pelo desejo de instalar-se na cidade mais importante do condado, tanto em número de habitantes, como ao nível económico ou ainda nos planos social, cultural e militar.109 Talvez tivesse a noção das consequências da revolta de 1111, que, por inabilidade política na gestão dos interesses da sociedade de Coimbra, o seu pai acabou por favorecer. A fundação do Mosteiro de Santa Cruz era um projeto de D. Telo que remontava a 1128, após a morte do bispo D. Gonçalo, mas só com o auxílio de personalidades como D. João Peculiar, mestre-escola da catedral de Coimbra, e D. Teotónio, seu discípulo, foi concretizado.110 Apesar de pertencer a terceiros, o projeto surgiu de feição a D. Afonso Henriques. Como sublinha Armando Martins, os fundadores de Santa Cruz ligaram-se diretamente a Roma – que aqui tem de ser entendida como o partido de Inocêncio II, apoiado por Bernardo de Claraval –, procurando dar seguimento à reforma gregoriana, ao mesmo tempo que se associaram aos centros onde o moçarabismo se tinha desenvolvido, como Coimbra, Leiria e Seia, acolhendo socialmente estas comunidades e assimilando a sua herança cultural numa nova identidade.111

107 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 65 e 81-87; Martins 2003, 230-231. 108 Martins 2003, 231. 109 Mattoso 2007, 149. 110 Mattoso 2007, 113; Martins 2003, 190; Vita Theotonii [1163] 1998, 165. 111 Martins 2003, 141. 410 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Raciocinando um pouco mais profundamente, somos levados a concluir que esta assimilação seria biunívoca, ou seja, Santa Cruz de Coimbra enquadrava as comunidades moçárabes, absorvendo a sua cultura, mas também as moldava num produto alternativo, enquanto a reforma gregoriana prosseguia. Ao fim de algumas gerações, estes grupos sociais encontrar-se-iam diluídos no todo cristão, por via de casamentos ou aculturação, já sem a identidade original: a reforma eclesiástica fazia-se sem rebeliões nem sobressaltos e de modo provavelmente mais sólido e duradouro. Na verdade, uma instituição eclesiástica patrocinada por um príncipe que desejava ser rei, e, para isso, procurava obter o favor de São Bernardo e do seu papa, não poderia apoiar as comunidades moçárabes no seu formato original: era-lhe politicamente impossível. Mesmo assim, ao príncipe, não conviria hostilizar esses recursos humanos, imprescindíveis na formação de um novo grupo de apoio, quando pretendia estabelecer-se em Coimbra e dedicar-se à guerra de fronteira. Santa Cruz parecia, assim, concentrar vários estratos: não só privilegiava uma nova religiosidade, associada à regra de Santo Agostinho e, mais concretamente, aos costumes do Mosteiro de São Rufo, em Avinhão, como trazia na sua génese uma dimensão política, que era a de D. Afonso Henriques. Favorecia ainda uma experiência de engenharia social, ligada à assimilação de – e por – moçárabes, também ela com contornos políticos, além de, obviamente, exercer a função de organização territorial numa região de fronteira. Interessa-nos sobretudo as dimensões políticas. O Mosteiro de Santa Cruz surgiu cerca de dois anos após o início do cisma entre Inocêncio II e Anacleto II e, face aos conflitos que eclodiram com a diocese de Coimbra, procurou a proteção direta do primeiro, que se desdobrou em cartas, ora de privilégios à instituição, ora de admoestação aos seus “agressores”.112 A Vita Tellonis revela que as primeiras bulas emitidas por Inocêncio II a favor de Santa Cruz foram redigidas em Pisa e datam de 20 e 26 de maio de 1135, a escassos dias do início do concílio convocado por Inocêncio para condenar Anacleto e o seu protetor, Rogério II, o recém-corado rei da Sicília. Na prática, o concílio desenvolveu-se pela necessidade de contar

112 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 65-67, 69 e 79-81. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 411 armas após a expulsão de Inocêncio de Roma pelos apoiantes de Anacleto. A Historia Compostelana refere que Inocêncio tinha sido “violentamente expulso de Roma” e, por isso, vivia em Pisa.113 Em carta a Diego Gelmírez, arcebispo de Compostela, o papa de São Bernardo confirma: “Saímos de Roma e viemos para Pisa, onde vivemos com os nossos irmãos.”114 O próprio Anacleto, também em carta a Gelmírez, vangloria-se de ter derrotado Lotário, o imperador germânico, e de o ter obrigado a retirar de Roma. Acrescenta que Inocêncio “não pôde permanecer na cidade, fugiu de noite de barco para Pisa e ali se esconde, vivendo miseravelmente, de qualquer maneira”.115 A Vita Tellonis afirma que, devido aos conflitos com a diocese de Coimbra, D. Telo e D. João Peculiar resolveram empreender o caminho de Roma, a fim de obterem a proteção papal,116 nas palavras de José Mattoso, “uma solução dispendiosa, mas eficaz”.117 A Vita Tellonis não diz que os fundadores de Santa Cruz estiveram presentes no Concílio de Pisa – a ata do concílio alude apenas a prelados da Hispânia de forma genérica118 –, mas sabemos que as cartas de privilégios que receberam do papa foram redigidas nesta cidade italiana, a poucos dias do acontecimento, pelo que é plausível afirmar que assistiram à assembleia. Um entendimento semelhante podemos, de resto, encontrar em Armando Martins e José Mattoso, embora os dois investigadores coloquem a viagem apenas no plano de um pedido de auxílio contra os abusos da Sé de Coimbra. Mattoso formula ainda a hipótese de terem procurado São Bernardo de Claraval e de lhe terem falado das experiências eremíticas do vale do Douro, em que D. João Peculiar teria estado pessoalmente envolvido, e que esse conhecimento tivesse conduzido ao envio dos primeiros monges cistercienses francos ao território portucalense, “lá para os lados do túmulo do apóstolo São Tiago, em lugares expostos à crueldade dos cavaleiros almorávidas”.119 Todas estas conjeturas são possíveis, mas temos de invocar de novo o cenário político. Por um lado, temos de recordar que os “cavaleiros almorávidas”

113 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 559. 114 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 560. 115 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 560-561. 116 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 65. 117 Mattoso 2007, 121. 118 Mansi 1758-1798, 21:489. 119 Martins 2003, 193; Mattoso 2007, 122-123. 412 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

– aliás, como os príncipes hamádidas de Bugia, um ramo desavindo dos ziridas de Mahdia – eram aliados de Pisa desde o ano anterior, a grande protetora militar de Inocêncio II, e que a república italiana se encontrava em guerra com a Sicília, apoiante de Anacleto II. Os mesmos “cavaleiros almorávidas”, pela espada de Tashfin b. Ali, estavam a infligir perdas aos cristãos, sobretudo castelhano-leoneses. Sendo os almorávidas inimigos naturais da Sicília normanda, que, entre outros, não viam com bons olhos a influência do poder de Palermo sobre o reino de Mahdia, bastava ao emir de Marraquexe ordenar o ataque aos interesses de Rogério II para já estar a proteger o partido de Inocêncio. Aliás, podemos formular a hipótese de o acordo com os almorávidas ser uma consequência direta do cisma: Pisa poderia querer garantir o auxílio de um adversário da Sicília normanda. Mas, claro, não há certezas. É verdade que fontes originárias da república italiana, como os Annales Pisani e as Chroniche Pisane, ou associadas aos normandos, como De Rebus Gestis Rogerii Siciliae Regis, obra de referência para o reinado de Rogério II, não mencionam campanhas conjuntas entre Pisa e os almorávidas contra a Sicília. Ao mesmo silêncio se remetem as fontes muçulmanas. Mas não será complicado admitir que os almorávidas tenham participado nos repetidos ataques pisanos a cidades da esfera de influência siciliana ao longo de toda a década de 1130. Alessandro Telesino, autor da fonte De Rebus Gestis Rogerii Siciliae Regis, fala de sucessivas campanhas sofridas por Cápua, Amalfi, Salerno e Nápoles. Por exemplo, em 1135, no momento em que Elvira de Castela, filha de Afonso VI e mulher de Rogério II, estava às portas da morte, o rei normando sofria um ataque das forças de Pisa.120 E, tal como dão conta os Annales Magdeburgenses, também os germânicos tiveram algum envolvimento na guerra contra os normandos: o imperador Lotário enviou tropas para o sul de Itália em 1137.121 De facto, podemos, sem grande dificuldade, considerar a possibilidade de os almorávidas se terem associado a estas campanhas, que visavam cidades com potencial marítimo e comercial, por exemplo, na qualidade de mercenários. Tudo isto nos leva a questionar o que significava, na verdade, a pax“ inter Pisanos

120 Alessandro Telesino [1127-1136?] 1724, 631, 634-635 e 638-639. 121 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 186. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 413 et regem de Morroch” a que os Annales Pisani aludem, quando falam da aliança negociada entre Pisa e o Império Almorávida. E o mesmo raciocínio vale, como é evidente, para o acordo com Génova, provavelmente com data de 1138, que Marselha também ansiava. O que implicava em termos práticos? Cooperação militar? Simples não-agressão? Partilha de rotas comerciais e lucros? Permissão de comércio nos portos de ambas as partes? Não o sabemos. Mas, se considerarmos a guerra com a Sicília, que absorveria a capacidade militar pisana, talvez possamos concluir que a república visse mais utilidade neste acordo do que os almorávidas, para evitar que um inimigo poderoso atacasse os seus interesses. Esta possibilidade parece mais clara com Génova: até 1137, há registo de ataques da república a interesses almorávidas, os quais podem ter forçado um acordo com Marraquexe, por volta de 1138, que, à partida, também deveria durar dez anos. Mas, em 1146, quando sentiu o império a definhar, já Génova se apressou a atacar Almeria. Estas considerações transportam-nos de novo para o Concílio de 1135. Independentemente de, à margem da assembleia, se terem discutido assuntos como a reforma da vida religiosa, que tanto agradava a São Bernardo de Claraval, tal como propõe José Mattoso, este foi um concílio ultrapolitizado, em que se jogou o equilíbrio de forças no Mediterrâneo. Recordemos ainda que o Império Bizantino só lançou campanhas militares sobre os Estados francos a partir de 1137, quando obteve a garantia das cidades-estado italianas e do Império Germânico de que não sofreria um ataque à sua capital e quando ficou claro que a Sicília, sua inimiga, estaria igualmente demasiado ocupada para se lembrar de tal empresa. Rogério II, o Rei Tirano, apodo que Helene Wieruszowski alega poder ter sido criado por São Bernardo, estava impossibilitado de agir contra os bizantinos. Evidentemente, as conjunturas são muito dinâmicas, e Wieruszowski é bastante vívida quanto à maestria diplomática do abade de Cister, que ultrapassaria em muito as habilidades de Rogério II no mesmo campo. Se, a partir de 1130, com a coroação do normando por Anacleto II, São Bernardo, que mantinha um ascendente sobre o papado, lhe moveu uma campanha para a qual angariou o favor dos grandes da cristandade, com o argumento de que se tratava de um usurpador 414 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

campeão de um herético (o antipapa),122 em 1139, através do Tratado de Mignano, que deixou à vista as fragilidades de Inocêncio II, fez as pazes com Rogério e deixou cair o epíteto de Rei Tirano. Com esta inversão de perspetivas, suscitou queixas do imperador germânico, que se sentiu traído e, mais tarde, procurou uma aliança com o Império Bizantino contra o “usurpador” normando.123 Já em 1147, quando pretendeu atacar o Império Bizantino para concretizar o objetivo de unidade da cristandade, São Bernardo obteve o apoio naval e militar de um Rogério II ainda ansioso por ser legitimamente reconhecido pela Santa Sé.124 Aliás, no fim da década de 1140, Rogério iria auxiliar o papa Eugénio III a entrar em Roma, cidade que continuava a viver tempos conturbados.125 Tudo leva a crer que D. Afonso Henriques tenha colocado dois homens seus no concílio que separou as águas em termos de forças políticas na Europa ocidental, mas também definiu equilíbrios no Mediterrâneo. Se, como diz José Mattoso, a viagem era dispendiosa, pode muito bem ter sido patrocinada pelo príncipe. Lá, onde francos, italianos e germânicos se reuniram em torno de Inocêncio II, D. Afonso Henriques mostrava que era um fiel do partido de São Bernardo. E Inocêncio não deixou dúvidas quanto ao que pensava deste apoio. Numa carta que endereçou a D. Afonso Henriques, pedindo-lhe para proteger Santa Cruz de Coimbra, referiu-se ao príncipe da seguinte forma: “Que a tua pessoa e o teu cargo estimamos com paterna afeição muitas vezes pudeste disso aperceber-te.”126 Esta passagem é reveladora de que o apoio de D. Afonso Henriques não era coisa do momento, mas algo que já tinha algum tempo. Podemos, então, interrogar-nos sobre o interesse que teria Inocêncio II no príncipe portucalense e numa longínqua instituição por ele patrocinada, como Santa Cruz. Várias razões podem ser invocadas. Era comum os mosteiros procurarem colocar-se sob a proteção da Santa Sé, pagando, como contrapartida, um valor anual: Santa Cruz comprometeu-se a entregar dois bizâncios.127 Todavia, temos de pensar ainda que os benefícios

122 Wieruszowski 1963, 53-54. 123 Wieruszowski 1963, 59 e 63. 124 Wieruszowski 1963, 73. 125 Loughlin 1909. 126 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 69. 127 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 163-164. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 415 atribuídos ao príncipe e a Santa Cruz, mas também à diocese de Coimbra e à arquidiocese de Braga – apesar das ameaças a Paio Mendes, a questão da investidura de D. Bernardo na diocese do Mondego parece ter sido esquecida com os anos –, poderiam também constituir uma forma de pressionar Compostela para que se definisse quanto à questão do apoio a Inocêncio II. Por outro lado, em maio de 1135, mês em que se realizou o Concílio de Pisa e, em Leão, Afonso VII declarou o império, a posição deste ainda não estaria consolidada. A declaração do império, apesar de implicar a submissão de muitos nobres da Hispânia, não eliminou imediatamente a instabilidade. Por exemplo, o conde Gonçalo Pais das Astúrias manteve-se em estado de rebelião quase permanente enquanto viveu, até 1138. Se, nos incontáveis conflitos internos em que estava envolvido, algo sucedesse a Afonso VII, D. Afonso Henriques continuaria a ser um possível herdeiro de Leão e Castela, assumindo que o conde de Toulouse, Alphonse Jourdan, seu primo direito, também ele neto de Ximena Moniz, não teria interesse no “trono da Hispânia”. Para Inocêncio II, garantir o apoio de um possível soberano de uma parte da Península Ibérica cristã, como era D. Afonso Henriques, teria algum interesse do ponto de vista político. Digamos que, em meados de 1135, a questão da sucessão de Afonso VI ainda não estaria totalmente apaziguada, muito menos em março de 1130, quando – tudo leva a crer – D. Afonso Henriques confirmou a doação do Castelo de Soure aos templários e decidiu de que lado do conflito cismático queria posicionar-se. De acordo com a Chronica Adefonsi Imperatoris, Afonso VII casara dois anos antes,128 mas, em 1130, não só ainda não tinha filhos, como o território estava longe de controlado, razão por que as possibilidades de D. Afonso Henriques continuavam em aberto. Na verdade, o primeiro filho legítimo de Afonso VII, o futuro Sancho III de Castela, só nasceu em 1134, seis anos após o casamento dos pais, o que explicará o cognome que recebeu: o Desejado. Em 1135, a posição de Afonso VII ainda não poderia, pois, dizer-se totalmente consolidada, já que a mortalidade infantil era um quadro comum. A sua situação política iria, no entanto, mudar rapidamente e fazer D. Afonso Henriques perder algum espaço de manobra. Cerca de 1136, nasceu

128 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:12. 416 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

mais um filho varão à rainha Berengária, Raimundo, que iria falecer ainda criança e, em 1137, veio ao mundo o futuro Fernando II de Leão. Nesta fase, a sucessão estaria praticamente assegurada. Talvez uma tal situação tenha contribuído para uma mudança nos interesses de Inocêncio II. Se, em 1135, demonstrava grande “afeição” por D. Afonso Henriques na carta que lhe endereçou a partir de Pisa, em 1136, promovia um concílio na cidade de Burgos, sob os auspícios de Afonso VII. Presidido pelo legado Guido de Vico, deliberou, entre outros, que D. Afonso Henriques deveria apresentar-se no ano seguinte ao imperador, na cidade de Valladolid,129 uma ordem evidente para submeter-se a Afonso VII. Inocêncio II pretendia assegurar o apoio daquele que já percecionaria como a figura forte da Hispânia cristã e a única forma de agradar-lhe seria pressionar em favor da unidade e estabilidade do território. O apoio da Hispânia cristã continuava a ser entendido como uma mais-valia se pensarmos que, em 1136, Inocêncio ainda se debatia pelo controlo da cidade de Roma, onde Anacleto mantinha fortes apoios. A este propósito, o cardeal Gerardo Caccianemici dal Orso, futuro papa Lúcio II, deslocou-se como legado junto do Império Germânico para assegurar apoio militar, o qual só chegou no ano seguinte, em 1137.130 Uma tal proteção, em Roma, talvez Pisa não pudesse garantir, na medida em que, novamente, se encontrava envolvida em ataques aos interesses dos normandos da Sicília. Os Annales Pisani registam, para este ano, uma grande campanha sobre a região de Amalfi.131 Podemos dizer que, em 1136, Inocêncio continuava a ser um homem acossado, que necessitava da proteção dos mais fortes. O cerco fechava-se e ficava claro que D. Afonso Henriques já não despertaria o mesmo apetite junto do papa de São Bernardo. Mas o príncipe portucalense fez tudo menos acatar a ordem do Concílio de Burgos. Começou por forçar a eleição do novo bispo do Porto132 – o falecido D. Hugo, de origem franca, era um indefetível do arcebispo de Compostela, Diego Gelmírez. Em sua substituição, foi escolhido

129 Flórez 1771, 26:440. 130 Mershman 1910; Ott 1910. 131 Bernardo Marangone [1125-1186?] 1725, 9-10. 132 Mattoso 2007, 184. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 417 o leal conselheiro do príncipe portucalense: o mesmo D. João Peculiar que terá representado os seus interesses em Pisa no ano anterior e que se mostrava um entusiasta da reforma gregoriana.133 O arcebispo de Compostela, aliado de Afonso VII e que vivia em conflito com o arcebispo de Braga, Paio Mendes, perdia terreno no Condado Portucalense. Se esta manobra pode ter sido uma provocação a uma figura próxima do imperador, o segundo passo constituiria uma clara afronta a Afonso VII, além do mais, arriscada para os interesses do príncipe, pois formalmente também significava a desobediência a Inocêncio: em vez de submeter-se, como relata a Historia Compostelana, entrou no sul da Galiza com o seu exército, conquistou Tui, tomou castelos e espalhou destruição.134 A insistência em tomar pelas armas as regiões galegas de que Braga era metropolita135 evidencia que deveria considerar que lhe pertenciam por direito. Parecia ainda querer forçar Afonso VII a ir a jogo. E, se foi essa a intenção, conseguiu-o. Muita tinta tem corrido sobre o verdadeiro significado do Tratado de Tui, celebrado em julho de 1137, na sequência da campanha militar de D. Afonso Henriques. José Mattoso diz que o príncipe e Afonso VII, “sem que haja notícia de qualquer combate”, se encontraram naquela cidade galega para negociar.136 A Historia Compostelana revela que, face aos distúrbios causados por D. Afonso Henriques, o imperador foi forçado a deslocar-se apressadamente à Galiza com um pequeno grupo de cavaleiros. Ainda enviou cartas aos nobres pedindo ajuda militar, mas não obteve sucesso nas suas diligências. Diz a mesma fonte que os barões se alegraram com a possibilidade de uma guerra, pouco se preocupando com a sorte do imperador,137 o que significará que não lhe restava outra opção senão negociar. Por outro lado, talvez Afonso VII não tivesse interesse numa guerra prolongada na Galiza, quando, até por indicação do Concílio de Burgos, poderia estar a dar combate aos muçulmanos. Nesse sentido, é verdade que não terá havido combate algum – e, como lembra José Mattoso, D. Afonso Henriques até vinha de uma importante vitória militar contra o primo, em

133 Martins 2003, 194-195. 134 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 589-590. 135 Erdmann 1927, 188-189. 136 Mattoso 2007, 142. 137 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 590. 418 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Cerneja.138 Todavia, talvez esta senda de sucessos, campanha de Tui incluída, lhe tenha concedido uma posição negocial forte. Porque desistiu D. Afonso Henriques das conquistas no sul da Galiza? Eis a pergunta a que muitos historiadores têm tentado responder. Mattoso defende que terá sido em virtude de um ataque muçulmano ao Castelo de Leiria. Percebemos, através da Chronica Adefonsi Imperatoris, que os almorávidas aproveitaram a presença de D. Afonso Henriques no norte para devastar a praça que defendia a fronteira,139 embora a data não seja clara. Para os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis, a destruição do Castelo de Leiria ocorreu em 1140,140 cronologia que, com uma argumentação credível, José Mattoso diz poder estar errada.141 Ainda que seja altamente plausível que, face a um ataque em Leiria, o príncipe possa ter abandonado a Galiza e saído em defesa das suas gentes, o desconhecimento da data não impede o raciocínio. E tal também não é suficiente para explicar a alegada homenagem a Afonso VII, incluída no pacto. Ou seja, o facto de Leiria necessitar de auxílio não implica automaticamente a vassalagem: D. Afonso Henriques poderia ter-se limitado a abandonar a Galiza. Ao invés, aceitou encontrar-se com o primo e negociar um acordo.142 D. Afonso Henriques sabia que teria de submeter-se – ou, pelo menos, transmitir essa ideia – para não desobedecer a uma ordem de um concílio. Dir-se-ia que o filho de D. Teresa, percebendo que os astros já não se encontravam a seu favor, mercê de uma mudança de interesses por parte de Inocêncio II, jogou com mestria as poucas cartas que lhe restavam e levou Afonso VII a uma negociação para a qual partia em posição de força. Sabia que teria de submeter-se, mas deve ter querido controlar os termos da relação de vassalagem. A verdade é que as condições do acordo não são claras quanto à submissão. O texto aponta para algo mais fluido e repleto de zonas cinzentas. D. Afonso Henriques comprometia-se a não atacar a pessoa nem as terras do

138 Mattoso 2007, 142. 139 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:79-80 e 84-86. 140 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 154. 141 Mattoso 2007, 153-156. 142 Mattoso 2007, 184. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 419 imperador e a auxiliá-lo em caso de ataque, fosse por cristãos ou muçulmanos. Mas não são expressamente indicadas as terras do imperador e, no espírito do príncipe, pelo menos o sul da Galiza, de que a arquidiocese de Braga era metropolita – também o era de Mondonhedo, a norte –, talvez constituísse uma zona que lhe caberia por direito. Prova disso é o facto de a ter tentado conquistar de novo na primavera de 1141.143 Por outro lado, se o dever de auxílio constitui uma marca de vassalagem, este também só era requerido em caso de invasão cujo objetivo fosse subtrair território a Afonso VII, o que deixava dúvidas quanto à guerra de fronteira conduzida pelos muçulmanos, muitas vezes apenas de desgaste e não de conquista, e até quanto a rebeliões internas. Além do mais, apesar de se tratar formalmente de um pacto vassálico, nunca é referido que D. Afonso Henriques reconhece Afonso VII como seu suserano. Estas omissões, que talvez possam ser explicadas pela posição forte com que o príncipe portucalense partiu para as negociações, retiram operacionalidade ao acordo, que parece ter sido redigido para quase deixar tudo inalterado, constituindo uma coreografia para uma posteridade em que ambas as partes tinham consciência do seu papel. Ou seja, embora haja vassalagem na forma, nem sempre o conteúdo traduz esta relação. Para D. Afonso Henriques, seria interessante provar ter-se submetido sem verdadeiramente tê-lo feito e, para a consolidação política do imperador, por certo que um tal documento seria usado como uma vitória. Como é evidente, as fontes próximas de Afonso VII, como a Historia Compostelana e a Chronica Adefonsi Imperatoris, procuram transmitir a ideia de que D. Afonso Henriques se limitou a desistir de Tui e do restante território conquistado. Ao desistir, terá talvez definido os limites da fronteira norte, tal como, em 1169, com o desastre de Badajoz, iria estabelecer os contornos do Alentejo moderno. E porque é que D. Afonso Henriques teria interesse em sublinhar a ideia de que se tinha submetido? Certamente, para não comprometer as suas hipóteses junto de São Bernardo e do seu papa: afinal, mantinha o desejo de ser rei. Aliás, uma das formas que Afonso VII teria para garantir a saída de D. Afonso Henriques das terras da Galiza seria prometer-lhe que o reconheceria

143 Mattoso 2007, 155-156. 420 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

como tal. A historiografia considera que o texto do Tratado de Tui não se encontra completo, pelo que nunca saberemos se tal promessa foi feita ou, a tê-lo sido, se teria ficado registada por escrito, pois poderia ser considerada uma derrota para Afonso VII no braço-de-ferro com o primo portucalense. Talvez nunca o venhamos a saber. Com ou sem promessa, a verdade é que, no verão de 1139, dois anos depois do Tratado de Tui, D. Afonso Henriques jogou mais uma cartada no plano militar, numa conjuntura nova no al-Andalus, que marcou o início de uma progressiva desmilitarização devido à necessidade de forças no Magrebe para combater os almóadas. Celebrada pelas fontes, a “Batalha de Ourique” justificaria o alçamento do príncipe à condição de rei. José Mattoso argumenta que, nesse ano de 1139, D. Afonso Henriques viu uma oportunidade associada à necessidade de os muçulmanos mobilizarem tropas para rechaçarem o ataque cristão a Oreja (Ontígola), a nordeste de Toledo, e atacou a região de Sevilha. Entretanto, o governador de Córdova e Granada, Abu Muhammad al-Zubayr b. Umar,144 que substituiu o príncipe Tashfin quando este passou ao Magrebe145 e que é identificado por Mário Barroca como o rei Esmar, enviou um contingente para dar combate às forças portucalenses, que foram intercetadas numa zona incerta, de transumância, conhecida como a campina de Ourique. As tropas muçulmanas saíram derrotadas, e a hoste do rei regressou a Coimbra,146 onde, como conta a Vita Theotonii, exibiu saque expressivo e elevado número de cativos, boa parte de origem moçárabe.147 Se genericamente esta explicação é acertada, carece de afinação ao nível dos pormenores. Não existe, nas fontes muçulmanas, grande volume de informações sobre o Gharb al-Andalus, mas, no geral, era Sevilha que se ocupava dos assuntos da região ocidental da península, a menos que a situação fosse deveras gravosa, para a qual se mobilizavam tropas noutras grandes cidades. Temos, assim, de concentrar-nos em Sevilha. Ao percorrermos a lista de governadores desta cidade, referida no al-Bayan al-Mugrib, concluímos que, em 1139, era liderada

144 Embora Mattoso refira a kuniyya Abu Muhammad, ao consultarmos a Ihata, de Ibn al-Khatib, verificamos que al-Zubayr b. Umar era conhecido como Abu Talha (Ibn al-Khatib [1350-1375?] 2009, 1:270). 145 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 267. 146 Mattoso 2007, 166. 147 Vita Theotonii [1163] 1998, 177. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 421 por Abu Zakariyya Yahia b. Ishaq.148 Com um pouco mais de pesquisa na mesma fonte, verificamos que este general pertencia à tribo massufa, era casado com Zaynab, filha do emir Ali b. Yusuf e, tal como grafado por Huici Miranda, tradutor da fonte, levava o apodo de Angmar.149 Era, portanto, um elemento da família real por afinidade. Huici diz, em nota de rodapé à tradução, que o termo angmar, de origem berbere, equivale ao árabe sheikh,150 que, em regra, aponta para um líder tribal, um homem maduro e sábio. Porém, o correspondente berbere para sheikh é amghar, ainda hoje usado para designar “homem velho”. A esta palavra recorre, por exemplo, Ibn al-Qattan a propósito de Ibn Tumart, o mahdi dos almóadas: “Chamam-lhe também o sheikh e chamam-lhe também amghar.”151 O termo grafado por Huici, angmar,152 deveria ter sido anotado na forma anegmar: significa “caçador” e também pode ser atribuído como nome próprio. Segundo um estudo de onomástica, da autoria do especialista em língua e literatura berbere Mohand Akli Haddadou, na Idade Média, o nome Anegmar era grafado Anegemar.153 Ainda assim, a marcação das vogais curtas acaba por ser dispensável, pois, na língua berbere, todas as consoantes se leem.154 Daí que, foneticamente, Angmar ou Anegemar resultassem sempre em Aneguemar. Ainda assim, se verificarmos, por exemplo, o anónimo Kitab Mafakhir ,isto é, Anjmar ou 155,انجمار al-Barbar, verificamos que este nome surge grafado previsivelmente, Anejemar, se tivermos em conta as vogais curtas. Trata-se de uma forma mais aproximada da solução Esmar das fontes cristãs, mas que nos deixa sem segurança absoluta sobre a pronúncia que o nome teria por falantes de árabe, no al-Andalus. Mas, para a identificação do rei Esmar, estas variantes fonéticas terão pouca importância, sobretudo se tivermos em conta que o Chronicon Conimbricense, a propósito da destruição do Castelo de Leiria, indica que a operação militar

148 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 243-244. 149 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 250, 253, 273, 287 e 289. 150 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 243. Ibn al-Qattan .(و يقال له ايضا الشيخ و يقال له ايضا امغار) ”Wa yaqala lahu aydan al-shaykh wa yaqala lahu aydan amghar“ 151 al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 88. 152 Ao traduzir a obra de al-Baydaq, Lévi-Provençal grafou igualmente Angmar (al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 158-159). Já o orientalista William MacGuckin de Slane, na tradução do Kitab al-Ibar, de Ibn Khaldun, optou pela fórmula Anguemar (Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:181). 153 Haddadou 2014, 32. 154 Guide de Conversation Kabyle de Poche 2011, 9-10. 155 Kitab Mafakhir al-Barbar [1312?] 1934, 81. 422 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

foi ordenada pelo “rei Ysmar Abuzicri”,156 ou seja, a fonte reforça a segurança da proposta ao acrescentar a kuniyya ao nome por que esta personagem era conhecida, que, de facto, era Abu Zakariyya. Com base na passagem da Chronica Gothorum que alude à “Batalha de Ourique”, Alexandre Herculano, secundado por Luís Gonzaga de Azevedo e Jorge de Alarcão, avançara a proposta de que o rei Esmar fosse filho de Ali b. Yusuf e, portanto, irmão de Tashfin,157 algo que pode ser considerado correto, atendendo a que Anegemar era casado com Zaynab, filha do primeiro e, assim, irmã do segundo.158 A prova dos nove quanto à identificação desta personagem é, no entanto, feita pelo cruzamento de datas. Segundo o al-Bayan al-Mugrib, Yahia b. Ishaq foi governador de Sevilha durante quase dez anos, entre dezembro de 1134 e junho de 1144,159 um período surpreendentemente longo se tivermos em conta a elevada rotatividade dos responsáveis pelas cidades no mundo almorávida e que talvez signifique uma grande eficácia na guerra de fronteira, pois os insucessos, em regra, davam origem à destituição. Chegamos à conclusão de que, tenha a destruição do Castelo de Leiria ocorrido em 1137 ou 1140, momento a propósito do qual os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis referem que o rei Esmar atacou as linhas defensivas de Coimbra, este líder almorávida estava em funções como governador de Sevilha, o mesmo acontecendo em 1139, quando da “Batalha de Ourique”. Não parecem, pois, subsistir dúvidas quanto à identidade desta personagem que a historiografia tem insistentemente procurado. Retornando à conjuntura de 1139, com a leitura da Chronica Adefonsi Imperatoris, percebemos que o ataque a Oreja, perpetrado num momento em que o emir Tashfin já se encontrava no Magrebe, tendo levado consigo tropas e cativos, constituiu um momento particularmente difícil para o poder almorávida, que, apesar das necessidades agudas no Magrebe, foi obrigado a enviar tropas do território africano para tentar rechaçar o ataque cristão. À cabeça do plano de defesa, encontrava-se, de acordo com esta fonte, o governador de Valência, Yahia b. Ghaniyya, auxiliado igualmente por tropas provenientes das Baleares,

156 Chronicon Conimbricense [1175-1199?] 1856, 5. 157 Alarcão 2015, 18. 158 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 250, 253, 273, 287 e 289. 159 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 243-244. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 423 arquipélago de que era senhor o seu irmão Muhammad.160 A situação seria de tal modo crítica que um envio de tropas de Sevilha se torna altamente provável, o que é sinónimo de uma defesa mais débil e de uma oportunidade para D. Afonso Henriques atacar. Os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis referem que, a 25 de julho de 1139, D. Afonso Henriques travou “uma grande batalha com o rei dos sarracenos de nome Esmar” e que este congregou tropas de Sevilha, Badajoz, Elvas, Évora, Beja e de todos os castelos até Santarém, que lutaram com o príncipe portucalense e sofreram uma dura derrota.161 Mas Ibn al-Qattan, numa obra pouco conhecida, vem refrear o entusiasmo da fonte cristã. O historiador de Marraquexe regista para o ano de 533, que decorreu entre 8 de setembro de 1138 e 28 de setembro de 1139, faixa cronológica compatível com a fonte anterior, que “os exércitos dos cristãos entraram no país dos muçulmanos” e foram ao seu encontro “as tropas de Santarém e Évora”. Segundo afirma, os muçulmanos derrotaram os cristãos, mataram muitos deles e recuperaram saque.162 Se esta notícia se referir ao fossado de D. Afonso Henriques, como parece pela cronologia, pela origem dos contingentes que deram combate ao príncipe e pelo encadeamento do texto, que narra de seguida o ataque a Oreja,163 temos de matizar a grande vitória que as fontes cristãs assinalam. Nem o rei Esmar, ou seja, o governador de Sevilha, terá estado presente, quem sabe alocado ao esforço militar para contrariar o ataque a Oreja, nem todos os exércitos que a fonte refere podem ter sido congregados para combater os portucalenses. Provavelmente, tal nem seria possível, dado o ataque a Oreja: Ibn al-Qattan refere que acorreram exércitos de todo o al-Andalus para contrariar os cristãos liderados por Afonso VII.164 D. Afonso Henriques terá sido intercetado apenas pelas tropas de Santarém e Évora. Significa que talvez tenha lidado com contingentes militares enviados por Labid b. Abd Allah, governador de Santarém, e Sidray b. Wazir, senhor de Évora, a que Ibn al-Khatib se refere como

160 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:145-156. 161 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 153. 162 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 266. 163 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 266-267. 164 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 267. 424 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

o “sheikh das gentes do Gharb al-Andalus” em 1144, no decurso das rebeliões provocadas por Ibn Qasi.165 Também sabemos que Ibn Wazir controlava Beja e Alcácer, pelo que talvez, neste contingente de Évora, se incluíssem tropas de tais proveniências. A Vita Theotonii, através do episódio dos moçárabes que São Teotónio terá protegido, permite concluir pela organização de um cortejo triunfal em Coimbra, para exibir os despojos, pelo que temos de admitir que, ainda assim, os cristãos tenham conseguido levar para casa um saque significativo e um número apreciável de cativos, prova material de uma “grande vitória”. Mas Ibn al-Qattan também escreve de forma a dar a vitória aos muçulmanos, que conseguiram eliminar o perigo da razia dos cavaleiros cristãos e expulsá-los da sua terra. Ainda assim, nas entrelinhas, podemos perceber que esta alegada vitória não terá sido avassaladora e que talvez o sucesso se tenha resumido a expulsar os cristãos, matar alguns deles e recuperar parte do saque. Por exemplo, Ibn al-Qattan não afirma, como noutros eventos que narra na sua obra, algo como “e mataram os que encontraram”, recorrendo à fórmula “e mataram deles (كل todos (kuli ou modo de construção da frase que pode ser traduzido como ,”(منهم minhum ou) “parte deles”. A conjugação de todas estas notícias parece confirmar a hipótese de José Mattoso, de uma maior facilidade a entrar em território muçulmano do que a sair e de as tropas de D. Afonso Henriques terem sido intercetadas algures no regresso. Se os contingentes de Santarém tivessem sido eficazes a impedir a passagem dos cristãos, provavelmente os de Évora não teriam sido chamados a intervir a título de reforço. De caminho, os indícios inviabilizam as inúmeras propostas da historiografia portuguesa, de Ourique corresponder, por exemplo, a Vila Chã de Ourique, como propunha David Lopes, à Ladeia, como defendia Salvador Dias Arnaut, ou, mais recentemente, à região de Leiria, como avança Jorge de Alarcão, persuadido de o local do recontro militar ter sido fabricado pelos freires de Santiago, interessados em glorificar o território que dominavam.166 Mais: aproximam-se da Chronica Gothorum, quando refere que foram

.Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1956, 248 .(ابن وزير شيخ اهل غرب االندلس) ”Ibn Wazir shaykh ahl Gharb al-Andalus“ 165 166 Alarcão 2015, 32. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 425 ao encontro do rei as forças das principais praças do atual Alentejo. A questão é que a fonte se entusiasma e acrescenta uma multitude de proveniências dos exércitos, incluindo o Norte de África,167 o que seria muito difícil, senão impossível, considerando que a guerra contra os almóadas tinha começado no Magrebe, que o Castelo de Oreja estava debaixo de ataque e que não seria de esperar que fossem desviadas tropas para acudir a uma zona rural do Gharb al-Andalus. Por outro lado, parece estranho que D. Afonso Henriques tenha levado para Coimbra moçárabes da região de Sevilha, como alega a Vita Theotonii, o que equivale a dizer que alcançou tais latitudes, sem que nenhum exército desta cidade, por menor que fosse o seu número devido às eventuais necessidades em Oreja, tenha ido ao seu encontro. Ou os moçárabes reduzidos ao cativeiro não eram originários de Sevilha ou, por absurdo, a cidade do Guadalquivir não teria nenhum exército para protegê-la. Também poderá dar-se o caso de Ibn al-Qattan ter-se esquecido de mencionar tropas de Sevilha no contraponto a D. Afonso Henriques, mas não faz grande sentido incluir as cidades mais pequenas e deixar de fora a urbe mais importante. O mais certo é o fossado nunca ter chegado à região de Sevilha e as fontes portucalenses terem tomado esta cidade por ser a referencial, como podem tê-lo feito em relação ao rei Esmar, certamente o chefe militar com jurisdição sobre o Gharb al-Andalus. E, na prática, se era responsável pelo Gharb, os exércitos de Évora e Santarém estavam sob a sua alçada, pelo que, em rigor, as fontes cristãs não mentiram: D. Afonso Henriques, ao sair vitorioso contra as bases, teria também derrotado o chefe. Nesse sentido, podem ainda ter considerado, genericamente, como pertencendo à região de Sevilha tudo o que se encontrava nas modernas regiões do Alentejo, da Estremadura espanhola e da Andaluzia. Ibn al-Qattan sugere que D. Afonso Henriques raziou diversas regiões, mas não as refere – aliás, como não menciona nenhuma cidade –, o que aponta para que as forças cristãs tenham evitado grandes centros urbanos, algo que talvez justifique terem sido tardiamente intercetadas. De resto, destas algaras estava em regra excluída a guerra de cerco. Surge então uma questão: se, de

167 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 12-13. 426 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

facto, o príncipe levou consigo cativos moçárabes, em que região os aprisionou? Estas comunidades encontravam-se cada vez mais reduzidas, até por via das deportações, pelo que, com a exceção de Sevilha, talvez pudéssemos encontrá-las nas zonas de Badajoz e Mérida. Se os estudos de Cyrille Aillet permitem, através de dados esparsos, confirmar a presença de cristãos no território que hoje corresponde ao Alentejo e ao Algarve durante os séculos IX e X, para a centúria de XII, apenas consegue fazer idêntica prova para Faro e com algum grau de probabilidade para Lisboa e Niebla.168 Ainda assim, admite que poderiam existir no Gharb al-Andalus comunidades cristãs enquadradas por mosteiros rurais.169 Todavia, como é possível que D. Afonso Henriques tenha evitado atacar cidades – de contrário, quem sabe tivesse despertado a intervenção de outros contingentes militares –, uma possibilidade é ter aprisionado estes indivíduos em meio rural, onde, apesar da desestruturação eclesiástica, operada, entre outros, pela expulsão dos moçárabes do al-Andalus a partir de 1126,170 as crenças religiosas tenderiam a ser mais persistentes. Sabemos, por exemplo, que em Sevilha existiam igrejas e cenóbios até à transferência destas populações para o Norte de África, pois estão disponíveis fatawa (pareceres jurídicos) que tentam regular o destino a dar a tais propriedades depois da saída dos cristãos, o que leva Alejandro García Sanjuán a afirmar que a deportação deve ter sido seletiva, atendendo à continuidade da estrutura eclesiástica nos anos seguintes. O investigador espanhol demonstra a existência de um bispo em Sevilha no ano de 1140, tendo em conta um episódio em que este foi repreendido por Hugo de São Vítor.171 Isto significa que, apesar das deportações e conversões ao islão para escapar à expulsão, continuavam a existir comunidades cristãs no Gharb al-Andalus. Terá D. Afonso Henriques capturado moçárabes em alguma zona rural do atual Alentejo? É que a hipótese de Badajoz e de Mérida envolve outra dificuldade, além do alerta aos exércitos dessas cidades: o aprisionamento teria de ter ocorrido no princípio do fossado, o que implicaria o transporte e a

168 Aillet 2010, 67 e 377. 169 Aillet 2010, 68-69. 170 García Sanjuán 2004, 282-283. 171 García Sanjuán 2004, 283. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 427 alimentação de um grande número de pessoas durante toda a campanha, que se quereria rápida e sem grandes obstáculos. Um grupo de moçárabes numa zona rural do atual Alentejo não seria, pois, de descartar. É difícil determinar as zonas que D. Afonso Henriques atacou, mas visto só tardiamente ter sido intercetado pelos muçulmanos, talvez tenhamos de concluir que evitou a estrada que dava acesso a Santarém, mais vigiada do que, por exemplo, a via da Beira Baixa, que, partindo de Viseu, ligava à Idanha e depois seguia para Alcântara da Espada, onde existia uma ponte, ou poderia divergir por um ramal secundário até ao Tejo, acompanhando o rio Pônsul, seu afluente. Aliás, como defende André Carneiro, numa releitura d’As Grandes Vias da Lusitânia, de Mario Saa, é provável que existisse uma ligação entre a Egitânia e a Ammaia, a última cidade localizada junto à serra de São Mamede. A travessia seria feita “em frente ao Monte da Tapada da Barca, onde existia uma antiquíssima passagem do Tejo por barca, como indica o topónimo, e algumas calçadas que, não sendo romanas, aproveitavam as zonas de pendente mais favorável”.172 A travessia em Abrantes ou Alcântara, locais onde existiam pontes, seria mais arriscada, porque mais vigiada. Da Ammaia, partia um caminho principal, rumo a Veiros, que, “em certos pontos, se deveria integrar em rotas mais vastas de travessia do território que, pelo menos em época medieval, estarão por certo relacionados com caminhos da transumância,”173 explica o investigador. A partir de Veiros, seria possível alcançar a estrada que ligava Lisboa a Mérida. Evidentemente, estas propostas não são mais do que conjeturas apoiadas em indícios. O local onde foi intercetado, muito provavelmente já no regresso a casa, como defende José Mattoso e parece decorrer da fonte muçulmana, também envolve dúvidas. A localidade de Ourique será pouco provável, a menos que D. Afonso Henriques tivesse tomado o caminho que ligava Lisboa a Setúbal, Alcácer e Beja, e partindo do princípio de que teria conseguido evitar ser descoberto entre Coimbra e a atual capital portuguesa, zona com muito maior vigilância. José Mattoso, com pertinência, defende que as fontes estariam a

172 Carneiro 2010, 90. 173 Carneiro 2010, 93. 428 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

referir-se à campina de Ourique, e não à localidade, uma vasta área com limites incertos, o que significaria que cobria a região sul do moderno Alentejo. Os campos de Ourique são, de resto, referidos pela Crónica de Portugal de 1419 no âmbito do fossado de Triana, liderado pelo então infante Sancho contra as imediações da cidade de Sevilha, no ano de 1178. No regresso da campanha, o príncipe atravessou o Guadiana a vau, junto a Mértola, e dirigiu-se a Beja, tendo passado pelos campos de Ourique,174 o que sugere que se localizariam imediatamente a sul desta cidade. Mais tarde, no século XVII, formar-se-ia a comarca do Campo de Ourique, pertencente ao arcebispado de Évora, de que faziam parte vilas como Santiago do Cacém, Ferreira do Alentejo, Mértola, Almodôvar, Milfontes e Sines.175 Apesar de desconhecermos os exatos contornos desta campina na Idade Média, se considerarmos a Crónica de Portugal de 1419, podemos concluir que se localizaria entre Ourique e Beja. Afinemos ainda outro pormenor na argumentação de José Mattoso quanto à “Batalha de Ourique”. Se provámos que não poderia ser o rei Esmar, quem era al-Zubayr b. Umar? Ocupava o governo de Córdova e ficou conhecido nas fontes cristãs como Azover, Azubel ou Azuel.176 No mesmo ano de 1139, Ibn al-Qattan afiança que conduziu um ataque bem-sucedido contra o Castelo de Mora, a uns 35 quilómetros a sudeste de Toledo.177 Também a Chronica Adefonsi Imperatoris fala da perda de Mora. Diz que ocorreu vários anos após a saída de Tashfin do al-Andalus, mas depois contradiz-se e refere que o imperador Afonso VII mandou construir outro castelo, o de Penha Negra, e atacar a fortaleza de Oreja, que sabemos ter ocorrido no verão de 1139, portanto, apenas um ano e meio depois de o príncipe almorávida ter abandonado o território.178 Pelo encadeamento da narrativa de Ibn al-Qattan, mas também da Chronica Adefonsi Imperatoris, a conquista muçulmana de Mora terá ocorrido antes do ataque a Oreja. Verificamos, pois, que todos estes eventos pertencem a uma cronologia apertada, estando provavelmente interligados. O ataque a Mora pode ter

174 Crónica de Portugal de 1419. 1998, 74-75. 175 Braga 2014. 176 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:346; Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:116, 141, 162 e 167. 177 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 266. 178 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:140-145. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 429 espoletado uma expedição punitiva contra Oreja, e a última facilitado o fossado portucalense, quando cristãos e muçulmanos estavam demasiado ocupados para reagirem com celeridade. Qualquer que tenha sido o grau de penetração em território muçulmano e o local onde o fossado foi intercetado, D. Afonso Henriques parece ter transformado uma vitória pouco clara num grande momento político, capaz de forçar o reconhecimento que considerava ser-lhe ainda que possa ter percorrido um território vasto, em ,(غزوة) devido. Uma ghazua princípio rural, transformou-se num magnum prelium e deu origem ao mito, que terá começado no cortejo, essencial para difundir a notícia, porque fornecedor das provas do sucesso de um príncipe que, agora, poderia tornar-se rei aos olhos do seu povo, já que era também seu protetor. Forçava, assim, o reconhecimento da sua condição de rei. Aliás, D. Afonso Henriques havia partido para a campanha de Ourique na posse da melhor notícia política possível. D. João Peculiar regressara a Coimbra após ter recebido o pálio em Roma, símbolo do seu poder como arcebispo de Braga e metropolita de um importante território.179 De acordo com a bula de confirmação de privilégios concedidos a Braga, emitida em abril no âmbito do II Concílio de Latrão, D. João Peculiar tinha jurisdição sobre as dioceses de Astorga, Lugo, Tui, Mondonhedo, Caliábria (antiga diocese visigótica, que não chegou a ser restaurada), Ourense, Porto e Coimbra e, ainda, sobre os povoados de Viseu, Lamego, Guarda e Briteiros, com as suas paróquias.180 O clima seria de vitória a todos os níveis. O cisma tinha terminado, devido à morte de Anacleto no ano anterior e à desistência do seu sucessor. Inocêncio acabara de congregar um concílio para firmar a sua posição e endereçava cartas também a D. Afonso Henriques, chamando-lhe “filho dileto em Cristo”, “ilustre príncipe de Portugal” e “nobre pessoa”, e pedindo-lhe proteção para Santa Cruz.181 O filho de D. Teresa parecia gozar das boas graças do agora papa único, ainda que o reconhecimento como rei estivesse a anos de distância. Contudo, a tranquilidade de Inocêncio pouco durou: três meses depois do concílio, foi aprisionado pelas forças normandas. Após a morte de Anacleto,

179 Mattoso 2007, 176-177. 180 Erdmann 1927, 188-189. 181 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 81. 430 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Rogério II procurou o reconhecimento enquanto rei junto de Inocêncio II, mas este pretendia que o principado de Cápua adquirisse a independência e funcionasse como uma zona-tampão entre os Estados Papais e o território sob controlo normando. Como o soberano da Sicília recusou, Inocêncio invadiu Cápua em julho de 1139 e acabou capturado. Viu-se, então, obrigado a pagar um elevado resgate aos normandos e a aceitar as suas exigências:182 poucos dias depois, pelo Tratado de Mignano, Rogério era reconhecido como “rei da Sicília, duque da Apúlia e príncipe de Cápua”, mas não como monarca de todos os territórios, ao contrário daquilo que Anacleto II tinha decretado em 1130.183 Quase uma década de cisma, destinado a evitar que a Sicília normanda se afirmasse como Estado legal e independente, terminava com a vitória de Rogério II sobre os grandes da cristandade e, se Inocêncio evidenciava uma posição de fragilidade no início, assim permaneceu durante todo o seu pontificado, situação que se agravou com a morte do imperador germânico, Lotário III, pois Conrado III, seu sucessor, pouco interesse demonstrou em protegê-lo. Evidentemente, podemos interrogar-nos sobre a razão por que D. Afonso Henriques não preferiu Anacleto II, que por certo o teria reconhecido como rei com grande celeridade. Mas a resposta será evidente: o Condado Portucalense não era uma potência militar ou naval com capacidade para contrariar os ataques dos principais atores políticos europeus. Precisava de aliar-se à maioria para obter proteção. Nesse verão de 1139, quando Inocêncio se encontrava nas mãos dos normandos, o arcebispo de Braga, homem da confiança de D. Afonso Henriques, regressava de Roma com poderes reforçados. Não sabemos quando chegou a Coimbra, mas temos conhecimento de que estava presente em junho, porque participou na delimitação da paróquia de Santa Cruz.184 O ato, certamente o último em que o príncipe participou antes de partir para o fossado de Ourique, foi ordenado pelo “infante de Portugal, Dom Afonso, que em Coimbra estava”. Estiveram também presentes homens como Martim Anaia e Paio Guterres, com

182 Mattoso 2007, 208-209. 183 Wieruszowski 1963, 49. 184 Azevedo 1958, 209-210. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 431 os quais contaria na guerra. O primeiro era cavaleiro de D. Afonso Henriques, e o segundo, alcaide do Castelo de Leiria logo após a sua construção, surge na documentação como seu fidelis vassalus desde que assumiu o poder. Ter-se-á mudado para Coimbra com o príncipe, recebendo a tenência do Castelo de Santa Eulália ou, quem sabe, da fronteira litoral, em substituição de Fernão Peres de Trava.185 Leontina Ventura formula ainda a possibilidade de os irmãos Álvaro e Rabaldo Rabaldes, irmãos da mulher de Paio Guterres, terem acompanhado D. Afonso Henriques no fossado de Ourique.186 Ora, o documento de delimitação da paróquia inclui apenas o mês e o ano em que foi emitido, faltando-nos o dia para podermos avançar um limite temporal para o fossado de D. Afonso Henriques ao al-Andalus. Se o ato tiver ocorrido no princípio do mês, como o embate entre as forças cristãs e muçulmanas se deu, de acordo com os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis, a 25 de julho de 1139, a operação pode ter durado cerca de dois meses. No caso de ter sido mais para o fim do mês, este tempo terá de ser reduzido sensivelmente para metade. Acrescentemos dados ao raciocínio. José Mattoso observa que nenhum documento emitido em nome de D. Afonso Henriques mantém o título de “príncipe” ou “infante” após 25 de julho de 1139, data do combate de Ourique, mas que o primeiro diploma em que surge o título de “rei” só data de abril de 1140.187 Num documento de julho de 1139, D. Afonso Henriques, ainda intitulado “infante”, beneficiou Mónio Vímares, fazendo-lhe carta de doação de um casal na vila de Travancela, Sátão.188 O diploma, pertencente ao espólio da diocese de Viseu, refere a presença do alcaide de Sátão, do bispo de Coimbra e do arcebispo de Braga, e indica que D. Afonso Henriques estaria nesta região, o que constitui um indício de que o ainda infante terá tomado a via da Beira Baixa no seu fossado ao al-Andalus. Existe ainda um documento, a carta de couto do Mosteiro de Cucujães, Oliveira de Azeméis, com data de 7 de julho de 1139, que conta com as confirmações do

185 Ventura 2002-2003, 95. 186 Ventura 2002-2003, 92. 187 Mattoso 2007, 168-169. 188 Ventura et Matos 2010, 130; Azevedo 1958, 211. 432 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

bispo de Coimbra, do arcebispo de Braga e de Moço Viegas,189 também presente no ato jurídico anterior, ou seja, em data próxima, dois documentos foram emitidos, com a ratificação de um grupo de pessoas comum, apontando para que se encontrassem juntas no princípio do mês de julho, possivelmente na região de Viseu. Se assim foi, os documentos indicam que o fossado de Ourique obteve a bênção do bispo de Coimbra e do arcebispo de Braga, que terão acompanhado o príncipe na sua saída da cidade do Mondego, contornando o território rumo a Viseu e às vias que davam acesso a regiões menos vigiadas pelos muçulmanos – veremos que, em março de 1147, quando da conquista de Santarém, D. Afonso Henriques optou por um caminho mais direto, passando por alguns dos pontos mais vigiados da rede defensiva desta cidade. Mas a conjuntura era totalmente diferente. Em 1147, o Império Almorávida encontrava-se em acelerado estado de desagregação, uma situação muito diversa da vivida em 1139, ano em que a guerra com os almóadas estava apenas a começar. Seja como for, no caso de a carta de couto do Mosteiro de Cucujães ter sido o último ato oficial de D. Afonso Henriques por terras de Viseu, significa que levou menos de três semanas a ser intercetado pelas forças inimigas, a 25 de julho. Ao fazermos uma estimativa grosseira do número de quilómetros percorridos entre as localidades de Viseu, Idanha, Ammaia, Veiros, Estremoz, Portel, Beja e Ourique, chegamos a qualquer coisa como 600, a que teria de ser somado o regresso. Adicionando outros tantos para a volta até Viseu, chegamos a um valor mínimo de 1200 quilómetros, que, divididos pelos 30 que se considera que um exército poderia avançar num dia, redundam em 40 dias. Ou seja, uma tal expedição teria de ter durado cerca de 20 dias para atingir o seu ponto mais profundo e igual período para o regresso. Ou talvez fosse mais rápida na ida do que na volta, pois na última etapa deveria transportar cativos e saque. Estes cálculos são compatíveis com as datas fornecidas pelos documentos confirmados por D. Afonso Henriques e aquele que, segundo as fontes portucalenses, foi o dia da “Batalha de Ourique”. O diploma da coleção Documentos Medievais Portugueses com data imediatamente posterior à do fossado de Ourique é de fevereiro de 1140 ou

189 Azevedo 1958, 212-213. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 433

1141, de acordo com Rui de Azevedo. José Mattoso considera, sem certezas, que pode pertencer ao primeiro ano.190 Seja ou não de fevereiro de 1140, a verdade é que, em abril deste ano, surgem os primeiros documentos com o título régio e datação que não oferece dúvidas. Ambos correspondem a cartas de couto, mas a redação da segunda é bastante mais elaborada e solene. Na primeira, concedida ao Mosteiro de Vila Nova de Muía, Ponte da Barca, podemos ler: “Eu, rei Afonso, soberano de Portugal, filho do conde Henrique e da rainha D. Teresa, neto do grande rei Afonso.”191 Já na segunda, referente a Santa Marinha, a fórmula é a seguinte: “Eu, rei Afonso, neto do egrégio rei Afonso, gloriosíssimo imperador da Hispânia, filho do cônsul D. Henrique e da rainha D. Teresa, pela providência de Deus, soberano de toda a província de Portugal.”192 Trata-se de uma solução redatorial mais adequada para um ato fundacional. Além disso, ao contrário da primeira carta de couto, esta beneficiou da presença do arcebispo de Braga, do bispo do Porto, do conde Rodrigo (certamente Rodrigo Peres Veloso, conde de Límia e tio de Fernão Peres de Trava),193 de Egas Moniz e de outros homens da confiança de D. Afonso Henriques, como Moço Viegas e Fernando Peres Cativo, que devem tê-lo acompanhado no fossado ao al-Andalus. Mas, como é evidente, estas são as cartas que nos chegaram, e poderiam existir outras que entretanto se tenham perdido. De qualquer modo, entre julho de 1139 e, mais seguramente, abril de 1140, D. Afonso Henriques, aos 30 anos, quis deixar de ser príncipe para se intitular rei de Portugal. Neste período, também Afonso VII foi aclamado pela população de Toledo, após a vitória em Oreja. Diz a Chronica Adefonsi Imperatoris que os líderes das comunidades cristã, muçulmana e judaica o receberam com tambores, alaúdes, saltérios e outros instrumentos musicais, e houve também uma procissão organizada pelo arcebispo. “Na sua língua, cada um louvou e glorificou Deus, que auxiliou a empresa do imperador.” A fonte refere que, depois desta grande vitória, Afonso VII lançou uma campanha para levar à justiça os criminosos do seu império, que teve como alvo os vilãos da

190 Mattoso 2007, 168-169. 191 Azevedo 1958, 214-215. 192 Azevedo 1958, 215-216. 193 Mattoso 2007, 139. 434 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Estremadura.194 Podemos supor que D. Afonso Henriques tenha tido as mesmas festividades a recebê-lo em Coimbra, provavelmente com a presença de D. João Peculiar, forçando o povo a aclamá-lo, até porque, de acordo com a tradição, já teria sido alçado rei durante a campanha militar, pelos companheiros de armas. O recurso ao título de rei seria apenas a consequência lógica de algo que já era por todos reconhecido. Forçava uma reação da parte de quem poderia legitimá-lo: Afonso VII e o papado. Mas a verdade é que tal só aconteceu três anos e meio depois, e não de forma inequívoca. Em setembro de 1143, morreu Inocêncio II, mas Guido de Vico, que já se encontrava na Hispânia, presidiu a um concílio em Valladolid, ao qual compareceram, entre outros, Afonso VII e o bispo de Coimbra.195 No princípio do mês seguinte, o legado papal estava em Zamora e, no dia 5, mediou as negociações de Zamora, entre D. Afonso Henriques e o imperador, que iriam conduzir ao reconhecimento do primeiro pelo segundo. Será difícil afirmar se o filho de D. Teresa foi bafejado pela sorte ou pelo azar. Se Guido de Vico não se encontrasse já na Península Ibérica, não muito longe do território portucalense, será que o processo de reconhecimento prosseguiria o seu rumo ou acabaria por ser interrompido até que fosse eleito outro papa? E o novo pontífice estaria disposto a reconhecê-lo? Por outro lado, o desaparecimento de Inocêncio II, substituído por Celestino II, poderá explicar a necessidade de D. Afonso Henriques se dirigir, em dezembro de 1143, ao novo papa, declarando que tinha feito homenagem à Santa Sé como “cavaleiro de São Pedro”. José Mattoso considera que esta foi uma forma encontrada por D. Afonso Henriques para resolver de vez a questão da sua autoridade.196 Não se disputa a afirmação, mas é necessário acrescentar à equação a morte do papa que estava a dar seguimento às petições de D. Afonso Henriques. Mattoso afirma ser possível que a carta tenha sido recomendada pelo próprio cardeal Guido de Vico, o que é mais do que plausível: face à morte de Inocêncio, o legado papal ter-lhe-á dado instruções sobre a melhor forma de agir. O historiador dá-nos conta da

194 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:157-158. 195 Erdmann 1927, 198-203. 196 Mattoso 2007, 213. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 435 viagem de D. João Peculiar a Roma em 1144 e, com base nas datas de privilégios concedidos pela Santa Sé em abril desse ano,197 avança a possibilidade de o arcebispo de Braga ter levado a carta de D. Afonso Henriques em mãos. Mas o rei voltou a ser atingido pelo azar. Celestino II morreu no princípio de março de 1144, provavelmente durante a viagem de D. João Peculiar, que, quando chegou a Roma, teve de lidar já com Lúcio II, antigo legado papal de Inocêncio II junto do Império Germânico. Talvez estas vicissitudes expliquem que Lúcio, possivelmente menos sensível aos desejos de D. Afonso Henriques, não lhe tenha reconhecido o estatuto que pretendia,198 até porque o tom da carta que dirige ao Sumo Pontífice é algo sobranceiro. Nela, D. Afonso Henriques declara-se rei de Portugal pela graça de Deus, alegando ter feito homenagem ao papa Inocêncio II na pessoa do legado Guido de Vico, oferecendo as suas terras a São Pedro, de que se dizia cavaleiro. A missiva ia assinada pelos grandes prelados do Condado Portucalense: o arcebispo de Braga, o bispo de Coimbra e o bispo do Porto.199 No fundo, dizia que já era rei e que só necessitava da confirmação do novo papa, o que pode ter irritado Lúcio II, o qual, logo no início da resposta, acabou com as esperanças de D. Afonso Henriques, ao tratá-lo por “ilustre duque,”200 certamente uma humilhação. Se a carta foi aconselhada por Guido de Vico, terá sido uma jogada mal calculada. Talvez D. Afonso Henriques tivesse sido bem-sucedido com uma abordagem mais humilde. O tom desta carta dirigida ao papa talvez permita compreender melhor uma bula publicada por Carl Erdmann, cuja origem parece duvidosa, uma vez que foi recolhida em obras tardias, como a Chronica de Cister. No referido diploma, Inocêncio II reconhece D. Afonso Henriques como rei:201 a questão é que o papa faleceu em setembro de 1143, ainda antes do Tratado de Zamora, o que faz suspeitar da falta de autenticidade do documento. Por outro lado, D. Afonso Henriques, na carta que Lúcio II teve de analisar, alega que prestou homenagem ao papa Inocêncio II e seria natural que disso ficasse registo, o que contribui para a veracidade deste documento publicado por Erdmann. A ser

197 Erdmann 1927, 203-207. 198 Mattoso 2007, 215. 199 Mansi 1758-1798, 21:615-616. 200 Mansi 1758-1798, 21:616. 201 Erdmann 1927, 192-193. 436 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

verdadeiro, a carta endereçada ao novo pontífice já pareceria menos arrogante: no fundo, o soberano portucalense procuraria apenas uma confirmação do seu estatuto. Mas, como sabemos, não foi o que aconteceu. Se Afonso VII reconheceu D. Afonso Henriques em 1143, o papado levou o seu tempo. José Mattoso alega que tal poderá explicar-se pelo crescente rigorismo jurídico da cúria romana. É possível. No entanto, não podemos desligar de motivos políticos o “esquecimento” da Santa Sé. Os pontificados de Lúcio II, Eugénio II e Anastácio IV, aliás, como o de Inocêncio II após a morte de Anacleto II, foram perpassados pela constituição de uma comuna em Roma, que pretendia retirar o poder temporal ao papa e procurava que este jurasse fidelidade à assembleia, uma experiência de “democracia” e “separação de poderes” patrocinada pela família do defunto antipapa e levada ao extremo por Arnaldo de Bréscia (1090-1155), monge que pregava a pobreza apostólica e alegava que os clérigos que possuíam bens não poderiam administrar os sacramentos. As suas ideias, catalisadas por uma oratória brilhante, puseram Roma a ferro e fogo. Os palácios das elites que apoiavam o papado, assim como igrejas e mosteiros, foram pilhados e incendiados.202 As forças que tinham apoiado Anacleto II continuavam, assim, vivas em Roma e só foram afastadas por intervenção de Adriano IV, com a ajuda do imperador germânico, que conseguiu capturar e fazer executar Arnaldo. Lúcio II, apesar de ser padrinho de um dos filhos de Rogério II da Sicília, no pouco tempo em que foi papa, experimentou conflitos com o monarca normando. Eugénio III, ex-monge cisterciense, próximo de São Bernardo, quase nunca conseguiu viver em Roma, devido à instabilidade. Anastácio IV, que participou no conclave de 1130 e era um dos maiores opositores do antipapa Anacleto II, também permaneceu pouco tempo na cadeira de São Pedro e interessou-se mais pela política germânica. Por sua vez, Adriano IV deu especial atenção à Igreja da Escandinávia e envolveu-se em conflitos com os normandos e com os bizantinos.203 Concluímos, através desta resenha, que os papas que sucederam Inocêncio II não teriam a Península Ibérica como prioridade, nem necessitariam do apoio de D. Afonso Henriques.

202 Vacandard 1907. 203 Ott 1909; Loughlin 1909; “Pope Anastasius IV” 1907; Ua Clerigh 1907; Loughlin 1907. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 437

Chegamos a Alexandre III, o pontífice que, em 1179, na Bula Manifestis Probatum, reconheceu legalidade plena ao reino de Portugal. No momento da sua eleição, surgiu outro cisma: alguns cardeais, apoiados pelo imperador germânico, elegeram Otaviano, que assumiu o nome de Vítor IV. A linha sucessória dos antipapas, apoiada pelo imperador Frederico I, seguiu com Pascoal III e Calisto III. A questão arrastou-se até 1176, quando as forças do papa derrotaram o imperador na Batalha de Legnano e o obrigaram a submeter-se. Com a Paz de Veneza, em 1177, emergiria um papado reforçado. D. Afonso Henriques tinha estado com Alexandre III desde o início e, desta vez, foi recompensado. Em 1179, três décadas depois da “grande batalha contra o rei Esmar”, Portugal era finalmente um reino independente. Aos 70 anos, D. Afonso Henriques fazia cumprir o desejo de D. Teresa. Mas, até lá, ainda teria de recorrer a uma série de instrumentos. Santa Cruz foi um deles.

Construção da fronteira portucalense com os muçulmanos

Em 1132, os 12 iniciais, tantos como os apóstolos de Cristo, eram já 72 e iniciou-se a vida comunitária, diz a Vita Theotonii.204 O projeto de Santa Cruz teve o poder de arregimentar indivíduos dispostos a partilhar as regras de conduta tal como as concebeu Santo Agostinho de Hipona – a Bona dos príncipes hamádidas, que pisanos e genoveses destruíram em 1034 – e interpretou o Mosteiro de São Rufo, em Avinhão. A existência do mosteiro marcou uma nova fase naquilo que podemos designar pela construção da fronteira, um trabalho de paciente ocupação do espaço, que vinha desde os tempos da conquista de Fernando Magno, em 1064. Casas, terrenos, vinhas, vilas e outras propriedades iriam mudar de mãos ao longo da década de 1130, com Santa Cruz a concentrar uma riqueza crescentemente expressiva, quer por doação, quer por uma política de compras, que, por vezes, parece ter sido agressiva. Em janeiro de 1132, Soleima Godins, um dos presores de Montemor,205 fez testamento ao mosteiro de metade de tudo o tinha nesta região, entre

204 Vita Theotonii [1163] 1998, 165. 205 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 193-194. 438 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

casas, vinhas, campos e vilas, assim como da Igreja de São Tomé de Mira.206 Território obtido por presúria décadas antes, perfeitamente legalizado, revertia, assim, para Santa Cruz. O Cabido da Sé, que tinha agora de competir pelas doações na região, recebeu a outra metade dos bens.207 Em 1135, a filha e o genro de Soleima Godins trocaram com o cabido bens que haviam recebido de herança, o que aumentava a influência desta instituição em locais como Varzenela, Arazede, Montemor e Lavadeira.208 Ainda em fevereiro de 1132, o infante D. Afonso Henriques, certamente por uma questão de equilíbrio face a Santa Cruz, ampliou os poderes da diocese de Coimbra através de carta de couto referente a Barrô e Aguada de Baixo, na região de Aveiro. Numa fase em que a diocese procurava evitar o funcionamento de Santa Cruz e forçar D. Telo a fazer-lhe testamento dos bens do mosteiro, prova deste equilíbrio é também a escolha dos presentes no ato jurídico: nobreza condal e personagens do círculo restrito do príncipe, o cabido, o abade do Lorvão, Randulfo Soleimás e outras personagens da elite de Coimbra, como Gonçalo Dias e Soeiro Guterres.209 Mas as transações também se processavam entre particulares, com a vinha a manter o estatuto de cultura de destaque. Por exemplo, ainda em 1132, mais concretamente no mês de novembro, Guterre Soares e a mulher, Eugénia, o filho de ambos, Martim Guterres, em conjunto com Mónio e Soeiro Gonçalves e respetivas esposas, Maria e Belida, venderam uma vinha e o seu lagar a Paio Ramires e sua mulher, Maria Rodrigues. A localização, Vila Mendiga, próxima da cidade e muito visada também por Santa Cruz, talvez justificasse o preço de 15 morabitinos. Percebemos, pelas confrontações, que se trata de um lugar privilegiado para esta cultura: o terreno transacionado encontrava-se rodeado pela “vinha do rei”, pela “vinha do negro” e pela “vinha da confraria”.210 Em março de 1133, foi o Mosteiro do Lorvão a sair beneficiado pelo príncipe portucalense, com o couto do Mosteiro de Esperandei (Viseu) e das vilas de Sabugosa (Tondela), Treixedo (Santa Comba) e Midões (Tábua). D. Afonso Henriques diz tê-lo feito por alma dos pais e para compensar

206 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 133-134. 207 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Caixa 27. Rolo 1, no. 48. 208 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Caixa 27. Rolo 1, no. 51. 209 ANTT, Sé de Coimbra. Régios. Março 1, no. 15. 210 ANTT, Mosteiro de São Jorge de Coimbra. Maço 1, no. 21. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 439

120 morabitinos que os monges lhe emprestaram,211 mas a verdade é que a instituição religiosa ficou com o poder reforçado numa região de fronteira. Nas confrontações, surge a “estrada que divide Santa Comba”, assim como a propriedade de um Abem Madeyra, onomástica que atesta essa condição de região de fronteira. Neste ano, os bens de Santa Cruz continuavam a crescer. Em abril, Diogo Nunes e a mulher, Elvira Soleimás, alienaram parte do moinho de Caraboi, em Coimbra, por cinco morabitinos e meio, uma infraestrutura que pertencera a Soleima Godins, pai da vendedora, e a Gondesendo Cendones.212 Ainda em abril, Cid Aires e a esposa, Elvira, fizeram testamento ao mosteiro de uma herdade em Aguim, Anadia.213 Já em setembro, foi a vez de Adosinda Geremias e da filha, Justa Pais, venderem a Santa Cruz um terreno. Situado junto à Almuinha do Rei, custou dois morabitinos e teve como um dos confirmantes uma personagem de nome Abolheir (Abu al-Hayr), lembrando que a fronteira continuava a exercer influência nesta cidade, apesar de terem decorrido quase 70 anos sobre a conquista cristã.214 Mas a vida na fronteira não se fazia apenas da troca de propriedades. Ainda no ano de 1133, com o mês de maio a desenrolar-se no calendário, Afonso VII empreendeu o seu primeiro fossado ao al-Andalus, que visou as regiões de Sevilha e Jerez e onde permaneceu por alguns meses.215 Ibn al-Qattan, que narra estes episódios,216 destaca outra operação de Tashfin logo em seguida, direcionada para a fronteira do Gharb al-Andalus, o que constitui uma notícia singular, pois não eram comuns as campanhas deste príncipe almorávida sobre o atual território português, pelo menos, tanto quanto as fontes nos informam. Diz o historiador de Marraquexe que estávamos no ano de 527, que decorreu entre 12 de novembro de 1132 e 1 de novembro de 1133. Ora, como em 1133 Afonso VII permaneceu no al-Andalus dois ou três meses a contar de maio, temos de concluir que Tashfin atacou entre o fim de agosto e setembro, no máximo, até novembro.

211 Azevedo 1958, 154-155. 212 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 325. 213 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 136. 214 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 302. 215 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:33-42. 216 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 229. 440 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Ibn al-Qattan diz que Tashfin se dirigiu ao Castelo de Antata, na vizinhança de Alcântara da Espada,217 e que as suas tropas dizimaram os ocupantes. A fonte volta a usar a tal fórmula “e mataram todos os que ali estavam”. As mulheres e as crianças foram capturadas, e o castelo destruído até às fundações,218 uma prática típica do poder almorávida face às fortalezas de fronteira. Temos registo, por exemplo, da destruição dos castelos de Leiria e de Aceca. Uma campanha militar estruturada justificar-se-ia no caso de esta fortificação trazer ameaça à segurança muçulmana, o que, no fundo, significa que poderia ser ativa na guerra de fronteira. Por outro lado, a presença de mulheres e crianças aponta para uma estrutura com alguma dimensão e para a existência de povoamento, o que não será de espantar, visto a própria fonte designá-la por uma fortificação organizadora do território, tipicamente com aldeias ,(حصن) hisn na sua dependência. Para alcançarem a região cristã, os almorávidas tiveram então de atravessar a ponte de Alcântara e, previsivelmente, seguir para norte. Olhando para o mapa, a região mais provável será a da atual Beira Baixa. Pouco se sabe sobre esta região de fronteira: nem as fontes muçulmanas, nem as cristãs, fornecem grande informação, o que atribui um especial interesse à notícia de Ibn al-Qattan. Resumindo, estamos perante um castelo com alguma dimensão e povoamento articulado, ativo na guerra de fronteira. Como identificar esta fortificação com segurança? quando informa sobre (انطانية) Ibn Khaldun indica o topónimo Antaniyya as revoltas de Ibn Marwan al-Jiliqi contra o poder de Córdova,219 identificado com a Idanha por diversos autores, entre os quais Christophe Picard.220 Já Jorge de Alarcão considera que a proposta “não tem fundamento sério”, avançando argumentos linguísticos, pois esta forma estaria longe daquela que considera que seria a pronúncia do termo “Egitânia” pelos falantes de língua árabe. Ainda indica a possibilidade de Antaniyya se tratar de Ateanha – proposta de Martim Velho –, um local, segundo diz, onde o conde Hermenegildo Guterres, que tinha conquistado Coimbra em 878, teria mais interesse que

.(وتوجه تاشفين الى حصن انطاطة بمقربة قنطرة السيف) ”Wa tawajaha Tashfin ila hisn Antata bi muqaraba Qantara al-Sayf“ 217 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 230. 218 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 230. 219 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1999, 7:289. 220 Picard 2000, 186. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 441

Ibn Marwan se estabelecesse. Mas, apesar de considerar mais consistente a aproximação fonética, acaba por rejeitar a hipótese, por, na sua opinião, não ser possível identificar um local apenas com base no respetivo valor estratégico.221 O argumento é, evidentemente, verdadeiro. Todavia, também não é possível rejeitar, de forma liminar, uma identificação apenas com base na linguística, sobretudo quando sabemos que as grafias nas fontes muçulmanas, de resto, tal como nas cristãs, são tudo menos estáveis, a que acresce o facto de os autores, com frequência, recorrerem a textos anteriores para comporem as suas obras, ou seja, muitas vezes, sem conhecerem de todo os locais de que falam: limitavam-se a copiar e recopiar ao longo de séculos e, naturalmente, cometiam erros. Não é se refiram ao (انطانية) e Antaniyya (انطاطة) completamente impossível que Antata mesmo local e que esse local seja a Idanha ou, melhor, a Egitânia. Lembremos que Ibn al-Qattan, apesar de ter vivido no século XII, era magrebino e que Ibn Khaldun nasceu em Tunis e viveu duas centúrias depois. A identificação precisa de mais dados. Ibn al-Qattan descreve a Antata do século XII como um hisn cristão com povoamento associado, enquanto Ibn Khaldun explica que a Antaniyya, do século IX, onde Ibn Marwan tomou refúgio, era uma cidade na dependência de Mérida.222 Apenas estes dados já são suficientes para rejeitar a hipótese da Ateanha: nunca foi hisn organizador do território nem cidade dependente de Mérida. Já a Idanha foi uma diocese sob o domínio de Mérida antes da conquista muçulmana, metrópole de que dependiam 12 bispados. Segundo Bruno Franco Moreno, que tem investigado o povoamento berbere na região que corresponde hoje à Estremadura espanhola, esta organização administrativa não deve ter sofrido grandes alterações com a conquista muçulmana.223 Ibn Khaldun acrescenta que Ibn Marwan reconstruiu a cidade de Antaniyya, que tinha sido destruída pelos cristãos da Galiza e de outras partes, e que a tornou dependente de Badajoz.224 Ou seja, estamos provavelmente na presença de um castelo de fronteira, que sofreu com os ataques dos adversários.

221 Alarcão 2013, 142-143. 222 “E instalou-se na cidade de Antaniyya, nas imediações de Mérida” (“wa nazala madina Antaniyya bijahat .Ibn Khaldun [1375-1406?] 1999, 7:289 .(و نزل مدينة انطانية بجهات ماردة :”Marida 223 Franco Moreno 2004, 169-170. 224 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1999, 7:289. 442 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Até agora, nada obsta a que estejamos a falar da Idanha. Para tentarmos resolver a questão da identificação, o mais simples seria recorrer a uma fonte de natureza geográfica, mas, tal como explica Christophe Picard, as únicas referências à Idanha, além desta indicação contida na obra de Ibn Khaldun, chegam-nos por via de al-Razi e de uma passagem em Ibn Hayyan.225 Acontece que o original árabe da obra de al-Razi, onde poderíamos recolher a grafia do topónimo, se perdeu, assim como a tradução para português datada do século XIV, segundo explica Lévi-Provençal. Aliás, o arabista franco-argelino procurou reconstituir a obra de al-Razi com base na Crónica Geral de Espanha de 1344 e de outros fragmentos.226 Já a referida passagem de Ibn Hayyan menciona variante que Jorge de Alarcão também rejeita, com 227,(لجدانية) a forma Lajdaniyya o argumento de que a pronúncia árabe no século XI deveria provavelmente ser Ajdaniyya.228 O formato presente em Ibn Hayyan, fonte do al-Andalus, lembra o termo Idanha e parece muito diferente da Antaniyya adotada pelas fontes mais afastadas no lugar e no tempo, mas não a vem necessariamente invalidar. Num caso, temos um termo que provavelmente remete para o topónimo romano, enquanto noutro se verifica uma maior relação com a forma medieval, algo que não é incomum nas fontes muçulmanas: basta lembrar o caso de Ilbira/Gharnata. Mas continuemos o raciocínio. A Lajdaniyya em Ibn Hayyan surge relacionada com o povoamento berbere. Diz a fonte que, quando Ibn Marwan al-Jiliqi deixou Mérida com uma boa parte da população moçárabe e muladi para fundar Badajoz, o que ocorreu em 875, aquela cidade foi ocupada pelos Banu Tajit, berberes masmudas com origem nas cidades de Coria e Lajdaniyya,229 um grupo social que ainda podemos encontrar na urbe emeritense à data da conquista da região que hoje corresponde à Estremadura espanhola por Abd al-Rahman III al-Nasir, fundador do califado de Córdova.230 Se percorrermos os trabalhos de Bruno Franco Moreno, percebemos que esta região foi povoada com berberes desde a conquista – zanatas, masmudas, nafzas, gomaras, sanajas, entre outros –,

225 Picard 2000, 186. 226 Lévi-Provençal 1953, 52. 227 Ibn Muammar et al. 2009-2010, 13; Franco Moreno 2004, 180. 228 Alarcão 2013, 143. 229 Ibn Muammar et al. 2009-2010, 13; Franco Moreno 2004, 180. 230 Ibn Hayyan [1000-1076?] 1981, 182-184. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 443 que se estabeleceram em milhares de aldeias nos vales do Tejo e do Guadiana com características semelhantes às dos seus lugares de origem, procurando manter a independência face ao poder de Córdova, contra o qual entravam frequentemente em conflito.231 Também Francisco García Fitz sublinha a origem berbere da maioria da população que se instalou neste território.232 Os assentamentos agrícolas organizavam-se em torno de husun (plural de hisn), povoados em altura, que lhes serviam de refúgio em caso de ataque ou quando se sublevavam contra o poder de Córdova e sofriam perseguições. O hisn de Lajdaniyya, que em todos os seus trabalhos o investigador identifica como Idanha, integrou esta rede castral onde os rebeldes tomavam refúgio face às perseguições do poder de Córdova.233 E é aqui que retomamos Ibn Marwan al-Jiliqi, que, nas suas fugas ao emir Muhammad, percorreu uma vasta área, que incluiu as kuwar (plural de kura, uma divisão administrativa) de Beja, Mérida e Idanha, procurando povoados em altura para escapar às perseguições.234 E é aqui igualmente que Ibn Khaldun coloca o caudilho muladi na cidade de Antaniyya, no momento em que fugia ao poder de Córdova. A possibilidade de Lajdaniyya e Antaniyya corresponderem a Idanha/ /Egitânia é praticamente certa. Resta aceitar ou não que Antata seja uma má transcrição de Antaniyya: o hispanista e arabista egípcio Mahmoud Ali Makki, autor da edição de Ibn al-Qattan, acrescenta uma nota de rodapé em que defende tratar-se da Idanha.235 A localização geográfica indicada por Ibn al-Qattan – “nas proximidades de Alcântara da Espada” – é um argumento a favor. A norte do Tejo, na região da atual Estremadura, não existem outras possibilidades. Uma ideia rebuscada seria fazer corresponder a palavra Antata à tribo masmuda dos hintatas, uma vez que os berberes desta confederação se instalaram na região da atual Estremadura espanhola, inclusivamente em Lajdaniyya, como mostra Além disso, sendo .انطاطة em vez de حنتاتة :Ibn Hayyan, mas a grafia é mais distante Ibn al-Qattan uma fonte próxima dos almóadas, cuja base era a confederação masmuda, este seria um erro que provavelmente não faria. O mesmo talvez não

231 Franco Moreno 2005, 41-47. 232 García Fitz 2003, 18-19. 233 Franco Moreno 2008, 313, 384, 395, 521, 526 e 629. 234 Franco Moreno 2008, 629; Picard 2000, 43-46. 235 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 230. 444 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

possamos dizer da grafia de um distante povoamento do Gharb al-Andalus, com importância para o mundo muçulmano sobretudo até ao século IX. Não se sabe muito sobre a Idanha desde que as fontes a iluminaram devido às revoltas contra o poder de Córdova. Supõe-se, no entanto, que terá passado para a zona de influência cristã com a conquista de Viseu por Fernando Magno, em meados do século XI. A Antata que Tashfin b. Ali atacou em 1133 é um povoamento cristão de fronteira. A ser a Idanha, estaria articulada com Seia e Viseu, de que Bermudo Peres de Trava não tinha querido abdicar com a derrota em São Mamede e de que foi tenente até dois anos antes deste ataque almorávida. As provas da importância desta região estratégica são apresentadas, por um lado, pela resistência do senhor de Trava em entregá-la a D. Afonso Henriques e, por outro, pela existência de uma campanha militar liderada pelo próprio governador-geral do al-Andalus, com vista à aniquilação total, como no caso de Leiria. Destinar-se-ia ainda a desmantelar o povoamento, razão por que terão sido capturadas as mulheres e as crianças, uma forma de evitar a progressão cristã no terreno, por exemplo, como os almóadas iriam fazer no vale do Sorraia no final do século XII. Como nota Hermenegildo Fernandes, esta zona, articulada pelo Castelo de Coruche, tornou-se vulnerável às constantes razias muçulmanas após a conquista de Santarém por D. Afonso Henriques e, entre os anos de 1181 e 1184, foi raziada, a fortificação destruída e os habitantes mortos ou aprisionados.236 O ano de 1133 pode ter sido, assim, marcado por um revés importante na fronteira associada a Seia e Viseu, mas o processo de povoamento não parou, muito menos na região de Coimbra, mesmo que D. Afonso Henriques, por esta altura, se mostrasse mais ocupado com a política galega e com a construção do Castelo de Celmes, que o primo de Leão e Castela fez questão de destruir, para quebrar a sua hegemonia. Já em fevereiro de 1134, uma bisavó, Elduara Froilaz, fez testamento em favor de um bisneto, Pedro Cipriano, de um terreno junto ao Mondego, onde ficamos a saber que também se localizava uma herdade de Santa Cruz. Acrescentou à lista de bens uma vinha e metade de uma casa. Soeiro Guterres

236 Fernandes 2005, 457-459. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 445 e Gonçalo Dias, personalidades da elite de Coimbra, assim como Martim Anaia, cavaleiro de D. Afonso Henriques, e Homar Alcharrag figuram entre as testemunhas.237 E Santa Cruz continuou a crescer em presença no terreno nestes primeiros anos de existência, agora rumo à foz do Mondego: no mês de abril, Paio Mides e a mulher, Elvira Mides, venderam metade da vila de Eimede, Figueira da Foz, que tinham recebido de D. Afonso Henriques. Embolsaram 300 morabitinos, um bom cavalo e uma loriga avaliada em mais 30 morabitinos.238 Os elementos do Cabido da Sé de Coimbra, a título pessoal, também possuíam bens. É o caso do subdiácono Salvador Vimariz, que, nesse mesmo mês de abril de 1134, investiu 17 morabitinos de ouro numa vinha e numa almuinha em Coimbra, localizadas perto da Fonte da Rainha, numa zona de agricultura intensiva. Das confrontações, emergem outras vinhas, almuinhas e figueirais e uma (quase inevitável) propriedade de Santa Cruz.239 Como era natural, as principais figuras da sociedade também faziam doações ao recém-fundado mosteiro, que continuava a expandir-se para a foz do Mondego. O casal Paio Guterres e Elvira Rabaldes, em novembro do mesmo ano, doou-lhe metade da vila de Quiaios, que tinha recebido inteira, pelos limites antigos, das mãos de D. Afonso Henriques, um indício de que este cavaleiro teria tido preeminência na região da Figueira da Foz. Faziam-no em intenção das suas almas e para remissão dos pecados. A outra metade vendiam-na por 150 morabitinos. Santa Cruz tornava-se, assim, proprietária de pastos, águas, terras cultivadas e não cultivadas, moinhos e foro de mar.240 No fim do ano, em dezembro, o mosteiro interessava-se agora por um terreno junto à muralha de Coimbra, na vizinhança das propriedades de Falafe Judeu e Aura Judia, elementos de mais uma comunidade que se conjugava na fronteira, pelo qual despendeu 10 morabitinos.241 Nesta fase, já todas as transações na região de Coimbra se processavam com recurso à moeda dos almorávidas, e Santa Cruz seria uma das entidades que mais faziam movimentar este meio de pagamento, muito mais raro na zona de Viseu.

237 ANTT, Mosteiro de São Jorge de Coimbra. Março, no. 22. 238 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 319-320. 239 ANTT, Mosteiro de São Jorge de Coimbra. Maço 1, no. 24. 240 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 318-319. 241 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 305. 446 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Mas, se a vitalidade comercial da cidade de Coimbra lhe permitia adotar a moeda dos seus adversários, as frequentes razias muçulmanas tornavam premente o reforço das defesas e o ano de 1135 veria o príncipe D. Afonso Henriques ordenar a construção do Castelo de Leiria, que, segundo os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis, arrancou em dezembro.242 Até lá, ainda várias propriedades iriam mudar de mãos. Logo em janeiro, verificamos que Santa Cruz manteve o interesse na região da foz do Mondego. O mosteiro trocou com Diogo Nunes e a mulher, Elvira Soleimás, uma casa, uma vinha e o monte de Rando, em Coimbra, mais quatro morabitinos e uma cuba por todas as propriedades que o casal tinha em Mira, Cantanhede, Montemor e Figueira da Foz, as quais recebera em herança dos pais de Elvira, já falecidos, Soleima Godins e Aragunte.243 Em fevereiro, foi a vez de Soeiro Guterres, irmão de Paio Guterres, doar ao mosteiro metade da herdade que tinha em Coimbra.244 Já em maio, no exato mês em que o primo Afonso VII se fazia coroar imperador em Leão e, em Pisa, os apoiantes de Inocêncio II contavam armas contra os normandos da Sicília, D. Afonso Henriques, gorada a sua intervenção na Galiza, estimulava o trabalho da terra na fronteira sul, com o aforamento das propriedades integrantes da Almuinha do Rei, junto à muralha de Coimbra, a Domingos Peres e outros foreiros, que deveriam pagar 100 morabitinos todos os anos. Também promovia a ocupação do espaço, ao ceder a herdade de Assamassa, na região de Soure, para cultivo de vinha e povoamento, contra uma quarta parte dos rendimentos produzidos. Os cavaleiros do príncipe que aqui quisessem estabelecer-se poderiam entrar na divisão de terras. O povoamento e a defesa constituíam certamente uma forma de controlar uma região muito fustigada pelas incursões muçulmanas, que quase recebiam um foral: o documento contém disposições sobre as relações entre vizinhos, a fixação de militares à terra e a aplicação da justiça.245 Em julho, um presbítero de Montemor, Sesnando Pais, foi atraído pela vida em Santa Cruz e entregou-se ao mosteiro, juntamente com herdades na sua região de origem e em Coimbra.246 Em outubro, o mosteiro

242 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 152. 243 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 326-327. 244 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 146. 245 ANTT, Santa Cruz de Coimbra. Régios. Maço 1, no. 7. 246 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 143-144. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 447 voltou a beneficiar de um testamento, que lhe prometia uma herdade nas regiões de Penela e Condeixa, junto à fronteira com os muçulmanos.247 Todas estas propriedades, com os seus trabalhadores e moradores, e todo este esforço de ocupação do espaço teriam de ser protegidos. Dizem as fontes cristãs que, num vasto “território solitário”, entre Coimbra e Santarém, que aqui há de querer dizer que teria débeis ocupação e defesa muçulmana, tal como argumenta Pedro Barbosa,248 começou a erguer-se o Castelo de Leiria. A área de influência cristã movia-se para sul, sendo apenas detida pela serra de Aire, bem couraçada pelos muçulmanos. Para alcaide foi escolhido Paio Guterres, considerado pelo redator dos Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis e pela Chronica Gothorum como um cavaleiro forte, virtuoso e audacioso, capaz de manter o perigo à distância.249 O risco acrescido, por certo, estaria associado a uma nova figura forte no contexto do Gharb al-Andalus: no mês de Rabi I de 529, que decorreu entre 20 de dezembro de 1134 e 18 de janeiro de 1135, chegou a Sevilha Abu Zakariyya Yahia b. Ishaq al-Massufi, conhecido como Anegemar – o rei Esmar da “Batalha de Ourique” –, que iria permanecer como governador da cidade durante quase dez anos,250 o que, no sistema de elevada rotatividade almorávida, significaria uma grande eficácia ao nível militar. Na verdade, este foi o governador de Sevilha que durante mais tempo manteve jurisdição sobre Santarém, já que Sir b. Abu Bakr, que permaneceu na cidade do Guadalquivir entre 1091 e 1113, só conseguiu conquistar a urbe escalabitana em 1111. Será coincidência que tenha bastado apenas um ano de permanência de Anegemar em Sevilha para D. Afonso Henriques perceber que teria de conter os ataques muçulmanos e ordenar o reforço das defesas? Localizado a escassos 20 quilómetros em frente a Porto de Mós, o Castelo de Leiria entrava audaciosamente na zona de influência muçulmana como um esporão, controlando a estrada que seguia para Santarém e permitindo às duas partes em conflito um permanente contacto visual. Basta uma revista grosseira pelos topónimos da pequena região entre ambos os castelos para encontrar

247 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 156-157. 248 Barbosa 1991, 29-30. 249 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 12; Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 153. 250 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 243-244. 448 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

uma Azoia e, junto a Porto de Mós, um Alqueidão da Serra, que apontará para a presença de um contingente militar.251 Não admira que Leiria passasse a constituir um alvo preferencial dos ataques almorávidas. O ano de 1136 também traria as atenções do príncipe para a fronteira com os muçulmanos, além de ser marcado pela continuação da expansão meteórica de Santa Cruz. Em abril, a viúva de Abdela Rote, Maria, vendeu ao mosteiro metade de uma azenha no açude do Mondego, em Coimbra, por 11 morabitinos.252 No mês seguinte, cerca de dois anos e meio sobre a possível destruição do Castelo de Idanha pelo governador-geral do al-Andalus, D. Afonso Henriques entendeu conceder foral a Seia, um documento muito minucioso, a regular todos os aspetos da vida quotidiana, desde a criação de gado a colheitas, passando por regras relacionadas com os fossados e a recuperação de cativos muçulmanos que tentassem evadir-se. Os cavaleiros e os povoadores recebiam privilégios, mas quem pretendesse deixar o território para habitar noutro lugar era obrigado a vender as suas propriedades a alguém que resolvesse permanecer.253 Parece evidente uma preocupação com a consolidação de um território menos controlado e, por isso, provavelmente mais exposto às incursões muçulmanas, menos urbano do que Coimbra, mas talvez por isso muito ativo na guerra de fronteira. Teria a destruição de 1133 tido influência na atribuição deste documento e nas regras tão apertadas quanto à propriedade da terra, que visavam um evidente reforço do povoamento? Mas, se o Castelo de Leiria constituía a ponta de um esporão em território muçulmano, como consequência do avanço cristão para sul, agora, o Gharb al-Andalus também contava com um esporão em terras portucalenses, com cabeça em Alfafar, entre Soure e Penela, de acordo com a reconstituição de Salvador Dias Arnaut.254 E depressa D. Afonso Henriques procurou aplanar esta configuração da fronteira em ziguezague. Provavelmente ocorrido no verão de 1136, o fossado da Ladeia destinou-se a consolidar uma região entre as estradas que seguiam para Santarém e Tomar e a fazer avançar mais um pedaço de fronteira

251 António Rei formula a hipótese de Alqueidão ter a mesma origem de Alcoitão, o último significando “tenda”, apontando ambas as realidades para a presença de um contingente militar (Rei 2005, 36). 252 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 299-300. 253 Azevedo 1958, 176-179. 254 Arnaut 2013, 186. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 449 em direção ao Tejo. Não se tratou de uma operação de grande profundidade, como a do verão de 1139, mas de uma ação sobre um território reduzido, ainda que importante. Os castelos de Miranda, Soure e Penela ganhavam, assim, uma faixa territorial a sul. É curioso verificar como a fronteira teria um recorte irregular, com zonas de muçulmanos entre dois castelos cristãos e, no caso de Leiria, com uma fortificação portucalense a rasgar uma região debaixo da influência do islão. Como defende José Mattoso, o fossado da Ladeia terá inaugurado uma nova fase na luta contra os adversários: se até então a postura seria sobretudo de defesa, agora, D. Afonso Henriques jogava ao ataque.255 Não existem relatos desta intervenção do príncipe portucalense, mas, como lembra o historiador, apenas notícias indiretas. É o caso daquele documento emitido em julho de 1139, pouco antes de D. Afonso Henriques partir para Ourique, que atesta a doação de um casal em Travancela, Sátão, a Mónio Vímares, que o príncipe lhe tinha prometido quando foram ao fossado da Ladeia (“Et dedit vobis ipso quando ibamus in illo fossado de Ladeia”), aceitando em troca um bom cavalo e um manto.256 Se não existem relatos deste fossado, também só podemos intuir a data. Evidentemente, só faz sentido ter ocorrido depois da construção do Castelo de Leiria, que ancorava a fronteira no seu ponto mais austral, e, a avaliar pelo documento de doação a Mónio Peres, antes do verão de 1139, ou seja, na época estival do ano anterior. José Mattoso aponta o verão de 1136 como a cronologia mais provável, o que é completamente plausível. Em 1137, registou-se o episódio de Tui e talvez a destruição do Castelo de Leiria, momento em que as prioridades passariam sobretudo por segurar a terra, o que terá levado o príncipe a atribuir foral a Penela e certamente a ordenar a reconstrução do Castelo de Leiria, que, pelo menos em novembro de 1139, já tinha alcaide e parecia encontrar-se funcional, a atestar por um documento da diocese de Coimbra.257 Já em 1138, D. Afonso Henriques só aparece na documentação relativa à fronteira em dezembro, pelo menos, na que sobreviveu até aos nossos dias. Mas não são apenas a data exata e os contornos deste fossado a deixar dúvidas no ar. O mesmo se aplica quanto ao tipo de ocupantes do

255 Mattoso 2007, 152. 256 Ventura et Matos 2010, 130-131. 257 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 548-549. 450 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

espaço que o príncipe combateu na Ladeia. Estaremos a falar apenas da expulsão de agricultores e povoadores, de contingentes militares ou de ambos? Um topónimo como Alvorge, claramente originário do árabe al-burj ou “a torre”, entre Soure, de que dista 20 quilómetros, e Penela, separado por pouco mais de 12 quilómetros, no alto da serra, com vista para os vales à sua direita e à sua esquerda, poderá indiciar a presença de militares. Podemos não ter grandes certezas, mas existem provas suficientes de que a guerra pela fronteira se disputava palmo a palmo, com o adversário ao alcance da vista, o que sugere que a região da Ladeia contasse com algum nível de militarização.

Fig. 8: Região da Ladeia

D. Afonso Henriques bordava pacientemente o território, fio a fio. Em novembro de 1136, talvez depois do fossado da Ladeia, não é surpresa que Miranda tenha recebido carta de foro, especialmente direcionada para a defesa. Qualquer cavaleiro que aqui quisesse habitar poderia conservar a sua condição e manter os seus homens nas terras que lhe coubessem. Se perdesse o cavalo, teria dois anos para repô-lo ou ser-lhe-ia retirado o estatuto. No caso de morrer na 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 451 guerra, a sua esposa continuaria “a ser honrada como nos dias do seu marido”, bem assim o cavaleiro que envelhecesse e deixasse de poder integrar a hoste. Deveria também ser honrado e manter a sua posição. Os archeiros e os clérigos que entendessem morar nesta região teriam direitos iguais aos dos cavaleiros.258 De acordo com José Mattoso, foi ainda no final de 1136 que Fernão Peres Cativo, alferes de D. Afonso Henriques, deu início ao povoamento da região da Ladeia, através de uma operação que ficou conhecida como presúria da Ladeia. Um dos heróis da conquista de Santarém em 1147, Mem Ramires, pode ter sido um dos presores da Ladeia, já que, entre 1146 e 1154, D. Afonso Henriques e D. Mafalda venderam a Paio Viegas e à mulher, Maior Afonso, as propriedades que aquele detinha em Pombeirinho, Ulmar, Rabaçal e Figueiró, e que em 1167 o casal voltou a alienar.259 Surge outra referência à presúria da Ladeia, a propósito de um acordo entre Salvador Baveca e o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que reclamavam ambos a posse de uma herdade em Fonte Coberta. Dizia o primeiro: “[Herdade] que, por ordem do rei Afonso, capturei na Ladeia durante a sua presúria.”260 Se o ano de 1136 foi muito atribulado para o príncipe portucalense, o seguinte também lhe exigiria grande disponibilidade, se tivermos em conta que se dividiu entre a Galiza, onde em julho assinou o Tratado de Tui com Afonso VII, e a fronteira sul, que requeria a sua atenção. Quanto a Santa Cruz de Coimbra, 1137 foi mais um ano de expansão. Meia década de funcionamento do mosteiro tinha deixado a diocese para trás na preferência das populações ao nível das doações e de outros benefícios. A viúva Mónia Martins, em março, entregou-se ao mosteiro e consigo levou diversas propriedades: a vila de Almaça (Mortágua), a sexta parte de Escapães (Cantanhede), um casal em Valongo (Coimbra) e a quarta parte de Figueiredo (Vouzela).261 No mesmo mês, Daniel Alfarde e a mulher, Sancha, venderam a Santa Cruz parte do bairro de Antanhol, Coimbra, pelo preço de três vacas.262 Mesmo as regiões que não se localizavam exatamente na fronteira recebiam atenções no que se refere ao cultivo e ao povoamento: terra era sinónimo de riqueza, e não havia interesse em que se mantivesse improdutiva.

258 Azevedo 1958, 185-187. 259 ANTT, Livro de D. João Teotónio, fl. 141v (imagem 366, Digitarq). 260 ANTT, Livro de D. João Teotónio, fl. 140-140v (imagens 364 e 365, Digitarq). 261 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 140-141. 262 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 296. 452 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Em abril de 1137, a diocese entregou a Salvador Soleimás e à mulher, Justa, duas partes de uma herdade em Alcarraques, Coimbra, para arroteio e povoamento. Todos os anos, deveriam entregar um décimo dos rendimentos produzidos. Por certo que o paciente labor de D. Afonso Henriques no reforço da fronteira não passaria despercebido aos adversários muçulmanos. A construção de um castelo em Leiria, o povoamento das regiões de Miranda e Penela, o avanço territorial por via do fossado da Ladeia, a que se tinha sucedido nova ação de povoamento com a presúria, já para não mencionar o reforço de Seia através de foral, deveriam constituir motivo de preocupação para o poder almorávida. A fronteira movia-se já não apenas por via de pressão sobre os opositores, como fez Afonso VI no final do século XI, nem por operações militares convencionais sobre as principais cidades, como as que levaram os almorávidas a recuperar Lisboa e Sintra, talvez em 1095, e Santarém, em 1111. Um paulatino trabalho de ocupação do espaço e de conhecimento profundo do meio rural dava também os seus frutos e começava a acantonar o poder almorávida em direção ao Tejo. E, neste processo lento, mas eficaz, Santa Cruz parecia ser o parceiro preferencial de D. Afonso Henriques. Basta sublinhar que, apenas cinco anos após o fossado e a presúria da Ladeia, o príncipe concedeu ao mosteiro a herdade de Alvorge e um décimo de todos os rendimentos da região.263 A comparação de fontes cristãs e muçulmanas, em conjunto com as informações sobre a construção do Castelo de Leiria, e o fossado e a presúria da Ladeia, permitem-nos fazer um exercício visual das movimentações da fronteira do Gharb al-Andalus entre as conquistas cristãs de Coimbra, em 1064, e de Lisboa, em 1147, evidentemente com todas as salvaguardas quanto à precisão dos contornos, por natureza voláteis. Arrisquemos, ainda assim, uma representação, que, embora possa pecar por impossibilidade de rigor, ganha em termos intuitivos e mostra, de forma definitiva, como a guerra pelo território se fez em movimentos de basculação e não num percurso teleológico de norte para sul, com a vitória dos cristãos como garantia da fundação de uma nação. Portugal é o resultado de uma soma de conjunturas e, nesta faixa cronológica, a vitória cristã estava tudo menos garantida.

263 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 122-123. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 453

Fig. 9: Estimativa das oscilações da fronteira entre as conquistas cristãs de Coimbra e Lisboa 454 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Em poucos anos, a fronteira avançou em prejuízo do bloco muçulmano e não será de surpreender que tenha surgido uma reação de força. Os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis dizem que, tendo conhecimento de que D. Afonso Henriques se encontrava para lá de Guimarães, na região de Tui, ocupado com negócios seus, o que pode constituir uma referência ao pacto com Afonso VII, o rei Esmar congregou exércitos de Badajoz, Évora e Santarém e ordenou a destruição do Castelo de Leiria.264 A fonte posiciona esta operação em 1140, mas José Mattoso considera possível ter havido um erro de datação.265 Na verdade, os anais são muito específicos quanto à presença em Tui, uma realidade que, como sabemos, remonta a junho ou julho de 1137, pois o acordo com Afonso VII foi firmado no princípio deste último mês. Tal como no caso do fossado de 1139, podemos formular a hipótese de Abu Zakariyya Yahia b. Ishaq al-Massufi, o governador de Sevilha conhecido como Anegemar, não ter estado presente nesta campanha, tendo-a apenas decidido. De qualquer modo, a acreditar na fonte cristã, os muçulmanos congregaram um número expressivo de tropas, cujo objetivo, tal como no caso do Castelo de Aceca e presumivelmente no da Idanha, seria a destruição até à raiz e a desarticulação do povoamento. Temos, assim, de considerar a possibilidade de as zonas de povoamento adjacentes às fortificações mais na retaguarda, caso da recém-ocupada Ladeia, terem sido também atacadas e os habitantes mortos ou reduzidos ao cativeiro. Estas operações como que traziam um guião associado: não bastava eliminar as defesas; era ainda necessário remover por todos os meios os ocupantes da terra. Não existem informações nas fontes que corroborem a possibilidade de um ataque paralelo ao povoamento que D. Afonso Henriques tão pacientemente estava a estimular. A Chronica Adefonsi Imperatoris, a segunda narrativa que fala da destruição do castelo, procura associar a má sorte dos defensores de Leiria ao comportamento rebelde de D. Afonso Henriques face a Afonso VII. Após a vitória em Cerneja contra as forças do imperador, diz a fonte, o príncipe “teve de socorrer os ocupantes do Castelo de Leiria”, onde “todos os guerreiros e alguns dos nobres morreram. As mortes entre os cristãos ascenderam a 250”.266 Remata afirmando

264 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 154. 265 Mattoso 2007, 153-156. 266 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:79-80. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 455 que os nobres mais velhos, que presenciaram estes trágicos eventos, alegaram junto de D. Afonso Henriques que não era aconselhável ficar em guerra com o imperador, cujas forças eram mais poderosas do que as portucalenses. A fonte chega a atribuir a estes homens, que pretende caracterizar como mais sábios, a seguinte frase: “Se houvesse paz entre nós, os nossos irmãos não teriam morrido às mãos dos mouros em Leiria.”267 Mostra-se, pois, mais preocupada em reforçar os interesses de Afonso VII do que propriamente em descrever o que aconteceu. Em julho, pouco depois de regressar de Tui e certamente com o Castelo de Leiria destruído, D. Afonso Henriques deu foral a Penela, incentivando a fixação de mais povoadores na região, o que mostra talvez a urgência de repovoar face à desarticulação provocada pela razia muçulmana. Os habitantes recebiam o castelo e o respetivo termo, com montes, fontes, terras e pastagens, e os privilégios eram dirigidos sobretudo a cavaleiros. O bispo de Coimbra, D. Bernardo, e o alcaide desta cidade, Rodrigo Pais, estiveram presentes num ato jurídico de muito menor complexidade do que, por exemplo, o de Seia, zona onde a sociedade seria mais organizada e mais envolvida na guerra de fronteira e na economia do saque. Ainda neste ano de 1137, as fontes portucalenses assinalam uma derrota em Tomar, através de uma passagem lacónica (“ocorreu o infortúnio sobre os cristãos em Tomar”) que tem sido usada para justificar a posse do castelo pelos cristãos.268 Acontece que a frase não diz que o castelo pertencia aos cristãos: limita-se tão-só a referir que estes sofreram um desaire militar em Tomar, o que também poderá significar que se deslocaram a esta região para raziar e foram surpreendidos pelas forças muçulmanas. Podemos também não estar a falar exatamente da cidade, mas de uma região próxima do rio Nabão, que os árabes designavam por Tomar, a qual, com o fossado e a presúria da Ladeia, se posicionava agora imediatamente a sul da zona de influência cristã. Se a destruição do Castelo de Leiria tiver ocorrido em 1137, uma tal razia poderia ter constituído uma tentativa de punição à região que, com Ourém, trancava o

267 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:84. 268 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 153; Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 12. 456 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

acesso ao bloco muçulmano. Aliás, Pedro Barbosa refere mesmo que Ourém e Tomar eram as fortificações mais importantes para o domínio do Baixo Tejo.269 A construção do Castelo de Tomar teve lugar já sob o domínio cristão, quando D. Afonso Henriques doou a região a Gualdim Pais e aos templários, o que levou Alexandre Herculano a desprezar as informações sobre a Batalha de Sacavém, que ocorreu no âmbito da conquista de Lisboa, em 1147, por incluírem menções aos “mouros de Tomar”.270 Mas a verdade é que a arqueologia, que ainda tem muitas dúvidas a esclarecer nesta matéria, detetou vestígios medievais anteriores à intervenção dos templários,271 sendo muito natural ter existido uma fortificação muçulmana neste local, tal como na vizinha Ourém. Resta saber quando ambas passaram para mãos cristãs. Existe uma tradição que afirma que tal ocorreu por volta de 1136, o que significaria que, ao tomar a Ladeia, D. Afonso Henriques teria ocupado toda a zona a sul e que, nesse momento, as fortalezas muçulmanas mais avançadas seriam Porto de Mós, na serra de Aire, juntamente com Torres Novas e Abrantes. Mas esta possibilidade parece pouco viável: primeiro, porque Leiria deixaria de ser o ponto mais visado pelas campanhas muçulmanas e depois porque, por um lado, seria certo o relato de tal feito nas fontes e, por outro, o ataque almorávida a tais fortalezas. Provavelmente, Porto de Mós, Tomar e Ourém só caíram quando das conquistas de Santarém e Lisboa, em 1147, mantendo-se as duas últimas, até lá, como as praças mais avançadas rumo ao território cristão. No seu trabalho de consolidação da fronteira, o príncipe continuava a beneficiar grandemente o Mosteiro de Santa Cruz. A Almuinha do Rei, aforada dois anos antes a diversos indivíduos, foi em setembro de 1137 doada ao mosteiro, juntamente com a azenha de Matelas. Os monges poderiam povoar a almuinha como bem entendessem.272 No mês de novembro, Santa Cruz estendia a sua influência a Seia, por meio da doação de metade da Igreja de São Romão pelo presbítero Pedro.273 O fim do ano assistiria ao interesse de Santa Cruz pela região vinhateira de Ribela. Dois escambos fazem emergir da documentação

269 Barbosa 2008, 130. 270 Leitão 2011, 115. 271 Dias 2012, 301-321. 272 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 118-120. 273 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 207-208. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 457 personagens da comunidade judaica e outros com onomástica árabe. Belide Judeu e a mulher, Jamila (nome árabe), trocaram uma vinha com metade de lagar por outra, também com metade de lagar, mas fora de Ribela. Nas confrontações e entre as testemunhas, surgem nomes como Jucefe Judeu, Juniz, Abzicri Aranha, Zoleima Abade e João Izger.274 Através do segundo documento, Ismael e Jamila, um outro casal, trocavam com o Mosteiro de Santa Cruz uma vinha por outra com uma parte de lagar. Desta vez, as confrontações fazem surgir à luz do dia a vinha de um Falafe, enquanto os confirmantes são os mesmos do ato anterior.275 O sexto ano de existência de Santa Cruz – 1138 – só veio confirmar o crescimento da instituição, que ampliou a presença na foz do Mondego e na região de Seia, duas fronteiras importantes. Em março, comprou a Susana Martins e ao seu filho uma herdade contígua a outra que lhe tinha doado Soleima Godins anos antes,276 e, em julho, o presbítero João Ciz entregou ao mosteiro a segunda metade da Igreja de São Romão, passando a instituição a deter a totalidade do bem. Ficamos a saber que os presbíteros Pedro e João Ciz tinham recebido a igreja de D. Teresa e D. Henrique.277 Nesse mesmo mês de julho, o presbítero Aires vendeu a Igreja de Miranda à diocese de Coimbra, doada por D. Teresa e pelo bispo D. Gonçalo, templo que tinha sofrido as “adversidades dos sarracenos”, que a destruíram e despovoaram,278 o que constitui uma clara referência aos ataques de 1116, ordenados por Ibn Fatima, governador de Sevilha. O documento não o esclarece, mas é possível que este templo tenha sido entregue em condições semelhantes àquelas em que D. Teresa e o mesmo prelado haviam atribuído a Igreja de Soure a Martinho Arias e ao seu irmão. O fim do ano ficou marcado pela confirmação, por D. Afonso Henriques, da posse da Igreja de São Romão de Seia a Santa Cruz, que recebeu ainda carta de couto.279 O mosteiro ficava, assim, isento de impostos relativos a uma igreja situada numa zona que tinha acabado de ganhar foral. Ao olharmos para o Livro Preto, e a fazer fé nos documentos que subsistiram até aos nossos dias,

274 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 306. 275 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 307. 276 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 320-321. 277 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 206-207. 278 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 381-382. 279 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 120-121. 458 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

percebemos que, desde a fundação de Santa Cruz, a Sé de Coimbra perdeu a preferência como destinatário de doações de particulares, sobretudo nas regiões de fronteira. Sobressaem, neste período, a oferta de propriedades à diocese nas regiões mais a norte do Condado Portucalense. O ano de 1138 assistiria a uma mudança no tabuleiro político do al-Andalus: o príncipe Tashfin, governador-geral, foi chamado ao Magrebe para auxiliar o pai na luta contra os almóadas, tendo sido também, por morte do herdeiro, o seu irmão Sir, designado sucessor ao trono de Marraquexe. Ibn Idari alega que tal ocorreu no ano de 531 (29 de setembro de 1136 a 18 de setembro de 1137), enquanto Ibn Abi Zar e o anónimo al-Hulal al-Mawsiyya apontam para 532 (19 de setembro de 1137 a 7 de setembro de 1138), o que, cruzando com a informação nas fontes cristãs, será o ano correto. Saído Tashfin do al-Andalus, Afonso VII não perdeu tempo e, de acordo com a Chronica Adefonsi Imperatoris, ordenou, no mês de maio de 1138, um fossado à zona de Jaén, Baeza, Úbeda e Andújar e, em julho, procurou conquistar o Castelo de Coria. A fonte cristã pretende convencer de que, só depois destas operações, o rei Tashfin regressou ao Magrebe,280 provavelmente para enaltecer as campanhas do imperador, mas a verdade é que, ao percorrermos a informação sobre as referidas campanhas, não encontramos nenhuma referência ao príncipe almorávida, não parecendo ter havido interação entre as suas forças e as cristãs. De resto, um ataque a Jaén, no coração do al-Andalus, seria demasiado arriscado se o poder almorávida se encontrasse na sua máxima força militar. O mais certo é os ataques terem sucedido a saída de Tashfin, o que terá ocorrido entre janeiro e abril, uma vez que Afonso VII atacou em maio. No ano seguinte, as campanhas castelhano-leonesas subiriam de tom, com a conquista do Castelo de Oreja, dando oportunidade a D. Afonso Henriques para se apoderar também do seu quinhão de glória em terras do islão. Seria o princípio do fim da fronteira do Gharb tal como cristãos e muçulmanos a conheciam desde 1111, quando Sir b. Abu Bakr recuperou Santarém. Mas ainda faltavam oito longos e atribulados anos.

280 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:131-140. 3. DESMORONAMENTO DO IMPÉRIO

Sucederam-se as guerras no país da gente do litham [véu], subiram os preços em Marraquexe . . . continuou a esterilidade até secarem as correntes de água e as encostas dos montes se transformarem em pó. Diminuíram os tributos com estas revoltas e cresceram as imposições aos súbditos em ambos os lados do estreito de Gibraltar. Cresceu o inimigo cristão nos seus ataques por todas as partes do al-Andalus, quando conheceu a debilidade do governo no Magrebe e a sua ocupação na luta contra os sublevados, aos quais Alá fez justiça, ao permitir que naquele tempo os cristãos se apoderassem da maior parte do país e de muitos castelos na fronteira.1

Ibn Idari sumariza de forma pungente as guerras associadas ao fim do poder almorávida, entre 1139 e 1147, que perturbaram o comércio e o fornecimento de alimentos e, sobretudo nos últimos cinco anos, castigaram severamente as populações.

Caos no assalto ao poder de Marraquexe

O aumento do risco e a maior dificuldade em encontrar produtos, em especial alimentos e outros bens de primeira necessidade, como o carvão ou a lenha, conduziram ao aumento dos preços. Uma carta da Geniza do Cairo,

1 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 249. 460 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de 1141, revela as queixas de um comerciante face à depressão económica que se instalou quando os almóadas conquistaram o Sus, a sul de Marraquexe.2 Por outro lado, o comerciante judeu Shlomo ha-Cohen al-Sijilmassi fala das mortes em números massivos que os almóadas provocavam à medida que iam conquistando o Magrebe.3 Os exércitos em movimento afetavam a agricultura e acabavam vítimas das suas próprias ações. Al-Baydaq explica que, também por volta de 1141, numa região afeta aos almorávidas, os almóadas fizeram saque e destruíram a colheita de milho. No ano seguinte, depois de uma chuva torrencial que se prolongou por 50 dias e que encheu os rios, o preço da cevada disparou no acampamento almóada, e a lenha, entre o exército de Tashfin b. Ali.4 Já Ibn Idari declara que, numa campanha na região de Fez, Tashfin ficou vários meses sem lenha nem carvão, a ponto de ser obrigado a queimar as estacas das tendas, a madeira dos edifícios5 e as selas de montar.6 Al-Nuwayri diz que a chuva transformou o acampamento almorávida num pântano, a que era difícil chegar mantimentos. “O frio e a fome dizimavam os soldados de Tashfin, que, para se aquecerem, foram obrigados a queimar as lanças e as selas de montar, enquanto Abd al-Mumin se mantinha em terreno seco, com fácil acesso a mantimentos.”7 Quanto mais a produção de riqueza era perturbada, menos recolha fiscal o poder almorávida obtinha, pelo que, para sobreviver e continuar a financiar a guerra, aumentou os impostos até níveis demasiado castigadores. Ibn Khaldun afirma que os contribuintes do Magrebe foram de tal modo afetados pela guerra e pela escassez de alimentos que deixaram de poder pagar os impostos, e os muçulmanos do al-Andalus, “expostos às mesmas misérias que os seus irmãos do Magrebe, sofreram ataques contínuos do rei cristão”.8 As fomes generalizadas também atingiram a Ifrikiyya, devido a uma acentuada crise cerealífera, e abriram uma oportunidade para os normandos da

2 Goitein 1973, 265; Bennison et Gallego 2007, 47. 3 Toledano et Mann 1927, 450. 4 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 148. 5 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 248. 6 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 229-230. 7 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 1:208. 8 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:175. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 461

Sicília, que enviaram uma frota de 150 navios a Mahdia, carregados com víveres, um negócio que os doutores de leis muçulmanos reprovavam. Apesar das fomes extremas, criticavam que se trocasse ouro por cereais originários de um país cristão, como mostra a coleção de fatawa de al-Wansharisi.9 Ibn al-Athir explica que, nas regiões da atual Tunísia, a fome se agravou a ponto de as populações, desesperadas, cometerem atos de antropofagia, populações estas que deixavam os campos, onde escasseavam alimentos, rumo às cidades, sobrepovoadas, que lhes fechavam as portas, levando a que muitos trocassem África pela Sicília.10 Se as conjunturas políticas do al-Andalus e do Magrebe sempre se mantiveram interligadas, com os cristãos a beneficiaram dos ataques dos almóadas para desestruturarem as defesas almorávidas, os quais viam as suas forças divididas, desta vez, as relações de causa-efeito sobressaíram de forma crua. A guerra levou à escassez de alimentos, que trouxe aumento de preços e impostos, que conduziu à fome, que implicou mortalidade acrescida, que teve como consequência a menor acumulação de riqueza por parte do poder almorávida, que, já não controlando o comércio como anteriormente, sofreu uma escassez de meios para financiar os conflitos militares e recompensar lealdades. No fim da vida, o senhor de Marraquexe, Ali b. Yusuf, nem tinha como pagar regularmente aos soldados, e a maior parte era obrigada a alugar as suas montarias.11 O pagamento aos exércitos a partir dos impostos foi uma prática instituída por Yusuf, seu pai, já que, no tempo de Abu Bakr b. Umar, os soldados eram remunerados a partir do saque. Mas a conquista do Magrebe tornou escassas as zonas de potencial saque, obrigando a uma solução alternativa.12 Segundo Ibn Idari, Ali foi o primeiro a empregar mercenários cristãos, que utilizava para a cobrança de impostos ilegais,13 certamente uma forma de obter rendimentos extra para a guerra, mas que não deixa de ser curiosa. A cobrança de impostos ilegais foi justamente um dos argumentos da propaganda almorávida para condenar as tribos zanatas no Magrebe e os reis

9 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 128 e 316. 10 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 562-563. 11 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 235. 12 Lagardère 1979, 106. 13 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 235. 462 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de taifas no al-Andalus e justificar o controlo do poder em ambos os territórios. As revoltas cresciam à medida que aumentavam as debilidades defensivas nos dois lados do estreito de Gibraltar. O fim estava próximo. Durante seis anos, a partir de 1139, Abd al-Mumin e Tashfin b. Ali defrontaram-se em sucessivos embates, até que, em março de 1145, o já emir almorávida perdeu a vida em Orão, e o caminho para o poder ficou mais facilitado para os almóadas. Muitas fontes relatam estas campanhas, algumas com detalhe, mas nem sempre é possível estabelecer uma linha cronológica precisa nem uma correta identificação dos lugares: por um lado, em certos momentos, é evidente que os exércitos almóadas atacavam vários locais em simultâneo e, por outro, as fontes não atribuem os mesmos nomes às operações militares. Tanto podem referir-se à campanha do monte X, como à razia contra a tribo Y ou mesmo à derrota do chefe da tribo Z, o que, somado a datas nem sempre coincidentes, dificulta uma identificação segura. De qualquer modo, podemos perceber que, depois de subjugar as montanhas e as tribos apoiantes dos almorávidas, Abd al-Mumin se lançou sobre as principais cidades, deixando Marraquexe para o fim. A carta da Geniza do Cairo com data de 1141 que relata as queixas do comerciante judeu mostra que também terá procurado desestruturar as rotas controladas pelos almorávidas e, provavelmente, o acesso das caravanas do comércio à importante cidade de Sijilmassa, a porta para o deserto e para as riquezas da África subsariana. A conjuntura de caos, fome e impostos impossíveis de pagar pesou contra o poder almorávida, o qual foi perdendo base de apoio, transferida para os seguidores de Abd al-Mumin,14 que esmagava opositores e insubmissos com mão de ferro. Ao procurar castigar as tribos que o deixavam, Tashfin acentuou a dispersão e o enfraquecimento da sua capacidade militar.15 Em janeiro de 1143, com a morte do seu pai, o já doente emir Ali b. Yusuf, que Ibn Idari diz ter falecido após ter recebido notícias que o preocuparam e lhe afetaram o corpo,16 a precariedade extrema teve o condão de agravar-se, com a guerra entre as tribos

14 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:175. 15 Lourinho 2010, 84. 16 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 219 e 232. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 463 lamtuna e massufa, outrora federadas no movimento almorávida. Alguns chefes massufas, como Barraz, que, em janeiro de 1147, iria liderar o ataque almóada a Sevilha, passaram para o lado de Abd al-Mumin. Ibn Idari diz que lamtunas e massufas se odiaram e se mataram uns aos outros.17 Abu Zakariyya Yahia b. Ishaq, conhecido como Anegemar, governador de Sevilha até 1144, também havia de prestar homenagem ao califa almóada no ano seguinte, durante o cerco a Fez.18 O motivo destas inimizades era a recusa dos massufas em reconhecerem Tashfin como novo emir almorávida. Por morte de Yusuf b. Tashfin, não se tinham mostrado agradados com a escolha de Ali, filho de uma escrava cristã, e agora alegavam preferir outro filho do emir, dado que Tashfin também tinha nascido de uma escrava cristã. A sua nomeação envolveu polémica desde o início, com a mãe do falecido herdeiro, Sir, a tentar manipular Ali b. Yusuf para designar Ishaq, que ela havia criado por morte da progenitora do jovem. Não o conseguiu, porque – diz Ibn Idari – os xeques de Ali, consultados na mesquita aljama de Marraquexe, escolheram Tashfin.19 No entanto, pouco depois, face às derrotas militares frente aos almóadas, a mesma fonte refere que o emir considerou a hipótese de substituir Tashfin por Ishaq, que, por ser muito novo, deveria receber como tutor o governador de Sevilha, que à data era Anegemar. Como o texto se encontra truncado nesta passagem, não chegamos a saber por que razão abandonou o projeto, mas terá sido devido a uma notícia grave.20 Significa que a mãe de Sir terá continuado o seu trabalho de bastidores contra Tashfin, o que vem confirmar os receios de Yusuf b. Tashfin décadas antes, quando recusou designar como herdeiro o filho de uma princesa berbere, para evitar conflitos. Por outro lado, se a conjuntura fosse de paz, e não de caos generalizado, talvez Tashfin, o militar que fez carreira na Hispânia, não tivesse sido escolhido. Mas, por paradoxo que seja, essa poderia ser a sua fraqueza: na prática, tratava-se de um guerreiro do al-Andalus, filho de uma cristã e rodeado de mercenários cristãos, que não dominava as táticas militares

17 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 250. 18 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 253; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:175. 19 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 222-224. 20 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 228-229. 464 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

almóadas nem tinha conhecimento das montanhas, ou seja, seria um estrangeiro. Com a intriga instalada face à sua nomeação, não espanta que a morte de Ali tenha sido mantida em segredo durante quatro meses.21 Evidentemente, a escolha de um emir nascido de uma princesa massufa seria mais benéfico para os interesses desta tribo. Mas temos de pensar que estes interesses estariam já muito interligados por via dos casamentos e que os massufas talvez sentissem que o colapso era uma questão de tempo, pretendendo salvar as vidas, as famílias e os bens. Vejamos alguns exemplos. Anegemar foi governador de Sevilha, cidade reservada aos príncipes lamtunas, e mais tarde de Tlemcen; era casado com Zaynab, filha de Ali b. Yusuf, e o emir ponderou torná-lo tutor de um putativo herdeiro. Por sua vez, Yahia b. Ghaniyya, depois de ter Valência e Múrcia nas suas mãos, foi governador-geral do al-Andalus a partir de Córdova. Já o seu irmão Muhammad foi governador das ilhas Baleares. Ambos tiveram uma educação na corte almorávida: se o pai era massufa, a mãe era lamtuna. Portanto, talvez a recusa de a maioria dos massufas em aceitar Tashfin como emir (não foi o caso dos Banu Ghaniyya, que ficaram com o poder lamtuna até ao fim), um líder militar com provas dadas, e de procurarem favorecer um jovem inexperiente numa conjuntura de caos tenham sido simples desculpas para deixarem a confederação almorávida rumo a um futuro mais seguro junto de Abd al-Mumin, que, de resto, não lhes poupou honrarias. Uma guerra com os lamtunas seria a prova conveniente, perante o califa, de que estariam de boa-fé. Anegemar demorou mais algum tempo até prestar homenagem ao líder almóada: ficou com Tashfin praticamente até ao fim, em março de 1145. Apenas quando percebeu que tudo estava perdido em Orão, pouco antes de o emir cair num precipício, fugiu para o deserto,22 para, logo depois, reconhecer o califa. Ibn Idari refere que Anegemar se apresentou a Abd al-Mumin com um grupo dos seus irmãos massufas, todos eles usando o litham (véu), que retiraram diante de Fez para adotarem os trajes almóadas.23 Abdicavam da marca mais evidente da sua identidade sanaja do deserto – o véu. E aqui evoquemos de novo a história, contada por al-Nuwayri, do velho almorávida

21 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 231. 22 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 159; Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 238. 23 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 272. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 465 que se lavava, nu, junto a um rio e que, com a mão disponível, tapava o rosto.24 Apesar de certamente difícil, a decisão de Anegemar poupou a vida da sua mulher e da sua família, que viviam em Marraquexe e experienciaram os dias difíceis do cerco e da queda da cidade nas mãos dos almóadas, em março de 1147. Não foram, assim, chacinados com outros milhares de lamtunas nem vendidos como escravos.25 Portanto, temos ainda de matizar a narrativa oficial almóada, segundo a qual foram executados todos os lamtunas em Marraquexe: não é exatamente verdade. Morreram os lamtunas que não se submeteram em devido tempo, que, de facto, foram vários milhares. Mas houve muitos que se salvaram, tal como, de resto, se depreende de uma passagem de Abd al-Wahid al-Marrakushi, segundo a qual Abd al-Mumin atribuiu a Yahia al-Sahrawi, ex-governador de Fez e neto de Yusuf b. Tashfin, “o comando dos lamtunas que se fizeram almóadas, sendo entre estes uma personagem muito estimada”.26 Neste grupo de lamtunas, encontrava-se o conhecido Ibn Atiyya, secretário de Ali b. Yusuf e Tashfin b. Ali e casado com uma irmã de Yahia al-Sahrawi, que conseguiu misturar-se com os soldados almóadas e serviu como archeiro no exército de Abd al-Mumin. Mais tarde, os dotes literários e caligráficos renderam-lhe a posição de secretário do próprio califa.27 A propaganda almóada pretendia mostrar que o movimento seria implacável com todos os que não se submetessem, mas acolheu os que reconheceram o califa. As mais evidentes exceções à regra foram, além da maioria dos lamtunas de Marraquexe, as populações de Orão e Tlemcen, cruelmente castigadas por terem apoiado Tashfin nos seus últimos tempos de vida. Lá chegaremos. Anegemar, tal como os seus parentes massufas, ainda iria prestar serviço ao califado almóada, que, logo após a conquista de Marraquexe, teve de lidar com uma rebelião generalizada. Ibn Hud, uma figura de Salé, conseguiu, segundo Ibn Khaldun, “infetar com os seus erros o Magrebe inteiro”28 e pôr em causa o poder almóada. Anegemar foi o chefe militar enviado para esmagar

24 Al-Nuwayri [1314-1331] 1917, 2:189. 25 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 287-288. 26 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 159. 27 Abd al-Wahid al-Marrakushi [1224-1230?] 1955, 160; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:182. 28 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:181. 466 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

a rebelião, embora não tenha tido sucesso. Só um segundo exército conseguiu eliminar aquele que teve capacidade para fazer com que as tribos deixassem de apoiar Abd al-Mumin, o qual, durante a rebelião, manteve o controlo apenas sobre Marraquexe e Fez.29 Tashfin b. Ali perdeu a vida em março de 1145, depois de os almóadas terem conquistado Tlemcen, de onde conseguiu fugir para refugiar-se em Orão. Pouco antes, o seu principal companheiro de armas, o cristão Reverter, também tinha desaparecido na guerra, e o desespero adensou-se. Apesar de compor a narrativa mais detalhada destes eventos, al-Baydaq faz referência a muitos topónimos de difícil identificação, além de estar repleto de informações pouco objetivas, destinadas à propaganda almóada. É o caso da história associada ao leão de estimação de Tashfin, que escapou das fileiras almorávidas para o campo almóada, incidente que terá sido interpretado como um bom augúrio para a progressão de Abd al-Mumin.30 Al-Baydaq explora estas histórias com evidente prazer e ironia, assim como os episódios de defeção dos partidários almorávidas. Outro exemplo é o da égua de Tashfin, que o cronista dizia ser uma burra,31 algo pouco provável no caso de um guerreiro experiente. Esta contrainformação, embutida no texto a par de onomástica e toponímia rigorosa, certamente destinada a transmitir uma sensação de fiabilidade, torna o produto final algo perigoso do ponto de vista interpretativo. A arte do insulto e do desprezo contra o inimigo, que François Clément analisa no contexto da correspondência almóada, é algo que al-Baydaq domina.32 Ibn Khaldun, por sua vez, fornece pouca informação sobre os últimos dias de Tashfin e revela incoerências na sequência dos eventos.33 O mais seguro é seguir o al-Bayan al-Mugrib, de Ibn Idari. Embora especialmente confuso a relatar estes eventos, assemelhando-se a uma colagem de notícias provenientes de várias fontes, nem sempre ordenadas segundo uma sequência cronológica, não é difícil detetar o fio da meada com um pouco de atenção e triagem. Os acontecimentos que levaram à morte de

29 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 289-290. 30 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 156-157. 31 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 159. 32 Clément 2005, 226-229. 33 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:175-178. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 467

Tashfin e fizeram desmoronar o Império Almorávida arrancaram no ano de 538 (16 de julho de 1143 a 4 de julho de 1144).34 Logo após a morte de Ali b. Yusuf, os almóadas dividiram os seus exércitos por três pontos estratégicos: um contingente nas montanhas junto a Taza, cidade que fazia a separação entre o Magrebe extremo e central, mas também entre o Rife e as montanhas do Atlas, dando acesso a Mequinez e Fez;35 outro nas montanhas do Rife, próximo de Tânger e Ceuta; e outro nas montanhas de Tlemcen, pronto para atacar as possessões almorávidas nos territórios que hoje pertencem à Argélia, incluindo Orão.36 Pressentindo o perigo, o governador almorávida de Tlemcen saiu com o seu exército para combater o destacamento almóada na região, mas foi derrotado e morto, e Tashfin nomeou para a cidade Abu Bakr b. Mazdali, filho do ex-governador de Granada, desaparecido na guerra de fronteira em 1115.37 No entanto, a presença almóada no território que hoje corresponde à Argélia começava a fazer subir a temperatura nos termómetros, e um dos ramos dos zanatas – os Banu Wamamu – foi pressionado para reconhecer Abd al-Mumin, o que indispôs o emir Tashfin, que decidiu castigá-los.38 O califa, em pessoa, dirigiu-se à região de Tlemcen na companhia de milhares de soldados, para proteger os novos aliados,39 raziando tudo à sua passagem; seguiu pelas montanhas, onde tinha grande abastecimento de víveres.40 Com certeza, pretendia provocar o confronto com Tashfin, o que terá acontecido em diversas ocasiões,41 e montou acampamento na região de Tlemcen.42 Tashfin escreveu então às várias partes do território e aos seus aliados, a pedir auxílio: chegou um exército de Sijilmassa, outro do al-Andalus, em que vinha integrado o seu jovem filho Ibrahim, enviado no ano anterior para Córdova com o objetivo de estudar, e outro de Bugia, que lhe mandaram os

34 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 236. 35 Marçais 1913-1936, 4:709-710. 36 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 253. 37 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 253-254; Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 255; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:176. 38 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 254-255. 39 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 257. 40 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 247-248. 41 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 236. 42 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 249. 468 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

príncipes hamádidas.43 Sabemos que o governador de Sevilha, Anegemar, se manteve no cargo até junho de 1144, que foi substituído no mês seguinte por Abu Bakr b. Mazdali44 e que entretanto aparece referenciado como governador de Tlemcen,45 o que implica várias conclusões. Desde logo, temos de concluir que Anegemar trocou Sevilha por Tlemcen com Ibn Mazdali e que terá escoltado ao Magrebe o príncipe Ibrahim – seria este o tal “suo consuprino et nepote regis Hali” que, por exemplo, os Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis mencionam como “Homar Atagor” e que estaria na companhia do rei Esmar ao tempo da “Batalha de Ourique”?46 Se, por um lado, Ibrahim era, de facto, sobrinho de Anegemar e neto do emir Ali b. Yusuf, e as fontes muçulmanas indicam ter estado à guarda do governador de Sevilha, a onomástica é demasiado distante para uma identificação segura. Ainda a propósito do verão de 1144, embora aparentemente haja só um reposicionamento de forças, com a troca de governadores, a verdade é que se percebe que correspondeu a mais uma fase de desmilitarização do al-Andalus. O objetivo principal do poder almorávida era controlar o movimento de Abd al-Mumin no Magrebe, que, no mês de Muharram de 539 (4 de julho a 2 de agosto de 1144), iniciou o cerco à cidade de Tlemcen.47 Tashfin conseguiu reunir um número considerável de tropas, mas o plano não correu como pretendido. O cristão Reverter saiu da cidade para dar combate aos almóadas junto ao rio que passa por Tlemcen, mas foi derrotado e morto. A guerra intensificou-se e chegou o exército dos vizinhos hamádidas de Bugia, que foi derrotado, e o seu líder converteu-se secretamente ao movimento almóada,48 indivíduo que Ibn Khaldun diz ter sido morto.49 O emir Tashfin conseguiu fugir de Tlemcen, com a intenção de escapar para o al-Andalus, mas foi perseguido pelas forças almóadas e teve de aquartelar-se num ribat em Orão, cidade de onde deveria partir rumo a Almeria nas galeras de Muhammad b. Maymun. Nada sucedeu como planeado: os almóadas cercaram a fortificação

43 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 258. 44 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 243-244. 45 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 253. 46 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 153. 47 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 251-252. 48 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 237-238 e 251-252. 49 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:85. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 469 onde o emir se refugiou, e este ficou retido por vários meses.50 O alcaide-do-mar esperou-o no porto durante um mês com dez galeras, que deveriam levá-lo em segurança para o al-Andalus.51 O emir ainda conseguiu escapar ao bloqueio e deixar a fortificação durante a noite, mas, ao cavalgar para a praia, caiu num precipício e foi ao encontro da morte. De manhã, encontrado o corpo pelos almóadas, foi decapitado e a cabeça enviada como prova para Tinmal. No ninho de águias almóada, já se encontrava a cabeça de Reverter.52 Estávamos a três dias do fim do Ramadão, ou seja, a 23 de março de 1145. Quanto aos companheiros de Tashfin, sabemos que Ibn Mazdali e Anegemar se encontravam no ribat de Orão. O primeiro também conseguiu escapar ao cerco, embora Ibn Idari afirme que, no meio da devastação e do caos provocados pelo exército almóada, tenha enlouquecido e morrido, para mais à frente afirmar que, entre os poucos sobreviventes, se encontravam os filhos de Mazdali.53 Não sabemos, portanto, que final teve esta personagem, que Ibn Idari indica como o último senhor lamtuna de Sevilha. Da lista de governadores, consta a data de início no cargo – julho de 1144 –, mas não o seu fim. Desconhece-se, assim, em que momento saiu do al-Andalus para reforçar os contingentes almorávidas no Magrebe, mas terá sido algures entre o verão de 1144 e março de 1145, data do desastre em Orão. É ainda de supor que na passagem ao Magrebe tenha levado consigo mais tropas e equipamentos de guerra, acentuando a desmilitarização. Já Anegemar, percebendo que tudo estava perdido, fugiu para o deserto e algum tempo depois apresentou-se a Abd al-Mumin. Os companheiros de Tashfin foram mortos em grande número, mas um grupo conseguiu fugir,54 entre os quais um cristão de nome Bashir, que alcançou as galeras de Ibn Maymun.55 A frota de Almeria, e mais concretamente Muhammad b. Maymun, que nunca terá abandonado o poder almorávida,56

50 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963; al-Zarkashi [1364-1392?] 1895, 8-9. 51 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 238; Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:85. 52 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 238-239 e 259. 53 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 261-262. 54 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 239. 55 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 262. 56 Lourinho 2010, 37-41. 470 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

constituiu, segundo os indícios nas fontes, um apoio na guerra contra os almóadas. Embora pudesse encontrar-se desgastada com esta participação, ainda deveria ser uma potência dos mares para, no verão de 1147, quando Marraquexe já tinha caído, ser percecionada como um adversário a abater pelo consórcio genovês, pisano, aragonês e castelhano-leonês. É provável que a frota almorávida, juntamente com o governo das ilhas Baleares, tenham sido mesmo os últimos vestígios do império fundado por Abd Allah b. Yasin. Num contexto de caos e de penúria financeira, talvez faça mais sentido a permanência da frota de Sevilha no Oriente, a qual, a manter ligações aos seus senhores, poderia constituir uma fonte de rendimentos para os depauperados cofres de Marraquexe. A morte de Tashfin não é apenas relatada nas fontes muçulmanas. A Chronica Adefonsi Imperatoris explica que o emir almorávida se encontrou numa dura batalha com Abd al-Mumin, que durou vários dias, e, finda a qual, teve de fugir, aquartelando-se num castelo a que os almóadas deitaram fogo. “A torre foi incendiada e o rei Tashfin morreu nas chamas”, alega a fonte cristã, acrescentando que, logo depois, o califa tomou tantos castelos quantos lhe foi possível e espalhou massacres pelo território: “Todos os que resistiam a Abd al-Mumin eram capturados e queimados vivos com as suas mulheres e crianças.”57 Após o desaparecimento de Tashfin, os almóadas sujeitaram a população de Orão à sede, cortando-lhe o abastecimento de água, estratagema que levou à morte grande número de habitantes. Quando o Ramadão terminou, os partidários de Abd al-Mumin entraram na cidade, que incendiaram, e mataram e castigaram cruelmente os seus habitantes.58 Ao tomarem conhecimento da morte do emir e da chacina em Orão, os lamtunas de Tlemcen abandonaram a cidade e refugiaram-se em Fez. A população que não conseguiu fugir pediu perdão a Abd al-Mumin, mas foi massacrada.59 O califa almóada ganhava, assim, os territórios que integram a atual Argélia e eliminava o seu maior adversário militar: Tashfin b. Ali. Em Marraquexe, contrariando a decisão do falecido emir,

57 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:198-189. 58 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 263-265. 59 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 265-267. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 471 que havia indicado o seu filho Ibrahim como herdeiro, ainda foi proclamado o príncipe Ishaq. No entanto, a vida do império – e de Ishaq – estava por um fio.60 Abd al-Mumin seguia agora para Fez.61

Desmilitarização do al-Andalus: fossados cristãos e consolidação da fronteira

A conjuntura do Magrebe teve grande impacto no al-Andalus. A tentativa de segurar o território norte-africano traduziu-se num desinvestimento, senão abandono, da região europeia do império à sua sorte, situação que começou em 1138, com a saída do príncipe Tashfin, e se agudizou em 1144, por alturas do cerco almóada a Tlemcen. No entanto, temos de notar que, já desde os anos de 1120, quando começaram a sofrer ataques dos almóadas e, no al-Andalus, foram vítimas da grande campanha militar de Afonso de Aragão, os almorávidas sentiam grande dificuldade em mobilizar tropas para acorrerem a todos os conflitos. Talvez por isso, o emir Ali b. Yusuf tenha consultado os doutores de leis para averiguar se o dever da peregrinação, que impende sobre todos os muçulmanos, poderia ser convertido em jihad pessoal no contexto do al-Andalus, uma forma de aumentar os contingentes, mas à custa de população não treinada, que acabava muitas vezes massacrada.62 Várias fatawa recolhidas por al-Wansharisi dão conta de como os doutores de leis maliquitas, que ajudaram Yusuf b. Tashfin a impor-se no al-Andalus em finais do século XI, contribuíam agora para que o seu filho, Ali, se mantivesse à tona do poder. Em última instância, lutavam pela sua própria sobrevivência, e Ibn Rushd, na sua posição de cádi de Córdova, terá sido dos mais empenhados nesta missão, sobretudo após a instabilidade suscitada pelos moçárabes associados ao rei de Aragão, que fez perigar o domínio almorávida no al-Andalus e obrigou à deportação dos cristãos para o Magrebe. Em 1126, no rescaldo da transferência forçada das

60 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 239. 61 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 268. 62 Lagardère 1998, 173-181. 472 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

comunidades cristãs para o território magrebino, o avô de Averróis declarou: “Na nossa época, já não há obrigação para as gentes do al-Andalus cumprirem a peregrinação, pois já não existe possibilidade de fazê-la, ou seja, de chegar ao fim sem arriscar a vida e os bens.” Como desaparecia a obrigação, persistir na prática da peregrinação constituía um ato reprovável devido aos perigos: a guerra santa, cujos benefícios eram incontáveis, tornava-se, por isso, mais meritória.63 Este raciocínio aparentemente desprovido de lógica, na medida em que as populações sem treino militar eram com frequência massacradas e, por isso, o perigo da guerra santa não seria inferior ao da peregrinação, encontrava, no entanto, sentido aos olhos de muitos interessados. Perdão automático de todas as faltas desde o derramamento da primeira gota de sangue, entrada direta no paraíso e cabeça cingida com a coroa da dignidade estavam entre os benefícios que Deus atribuía aos mártires.64 Os soberanos cristãos souberam tirar partido desta conjuntura de caos. Se praticamente durante toda a década de 1130 Afonso VII se debateu com instabilidade interna, o que o impediu de uma intervenção mais assertiva no al-Andalus, com a passagem de Tashfin ao Magrebe, congregou a sua capacidade militar para atacar as terras muçulmanas. D. Afonso Henriques percebeu o maior empenho do primo imperador e, de forma habilidosa, também tomou a sua quota de glória na guerra contra o islão. Analisemos, pois, a conjuntura entre 1138, ano marcado pelo abandono de Tashfin do al-Andalus, mas também pela morte, em janeiro, de Anacleto II e, assim, pelo fim do cisma, e 1143, quando o desaparecimento do emir de Marraquexe, Ali b. Yusuf, catalisou revoltas por todo o território almorávida. Sabemos, pela Chronica Adefonsi Imperatoris, que, no mês de maio de 1138, Afonso VII atacou a região de Jaén com tropas de Toledo e da Estremadura, ao mesmo tempo que outro contingente desta última região, parte da qual provavelmente com pouco treino militar, atravessou o rio Guadalquivir, quem sabe na esperança de um saque fácil, e seguiu também para sul sem autorização

63 Al-Wansharisi [1450-1508?] 1995, 63 e 65. 64 Penelas 2004, 454-455. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 473 do imperador.65 O território visado por Afonso VII localizava-se no coração do al-Andalus, a fonte cristã não refere confrontos com Tashfin b. Ali e fica claro que os cristãos estavam animados e com vontade de atacar – estes três factos deverão constituir prova de que o príncipe almorávida havia deixado o território pouco tempo antes. Em julho do mesmo ano, o imperador reuniu de novo as tropas de Toledo e Salamanca e marchou para Coria com intenção de capturar o castelo. Já nas imediações da cidade, escreveu a ordenar que todos os soldados de infantaria e cavalaria da Estremadura e de Leão auxiliassem no cerco, sob pena de as suas casas serem expropriadas. Mas acabou por desistir da operação e regressar a terras cristãs.66 A documentação que chegou até aos nossos dias não nos dá grandes informações sobre as atividades de D. Afonso Henriques neste ano de 1138, cujo evento mais relevante, no caso do Condado Portucalense, terá sido a morte do arcebispo de Braga, Paio Mendes, e a eleição de D. João Peculiar em sua substituição, decisão que envolveu grandes conflitos entre os membros da igreja, de acordo com a Vita Tellonis.67 Por certo, D. Afonso Henriques ter-se-á empenhado nesta eleição, que fazia subir ao mais alto cargo eclesiástico portucalense um homem da sua confiança. Como explica José Mattoso, D. João Peculiar, que depressa tomou posse e em janeiro de 1139 já se encontrava em Braga, tinha da sua função uma visão política, procurando exercer direitos sobre todas as dioceses portucalenses sem sujeitar-se a poderes eclesiásticos estrangeiros.68 Possivelmente, esta eleição atraiu a atenção do príncipe para norte, tanto que apenas em dezembro de 1138 surge, entre a documentação disponível, um ato jurídico relacionado com a região de fronteira com os muçulmanos: a confirmação da posse da Igreja de São Romão de Seia ao Mosteiro de Santa Cruz e a respetiva carta de couto.69 Os diplomas da diocese, coligidos no Livro Preto, primam pelo silêncio quanto a D. Afonso Henriques. Nenhum dos que sobreviveram até aos nossos dias se refere a atos do príncipe

65 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:131-134. 66 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:135-139. 67 Pedro Alfarde [1150-1190?] 1998, 79. 68 Mattoso 2007, 186. 69 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 120-121. 474 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

portucalense. Paio Mendes faleceu em outubro, mas poderia já estar doente, o que levaria a que as forças políticas interessadas começassem a mover-se muito tempo antes do óbito. A Chronica Adefonsi Imperatoris diz que, alguns anos depois da saída de Tashfin do al-Andalus, os reis de Córdova, Azuel, e de Sevilha, Abenceta, mobilizaram um grande exército e capturaram o Castelo de Mora, na região de Toledo.70 Sabemos, por via de Ibn al-Qattan, que esta operação ocorreu em 1139 e teve como impulsionador o governador de Córdova, al-Zubayr b. Umar, o “rei Azuel” da fonte cristã. Mas o historiador de Marraquexe não refere a presença do governador de Sevilha, que, à data, era Abu Zakariyya Yahia b. Ishaq al-Massufi, o rei Esmar das crónicas portucalenses. Na verdade, limita-se a informar, de modo lacónico: “Entre elas [as notícias relativas ao ano de 1139], encontra-se a razia de al-Zubayr b. Umar, que conquistou o Castelo de Mora.”71 Se não existem dúvidas quanto à identidade de “Azuel”, também referido na fonte como “Azover”, o mesmo não poderá dizer-se de “Abenceta”. Tratar-se-ia de Anegemar, já que a Chronica Adefonsi Imperatoris diz que Abenceta é “conhecido como o mais valente de todos os inimigos,”72 e esta corruptela corresponderia a Ibn Ishaq? Foneticamente, a distância é grande. Porém, as alternativas não são muitas. Nesta cronologia, al-Zubayr era governador de Córdova, mas, tal como indica Ibn al-Khatib, tinha igualmente Granada a seu cargo,73 e Yahia b. Ghaniyya, que usava a kuniyya de Abu Zakariyya, encontrava-se à frente de Valência e Múrcia.74 Ou seja, os governadores das principais cidades do al-Andalus ostentavam nomes ainda mais afastados de “Abenceta” no plano fonético do que Ibn Ishaq. Mais: Ibn Ghaniyya é mencionado na Chronica Adefonsi Imperatoris como “Abengania”.75 Estaremos a falar então do governador de uma pequena cidade ou de outro chefe militar, que foi à guerra com al-Zubayr? Mas, nesse caso, não faz grande sentido que a Chronica Adefonsi Imperatoris o refira como “o mais valente de todos os inimigos”.

70 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:141-142. 71 Ibn al-Qattan al-Marrakushi [1248-1266?] 1990, 266. 72 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:165. 73 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 2009, 1:268-269. 74 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 218. 75 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:175. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 475

Além disso, teríamos de admitir que comete um erro ao indicar que se tratava do governador de Sevilha, uma informação que avança em diversas passagens. Argumento adicional: a fonte refere que, na preparação para um ataque ao al-Andalus, o governador de Toledo, Mónio Afonso, terá incitado os seus guerreiros com as palavras “se Abenceta for derrotado ou morto, todos serão derrotados”.76 Mesmo que este discurso nunca tenha ocorrido, é evidente a noção que os cristãos tinham da importância de “Abenceta”, relevância que o convertia num alvo preferencial. Ou seja, para a cronologia em análise e para o perfil descrito na fonte – governador de Sevilha e com provas dadas na guerra –, só existe a possibilidade de Yahia b. Ishaq, ainda que foneticamente distante de “Abenceta”. A Chronica Adefonsi Imperatoris alega que “Azuel” e “Abenceta” morreram num combate contra Mónio Afonso em Montiel e foram decapitados, evento que os Anales Toledanos dizem ter-se passado junto ao rio Douro e indicam ter ocorrido em janeiro de 1143.77 Se aceitarmos que “Abenceta” correspondia mesmo ao governador de Sevilha, a informação estará apenas parcialmente correta. É certo que al-Zubayr b. Umar foi substituído por Yahia b. Ghaniyya no governo de Córdova em 1143,78 o mesmo que iria, poucos anos depois, lidar com as rebeliões suscitadas por Ahmad b. Qasi, mas Ibn Ishaq – o governador de Sevilha – passou ao Magrebe em junho de 1144, ficou com o emir almorávida, Tashfin, até praticamente ao fim dos seus dias, após o que prestou homenagem ao califa almóada em 1145, durante o cerco a Fez, e participou nas campanhas para controlar os rebeldes de Salé, em 1147. Não morreu em 1143, mas desapareceu do al-Andalus no ano seguinte. Se “Abenceta” corresponder a Ibn Ishaq, talvez as fontes cristãs se tenham entusiasmado com a eliminação de um governador muçulmano – o de Córdova – e tenham acrescentado alguns pontos à história do sucesso, até porque, com a saída do governador de Sevilha do al-Andalus não muito depois, talvez poucos se apercebessem da falsidade da notícia. A propaganda do imperador saía reforçada com uma grande vitória contra os mais bravos dos guerreiros muçulmanos.

76 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:165. 77 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:346. 78 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:162 e 175; Bel 1903, 18-19. 476 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Até lá, os governadores de Sevilha e Córdova ainda trariam grandes dificuldades ao poder cristão. A conquista do Castelo de Mora ocorreu a contraciclo, quando os cristãos estavam certos da fragilidade muçulmana e pareciam descurar as suas obrigações defensivas. A Chronica Adefonsi Imperatoris não poupa críticas a Mónio Afonso, que deveria ter assegurado a proteção de Mora, dotando o castelo de mantimentos que permitissem sobreviver a um cerco. A fonte acrescenta que as forças almorávidas raziaram a região de Toledo, mas não se demoraram muito, porque temiam um contra-ataque dos cavaleiros de Ávila, de Segóvia e da Estremadura (provavelmente, de Salamanca),79 que surgem, assim, como pontos-chave na estratégia defensiva cristã. A resposta do imperador à queda de Mora foi a construção do Castelo de Penha Negra, em frente à fortaleza perdida, e a ordem para ataques diários ao inimigo.80 Afonso VII mostrava um fulgor renovado na luta contra os muçulmanos, que atingiria um ponto alto com o ataque ao Castelo de Oreja, como já vimos, aproveitado por D. Afonso Henriques para um fossado ao al-Andalus que visava forçar o seu reconhecimento como rei. Segundo a Chronica Adefonsi Imperatoris, dois anos e meio depois de capturar Oreja, Afonso VII direcionou as suas atenções de novo para Coria, não registando nenhuma operação militar no intervalo. Ao que tudo indica, D. Afonso Henriques também não voltou a visar terras muçulmanas. O ano de 1140 foi, uma vez mais, marcado pela sua ausência da fronteira sul. Aliás, o primeiro documento seguro em que se intitula rei, com data de abril, coloca-o no norte, pois atribuiu carta de couto ao Mosteiro de Vila Nova de Muía, em Ponte da Barca.81 Se tivermos em conta o conflito de Valdevez, entre D. Afonso Henriques e Afonso VII, que a historiografia atribui aos primeiros meses de 1141,82 provavelmente o soberano portucalense já se encontraria na fronteira norte desde o ano anterior, provando que o acordo firmado em Tui, em 1137, terá sido uma opção conjuntural, que não seria para levar a sério. Uma vez mais, D. Afonso Henriques pretendia tomar como vassalos nobres da região de Límia

79 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:141-142. 80 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:143. 81 Azevedo 1958, 214-215. 82 Mattoso 2007, 191. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 477 e Toronho, e Afonso VII foi obrigado a deslocar-se com o seu exército para tentar controlar a situação.83 O episódio é relatado pela Chronica Adefonsi Imperatoris e pelos Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis, com versões não coincidentes, destinadas às respetivas propagandas internas.84 De acordo com a primeira fonte, os cavaleiros de D. Afonso Henriques aconselharam-no a fazer as pazes com o imperador, o que este terá aceitado de bom grado. Já a segunda alega que, num torneio, as forças portucalenses aprisionaram alguns cavaleiros da fação oposta e que foram estes que pediram a Afonso VII para entrar em acordo com D. Afonso Henriques, servindo D. João Peculiar como intermediário nas negociações. Os castelos que cada parte tomou à oponente foram devolvidos, e o imperador afastou os condes de Límia e Toronho dos seus territórios. Qualquer que seja a versão, pouco interessa para a evolução da fronteira do Gharb al-Andalus. O que verdadeiramente importa é a ausência de Afonso VII e D. Afonso Henriques da luta contra os muçulmanos durante 1140 e boa parte de 1141. É natural que os territórios cristãos tenham sofrido ataques nesta cronologia, mas a verdade é que se verificou um desinteresse das principais fontes muçulmanas pelos acontecimentos do al-Andalus no período que mediou a saída do príncipe Tashfin do território, em 1138, e as rebeliões provocadas por Ibn Qasi, a partir de 1144. Ou talvez os almorávidas já não reunissem grande capacidade militar para intervir. Nestes dois anos em que D. Afonso Henriques teve menos presença na fronteira, nem por isso o trabalho de consolidação foi interrompido. Em fevereiro de 1140, o judeu Zacarias trocou com Santa Cruz uma vinha no arrabalde de Coimbra por outra com uma parte de lagar, em Coselhas. A confirmar o ato jurídico, surgem personagens com onomástica própria da fronteira: Zagi, Juzefe e Zoleima.85 Em maio, foi a vez de a diocese se interessar por uma almuinha junto aos banhos de Coimbra, que comprou a Pedro Domingos e à sua mulher, de nome Maria, por seis morabitinos.86 Em janeiro de 1141, a mesma diocese

83 Mattoso 2007, 193. 84 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 1:82-7; Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 154. 85 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 304. 86 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Maço 4, no. 39. 478 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

entregou uma propriedade em São Martinho do Bispo, na margem sul do Mondego, para que fosse cultivada com vinha. Uma das condições impostas consistia na obrigação de voltar a plantar a mesma cultura se as hostes dos muçulmanos a destruíssem numa eventual razia.87 Prosseguiu, assim, o esforço da diocese para que a terra passasse a produzir rendimentos. Ainda em janeiro, esta instituição atribuiu ao prior João uma propriedade, também na margem sul do Mondego, para que a cultivasse.88 Em fevereiro, D. Afonso Henriques doou a herdade de Alvorge e a dízima dos rendimentos da Ladeia a Santa Cruz.89 O cavaleiro de Coimbra Paio Guterres iria no mês de maio trocar a herdade de Almaça, Mortágua, que lhe tinha sido dada por D. Afonso Henriques, por outra em Terroso, para lá do Douro. O documento foi confirmado por aquele que já se dizia rei de Portugal.90 Santa Cruz ganhava posição no eixo Coimbra-Viseu e um cavaleiro do rei adquiria uma propriedade no norte portucalense. A presença de Santa Cruz em Coimbra iria sair reforçada em julho, com a compra de uma propriedade nos campos do Mondego91 e, em agosto, com o recebimento por doação de uma herdade em Seia.92 O ano de 1142, muito atribulado, viu D. Afonso Henriques regressar à fronteira com fôlego redobrado. Deu foral a Leiria em mês desconhecido, documento que concedia privilégios aos guerreiros, especificados como cavaleiros e peões, os quais, se conseguissem lucros na “terra dos sarracenos”, deveriam entregar um quinto ao soberano. Os cavaleiros que perdessem o cavalo na guerra manteriam o estatuto, mesmo que não conseguissem repor o animal. Mas, se o perdessem de outra forma, teriam dois anos para fazerem a substituição, sob pena de deixarem de ser cavaleiros. O peão que fosse proprietário de um cavalo teria liberdade para ascender a cavaleiro, se assim o desejasse. Todos estavam sujeitos à obrigação de se mobilizarem para a guerra em caso de necessidade e sujeitavam-se a compensar o rei em caso de recusa: o cavaleiro pagava em vinho, os restantes elementos da sociedade poderiam também fazê-lo com a entrega

87 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 289-290. 88 ANTT, Cabido da Sé de Coimbra. Maço 4, no. 38. 89 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 122-123. 90 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 317. 91 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 289. 92 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 219. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 479 de animais. Esta era claramente uma região de fronteira, direcionada para a guerra, mas outras prescrições no foral mostravam que a situação tinha evoluído. Por exemplo, eram concedidas algumas isenções de impostos para mercadores e aplicados impostos a todas as atividades económicas: coelheiros, meleiros, pescadores, entre outros, entregavam parte dos seus rendimentos, sinal de que a sociedade de Leiria começava a apresentar indícios de urbanização.93 Já em abril de 1142, D. Afonso Henriques doou a Rodrigo Pais, à época alcaide de Coimbra e que casaria com Urraca Rabaldes, irmã do bispo do Porto, Pedro Rabaldes, propriedades em Assamassa, Requeixada, Sujeira, Coselhas e Alcabideque.94 Ainda no mesmo ano, de acordo com as fontes portucalenses, D. Afonso Henriques mandou edificar o Castelo de Germanelo, bem no coração da Ladeia, entre Soure e Penela e, no sentido longitudinal, a meio caminho entre Alfafar e Alvorge.95 Alegam os textos que os ataques muçulmanos persistiam e que o autoproclamado rei de Portugal procurava fechar o acesso a Coimbra: recordemos que, em 1141, a diocese cedeu um terreno para cultivo de vinha com a condição de esta ser reposta em caso de destruição por parte das hostes muçulmanas, prova de que a ameaça continuava presente, até porque as forças inimigas também poderiam atacar por mar e entrar no Mondego. Mas temos de pensar ainda em todo o esforço de povoamento do território da Ladeia, com a presença dos monges de Santa Cruz desde o ano anterior, que esperavam retirar rendimentos destas terras. Seria necessário proteger todo um investimento, tanto humano como económico, e nada mais adequado do que a concessão de foral, cuja data é desconhecida, mas que há de andar por volta de 1143 ou 1144. Os cavaleiros que nestas terras quisessem viver mantinham os seus direitos e propriedades e, no caso de a população ir ao fossado, deveria entregar a quinta parte dos rendimentos do saque ao soberano. A necessidade de fixar gentes à terra levava D. Afonso Henriques a prometer benefícios para os habitantes das regiões do Douro que aqui pretendessem instalar-se, assim como perdão para os homicidas.96

93 Azevedo 1958, 233-235. 94 ANTT, Sé de Coimbra, m. 2, doc. 104. 95 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 155; Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 14. 96 Azevedo 1958, 235-236. 480 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Por sua vez, Afonso VII, já liberto dos problemas causados pelo primo no sul da Galiza, preparou as máquinas de guerra e, igualmente em 1142, foi contra Coria, que, sem auxílio de Sevilha, Córdova ou de tropas provenientes do Magrebe, acabou por capitular. “Como o rei Tashfin e os outros governantes não podiam auxiliá-los, ordenaram-lhes que se rendessem para salvarem as suas vidas.”97 Foi ainda em 1142 que D. Afonso Henriques tentou a conquista de Lisboa, episódio contado pelos Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis e brevemente referido na crónica De Expugnatione Lyxbonensi. A primeira fonte diz que vieram 70 navios das partes da Gália, com soldados que pretendiam fazer a guerra no Oriente, os quais entraram no rio Douro. D. Afonso Henriques, ao saber da notícia, convenceu-os a colaborarem num cerco a Lisboa: os cruzados seguiriam por mar e as forças portucalenses por terra. Negociado o plano, os exércitos aliados atacaram os arrabaldes, destruíram vinhas e habitações, mas não conseguiram conquistar esta cidade muito populosa e rica.98 Não deixa de ser estranha a alusão a um ataque combinado por terra e mar, se tivermos em conta que, em 1139, o mais provável é D. Afonso Henriques ter evitado o sistema defensivo de Santarém quando devastou o al-Andalus. Ter-se-ia rapidamente degradado? As tropas portucalenses voltaram a contornar Santarém, optando por um longo caminho, ou seguiram por mar com os cruzados? E, no último caso, como regressaram ao território cristão, já que estes pretendiam seguir para a Terra Santa? Ou será que não pretendiam viajar para o Oriente e terão sido angariados especificamente para esta operação? Já a segunda fonte alude aos ingleses que, “cinco anos antes, ali tinham estado para pôr cerco à cidade de Lisboa”.99 Por outro lado, quando o cruzado que participou na conquista de Lisboa, em 1147, relata a resposta dos habitantes da cidade nas negociações, é atribuída a seguinte interrogação a um ancião muçulmano: “Quantas vezes é já da nossa memória que viestes com peregrinos e estranhos para nos expulsar daqui?”100 Esta passagem pode referir-se a 1142 ou a outros eventuais ataques, já que sabemos que, por volta de 1144, as cidades

97 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:159-160. 98 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 155. 99 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 85. 100 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 97. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 481 de Lisboa e Santarém começaram a pagar parias a D. Afonso Henriques para evitarem a depredação.101 Tal como em 1139, D. Afonso Henriques aproveitava o envolvimento de Afonso VII numa operação militar para atacar as terras muçulmanas. Talvez tenhamos de ver aqui um padrão, pois, em 1147, quando da conquista de Lisboa, o imperador encontrava-se de novo em marcha para o al-Andalus para cercar Almeria. Por outro lado, também se há de reconhecer um modus operandi quanto às sucessivas conjunturas do Magrebe e aos ataques almóadas. O ano de 1139 marca o início dos confrontos entre Abd al-Mumin e Tashfin b. Ali, que, ao sair do al-Andalus, abriu uma oportunidade para Afonso VII atacar Oreja e para D. Afonso Henriques, sabendo que tanto cristãos como muçulmanos estariam envolvidos na guerra, organizar o fossado que ficou conhecido como “Batalha de Ourique”. Se é certo que, em 1140 e 1141, Afonso VII e D. Afonso Henriques estiveram mais afastados da fronteira com os muçulmanos, os ataques que ambos desferiram em 1142 não podem ser apenas explicados por uma maior disponibilidade e pela progressiva desmilitarização do al-Andalus. Os feitos dos governadores de Sevilha e Córdova – e porventura uma elevada capacidade militar – são suficientemente destacados na Chronica Adefonsi Imperatoris, mas estes nada fizeram para auxiliar Coria, aconselhando os habitantes a renderem-se para salvarem as vidas, ou seja, desistiram daquela praça. Quanto a Lisboa, em 1142, a sua capacidade defensiva parece ter sido suficiente para evitar a conquista cristã, talvez sem necessidade de apoio externo. Aliás, a operação de 1142 assemelha-se muito à que o viking Sigurd organizou em 1109: as forças de D. Afonso Henriques, auxiliadas por estrangeiros, conseguiram controlar os arrabaldes, mas não entraram na cidade. É de supor, no entanto, que o rei tenha adquirido conhecimento sobre as condições no terreno. As fontes muçulmanas não nos dão grandes informações sobre os anos imediatamente anteriores à morte do emir Ali b. Yusuf, em janeiro de 1143. Mas, se cruzarmos uma breve passagem de Ibn Idari com a narrativa de al-Baydaq, percebemos que, no ano de 536 (6 de agosto de 1141 a 26 de julho

101 Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 156. 482 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de 1142), os almóadas iniciaram uma grande campanha que visou a região do Rife, em terras dos gomaras, ou seja, Tetuão.102 Esta operação, que não foi bem- ‑sucedida, ocorreu, assim, antes do ataque a Tlemcen e a Orão, o que significa que, tal como Yusuf b. Tashfin cerca de 50 anos antes, Abd al-Mumin visou primeiro a passagem do estreito de Gibraltar, mas, falhando os seus objetivos, foi obrigado a optar pela região da atual Argélia e pelas praças ao longo da tal estrada, entre Salé e Argel, o que lhe permitia isolar o território da antiga província romana da Mauritânia Tingitana. A história como que se repetia. Cinco meses do ano da Hégira de 635 caem em 1141 e os restantes sete em 1142, pelo que pode surgir a dúvida quanto ao ano do calendário cristão em que tal operação, de facto, ocorreu. No entanto, al-Baydaq diz que a longa campanha começou no dia 5 do mês de Muharram de 536, o que corresponde a 10 de agosto de 1141.103 Não é fácil recuperar o percurso desta operação, uma vez que al-Baydaq, a fonte que lhe dedica mais atenção, se refere frequentemente a montanhas e não a topónimos conhecidos e seguros. Mas, em termos mais genéricos, sabemos que, no momento em que se iniciou, um exército almóada atacou Sefrou, pequena localidade nas proximidades de Fez, cidade onde Tashfin se encontrava. Este enviou um destacamento liderado por Reverter para lhe dar combate, e o caudilho cristão conseguiu derrotar os inimigos e matar o seu líder, que acabou decapitado, tendo a respetiva cabeça sido enviada para Fez. O grosso das tropas almóadas marchou, entretanto, para uma região entre Fez e Taza, tendo sido seguido por Tashfin. Foi neste lugar que ambos os exércitos foram surpreendidos por uma chuva torrencial que se prolongou por muitos dias e encheu os cursos de água, como o rio Fez, que arrastou consigo uma das portas da cidade. Al-Baydaq diz ainda que o mau tempo levou a que o mar destruísse toda a parte baixa de Tânger e inundasse o istmo de Melilha, cortando-lhe o acesso ao continente. Estas intempéries obrigaram os exércitos a mudar de acampamento. Os almóadas dirigiram-se à parte sul das terras dos gomaras, no Rife, tribo que tinha aderido ao movimento. Tashfin e Reverter mantiveram a perseguição em exércitos separados e acamparam numa localidade

102 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 227; al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 146-151. 103 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 146-147. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 483 junto ao rio Warga (Ouergha), que marca a fronteira sul do Rife. Reverter foi ao encontro dos almóadas com um destacamento, que lhes deu violento combate durante dois dias, com muitas mortes de parte a parte, e regressou ao acampamento. Os almóadas tomaram depois o caminho do noroeste, com Reverter e Tashfin no seu encalce, chegando à região de Alcácer Quibir, onde permaneceram umas duas semanas. Em seguida, começaram a subir para Tetuão, cidade onde Reverter se instalou. Neste momento, os almorávidas contaram com o auxílio da esquadra de Muhammad b. Maymun. A partir daqui, percebemos nas entrelinhas da narrativa de al-Baydaq que os almóadas retiraram, até porque, segundo afirma, Tashfin e Reverter tomaram a estrada de Fez, também eles deixando a cidade de Tetuão. Al-Baydaq, que prefere dar destaque à submissão de mais uma mão-cheia de tribos na retirada, não conta o que se passou em Tetuão, mas podemos intuir, pela presença da esquadra de Almeria, habituada à guerra e ao transporte de tropas para combate em terra, que a situação terá sido grave. Os almóadas terão tentado conquistar a cidade, mas a operação não lhes terá corrido de feição. Se estavam adaptados à guerra em terra firme, a batalha com o auxílio de meios navais não seria o seu elemento. Quem sabe se por isso, a grande cidade que atacaram de seguida foi Tlemcen, sem acesso ao mar, o que ocorreu no ano de 1144. Atendendo a que a campanha militar que visou Tetuão começou no princípio de agosto de 1141 nas imediações de Fez, onde houve combates, e que os exércitos ainda deambularam durante algum tempo até serem surpreendidos por um mau tempo que, nas palavras de al-Baydaq, durou 50 dias, provavelmente, as chuvas terminaram no fim de outubro, quando as tropas prosseguiram a marcha até Alcácer Quibir e depois Tetuão. Fazendo as contas ao tempo de deslocação, aos dias de combate e à permanência em determinadas localidades, os almóadas, que, segundo al-Baydaq, foram submetendo tribos atrás de tribos pelo caminho, terão chegado à região de Tetuão já nos primeiros meses de 1142. Se adicionarmos mais algum tempo para mobilização de tropas do lado almorávida, teremos de concluir que uma tentativa de Abd al-Mumin para conquistar a cidade poderá ter ocorrido, pelo menos, na primavera de 1142, senão mais tarde, uma cronologia perfeitamente compatível com as operações de 484 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Afonso VII sobre Coria e de D. Afonso Henriques sobre Lisboa. Aliás, podemos ir um pouco mais longe no raciocínio e formular a hipótese de os almorávidas terem necessitado, uma vez mais, de tropas do al-Andalus para contrariar um mais do que certo cerco à cidade de Tetuão. Daí talvez o sentimento de impotência com que a Chronica Adefonsi Imperatoris caracteriza o poder almorávida face ao ataque a Coria, um dano colateral aceitável face à possibilidade de perda de Tetuão, a escassos 40 quilómetros a sul de Ceuta, a passagem do Magrebe para o al-Andalus. Quer isto dizer que Afonso VII beneficiou novamente da conjuntura do Magrebe para atacar o al-Andalus e que D. Afonso Henriques lhe seguiu os passos. A Chronica Adefonsi Imperatoris alega que, quando os almorávidas do al‑Andalus souberam da conquista de Coria, ficaram aterrorizados e abandonaram o Castelo de Albalate, junto ao Tejo, a nordeste de Toledo, que foi demolido pelos cavaleiros de Ávila e de Salamanca.104 De acordo com a mesma fonte, no ano seguinte, portanto, em 1143, o governador de Toledo, que agora era Mónio Afonso, reuniu 900 cavaleiros e 1000 peões nesta cidade e em Ávila e Segóvia, e saiu em campanha em direção a Córdova, campanha em que alega terem sido mortos os governadores “Azuel” e “Abenceta,”105 o que, diz a fonte, obrigou Tashfin b. Ali, que já é indicado como “rei”, ou seja, como emir de Marraquexe, a nomear Yahia b. Ghaniyya para governador do al-Andalus.106 Se pensarmos que o emir Ali b. Yusuf morreu em janeiro, mas o óbito foi mantido em segredo até maio, talvez tenhamos de considerar que estes ataques, habituais quando da morte de um líder adversário, ocorrem no princípio do verão de 1143. A posição almorávida degradava-se e, tal como as fontes muçulmanas descrevem, surgiam ataques cristãos por todo o al-Andalus. Nesta operação a Córdova, em que não terá participado Afonso VII a título pessoal, as forças cristãs devastaram tudo à sua passagem, fizeram saque e cativos, e acamparam na região da antiga capital omíada. Os “reis Azuel” e “Abenceta” – al-Zubayr

104 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:162. 105 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:162-168. 106 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:175. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 485 b. Umar, de Córdova, e talvez Yahia b. Ishaq al-Massufi, de Sevilha – foram, no entanto, avisados e reuniram um contingente que perseguiu o exército de Mónio Afonso e lhe deu combate já no regresso a casa, na região de Montiel, mas foi derrotado, com muitas baixas e guerreiros aprisionados. Segundo a fonte, foi nesta peleja que morreram ambos os governadores, o que sabemos não ter sido verdade no caso de Ibn Ishaq, se corresponder a “Abenceta”. No Magrebe, Tashfin foi obrigado a tomar uma decisão e escolheu o até então governador de Valência, Yahia b. Ghaniyya, que foi transferido para Córdova e assumiu o cargo de governador-geral do al-Andalus, provavelmente no verão de 1143.107 Dois elementos da tribo massufa (Ibn Ghaniyya e Anegemar) estavam agora ao comando das principais cidades do al-Andalus, provando que a alegada secundarização dos seus interesses dentro da confederação almorávida não passaria de uma desculpa para se desligarem do poder de Marraquexe e transitarem para o movimento almóada. Neste ano de 1143, o legado papal, Guido de Vico, regressou à Hispânia para advogar a causa de Inocêncio II e, em setembro, presidir ao Concílio de Valladolid. Inocêncio havia de morrer nesse mesmo mês de setembro, mas o processo de reconhecimento de D. Afonso Henriques por Afonso VII em Zamora já estaria em marcha. O verão de 1143 terá sido uma época de particular ansiedade para aquele que já se dizia rei de Portugal. Numa carta de doação a Santa Cruz, mandada outorgar por Randulfo Soleimás, sua mulher, Boa Guterres, e filha Maria, pela qual o mosteiro se tornou proprietário de uma herdade no Buçaco, já se sente esta pressão, que começou dois anos antes. O documento diz que o ato jurídico ocorreu ao tempo do reinado de Afonso, filho do cônsul Henrique e neto do imperador Afonso.108 Em abril, Gonçalo Dias também se associava às boas graças de D. Afonso Henriques, doando a Santa Cruz quatro casais e uma parte das suas propriedades fundiárias em Coimbra, assim como alguns objetos valiosos, por meio de um documento em que afirmou por três vezes ser casado com Maria Anaia, filha de Anaia Vestrariz e, portanto, irmã de

107 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:175. 108 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 167-168. 486 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Martim Anaia, cavaleiro do rei, e de João Anaia, futuro bispo de Coimbra.109 O monarca portucalense voltaria a beneficiar o mosteiro em junho, com carta de couto de propriedades que detinha na região da foz do Mondego, num documento em que era designado por “rei de Portugal, filho do conde Henrique e da rainha D. Teresa e neto de Afonso, imperador da Hispânia”.110 Não há, no entanto, registo de operações militares nem a norte nem a sul. D. Afonso Henriques parecia querer manter um comportamento que não indispusesse o primo imperador nem o legado papal. Mas tudo parece mudar a partir de 1142. Até ao momento, todas as operações contra o al-Andalus poderiam inscrever-se no género fossado, ou seja, sem a pretensão de expansão. Mas, em 1142, o recurso a uma frota para atacar Lisboa indicia o desejo de uma conquista. E, em 1147, novamente aproveitando o envolvimento de Afonso VII numa campanha militar, acabou por concretizar o objetivo. Se considerarmos que Afonso VII apresentou um protesto junto do papa Eugénio III em 1148,111 motivado pela tomada da atual capital portuguesa, podemos concluir que D. Afonso Henriques, à partida, não teria direitos de conquista em terras muçulmanas. Lembremos a história dos cavaleiros da Estremadura, contada pela Chronica Adefonsi Imperatoris, que, em 1138, após a saída de Tashfin do al-Andalus, foram ao fossado sem autorização do imperador, ao mesmo tempo que este raziava as terras muçulmanas, e acabaram chacinados. A fonte deixa implícito o castigo divino por não terem obedecido ao seu senhor.112 De facto, em termos legais, D. Afonso Henriques não era rei, e os direitos de conquista constituíam uma prerrogativa principesca, o que explicaria a necessidade de a narrativa oficial recorrer a justificações para exonerá-lo de responsabilidades: por acaso, iam a passar frotas de cruzados nas redondezas, que se deixaram convencer a fazer um pequeno desvio em nome do seu fervor cristão. Mas, como é evidente, tais operações envolviam negociações diplomáticas, organização e logística. Basta evocar o esforço de preparação das expedições punitivas das cidades-estado italianas contra o mundo muçulmano,

109 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 144-146. 110 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 124-125. 111 Mansi 1758-1798, 21:672-673. 112 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:131-134. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 487 que eram verdadeiras especialistas neste tipo de ações e, muitas vezes, construíam navios de raiz. Tudo isto significa que, provavelmente, D. Afonso Henriques tinha os seus representantes e diplomatas bem colocados no terreno, para poder reagir em tempo útil às conjunturas no campo muçulmano, mas também às movimentações do primo imperador. A atestar pela carta de resposta de Eugénio III, redigida no território de Langres, nordeste de França, a 27 de abril de 1148, ou seja, pouco depois do Concílio de Reims e já no regresso à Península Itálica, Afonso VII não teve grande sorte: o papa pedia-lhe que desistisse da queixa e assegurava que não tinha recebido pressões nem benefícios do “duque dos portugueses”.113 O papado poderia não ser muito sensível às pretensões de D. Afonso Henriques quanto ao reconhecimento do título régio, mas ratificava a conquista de Lisboa. Já operações como a construção do Castelo de Leiria e o fossado e a presúria da Ladeia, acompanhadas de estratégias de povoamento, as quais também fizeram avançar a fronteira, deveriam ser sobretudo encaradas como ações defensivas, medidas ativas para proteger o território cristão. Ao avançar para território muçulmano, sobretudo após a morte de Inocêncio II e as tentativas falhadas de obter reconhecimento de Celestino II e Lúcio II, talvez D. Afonso Henriques procurasse destacar-se junto do papado como campeão do cristianismo, já que esta era a única entidade que poderia garantir um estatuto de legalidade ao seu reino. Certo é que apenas atacou o al-Andalus quando Afonso VII também se encontrava pessoalmente envolvido em campanhas por terras do islão. Após uma magra vitória no mês de outubro, em Zamora, e a desilusão provocada por Lúcio II, esta seria a melhor estratégia possível.

113 Mansi 1758-1798, 21:672-673.

4. OS ANOS DO FIM

Em 4 julho de 1144,1 começava o cerco almóada a Tlemcen e, com ele, o princípio do fim do poder almorávida, destruído menos de três anos depois em Marraquexe. Se até então, com maior ou menor dificuldade, Tashfin b. Ali tinha conseguido conter o perigo almóada, a partir da conquista dos territórios da atual Argélia, a derrocada tornou-se uma questão de tempo.

O ano de todas as calamidades

Os principais vizinhos do Império Almorávida, que deveriam estar informados das movimentações almóadas e do estado calamitoso a que o território chegara, provaram estar apenas à espera de uma oportunidade. Talvez logo em julho, durante o cerco a Tlemcen, os normandos da Sicília atacaram Ceuta com uma armada de 150 navios, que fez estragos, mas não conseguiu tomar a cidade.2 Ainda assim, temos de considerar que o objetivo pudesse não ser propriamente a conquista, mas, à maneira das cidades-estado italianas, provocar o colapso de um concorrente comercial, tratamento que seria reservado a Almeria no verão de 1147. Para complicar a situação almorávida, exatamente no mês em que se iniciou o cerco a Tlemcen, terminava o acordo de paz com Pisa, firmado dez

1 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 251. 2 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 236. 490 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

anos antes, se bem que nem sempre as partes se preocupassem muito em respeitar os termos destes tratados, como parece ter sido o caso de Génova. Se, tal como apontam os indícios, tiver mesmo negociado um acordo de paz com os almorávidas, também por dez anos, quebrou-o ao fim de oito, com o primeiro ataque a Almeria, em 1146. Na prática, surgiam mais potenciais inimigos na cena política, que viriam a contribuir ativamente para o colapso de Almeria. Todavia, parece claro que, com a paulatina degradação do poder de Marraquexe desde 1139, estes tratados tivessem perdido grande parte do seu interesse. Mais: em 1144, o cisma há algum tempo que estava enterrado e o estatuto de Rogério II enquanto rei era um facto consumado. Mas o potentado com que Pisa ou Génova firmavam acordos não passaria de um detalhe: o sentido pragmático levaria as repúblicas a estabelecer relações comerciais com o califado almóada, pelo menos, a partir de Abu Yaqub Yusuf, na segunda metade do século XII. O verão de 1144 foi, assim, muito crítico para o Império Almorávida. Com os exércitos almóadas a rufar tambores nas montanhas de Tlemcen, Tashfin escreveu às várias partes do território e aos seus aliados a pedir auxílio. Sijilmassa enviou um exército, o al-Andalus respondeu positivamente e os hamádidas, senhores de Bugia, também acorreram ao repto.3 Sabemos que, com o contingente originário do al-Andalus, chegou o príncipe herdeiro, Ibrahim, filho de Tashfin. Sabemos ainda que Abu Zakariyya Yahia b. Ishaq al-Massufi, conhecido como Anegemar, se manteve no governo de Sevilha até junho de 1144 e depois acompanhou o príncipe herdeiro, seu sobrinho, ao Magrebe. Sabemos, por fim, que Anegemar foi substituído em Sevilha por Abu Bakr b. Mazdali, mas não durante quanto tempo. Ainda assim, como este general almorávida também esteve com Tashfin em Orão, em março de 1145, não terá permanecido senão alguns meses em Sevilha. Com alguma dedução, conseguimos perceber que Ahmad b. Qasi, o mahdi do Gharb al-Andalus que se revoltou contra o poder almorávida, atacou Sevilha por volta de novembro de 1144.4 Segundo nos diz Ibn al-Abbar, a cidade “estava sem governador

3 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 258; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 156. 4 Lourinho 2010, 20. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 491 capaz de a defender convenientemente”.5 Ou seja, talvez Ibn Mazdali tenha permanecido em Sevilha apenas entre julho e outubro de 1144. E este é o último “lamtuna ilustre” que Ibn Idari refere como tendo sido governador da cidade.6 Depois disso, limita-se a relatar que Mértola se rebelou por invocação de Ibn Qasi e que a sedição se alastrou ao Gharb, até que a maior parte do al-Andalus passou para a obediência dos almóadas,7 uma alusão ao período conhecido como Terceira Fitna, que só terminou quando os exércitos de Abd al-Mumin conquistaram o território. Ibn Idari sugere, assim, que, com a saída de Ibn Mazdali, não só findou o domínio almorávida sobre Sevilha, como também o controlo que esta cidade mantinha sobre o Gharb al-Andalus. Podemos concluir então que, desde que Sir b. Abu Bakr conquistou a cidade de Santarém, em maio de 1111, até à saída de Anegemar, em junho de 1144, decorreram 33 anos e um mês. Se lhes acrescentarmos os quatro meses de permanência de Ibn Mazdali, chegamos a cerca de 33 anos e meio, ou seja, quase 34 anos de domínio de Sevilha sobre Santarém, o ponto mais a norte que a fronteira do Gharb al-Andalus conheceu durante o Império Almorávida. Este somatório de anos faz-nos olhar de modo diferente para aquela frase do Quo Modo Sit Capta, fonte que relata a conquista cristã de Santarém, que diz que o governador da cidade do Tejo, Abzechri (Abu Zakariyya), se manteve no cargo por quase 34 anos: “O mesmo aconteceu com Ciro [obrigar Santarém a capitular pela fome], rei dos almorávidas, e ainda com Abzechri, que, quase por 34 anos, manteve o seu governo [da cidade].”8 Estará a fonte a referir-se ao governador de Santarém propriamente dito ou, de forma genérica, ao domínio da cidade por Sevilha? Não o sabemos, até porque “Abu Zakariyya” é uma kuniyya demasiado frequente para uma identificação segura. Além de Anegemar, senhor de Sevilha, usava-a, por exemplo, Yahia b. Ghaniyya, governador-geral do al-Andalus no final do período almorávida. Ibn al-Khatib diz-nos que o governador de Santarém à data da conquista de Lisboa tinha por nome Labid b. Abd Allah, mas não refere a kuniyya por que era conhecido.9 Terá usado a mesma?

5 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 102. 6 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 244. 7 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 244 8 Nascimento 2005, 1225. .Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1956, 248 .(لبيد بن عبد هللا صاحب شنترين) ”Labid b. Abd Allah sahib Shantarin“ 9 492 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

A referida passagem do Quo Modo Sit Capta suscita ainda dúvidas devido ao longo período em que um único governador terá permanecido no cargo, nada em linha com a prática almorávida para as grandes cidades. Mas não temos informações sobre as nomeações em pequenas urbes de fronteira: dado o menor apetite que suscitariam junto das elites berberes, poderiam até beneficiar de maior estabilidade. A ser verdade que Santarém teve um só governador durante todo o período almorávida, a elevada rotatividade pode ter sido sobretudo uma prática das cidades mais ricas. Nas fronteiras mais distantes, é possível que o cenário fosse diferente, e o al-Hulal al-Mawsiyya fornece uma pista: a de que o governo das cidades nestas zonas era deixado às gentes do al-Andalus, porque mais conhecedoras da realidade local.10 Além disso, o Quo Modo Sit Capta refere-se a Sir b. Abu Bakr como “rei dos almorávidas”, enquanto a Abzechri não atribui nenhum designativo. Fica a impressão de que não seria um almorávida, ainda que pudesse estar submetido ao poder de Marraquexe. Num cenário de necessidades militares no Norte de África e de desagregação territorial e defensiva no al-Andalus, com as elites almorávidas a abandonarem a parte europeia do império, as condições eram muito favoráveis a Ahmad b. Qasi, que iria contribuir para o caos, ao encabeçar a chamada Revolta dos Muridinos. Já não eram só os inimigos externos, como os normandos da Sicília ou as repúblicas italianas, a pressionarem o império. Após o desafio ao poder encetado pelos almóadas no Magrebe, fenómeno idêntico atingia o al-Andalus. Em agosto de 1144, Ibn Qasi enviou a Mértola um destacamento liderado por uma personagem de Saltes, Muhammad b. Yahia, conhecido como Ibn al-Qabila, o qual matou a guarnição almorávida e se apoderou do castelo.11 Estava dado o mote para a sedição, que conseguiu congregar os principais governadores e líderes militares do Gharb al-Andalus em torno de um novo messias: tal como Ibn Tumart cerca de 20 anos antes, Ibn Qasi proclamou-se mahdi anunciado por Deus para governar no fim dos tempos. Mais do que um líder espiritual, tratava-se de um político experiente que, alguns anos antes, tinha tentado a revolta. Mas, como o poder almorávida ainda não se encontrava em

10 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 96. 11 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 101; Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:189. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 493 desagregação, conseguiu controlar o movimento e perseguir o seu líder, cujos apoiantes acabaram nos cárceres de Sevilha.12 Não sabemos exatamente quando esta tentativa falhada ocorreu, mas é possível que tenha tido lugar durante a longa estada de Anegemar no governo do Gharb al-Andalus. Agora, numa conjuntura de desagregação e perda de capacidade militar, a sorte sorriu a Ibn Qasi. Em setembro de 1144, estava Abu Bakr b. Mazdali apenas há dois meses no governo de Sevilha, quando os senhores de Beja e de Silves, respetivamente, Sidray b. Wazir, que pode ter sido o oponente de D. Afonso Henriques no fossado de Ourique e era considerado o “sheikh das gentes do Gharb al-Andalus”, e Ibn al-Mundhir, um intelectual de Silves, prestaram vassalagem ao novo homem forte do Gharb.13 Da mesma forma, Yusuf b. Ahmad al-Batruggi, de Niebla, rebelou-se contra os almorávidas em nome de Ibn Qasi.14 Este obteve ainda o apoio do almirante da frota almorávida de Cádis, Ali b. Isa b. Maymun, sobrinho do alcaide-do-mar Muhammad b. Maymun.15 O mahdi de Mértola conseguiu, assim, apoios para controlar os territórios das modernas regiões do Alentejo e do Algarve, sendo muito provável que o governador de Santarém, Labid b. Abd Allah, lhe tenha igualmente prestado homenagem.16 Em novembro, os aliados estavam a caminho de Sevilha, abandonada à sua sorte por um poder almorávida moribundo, de resto, como o al-Andalus em geral. A única figura de destaque dentre a elite berbere a permanecer no território seria, depois do final de 1144, Yahia b. Ghaniyya, que governava a partir de Córdova e tentava segurar areia entre os dedos. O objetivo de Ibn Qasi era evidente: conquistar o Gharb al-Andalus. Para o efeito, contaria com o auxílio da frota de Cádis. Sem capacidade naval, a conquista da cidade de Sevilha seria difícil de alcançar. Se, em 1083, os almorávidas tiveram auxílio naval de al-Mutamid para tomarem Tânger e Ceuta, em 1091, quando pretenderam controlar Sevilha, foram obrigados a construir embarcações,

12 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 100-101. 13 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 103. 14 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 104. 15 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:184. 16 Lourinho 2010, 46-48. 494 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

segundo informação de Ibn Khallikan.17 Os partidários de Ibn Qasi viram as suas intenções frustradas pela intervenção de Yahia b. Ghaniyya.18 Mas onde estaria a frota de Sevilha nesse momento, aquela que era liderada por Isa b. Maymun, para o mahdi do Gharb, mesmo sem a presença de um governador, considerar que a conquista seria um projeto alcançável? Se recuperarmos a informação transmitida por al-Zuhri a propósito da intervenção e da morte de Isa no Mediterrâneo oriental, aquele que foi sepultado em Edessa, talvez encontremos aqui uma explicação. O geógrafo não nos fornece informações sobre a data destas operações, mas a verdade é que a frota de Sevilha desapareceu das fontes. Tanto durante os conflitos suscitados por Ibn Qasi e pelos muridinos, como nos primórdios da implantação almóada no Gharb al-Andalus, surge apenas a frota de Cádis, liderada por Ali b. Isa b. Maymun, filho do anterior, força naval que, como dá conta Christophe Picard, constituía um desdobramento da armada de Sevilha.19 Aliás, a existência deste “ramal” talvez garantisse a proteção do território do al-Andalus enquanto Isa participava em campanhas no Oriente. Pode até ter auxiliado Ceuta a contrariar os intentos dos normandos da Sicília, que chegaram ao leme de 150 navios para atacar a cidade em 1144. De resto, a morte de Isa em Edessa justificaria a busca incessante que o filho demonstrou ao longo do seu percurso durante os últimos anos do Império Almorávida para ser reconhecido como almirante de Sevilha, e que o pode ter levado a aliar-se a Ibn Qasi e, mais tarde, a reconhecer Abd al-Mumin. Estas decisões suscitaram a ira do governador-geral do al-Andalus, Yahia b. Ghaniyya, e justificaram o seu assassinato em 1148 por Yahia al-Sahrawi, príncipe almorávida, último governador de Fez e o chefe dos lamtunas que transitaram para os almóadas.20 Quanto ao destino da frota de Sevilha, é possível que, com a morte de Isa e as notícias do caos e da desagregação no al-Andalus e no Magrebe, se tenha dispersado ou passado a agir por conta própria. Se a esta hipótese somarmos o facto de Muhammad b. Maymun e o remanescente

17 Ibn Khallikan [1256-1274?] 1843-1871, 4:457 18 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 105. 19 Lagardère 1989a, 240. 20 Lourinho 2010, 33-36. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 495 da armada de Almeria terem transitado para as Baleares,21 talvez se explique por que razão o Império Almóada demorou tanto a constituir uma armada:22 pouco ou nada terá beneficiado com a conquista das principais cidades com vocação marítima do al-Andalus. Nesse verão tumultuoso de 1144, o Império Almorávida iria ainda sofrer os ataques dos senhores cristãos peninsulares. A Chronica Adefonsi Imperatoris relata uma campanha contra Córdova e Sevilha liderada pelo próprio imperador, que diz ter ocorrido ainda em 1143, mas não faz grande sentido duas grandes operações no mesmo ano – Mónio Afonso havia atacado Córdova no verão de 1143 –, mesmo porque em 1144 a conjuntura era demasiado favorável para os castelhano-leoneses não desferirem mais um golpe sobre o al-Andalus. O governador de Córdova tinha sido eliminado no ano anterior, e o de Sevilha, Anegemar, acabava de transferir-se para o Magrebe. Afonso VII reuniu grande número de cavaleiros, peões e archeiros e raziou as regiões de Córdova, Carmona e Sevilha, incendiando colheitas, vinhas, olivais e figueirais e derrubando árvores de fruto, certamente para tornar ainda mais precária a sobrevivência muçulmana.23 Enquanto o imperador se encontrava no al-Andalus, os muçulmanos atacaram a região de Toledo e mataram o governador, Mónio Afonso.24 A possibilidade de o fossado de Afonso VII ter ocorrido já em 1144 ganha força se pensarmos que a Chronica Adefonsi Imperatoris relata que, no fim deste ano, o imperador chamou os seus líderes militares a Toledo, acompanhados das respetivas hostes, e ordenou novos ataques a Córdova, Carmona, Sevilha, Granada e até Almeria.25 Estes raides podem corresponder a expedições punitivas pela devastação almorávida na região de Toledo, que ditou a morte e decapitação de Mónio Afonso. Mas também temos de lembrar-nos de que Sevilha não tinha um governador que a protegesse de forma eficaz, uma vez que Abu Bakr b. Mazdali havia deixado o território para acorrer ao Magrebe

21 Lourinho 2010, 41. 22 Lourinho 2010, 42. 23 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:176-177. 24 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:178-183. 25 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:187. 496 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

e que Ibn Qasi procurava assenhorear-se da cidade, o que mobilizou as forças do governador-geral, Yahia b. Ghaniyya. Ou seja, o território vivia uma crise intensa e Afonso VII procurou tirar partido dessa conjuntura, sabendo que os exércitos de Córdova e Sevilha estavam ocupados a procurar sacudir a pressão dos muridinos. Apesar da instabilidade, a vida seguia o seu curso na fronteira com os muçulmanos. A troca de bens fundiários continuava o seu passo inexorável, com Santa Cruz na qualidade de destinatária de diversas doações. Em julho, um cónego da instituição doou-lhe algumas propriedades, parte das que tinha recebido de Diogo Nunes e Elvira Soleimás, genro e filha de Soleima Godins,26 e, em mês desconhecido, Martim Pais, o Talhavias, trocou metade de uma herdade em Coimbra por duas vinhas fora da cidade e 10 morabitinos.27 Também D. Afonso Henriques procurou beneficiar da debilidade almorávida em 1144, a avaliar pela informação nos Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis e na Chronica Gothorum, em redação praticamente coincidente, segundo a qual, a partir das dissensões no al-Andalus, o rei passou a devastar os territórios muçulmanos, situação que levou as cidades de Santarém e Lisboa a pagarem-lhe tributo para evitarem ataques. Todavia, a fronteira do Gharb al-Andalus oferece informações aparentemente contraditórias para o ano de 1144. De acordo com a hagiografia de São Martinho, os muçulmanos de Santarém empreenderam um ataque ao termo do Castelo de Soure, detido pelos templários, capturando homens, animais e outros bens.28 Os monges-guerreiros organizaram, então, uma expedição punitiva, que não foi bem-sucedida, e muitos foram mortos ou capturados, incluindo São Martinho e, segundo hipótese de Leontina Ventura, também Rabaldo Rabaldes, irmão do bispo do Porto e cunhado de Paio Guterres, ex-alcaide de Leiria,29 que integravam a hoste. De Santarém, São Martinho foi levado para Évora e depois para Sevilha e Córdova, onde vivia o governador- ‑geral do al-Andalus e onde acabou por falecer, no final de janeiro de 1145.

26 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 324. 27 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 295. 28 Vita Martini Sauriensis [1144-1149?] 1998, 239-241. 29 Ventura 2002-2003, 92-93. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 497

Os últimos tempos de São Martinho terão coincidido com a Revolta dos Muridinos e as tentativas de Ibn Qasi para assenhorear-se do Gharb al-Andalus. O mês de novembro, provavelmente quando os aliados de Ibn Qasi se lançaram à conquista de Sevilha, encontrou D. Afonso Henriques na fronteira, que, na companhia de Randulfo Soleimás e Martim Anaia, esteve presente no ato de venda de umas casas da diocese de Coimbra, dentro de muralhas, avaliadas em 70 morabitinos.30 Mas como conjugar a informação proveniente dos Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis, da Chronica Gothorum e da Vita Martini Sauriensis? Talvez possamos chamar à colação o contexto precipitado pela Revolta dos Muridinos de Ibn Qasi. Sabemos, por via de Ibn al-Khatib, que o governador de Santarém se rebelou contra o poder almorávida em nome do místico.31 A nova conjuntura pode ter conferido ânimo acrescido à cidade de Santarém, que se associava a um novo potentado, para, numa estratégia já seguida pelo poder almorávida, procurar desestruturar o esforço de povoamento cristão e eventualmente criar uma zona-tampão, de proteção dos seus territórios – a hagiografia de São Martinho não menciona um ataque direto ao Castelo de Soure, mas ao seu termo, operação que se saldou na pilhagem e no aprisionamento de povoadores.32 Resta saber se esta operação ocorreu antes ou depois das depredações de D. Afonso Henriques. Não sabemos, assim, se o ataque dos guerreiros de Santarém é causa ou consequência da ação do rei de Portugal. Mas a imposição de tributo faz supor que, apesar do sucesso muçulmano no termo de Soure, esta possa ter sido uma operação isolada. Não faz grande sentido que um governador pague para não ser atacado, o que constitui sinal de debilidade ou, pelo menos, de desejo de estabilidade, e depois se lance contra aqueles que, à partida, considera mais fortes.

30 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 542-543. 31 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1911, 110. 32 Vita Martini Sauriensis [1144-1149?] 1998, 241. 498 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Conjunturas interdependentes

Ano Almóadas Afonso VII D. Afonso Henriques

Primeiro embate 1139 entre Abd al-Mutamin Conquista de Oreja Campanha de Ourique e Tashfin b. Ali

1142 Campanha de Tetuão Conquista de Coria Campanha de Lisboa

Razias sobre as regiões da Campanha contra Córdova fronteira, obrigando várias 1144 Conquista de Tlemcen e Sevilha praças, como Santarém e Lisboa, a pagar tributo

Conquistas de Sevilha Conquistas de Santarém 1147 Conquista de Almeria e Marraquexe e Lisboa

Queda do Império Almorávida e partilha dos despojos

Depois das mortes de Reverter e Tashfin e dos massacres em Orão e Tlemcen, a instabilidade aguda tomou conta do Magrebe e, face às soluções governativas de que o poder almorávida dispunha – Ibrahim, filho do falecido emir, sucedeu-lhe, mas era uma criança e foi deposto ao fim de alguns dias pelo seu tio Ishaq, que também não passava de um adolescente33 –, muitos devem ter compreendido que o fim estava próximo e apressaram-se a aderir ao movimento almóada. Também Ahmad b. Qasi, o místico do Gharb al-Andalus, através do envio de uma carta, procurou o auxílio de Abd al-Mumin, ainda este se encontrava no cerco de Tlemcen, talvez no início de 1145. É que, pouco depois de ter formado um grupo de revoltosos (os muridinos), já a sua base de apoio se desmoronava. Aparentemente receando a ambição de Sidray b. Wazir, senhor de Évora e Beja, Ibn Qasi desapossou-o dos seus territórios e manteve-o no cárcere durante a campanha frustrada para conquistar Sevilha. Acabou por libertá-lo e, após mais uma operação falhada, desta feita para se apoderar de Córdova, chamou Ibn Wazir à sua presença, mas este recusou comparecer. Face à “desobediência”, o místico do Gharb enviou um exército para submeter o insurreto, mas falhou novamente:

33 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1983, 156. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 499 as suas tropas foram derrotadas, o seu general, Ibn al-Mundhir, aprisionado e mandado cegar, e o próprio Ibn Qasi acabou expulso de Mértola. Ibn Wazir, que se apoderou de um vasto território que incluía Badajoz, aliou-se então ao cádi de Córdova, Ibn Hamdin. Após a morte de Tashfin, em março de 1145, o cádi havia-se declarado novo emir dos muçulmanos, reclamando a herança almorávida. Apesar de manter o apoio do almirante da frota de Cádis, a situação de Ibn Qasi era precária. Mas, na carta que dirigiu a Abd al-Mumin, apresentou- se como mahdi, o que suscitou a ira do califa, que não deu seguimento ao pedido34 e continuou entretido com as suas campanhas militares. Depois de conquistar o território correspondente à atual Argélia, Abd al-Mumin voltava a sua atenção para Fez, onde se foram reunindo os habitantes que fugiam de outras cidades submetidas. Pelo caminho, conquistou as cidades de Oujda e Guercif.35 Talvez em julho de 1145,36 o califa iniciou o cerco a Fez, um dos últimos bastiões almorávidas, não sem antes ter mandado avaliar a capacidade defensiva da cidade. Conta Ibn Idari que enviou um grupo de guerreiros para investigarem a dimensão da cavalaria e do corpo de infantes do governador da cidade, o príncipe Yahia al-Sahrawi, neto de Yusuf b. Tashfin, uma informação que al-Baydaq confirma.37 Depois, fez avançar 80 pelotões e atravessou o rio. Ordenou o corte de árvores, com que construiu paliçadas e um muro para desviar o curso do rio que dividia a cidade a meio. De seguida, destruiu o dique, e a força das águas provocou brechas nas muralhas da cidade, manobra descrita por al-Baydaq e por Ibn Abi Zar.38 Mas o governador, Yahia al-Sahrawi, conseguiu reparar os danos. Diz al-Baydaq que não saiu de junto das muralhas enquanto não foram reconstruídas.39 Quando se encontrava no cerco de Fez, o califa recebeu a visita de Anegemar, que, com os seus irmãos massufas, lhe prestou homenagem. Entretanto, Abd al-Mumin enviou parte do exército que se encontrava em Fez para cercar Mequinez, mas este contingente foi derrotado e quase totalmente

34 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:184; Lourinho 2010, 24-29. 35 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 161. 36 Lourinho 2010, 32. 37 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 162-164. 38 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 164; Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 195. 39 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 164. 500 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

massacrado pelos almorávidas, ajudados por milhares de mercenários cristãos, e o califa – segundo al-Baydaq, muito irritado – teve de acorrer em seu auxílio.40 Tinha agora, pelo menos, dois cercos a decorrer em simultâneo, já que, de acordo com a carta do judeu Shlomo ha-Cohen ha-Sijilmassi, a tomada de Sijilmassa também deve ter decorrido por esta faixa temporal.41 Mas, graças à traição do almoxarife de Fez, a quem o governador exigiu grandes somas em dinheiro, em breve os almóadas entrariam na cidade. O senhor de Fez teve, então, de fugir para o al-Andalus.42 Quando Abd al-Mumin soube que Fez tinha caído, deslocou-se à cidade, onde permaneceu alguns dias.43 Diz Ibn Abi Zar que perdoou a população, mas mandou chacinar os almorávidas.44 Estávamos, segundo Ibn Idari, em abril de 1146. O califa deixou um governador na nova cidade conquistada, partiu para o cerco de Mequinez, onde permaneceu durante algum tempo, e seguiu para sitiar Salé. Ceuta entretanto enviou uma carta ao califa a submeter-se voluntariamente.45 Os habitantes de Salé deram luta aos almóadas, mas, de novo com o recurso a uma traição, as tropas do califa acabaram por tomar a cidade, em maio de 1146. Durante o cerco, entre setembro e outubro, recebeu a visita de Ibn Qasi, que se deslocou ao Magrebe nas galeras de Ali b. Isa b. Maymun, o almirante de Cádis. Pouco tempo antes, durante o bloqueio a Fez, o último também tinha prestado homenagem a Abd al-Mumin.46 Ibn Qasi desembarcou em Ceuta, onde o governador almóada lhe forneceu uma escolta para alcançar Salé, em busca do califa. Desta vez, a sorte sorriu-lhe: ocupado com a conquista do Magrebe, Abd al-Mumin cedeu-lhe um exército, mas exigiu auxílio na tomada de Sevilha.47 Com a cidade de Salé debaixo do seu domínio, o califa marchava agora para sul. Tudo se congregava para que os almóadas alcançassem o controlo das cidades que representavam o poder almorávida no Magrebe e no al-Andalus:

40 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 268-270; al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 165. 41 Toledano et Mann 1927, 450. 42 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 270; al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 165-166. 43 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 272. 44 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 195. 45 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 271-272; al-Zarkashi [1364-1392?] 1895, 9. 46 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:183. 47 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:184; Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1956, 251. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 501

Marraquexe e Sevilha. A primeira era um bastião bem fortificado, que apenas um longuíssimo cerco conseguiu vergar, e novamente com recurso à traição. A segunda, desde o final de 1144, com o abandono pelo poder lamtuna, estaria sem defesa sólida e constituía uma presa apetecível para as diversas forças no terreno. Justamente, Ibn Qasi e os seus muridinos haviam tentado dominar a cidade em finais de 1144, mas, apesar do apoio do almirante da frota de Cádis, não tiveram sucesso. Na altura, o governador-geral do al-Andalus enviou um exército para contrariar as forças de Ibn Qasi, que foram obrigadas a retirar e refugiar-se em Niebla, onde acabaram sitiadas. Ao fim de três meses de cerco, também o governador-geral teve de desistir, ao saber que o cádi de Córdova, Ibn Hamdin, tinha aproveitado a sua ausência e a morte do emir Tashfin em Orão, para, ainda em março de 1145, se reclamar o novo “emir dos muçulmanos”.48 A rebelião de Ibn Hamdin havia provocado mais caos em Córdova, que se dividiu entre várias fações, e Ibn Qasi tentou de novo a sua sorte, enviando um exército para garantir a conquista da cidade: uma parte apoiava o cádi, outra preferia Ibn Hud, o rei Zafadola, vassalo de Afonso VII, e outra ainda dizia-se fiel ao místico do Gharb al-Andalus. Nesta conjuntura de extremo conflito e incerteza, parte da população acabou por expulsar o cádi da cidade e investir Ibn Hud, que, no entanto, ali permaneceu por poucos dias. A Chronica Adefonsi Imperatoris alude de forma indireta a este episódio, afirmando que, face aos ataques constantes de Afonso VII e à incapacidade de os almorávidas protegerem as suas vidas e os seus bens – aliás, tinham espoliado, matado e deportado as gentes do al-Andalus –, a população decidiu expulsar os que restavam e pedir o auxílio de um novo líder.49 Mas também Zafadola foi afastado, e o cádi Ibn Hamdin regressou à cidade. As forças de Ibn Qasi, uma vez mais, não alcançaram o sucesso e tiveram de desistir.50 Zafadola viajou depois para Jaén e Granada, tentando submeter as regiões à sua passagem, mas também sem grande sucesso, pelo que Afonso VII enviou um exército em seu auxílio, que não fez mais do que raziar, pilhar e aprisionar.

48 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 104-105. 49 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:188. 50 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 105-106; Lourinho 2010, 21. 502 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Estaríamos no verão de 1145. A intervenção cristã foi de tal modo destrutiva que as populações pediram proteção a Zafadola. O líder muçulmano exigiu que os cristãos devolvessem o saque e libertassem os cativos: como o pedido foi recusado, ocorreu uma batalha, no decurso da qual foi feito prisioneiro e morto por um grupo de cavaleiros, em fevereiro de 1146, eventos que, segundo a Chronica Adefonsi Imperatoris, aborreceram Afonso VII, que os repudiou, declarando a inocência de Zafadola.51 No meio do caos, provavelmente entre junho e agosto de 1145, o almirante Ali b. Isa b. Maymun desmantelou o farol de Cádis e saqueou o ouro de que era feito, agravando o sentimento de desespero entre as gentes do al-Andalus. Utilizado como referência para navegar até ao oceano Atlântico e, entre outros, atingir o porto de Lisboa, o farol era encarado como um talismã: acreditava-se que, quando fosse destruído, os muçulmanos perderiam o al-Andalus.52 Ao reduzir o farol a escombros, não só boicotava a navegação, como incutia na população a crença de que o fim dos almorávidas e, nesta conjuntura, daqueles que tentavam assumir o poder – o cádi de Córdova, Ibn Hamdin, apoiado pelo senhor de Évora e Beja, Ibn Wazir – estaria próximo, talvez uma forma de preparar o terreno para a invasão almóada. Lembremos que Ali b. Isa tinha reconhecido o califa Abd al-Mumin ainda durante o cerco de Tlemcen, portanto, no princípio de 1145. Se a situação estava ao rubro no Magrebe, com guerra, fome e devastação generalizada, o al-Andalus também vivia, assim, dias extremamente difíceis. As elites não fugiam à regra: em fevereiro de 1146, antes de Fez passar para o poder de Abd al-Mumin, já o cádi Ibn Hamdin era expulso de Córdova, cortesia do governador-geral do al-Andalus, Ibn Ghaniyya, passando o destituído a beneficiar da proteção de Afonso VII.53 Durante o período em que se manteve no poder, havia garantido o apoio militar de Sidray b. Wazir, senhor de Évora e Beja, e cunhado moeda em seu nome, assumindo uma das prerrogativas da governação.54

51 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:191-193. 52 Al-Zuhri [1150-1170?] 1968, 216-217; Lourinho 2010, 16-19. 53 Anales Toledanos [1250-1299?] 1913, 1:347. 54 Lourinho 2010, 24-29. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 503

Enquanto isso, Ibn Qasi aguardava o exército almóada, que, em teoria, iria devolver-lhe a dignidade perdida face a Ibn Wazir e Ibn Hamdin. No entanto, quando o exército almóada desembarcou no porto de Cádis, em junho de 1146, certamente sob os auspícios do almirante Ali b. Isa b. Maymun,55 já esta aliança tinha sido desfeita, por afastamento do cádi Ibn Hamdin da cidade de Córdova, em fevereiro desse ano. Ao saber da chegada dos almóadas, Afonso VII abandonou Ibn Hamdin e passou a apoiar o governador-geral, Ibn Ghaniyya. Por certo, não teria interesse num poder muçulmano forte no al-Andalus e, entre apoiar Ibn Hamdin contra os débeis almorávidas, preferiu aliar-se aos últimos para tentar contrariar o perigo almóada, quando Abd al-Mumin acabava de conquistar Fez, Mequinez e Salé, e Ceuta se tinha submetido sem combate. Provando que não estava no al-Andalus para atender aos desejos de Ibn Qasi, durante o verão de 1146, o general Barraz al-Massufi, um ex-almorávida ao serviço dos almóadas, conquistou o Gharb sem grande dificuldade e passou o inverno em Mértola, à época pertença de Sidray b. Wazir, que havia afastado o místico Ibn Qasi desta sua primeira base militar.56 Em janeiro, já o exército almóada, ampliado pela obrigação imposta aos senhores do Gharb de cederem tropas, seguiu para Sevilha, que conquistou no dia 18 desse mês, a menos de duas semanas do início do Ramadão e quando, no Magrebe, continuava o cerco a Marraquexe.57 Poucos meses depois da conquista de Sevilha, provavelmente já no segundo semestre de 1147, chegaram à cidade dois irmãos e um primo do falecido mahdi Ibn Tumart, fundador do movimento almóada, na companhia das respetivas hordas, que destruíram as casas onde foram instalados e roubaram e massacraram as populações, uma conduta que deu origem a rebeliões e justificou o seu afastamento do território pelo poder almóada. O senhor de Niebla, anteriormente aliado de Ibn Qasi, rebelou-se contra os almóadas e voltou a reconhecer os almorávidas, provocando uma cascata de conflitos. Ibn Qasi revoltou-se em Silves, Ali b. Isa b. Maymun fez o mesmo em Cádis e Muhammad

55 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 102. 56 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:185-186. 57 Ibn al-Abbar [1238-1260?] 1911, 102. 504 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

b. Ali b. al-Hajjam seguiu-lhe o exemplo em Badajoz.58 O almirante chegou a bloquear a entrada do Guadalquivir para impedir o abastecimento da cidade.59 Em escassos meses, os almóadas, que tinham submetido o Gharb, ficaram numa posição precária, até porque o governador-geral do al-Andalus, Ibn Ghaniyya, conseguiu apoderar-se de Algeciras. Em Ceuta, que tinha apresentado a submissão voluntária ao poder almóada, estalara entretanto uma rebelião catalisada pelo cádi Abu al-Fadl Iyad b. Musa b. Iyad al-Yahsubi, respeitada figura da religião, política e literatura, que pretendia agora um governador almorávida, pelo que viajou até ao al-Andalus para encontrar o governador-geral, Ibn Ghaniyya. Este designou o príncipe Yahia al-Sahrawi, ex-governador de Fez, que fugiu para o al-Andalus após a queda da cidade.60 No segundo semestre de 1147, o al-Andalus viveu, assim, mais momentos dramáticos, mas no Magrebe a situação não era melhor, já que grassava uma rebelião provocada por Ibn Hud, personagem de Salé, que conseguiu muitos adeptos e fez com que os almóadas perdessem o controlo do território. Com o Magrebe e o al-Andalus a ferro e fogo, os vizinhos do império continuaram a pressionar as franjas territoriais. Rogério II da Sicília viu uma oportunidade para atacar os interesses dos ziridas de Mahdia, enfraquecidos por uma conjuntura de crise cerealífera, em que a fome e a devastação atingiam duramente a população. Se já tinha conquistado a ilha de Djerba em 1134, onde a instabilidade social e política era elevada,61 entre 1141 e 1142, pressionou o príncipe de Mahdia para aceitar a sua influência, ao apresar navios originários do Egito, talvez com um precioso abastecimento de alimentos, já que, no seguimento desta ação, uma embaixada viajou até Palermo e “a paz foi renovada, pois a falta de víveres causava uma grande mortalidade em Ifrikiyya, e a importação de cereais da Sicília era necessária”.62 No ano seguinte, Rogério continuou a asfixiar o poder zirida e mandou cercar Trípoli.63 Em 1145, aventurou-se pela costa da atual Argélia, já perto de Orão e da zona de influência almóada, quando o califa

58 Ibn Khaldun [1375-1406?] 1852, 2:186. 59 Bosch Vilá 1984, 90. 60 Ibn Abi Zar [1310-1331?] 1918, 197. 61 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 552-553. 62 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 555. 63 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 555-557. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 505 se afadigava no cerco a Fez.64 Em junho de 1146, Trípoli passou finalmente a ser governada sob a sua autoridade.65 E, em 1147, quando Lisboa e Almeria caíam em mãos cristãs, enviou uma armada chefiada pelo almirante Jorge de Antioquia atacar o Império Bizantino.66 No ano seguinte, no regresso da marinha normanda do Oriente, as cidades de Mahdia e Sfax, na atual Tunísia, foram finalmente somadas às possessões de Rogério II.67 Todas estas conquistas iriam perder-se até 1160, devido à progressão almóada até Mahdia.68 Os genoveses, que tinham ficado de fora do acordo de paz com Pisa em 1134, mas que terão obtido idêntico tratado por volta de 1138, sentiram certamente a grande debilidade do império e procuraram tirar partido da conjuntura. Caffaro conta com grande animação que, em 1146, o ano em que São Bernardo apelou à Segunda Cruzada em Vézelay, participou numa campanha para enfraquecer Almeria. Cerca de 30 navios equipados com máquinas de guerra e dotados de uma centena de cavaleiros fizeram-se ao mar rumo às Baleares e atacaram “todos os lugares até Almeria”. Para evitar a destruição, esta cidade ofereceu 113 mil morabitinos (“marabetinorum”) aos genoveses, que regressaram a casa com os cofres cheios e com o apetite aguçado.69 Se por ora Almeria conseguia afastar o perigo, no ano seguinte, os genoveses estariam de volta, acompanhados de pisanos, barceloneses e castelhano-leoneses. A cidade nunca mais seria a mesma. Mas dificilmente poderemos ver aqui, pelo menos do lado das cidades-estado italianas, uma operação inscrita no âmbito da cruzada, e sim mais uma expedição punitiva contra um adversário comercial que vivia momentos de extrema dificuldade. Não obstante, numa conjuntura que exaltava a cruzada, a tais operações acabava por ser associado um discurso legitimador. A Chronica Adefonsi Imperatoris refere que, quando Afonso VII se encontrava no cerco de Córdova, em 1146, recebeu uma delegação proveniente de Génova a propor uma grande campanha sobre Almeria, cidade considerada plataforma

64 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 557. 65 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 558-559. 66 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 568-569. 67 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 562-565; Rousseau 1852, 134. 68 Al-Zarkashi [1364-1392?] 1895, 12-13. 69 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1890, 1:33-35. 506 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de operações de pirataria contra os interesses cristãos. Recordemos que este assédio ocorreu quando o imperador procurava dominar o governador-geral do al-Andalus, antes de conhecer a notícia da chegada dos almóadas, momento em que se aliou àquele que até então pretendia aniquilar. O imperador aceitou a proposta dos genoveses e entregou-lhes 30 mil morabitinos para financiarem a operação, que deveria começar em agosto do ano seguinte.70 Enquanto Afonso VII devastava o já debilitado al-Andalus e pretendia firmar um protetorado no final do Império Almorávida, D. Afonso Henriques também desejava ampliar o seu território à custa do império de Marraquexe, mas os seus planos desenvolveram-se sobretudo no médio prazo. A crer na documentação, o ano de 1145 foi passado algo longe da fronteira do Gharb al-Andalus. Dos poucos diplomas que subsistiram até aos nossos dias emitidos pelo soberano em 1145, todos posteriores a abril, podemos depreender que se encontrava sobretudo no norte.71 Apenas um documento, exarado em Santa Cruz de Coimbra, mostra uma presença no sul e atesta a doação de metade da vila de Oliveira do Hospital, em abril.72 Talvez já estivessem a decorrer as negociações que conduziram ao casamento com Mafalda de Saboia, em março de 1146, mês em que São Bernardo, em Vézelay, tentava convencer os grandes da cristandade a seguirem de novo para a Terra Santa,73 uma empresa de que, contudo, os líderes políticos da Península Ibérica não queriam ouvir falar. A prová-lo, está o interessante documento de revisão de impostos e enquadramento das principais atividades económicas da cidade de Coimbra, exarado em junho de 1145 sob indicação de D. Afonso Henriques: sapateiros, açougueiros, pescadores, vinhateiros e tendeiros receberam um novo quadro fiscal, mas também houve o cuidado de negar autorização a todos aqueles que pretendessem tomar a cruz no Oriente. Pelo contrário, deveriam auxiliar o Castelo de Leiria ou a Estremadura, que, apesar do enfraquecimento muçulmano, continuariam a ser pontos nevrálgicos. Se falecessem, beneficiariam da mesma remissão dos

70 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:202. 71 Azevedo 1958, 258-260. 72 ANTT, Santa Cruz de Coimbra. Régios. Maço 1, no. 26. 73 Mattoso 2007, 218-226. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 507 pecados que os cruzados na Terra Santa.74 O documento indica, assim, que, embora a bula do papa Eugénio III dirigida ao rei de França, com o nome de Quantum Praedecessores e que exortava a uma nova cruzada como resposta à conquista do condado de Edessa pelos seljúcidas, só tivesse sido emitida em dezembro de 1145,75 a ideia de uma nova cruzada já circulava na cristandade. A avaliar pela documentação disponível, o ano de 1145 terá sido menos ativo do que os anteriores também na esfera dos particulares, com poucos contratos de compra e venda ou doação na região da fronteira. E, se, atendendo aos diplomas sobreviventes, no ano seguinte, a diocese de Coimbra manteve a tendência de frugalidade, Santa Cruz parece ter regressado à azáfama de ampliar a sua presença territorial: Viseu foi a região privilegiada, mas também se contam aquisições, por compra ou doação, em Coimbra e Montemor. O objetivo, por estes anos, parecia ser um investimento na consolidação da fronteira, talvez por D. Afonso Henriques se encontrar aparentemente mais afastado da região e necessitar de manter todos os braços no local. Apesar das restrições relacionadas com potenciais soldados, o fluxo de peregrinos não terá sido interrompido. Um documento de Santa Cruz, emitido em março de 1146, destaca-se pelo conteúdo: Aragunte Soares fez testamento a esta instituição da vila de São Martinho, em Viseu, como agradecimento por 20 morabitinos que lhe emprestou para ir à Terra Santa.76 O diploma tem data de 1146, pelo que a viagem se realizou forçosamente em momento anterior e desconhecido, mas talvez possamos aceitar que teria ocorrido nos primeiros anos da década de 1140, quando a guerra de fronteira exigiria igualmente todas as mãos no terreno. Ou seja, apesar das necessidades militares, os peregrinos continuariam a rumar ao Oriente. Não sabemos quanto custaria uma tal viagem nem tão-pouco se os 20 morabitinos emprestados seriam suficientes para ir ao Oriente e regressar, mas justificaram um agradecimento com a doação de uma vila em Viseu. No mesmo ano e na mesma região, Santa Cruz pagou entre um e 40 morabitinos pelas

74 Livro Preto da Sé de Coimbra [1162-1176] 1999, 769-772. 75 Mansi 1758-1798, 21:626-627. 76 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 255-256. 508 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

herdades que comprou.77 Esta ordem de grandezas talvez permita avaliar a soma de 113 mil morabitinos que, nesse ano de 1146, Almeria entregou aos genoveses para desistirem do ataque à cidade e que poderá ter constituído um dos motivos para regressarem em 1147: apesar da decadência do Império Almorávida, a sede da marinha de guerra e comercial, o principal porto do al-Andalus, ainda provava ter capacidade económica e seria, mais do que nunca, considerada um inimigo a abater, até porque Pisa e Génova seguiam um padrão de ataques nos momentos de fragilidade dos inimigos. Quanto a Santa Cruz, tornou-se uma instituição ainda mais poderosa no mês de julho, na medida em que D. Afonso Henriques, recém-casado e já mencionando o nome da sua rainha, atribuiu carta de couto a todos os que quisessem habitar nas herdades do mosteiro, ou seja, abstinha-se de cobrar impostos sobre estas populações.78 Este é também o único documento que se conhece que D. Afonso Henriques emitiu na fronteira com os muçulmanos em 1146, outro ano com presença sobretudo a norte. O casamento, que exigia negociações e preparação, terá, assim, sido uma das principais preocupações no biénio entre 1145 e 1146. Mas não seria a única. Apesar de algumas diligências do papa Eugénio III em 1145, nomeadamente com a exortação a Luís VII, rei de França, para que organizasse uma expedição ao Oriente, era agora, em 1146, que as intenções se consolidavam, mercê da oratória de São Bernardo de Claraval. As fontes germânicas encontram-se repletas de referências à preparação da cruzada, já que o imperador Conrado III aderiu à campanha ao lado do rei Luís VII. Os Annales Magdeburgenses atestam que “o autor e instigador desta expedição foi o abade de Claraval”, após o que relatam brevemente a expedição à Terra Santa e, logo a seguir, sem títulos nem parágrafos, ao correr da narrativa, introduzem a campanha que levou à conquista de Lisboa com a expressão “naquele tempo”.79 Já os Annales Colonienses Maximi, cuja parte referente a Lisboa foi coligida por Alfredo Pimenta, em Fontes Medievais da História de Portugal,80

77 Livro Santo de Santa Cruz [1155-1226?] 1990, 372 e 367-368. 78 Azevedo 1958, 265-266. 79 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 188-189. 80 Annales Colonienses Maximi [1150-1250?] 1982, 131-132. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 509 afirmam: “Desta forma, os autores máximos foram Bernardo, abade de Claraval, e um monge de nome Rodolfo.” Fazem depois a narração da cruzada e, logo a seguir, introduzem a expedição sobre Lisboa, optando pela separação com título, mas arrancando o texto com uma fórmula semelhante: “Ao mesmo tempo.”81 Já os Annales Brunwilarenses, que também aludem à pregação de São Bernardo e descrevem a cruzada de forma não muito alongada, fazem apenas uma breve menção à conquista de Lisboa, no seguimento do texto anterior: “A cidade de Lisboa foi conquistada por peregrinos numa batalha naval.”82 Por sua vez, a carta do clérigo Duodechino de Lahnstein, que participou na campanha sobre Lisboa, inserida nos Annales Sancti Disibodi83 e também publicada por Alfredo Pimenta,84 não faz menção à cruzada, preferindo destacar para 1147 o auxílio do imperador Conrado III ao duque da Hungria contra os que se rebelavam contra a sua autoridade, relatando logo de seguida a conquista de Lisboa. Em todas estas fontes, com a evidente exceção da carta de Duodechino, as campanhas da Terra Santa e de Lisboa encontram-se intimamente associadas, em termos temporais, mas também ao nível da articulação, como se fossem expressões de uma mesma estratégia de combate aos muçulmanos. Em nenhuma destas narrativas é suscitada a mínima suspeita de que a campanha de Lisboa não tivesse sido concebida com a intenção de conquistar a cidade e que constituísse mais uma expedição que ia rumo à Terra Santa, mas que, por alturas do Porto, foi desviada para os propósitos de D. Afonso Henriques, com o auxílio da oratória do bispo local. Aliás, as tropas do imperador Conrado III que seguiram para o Oriente não tomaram o caminho dos confins da Galiza. Pelo contrário, nestas fontes, fica claro que houve uma operação pensada para Lisboa: a 26 de abril, saíram navios de Colónia, que a 18 de junho alcançaram o porto de Dartmouth, onde se encontraram com as forças inglesas e flamengas. Ao fim de oito dias, chegaram à Galiza. Alguns dias depois, estavam no Porto, onde foram recebidos em festa e esperaram pouco mais de uma semana pelo conde Arnaldo de Aerschot, o qual se perdeu na tempestade que atingiu a armada no percurso entre a Inglaterra

81 Annales Colonienses Maximi [1150-1250?] 1861, 761. 82 Annales Brunwilarenses [1000-1199?] 1859, 727. 83 Annales Sancti Disibodi [1150-1200?] 1861, 727. 84 Annales Sancti Disibodi [1150-1200?] 1982, 124-130. 510 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

e a Galiza. Assim que o conde e os seus homens chegaram, a frota partiu para Lisboa. Todas estas etapas da viagem sugerem uma articulação e uma preparação com um objetivo preciso, que não passaria pelo Oriente. Ao atentarmos nos Annales Rodenses, fonte que cobre um período entre 1104 e 1156 e que foi redigida num mosteiro do Limburgo, região hoje partilhada entre Alemanha, Holanda e Bélgica, percebemos que a interligação entre as campanhas do Oriente e de Lisboa não é uma suposição. Dada a proximidade face aos factos, assumimos, pois, que a história transmitida equivale a um testemunho e não a uma memória tardia. De forma resumida, explica que, em 1146, a pregação foi levada a todas as partes do território germânico por um diácono de nome Rodolfo, enviado por São Bernardo, o qual depois também exortou as populações no sentido de aderirem ao projeto – sabemos que o abade de Claraval pregou na corte do imperador Conrado III –, uma demanda que se dividiu em três vertentes, todas com o selo da cruzada e com a absolvição dos pecados subjacente: um ataque a Lisboa, outro aos povos do leste europeu, de que fala igualmente Duodechino, e um terceiro ao Oriente.85 Todas as restantes fontes germânicas referidas articulam as campanhas da Terra Santa e de Lisboa, algo em que a edição de Alfredo Pimenta falha, pois retira as partes referentes à campanha de Lisboa do respetivo contexto. Todos os textos começam por explicar que a pregação foi da autoria de São Bernardo, ficando implícito que também apelou à operação sobre Lisboa, mas não contêm nenhuma referência expressa, quem sabe porque, no espírito da época, fosse supérflua tal especificação. Já nos Annales Rodenses a correlação é clara. A fonte demonstra aquilo que alguma historiografia portuguesa tem procurado provar: a conceção de uma campanha específica para Lisboa e a intervenção de São Bernardo nas negociações que tornaram possível a empresa. José Mattoso, por exemplo, com o recurso a uma série de indícios, como doações e a verificação de relações entre o papado e Santa Cruz de Coimbra, procura estabelecer uma associação entre São Bernardo e D. Afonso Henriques.86 Os Annales Rodenses confirmam as suspeitas de Mattoso e revelam aquilo que poderá ser considerado uma vitória

85 Annales Rodenses [1170-1199?] 1859, 718. 86 Mattoso 2007, 131-133. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 511 da diplomacia portucalense, feito que provavelmente terá de ser associado às frequentes viagens de D. João Peculiar a Roma. O problema desta teoria é termos uma fonte de origem inglesa, De Expugnatione Lyxbonensi, que coincide em muitos pormenores com os textos germânicos, a atestar que os cruzados tiveram de ser convencidos a participar na expedição a Lisboa. Como pode a memória escrita germânica conviver com a inglesa, admitindo que não haverá falsidade nas informações? Segundo fonte inglesa, D. Afonso Henriques sabia que estava para fundear no Porto uma armada que seguia para a Terra Santa. Deixou, então, uma mensagem ao bispo da cidade, para que tratasse bem os cruzados e os convencesse a aderirem aos planos para atacar Lisboa, ocorrendo nesta fase o famoso discurso que terá tocado os corações dos soldados. Segundo o autor da narrativa, “o rei já há muito se ausentara com o seu exército, para enfrentar os mouros”.87 Como se depreende, D. Afonso Henriques seguiu por terra, tarefa facilitada pela conquista de Santarém poucos meses antes, até porque temos de concluir que parte das tropas desta cidade se dispersou, se dermos como certa a fuga do governador para Sevilha, relatada nas Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra.88 Sabemos ainda que, após a queda de Santarém, muitos habitantes da cidade fugiram para Lisboa,89 pelo que também é plausível que tropas muçulmanas os tenham acompanhado, desguarnecendo a defesa do território compreendido entre as duas cidades. Chegados a Lisboa, de acordo com a fonte inglesa, os cruzados iriam ouvir também os argumentos de D. Afonso Henriques para se juntarem à campanha.90 Mas seria plausível que o soberano colocasse a operação no terreno sem a certeza de que iria ter navios para o bloqueio à cidade? Sem capacidade naval, não poderia alcançar o sucesso, e deixar todas as negociações para o momento em que estaria às portas de Lisboa não parece razoável. Ou seja, precisava de saber que contava com uma armada para fazer o cerco e, segundo os Anales Rodenses, o auxílio dos navios provenientes do Império Germânico era certo.

87 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 61. 88 Chronicas Breves e Memorias Avulsas de S. Cruz de Coimbra [1400-1499?] 1856, 29. 89 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 79. 90 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 73. 512 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Na prática, a linha historiográfica tradicional, que alega ter a cruzada que seguia para a Terra Santa sido desviada para Lisboa, que é apoiada, entre outros, por Maria João Branco,91 não parece excluir aquela que propõe a organização de uma campanha específica, pregada por São Bernardo, que é defendida por José Mattoso: os ingleses seriam os únicos que teriam de ser convencidos a alterarem os planos de tomarem a cruz no Oriente. E, como sabemos, D. Afonso Henriques compensou-os largamente,92 inclusive com a oferta da diocese restaurada a um prelado inglês. Já os germânicos, os flamengos e eventualmente os francos (os últimos podem ter saído de portos da Flandres) terão sido arregimentados pela pregação de São Bernardo. Não por acaso, a fonte De Expugnatione Lyxbonensi refere que os primeiros a aderirem às propostas de D. Afonso Henriques, em Lisboa, foram os flamengos, a que se juntaram os de Colónia, de Bolonha, da Bretanha e da Escócia, os quais também o fizeram “de bom grado”.93 A fonte De Expugnatione Lyxbonensi está redigida segundo um ponto de observação inglês, que a historiografia tem associado às forças estrangeiras como um todo, mas a verdade é que estas nunca se comportaram como um conjunto. Terá talvez sido um golpe de sorte que todas as armadas se tenham encontrado no sul de Inglaterra. Mas, com ou sem ingleses, parece certo que D. Afonso Henriques teria sempre uma armada a auxiliá-lo na tentativa de conquistar Lisboa, como já acontecera em 1142. Contudo, ao analisarmos a referida passagem dos Annales Rodenses, de uma cruzada tripartida em 1147, surge a dúvida quanto a Almeria: porque não terá São Bernardo pregado a campanha sobre o porto do al-Andalus? Talvez esta exclusão se explique pelo facto de Almeria já contar com tropas de Génova, Pisa, Barcelona, Leão e Castela. Mas o papa Eugénio III estava atento. Em 1148, enviou uma carta a Afonso VII, concedendo a bênção à expedição do ano anterior e prometendo que tudo faria para que o arcebispo de Braga, D. João Peculiar, reconhecesse Toledo como primaz. Aconselhava ainda a paz com o Condado

91 Branco 2007, 11. 92 Azevedo 1958, 275. 93 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 83-85. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 513

Portucalense, para que os planos militares de ambos não fossem prejudicados. Pedia, por fim, para Afonso VII desistir da queixa contra D. Afonso Henriques motivada pela conquista de Lisboa.94 Homem extremamente piedoso e que ficou chocado com a queda do condado de Edessa, Eugénio III não iria perder a oportunidade de uma grande vitória contra os muçulmanos apenas para respeitar os direitos de conquista de Afonso VII, mesmo porque Lisboa acabou por ser o sucesso mais expressivo no âmbito da Segunda Cruzada, um feito que poderia ser associado ao seu pontificado: a localização longínqua de Almeria face ao território castelhano-leonês, com o movimento almóada em ascensão, tornaria sempre a conquista precária, a menos que Afonso VII continuasse a acalentar a esperança de transformar o al-Andalus num protetorado. O rumo dos acontecimentos provou que estava errado. Quando os almóadas desembarcaram em Cádis, em junho de 1146, para se lançarem ao assalto ao al-Andalus, a pregação da cruzada alastrava pelo centro da Europa como uma mancha de óleo. A menor atividade de D. Afonso Henriques na fronteira durante os anos de 1145 e 1146, em que deve ter pesado sobretudo a ação diplomática, com as negociações do casamento e da cruzada sobre Lisboa, em breve seria recompensada. O projeto almóada para tomar Sevilha, que obrigava à participação dos senhores do Gharb al-Andalus, foi a última peça do puzzle a encaixar. A sorte sorria a D. Afonso Henriques. Não é possível determinar se Santarém sempre tinha estado nos seus planos antes do ataque a Lisboa ou se o monarca decidiu avançar devido à operação almóada sobre Sevilha e ao facto de saber que todos os exércitos do Gharb, talvez com a exceção de um contingente de Lisboa, seriam obrigados a enviar tropas para auxiliar os planos do califa Abd al-Mumin.95 A conquista de Santarém seria um risco: ou conseguia controlar as fortalezas na sua retaguarda ou poderia acabar esmagado. Não obstante a elevada instabilidade no al-Andalus e, mais concretamente no Gharb, com a desagregação do território em unidades políticas autónomas, o que levava a que Santarém mantivesse interesses diferentes, por exemplo, de Évora ou Beja, a guarnição cristã que controlou o castelo do Tejo

94 Mansi 1758-1798, 21:672-673. 95 Lourinho 2010, 45-51. 514 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

entre março, mês em que foi tomado, e outubro, quando Lisboa também se juntou às possessões de D. Afonso Henriques, teve de manter uma posição precária durante um tempo razoável. O trabalho de anulação das fortificações na fronteira com os cristãos e de manutenção do Castelo de Santarém pode ter sido atribuído aos templários, o que explicaria que, logo em abril de 1147, D. Afonso Henriques tenha doado à ordem o eclesiástico da cidade. Nesse momento, já o soberano parece sonhar com o futuro: “Se acontecer que Deus, na sua bondade, em algum momento me der a cidade a que chamam Lisboa.”96 Independentemente do conflito que se iria desenrolar entre os templários e o bispo de Lisboa, Gilberto de Hastings, pela posse dos rendimentos das igrejas de Santarém, D. Afonso Henriques já parecia antever aqui a conquista de Lisboa, o que constitui mais um indício de que a operação estaria em marcha e de que sabia que teria alguma probabilidade de ser bem-sucedida. Na verdade, no fim de abril, os navios germânicos deixaram Colónia para irem até ao ponto de encontro com os flamengos. Desde a primavera que o rei tinha consciência de que, pelo menos, as tropas e os navios que vinham do Império Germânico lhe iriam prestar auxílio. Mas a conquista de Santarém nada teve que ver com a lógica da cruzada: tratou-se de uma operação de guerra de fronteira, baseada num profundo conhecimento do outro, com quem se partilha um quotidiano feito de conflito. Na madrugada de uma sexta-feira para um sábado, quando depois do jejum semanal os muçulmanos se encontravam mais debilitados; com poucos soldados, alguns dos quais falantes da língua árabe; e quando parte do exército de Santarém se encontrava em Sevilha a passar o Ramadão após a conquista almóada da cidade: assim se fizeram as circunstâncias da tomada de Santarém. Quanto aos planos, D. Afonso Henriques tê-los-á revelado somente a um círculo restrito, que incluía São Teotónio, o prior de Santa Cruz, a quem pediu que orasse pelas suas tropas e cuja Vita explica justamente que o objetivo era um assalto furtivo, pois não seria possível atacar de modo convencional, dada a localização, a fertilidade dos campos, muitos deles alagados ou pantanosos, e a população numerosa.97

96 Azevedo 1958, 272-273. 97 Vita Theotonii [1163] 1998, 189. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 515

Também o Quo Modo Sit Capta dá conta da revelação dos planos aos cónegos de Santa Cruz e das orações que lhes foram encomendadas.98 Como vimos, Ibn al-Khatib explica que, no seguimento do apelo à rebelião formulado por Ahmad b. Qasi, vários senhores do al-Andalus cortaram com o poder almorávida: um deles foi Labid b. Abd Allah, governador de Santarém.99 O repúdio que manifestou face aos senhores de Marraquexe significa que pode ter reconhecido Ibn Qasi e os muridinos ou, pelo menos, ter pagado tributo para não ser atacado. Inclusivamente, quando Ibn Qasi perdeu terreno para Ibn Wazir, o governador de Évora e Beja, que se aliou ao cádi de Córdova após a morte do emir de Marraquexe em março de 1145, Labid b. Abd Allah pode ter pagado também a este novo potentado. Ibn Hamdin manteve-se em Córdova apenas até fevereiro de 1146, mas Ibn Wazir continuava a ser a figura militar de referência do Gharb al-Andalus. Qualquer que tenha sido a estratégia política por que optou, quando os almóadas chegaram ao al-Andalus e submeteram os senhores do Gharb, o governador de Santarém não pôde fugir à obrigação de enviar tropas para auxiliar na campanha de Sevilha, desguarnecendo as defesas da sua cidade.100 A conquista da urbe do Guadalquivir ocorreu a 17 ou 18 de janeiro e, a 4 de fevereiro, ou seja, cerca de duas semanas depois, começou o Ramadão, que se prolongou até 5 de março. D. Afonso Henriques aproveitou certamente o tempo extra que o “mês sagrado” lhe proporcionou, de forma a conseguir atacar sob condições de clima mais favoráveis – os exércitos fariam uma pausa durante o período de jejum. Ao recorrermos a um simulador das fases da lua,101 percebemos que a noite de 5 de março de 1147, a qual marcou o fim do Ramadão, correspondeu a uma quarta-feira, o que impediria D. Afonso Henriques de beneficiar da debilidade física proporcionada pelo jejum semanal. Além disso, nessa noite, não se vislumbrava a Lua no céu, certamente um problema para uma operação militar que deveria ser executada de forma discreta para não alertar a malha

98 Nascimento 2005, 1231. 99 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 1956, 248. 100 Lourinho 2010, 47-48. 101 Em www.rodurago.net. 516 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

defensiva muçulmana, composta de várias infraestruturas, como castelos, atalaias e pontos de vigia. A primeira sexta-feira depois do Ramadão em que surgiu uma lua favorável foi a de 14 para 15 de março, momento em que D. Afonso Henriques decidiu atacar. A lua que ocorreu na noite de 21 para 22 de março seria ainda mais luminosa, mas a operação poderia ser posta em risco, com o regresso a casa das tropas de Sevilha.

Fig. 10: Simulador das fases da lua em março de 1147 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 517

Olhando agora para a configuração do terreno, com o Castelo de Porto de Mós a defender a serra de Aire, e as fortalezas de Ourém, entre a serra e o rio Zêzere, a protegerem a passagem para Santarém, a via mais segura para as tropas de D. Afonso Henriques seria a da montanha. Passando Porto de Mós, com que poderiam eventualmente ter firmado um acordo, os guerreiros do rei beneficiariam de maior probabilidade de seguirem incógnitos, durante a noite, guiados pela luz da Lua e, ao optarem pelo setor da serra mais próximo da estrada que seguia para Santarém, poderiam até controlar as posições defensivas muçulmanas. Com efeito, o Quo Modo Sit Capta refere que D. Afonso Henriques deixou Coimbra em direção à Ladeia e seguiu para a zona de Ourém, tendo derivado depois para Alvados, onde permaneceu toda a quinta-feira até à noite, o que significa que as tropas portucalenses descansavam de dia e seguiam caminho durante o período noturno. Entretanto, já tinham sido enviados três cavaleiros, grupo que incluía Martim Moab, para avisar Santarém de que as pazes, até então garantidas pelo pagamento de tributo, se encontravam suspensas por outros tantos dias, uma afirmação estranha se tivermos em conta que D. Afonso Henriques pretendia um ataque de surpresa, pelo que talvez tenhamos de considerar que o objetivo destes guerreiros era analisar as condições no terreno e, quem sabe, garantir apoios na cidade, uma vez que, no seu discurso para motivar as tropas, que aquela fonte reproduz, o rei assegura que “algumas sentinelas hão de acolher-nos”.102 De Alvados, D. Afonso Henriques dirigiu-se a Pernes, onde chegou ao romper da aurora de sexta-feira, percorrendo menos de 30 quilómetros, e onde permaneceu durante o dia, momento em que foram fabricadas escadas para o ataque ao castelo. À noite, partiu para Santarém, que atacou “ad galli cantum”, ou seja, na madrugada de 14 para 15 de março.103 Os guerreiros de D. Afonso Henriques conseguiram subir a muralha, controlar as sentinelas e tomar o castelo.104 Com a conquista de Santarém, é provável que o sistema defensivo a norte da cidade tenha começado a colapsar, mas apenas a tomada de Lisboa terá permitido a D. Afonso Henriques consolidar o território até

102 Nascimento 2005, 1230-1231. 103 Chronica Gothorum [1100-1299?] 1856, 15; Annales D. Alfonsi Portugallensium Regis [1100-1299?] 1966, 157. 104 Nascimento 2005, 1232. 518 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

ao Tejo. Sabemos que alguns cavaleiros muçulmanos provenientes de Tomar, Torres Novas, Alenquer e Óbidos desceram até Sacavém para combaterem os cruzados que assediavam Lisboa,105 o que significa que ainda existiriam bolsas de contingentes militares atrás das linhas portucalenses.

Fig. 11: Percurso das forças de D. Afonso Henriques no ataque a Santarém

Pouco depois de Santarém cair, a cidade de Marraquexe foi conquistada pelos almóadas, ao fim de um cerco de nove meses, exatamente dois anos depois de o emir Tashfin b. Ali se despenhar numa falésia em Orão. Segundo as fontes, a cidade defendeu-se com bravura e, face à escassez de alimentos, a população viu-se obrigada a ingerir cadáveres para sobreviver.106 Não obstante os números amplos do exército almóada, Marraquexe parece ter caído devido

105 Leitão 2011, 112. 106 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 279-280; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 164-165. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 519 a um ato de traição.107 Abd al-Mumin ordenou o assalto a 23 de março, permitiu uma carnificina durante três dias108 e ordenou a demolição das mesquitas almorávidas.109 Quando o califa entrou na cidade, era já, pelo menos simbolicamente, o senhor do Magrebe e do al-Andalus, uma vez que Sevilha tinha sido conquistada em janeiro. No entanto, ainda lhe faltava controlar focos de rebelião no território magrebino, e Sevilha iria cair em breve nas mãos das gentes do al-Andalus. Apenas em 1150 ambos os lados do estreito de Gibraltar ficariam pacificados.110 Depois desse agitado mês de março de 1147, e garantida a cidade de Santarém, D. Afonso Henriques poderia mais facilmente seguir para Lisboa e esperar ser bem-sucedido: esta seria a única cidade do Gharb al-Andalus que não se teria rebelado contra o poder almorávida nem reconhecido o califa almóada por intermédio do exército enviado para conquistar Sevilha. De facto, Ibn al-Khatib não inclui o governador de Lisboa na lista de rebeldes contra os senhores de Marraquexe na sequência dos conflitos suscitados por Ibn Qasi. É possível que Lisboa se mantivesse fiel aos almorávidas, o que explicará porque Sidray b. Wazir, senhor de Évora e Beja, não a socorreu quando do cerco de D. Afonso Henriques.111 Mais: no segundo semestre de 1147, quando os senhores do Gharb procuraram sacudir o poder almóada, desagradados com os abusos cometidos em Sevilha, e entraram de novo em rebelião, Ibn Wazir estaria mais preocupado em conservar a cidade de Badajoz, que Ibn al-Hajjam, filho do almirante de Cádis, Ali b. Isa b. Maymun, lhe procurava subtrair.112 Por esta razão, é totalmente credível o acordo de paz entre D. Afonso Henriques e Ibn Wazir, que a fonte De Expugnatione Lyxbonensi refere e ao abrigo do qual o senhor de Évora e Beja, que também dominava Alcácer, não terá auxiliado os habitantes de Lisboa.113 A cidade encontrava-se fora da sua esfera de influência, e o controlo de Badajoz deveria constituir a prioridade.

107 Ibn al-Athir [1175-1233?] 1898, 543-544; al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 165. 108 Ibn Idari al-Marrakushi [1311-1312?] 1963, 281. 109 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 174. 110 Al-Baydaq [1120-1165?] 1928a, 184-185. 111 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 109-111. 112 Lourinho 2010, 64. 113 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 111. 520 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Podemos ainda perguntar por que motivo a marinha de guerra de Alcácer não prestou ajuda a Lisboa. Contudo, não é certo que uma tal armada existisse: alguma historiografia tem confundido Alcácer com Cacela,114 praça onde sabemos, por via da Historia Compostelana, que havia, de facto, uma frota.115 Alcácer contava, sem margem para dúvidas, com estaleiros de construção naval.116 Ainda assim, mesmo que dispusesse de marinha de guerra, não sabemos qual a sua dimensão nem se estaria desgastada devido a uma eventual participação na conquista almóada de Sevilha. Além disso, o acordo de paz entre D. Afonso Henriques e Ibn Wazir, senhor de Alcácer, inviabilizaria qualquer tipo de ajuda.117 Lisboa encontrava-se, pois, sozinha do ponto de vista militar e político, uma situação que em muito favoreceu o ataque cristão. Não deixava, no entanto, de ser uma cidade bem fortificada e com muita população, a que se somaram todos os que fugiam da guerra e da morte. De Santarém, Sintra, Almada ou Palmela, muitos saíram para se juntar aos habitantes daquele que seria o último bastião almorávida no Gharb al-Andalus, situação que terá contribuído para a escassez de alimentos e a falta de espaço para dar sepultura aos mortos, o que rapidamente provocou a degradação das condições intramuros.118 No princípio do verão de 1147, D. Afonso Henriques, que tinha certamente consciência dos planos de Afonso VII para atacar Almeria e, assim, beneficiaria de maior liberdade de movimentos, seguiu com as suas tropas para sul, como dá conta a fonte De Expugnatione Lyxbonensi.119 Sabia que, mesmo que não contasse com o auxílio dos ingleses, teria à sua disposição uma frota de navios germânicos, flamengos e provavelmente francos, bem como a proteção do papa Eugénio III e de São Bernardo de Claraval. No al-Andalus, a instabilidade era extrema: os muridinos suscitaram a rebelião generalizada contra o poder almorávida, enquanto os almóadas conquistaram e perderam Sevilha. Mais revoltas grassavam num território que, em breve, Afonso VII também atacaria. A conjuntura era favorável, até porque, com a conquista de Santarém,

114 Picard 2005, 15; Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 244 e 339. 115 Historia Compostelana [1107-1150?] 1994, 244 e 339. 116 Al-Himyari [1200-1399?] 1938, XXX. 117 Lourinho 2010, 58-59 e 62-66. 118 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 79. 119 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 61. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 521 as defesas da fronteira do Gharb al-Andalus teriam começado a ruir. Lisboa não parecia ter grandes possibilidades de salvação. A 1 de agosto de 1147, iniciava-se a campanha de Almeria,120 quando a cruzada sobre Lisboa já estava às portas da cidade desde junho. Se os genoveses conseguiram lançar mais de 220 navios sobre as ondas do Mediterrâneo, dos quais 63 galés,121 isto sem contar com os lemes de Pisa, Barcelona e Montpellier, D. Afonso Henriques, após promessas de liberdade no saque, repartição de terras e isenção de impostos sobre as mercadorias,122 obteve sucesso nas negociações com os ingleses e demais cruzados, ampliando também a capacidade naval que lhe fora garantida pelos germânicos. Almeria, base de operações de Muhammad b. Maymun, cairia a 16 de outubro, com grande mortandade,123 e o alcaide almorávida foi obrigado a refugiar-se nas ilhas Baleares.124 Em Lisboa, a acreditar na fonte inglesa, os aliados tentaram obter a rendição dos sitiados, com negociações de paz entre o bispo do Porto e o arcebispo de Braga, do lado dos cristãos, e anciãos da cidade, do lado dos muçulmanos, mas a oferta não foi aceite e o cerco iniciou-se já no mês de julho.125 O arrabalde ocidental foi facilmente tomado pelos ingleses e pelos normandos,126 onde encontraram silos com cereais e legumes, que se destinavam ao abastecimento da cidade.127 No arrabalde oriental, posicionavam-se os de Colónia e da Flandres.128 Todos os contingentes construíam as suas torres e máquinas de guerra, e procuravam destruir as muralhas, inclusive com a escavação de minas. Em agosto, a cidade já começava a sentir os efeitos da fome e do mau cheiro dos cadáveres. Os Annales Magdeburgenses alegam que os muçulmanos não desdenhavam comer os cães e os gatos para sobreviverem. Outros aceitaram converter-se ao cristianismo para terminarem os seus males,129 uma informação confirmada pela De Expugnatione Lyxbonensi, a qual afirma

120 Chronica Adefonsi Imperatoris [1140-1160?] 1972, 2:202. 121 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1973, 22. 122 Azevedo 1958, 274; De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 90-91. 123 Caffaro di Rustico da Caschifellone [1095-1164?] 1973, 28. 124 Tapia Garrido 1986, 370-371. 125 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 93-99. 126 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 103. 127 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 105. 128 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 189. 129 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 115; Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 189. 522 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

que, como a fome pressionava os habitantes, alguns dos mais pobres fugiam, entregavam-se aos cristãos e acabavam por revelar os planos dos defensores.130 Apesar das escaramuças e dos esforços dos cruzados, só em outubro se começaram a vislumbrar alguns sucessos palpáveis, com a escavação de um fosso por debaixo da muralha junto à porta ocidental, onde hoje se localiza o largo da Igreja de Santo António, combinada com a instalação de duas balistas a lançar pedras em permanência, para evitar uma ação dos defensores, e a construção de uma torre pelos ingleses e pelos normandos, que as fontes germânicas atribuem a um pisano, “homem de grande engenho”.131 Quando a mina ficou concluída, os cruzados preencheram o vazio com lenha, que incendiaram, para fazerem cair a muralha. Apesar da situação desesperada, os muçulmanos conseguiram impedir a entrada dos cristãos na cidade.132 A 19 de outubro, um domingo, o arcebispo de Braga apelou à unidade dos atacantes e pregou novamente a cruzada, motivando as tropas para o assalto final, que chegou no dia 21. Uma torre avançou até à brecha na muralha, equipamento que ficou à mercê da maré e dos ataques dos muçulmanos, que em vão procuraram incendiar o engenho. Quando a maré baixou, percebendo a sua vulnerabilidade, os defensores pediram tréguas.133 Os germânicos, por sua vez, afirmam que os muçulmanos solicitaram as pazes ao verem a forma corajosa como estes lutavam.134 Fernão Peres Cativo e Hervey de Glanville entraram, então, em Lisboa para negociar os termos da rendição. A fonte De Expugnatione Lyxbonensi, de origem inglesa, acusa os da Flandres e de Colónia de provocarem toda a espécie de desmandos ao acederem à cidade. Sem surpresas, a fonte alega que, ao contrário, os ingleses e os normandos respeitaram os habitantes e que, só depois de muitos deixarem Lisboa, esta foi saqueada.135 Os germânicos, não procurando grandes justificações morais, sublinham que o seu exército tomou muitos bens, ouro e prata.136

130 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 113. 131 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 189. 132 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 115-117. 133 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 129. 134 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 190. 135 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 139-141. 136 Annales Magdeburgenses [1175-1199?] 1859, 190. 1130-1147. novo equilíbrio de forças no gharb al-andalus 523

Pouco depois, as fortalezas que estavam na dependência de Lisboa, como Sintra e Palmela, renderam-se a D. Afonso Henriques,137 que, desaparecido o Império Almorávida em Marraquexe e em Sevilha, era agora o senhor das linhas do Tejo, entregues ao seu avô em 1093 pelo rei da taifa de Badajoz e recuperadas por Sir b. Abu Bakr para o lado almorávida provavelmente entre 1095 e 1111. Aquilo que Afonso VI obteve pela astúcia e pela pressão conseguiu D. Afonso Henriques pela força das armas e pela ação diplomática ao longo de 17 anos, a partir do momento em que começou o cisma entre Inocêncio II e Anacleto II e tomou a decisão de apostar no partido apoiado por São Bernardo de Claraval. Ainda teria, no entanto, de esperar mais de 30 anos até o papado lhe reconhecer o estatuto de rei e de suportar sucessivas vagas de exércitos almóadas, que saíram sempre derrotados da fronteira do Tejo. Apesar dos esforços do novo poder de Marraquexe, que levariam o califa Abu Yaqub Yusuf a perecer em 1184, após mais uma tentativa frustrada para recuperar Santarém, o Baixo Tejo nunca mais estaria debaixo do domínio muçulmano.

137 De Expugnatione Lyxbonensi [1147-1199?] 2001, 141.

REFLEXÕES

REFLEXÕES

Quando, em 1094, os almorávidas entraram em contacto com a fronteira do Gharb al-Andalus, já Granada e Sevilha faziam parte de um império nascido nas areias do deserto do Sara e que, em 30 anos, se expandiu até Ceuta e atravessou o Mediterrâneo, rumo à Península Ibérica, onde a instabilidade política lhe facilitou a entrada. Os cristãos pressionavam os reinos de taifas, provocando a sedição entre muçulmanos e exigindo tributo em troca de uma pretensa proteção, o que tinha como consequência a sobrecarga fiscal e o descontentamento das populações, e adensava um sentimento de injustiça, que os conquistadores berberes usaram em seu proveito com a ajuda das elites locais e, em especial, das famílias de juízes e doutores de leis, que controlavam o poder desde o final do califado de Córdova e lhes legitimaram a governação.

Legitimação do poder

Ao formar um corpo militar fiel, unido pela ideologia dajihad , Abd Allah b. Yasin apropriou-se de rotas comerciais há muito estabelecidas, procurando obter o monopólio dos rendimentos proporcionados pelo comércio de ouro e escravos provenientes da África subsariana, e desviando riquezas das rotas mais orientais, que serviam os interesses dos ziridas de Mahdia e do califado fatímida do Cairo. O controlo do ouro permitia pagar o exército, a lealdade das tribos e o apoio dos doutores de leis, enfim, dava a possibilidade de construir as bases de 528 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

um império, e terá sido, em grande medida, a perda do domínio deste comércio que terá implicado a queda do poder almorávida para os almóadas em meados do século XII. Sem ouro, deixou de ter condições para sustentar esse mesmo exército e essa mesma lealdade das tribos. No presente caso, pouco importava o apoio dos doutores de leis maliquitas, execrados pelo poder almóada, o qual encontrou fonte legitimadora num discurso alternativo: a infalibilidade (isma) do seu líder religioso, Muhammad b. Tumart. A verdade é que, sem ouro, o Império Almorávida não conseguiu assegurar as suas estruturas e acabou por ruir. Mais do que um imam piedoso e um rigoroso observador dos preceitos da religião, Abd Allah b. Yasin era um agitador político experiente que há muito procurava estabelecer-se como líder junto das tribos berberes e que só conseguiu levar o seu projeto avante com o apoio dos sanajas do deserto do Sara. Assumindo-se como executor da vontade de Deus, lançou as bases de um modelo de império constituído por um líder religioso com mão de ferro, suportado por um exército disciplinado e pelo financiamento proveniente do controlo do comércio, que, de resto, ainda que com adaptações, o movimento almóada iria mais tarde emular. Pregador de regras nem sempre coerentes com o seu comportamento pessoal, Ibn Yasin causava escândalo ou, pelo menos, estranheza entre os seus correligionários muçulmanos, mas o esmagamento dos insubmissos, somado ao pagamento aos doutores de leis maliquitas devem ter mitigado as hesitações. A sucessão almorávida nem sempre foi clara: parece evidente que, por morte de Ibn Yasin, houve a tentativa de perpetuar o modelo dual, de um líder religioso apoiado num chefe militar, mas a morte prematura do substituto do fundador, Sulayman b. Adu, abriu uma oportunidade para Abu Bakr b. Umar herdar o poder sozinho, ficando a impressão de que pode ter afastado eventuais pretendentes à liderança espiritual. Tornou-se num ator político forte, cujo nome circulava nas moedas de ouro de elevado grau de pureza em que evocava o califa abássida e que constituíam o meio de pagamento preferencial no Mediterrâneo ocidental. A historiografia tem-se esforçado por apresentar uma imagem impoluta de Yusuf b. Tashfin, sucessor de Abu Bakr, mas os dados disponíveis permitem reflexões 529 concluir que o vencedor da Batalha de Zallaqa usurpou o poder, de resto, tanto no Magrebe como no al-Andalus. O novo emir de Marraquexe conseguiu afastar os reis de taifas, “provando” que estes não reuniam condições para se manterem à frente das suas comunidades: não protegiam as populações dos ataques dos inimigos cristãos, cobravam impostos ilegais e deixavam a governação a terceiros para se dedicarem a frivolidades e prazeres mundanos. Mas a ajuda dos doutores de leis maliquitas veio com um preço e, depois da conquista do al-Andalus, os almorávidas não interferiram no statu quo, deixando as mesmas velhas famílias circularem nos lugares do poder judicial, ainda que a nomeação de juízes dependesse diretamente do emir de Marraquexe. A permanência deste estrato social permitiria, por seu turno, a circulação das elites berberes pela governação das principais cidades do al‑Andalus. Assim, os governadores almorávidas assumiam-se sobretudo como chefes militares que faziam a guerra santa e protegiam a comunidade – e, por isso, eram destituídos face aos insucessos na guerra – e não tanto como detentores de um poder puramente executivo: abaixo das cúpulas, prevalecia a matriz hispano-muçulmana que sempre tinha existido. Habituadas aos compromissos e ao pragmatismo de uma cultura miscigenada, estas populações não pareciam ter grandes problemas em aceitar outros governantes, desde que respeitassem os seus interesses.

Modelos de controlo territorial

O governo almorávida do al-Andalus parece, deste modo, incidir especialmente sobre as grandes cidades. Embora pouco se saiba do mundo rural nesta época, sobretudo no que ao Gharb diz respeito, não é evidente uma estratégia de intensa ocupação almorávida do espaço, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, durante as primeiras décadas da expansão muçulmana na Península Ibérica, quando vários grupos berberes – sanajas, masmudas e outros – chegaram em catadupa aos vales do Tejo e do Guadiana, regiões com características semelhantes às dos seus lugares de origem, para formarem milhares de pequenas aldeias, que se organizavam em torno de husun – refúgios –, 530 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

fortificações estas que tiveram um papel importante durante as revoltas contra o poder de Córdova, como o percurso do muladi Ibn Marwan al-Jiliqi nos mostra. No caso almorávida, o modelo de controlo do território que perpassa as fontes surge muito fragmentado. Não se percebe, por exemplo, se os ocupantes do meio rural que emergem das coleções de fatawa, documentos que, entre outros, pretendem regular questões de compra e venda de bens, pagamento de impostos, valor e equivalência das moedas em circulação, dívidas, mercadorias ou colheitas, são berberes antigos ou recém-chegados, ou apenas andaluzes dominados pelo poder de Marraquexe. As diversas revoltas no al-Andalus, como a que surgiu em Córdova em 1120, mostram que os almorávidas eram encarados como estrangeiros, como gente que não fazia parte da terra. A tentativa de controlo de um vasto território, que assumia expressão africana e europeia, com base no pagamento da solidariedade tribal (asabiyya) e nem sempre na efetiva presença no terreno, provou não ter efeitos duradouros, sobretudo quando o controlo do ouro do Bilad al-Sudan passou a ser deficitário. Este governo, assente principalmente nas grandes cidades, demonstra outra particularidade. Os insucessos na guerra de fronteira experimentados pelos governadores das urbes, em conjunto com a necessidade de apaziguar as ambições da rede clientelar almorávida, que beneficiava sobretudo a parentela do emir de Marraquexe, determinaram uma elevada rotatividade na administração. Sabemos por Ibn Idari que uma grande cidade como Sevilha foi exclusivamente governada por elementos lamtunas ou por massufas casados com princesas daquela tribo. Em Granada, também é possível observar a circulação de lamtunas e massufas ligados aos primeiros por laços matrimoniais: basta percorrer a Ihata de Ibn al-Khatib, a qual refere que os “seus emires foram os filhos dos emires lamtunas ou próximos deles” e depois faz uma listagem.1 Todavia, a aceitar como rigoroso o exemplo da cidade de Santarém, que uma fonte de origem cristã – o Quo Modo Sit Capta – diz ter sido governada durante 34 anos pelo mesmo líder, o modelo poderia ser algo diferente em pequenas urbes, menos apetecidas pelos líderes almorávidas. Lembremos, de resto, que o al-Hulal

1 Ibn al-Khatib [1350-1375?] 2009, 1:268-269. reflexões 531 al-Mawsiyya afiança que o governo das cidades de fronteira era deixado a cargo dos andaluzes, que conheciam melhor as particularidades destas regiões.2 O poder cristão, pelo contrário, cedo revelou compreender que a terra se ganhava não apenas com campanhas militares, e pôs em marcha uma estratégia eficaz de ocupação do espaço, recorrendo a diversos instrumentos, como presúrias, doações, transmissões por herança, cartas de povoamento ou, ainda, forais. Provavelmente no verão de 1095, os almorávidas liderados por Sir b. Abu Bakr conseguiram empurrar a fronteira para norte, com a recuperação de Lisboa e Sintra, uma fronteira que, em 1064, os cristãos tinham fixado ao sul de Coimbra, por via da conquista de Fernando Magno. Desde esta data, independentemente das oscilações da fronteira, e foram bastantes, nunca mais parou a organização do território, com a diocese e os mosteiros a assumirem um papel central a um nível micro – por exemplo, na agricultura, na demarcação de jurisdições e no estabelecimento de hierarquias. E, apesar dos conflitos, o mais do que certo dinamismo comercial de Coimbra, mas também os dividendos do saque levariam a que a cidade cedo passasse a conhecer e utilizar a moeda dos adversários almorávidas. Para 1096, possivelmente apenas um ano após a recuperação de Lisboa por Sir b. Abu Bakr, e numa época em que Santarém permanecia sob domínio cristão, já se conhece uma transação a envolver morabitinos, sendo que, na região de Saragoça, sob domínio muçulmano, mas não almorávida, este uso parece ter sido mais precoce, com um documento a atestar a mesma moeda em 1092, um ano depois da conquista de Sevilha. De resto, 1091 seria um ano de grandes mudanças no Mediterrâneo ocidental: se os almorávidas se apoderaram da mais rica cidade do al-Andalus, prenunciando a total conquista do território, os normandos expulsaram os muçulmanos da Sicília após 30 anos de guerra, enquanto na fronteira do Gharb morria Sisnando Davides e a reforma gregoriana via agora menos um obstáculo no seu caminho. Ainda assim, esta transição não se processou sem sobressaltos, sobretudo durante o período de governação do conde D. Henrique, sendo que D. Teresa e D. Afonso Henriques evidenciaram mais habilidade política para abordar a questão, com destaque para o último, que, no princípio da década

2 Al-Hulal al-Mawsiyya [1381-1382] 1951, 96. 532 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de 1130, ao patrocinar a fundação do Mosteiro de Santa Cruz, encontrou uma forma de enquadrar a comunidade moçárabe, mas, ironicamente, também de promover a sua diluição na sociedade. Este era um projeto que lhe seria favorável, dado o desejo de reconhecimento do título régio pelo papado. O mosteiro transformou-se numa das principais ferramentas de povoamento a que D. Afonso Henriques iria recorrer no contexto da fronteira, instituição que adquiriu uma presença forte em Coimbra, na foz do Mondego, em Viseu, em Seia e em territórios recém-conquistados, como a Ladeia, encontrando-se, assim, posicionada em todos os pontos nevrálgicos de contacto com os muçulmanos. Ao longo das décadas de 1130 e 1140, e com o auxílio de Santa Cruz, D. Afonso Henriques bordou pacientemente a fronteira, onde incluiu a construção do Castelo de Leiria, a realização de fossados e presúrias de pequena dimensão e uma estratégia ativa de fixação de gentes à terra. Face aos resultados palpáveis destas políticas, os muçulmanos demonstravam uma especial predileção pela guerra de desgaste e desestruturação do povoamento, o qual promovia como que um avanço silencioso da fronteira. A destruição dos castelos de Leiria e (provavelmente) da Idanha, na fronteira do Gharb al-Andalus, e de Aceca, na região de Toledo, bem como o ataque às populações, que acabavam aprisionadas ou mortas, foi uma estratégia recorrente, que teria seguimento com o império almóada: basta evocar o massivo ataque ao vale do Sorraia, no final do século XII, que ditou a destruição do Castelo de Coruche e pretendeu criar uma zona-tampão, ou seja, uma faixa de segurança entre os blocos muçulmano e cristão.

Interdependências conjunturais

A guerra pelo território fazia-se em movimentos de basculação, e não de acordo com um percurso unívoco e teleológico de norte para sul, com a vitória dos cristãos como garantia da fundação de uma nação. Portugal parece, ao invés, fruto de uma soma de conjunturas interligadas, ditada pela teoria do caos, em que Magrebe e al-Andalus integravam o mesmo ecossistema. As conquistas reflexões 533 de Santarém e de Lisboa em 1147, que correspondem a duas das principais pedras fundacionais do reino de Portugal, foram totalmente devedoras da instabilidade extrema nos territórios sob domínio almorávida, tanto na Europa como em África: quando as principais cidades estavam a ser arrasadas e os seus habitantes eram sujeitos a fome extrema, miséria e morte, a sorte de urbes ultraperiféricas pouco pesaria nas decisões do poder central, tornando-se danos colaterais aceitáveis. Tais vitórias dever-se-iam ainda a um fulgor cristão redobrado, que varreu a Europa sob a oratória cisterciense, mas esta nova vontade de combater o elemento muçulmano encontrava-se ainda diretamente imbricada na perda de posições territoriais em consequência da queda do condado de Edessa. Dois anos e meio depois de os turcos seljúcidas destruírem o primeiro Estado franco estabelecido no Oriente, também ele formado a partir da traição dos cristãos europeus contra os arménios, todo um continente estava de novo a viajar para a Terra Santa, com um rubor cruzadístico redobrado. Neste contexto, a Península Ibérica era encarada como terreno de batalha alternativo, que mereceu a atenção e a pregação de São Bernardo de Claraval: a conjugação das fontes sugere que a cruzada de Lisboa tenha correspondido a um projeto bem pensado, negociado e pregado, com o auxílio de uma frota oriunda do Império Germânico, e, em simultâneo, com a arregimentação tardia de uma esquadra inglesa desviada do esforço de guerra no Oriente, hipótese que conjuga duas visões historiográficas aparentemente inconciliáveis. A interligação de conjunturas é, assim, a tónica em todo o período estudado, não se limitando aos eventos de 1147, que conduziram ao fim do Império Almorávida, ao início da fundação do reino de Portugal e à conquista precária de Almeria, mas também ao avanço territorial cristão no Sharq al-Andalus, com a queda de Tortosa e Lérida. O fenómeno é muito evidente quando da doença ou morte de um grande líder, momentos que os adversários internos ou externos aproveitavam para atacar ou fomentar rebeliões: foi o caso quanto a Yusuf b. Tashfin (1104 a 1106), Afonso VI (1108 a 1109), Afonso de Aragão (1134), Ali b. Yusuf (1143) e Tashfin b. Ali (1145). A estratégia não era exclusivamente cristã ou muçulmana, assim como não o era a maximização de outras fragilidades, como a ausência de um líder e dos seus exércitos das regiões 534 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de conflito. Por exemplo, a conjuntura de 1116 a 1117, com a disputa territorial e senhorial entre D. Teresa e D. Urraca na Galiza, permeada pela aventura do arcebispo de Braga, Maurício Burdino, como antipapa do imperador germânico, terá constituído uma oportunidade para os devastadores ataques almorávidas à região de Coimbra. O mesmo aconteceria já na década de 1130 e no princípio da seguinte, com as sucessivas intervenções de D. Afonso Henriques na Galiza, que facilitaram ao poder almorávida e às forças do grande senhor do Gharb al-Andalus entre 1134 e 1144 – Abu Zakariyya Yahia b. Ishaq al-Massufi, conhecido como Anegemar – a destruição do Castelo de Leiria. Por outro lado, a longa campanha de Afonso de Aragão no al-Andalus, que se desenrolou entre 1125 e 1126, mostrou as grandes fragilidades defensivas do território, mas a lentidão da resposta de Granada – a capital de então – também deve ser relacionada com os ataques almóadas no Magrebe, que dividiam as tropas e a capacidade de intervenção almorávida no controlo de um vasto império. Podemos verificar, de resto, como Afonso VII, a partir da saída do príncipe Tashfin b. Ali do al-Andalus, em 1138, que assumia o cargo de governador-geral e de senhor da guerra de fronteira, aproveitou a conjuntura do Magrebe a seu favor para raziar o território muçulmano. Estas oportunidades acabavam ainda por ser declinadas para o Condado Portucalense, onde D. Afonso Henriques, que se apresentava como campeão do cristianismo, optava por intervir em terras muçulmanas em simultâneo com Afonso VII, numa estratégia que visaria impressionar o papado e obter o reconhecimento enquanto rei, mas que nem sempre lhe valeram a aprovação do primo imperador, que se reclamava detentor dos direitos de conquista.

Cisma e política do Mediterrâneo

Quando no princípio de 1130 eclodiu o conflito entre Inocêncio II e Anacleto II pela cátedra de São Pedro, a Europa ocidental não se digladiou apenas para decidir quem era o legítimo detentor do poder papal, nem tão-pouco seria essa a principal questão em debate. Na prática, tudo se resumia a evitar a reflexões 535 legitimação das conquistas realizadas pelos normandos no sul da Península Itálica e na Sicília, à custa de interesses germânicos e bizantinos, que Anacleto não teve problemas em ratificar, ao reconhecer o estatuto régio a Rogério II. Durante cerca de uma década, os principais potentados ocidentais levaram a guerra a casa dos normandos, com destaque para as campanhas da república de Pisa, que, tendo firmado, em 1134, um acordo de paz com o Império Almorávida, inimigo natural da Sicília normanda, trazia o adversário muçulmano para junto da esfera de apoio a Inocêncio II, partido liderado por São Bernardo de Claraval. Não sabemos se os almorávidas participaram nestas campanhas contra a Sicília, ainda que seja muito provável que tal tenha ocorrido. Mas, por via de al‑Zuhri, de Theoktistos de Patmos e da Chronica Adefonsi Imperatoris, temos como provar que intervieram no Oriente, sobretudo contra os interesses do Império Bizantino. Organizadas em especial pela armada de Sevilha, ainda que as naves de Almeria também nelas tenham participado, estas ações acabam por conferir ao Império Almorávida uma dimensão verdadeiramente mediterrânica e uma posição de agente na geopolítica da época. Mas era sobretudo no Ocidente que se jogava a preeminência económica e política, agressivamente disputada com cidades-estado de vocação marítima, como Bugia, Mahdia, Palermo, Pisa e Génova – a destruição de Almeria, em 1147, tem de ser inserida neste contexto competitivo, numa estratégia antiga de controlo dos adversários comerciais, e não propriamente na narrativa da cruzada, ainda que esta tenha acrescentado legitimidade política à operação. A década de 1130 correspondeu ao período áureo do império de Marraquexe, menos pressionado pelas campanhas do movimento almóada, o qual – após o descalabro de 1130, com o massacre dos seus exércitos e a morte do mahdi Muhammad b. Tumart – foi obrigado a reinventar-se e a recuperar lealdades, agora sob a liderança de Abd al-Mumin b. Ali. Num conflito pleno de estratos, como o do cisma, D. Afonso Henriques soube posicionar-se do lado de São Bernardo desde o primeiro minuto, beneficiando as instituições cistercienses e os templários e, assim, os interesses acarinhados pelo abade de Claraval. Se a morte de Inocêncio II, poucas semanas antes do Tratado de Zamora, pode ter prejudicado o reconhecimento do príncipe portucalense enquanto rei, a estratégia de assumir-se como cavaleiro 536 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

de São Pedro, que teve expressão substantiva nas campanhas do al-Andalus, ter-lhe-á granjeado o apoio na conquista de Lisboa por um papa que, chocado com a conquista seljúcida do condado de Edessa, parecia patrocinar todas as iniciativas que lhe proporcionassem vitórias contra os muçulmanos.

Fundação de projetos políticos

A cronística dos séculos XIV a XVI compôs uma bela história de bravura e merecimento divino como resultado daquela que ficou conhecida como “Batalha de Ourique”, momento de afirmação de D. Afonso Henriques enquanto rei – José Mattoso posiciona o momento fundacional de Portugal na Batalha de São Mamede. Uma fonte pouco conhecida, Ibn al-Qattan al-Marrakushi, vem reposicionar os factos e mostrar que, ao invés de uma batalha, o soberano de Portugal organizou um fossado que, embora tenha atingido grande profundidade, visou sobretudo o meio rural, e que foi contrariado apenas pelas tropas de Évora e Santarém, já que as forças almorávidas, na sua maioria, teriam sido congregadas para acorrer ao Castelo de Oreja, atacado por Afonso VII. Nos campos de Ourique, que a Crónica de Portugal de 1419 sugere que ficavam algures entre esta vila e a cidade de Beja, as forças de D. Afonso Henriques encontraram-se com as tropas muçulmanas, e Ibn al-Qattan regozija-se com a recuperação de parte do saque entretanto amealhado pelos cristãos e com a morte de muitos deles. A narrativa mítica é, no entanto, uma marca de todos os projetos políticos que pretendem vingar, e não um exclusivo do rei de Portugal. Todos os fundadores evidenciam problemas de legitimidade em maior ou menor grau, na medida em que a sua assunção do poder envolve momentos fraturantes, de transição, que as fontes escritas pouco parecem apreciar. Os discursos políticos tornam-se, contudo, mais interessantes de analisar. Abd Allah b. Yasin recorreu à ideologia da jihad para agregar, num corpo militar disciplinado, tribos tradicionalmente conflituosas e com interesses, por vezes, contraditórios, e lançar-se ao ataque às principais plataformas de comércio das riquezas da África subsariana. A Batalha reflexões 537 de Zallaqa, em 1086, ajudou Yusuf b. Tashfin a legitimar-se como um rigoroso cumpridor da religião, protetor da comunidade contra os inimigos cristãos e os abusos dos reis de taifas, considerados maus muçulmanos, mas também lhe forneceu uma desculpa para afastar os sucessores de Abu Bakr b. Umar, a quem tinha usurpado o poder. Ibn Tumart, que desejava demolir o Império Almorávida, inspirou-se em Ibn Yasin, mas construiu toda uma ideologia de afrontamento: um sunismo com marcas de xiismo que ia ao encontro da procura incessante de justiça pelas populações mais humildes; a figura do mahdi, ou messias, consistia numa resposta a esse desejo de proteção. Quanto a Abd al-Mumin, as fontes são claras sobre o papel relativamente secundário que ocupava no movimento almóada até ao desastre de Marraquexe, em 1130. Não é certo que tenha sido designado sucessor por Ibn Tumart, mas pode muito bem ter recebido de al-Baydaq o discurso legitimador. Não obstante a narrativa das fontes, existem indícios de que as populações pudessem considerar Abd al-Mumin, pelo menos no início, não tanto um legítimo califa, mas sobretudo um rebelde. Na esfera cristã, veja-se o caso de Afonso VII, que também teve dificuldade em impor-se como sucessor do trono de Leão e Castela e se esforçou durante anos para ser visto como herdeiro do império do seu avô. A liderança nunca foi pacífica nem se desenrolou em linha contínua. O Magrebe, com um território vasto, heterogéneo e difícil de controlar, viveu algumas experiências de sobreposição de poderes. Foi assim, durante 20 anos, entre meados das décadas de 1060 e 1080, com Abu Bakr b. Umar e Yusuf b. Tashfin, em que um “império do deserto”, com sede em Sijilmassa e liderado pelo primeiro, coexistiu com um “império de potencial mediterrânico,” com capital em Marraquexe e encabeçado pelo segundo. Foi também assim, durante uma década, entre o princípio dos anos de 1120 e de 1130, com Muhammad b. Tumart e Ali b. Yusuf, quando um “império das montanhas” controlado a partir de Tinmal pretendia absorver um “império das planícies e das cidades” organizado em torno de Marraquexe. Se esta dualidade se manteve entre parêntesis durante algum tempo, iria ser recuperada por Abd al-Mumin, que, já intitulado califa de um califado com limites tão imprecisos quanto as lealdades das tribos que pretendia submeter, disputou o território a Ali b. Yusuf e depois a 538 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Tashfin b. Ali. Mas as fontes e o discurso oficial muito se esforçam para aplanar estes estratos, estas camadas de realidade, numa linha sem sobressaltos. De resto, as fontes tendem naturalmente a iluminar o poder, os vencedores, onde quer que estejam, e a abandonar os territórios e as suas gentes quando as elites se retiram. Foi, por exemplo, o caso das fontes muçulmanas de referência, quanto ao período entre a saída de Tashfin b. Ali do al-Andalus, em 1138, e o ano de 1144, quando Ahmad b. Qasi suscitou revoltas no território que puseram o poder almorávida em causa. Poucas informações conhecemos, por via muçulmana, para este intervalo cronológico, que tem maior presença nas fontes cristãs, o que não será propriamente uma surpresa se tivermos em conta que as narrativas seguem o poder e que Afonso VII começou a amealhar vitórias na guerra de fronteira no referido lapso temporal. Também D. Afonso Henriques reservou para si uma fatia de território a partir das condições ótimas surgidas neste período. A fronteira do Gharb al-Andalus foi empurrada para sul, ditando perdas para o bloco muçulmano, mas não exatamente para uma “sociedade em permanente deslocação”, expressão que Hermenegildo Fernandes cunhou para o universo de Santarém, mas que pode aplicar-se à fronteira em termos genéricos. Nesta zona onde o islão separava e simultaneamente tomava contacto com a cristandade, o pragmatismo conduzia a uma constante reavaliação de obediências e alianças construídas à margem das diferenças civilizacionais e religiosas.3 Em breve, Lisboa iria tornar-se numa cidade ainda mais compósita, com os guerreiros e os colonos do Norte da Europa, que D. Afonso Henriques soube recompensar, a diluírem-se para sempre numa sociedade de matriz híbrida.

3 Fernandes 2002, 56.

CRONOLOGIA 542 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

1083 Conquista almorávida de Ceuta. 1086 Conquista almorávida de Algeciras. Batalha de Zallaqa, com vitória muçulmana sobre Afonso VI. Primeira cunhagem de Yusuf b. Tashfin, em ouro e a partir de Sijilmassa. 1090 Granada rende-se aos almorávidas. 1091 Sevilha cai em mãos almorávidas após longo cerco. 1093 Rei da taifa de Badajoz cede Lisboa, Sintra e Santarém a Afonso VI em troca de proteção face aos berberes do deserto do Sara. 1094 Cidade de Badajoz é conquistada por Sir b. Abu Bakr, e os seus soberanos decapitados. 1095 Provável recuperação de Lisboa e Sintra, por Sir b. Abu Bakr, para os muçulmanos. Santarém mantém-se cristã e recebe foral de Afonso VI. 1102-1104 Almorávidas pressionam a fronteira e tentam conquistar Santarém, mas não têm sucesso. 1104-1106 Yusuf b. Tashfin é acometido de doença prolongada e acaba por falecer. Cristãos pressionam as fronteiras. Provável recuperação do domínio portucalense sobre Lisboa e Sintra. Primeira expulsão de moçárabes (1106). Ali b. Yusuf torna-se o novo emir de Marraquexe. 1108 Batalha de Uclés, com vitória esmagadora dos muçulmanos sobre os cristãos. Afonso VI perde o herdeiro na guerra. 1109 Morte de Afonso VI. Grande campanha de jihad liderada por Ali b. Yusuf contra Toledo; Sir b. Abu Bakr ataca os cristãos na fronteira do Gharb al-Andalus. Provável recuperação almorávida de Lisboa e Sintra. Ataques vikings a Sintra, Lisboa e Alcácer. Rebeliões na Galiza. Nascimento de Afonso Henriques. 1111 Sir b. Abu Bakr, governador de Sevilha, conquista Santarém. Face à instabilidade em Coimbra, D. Henrique concede-lhe foral, que beneficia os cavaleiros. 1112 Morte do conde D. Henrique, em Astorga. 1113 Morte de Sir b. Abu Bakr, governador de Sevilha. 1114-1115 D. Teresa manda reforçar as defesas de Coimbra. 1115 Ibn Fatima torna-se governador de Sevilha. No rescaldo da conquista cristã das ilhas Baleares, recuperadas pouco depois para o islão pelos almorávidas, os emires de Marraquexe assumem o projeto de uma frota enquanto modelo de expansão política e económica. Muhammad b. Maymun, marinheiro de Denia, torna-se alcaide-do-mar. 1116 Ibn Fatima provoca devastação no sistema defensivo de Coimbra. Os castelos de Miranda do Corvo e de Santa Eulália são destruídos; o de Soure é arrasado pelos habitantes, temendo um ataque muçulmano. cronologia 543

Pelo menos desde este ano, D. Teresa passa a usar o título de “rainha”, dignidade com que o legado do papa, cardeal Boso de Santa Anastácia, se lhe dirige. 1117 Coimbra sofre um cerco almorávida durante três semanas, liderado pelo emir Ali b. Yusuf. As tropas muçulmanas chegam ao Mondego por terra e mar, mas não conseguem conquistar a cidade. 1118-1122 Novo possível ataque a Coimbra, desta feita por Ibrahim b. Yusuf b. Tashfin, irmão do emir e novo governador de Sevilha. 1118-1120 Muhammad b. Tumart, fundador do movimento almóada, reclama a condição de mahdi e inicia a contestação ao poder de Marraquexe. 1121 Nobres portucalenses começam a afastar-se da corte de D. Teresa, descontentes com a influência dos Travas. Rebeliões em Córdova fazem perigar o poder almorávida; apenas com tropas enviadas do Magrebe, o emir consegue “pacificar” o território. 1123 Fernão Peres de Trava torna-se tenente de Coimbra. 1125 D. Afonso Henriques é armado cavaleiro. Bermudo Peres de Trava ascende a tenente de Viseu e Seia. 1125-1126 Afonso de Aragão ataca o al-Andalus e deixa evidentes as falhas nos sistemas defensivos almorávidas. 1126 Moçárabes, acusados de auxiliarem o soberano aragonês, são expulsos para o Magrebe. Inicia-se uma campanha de fortificação tanto no al-Andalus como no Magrebe, onde os almóadas atacam o poder de Marraquexe. D. Urraca morre e é sucedida por Afonso VII. 1128 D. Teresa entrega o castelo de Soure aos templários e, pouco depois, é derrotada na Batalha de São Mamede e afastada da governação do Condado Portucalense. D. Afonso Henriques assume o poder. 1129 Granada e Almeria ganham novo governador: o príncipe Tashfin b. Ali. 1130 No início do ano, estala o cisma entre Inocêncio II e Anacleto II. Anacleto II reconhece Rogério II da Sicília enquanto rei, e os potentados ocidentais organizam-se para tentar anular a decisão. D. Afonso Henriques posiciona-se do lado de Inocêncio. No Magrebe, os almóadas tentam conquistar Marraquexe, mas são desbaratados. Pouco depois, morre Ibn Tumart e Abd al-Mumin assume o poder. No al-Andalus, o príncipe Tashfin muda-se de Granada para Córdova e assume o governo-geral do al-Andalus. Na Hispânia cristã, morre D. Teresa. D. Afonso Henriques doa os banhos régios para que aí seja fundado o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. 1131 D. Afonso Henriques muda-se para Coimbra. 1132 Fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. 1133 Possível destruição do Castelo da Idanha pelo príncipe Tashfin b. Ali. Primeiro fossado de Afonso VII ao al-Andalus. 1134 Almorávidas firmam acordo de paz, por dez anos, com a cidade de Pisa. Campanhas de Afonso Henriques na Galiza. Morte de Afonso de Aragão. 544 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

Yahia b. Ishaq al-Massufi, conhecido por Anegemar, ou o “rei Esmar” da cronística, torna-se governador de Sevilha. 1135 Concílio de Pisa, para condenar Rogério II e o antipapa Anacleto II, com participação de representantes de D. Afonso Henriques: D. João Peculiar e D. Telo. Afonso VII é coroado imperador. D. Afonso Henriques inicia a construção do Castelo de Leiria. 1136 Data provável do fossado e da presúria da Ladeia. 1136-1137 D. Afonso Henriques intervém de novo na Galiza. 1137 Data provável da destruição do Castelo de Leiria pelos muçulmanos. Tratado entre D. Afonso Henriques e Afonso VII, firmado em Tui, pelo qual o primeiro jura vassalagem ao segundo, pelo menos, de forma nominal. 1138 Morte do príncipe herdeiro, Sir b. Ali, no Magrebe. Designação de Tashfin b. Ali, governador do al-Andalus, que deixa o território com grande número de guerreiros, iniciando um processo de desproteção das fronteiras. Al-Zubayr b. Umar torna-se governador de Córdova. Terceira expulsão de moçárabes para o Norte de África. Morte do antipapa Anacleto II e fim do cisma. Inocêncio II torna-se o único papa. Data provável de um acordo de paz entre Génova e os almorávidas, à partida, com condições semelhantes ao do firmado com Pisa quatro anos antes. 1139 D. João Peculiar assume a arquidiocese de Braga. Concílio de Latrão e reforço da posição de Inocêncio II. Guerra entre Inocêncio e Rogério II da Sicília deixa o papa em posição de fragilidade, o que o obriga a reconhecer o normando enquanto rei. Apesar do esforço militar almorávida, com o recrutamento de tropas no Magrebe, Afonso VII conquista o Castelo de Oreja. D. Afonso Henriques empreende o fossado de Ourique. Início da guerra entre almorávidas e almóadas no Magrebe. 1140 Atendendo aos documentos que subsistiram até hoje, D. Afonso Henriques passa a usar o título de “rei” na sua chancelaria. 1141 Mais uma intervenção militar de D. Afonso Henriques na Galiza. 1142 D. Afonso Henriques atribui foral a Leiria. Almóadas tentam conquistar o Rife e, em especial, Tetuão, mas não têm sucesso, possivelmente devido à intervenção da marinha de guerra almorávida. Afonso VII conquista Coria, que os almorávidas não conseguem defender. D. Afonso Henriques tenta apoderar-se de Lisboa com a ajuda de uma armada inglesa, mas não concretiza os seus intentos. 1143 Morte do emir Ali b. Yusuf, em Marraquexe, e início da guerra entre as principais tribos da confederação almorávida: lamtunas e massufas. D. Afonso Henriques é reconhecido enquanto rei por Afonso VII, no âmbito do Tratado de Zamora. 1144 Início do cerco almóada a Tlemcen. Almorávidas pedem ajuda aos aliados hamádidas e requisitam tropas do al-Andalus. cronologia 545

Morte do cristão conhecido como Reverter, chefe militar ao serviço almorávida, e nova transferência de tropas do al-Andalus. O governador de Sevilha, conhecido como “rei Esmar” nas fontes portucalenses, passa ao Magrebe. Ahmad b. Qasi, místico sufi de Silves, ordena o ataque ao Castelo de Mértola e inicia uma sublevação contra o poder almorávida, que ficou conhecida como Revolta dos Muridinos: as principais cidades do Gharb prestam-lhe homenagem. Forças de Ibn Qasi procuram conquistar Sevilha, mas a tentativa sai frustrada. Grande fossado de Afonso VII contra Córdova e Sevilha. Normandos da Sicília atacam Ceuta com 150 navios. D. Afonso Henriques pressiona a fronteira do Gharb al-Andalus e impõe tributo a diversos castelos, entre os quais os de Santarém e Lisboa. Morte do cristão conhecido como Reverter, chefe militar ao serviço almorávida, e nova transferência de tropas do al-Andalus. Turcos seljúcidas conquistam o condado de Edessa. 1145 Queda de Tlemcen e fuga do emir almorávida, Tashfin b. Ali, para Orão, onde, após um mês de cerco, sofre um acidente que o leva à morte. Cádi de Córdova, Ibn Hamdin, reclama-se o novo “emir dos muçulmanos”. Início do cerco almóada a Fez. Anegemar e os massufas deixam a confederação almorávida e prestam homenagem ao califa Abd al-Mumin. Almirante da frota de Cádis, Ali b. Isa b. Maymun, também reconhece o líder almóada. Primeiro pedido de auxílio militar de Ibn Qasi a Abd al-Mumin. Provável conquista almóada de Sijilmassa. Novo pedido de auxílio militar de Ibn Qasi ao califa almóada, desta feita, bem-sucedido. 1146 Casamento de D. Afonso Henriques com Mafalda de Saboia. O cádi Ibn Hamdin, que se intitulara “emir dos muçulmanos”, é afastado de Córdova. Início do cerco almóada a Marraquexe. Fez, Mequinez e Salé revertem para os seguidores de Abd al-Mumin. São Bernardo prega a Segunda Cruzada; uma armada é angariada entre os germânicos com o propósito de conquistar Lisboa. Almóadas desembarcam no al-Andalus, submetem os senhores do Gharb al-Andalus e obrigam-nos a dispensar tropas para os auxiliarem na conquista de Sevilha. Genoveses devastam as zonas costeiras do al-Andalus, e Almeria paga uma elevada soma em morabitinos para não ser atacada. Génova propõe novo ataque ao imperador Afonso VII, a realizar-se no ano seguinte. Exército almóada passa o inverno em Mértola. 1147 Contingentes almóadas, reforçados com tropas do Gharb al-Andalus, conquistam Sevilha. D. Afonso Henriques conquista Santarém. Almóadas conseguem tomar Marraquexe após um longo cerco; entram na cidade, chacinam a maioria dos almorávidas e destroem as suas mesquitas. Afonso VII conquista Almeria com a ajuda de tropas genovesas, pisanas e do condado de Barcelona. D. Afonso Henriques apodera-se de Lisboa com o auxílio de uma armada germânica, franca e inglesa.

BIBLIOGRAFIA 548 fronteira do gharb al-andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147)

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Coleção Gavetas Gaveta 8. Maço 1, no. 4.

Colegiada de São Pedro de Coimbra Maço único, no. 1.

Colegiada de São Salvador de Coimbra Maço único (caixa 8), no. 1.

Livro de D. João Teotónio Fls. 78 (imagens 240 e 241, Digitarq), 81 (245 e 246), 108v-109 (300 e 301), 140-140v (364 e 365), 141v (366) e 149-149v (383 e 384).

Mosteiro de Santa Maria do Lorvão. Antiga Coleção Especial. Eclesiásticos. Maço 1, no. 15. Particulares. Maço 1, no. 23. Maço 2, nos. 6, 7, 12, 13, 18 e 28.

Mosteiro de São Jorge de Coimbra Maço 1, nos. 5, 6, 21, 22 e 24.

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Estudos

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