Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli

Por:

Viviane Mendes de Moraes

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Literatura Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco - UFRJ Coorientadora: Profª. Doutora Ana Mafalda Leite – Universidade de Lisboa

Rio de Janeiro / RJ Fevereiro 2015

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Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli

Viviane Mendes de Moraes

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (UFRJ) Coorientadora: Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas – Literatura Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa –, UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em Letras Vernáculas, especialidade em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Examinada por: ______Presidente, Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco – UFRJ ______Profª. Doutor Mário César Lugarinho – USP ______Profª. Doutora Ida Ferreira Alves – UFF ______Profª Doutora Gumercinda Nascimento Gonda- UFRJ ______Profª Doutora Vanessa Ribeiro Teixeira - UNIGRANRIO Suplentes: ______Profª Doutora Maria Geralda de Miranda - UNISUAM ______Profª Doutora Fernanda Antunes Gomes da Costa – UFRJ (Macaé) Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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CIP - Catalogação na Publicação

Mendes de Moraes, Viviane M827e Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli /Viviane Mendes de Moraes. -- Rio de Janeiro, 2015. 250 f.

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. Coorientadora: Ana Mafalda Leite. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015.

1. Rui Knopfli. 2. Geopoética; paisagem. 3. poesia moçambicana. 4. Literatura moçambicana. 5. poesia. I. Secco, Carmen Lucia Tindó Ribeiro orient. II. Leite, Ana Mafalda, coorient.

III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os

dados fornecidos pelo(a) autor(a).

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Ao Rodrigo, meu filho, cujas mudanças de paisagens eu

venho acompanhando na geopoética de sua vida.

Àqueles que, indistintamente, me guiaram, ajudaram e

aturaram durante a tessitura desta tese e que, pacientemente,

ou não, deram apoio às fragmentadas versões de mim.

À Carmen Tindó (por último, mas não em último)1, o que

palavras não podem expressar, meus afetos sinceros e minha

eterna amizade, além do meu sorriso grato.

1 Palavras retiradas da epígrafe do livro O escriba acocorado, de Rui Knopfli.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, em primeiro lugar, por ter me permitido chegar até aqui, me dando forças diante de todos os percalços e dificuldades, me ajudando a superar e entender as mudanças de paisagens que foram se transpondo ao longo dos quase cinco anos de pesquisa dedicados a esta tese, e aos onze anos, dedicados às literaturas africanas.

À minha família, em especial, minha mãe, Glória, meus irmãos, Sandra, Cau,

Muca e meu pai, Amaro – guardado na memória da minha infância –, pela base e o amparo em todos os momentos da minha vida.

Aos meus sobrinhos, Enzo, Luíza e Gabriel, bem como ao meu filho Rodrigo, cosmopolitas e híbridos desde o nascimento.

Ao Marcelo Leal e à Carmem Leal, por estarem ao meu lado sempre.

Aos funcionários da Carioca Languages, meu trabalho, que conseguiram ter paciência comigo neste momento tão especial na minha vida.

Aos irmãos que a vida me permitiu escolher Paula, Anita, Sara, Luana, Eline,

Maurício, Rhea, Milena, Camila, Marcos, Míriam, Nathália, Patrícia, Janda,

Priscila, Cíntia, Aglaé, entre muitos outros não citados, mas presentes no meu coração e nas imagens da minha memória.

À Carmen Tindó, minha orientadora, paciente, amiga, compreensível, flexível, linda por dentro e por fora. A ela, minha gratidão, meu sorriso fraterno e minha humilde alegria por ter sido sua orientanda por tanto tempo. Uma sorte para poucos!

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À Ana Mafalda Leite, minha coorientadora, que desde o mestrado, se mostrou disposta e solícita.

À banca, pela disponibilidade e pela ajuda em avaliar e em melhorar meu trabalho, Professores Ida Alves, César Lugarinho, Cinda Gonda, Vanessa Teixeira e

às suplentes, Professoras Maria Geralda de Miranda e Fernanda Antunes.

À Professora Doutora Maria Teresa Salgado, pela amizade, ajuda e compreensão.

Ao Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Faculdade de

Letras, ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da UFRJ e à

Faculdade de Letras da UFRJ pela disponibilidade.

A todos os presentes que vieram compartilhar este momento tão especial.

OBRIGADA!

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SINOPSE

Análise aprofundada sobre a Obra poética (2003) do poeta moçambicano Rui Knopfli, buscando evidenciar as questões pertinentes às diversas paisagens abarcadas por sua poesia, instauradora de uma nova geopoética.

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Não se tratava, porém, de simplesmente evocar a infância e a cidade distante. Queria resgatar a vida vivida (um modo talvez de sentir-me vivo), descer nos labirintos do tempo, talvez, quem sabe para encontrar amparo no solo afetivo da terra natal. Ferreira Gullar2

Quando escrevo, visto-me solenemente. (...) A visão é o tacto do espírito. Fernando Pessoa3

2 GULLAR, 2013, p.10.

3 PESSOA, 2013, p.30-31.

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MORAES, Viviane Mendes de. Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015, 241p.

RESUMO

Nesta tese de doutorado busca-se evidenciar como o poeta moçambicano Rui Knopfli instaura uma nova geopoética nas Literaturas de Língua Portuguesa, em especial, na Literatura Moçambicana. Por meio da análise de sua Antologia poética (KNOPFLI, 2003), em que se reúnem poemas de todas as obras do autor, almeja-se traçar um perfil paisagístico-literário, verificando os afetos e atravessamentos de que se constituem a poesia de Knopfli, o poeta por si mesmo e seu olhar para o mundo. Passeia-se pelas estradas de seus versos, desvelando anseios, previsões, atritos, conflitos, ironias, hibridismo, cosmopolitismo, memória e também o exílio. Teóricos da poesia e da literatura, entre os quais: Michel Collot, Linda Hutcheon, Edward Said, Ramazani, Angel Rama, servirão de base para a análise e para a condução literária deste trabalho. Estudiosos da Cultura e Literatura Moçambicana e Africana, em geral, como Appiah, Césaire, Eugénio Lisboa, Francisco Noa, Ana Mafalda Leite, Rita Chaves, Luís Cabaço, entre outros, auxiliarão a guiar o olhar da tese em direção a questões relevantes para a literatura moçambicana e para o poeta estudado.

Palavras-chave: Rui Knopfli. Poesia moçambicana. Literaturas africanas de língua portuguesa. Paisagens literárias. Geopoética.

Rio de Janeiro / RJ Fevereiro de 2015

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MORAES, Viviane Mendes de. Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015, 241p.

ABSTRACT

In this thesis, we seek to prove how the Mozambican poet Rui Knopfli establish a new geopoetic configuration of Literatures in Portuguese Language, specifically in the Mozambican Literature. By research of his Antologia Poética [Poetic Anthology] (KNOPFLI, 2003), in which we can find all of his poems, we seek to draw a geographical-literary profile, researching the sectarians and the crossing from which Knopfli’s poems are made of; the poet himself; and the world through his eyes. We walk on the roads of his lines, caring for his cravings, his foreknowledge, his difficulties, his conflicts, his ironies, his hybridism, his cosmopolitism, his memory, and his exile. Theorists of poetry and of literature, among which: Michel Collot, Linda Hutcheon, Edward Said, Ramazani, Angel Rama, are our basis analysis and our literary drivers for this paper. Scholars of the Culture, and of the Mozambican and African Literature, in general, such as Appiah, Césaire, Eugénio Lisboa, Francisco Noa, Ana Mafalda Leite, Rita Chaves, Luís Cabaço, among others, helped us by guiding our look of this paper into the direction of relevant questions for the Mozambican literature and for the poet researched.

Keywords: Rui Knopfli. Mozambican poetry. African literature of Portuguese language. Literary landscape. Geopoetic.

Rio de Janeiro / RJ Fevereiro de 2015

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MORAES, Viviane Mendes de. Entre as savanas de aridez e os horizontes da poesia: a multifacetada geopoética de Rui Knopfli. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas, na especialidade de Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015, 241p.

Résumé

Dans cette thèse de doctorat, nous avons voulu montrer comment le poète mozambicain Rui Knopfli créé une nouvelle géopoétique dans les différentes littératures de langue portuguaise, et spécialement dans la littérature mozambicaine. A travers l’analyse de son Anthologie poétique (KNOPFLI, 2003), dans laquelle sont réunis les poèmes de toute l’œuvre de l’auteur, nous avons cherché à dessiner un paysage littéraire, en auscultant les affections et les passages qui constituent la poésie de Knopfli, le poète lui-même et son regard sur le monde. En errant entre les lignes de ses vers, nous révélons les angoisses, les prophéties, les frictions, les conflits, les ironies, l’hybridité, le cosmopolitisme, la mémoire et aussi l’exil. Les théoriciens de la poésie et de la littérature, parmi lesquels : Michel Collot, Linda Hutcheon, Edward Said, Ramazani, Angel Rama, serviront de base pour l’analyse et la conduite littéraire de ce travail. Les chercheurs spécialisés dans la culture et la littérature mozambicaine et africaine en général, comme Appiah, Césaire, Eugénio Lisboa, Fransisco Noa, Ana Mafalda Leite, Rita Chaves, Luis Cabaço, entre autres, aideront à guider cette thèse vers des réflexions éclairantes pour la littérature mozambicaine et pour le poète étudié.

Mots-clefs: Rui Knopfli. Poésie mozambicaine. Littératures africaines de langue portugaise. Paysages littéraires. Géopoétique.

Rio de Janeiro / RJ Fevereiro de 2015

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 15

2. RUI KNOPFLI E SUA MULTIFACETADA GEOPOÉTICA 24

2.1. Atrito, delito, conflito 35

2.2. Ironia e questionamento 56

2.3. Hibridismos: intertextualidades, conhecimento de mundo, poesia de múltiplas raízes 71

2.4. O cosmopolitismo de Rui Knopfli e a Revista Caliban 88

3. O FAZER POÉTICO E AS PAISAGENS GEOGRÁFICAS 98

3.1. Paisagens da África, ao norte: o Escriba acocorado e a revisitação da história 114

3.2. Paisagens insulares: a Ilha de Próspero e o repensar do colonialismo 133

3.3. Paisagens urbanas: as cidades de Johanesburgo, Paris, Lourenço Marques, Londres 149

3.4. Paisagens literárias: o espaço multifacetado da poesia 172

4. EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA E DO EXÍLIO 181

4.1. Memória vivida e "memória consentida" 189

4.2. Família e amor 198

4.3. Amigos 205

4.4. Solidão e morte 217

5. CONCLUSÃO 226

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6. BIBLIOGRAFIA 231

6.1. Bibliografia de Rui Knopfli 231

6.1.1 Sites sobre Rui Knopfli 231

6.2. Bibliografia crítica sobre Rui Knopfli 232

6.3. Bibliografia teórica e obras gerais 235

6.4. Demais sites consultados 248

7. ANEXOS 248

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LISTA DE ABREVIATURAS

Obra poética – OP

O país dos outros – OPO

Reino Submarino – RS

Máquina de areia – MA

Mangas verdes com sal – MVS

A ilha de Próspero – AIP

O escriba acocorado – OEA

O corpo de Atena – OCA

O monhé das cobras – OMC

Revista Calibam - RC

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INTRODUÇÃO

Nós – especialistas, críticos literários, professores – não somos, na maior parte do tempo, mais do que anões sentados em ombros de gigante (TODOROV, 2010, p. 31)

A partir dessas sábias palavras de Todorov, inicia-se um voo pela literatura de

Rui Knopfli. Humildemente, pede-se permissão ao poeta curioso, de olhar bravio e observador, para que a anã leitora, aqui presente, possa observar os caminhos percorridos e a geopoética4 instaurada pela poesia knopfiliana.

Também nesta tese há liberdade e, por isso, deixa-se que a obra procure a teoria que lhe cabe, e, não, o contrário, imputar uma teoria fechada para um poeta que se fez tão rebelde e aberto para o mundo. Assim, apoiar-se-á nas próprias mensagens dos versos, reveladoras de um novo parâmetro para a literatura moçambicana, cujo emparelhamento com a literatura mundial vinha por meio do vasto conhecimento de mundo que o poeta possuía.

Rui Knopfli, apesar de vários trabalhos sobre sua poesia, nunca teve uma tese de doutorado que objetivasse delinear seu itinerário poético, trabalhando suas obras como um conjunto, olhando para a geografia literária e para o percurso paisagístico traçado por seus poemas. Esta tese de doutoramento é a primeira no Brasil sobre o poeta.

O fio condutor desta pesquisa é a geopoética, – aqui ampliada e entendida como geografia literária do poeta – que Knopfli trabalha na literatura de Moçambique, abrindo novos caminhos literários para as gerações futuras da poesia. Libertando-se das amarras canônicas, das questões de legitimidade literária, da imposição do espaço geográfico,

4 O termo "geopoética" é entendido, nesta tese, como uma geografia literária, que em Rui Knopfli manifesta-se de maneira multifacetada e, não, seguindo a linha de estudos sobre a geopoética de Kenneth White. 15

criando uma literatura, cujas paisagens dialogam com sua bagagem cultural de homem e de poeta, assim como com os amplos horizontes que sua visão, seus afetos e sua escrita podiam alcançar.

Baseia-se esta tese nas ideias de Michel Collot em seus livros Poética e filosofia da paisagem (2013), La poésie moderne et la structure d'horizon (1989) e no texto "Do horizonte da paisagem ao horizonte dos poetas", incluso na obra Literatura e paisagem: perspectivas e diálogos (2010).

Entende-se a poesia como um espaço privilegiado para a visualização do horizonte e da paisagem ao seu redor, o que permite ir além dos signos para alcançar significados que ora apontam para o passado, ora para o futuro, ora para a condição do poeta e sua poesia, ora para a história e a colonização, principalmente, para um olhar sobre a condição de alguém à margem, que sofreu o exílio físico e literário. Knopfli ocupa esse lugar marginal, mas ele soube, ao mesmo tempo, abrir, mesmo que à força, um espaço para si neste "mundo caduco", em que se constituía a literatura moçambicana canônica.

Rui é guiado pelos afetos, em cada poema uma parte de si é deixada naquele lugar. Afeto5 que se entende por algo que marca de maneira profunda o ser, não tendo a conotação de sentimento ou emoção.

(...) afetos e afecções – alegria, esperança, amor, ódio, tristeza, melancolia, etc – se encontram representados em seus textos. Para essa análise, nos apoiamos teoricamente em Spinoza, para quem afeto (affectus ou adfectus do latim) designa um estado da alma, uma força propulsora capaz de levar ou não o ser a ações ou paixões. A maneira como somos afetados pode bloquear ou dilatar nossa vontade de agir. De acordo com a Ética, de Spinoza, um afeto sucede, concomitantemente, no corpo e na mente, abalando tanto a matéria como o espírito (SECCO, 2014, p.13)

5 Segue-se o projeto de pesquisa da Professora Doutora Carmen Tindó Secco – docente em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Letras da UFRJ –, sobre os afetos, baseada nas teorias Spinoza: "Por entre memórias, esquecimento e afetos: tendências da poesia angolana e moçambicana dos últimos anos".

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O poeta foi afetado pelo medo do não pertencimento a Moçambique, pela colonização e sua educação ocidental, pela geografia histórica e social moçambicana / pela Ilha de Moçambique / pela África / pelas cidades ocidentais e orientais, pelas literaturas e filosofias de todos os lados do planeta, pelas línguas portuguesa e inglesa, pela memória, pela infância e pelo sentimento de exílio.

Esta pesquisa não é guiada pela ordem cronológica de publicação das obras de

Rui Knopfli, mas sim pelas propostas de cada uma. Portanto, organizaram-se os capítulos – e subcapítulos –, de maneira coerente, de acordo com a lógica traçada para o entendimento de sua poética como um todo. Assim, divide-se esta tese em:

1. Introdução. Em que a arquitetura e os rumos da tese serão apresentados.

2. Rui Knopfli e sua geografia literária. Neste capítulo, busca-se evidenciar os caminhos trilhados pelo poeta para construir sua própria geopoética: a negação do cânone, atritando-se com a crítica e o modelo socioliterário da época, cometendo

"delitos" literários e gerando conflitos originados de tais atitudes; a ironia como elemento motivador e de proteção do poeta; os hibridismos que o atravessaram e assinalaram sua intelectualidade poética e o cosmopolitismo que é marca forte de sua literatura. Para embasar esse capítulo, recorre-se – além do citado Michel Collot –, à

Linda Hutcheon, nas questões que envolvem a ironia e suas "arestas cortantes" como elemento característico da poesia knopfiliana; ao teórico do hibridismo literário da poesia pós-colonial, Jahan Ramazani; às questões que envolvem o olhar cosmopolita do poeta, buscando-se auxílio, para isso, em Kwame Anthony Appiah.

3. As paisagens e o fazer poético. Aqui, mais uma vez, com o embasamento de Michel

Collot, percorre-se as paisagens e o fazer poético suscitados por Rui Knopfli e sua literatura. São várias paisagens fragmentadas que se sobrepõem, moldando a poesia knopfiliana: a paisagem africana, por meio da qual o poeta olhará para a história de seu

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continente – dos que lá habitam – do mesmo modo como explorará a História ocidental, usando a metáfora do escriba; o microcosmo da paisagem da Ilha de Moçambique – que passa a ser entendida como uma representação do macrocosmo Moçambique –, repensando o papel do colonialismo, do Império e sua decadência, além de olhar para as metáforas, para as quais a ilha remete; as paisagens urbanas, cujas cidades afetaram

Knopfli, fazendo-o repensar os horizontes de sua vida; as paisagens literárias evocadas na poesia como espaço do poeta, de liberação de seus afetos sonantes e dissonantes tocados em sua lira a tiracolo. Angel Rama vem à tese para auxiliar nas questões sobre os espaços urbanos como lugares letrados e abertos às multiplicidades de paisagens;

Anthony Appiah, Aimé Césaire e José Luís Cabaço para apoiar o tratar do colonialismo em geral e, em Moçambique, em específico.

4. Experiência da memória e do exílio. Nesta parte interessa observar como a experiência do exílio e também do "insílio" é transmitida nos versos de Rui Knopfli.

Apoiando, teoricamente, o capítulo em ideias de Miriam Volpe e Edward Said, focaliza- se e revisita-se as memórias de Knopfli: tanto as vividas – aquelas que fizeram parte de sua história como indivíduo –, quanto as "consentidas" – advindas pela imaginação e pela literatura para preencher os espaços vazios da história do poeta –, evidenciando os afetos que essas lembranças suscitam ao olhar para a família, para o amor, para os amigos, para a solidão e para a morte.

5. Conclusão. Aqui, pretende-se concluir que Rui Knopfli instaurou uma nova poesia em Moçambique e também no mundo, influenciado por diversas fontes, por ser um cidadão híbrido e cosmopolita intelectualmente. Sua geopoética visualiza o presente, o passado e prevê o futuro, mas, ao fim, também vive de memórias. A paisagem é o principal elemento operador dessa poesia refletora dos afetos do ser em que se constitui a poética knopfiliana.

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Teóricos e pensadores da literatura serão utilizados sempre que houver a necessidade de fundamentar certas ideias que forem emergindo ao longo das análises dos poemas: Octávio Paz, Alfredo Bosi, Dufrenne, Roland Barthes, Todorov e Walter

Benjamin, os principais. Também serão citados críticos da literatura, da vida, da cultura e das sociedades africanas e moçambicana que, por meio de livros, artigos, teses, congressos e conversas orientadas, foram cruciais para a escrita desta tese: Frantz

Fanon, Senghor, Eduard Glissant, Eugénio Lisboa, Francisco Noa, Fatima Monteiro,

Ana Mafalda Leite, Rita Chaves, Mário Lugarinho, Laura Padilha, Carmen Tindó, entre outros mais.

Trabalha-se com as obras de Rui Knopfli presentes na coletânea Obra poética por Rui Knopfli – OP (2003): O país dos outros – OPO (1959); Reino submarino – RS

(1962); Máquina de areia – MA (1964); Mangas verdes com sal – MVS (1969); A ilha de Próspero – AIP (1972); O escriba acocorado – OEA (1978); O corpo de Atena –

OCA (1984) e O monhé das cobras – OMC (1997) – além de poemas presentes no suplemento literário Revista Caliban – RC.

Existem características que se desvelam e se repetem ao longo da obra knopfiliana e estas questões serão trazidas à tese, de acordo com o desenvolvimento coerente das ideias aqui defendidas, como, por exemplo, o silêncio que sempre consegue se impor entre as linhas dos versos, revelador de um poeta profundo, que mais observa que fala. Há também intertextualidades, diálogos e, até mesmo, jogos parafrásicos com a ampla literatura mundial, o que leva o poeta a gabar-se de seu grande conhecimento de mundo.

Como esta tese não se propõe a trabalhar os livros de Knopfli linearmente, entende-se a necessidade de uma pequena apresentação destes, de acordo com as ideias

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e teorias que serão levantadas nesta tese, assim como, com o auxílio de teóricos e estudiosos das literaturas e culturas africanas, e, em especial, da poesia Knopfiliana.

O primeiro livro de Rui Knopfli, O país dos outros – OPO (1959), embora seja um livro de estreia, nele o poeta já mostra maturidade e olhar diferente em relação à paisagem ao seu redor, prevendo os acontecimentos futuros e evidenciando as questões da nacionalidade / territorialidade que virão a seguir. A paisagem que mira neste livro e a geopoética que instaura contemplam o drama da colonização e da tomada de consciência do povo; a afirmação de uma nova poesia livre de ideias político- ideológicas, que reivindica um espaço diferente para si na literatura, ao mesmo tempo em que se mantém atenta e crítica em relação aos rumos da história; o medo do futuro que o poeta deixa transparecer: afinal; como o próprio título afirma, o país –

Moçambique – pertencia aos outros, mas que outros? (anexo 1).

Em Reino submarino – RS (1962), há maior vigor poético. Knopfli volta-se para a poesia de forma ainda mais profunda que na obra precedente, instalando e reforçando o espaço multifacetado de suas letras. A metáfora dos "submersos" que começam a emergir percorre todo o livro, apontando para a relação do colonizador x colonizado.

Em Máquina de areia – MA (1964) canta-se o "mundo caduco" de Drummond de Andrade, referencia-se Eliot, Camões e muitos outros nomes da literatura. Lançado no ano de início da guerra anticolonial em Moçambique, este livro, por meio da associação entre a "máquina de areia" de Knopfli e a "máquina do mundo" de Camões, começa a olhar criticamente para a paisagem ao redor que já está instaurada e aquela que está por vir. É o livro que foca na mudança dos tempos, das vontades e das paisagens. Composto por cinco poemas, cria um novo mundo poético, incomum para o momento literário panfletário existente em Moçambique dos anos 1960 (anexo 2).

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Na obra Mangas verdes com sal – MVS (1969), segundo Eugénio Lisboa, nome que remete ao hábito da criança Knopfli de comer mangas verdes com sal, já evidencia um apelo à memória da infância que a cada livro se tornará mais forte. Mantém-se o labor com a estética poética, mas é o fator tempo que percorre sua poesia e o incomoda na geopoética deste livro. Knopfli demonstra uma preocupação, principalmente, com o tempo futuro, mas também experimenta um desalento, uma tristeza crepuscular ao mirar o passado e o presente.

As intertextualidades são apresentadas ainda com mais força nesta obra, como se esta abrisse caminho para o próximo livro A ilha de Próspero - AIP (anexo3). Nessa obra, lançada em 1972 – ano do quarto centenário d'Os Lusíadas –, Knopfli mira para a relação Calibam x Próspero, referindo-se à obra de Shakespeare A tempestade, pondo em cheque as relações de colonização, via figuras desses personagens. Volta-se conscientemente para o cenário político e histórico conturbado, pois já se pressentia o fim do colonialismo, fazendo com que o poeta pensasse e deliberasse muito ao escrever esta obra, porque, para além de ser uma homenagem à Ilha de Moçambique, era uma crítica severa aos moldes paisagísticos – político, histórico, econômico e social – em que o mundo estava inserido. Na primeira edição deste livro, há fotos da Ilha de

Moçambique, como um roteiro turístico. Nas demais edições, as fotos não foram reproduzidas.

Em 1978, o poeta lança O escriba acocorado – OEA (anexo 4), obra que marca seu rompimento definitivo com os moldes literários vigentes em Moçambique, lançando seu olhar para a História mundial – e não apenas a africana –, revisitando-a de um território novo observado por um poeta revestido de escriba: pensador. Não abandona o labor poético neste livro, que traz como característica a composição de todos os poemas

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com cinco versos em cada uma de suas estrofes. Seria essa mais uma das mensagens irônicas que Knopfli deixa caminhar por sua poesia?

Após seis anos, foi publicado O corpo de Atenas – OCA (1984), obra voltada para as representações históricas para reafirmá-las, ou, principalmente, negá-las. Há uma explícita vontade, por parte do poeta, de marcar definitivamente o espaço de sua poesia nas literaturas de língua portuguesa, sobretudo, as africanas. Dessa forma, abre- se o livro com uma parte chamada "Notas para a regulamentação do discurso próprio", como se cansado da incompreensão e da margem6 – muito pesada para um exilado –, decide clarear para seus "detratores" o seu discurso profundo.

Neste livro os espaços poéticos são privilegiados, não apenas pelo trabalho estético, mas também pela intertextualidade literária dialogante em seus poemas; há, ainda, a presença marcante do espaço londrino, cidade de acolhimento do exilado.

Mais tarde, precisamente, em 1997, ano do falecimento do poeta, a obra O monhé das cobras – OMC (anexo 5) é lançada. Atenta-se para o fato de o substantivo

"monhé" designar o mestiço, filho de árabe com negro, sendo uma forma depreciativa para nomear também os mulçumanos asiáticos. Por isso, o que se percebe é um olhar que continua a querer visualizar o horizonte do Oriente. Mesmo que localizados fisicamente na Europa, seus afetos, memórias e pensamentos vivem o hibridismo da terra moçambicana. É o livro que recorre à memória para viver emoções só encontradas no Moçambique do passado ou da imaginação.

Após esta pequena explanação sobre as obras de Knopfli – alinhadas com as ideias críticas de Eugénio Lisboa, Ana Mafalda Leite, Rita Chaves, Francisco Noa,

6 Entende-se a questão de estar à margem como um conceito de não pertencimento, como em Graciliano Ramos. 22

Fátima Mendonça e Carmem Tindó –, ouviram-se também os conselhos dados pelo próprio Rui Knopfli, em entrevista concedida a Michel Laban (1998), em que afirma:

É evidente, se eu lhe der a chave das minhas motivações, dei-lhe uma série de iluminações, mas garanto-lhe que lhe deixei uma série de coisas ainda no segredo. E é um segredo que só você por si poderá investigar, poderá descobrir, mas não – nem nunca – totalmente. (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p.570)

E, por isso, nesta tese, não serão desvelados todos os caminhos que compõem a geografia literária de Rui Knopfli. Alguns segredos, muitos deles, ficarão. Assim, objetiva-se, aqui também, passar ao leitor o sabor dos inúmeros e infindáveis descobrimentos poéticos.

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2. RUI KNOPFLI E SUA MULTIFACETADA GEOPOÉTICA

A nossa história comum é como se fosse constituída por duas margens de um rio que deságua não no mar, mas na profundidade da terra para ressurgir não já como um rio, mas como várias vias com muitas curvas que rasgam uma floresta densa rumo àquele infinito que está ao alcance de quem olha para o horizonte e a vista não pode mais, isto é, o futuro de cada um de nós. (ROSÁRIO, 2010, p.152)

Essa história comum da qual Rui Knopfli, apesar de considerado por alguns críticos como "poeta de lugar nenhum" 7 (MONTEIRO, 2003), também faz parte, é dividida em duas margens: aquela destinada aos colonizadores e colonos, brancos ou assimilados, e a outra, aos colonizados, negros, mulatos e mestiços. E, entre as décadas de 1950 e 1970, alguns integrantes dessa segunda margem tomaram consciência de que a mudança político-social e cultural em Moçambique deveria acontecer.

Rui Knopfli, desde cedo, já percebera que as águas de sua terra natal não desaguavam no mar, mas sim na própria terra, seca, árida, cujo horizonte – contendo inúmeras possibilidades de futuro – não poderia ser abarcado facilmente. A sua história, entretanto, por sua visão cosmopolita do mundo, se confundia com a dos que também traziam "no sangue uma amplidão / de coordenadas geográficas e mar Índico"

(KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO). Sentindo, então, esse pulsar latente em seu corpo, transfigurou em forma de poesia a tradução da geografia múltipla ao seu redor.

7 Salienta-se que esta afirmação sobre Rui Knopfli diverge, de acordo com diferentes pensamentos críticos sobre sua obra, os quais podem considerá-lo também como um poeta híbrido de muitas coordenadas geográficas.

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Geopoética ou geografia literária, segundo Michel Collot (2013), é o modo como o efeito literário se inscreve no espaço, ressignificando-o. Este passa a ser visto e entendido como prolongamento da visão poética, sendo necessário ao seu entendimento.

As linhas que contornam uma paisagem, o que o olhar abrange e o que está para além dele abrem um leque de possibilidades imagináveis, de acordo com a influência cultural e pessoal de quem mira.

Knopfli é, sem dúvida, um poeta da geopoética multifacetada8. Ele conseguiu ressignificar paisagens com seu olhar, perceber o "céu de chumbo" (KNOPFLI, 2003, p.37), delinear o território moçambicano, literariamente, tanto no aspecto geofísico, quanto histórico-cultural, independentemente de seu ponto de apreensão ser a partir de dentro deste cenário ou já em exílio.

A paisagem para a geopoética funciona como um operador que possibilita a leitura por meio da memória, da identidade, da cultura, do corpo e, neste caso, da escrita: "A paisagem aparece como a própria memória do mundo vivido" (COLLOT,

2013, p.22), ou seja:

O horizonte da paisagem nada mais é que uma manifestação exemplar desta ocultação recíproca das coisas. Ele não nos dá a ver a extensão de uma região [de um país] senão ocultando outras regiões do olhar, das quais, no entanto, deixa-nos pressentir a presença, fazendo com que nosso aqui se comunique virtualmente com o próprio mundo inteiro, que é o horizonte dos horizontes, e como tal, inesgotável (...) (COLLOT, 2013, p. 24)

Ao pensar na geografia literária, as palavras de Collot ganham outro sentido: com a escrita, principalmente a da poesia, os horizontes a serem compreendidos são mais amplos e os cenários a serem mirados também. O mundo inteiro, ou melhor, a literatura mundial pode estar presente no olhar do poeta, como ocorre, por exemplo,

8 Salienta-se, mais uma vez, que não se está trabalhando com o conceito de geopoética defendido por Kenneth White e, sim, com as questões propostas por Michel Collot, que apreende a paisagem como uma operadora para uma nova construção literária. 25

com Knopfli ao se dizer participante do grupo dos "poetas caídos" (poema

"Hereditariedade", KNOPFLI, 2003, p. 248-249 - MVS).

Rui Knopfli, que acessou diversos materiais e bebeu em variadas fontes, teve o seu horizonte alargado para além das fronteiras locais, podendo, assim, transgredir e transfigurar na sua escrita um horizonte além do horizonte habitual.

Desde cedo soube olhar para as múltiplas geografias que o cercavam: percebeu a presença dos negros e as diferenças de tratamento dados aos portugueses por seus diferentes graus de importância dentro da colônia e aos indianos e muçulmanos, cuja presença naquelas terras – sobretudo na Ilha de Moçambique – datava de séculos

(CABAÇO, 2009).

Assim, um primeiro olhar focado na geografia humana e religiosa que se apresentava na Ilha de Moçambique pode ser exemplificado com o poema "Terraço da

Misericórdia" (KNOPFLI, 2003, p. 353 – AIP). Nele há uma amplitude no olhar de Rui ao perceber uma geopoética que se configura; em cinco estrofes, apreende o cenário, em que elementos étnico-culturais diferentes se revelam dentro de uma normalidade cotidiana formadora de um mosaico religioso: são os "versículos do Corão (...)", o "Pai-

Nosso, Ave-Maria, / do rosário (...)" (KNOPFLI, 2003, p. 353 – AIP) e os mantras mediúnicos. São as diferentes etnias formadoras da geografia humana de Moçambique que o poeta vê, absorve e amplia com seu olhar poético.

As sombras salmodiam tristemente versículos do Corão. Adejam brancas túnicas na moleza da brisa morna. A velha Misericórdia cuida da alvenaria

retocada de m'siro alvíssimo e, por entre vielas e pracetas, finge ignorar ao longe o verde moço da Mesquita. Pai-Nosso, Ave-Maria,

do rosário, talhado por mãos macuas, caem as contas negras. Os lábios ressequidos do velho patiah

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respondem ciciando mediúnicos o Gayatri:

Tat Savitur vareniam bhargo devasya dhimahi dhiyo yo nah pracodayat. Coração perplexo, amassado na argila do tempo, qual o teu nome verdadeiro:

Gafar, Govinde, ou Gonzaga? (KNOPFLI, 2003, p. 353 – AIP)

Com a consciência de que "Cada palavra – além de suas propriedades físicas – contém uma pluralidade de sentidos" (PAZ, 2012, p.29), o poeta faz do signo um aliado de vários significados, mistura os elementos católicos a outras religiões, como o uso do verbo “salmodiam” junto ao substantivo “versículos”, atrelado ao “Corão” – "As sombras salmodiam tristemente/ versículos do Corão" (KNOPFLI, 2003, p.353 – AIP).

O advérbio “tristemente” reforça a condição do mulçumano em um território, cuja colonização foi prioritariamente católica, valorizadora da cultura europeia.

(...) "a ideia Europa", uma noção coletiva que identifica a "nós" europeus contra todos "aqueles" não europeus, e pode-se argumentar que o principal componente da cultura europeia é precisamente o que tornou hegemônica essa cultura, dentro e fora da Europa: a ideia de uma identidade europeia superior a todos os povos e culturas não europeus (SAID, E., 2007, p.34)

Edward Said explica esse esmagamento cultural que a colonização e o imperialismo europeu criaram no mundo. A superioridade civil, intelectual e social é massivamente imputada ao outro, o oriental, que não se identifica com a identidade europeia, mas por ela é moldado superficialmente.

Outro elemento interessante para o conjunto do poema é o título "Terraço da

Misericórdia"; referindo-se à Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, de 1556, situada na Ilha de Moçambique, marca a presença, na escrita, de um espaço existente, cujo nome "misericórdia" denota "compaixão suscitada pela miséria alheia; indulgência; graça; perdão" (FERREIRA, 1995, p. 935), bem diferente dos adjetivos utilizados no poema, que denotam desprezo e indiferença por parte dos frequentadores da igreja com relação à tristeza islâmica ou à timidez hindu. 27

À exceção do Islã, até o século XIX o Oriente era para a Europa uma área com uma história contínua de domínio ocidental inquestionável. Isso é verdadeiro de forma evidente para a experiência britânica na Índia, a experiência portuguesa nas Índias Orientais, na China e no Japão, e as experiências francesa e italiana em várias regiões do Oriente (SAID, E., 2008, p.115)

A imagem de tristeza dos que "salmodiam" o Corão é acentuada pela das túnicas brancas, ao balançar da brisa, propondo uma tensão entre os seguidores de Cristo que fingidamente ignoram “o verde moço / da Mesquita” (KNOPFLI, 2003, p. 353 – AIP) e os adoradores dos deuses indianos, que devem cantar seus mantras, “ciciando”

(KNOPFLI, 2003, p. 353 – AIP). Trata-se da evidência da falta de liberdade religiosa e da submissão desses grupos à religião dos colonizadores portugueses. Mas também aqui, encontra-se uma das características que fazem esse poema uma obra poética: o poder de transformar signos/significados em imagens literárias.

A poesia transforma a pedra, a cor, a palavra e o som em imagens. E essa segunda característica, ser imagens, e o estranho poder que elas têm de suscitar no ouvinte ou no espectador constelações de imagens, fazem de todas as obras de arte poemas (PAZ, 2012, p.30-31)

Knopfli denuncia a submissão dos orientais aos portugueses, por meio do verso final, como quem diz que nesta terra há de tudo e de todos, são tantas misturas que não se pode saber quem és tu: "Gafar, Govinde ou Gonzaga?" (KNOPFLI, 2003, p. 353 –

AIP). Como se o questionamento fosse mais profundo: muçulmano, indiano ou português? Tal pergunta é pronunciada por alguém de “Coração perplexo, amassado na argila / do tempo” (KNOPFLI, 2003, p. 353 – AIP), mas também por alguém que se sente pertencente a essas misturas, a ponto de subverter um poema em língua portuguesa, incluindo o mantra Gayatri, que é muito venerado pelos praticantes do hinduísmo: "Tat Savitur vareniam bhargo devasya / dhimahi dhiyo yo nah pracodayat"

(KNOPFLI, 2003, p. 353 – AIP).

O poeta quer, efetivamente, mostrar que nesta terra há muito mais do que negros e brancos, europeus e africanos, há também os seguidores de Alá, cantores de mantras

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que não têm voz, mas fazem parte deste país multiculturalizado. Houve até um Gonzaga luso-brasileiro, poeta, e que sabia cantar as palmeiras e os sabiás de sua terra além-mar.

Também, neste fim de poema, a palavra assume um significado plural que ultrapassa a própria língua portuguesa. Estende-se – da mesma forma que as diferentes etnias em Moçambique – aos idiomas dos outros marginalizados que dividem o mesmo território geo-político-social moçambicano.

Observou-se, portanto, que o poeta possui uma sensibilidade para as questões de sua terra muito mais intensa que uma simples busca pela moçambicanidade ou pela africanidade, conceitos muito presentes durante os anos 1944-1960. Entretanto, outra mensagem também presentifica-se: o poeta quer afirmar que nesta terra há lugar para os que não têm espaço, como ele.

Seus horizontes literários permitiram-no ver além de uma poesia engajada ou de mero cunho panfletário ou, ainda, preocupada em cantar o ‘nós’ coletivo; Knopfli cantou um ‘eu’ que percorre os moçambicanos, mas soube dar voos maiores e ampliar suas visões, atingindo outras geografias, pois, ao deparar-se com uma nova paisagem, novos sentimentos e emoções passavam a habitá-lo. Cria-se, desse modo, um pensamento-paisagem, isto é, uma configuração cultural daquela paisagem por meio de um pensamento poético:

O sentido de um texto, como o de uma paisagem, baseia-se na disposição dos elementos que os compõem; é por sua aptidão para criar novas relações e solidariedade inédita entre as palavras que um escritor pode levar em conta a singularidade de sua relação com o mundo: 'trata-se de produzir um sistema de signos que restitui, por seu agenciamento interno, a paisagem de uma experiência, é preciso que os relevos, as linhas de força dessa paisagem induzam a uma sintaxe profunda, a um modo de composição e de narração, que desfaçam e refaçam o mundo e a linguagem usuais (COLLOT, 2013, p.47)

Esse pensamento pode-se desdobrar no espaço de um papel, em que se desenrola uma poesia, cujo horizonte feito pelas bordas circunda a paisagem apreendida por um lance de vista do poeta. Pinta-se com as palavras uma poesia atravessada por um olhar 29

que também enxerga tristeza e tédio, “sal e esquecimento” (KNOPFLI, 2003, p.76 –

OPO) e “doloridos musgos de lembranças” (KNOPFLI, 2003, p.71 – OPO) na geopoética de sua vida.

Toda paisagem é apreendida através de um ponto de vista, fazendo com que haja uma interação entre o indivíduo e o meio, pois ela é vista por alguém em algum lugar, existindo um horizonte que a delimita até onde podemos entendê-la e considerá-la.

Assim, a paisagem dá perspectiva ao horizonte, ao mesmo tempo em que este é a marca entre ela e o sujeito. (COLLOT, 2010, p. 206). Entretanto, a paisagem reafirma-se como um espaço de geopoeticidade, que imprime uma forma maior ao verbo, fazendo com que este irrompa, naquela geografia paisagística, com a força da geografia poética.

É habitando Moçambique que o sujeito poético pode apreender o mar Índico, perceber que na sua terra não há campos pastoris, “(...) mas a savana / eriçada de micaias e capim / feio e desigual (...)” (KNOPFLI, 2003, p. 154 – RS), sentir que dentro de si “(...) há savanas de aridez / e planuras sem fim / com longos rios langues e sinuosos (...)” (KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO) e entender que “Todo mistério reside nos rios / da minha terra. / Toda beleza secreta e virgem que resta / está nos rios da minha terra. / Toda poesia oculta é dos rios / da minha terra” (KNOPFLI, 2003, p.121-123 –

RS) e que se deve mirar a “poesia coreográfica / dos rios da minha terra” (KNOPFLI,

2003, p.121-123 – RS). Porque, diferente dos rios ensinados no liceu, os rios da terra do poeta são poéticos: apresentam mistérios, cujos rios da Europa já perderam.

O horizonte do poema pode ser mais flexível que o da paisagem apreendida pela visão, já que nos versos existe a possibilidade de se ver além, por meio de diálogos e intertextualidades.

Knopfli provou que sua poesia possui um horizonte agregador de fronteiras maiores; quando, no período de luta contra a opressão colonial, em que uma parte da

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literatura moçambicana fora dominada por um engajamento, mas também por uma panfletagem, contaminadora de uma geração de escritores, o poeta estava produzindo um lirismo individual, de poesia afirmadora de seu próprio espaço, sem comprometimentos político-partidários, exprimindo preocupações existenciais nos mais variados níveis.

Entretanto, ao ultrapassar o primeiro horizonte da poesia e da paisagem, depara- se com outros, perpetuamente. A paisagem, deste modo, possui uma profundidade infinita, cuja realidade é sempre diferente daquela imaginada. (COLLOT, 2010, p.211).

Portanto, a dimensão ultrassubjetiva da paisagem mobiliza a lembrança e a imaginação, fazendo o sujeito ultrapassar os limites de uma identidade factícia (COLLOT, 2010, p.211). É escapando desses limites que Knopfli se concentra no lirismo, desprendendo- se de amarras formais e buscando uma condição profunda da poesia.

A paisagem, devido ao seu caráter transtemporal, permite que elementos/objetos do presente e passado convivam ao mesmo tempo, no mesmo espaço, embora em

âmbito memorialístico.

Segundo Francisco Noa (1998, p.82), o ecletismo é uma marca na poética de

Knopfli e é, a partir da convivência profusa de textos de múltiplas e variadas fontes, que o poeta consegue ultrapassar o horizonte planejado e alcançar um segundo plano no horizonte do poema.

Seria nesta segunda dimensão – delimitada pelo fazer poético livre e influenciada por ecléticas fontes – que o poeta se dedica ao trabalho efetivo de escrever poesia. Esta segunda dimensão relacionada ao horizonte geopoético é a de um mergulho na memória da infância:

Por uma rua enlameada e escura regresso a casa de meus pais, neste inverso cinzento e dolorido. Regresso pesado das contrariedades, 31

das rugas da testa, da hipermetropia dos olhos. Volto em passo lento junto ao musgo azul da parede, sobre polidas pedras da infância. A vista abarca a menopausa sem cor das coisas de antigamente, e planta girassóis de lembrança nos lugares de outrora. Mudo, desço a estrada da memória Onde brinca a quadrilha do Losango Azul. (...) (KNOPFLI, 2003, p.77-78 – OPO)

É descendo pela estrada da memória, tecendo uma nova geografia, mas agora entremeada pela subjetividade, que o poeta caminha pela linha do horizonte da poesia.

Revisitando os lugares de outrora, prolonga seu espaço pessoal para o passado, buscando momentos que o afetaram na infância vivida, revivendo-os no presente como tentativa momentânea de substituir o seu horizonte atual que está perdido para além das paisagens.

Dentro de um estado de menopausa, sem cor, em que a grande mãe do tempo não fecunda mais a terra, as lembranças são plantadas em girassóis que irradiam luz e colorido amarelado para aquela paisagem, em um conceito da cor sépia, envelhecida pelo tempo como fotografia levada pela “brisa morna” que “arrasta as últimas folhas secas / por sobre / o rio e a foz.” (KNOPFLI, 2003, p.119-120 – RS). Ao serem levadas pelo rio da memória, aquelas lembranças, como fotografias, suscitam no sujeito poético a sua condição no tempo. Isto é, as lembranças podem ser revisitadas pela memória, influenciadas pelo inconsciente e consciente, mas nunca poderão ser revividas com o mesmo sabor e gosto do outrora. E esta dura certeza do não regresso atinge o poeta que, ainda mudo, desce “a estrada da memória” (KNOPFLI, 2003, p.77-78 – OPO), constatando:

(...) Engano. Julguei que regressava.

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Não se regressa. É de lágrimas a paisagem que vejo (KNOPFLI, 2003, p.77-78 – OPO)

O olhar antecipa o movimento do corpo, pois ver remete a poder (COLLOT,

2010, p. 207) e, assim, a paisagem torna-se um prolongamento do espaço pessoal do sujeito, já que ele, através da visão, toma aquela paisagem como continuação de seu corpo. Demonstra-se, portanto, a subjetividade presente na geopoética.

As metamorfoses do olhar não revelam somente quem olha; revelam também quem é olhado, tanto a si mesmo como ao observador. É com efeito curioso observar as reações do fitado sob o olhar do outro e observar-se a si mesmo sob olhares estranhos. O olhar aparece como símbolo e instrumento de uma revelação. Mais ainda, é um reator e um revelador recíproco de quem olha e de quem é olhado. O olhar de outrem é um espelho que reflete duas almas (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p. 653)

Tal subjetividade, ocorrida pela relação entre visão, corpo e poder, permite que conteúdos psicológicos sejam investidos na paisagem e, como o ponto de vista é subjetivo, há, na mesma, um espelho constante de afetividade. Cada paisagem vai refletir o que afeta o indivíduo que a contempla. Por conseguinte, a paisagem é vivida e não apenas habitada, já que reflete os sentimentos que pacificam ou acionam o sujeito dentro de um espaço que pode fazer parte de uma geografia real, de relevos e contornos abarcáveis pelos olhos ou de uma geografia poética, onírica, tangível pelos sentimentos e pelo poder do signo/significado.

Assim, Collot (2010, p. 207) afirma que a paisagem testemunha de fora o que se passa dentro. Como o sujeito a compõe, é impossível que este a apreenda como um todo

(COLLOT, 2010, p. 208-209); da mesma forma que todo ponto de vista é também uma perspectiva que exclui outras, a paisagem torna-se parcial. (COLLOT, 2010, p. 209).

Interessa, nessa relação estabelecida entre visão, corpo e poder, perceber como a geografia literária e seus espaços se constituem; como ela vai apresentar-se poeticamente nos poemas de Knopfli, que soube transpor de maneira figurativa a

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realidade vista por seus olhos para a realidade sentida no papel; os sentimentos que afetaram, afetam e afetarão os moçambicanos, o poeta e seus horizontes.

Em entrevista a Michel Laban, Knopfli afirma que é um ser formado pelos contornos geográficos que o foram moldando ao longo da vida: "É o regresso a tal pátria limitada na fragilidade dos contornos geográficos que me circunscrevem" (KNOPFLI.

In: LABAN, 1998, p. 533). É, pois, intenção desta tese acompanhar e interpretar esses contornos geopoéticos múltiplos que delinearam o percurso multifacetado do poeta.

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2.1. Atrito, delito, conflito

Na época moderna (...) as palavras produzem uma espécie de contínuo formal do qual emana aos poucos uma densidade intelectual ou sentimental impossível sem elas; a fala é, então, o tempo espesso de uma gestação mais espiritual, durante a qual o 'pensamento' é preparado, instalado pouco a pouco pelo acaso das palavras. Esse caso verbal, de onde vai cair o fruto maduro de uma significação, supõe portanto um tempo poético que não é mais o de uma 'fabricação', mas o de uma aventura possível, o encontro de um signo com uma intenção (BARTHES, 1996, p.141)

Rui Knopfli busca essa aventura possível do signo, subvertendo os valores das palavras e também os seus sentidos, expressando em seus versos a densidade necessária para uma poesia genuína, mas, sobretudo, permeada por diversos afetos, que se atritam.

Sua literatura aqui se torna mais afetiva, pois se "gera" um fruto maduro que enfrenta a crítica e o modelo social literário vigente, demonstrando que há mais de um espaço poético a ser habitado, ainda desconhecido pelos colegas e pelos críticos, em que a poesia, voz primeira, ganha contornos geográficos, tecendo um cenário atrelado a uma poética que não se isenta de influenciar e ser influenciada pelo olhar do poeta.

A geopoética do atrito, do delito e do conflito instaurada por Rui Knopfli vai acompanhá-lo durante a sua caminhada literária. Ele apresenta um lugar novo na poesia para dedicar-se a essas questões afetivas relevantes, pois, ao subverter o cânone vigente da literatura moçambicana, abre-se um espaço, um vácuo sem luz, em que o poeta é arremessado junto a sua literatura, sem definir-se como poeta daqui ou de lá.

Assim, atrita-se com a crítica e com o modelo sócio-literário do momento, uma vez ter cometido o delito de criar um paradigma novo de poesia em Moçambique que não se inseria no espaço da "heroicidade e da conquista" (SAID, R., 2010, p.191), o que,

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consequentemente, gerou conflitos no âmbito literário, social e pessoal que foram cruciais para a construção da obra poética de Rui Knopfli.

(...) a trajetória do poeta, desdobrada no curso de quatro décadas, apesar de correr paralela à transformação histórica de seu país, presenciando a luta de libertação, bem como a guerra civil e a restauração democrática jamais se alinharam à hermenêutica ou ao ethos revolucionários, os quais, pautados pelo binarismo ideológico, conformaram o horizonte de expectativas culturais em sua nação (SAID, R., 2010, p.191)

Essa ambivalência de espaços literários e de sua dimensão pessoal irá marcá-lo profundamente, já que se considerava um poeta do mundo: "Mas 'A pátria somos nós' quer dizer que a única pátria que resta é a cabeça, tronco, membros e língua em que somos. Mais nada. A pátria que sonhamos foi usurpada, não é? A pátria no fundo somos nós." (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p.527). Essas palavras de Knopfli evidenciam a geografia da língua, que é extensa e democrática, permitindo que todos esses apátridas ganhem um lugar, um relevo, um espaço pulsante e questionador no papel. E o poeta completa:

E a língua já não é a língua de empréstimo – não vamos dizer que é a língua do colonizador –, qualquer língua serve. (...) Esta coisa que quiseram contestar – "vamos ficar com a língua do colonizador"... – isto é perfeitamente ridículo. Vamos ficar com a língua em que a gente se possa exprimir com cada vez mais larga audiência (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p.451) Aos 16 anos, Knopfli publicou, em 1948, no nº 13 do Jornal da Mocidade

Portuguesa, o conto “A seca”. Junto com José Craveirinha e Noémia de Sousa, agiu como ativista durante um tempo (MONTEIRO, 2003, p.22). No mesmo ano em que começou a ter contatos maiores com os ideais políticos ideológicos, publicou outro conto, agora dedicado à Noémia de Sousa, chamado “Lumina”, na revista Itinerário – mensário de Letras, Artes e Ciências, que será abordado mais adiante. Ao ver seu grupo preso pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado Português), Knopfli testemunha o racismo colonial, denunciando o fato de Ricardo Rangel e Noémia de

Sousa terem sofrido agressões físicas e ele não, por ser branco (MONTEIRO, 2003,

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p.22). Isso irá afetar conflituosamente a sua trajetória poética, que, diversas vezes, refere-se à pluralidade étnico-racial de Moçambique, como se pôde verificar no poema

"Terraço da Misericórdia" (KNOPFLI, 2003, p.353 – AIP), anteriormente estudado neste capítulo.

Essas questões raciais vividas pelos negros e mulatos africanos afetavam

Knopfli que se questionava: como ele, filho de portugueses, rodeado pela proteção da colonização, poderia escrever poemas como os de José Craveirinha? Como iria cantar o negro que ele não era? Falar das dores que nunca sentira? Esse conflito foi um dos muitos motivos que levaram o poeta a construir uma poesia preocupada com o labor estético, não se alinhando a discussões explícitas das causas sociais.

E, ao produzir sua obra, esmerando-se na artesania do fazer poético, Knopfli alcançou o que Octavio Paz (2012) define como poesia:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes (PAZ, 2012, p. 21)

Knopfli entendeu o fundamento da poesia em sua essência e aplicou-o em seus versos, usando o poder "revolucionário" intrínseco a ela – já que tem o dom de mudar mentalidades e o mundo, segundo Octavio Paz –, para olhar mais adiante; sofreu a solidão e o isolamento físico e literário que o acometeram durante longa parte de sua vida; viajou e mirou outras paragens, ouvindo desde a ladainha até o Corão. Sublimou e atingiu o prazer literário que provoca no leitor um estado poético:

Há um traço comum a todos os poemas, sem o qual eles nunca seriam poesia: a participação. Toda vez que o leitor revive de verdade o poema, atinge um estado que podemos chamar poético. Tal experiência pode adquirir esta ou aquela forma, mas é sempre um ir além de si, um romper os muros temporais para ser outro. Tal como criação poética, a

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experiência do poema se dá na história, é história e, ao mesmo tempo, nega a história (PAZ, 2012, p. 33)

"A quinta década" (KNOPFLI, 2003, p.86-87- OPO) é um poema que traz outras impressões significativas: primeiramente, o título do poema remete à década de 1950 que foi marcada pela conscientização e pelo medo em Moçambique. Os portugueses estavam aumentando sua brutalidade em relação às colônias e os colonizados passaram a ouvir ecos da revolta e a pensar na "inescrutável mudança" (KNOPFLI, 2003, p. 86 –

OPO).

Embora não se filie à poesia de combate, sua obra não se aliena dos problemas culturais e políticos suscitados pela emancipação. A esse respeito, interessa assinalar que seu movimento não se dá apenas em função de uma identidade literária e discursiva, pautada por uma ordem de posicionamentos estéticos, mas também em função de uma perspectiva intelectual, isto é, da busca de um lugar de enunciação dentro do cenário da modernidade cultural moçambicana – cenário contra o qual se insurgia (SAID, R., 2010, p. 197)

O poema anteriormente referido, apesar de falar em primeira pessoa, reflete a coletividade, porque o temor e a angústia eram compartilhados por todos os conterrâneos que se encontravam em mesma situação; é, assim, um poema de voz coletiva.

As feridas da colonização conservam-se abertas – ideia reforçada pelo uso do verbo "ser" no lugar do "estar", enfatizando a permanência delas: "Infectas as feridas são vivas" (KNOPFLI, 2003, p.86-87 – OPO). Elas querem fechar, mas não cicatrizam, principalmente, porque não se pode esquecer o que se viveu no período colonial.

Faz muitos anos que me oculto, quedo, estendido ao longo desta muralha. Infectas as feridas são vivas e secam em falso oblongas crostas Estendido em silêncio e torpor: Vinte e tantos anos de idade e outros tantos de medo

O medo da palavra e do gesto, medo na aba do chapéu e na gabardina, medo de ti que me olhas na avenida, medo escorrido ao longo da fachada, mergulhado nas poças brilhantes do asfalto.

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Não tenho culpa de ter medo, nasci no tempo impreciso do medo.

Não temo o rosto diverso da morte, não temo a ameaça da nuvem atómica, não temo o susceptível de ser temido há dois mil e tantos anos. Temo a disfarçada ameaça indisfarçada, temo o honor da angústia a todo a hora, temo o temor do tempo do medo.

O medo infla, cresce e aboluma-se. Impregna-se na carne, no cerne das unhas, veste a tepidez da epiderme e o frio dos ossos. Total, domina, obstrui, materializa-se em suor. Pela calada sombria vireis na hora próxima. Prevenido de medo, farto de medo, tremo, e este modo é uma ameaça

que se oblitera e volta contra vós. (KNOPFLI, 2003, p. 86-87 – OPO)

O medo é permanente no poema e associa-se à angústia de estar vivo em um momento como este, mas não há culpa: "Não tenho culpa de ter medo, / nasci no tempo impreciso do medo" (KNOPFLI, 2003, p. 87 – OPO). O medo tem um tempo impreciso, assim como seu espaço. Não se sabe o que espreita na curva adiante, não é a morte ou a bomba que atemoriza, mas, sim, "disfarçada ameaça indisfarçada" (KNOPFLI, 2003, p.87 – OPO), quer dizer, a ameaça que a colonização impõe através do medo, mas que se disfarça em uma falsa ideia de benfeitoria e evolução do local colonizado.

Outra face do medo é apresentada, a mais perigosa: aquela que remexe, que revolta, que move o ser humano para a mudança, para uma vida sem repressão; este é o medo que se "volta contra vós" (KNOPFLI, 2003, p. 87 – OPO). Este vós pode-se entender como o colonizador.

O conflito pessoal dá-se no âmbito do não reconhecimento, das escolhas, dos arrependimentos e da memória. "Ler Knopfli é, portanto, adentrar-se em continente, nação e sujeito fraturados." (SAID, R., 2010, p. 195).

No posfácio do livro A Ilha de Próspero - AIP (1972), o poeta menciona as multiplicidades étnico-culturais presentes em Moçambique e a sua ascendência 39

europeia, evidenciando, assim, a consciência de que era um sujeito multifacetado desde seu nascimento:

Filho de pai alentejano e de mãe serrana, nascido na cidadezinha de , o autor não ignora, nem esconde, a sua origem "pied noir", tal como o cristão não nega o pecado original, embora, um e outro, e de outra coisa, procurem redimir-se por vias diferenciadas e – crê-se – com total sinceridade. E eis que o autor, "pied noir" de origem, olha em redor verificando que a expressão Moçambique, no seu cariz abstrato de desinência geopolítica, engloba várias nações ou etnias – ronga, chope, chona, maravi, angunim macua, iomué, ajáua, maconde, etc – e que ele não tem lugar em nenhuma delas (KNOPFLI, 1972, p. 131-132 - AIP)

Durante o período entre 1949 e início da década de 1950, Rui Knopfli adotou um foco mais político, vindo a tornar-se mais lírico a partir dos meados dos anos 1950. Em

1960, a Associação dos Naturais de Moçambique criou A Voz de Moçambique, órgão da imprensa em que diversos poetas, de diferentes estratos sociais e grupos étnicos, puderam expor suas obras literárias.

Outro periódico de grande importância para o escritor foi O Itinerário9, revista mensal que versava sobre literatura, ciências e artes, publicadas entre 1941 e 1955.

Segundo Francisco Noa (1997, p. 43), Rui Knopfli foi, "até determinada altura, um dos mais proeminentes colaboradores” dessa revista. E conclui:

O Itinerário pode mesmo ser visto como o primeiro órgão congregador de uma geração literária em Moçambique, se tivermos atenção que nele se cruzam contribuições de Fonseca do Amaral, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Orlando Mendes, Rui Nogar, Aníbal Aleluia, Kalungano e o próprio Knopfli (NOA, 1997, p. 44)

Nas décadas de 1950 e 60, havia uma tendência à padronização do que seria a

“poesia moçambicana”, que, de início, engajada, fora atrelada aos ideais negritudinistas e, depois, tornou-se, por vezes, panfletários que utilizavam a literatura como meio de expressão e expansão de ideias combativas. Como já afirmado, Knopfli não se alinhava

9 Importante observar que um dos nomes mais importantes da revista Itinerário foi o do poeta Fernando Couto, que esteve à frente desse periódico durante bom tempo, impulsionando-o bastante.

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a esses tipos de escrita, ficando à parte, neste primeiro momento, sem um reconhecimento literário em sua própria terra natal.

Mais tarde, as antologias passaram a ser os modelos canônicos da literatura moçambicana; elas se organizaram a partir de assimilações, afastamentos e exclusões de nomes dessa literatura, apenas dando visibilidade aos poetas que possuíam características comuns. Por isso, a poesia de Rui Knopfli, complexa para se deixar delimitar por critérios tão rígidos, ficou de fora, sem o devido reconhecimento literário:

Na acesa polêmica que por essa altura se trava em torno do que era, e deveria ser, a chamada ‘Poesia de Moçambique’, a crítica manifesta-se perplexa e incapaz de situar a poesia de Rui Knopfli (REBELLO, 2003, p. 08)

Isso, porque sua poesia convoca o que Francisco Noa, Eugénio Lisboa e Ana

Mafalda Leite chamaram de uma dimensão dramática influenciada pelos múltiplos textos que vieram em sua bagagem cultural multifacetada, misturados a um “telurismo local” (LEITE, 2006, p. 141), que o conduz ao topo dos grandes nomes líricos de

Moçambique:

As obras de Craveirinha e de Knopfli são responsáveis pelo estabelecimento de uma tradição fundadora da modernidade na literatura moçambicana, enquanto garantem o referencial de continuidade e sistematicidade. Nas suas múltiplas vertentes, os autores africanizaram e reequacionaram essa modernidade, (...) (LEITE, 2006, p. 141)

Eduardo Lourenço, em seu ensaio "Cultura e lusofonia ou os três anéis" (1998, p.

1772), afirma que Rui Knopfli, Craveirinha e Virgílio de Lemos, na poesia moçambicana, são autores-referência para esta cultura, formadora de um tripé literário, cujos frutos ecoam até a atualidade.

Fica evidente, desse modo, que o lirismo de Virgílio de Lemos, o de José Craveirinha e o de Rui Knopfli nunca deixaram de estar presentes na poesia das gerações que o sucederam. Com longa trajetória, iniciada nos anos 50 e vinda até 2003, no caso de Craveirinha, e até 1997, no de Knopfli, a poesia desses "Mestres" integra também, a nosso ver, o painel atual da lírica moçambicana (SECCO, 2003, p. 291)

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Esse não lugar que ocupou na poesia moçambicana, porém, fez com que Knopfli se fechasse ainda mais em sua obra, esperando um dia ser reconhecido; e ele defendia- se:

A palavra de ordem, uma só: quem são os escritores africanos de língua portuguesa? Os que saíram ou os que ficaram, antes e depois da independência? Os mais clarinhos ou os mais escuros? Noémia de Sousa está ausente de Moçambique o dobro dos anos que somam os do meu afastamento e ninguém questionaria o seu moçambicanismo, por certo muito mais representativo que o meu. Pessoalmente devo confessar que nunca terei escrito um verso, ainda quando o roubo a Camões, ou colho a Shakespeare, em que Moçambique não esteja presente. Se digo Tamisa ou escrevo Avon, penso em Incomati e Limpopo, rios que emolduraram e glorificaram a minha infância, a minha formação, inicial e definitiva (KNOPFLI. Apud: MONTEIRO, 2003, p.15)

Mais tarde, já na década de 1990, a crítica moçambicana reposicionou-se em relação à sua poesia; Nelson Saúte (1996), por exemplo, irá reivindicar um lugar para

Knopfli no sistema literário moçambicano:

Uma certa crítica anquilosa ignorou ou quis rasurar uma obra como aquela que o poeta Rui Knopfli terá produzido, não só em Moçambique, mas tendo Moçambique como referência – nada pudemos contra estes factos –, aqui concebida ou já na diáspora. Não será descabido rejeitar uma ideia que, ao longo do tempo, se me tem imposto até no plano da quezília: o discurso literário de Rui Knopfli é tão crucial à literatura moçambicana como é o do poeta José Craveirinha (SAÚTE, 1996, p. IV)

Felizmente fora percebida a consciência que Knopfli tinha de seu fazer poético; ele sabia que seu dever era o de "expressar o ser: um ser, cuja beleza atesta a perfeição ou a plenitude, um ser que, ao encontrar o público que o espera, tem seu fim em si próprio, e realiza-se na percepção estética que ele exige." (DUFRENNE, 1969, p. 10).

Pode-se chegar, por conseguinte, à constatação de que Knopfli é um dos pioneiros a trazer para o espaço da poesia os debates e as polêmicas que envolviam muitas das sociedades africanas de língua portuguesa de sua época.

Roberto Said (2010), em seu texto "O delito da palavra: notas para regulamentação do discurso próprio de um poeta acocorado", afirma: "Ler a poesia de

Knopfli é, portanto, enredar-se nas polêmicas literárias e identitárias que fomentam os

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debates acerca da cultura moderna na África portuguesa e, mais especificamente, em

Moçambique." (SAID, R., 2010, p. 193).

O conflito de ser ou não africano foi acentuado pela ascendência portuguesa de

Knopfli – "eu sou um escritor português, sou, mas não posso recusar que Moçambique, da minha obra, se aproprie daquilo que entenda pertencer-lhe." (KNOPFLI. In:

LABAN, 1998, p. 454) –, pois o poeta foi considerado português, por alguns, porém, sem grande reconhecimento, manteve-se à margem também em . Tornou-se um poeta sem pátria, ou melhor, um poeta, cuja pátria literária era a própria língua portuguesa, a quem amava até nas palavras difíceis do dicionário.

Em A Ilha de Próspero – AIP (1972), há uma dedicatória a Jorge de Sena: – "A

Jorge de Sena – Português das Sete Partidas", que comprova esse seu amor à língua:

(...) pondo o autor o enfoque, desde a primeira página, na diversidade cultural ou de identidade que se propôs conferir ao sujeito poético da obra. Esta declaração de intenção plural a que chamamos de híbrida, vê-se ainda reforçada pela epígrafe do livro, da autoria do mesmo Jorge de Sena, e a qual revisita a célebre frase de Pessoa / Bernardo Soares "A minha pátria é a língua portuguesa". Tomando Pessoa como ponto de partida, para Sena a relação pátria-língua adquire uma maior personalização e exclusividade: "Eu sou eu mesma a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci". Porventura, Knopfli traz uma nova dimensão a esta relação seniana e pessoana pátria-língua, afirmando metaforicamente na obra, como o fará em linguagem não poética mais tarde, sentir-se ele simplesmente "um poeta de língua portuguesa" (MONTEIRO, 2003, p. 115)

O poema “Naturalidade” (KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO) ilustra os sentimentos conflituosos desse sujeito lírico partido entre a identidade europeia e a africana, mas que também afirma: “Eu nunca reivindiquei a nacionalidade moçambicana, só reivindiquei um facto, que ainda hoje reivindico, de ser africano”. (KNOPFLI. Apud: MONTEIRO,

2003, p. 26).

“Naturalidade” (KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO) evidencia o drama do poeta em ser ou não ser africano. Mais uma vez ele não se reconhece como cidadão de

Moçambique, contudo, sim, como um representante da aridez das terras de África. Ele é

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filho da terra, conforme tantos outros; a partir da construção dual europeu x africano, reafirma sua condição, ao mesmo tempo em que não se exclui da experiência europeia muito presente em sua formação.

O poema é dividido em três estrofes; cada uma delas tem papel crucial para defesa/afirmação da identidade do sujeito poético. A começar pelo título,

"Naturalidade", que remete a "ser natural de um lugar", ao "local de nascença" – África, portanto –, e a "natural" como sinônimo de comum, normal. Assim, já no título, sua naturalidade aponta para o fato de ele ser também mais um cidadão comum africano.

Entretanto, saber-se-á pelos versos seguintes que a situação é um pouco diferente.

O poema se inicia com versos que definem, de fora para dentro, a naturalidade do poeta. São os outros que o dizem europeu, que o contaminam com a literatura e a doutrina europeia. A anáfora dos vocábulos europeu/europeia no começo dos versos na primeira estrofe reforça essa ideia no poema, além da assonância /e/ que principia todos os versos do seguinte segmento do poema.

Europeu me dizem. Eivam-me de literatura e doutrina europeias e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum pensamento europeu. É provável... Não. É certo, mas africano sou. Pulsa-me o coração ao ritmo dolente desta luz e deste quebranto. Trago no sangue uma amplidão de coordenadas geográficas e mar Índico. Rosas não me dizem nada, caso-me mais à agrura das micaias e ao silêncio longo e roxo das tardes com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. Mas dentro de mim há savanas de aridez e planuras sem fim com longos rios langues e sinuosos, uma fita de fumo vertical, um negro e uma viola estalando. (KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO).

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Tornou-se "natural" para ele, branco, filho de portugueses, ser eivado por essa cultura e doutrina que eram dogmas da colonização que ele vivenciou muito mais do lado dos brancos europeus, colonizadores, que do lado dos negros africanos. A segunda estrofe, contudo, quebra e corrobora essa ideia de natural conflito entre africano x europeu, demonstrando como esse sujeito lírico inconformado questionava os padrões opressores da sociedade.

O poeta, ciente de sua múltipla bagagem cultural e intelectual, ironiza: "Não sei se o que escrevo tem raiz de algum / pensamento europeu./ É provável... Não. É certo."

(KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO). A ironia acontece, porque todo indivíduo é formado pelas suas heranças culturais e vivências, e, ao negá-las, primeiramente, Knopfli faz o que Linda Hutcheon (2000) define como ironia, já que esta é uma forma de discurso, em que "você diz algo que você, na verdade, não quer dizer e espera que as pessoas entendam não só o que você quer dizer de verdade, como também sua atitude em relação a isso." (HUCTHEON, 2000, p. 16). Mas serão melhor aprofundadas as discussões levantadas sobre ironia no próximo item 2.2 desta tese.

Voltando ao poema, ao negar sua bagagem cultural, o sujeito poético está reafirmando-a. Ainda ironicamente, traz a dúvida com o sintagma "É provável", seguido de reticências, para finalizar com a certeza de que, sim, há uma herança que ele atualiza ao intervir nas obras do passado, imputando um novo sentido a elas. Ocorre a dualidade entre ser ou não ser africano x europeu. Ironiza-se esse fato, porque, na verdade, acima de qualquer dúvida, o sujeito poético se define como um cidadão do mundo.

Em seguida, o eu lírico, através da ironia que nega afirmando, suspende esta ideia com a adversativa no verso "mas africano sou" (KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO).

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Neste momento, ocorre uma suspensão em relação à(s) naturalidade(s) do poeta, a favor de uma única defendida por ele neste poema: a de ser africano. Porque este sujeito é mais do que dual, é múltiplo, tem muitas naturezas, porque bebeu de muitas fontes. Mas, agora, ele sente-se africano, em seus pulsos corre o "ritmo dolente / desta luz e deste quebranto" e ele traz "no sangue uma amplidão / de coordenadas geográficas e mar Índico" (KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO). Percebe-se, nestes versos, a presença da assonância nasal em /eñ/ e /ã/ e da aliteração em /d/ como reforço sonoro à ideia de dolência e quebranto dos ritmos africanos.

Sua suspensão em relação às demais naturalidades é tamanha, que o eu lírico chega à negação dos símbolos ocidentais, sobretudo da delicada rosa, em prol das

ásperas micaias africanas. Tal efeito se constitui através das aliterações em /r, /z/ e /d/, que corroboram a sensação de aspereza também no espaço dos versos: "Rosas não me dizem nada / caso-me mais à agrura das micaias" (KNOPFLI, 2003, p. 59 – OPO).

O sujeito poético nega também a agitação das grandes cidades ocidentais, pois busca a tranquilidade, o silêncio e a beleza que, segundo ele, só se encontram em terras de África, onde há o "(...) silêncio longo e roxo das tardes (...)" (KNOPFLI, 2003, p. 59

– OPO).

O último verso dessa estrofe, contudo, traz estranheza e conflito a esse espaço desejado pelo poeta: "(...) com gritos de aves estranhas." (KNOPFLI, 2003, p. 59 –

OPO), há pássaros que são surpreendentes para ele que traz em si o componente europeu. Por mais africano que seja e que corra o Índico em seu sangue, ele não conhece os gritos dessas aves, porque ele não gritou com elas, não compartilhou seus sofrimentos, não aguentou o preconceito do lado negro colonizado da sociedade moçambicana. A sílaba fônica /gri/ da palavra "gritos" expressa o som estridente dessa ave que corta o céu.

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A metáfora do silêncio roxo das tardes, sinalizando um tom crepuscular, remete

à finalização de um ciclo e início de outro (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988, p.

300). O ciclo do poeta que, findo esse dia e iniciado o outro, deverá continuar, apesar de melancólico, reafirmando-se africano e reafirmando sua poesia. É o ciclo de

Moçambique que começa a se movimentar em direção a rumos diferentes.

A melancolia em Knopfli é entendida como a descrita a partir de textos de

Walter Benjamin, segundo os quais a liberação da bílis negra produz uma intensa cólera. Assim, o sujeito poético assume uma atitude de indignação e revolta que implica, também, ideias de atrito e conflito. Knopfli é, portanto, um poeta que mistura à sua melancolia uma cólera conflituosa, que vai aumentando ao longo de sua jornada, mas que, neste poema, ainda não está apresentada em sua força "melancolérica"10.

A última estrofe é mais agressiva, como se o sujeito poético tivesse percebido a sua incompletude africana ao ouvir os gritos das aves da estrofe anterior.

Mais uma vez, usando do recurso da ironia, o poeta indigna-se, cala-se e, por intermédio, novamente, da adversativa, continua seu posicionamento em defesa de seu eu africano, puxando o interlocutor para uma viagem interna que começa nas planuras

áridas das savanas, voa pelos langues rios, chegando a um negro que fuma e a uma viola que estala. É como se dissesse, nas entrelinhas: "vejam, lá está o negro africano que habita naturalmente dentro de mim". Destarte, ironicamente, vai-se revelando um sujeito poético que blefa o tempo todo, mostrando e ocultando suas inúmeras e irreverentes faces.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.

10 Este termo foi usado pela Profª Drª Carmen Tindó Secco, docente em Literaturas Africanas na Faculdade de Letras da UFRJ, a partir da teoria de Walter Benjamin. Ela emprega "melancolérico" em relação a quem possui a "cólera dos justos", "a indignação". Este trabalho usa o vocábulo nesse mesmo sentido; assim, a melancolia de Rui Knopfli nada tem a ver com o conceito de melancolia freudiano, sendo empregado como sentimento de indignação.

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Mas dentro de mim há savanas de aridez e planuras sem fim com longos rios langues e sinuosos, uma fita de fumo vertical, um negro e uma viola estalando. (KNOPFLI, 2003, p.59 – OPO)

Essa estrofe possui enjambement entre os versos 2, 3 e 4 – uma das marcas características da poesia de Knopfli – e a imagem de languidez do rio é reforçada pela aliteração e assonância no verso "com longos rios langues e sinuosos" (KNOPFLI,

2003, p. 59 – OPO) por meio das nasais /on/ e /na/ e das consoantes /l/ e /g/ que exprimem a ideia de fluidez dos rios da África.

Portanto, o poeta declara e assume esse lado africano, mas, também, há um lado europeu que transparece em suas características físicas e em certos costumes e posturas.

Não o nega, tanto que intitula o poema "Autorretrato" (KNOPFLI, 2003, p. 259 – MVS), em que ele afirma a sua ascendência portuguesa e faz uma descrição de sua construção como pessoa culturalmente europeizada.

De português, além da língua que ele subverte para criar metáforas dissonantes que vão "do riso claro à angústia mais amarga" (KNOPFLI, 2003, p. 259 – MVS), o sujeito poético sente-se sensibilizado e incorporado à "nostalgia lírica" (KNOPFLI,

2003, p. 259 – MVS) pelas coisas do passado. Talvez, por isso, seus poemas tenham um apelo grande à memória. Sabe que herdou dos portugueses o choro interminável do fado que resiste às "ablações de ordem cultural" (KNOPFLI, 2003, p. 259 – MVS). O fado, elemento simbólico da cultura portuguesa, é sua "costela macabra" (KNOPFLI, 2003, p.

259 – MVS), que ele sabe que fará parte de seu autorretrato e da sua composição como cidadão do mundo.

Herdou também dos lusitanos a malandragem diante das mulheres, com um olhinho trapaceador de quem se diverte "no tépido e moreno recolhimento que se acha / entre as pernas de uma rapariga" (KNOPFLI, 2003, p. 248-249 – MVS); assim, mira os

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seios aqui, observa a "nesga da perna" ali, tudo sob um olhar "concupiscente / e plurirracial" (KNOPFLI, 2003, p. 259 – MVS).

Essa plurirracialidade não é esquecida pelo poeta que em seu autorretrato já menciona a "ardência árabe dos olhos" (KNOPFLI, 2003, p. 259 – MVS) vinda por herança portuguesa, lembrando-se das misturas que ocorreram entre portugueses e

árabes ainda na Península Ibérica, antes da unificação da Coroa Portuguesa.

De português tenho a nostalgia lírica de coisas passadistas, de uma infância amortalhada entre loucos girassóis e folguedos; a ardência árabe dos olhos, o pendor para os extremos: da lágrima pronta à incandescência súbita das palavras contundentes, do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma enquistada de fado, resistente a todas as ablações de ordem cultural e o saber que tinto, melhor que o branco, há-de atestar a taça na ortodoxia de certas virtualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente e plurirracial, lesto na mirada ao seio entrevisto, à nesga da perna, à fímbria de nádega; a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios, o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suíço tenho, herdados de meu bisavô, Um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome. (KNOPFLI, 2003, p. 259 – MVS)

Do bisavô suíço, ficaram-lhe apenas o relógio e o "vago, estranho nome"

(KNOPFLI, 2003, p. 259 – MVS). Interessante observar que o nome, elemento importante para a construção da identidade do indivíduo, é desvalorizado pelo poeta através dos adjetivos "vago" e "estranho", já que, além das características físicas de português, o sobrenome, para ser mais exato, contribuiu para o processo de sua exclusão literária, tanto em África, quanto em Portugal.

Exposta a conflituosa dimensão dramática de ser africano x europeu, faz-se necessário pensar no terceiro lado tenso da naturalidade do poeta: considerava-se um

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cidadão natural do mundo. Knopfli declara-se herdeiro de grandes poetas que lhe foram eivados pela educação colonizadora europeia. Entretanto, os antecessores que escolheu foram "anjos caídos", poetas que se assumiram malditos, como é expresso em

"Hereditariedade" (KNOPFLI, 2003, p. 248-249 – MVS).

Nesse poema, o sujeito poético também se descreve como "anjo caído", mas, paradoxalmente, por trazer um ar de normalidade / naturalidade, esse anjo, em Knopfli,

é dissimulado, diferentemente dos grandes nomes que cita em seus versos. Observa-se que o poema inicia e finaliza, reafirmando a dissimulação do poeta-anjo caído, por uma necessidade deste em reafirmar-se, constantemente, como herdeiro dos poetas malditos sempre negativamente adjetivados em sua poesia.

Por trazer nos olhos, a risca do cabelo e a gravata, onde os demais os usam habitualmente, não se descortina logo em mim o anjo caído, quase imperceptível do olhar, o anjo que, em mim, perigosamente se dissimula.

(...) sermos o tal anjo caído e maldito Que em mim se dissimula no trazer, onde o trazem os demais, os olhos, a risca do cabelo e a gravata. (KNOPFLI, 2003, p. 248 – MVS)

O perigo espreita o sujeito poético, ao revelar sua afinidade com os poetas malditos mencionados, cujo parentesco lhe chega pelos versos sinuosos da poesia. As imagens curvilíneas das linhas poemáticas apresentam-se por meio de muitos enjambements, como se esses evidenciassem a permanência dos poetas pela continuidade dos versos, até chegar ao anjo knopfliano.

Esse que faz de mim descendente em linha sinuosa de François Villon poeta maldito, ladrão e assassino, nosso santo padroeiro; do Bocage de olhar parado a face lombrosiana, do divino marquês, de todas as taras suserano, do Shakespeare, pederasta e agiota de Charles Baudelaire, corruptor e perverso e pulha, do Verlaine etilizado, do Pessoa idem e do Laranjeira suicidado. Parente, primo e colateral 50

do Genet ratoneiro, desleal, corrécio e paneleiro, de Ferlinghetti, de Ginsberg e de Burroughs, flores aberrantes de um braço de maricas, canteiros onde só por acaso não floresci. (KNOPFLI, 2003, p. 248-249 – MVS)

O padroeiro do eu lírico é um "poeta maldito, ladrão e assassino" (KNOPFLI,

2003, p. 248 – MVS). A periculosidade em ser um anjo caído como este é que ele poderia, para afogar "esta mágoa estrangulada" (KNOPFLI, 2003, p. 248 – MVS), entregar-se ao "álcool, à coca e certas taras" (KNOPFLI, 2003, p. 248 – MVS) ou ainda tornar-se uma das "flores aberrantes de um braçado de maricas" (KNOPFLI, 2003, p.

248 – MVS); mas, dissimulado como é, tem como lenitivo o lazer

no tépido e moreno recolhimento que se acha entre as pernas de uma rapariga, lá onde o tempo pára e recomeça, onde a metafísica realmente se anula (...) (KNOPFLI, 2003, p. 248 – MVS)

É também em relação ao prazer sexual que o sujeito poético se revela um anjo maldito, herança esta aprendida com seus antecessores literários; a diferença está na normalidade dissimulada que este anjo de Knopfli assume e que os poetas das gerações anteriores não ostentam, pois não escondem suas opções pela sexualidade considerada pervertida.

E, para finalizar este ponto em que o poeta rende versos aos seus antecessores, no contexto de suas amarguras e dualidades, encontra-se o poema "Contrição"

(KNOPFLI, 2003, p. 210-211 – MVS), em que o "velho legionário" (KNOPFLI, 2003, p.

246 – MVS) vai arrepender-se do delito de conhecer o mundo, de ser um poeta de todo o mundo.

O vocábulo "contrição" significa o "ato de vontade pelo qual o cristão se arrepende do pecado, motivado pelo amor de Deus" (LAROUSSE, 2009, p. 203); entretanto, o que se vê no poema "Contrição" (KNOPFLI, 2003, p. 210-211 – MVS) não

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é o ato de arrependimento, mas somente a confissão de fazê-lo descaradamente, sem pensar na ideia de pecado; e o que o motiva não é o amor a Deus, mas sim à Musa.

O poeta acaba por beber em fontes anteriores à sua, que vão desde a mitologia grega, passando pela literatura oriental, clássica europeia, modernista brasileira, realista portuguesa, formalista russa etc. Ele leu, aprendeu, absorveu, deglutiu e respingou todos esses e muitos mais em sua obra.

O referido poema, por sua vez, inicia-se com a afirmação de haver um difamador da poesia de Knopfli:

Meus versos já têm o seu detractor sistemático: uma misoginia desocupada entretém os ócios compridos, meticulosamente debruçada sobre a letra indecisa de meus versos. Em vigília atenta cruza o périplo das noites de olhos perdidos na brancura manchada do papel, progredindo com infalível pontaria na pista das palavras e seus modelos (KNOPFLI, 2003, p. 210-211 – MVS)

Esse "detrator" é descrito como alguém que passa seus dias a difamar o poeta, e, este, por sua vez, adjetiva-o como misógino de "ócios compridos" (KNOPFLI, 2003, p.

210), mais preocupado com a escrita do que com uma figura feminina.

Ao mesmo tempo, pode-se estender este jogo de palavras ao próprio Rui

Knopfli, já que a poesia para ele, muitas vezes, tornou-se seu entretenimento. Portanto, pode-se entender, neste momento, que o detrator é o outro, mas também o próprio poeta, que, com seu rigor e formalidade ao escrever, acaba boicotando-se, como afirma a estudiosa Carmen Secco no artigo intitulado "E agora, Rui?!... um passeio pelo irreverente e insubmisso lirismo de Knopfli" (SECCO, 2015)11.

No poema, ocorre uma dualidade de vozes: a do detrator e a do poeta. Inicia-se com a voz do detrator que detecta os pecados do poeta e, com pena pesada, "relata

11 Não há referência à página, pois o livro, no qual o artigo será publicado, encontra-se no prelo.

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circunstanciadamente e com detalhes perversos / a feia história de meus feios actos"

(KNOPFLI, 2003, p. 211 – MVS). Logo em seguida, entra a voz do poeta que, defendendo-se, afirma seu grande pecado: ter-se inspirado nos grandes poetas que escreveram antes dele.

A sua contrição é reafirmada por versos como: "_ E agora, José?, isto é, _ E agora, Rui?" (KNOPFLI, 2003, p. 210 – MVS). Knopfli brinca com os versos alheios, subverte-os como fez com este de Carlos Drummond de Andrade, salientando que o sujeito agora é o próprio poeta "Rui". Como se questionasse: e agora que descobriram os meus "crimes"? E agora? Mas, versos abaixo, justifica-se por meio de uma metáfora literária em que abusa da licença poética e do beber em outras fontes para autoproclamar-se: "sou o Robin Hood dos Parnasos e das Pasárgadas" (KNOPFLI,

2003, p. 210 – MVS). Quer dizer que ele pode, porque dá aos pobres o que é dos ricos, ou seja, tira da literatura ocidental o que há de melhor e distribui em seus poemas para dedicá-los à África. O poeta afirma: "Eu, voluntariamente, roubo nos outros, nos grandes, no Camões, no Borges etc." (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 511). Declara, desta forma, a intertextualidade como um de seus processos líricos.

Há outra relação de conflito que se põe entre o poeta e o detrator: a de necessidade da existência de ambos para si mesmos. A vida do detrator é dedicada à vigilância dos delitos presentes nos versos de Knopfli, e o poeta depende dele por isso, pois são também as detrações que contribuirão para que o poeta venha colher os louros da vitória literária, assim como os grandes nomes por ele citados: "(Na sombra envenenada se entretece / o primeiro braçado dos louros que hão-de / cingir-me a fronte)

(...)" (KNOPFLI, 2003, p. 211 – MVS).

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Em O país dos outros (1959), Knopfli está ciente de que os ventos estão mudando, de que as folhas estão caindo, de que os silêncios estão falando entre si e por isso grita versos como:

(...) Para lá da noite angustiada monótono acalanto ergue a voz. No inescrutável, nas sombras, nos recantos recônditos de agónica noite África desperta... (KNOPFLI, 2003, p. 88-89 – OPO)

A África angustiada está despertando, porque seus filhos estão cansados de sofrerem e suas mentalidades estão mudando. O poeta podia sentir e prever essa transformação dentro do espaço moçambicano.

Entende-se que Knopfli, no entanto, cansado de habitar o espaço marginal literário português e o moçambicano, busca a permanência de sua obra; ele quer os louros em sua fronte.

Procura, desta forma, afirmar sua poesia no espaço moçambicano, por meio de uma geografia poética conflituosa, que se atrita com a não aceitação, com o não lugar, com o conflito de querer escrever sobre seu povo, sobre a paisagem que seus olhos abarcavam em África, de uma maneira diferente, criando novos cenários poéticos que permitissem um olhar para/sobre Moçambique e para o/sobre o sujeito, de modo mais profundo.

Assim, por meio de um olhar avaliador e questionador, o poeta insere-se no campo das discussões "(...) acerca dos processos de subjetivação do sujeito na modernidade, mas desenrolados do lado de lá, no Oriente-Ocidente da 'Terra índica'"

(SAID, R., 2010, p. 196), pois assume uma posição transgressora ao afirmar e defender esses espaços que o afetaram, aprofundando seu delito na arte de fingir, de colher nos

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outros, de subverter, de ser um fingidor na esteira de Fernando Pessoa, declarando-se um poeta dissimulado.

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2.2. Ironia e questionamento

Meu verso cínico é minha terapêutica e minha ginástica. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 195 – MVS)

A epígrafe deste subcapítulo são dois versos do poema "Ginástica aplicada"

(KNOPFLI, 2003, p. 195 – MVS). É a afirmação do próprio poeta sobre a sua condição de ironista do mundo. Seus versos são cínicos e essa é a sua forma de relaxar e se exercitar. Toda a obra poética de Knopfli será permeada por essa terapia petulante que, atrelada à ironia, levantará questionamentos sobre os espaços e as situações ao seu redor, pois

Uma sociedade que sofreu a experiência de ter sido colonizada é geralmente uma sociedade que viveu plenamente o signo da ironia. Isso porque os seus membros – especialmente, mas não apenas, as suas elites – viveram num contexto onde pelo menos dois conjuntos desiguais de valores e verdades coexistiam: o conjunto de valores da cultura colonizadora e o conjunto de valores da cultura colonizada (SOUZA, 2004, p. 114)

No poema em questão, o fazer poético é entendido como um exercício que, similarmente à ginástica, deve ser repetido e trabalhado para que o resultado ideal chegue, seja no corpo do poema, seja no corpo do atleta. O poeta se exercita com a escrita poética, comparando-a a elementos de musculação:

(...) Nele me penduro e ergo, em sua precisão de barra fixa. Nele me exercito em pino flexível, sílaba a sílaba, movimento controlado de pulso, e me volteio aparatoso na pirueta lograda, no lance bem ritmado. (KNOPFLI, 2003, p. 195 – MVS)

Observa-se o jogo de palavras usadas: elementos destinados à musculação do corpo são usados para o fortalecimento da poesia – e também do poeta –, porque esta foi trabalhada "sílaba a sílaba" (KNOPFLI, 2003, p. 195 – MVS), inflando o poeta de

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confiança – "Há um sorriso discreto em minha segurança" (KNOPFLI, 2003, p. 195 –

MVS) –, mas uma confiança cínica. A metalinguagem escolhida trilha os caminhos contestadores e ácidos da ironia neste poeta. São nesses espaços que se manifesta a veia

"melancolérica" de Rui Knopfli.

Uma atmosfera voltada para o esforço de escrever poesia adquire carga semântica de esforço físico, entretanto, o sorriso de segurança do eu lírico é desfeito, quando, na última estrofe, esse jogo de palavras é rompido, confidencializando que a poesia também se ri dele, toda vez que cai da barra fixa/linha de papel por onde o verso se pendura:

Porém, se às vezes me estatelo, folha seca (o verso é difícil e escorregadio), meu verso como de vós, ri-se de mim em ar de troça. (KNOPFLI, 2003, p. 195 – MVS)

Dentre as muitas vias da ironia definidas por Linda Hutcheon (2000)12, neste poema, pode-se encontrar a "ironia lúdica" (HUTCHEON, 2000, p. 76), pois, há, por parte do poeta, a intenção de provocar de maneira positiva o fazer poético, colocando a si mesmo como alvo de chacota, já que afirma cair da "barra fixa" (KNOPFLI, 2003, p.

195).

Outra função relacionada e também relativamente benigna da ironia é a LÚDICA. Numa luz favorável, essa é vista como afetuosa provocação benevolente; ela pode ser associada também com humor e espirituosidade, é claro, e, por consequência, pode ser interpretada como uma característica valiosa de jocosidade (e assim, na linguagem, semelhante ao trocadilho e à metáfora) (HUTCHEON, 2000, p. 78)

O lúdico trabalhado em Knopfli é ácido, diferenciando-se da ludicidade infantil, em geral atrelada a esse termo. No poeta, o intuito de educar, ensinar, divertir por meio da palavra é esquecido para dar lugar à ideia de uma poesia de humor sarcástico, que incomoda, revelando indignação e subversão.

12 Linda Hutcheon em Teoria e política da ironia (2000, p. 76-88) afirma que a ironia possui diversas vias: agregadora, atacante, de oposição, provisória, autoprotetora, assaltante, distanciadora, lúdica, complicadora e reforçadora. Nesta tese, apenas emprega-se e define-se a ironia lúdica.

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A ironia, assim, também ocorre e ocupa um espaço que ajuda a configurar a geopoética do texto knopfiliano, uma vez que se encontra no vão entre o dito e o não dito. Contudo, Knopfli vai além: ele entende o papel questionador da ironia e usa-a em seus poemas para interrogar, através do dito / não dito, a situação que o rodeia, a problemática da poesia e do sujeito. Tem consciência de que, para haver ironia – e com ela seus questionamentos –, é necessária a intenção do ironista e a interpretação irônica, ou não, do interpretador.

O que eu quero chamar de sentido "irônico" é inclusivo e relacional: o dito e o não dito coexistem para o interpretador, e cada um faz sentido em relação ao outro porque eles literalmente "interagem" (BURKE, 1969A, p. 512) para criar o verdadeiro sentido "irônico" (HUTCHEON, 2000, p. 30)

Em O país dos outros (1959), Knopfli apresenta uma “procura bem sucedida de um estilo próprio por uma sensibilidade que capta o cotidiano e o evanescente, mas se recusa a ceder à influência e às formas do discurso poético instituído” (REBELLO,

2003, p. 08). Apesar de ser sua obra de estreia, percebe-se uma maturidade poética, que ultrapassa discursos, comanda imagens e revela seu sentimento de angústia. Diz

Knopfli:

Foi nele que nasci: nasci no país dos outros. É essa mesma consciência, que lhe tenho estado a dar aqui, de me descobrir, depois dessa tal transparência em que não há cor, porque as cores são todas iguais e eu sou colour-blind, eu sou daltônico, em sentido racial (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 506)

Para além das palavras do próprio poeta, pode-se entender que o título desse primeiro livro põe em questionamento as diversidades étnico-culturais existentes ali, já que havia muitos "outros" que habitavam esse território chamado Moçambique, e o próprio Rui Knopfli vivia em um espaço irônico, por ser africano/português, esse país em que nasceria também não era para ele, branco...

A ironia presentifica-se também na capa da primeira edição da obra (anexo 1), que continha duas cores em seu título: "O país", em amarelo, como o sol a nascer, 58

simbolizando Moçambique, nação que estaria por raiar; e "dos outros", em negro, remetendo a quem realmente pertence essa terra ensolarada. Nesse jogo de cores irônicas, questionam-se os rumos de Moçambique; o poeta diz:

O meu primeiro livro chamava-se O país dos outros, já em 1959, por alguma razão. Aquilo não era para brancos. (...) Quando a FRELIMO tomou conta do poder, o inimigo era o português, estou convencido disso. Claro que havia certo racismo, aliás compreensível, mas mesmo aí, os brancos eram identificados com os portugueses (KNOPFLI. Apud: MONTEIRO, 2003, p. 27)

Nota-se que este livro de Knopfli tem como temática principal a previsão do futuro, pois o poeta já intuía em seus versos o "céu de chumbo" (KNOPFLI, 2003, p. 37

– OPO) e as "manhãs plúmbeas" (KNOPFLI, 2003, p. 38 – OPO) que se estavam aproximando.

O poema "Lírica para uma ave" (KNOPFLI, 2003, p. 37 – OPO) apresenta uma relação entre paisagem e panorama. Para Collot (2010, p. 209-210), a visão panorâmica

é liberta do horizonte e da profundidade, relativizando o relevo e as distâncias. Nesse poema, a visão panorâmica de um céu sobre a floresta com uma ave voando seria considerada comum, se não fossem os poderes dos adjetivos e locuções adjetivas – como "céu de chumbo", "baionetas caladas", "floresta de sono / e demência", "tonta",

"perdida", "ave sangrenta" e "turva e opressa manhã" (KNOPFLI, 2003, p. 37 – OPO) – que qualificam negativamente, dão forma e relevo ao poema, tornando-o poético, fazendo o leitor adentrar, como que sugado, passando a habitar, de dentro, também, a geografia daquela poesia.

Num céu de chumbo e baionetas caladas, sobre uma floresta de sono e demência, tonta, esvoaça perdida uma ave sangrenta. Na turva e opressa manhã se anuncia a cólera do tempo.

Na hora

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da aurora, gemem ventos, fluem surdos rios.

Cerra os olhos, cala na garganta a voz, acorda audível o pensamento:

No escuro cerne da floresta, com sorrisos dependurados à entrada, degola-se uma ave. Por enquanto mais nada, senão o torvo tinir dos talheres no banquete da morte impossível. (KNOPFLI, 2003, p. 37 – OPO)

A representação da paisagem apresentada ao leitor sob a ótica de apreensão e silêncio demonstra o amadurecimento do autor, além de sua consciência política e crítica, pois ele antevê “o momento de confrontação violenta entre colonialistas e nacionalistas, confrontação que em 1964 atingiria, efetivamente, uma primeira proporção macabra com o massacre perpetrado pelas tropas coloniais portuguesas (...)”

(MONTEIRO, 2003, p. 84).

Esse lirismo revela uma semântica de expectativa e mau agouro, contrastando com o título “que promete irmos de encontro à poetização duma ‘harmonia pastoral’

(...)” (MONTEIRO, 2003, p. 83), que não se efetiva no espaço do poema, já que logo se descobre ser uma lírica para uma ave sangrenta. Tal fato abre caminhos para visões da paisagem plasmada pelo horizonte poemático. A ave, como metáfora da liberdade, fora degolada, assim como o povo desta terra que “Cerra os olhos, / cala na garganta / a voz”

(KNOPFLI, 2003, p. 37 – OPO). O pássaro é sangrento, porque prenuncia a violência potente que se aproxima e que já se deixa sentir “no escuro cerne da floresta”

(KNOPFLI, 2003, p. 37 – OPO). Expressando uma metáfora maior, essa ave tem o poder de prenunciar e questionar, porque já foi livre e ultrapassou os horizontes à frente do futuro e se deparou com a realidade ainda não imaginada que está por vir.

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O céu azul torna-se plúmbeo: seria o cinzento de uma tempestade ou das balas dos fuzis? As baionetas caladas na expectativa do sinal de ataque que levará ao

“banquete da morte impossível” (KNOPFLI, 2003, p. 37 – OPO). O amanhecer é turvo e opressor, já se sente o cheiro da “cólera do tempo” (KNOPFLI, 2003, p. 37 – OPO), assim como o odor da terra molhada, prevendo a chuva que está a cair em campos próximos. Essa metamorfose, a tempestade-guerra, fez gemer os ventos, cientes das muitas dores por varrer, com sua força, das paisagens que teriam que se modificar para atenuarem o sofrimento dos que aqui ficariam.

A voz estava calada na garganta, porque ainda neste tempo não se podia gritar.

Assim, permanecia na expectativa do desconhecido, mesmo se o pensamento audível alertava para o pior.

O poeta, percebendo que o povo estava começando a refletir sobre sua condição de colonizado e a buscar uma mudança, transfigurou para esse livro os questionamentos e as emoções que estavam começando a aflorar, como se pode verificar no trecho do poema "Espreita o inescrutável" (KNOPFLI, 2003, p. 65-66 – OPO):

Vê, tudo como que para e se suspende: O cavador ergueu o busto, pousou a enxada e olha, no cais o negro, por momentos arredou a carga e olha, tu próprio pousas o livro e olhas. Parámos, o dia é igual, o céu sem nuvens, igual. Igual trila a cigana de ontem. Tudo é igual ao que já antes era igual. Todavia paramos e vamos erguendo os olhos. Não sei o que passa, todavia erguemos os olhos onde nenhuma contrariedade apaga esta fraca força de sempre esperar.

E esperamos. (KNOPFLI, 2003, p. 66 – OPO)

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O título do poema agrega um significado político-social. Sabe-se que os moçambicanos já estavam espreitando a mudança daquilo que parecia inescrutável, isto

é, impenetrável, até aquele momento em que os ecos da negritude e das independências próximas faziam-se ouvir.

O movimento da negritude, surgido na França através da conscientização de intelectuais africanos e caribenhos das colônias francesas, buscava a afirmação dos negros e de suas culturas e etnias. Senghor, Frantz Fanon, Césaire, entre outros, foram grandes nomes desse movimento que, mais tarde, foi, em parte, criticado, por não considerar as especificidades culturais, étnicas e regionais africanas. Entretanto, a par dessas críticas, a negritude impulsionou as consciências em prol de uma mudança, que acarretou a valorização dos negros e, depois, a luta pelas independências das colônias em África.

Os versos do poema referido anteriormente são imagéticos. Através do verbo

"vê", o sujeito poético convida o leitor a enxergar e questionar como essas mudanças estavam acontecendo lentamente e que a espera estava iniciada.

A presença do verbo "erguer" caracteriza, de forma mais solene, o ato de levantar a cabeça e olhar, pois, embutida neste vocábulo, há a ideia de levantar voo, como se os moçambicanos estivessem erguendo a cabeça e alçando suas consciências.

De acordo com Linda Hutcheon (HUTCHEON, 2000), há uma relação triangular ao se pensar a ironia: em um vértice desse triângulo encontra-se o ironista, em outro o interpretador irônico e no último ângulo o elemento a ser ironizado. Todos são interligados, mas o principal nesta tríade é o interpretador, pois é ele quem "decide" dar caráter irônico ou não àquela situação proposta pelo ironista.

Assim, no poema, ocorre essa interação irônica entre o poeta que assume um papel de ironista, o leitor que se torna o interpretador irônico, e o elemento a ser

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ironizado que é a proposta poemática. Em "Espreita o inescrutável" (KNOPFLI, 2003, p. 65-66 – OPO), a imagem tecida afeta esse leitor que interpreta e decide entender que há uma esperança e por isso "(...) pousas o livro e olhas" (KNOPFLI, 2003, p. 66 –

OPO) para esperar junto. Neste verso, o ironista dirige-se diretamente ao interpretador irônico e permite-lhe que decida olhar também para a mudança ou, apenas, – sem atribuir carga afetiva irônica – continue seu olhar/leitura sem afetar-se, pois "tudo é igual ao que já / antes era igual" (KNOPFLI, 2003, p. 66 – OPO).

Por meio da repetição da palavra olhar, o sujeito poético cria uma imagem a ser vista pelo leitor e pelos elementos que compõem o poema, criando uma nova realidade:

As imagens do poeta têm sentidos em diversos níveis. Em primeiro lugar, possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu, são uma expressão genuína de sua visão e experiência do mundo. Trata-se, então, de uma verdade de ordem psicológica, (...) Em segundo lugar, essas imagens constituem uma realidade objetiva, válida em si mesma: são obras. (...) Nesse caso, o poeta faz algo mais que dizer a verdade; ele cria realidades possuidoras de uma verdade: as da sua própria existência. As imagens poéticas têm sua própria lógica. (...) Por fim, o poeta afirma que as suas imagens nos dizem algo sobre o mundo e sobre nós mesmos e que esse algo, embora pareça um disparate, nos revela o que somos de verdade (PAZ, 2012, p. 113)

As adversativas "todavia" quebram a ideia de cotidianidade, porque, apesar dos dias serem aparentemente iguais, os olhos estão se erguendo de tal maneira, que

"nenhuma / contrariedade apaga / esta fraca força de sempre esperar" (KNOPFLI, 2003, p. 66 – OPO).

No poema "Ars poética 63" (KNOPFLI, 2003, p. 191-192 – MVS), Knopfli questiona diversos elementos "sacralizados". Ironicamente, o título remete a Horácio e sua Arte Poética, como se o poeta se propusesse a fazer a própria, mas ao longo dos versos vão aparecendo questões que rompem com a expectativa sugerida pelo título.

Jogando com o não dito, espera-se um tratado de poesia, e encontra-se um tratado de como o fazer poético é "fatigante", baseado na espera e na paciência:

Como fazer versos?

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Sentar numa cadeira à secretária, papel à frente, caneta em punho. Esperar. Esperar em vão. Esperar. Esperar mais ainda. Esperar sempre. (KNOPFLI, 2003, p. 191 – MVS)

Mas o verso acontece, pode ser com uma palavra bonita ou com o gesto de

"irmão", levantando a questão dos compadrios presentes em Moçambique.

Há quem comece com irmãos, o que tem vantagens inúmeras, desde as garantias de escolas às conveniências e conivências do correligionarismo fiel que assegura um público bastante certo, embora pouco amante da poesia e, de ordinário, pouco esperto. (KNOPFLI, 2003, p. 192 – MVS)

A ironia neste trecho apresenta-se com maior força, pois é clara a intencionalidade do poeta em se fazer irônico – por meio de vocábulos como

"vantagens", "garantias", "conveniências", "conivências" e "correligionarismo"

(KNOPFLI, 2003, p. 192 – MVS) – ao criticar uma grande parte da elite moçambicana, que aceita a poesia fingidamente, demonstrando sua pouca esperteza – "Embora pouco amante da poesia / e, de ordinário, pouco esperto" (KNOPFLI, 2003, p. 192 – MVS) –, além do entendimento por parte do leitor/interpretador desta ideia.

Compreende-se, juntamente à Linda Hutcheon (2000), que a ironia é um "jogo", cuja participação de outros atores são cruciais para que ela aconteça:

Os principais participantes do jogo da ironia são, é verdade, o interpretador e o ironista. O interpretador pode ser – ou não – o destinatário visado na locução do ironista, mas ele ou ela (por definição) é aquele que atribui a ironia e então a interpreta: em outras palavras, aquele que decide se a elocução é irônica (ou não) e, então, qual sentido irônico particular ela pode ter. Esse processo ocorre à revelia das intenções do ironista (...) (HUTCHEON, 2000, p. 28)

No poema citado, o leitor/interpretador percebe a "aresta cortante"

(HUTCHEON, 2000, p. 63-67) da ironia voltada tanto para a elite emburrecida, quanto para o "poeta demagógico" (KNOPFLI, 2003, p. 212 – MVS) e demonstra que a forma mais humilde de se fazer poesia – outra ironia, dado que Rui Knopfli não tinha a

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humildade como característica de poeta e nem esta existia em sua poesia – é voltar-se para o ‘eu’:

O melhor ainda, o mais velhinho e garantido é começar pela palavra eu. Será umbicalista, egoísta, eu sei cá, mas é pequenina e humilde e não diz mais do que diz, não tem mais responsabilidades do que as que convém seu minúsculo e modesto universo. Será pouco, mas é um mundo. (KNOPFLI, 2003, p. 191-192 – MVS)

A ideia de metalinguagem é explícita neste trecho: o poeta, ironicamente, relata o que decidiu fazer diante de tanto trabalho literário, de pouco comprometimento e muita valorização. Então, ele próprio passa a ter uma poesia mais voltada para si e seu trabalho poético, mas, fingidamente, o sujeito lírico assume uma humanidade que não possui.

E corrobora tal pensamento o poema "Poesia sem mais nada" (KNOPFLI, 2003, p. 212 – MVS), em que são apresentados dois poetas: o "poeta-sem-mais-nada", humilde, cujo trabalho de fazer poesia é árduo; e o "poeta demagógico", sem nenhum talento poético, seu trabalho é espúrio, porém, por ser demagógico e conveniente, recebe os louros e aplausos dessa elite inculta, já assim denunciada pelas entrelinhas irônicas do poema:

De pequenos materiais, carinho e minúcia, algo de subtil humildade, o poeta-sem-mais-nada compõe seu verso silencioso. Enquanto isso o poeta demagógico distribui o granel das rimas em ão em dade, em aço. (KNOPFLI, 2003, p. 212 – MVS)

A ironia, que apresenta uma natureza transideológica (HUTCHEON, 2000, p.

34), podendo, assim, ser usada política ou apoliticamente, em Rui Knopfli é trabalhada como elemento de ligação entre o que o poeta realmente está escrevendo e os afetos que ele está expressando nos "desditosos" versos.

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(...) existe uma "carga" afetiva na ironia que não pode ser ignorada e que não pode ser separada de sua política de uso se ela for dar conta da gama de respostas emocionais (de raiva a deleite) e os vários graus de motivação e proximidade (de distanciamento desinteressado a engajamento apaixonado). Às vezes a ironia pode mesmo ser interpretada como uma retirada de afeto; às vezes, entretanto, há um engajamento deliberado de emoção (HUTCHEON, 2000, p. 33)

Logo, no poema analisado, Knopfli usa dessa natureza para criticar os poetas de conveniência e finaliza observando que seus versos, da mesma maneira que a ironia, possuem arestas e, em ambos os casos, são cortantes e capazes de questionar poderes institucionalizados:

(...) Na oficina escura do poeta- -sem-mais-nada o verso cumpre-se lenta e dolorosamente, mas suas arestas vivas, sua dureza de diamante, insinuam-se teimosamente e vão, sempre com ar discreto, minando os poderes constituídos. (KNOPFLI, 2003, p. 212 – MVS)

Retornando ao poema "Contrição" 13 (KNOPFLI, 2003, p. 210-211 – MVS), analisado no subcapítulo 2.1, percebe-se que a ironia, aí, ressurge com mais força no momento em que o sujeito poético demonstra que o detrator não é tão informado assim, porque muito mais delitos ele tem, de tal forma que escancara cada pecado-poético, como se, em confissão, estivesse diante do padre-leitor que, como intérprete, entende tudo como uma grande brincadeira irônica. Afirma-se, portanto, que o ironista poético e o leitor-interpretador apreendem na figura do detrator um ser irônico, cuja situação de viver da detração alheia é irônica também.

Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos, senão saberia que também furto em Vinícius, Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen e Dylan Thomas. No grego Kavafi, no chinês Po-Chu-I, no turco Pir Sultan Abdal, no alemão Gunter Eich, no russo André Vozenesensky e numa boa mancheia de franceses. Que desde a Pedra Filosofal arrecado em Jorge de Sena.

13 Retorna-se a este poema, por entendê-lo significativo para a obra de Rui Knopfli. 66

Que subtraio de Alberto de Lacerda e pilho em Herberto Helder e que – quando lá chego e sempre que posso – Furto ao velho Camões. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 211 – MVS)

O detrator de "Contrição" (KNOPFLI, 2003, p. 210-211 – MVS) poderia ser considerado uma vítima irônica, já que Knopfli brinca com esta figura que, conforme já demonstrado anteriormente, pode ser entendida também como o próprio poeta, que se revela e se dissimula em um processo de auto-ironia.

A ironia sempre tem um "alvo"; ela às vezes tem o que alguns chamam de "vítima". Como as conotações desses dois termos implicam, o fio da ironia é sempre cortante. Aqueles que não atribuem ironia onde há intenção dela (ou onde outros queriam que houvesse) correm o risco de exclusão e embaraço (HUCTHEON, 2000, p. 33)

Apontando sua aresta irônica para o cânone e descarregando os seus desafetos por ter tido sua poesia excluída e marginalizada durante anos dos paradigmas dominantes, Knopfli ironiza e também questiona o papel de sua literatura para a posteridade.

O poema "Posteridade" (KNOPFLI, 2003, p. 217 – MVS) é iniciado ironicamente com a maneira como a morte do poeta acontece, aproximando-o da

Virgem Maria, que subira aos céus, não passando por esse trauma. O poeta também sobe diretamente, porém não pela ajuda divina e, sim, pela do monomotor:

Um dia eu, que passei metade da vida voando como passageiro, tomarei lugar na carlinga de um monomotor ligeiro e subirei alto, bem alto, até desaparecer para além da última nuvem. Os jornais dirão: Cansado da terra poeta Fugiu para o ceu. (KNOPFLI, 2003, p. 217 – MVS)

Ironicamente, o sujeito poético mostra que haverá lembrança – por parte da família, amigos, amantes e trinta leitores – e luto durante um tempo, mas que a morte atribui prestígio aos artistas, colocando-os, algumas vezes, sem medir suas qualidades,

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no cânone, nas salas de aula, nas rodas de discussão. Entretanto, este prestígio é inútil, se o poeta já não pode desfrutar. Knopfli almeja o reconhecimento em vida e demonstra estar cansado desta situação, a ponto de querer evadir-se.

(...) Então meu nome começa aparecendo nas selectas e, para tédio de mestres e meninos, far-se-ão edições escolares de meus livros. Nessa altura estarei esquecido. (KNOPFLI, 2003, p. 217 – MVS)

Será que ficar para a posteridade significa ser estudado nas escolas? Realmente seria esse o papel de um poeta e de sua poesia? Esses são mais alguns dos questionamentos levantados por Rui por meio de sua poética da irônica, que apresenta várias intencionalidades na obra knopfiliana.

É interessante observar, ainda, que, segundo Linda Hutcheon (2000), há uma diferença entre metáfora e ironia que se faz pertinente também nesta tese:

Os dois tropos podem realmente pertencer à mesma família geral de desvios semânticos (Moore, 182: 1), mas a relação de similaridade que define a metáfora não é a mesma coisa (nem em tom nem em estrutura) que a relação de diferença que define a ironia. A noção de ironia como metáfora à qual se adiciona a ideia de contradição (Sapir, 1977: 5n) não leva em conta nem a aresta que a ironia obtém de sua estrutura semântica diferencial nem as dimensões necessariamente dinâmicas, performativas e sociais de acontecimentos irônicos. A metáfora tem suas 'raízes na função nomeadora da linguagem', enquanto a ironia 'se baseia na função comunicativa' (Scholes, 1982: 76). É claro, ambos os tropos são semanticamente plurais, juntando mais de um significado para criar outro, composto, diferente e independente (HUTCHEON, 2000, p. 99)

No poema "A capela" (KNOPFLI, 2003, p. 359 – AIP), Knopfli evidencia a segregação em Moçambique. Dentro da capela – elemento cristão, ocidental, colonizador – "principia a Europa" (KNOPFLI, 2003: 359 – AIP). A representação metafórica da Europa/capela é descrita como lugar de cor fria, cujo branco tornava-se cinza. A África, que não passa pelo umbral cristão, dicotomiza com a Europa ao ser adjetivada como lugar quente.

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Essas metaforizações da Europa e África, feitas por meio dos adjetivos e substantivos enunciados, encaixam-se ao conceito de metáfora definido por Linda

Hutcheon, já que se encontra, neste, a função nomeadora para tal termo. Há um deslocamento proposital de sentido de um nome para outro. Diferentemente da "aresta cortante" que aponta e incomoda, ao se colocarem lado a lado – ao menos na poesia – o hinduísmo, o islamismo e o catolicismo, evidenciam, nas entrelinhas, que todas as três religiões têm influência e importância naquele território.

Paredes grossíssimas travam a luz e a que se esgueira por frinchas e altíssimos postigos, aqui chega difusa e diluída fantasiando livores de madrugada.

A cor é fria, o branco quase cinza e as púrpuras de retábulo simulam fogos morrentes onde crepita o fulgor mais vivo de uma ou outra rara chama. África ficou ao umbral das portas, no calor da praça; aqui principia a Europa. Porém da parede lateral, sob um baldaquino hindu e num desvario de cores e santos hieráticos, salta o púlpito oitavo e é o Oriente que chega com seus monstros.

Do silêncio fita-nos um rosto trifonte e nós estamos na encruzilhada cismática desse olhar que se prolonga, nos examina e considera. (KNOPFLI, 2003, p. 359 – AIP)

Interessante essa ironia tecida, já que afirma em primeiro plano a "pureza" da

Europa, para quebrá-la com a presença de um elemento que não é europeu ou africano, mas, sim, oriental, que, de certa maneira, a desestabiliza muito mais que os de África, pois, com os orientais, advém a mística dos monstros, criada pelo Ocidente, a partir de uma imagem distorcida do Oriente.

Características monstruosas são atribuídas aos orientais nas artes em geral, além da literatura. Essa mística acontece pelos preconceitos ocidentais devido ao grande

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choque entre culturas e pela simbologia católico-cristã de monstro, relacionada ao disforme, caótico, diferente, funcionando, portanto, como um caminho de discriminação do Ocidente contra o Oriente, uma vez que a este sempre foi impingido o caos.

Na tradição bíblica, o monstro simboliza as forças irracionais: ele possui as características do disforme, do caótico, do tenebroso, do abissal. O monstro aparece, portanto, como desordenado, destituído de proporções, ele evoca o período anterior à criação da ordem (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p. 615)

Edward Said (2007) corrobora o pensamento do parágrafo anterior ao afirmar que uma discriminadora mística geográfica, moral e cultural fora instaurada no Oriente:

Designava a Ásia ou o Leste, geograficamente, moralmente, culturalmente. Na Europa, podia-se falar de uma personalidade oriental, uma atmosfera oriental, um conto oriental, o despotismo oriental ou um modo de produção oriental, e ser compreendido (SAID, E., 2007, p. 62)

Knopfli, portanto, evidencia com acidez, mais uma vez, nas entrelinhas do poema, as diferenças tecidas em Moçambique, reafirmando a multiplicidade de culturas existentes em sua terra. E a ironia estabelecida em sua obra permeia também a vida do poeta, pois sua acidez poemática é o reflexo do cínico Rui que vê o mundo dentro e fora dele, já que se move entre o aqui e o lá, tendo na língua a sua pátria.

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2.3. Hibridismos: intertextualidades, conhecimento de mundo, poesia de múltiplas raízes

Híbrido', do grego hybris, cuja etimologia remete a 'ultraje', corresponde a uma miscigenação ou mistura que violava as leis naturais. (...) A palavra remete ao que é originário de 'espécies diversas', miscigenado de maneira anômala. Essa origem etimológica foi responsável pelo fato de serem consideradas sinônimos de híbrido palavras como irregular, anômalo, aberrante, anormal, monstruoso etc.. Híbrido é também o que participa de dois ou mais conjuntos, gêneros ou estilos. Considera-se híbrida a composição de dois elementos diversos anomalamente reunidos para originar um terceiro elemento que pode ter as características dos dois primeiros reforçadas ou reduzidas (BERND, 2004, p. 99)

Knopfli tinha noção de que sua poesia fora instauradora desse terceiro elemento reforçador ou redutor das culturas europeias e africanas, pois não apenas o poeta, mas também a sua sociedade sofrera as tensões que culminaram no hibridismo cultural que, de certa maneira, atingiu a elite moçambicana.

Apesar de o conceito de hibridação ser a "expressão mais apropriada quando queremos abarcar diversas mesclas interculturais" (BERND, 2004, p. 100), nesta tese, focar-se-á o hibridismo no âmbito intelectual. Isto é, quando as misturas acontecem em relação à intelectualização de certos sujeitos que expressam em suas obras o resultado dessas tensões.

Jahan Ramazani, em seu livro The hybrid muse: postcolonial poetry in english

(2001), define o hibridismo intelectual com base em poetas advindos das colônias – no caso anglófonas –, mas com uma vasta ligação e conhecimento de informações

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relacionadas ao mundo do colonizador. Isso ocorre devido ao fato de as elites colonizadas haverem tido acesso às metrópoles e aos pensamentos sobrevindos delas.

A partir dessa tensão de ideias e culturas, esses sujeitos que estão em um entre- lugar – pois são "superiores" em seus territórios de origem, mas "inferiores" nas metrópoles –, criam novas visões para entenderem e ressimbolizarem esses mundos que se conflitam dentro de si.

Desse modo, mais do que um encontro intercultural, o que se percebe é uma tensão, ressimbolização e recriação intelectual provenientes destes que estão "fora das fronteiras", no, então, território das misturas.

O que faz de Knopfli uma figura ímpar no processo de relacionamento e integração de outras escritas no seu próprio espaço textual é, por um lado, a multiplicidade e diversidade dos textos por si absorvidos, processados, decantados, enformando uma espécie de magma, substância residual que tipifica um universo estético-literário peculiar e, por outro, a assunção lúcida e exuberante dessa apropriação (NOA, 1997, p. 37)

Knopfli, como vem sendo evidenciado ao longo deste capítulo, integra o espaço moçambicano de uma maneira peculiar, com um olhar atento às multiplicidades de sua terra, mas acrescentado pela educação europeia que lhe foi transmitida.

Em sua constituição como pessoa, moçambicano, filho de portugueses, Rui acessou diversos textos europeus e não-europeus que seriam cruciais para a sua formação como poeta refinado e cidadão do mundo, o que lhe permitiu trabalhar com as intertextualidades por meio de seu vasto conhecimento e resultou em sua poesia se caracterizar por ser de múltiplas raízes. O poeta, cujo processo de escrita permanece em contínua transformação, é, portanto, híbrido e marcadamente heterogêneo.

Com forte herança de pluralidade identitária, Knopfli insere-se em um contexto multicultural que imediatamente se reflete em seus poemas. Absorveu as multicores das paisagens e dos conhecimentos, deglutiu-os e lançou-os de volta em forma de versos

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que expressam várias faces de Moçambique e de si próprio, poeta de múltiplas facetas poéticas14.

Rui Knopfli é um poeta híbrido, uma vez que passeia intelectualmente entre o espaço da cultura imposta pela colonização e o espaço da "cultura hereditária"

(RAMAZANI, 2001, p. 6), intercalando paisagens em sua escrita, cujo processo também se faz por intercalações. Pode-se afirmar que há uma tensão nessa forma de versar que reflete muito o poeta, pois, de certa maneira, é preciso manter a tensão para que possa existir algum sentido poético.

Jahan Ramazani (2001), só enfoca poetas e poemas de língua inglesa, mas amplia, de modo pontual, seus conceitos a respeito da ideia de hibridismo e define quem seriam os poetas híbridos no que ele denomina mundo "pós-colonial" ou, ainda,

"terceiro mundo".

Para o teórico supracitado, o hibridismo poético acontece quando, ao beber de múltiplas fontes, o poeta transfere para os versos essa pluralidade de sentidos e formas, criando uma poesia nova, porém completamente implicada com as relações interculturais que a moldaram, pois esse processo, de certa forma, intensificou as misturas culturais e políticas entre culturas desiguais. (RAMAZANI, 2001, p. 06).

De acordo com Ramazani, "membros das pequenas elites coloniais que receberam uma educação mais europeizada, tiveram maior exposição às ideias e valores ocidentais, tornando-se mais híbridos"15 (2001, p. 07). Esse fenômeno ocorreu com poetas como Rui Knopfli, que fez parte dessa pequena elite moçambicana branca, cuja

14 Esse aspecto será aprofundado no subcapítulo 3.4.

15 Members of a small educated elite, anglophone poets of the Third World are perhaps especially hybridized by their intensive exposure to Western ideas and values through higher education, travel, even expatriation. (RAMAZANI, 2001, p. 07)

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educação fora eivada por moldes europeus, e que soube transfigurar diferentes compreensões de mundo sob o olhar perspicaz da multiplicidade e da intertextualidade.

Knopfli demonstra ciência de seu poder literário e da tensão híbrida intelectual de sua literatura ao afirmar:

(...) não encontro, na poesia de quem escreveu no nosso ex-império e lá nasceu, ninguém que tenha exprimido o descontentamento e a crise da questão colonial, a aberração que é o problema colonial, do ponto de vista do intelectual branco desencantado, como eu fiz – ninguém mais (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 453)

Nota-se que Rui Knopfli assume um lugar ambíguo, à medida que apresenta, simultaneamente, a formalidade estética da poesia e da cultura ocidental, assim como o telurismo e a dramaticidade de ser índico, produzindo uma poética de múltiplas raízes e se revelando um poeta diverso:

E sempre repetiram essa individuação ou essa neutralização daquele ou daquela fala. Penso que o problema é que aquele que fala é múltiplo. Não há alguém que fala, não há autor que fala, não há "isso" que fala. Aquilo ou aquele que fala é múltiplo, não se pode saber de onde vem porque talvez ele mesmo não saiba, e não controla, não dirige a emissão da fala. Aquilo que é projetado como fala encontra outro múltiplo, que é o múltiplo pelo mundo (GLISSANT, 2005, p. 153-154)

O poema "Hide-and-seek" (KNOPFLI, 2003, p. 54 – OPO) exemplifica esse jogo híbrido construído pelo poeta, a começar pelo título em inglês – e não na sua língua que é também a do colonizado –, cujo significado "esconde-esconde" remete a uma brincadeira infantil, descrita ao longo dos versos.

Nesse caso, a voz é substituída pela visão; por meio da sinestesia, sente-se um olhar frio e gelatinoso a fitar o sujeito poético – em uma alusão à composição gelatinosa do globo ocular. Não se sabe ao certo quem o mira, se outro moçambicano ou se o olhar frio da colonização, em uma referência à obra 1984, de George Orwell, lançada em

1949, na qual os cidadãos do romance viviam aprisionados em uma sociedade totalitária, dominada pelo Estado e vigiados pelo "Grande Irmão".

Adultos, jogamos um jogo pueril: Semioculto tu fitas-me 74

e sinto a fria gelatina do teu olhar tocar-me a epiderme. (KNOPFLI, 2003, p. 54 – OPO)

A segunda estrofe, por ser composta por um único verso – "Mas disfarço."

(KNOPFLI, 2003, p. 54 – OPO) –, apresenta uma visibilidade concreta, já que, por meio da separação estrófica, visualmente este verso se torna solitário, cortante, como forma de enfatizar o disfarce, o distanciamento, o esconderijo, a brincadeira de

"esconde-esconde".

Esconder o que e de quem? Não se sabe. Knopfli trabalha com as metáforas ocidentais do Pinóquio e do Grilo da Consciência, quebrando, entretanto, a expectativa do poema, quando, em um primeiro momento, se coloca como Pinóquio, o mentiroso, mas fecha com a constatação de que o consciente da situação é o poeta/Pinóquio e não o grilo, que, evidentemente, remete ao pensamento colonizador e aos rumos que a colonização estava tomando em Moçambique, naquele período de agitação cultural.

Tu fazes de Grilo Consciência, eu de Pinóquio. Com esta diferença: Aqui sou eu quem tem consciência. (KNOPFLI, 2003, p. 54 – OPO)

O grilo, ocidental/europeu/Portugal, em sua prepotência de intelectual e

"conhecedor", enganou-se ao acreditar que tinha sabedoria e domínio da situação, enquanto o Pinóquio/poeta, moçambicano, estava tomando consciência e começando a tomar coragem para decidir sua própria "vida":

Pinóquio olhou e viu um grande grilo que subia lentamente pela parede. – Fale, Grilo, quem é você? – Eu sou o Grilo-falante e moro aqui há mais de cem anos. – Hoje porém este quarto é meu – falou o boneco – e se quer me fazer um favor, vai embora imediatamente, sem nem olhar para trás. – Eu não irei embora daqui, – respondeu o Grilo – sem antes lhe falar uma grande verdade. – Então diga e seja rápido.

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– Ai daqueles que não obedecem a seus pais e abandonam por teimosia a casa paterna. Nunca se darão bem neste mundo e mais cedo ou mais tarde se arrependerão amargamente. – Pode cantar, Grilo meu, como quiser. (COLLODI, 2004, p. 21)

Knopfli é um poeta que, o tempo todo, transita entre dois espaços: o espaço africano e o europeu, o primeiro considerado, tradicionalmente, como mais emotivo e o segundo, mais intelectual. Fez, desse modo, com que ocorresse uma fusão entre tais espaços, produzindo uma poesia nova, cheia de sentimentos, mas também devedora da tradição literária e do pensamento português/ocidental (MONTEIRO, 2003, p. 107).

Criou poemas como "Morte de Artur" (KNOPFLI, 2003, p. 465-466 – OCA), em que, com uma formalidade poética, misturou a lenda do Rei Artur da Inglaterra – história da tradição ocidental –, imprimindo valores afetivos que aproximam / distanciam este Artur do poema da figura do rei lendário. O Artur poemático é mais humanizado, ele não morre em batalhas, mas sim "na obscuridade etilizada da alcova"

(KNOPFLI, 2003, p. 465-466 – OCA); está pobre e sobra-lhe apenas o nome: "(...) o que lhe resta é o nome / – que não é título de riqueza – torna-o, / porém, infinitamente mais pobre" (KNOPFLI, 2003, p. 465-466 – OCA). De acordo com Ramazani,

o paradigma do hibridismo se constrói pela oscilação entre o mundo do colonizador e do colonizado, misturando na obra elementos desses dois mundos que o afetaram. Essa mistura deve ser consciente e reconhecida por parte do poeta, pois em sua poesia estão refletidas suas experiências interculturais/regionais, causando a tensão/colisão dentro de seu próprio texto poético (RAMAZANI, 2001, p. 181)16

No poeta aqui trabalhado, o hibridismo intelectual acontece principalmente na esfera linguística, como, por exemplo, ao verificar-se a gama de poemas com títulos ou

16 (...) The hybridity paradigm should continually oscillate back and forth between this dichotomous structure and the intersticial forms it has produced. It should acknowledge the binaries that frame postcolonial experience and the irreducibly intercultural and composite effects of transregional contact and collision. (RAMAZANI, 2001, p. 181).

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versos em outros idiomas, sobretudo em inglês. Para citar alguns: "Winds of change"

(KNOPFLI, 2003, p. 160 – RS), "Miles" (KNOPFLI, 2003, p. 250 – MVS),

"Hackensack" (KNOPFLI, 2003, p. 251 – MVS), "If" (KNOPFLI, 2003, p. 254 –

MVS), "A fool dies" (KNOPFLI, 2003, p. 310 – MVS), entre outros.

O hibridismo em Knopfli apresenta uma intertextualidade literária assumida com escritores ingleses. Faz de Shakespeare o seu grande mestre, dedicando-lhe, não à toa, um de seus livros intitulado A ilha de Próspero (1972), referência, como já citado, à obra shakespeariana A tempestade. Knopfli também escreveu poemas, em cujos títulos aparece o nome do poeta inglês: “Três falas inventadas para três personagens de

Shakespeare” (KNOPFLI, 2003, p. 290 – MVS), “Glosa de Shakespeare” (KNOPFLI,

2003, p. 332 – MVS), por exemplo.

Francisco Noa afirma que em “Glosa de Shakespeare”, Knopfli intenta usar uma liberdade “poética auto-instituída” para recriar elementos líricos, ou seja, respeitando a

“distribuição estrófica e o número de versos, olvidando naturalmente a métrica e a rima”. (NOA, 1997, p. 47). Tal atitude demonstra destreza por parte do poeta em relação às formalidades técnico-poemáticas; no entanto, verifica-se que a preocupação do sujeito poético está para além: quer expressar-se em uma poesia nova e singular.

Trabalha com a forma do soneto, com o tom dramático e lírico da poesia ocidental; contudo, se caracteriza por uma dicção seca, pedindo a não comoção: "Não chores por mim, quando tiver morrido, / mais do que o tempo de meu corpo baixar à terra."

(KNOPFLI, 2003, p. 332 – MVS). Usa uma ironia cortante para impedir o transbordamento da emoção.

Esse hibridismo intelectualizado aparece, principalmente, nos versos de Knopfli, quando, começam a transparecer as suas mágoas de poeta em relação ao seu papel na literatura moçambicana. Ocorre um trabalho estético-dramático nos moldes literários

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ocidental, que vem permeado pelos sentimentos conflituosos do poeta. O esmero poético transparece pela forma escolhida: soneto – dois quartetos e dois tercetos, que normalmente versam sobre alguma reflexão da temática humana –; no título, em que o vocábulo "glosa" significa – para além de uma explicação ou interpretação nas entrelinhas – censura, crítica ou repreensão. Como se o poeta quisesse repreender e censurar o leitor de seus versos por lê-los, mas, ao mesmo tempo, por ele também não se querer deixar esquecer por este mesmo leitor.

Não chores por mim, quando tiver morrido, mais do que o tempo de meu corpo baixar à terra. E se, ao leres depois meus versos, te comover a memória furtiva da mão que os compôs,

reprime vivamente as lágrimas que aos olhos te assomarem. Lê, sim, meus versos arrendando-os bem da carne corrompida e da fria insensibilidade habitadas outrora.

De duas vidas que tive, uma logo soube finita. Pela outra, quanto podia, fiz para que o não fosse, ciente que, daquela me apartando, desta tudo ignoraria.

Se ao leres-me pois, atenta, a mágoa sentida, de lembranças minhas isentas, nasça toda só de um verso comovido, terei então vivido. (KNOPFLI, 2003, p. 332 - MVS)

A antítese, trabalhada nesse poema – por exemplo, presença de duas vidas e a escolha de uma delas, ao mesmo tempo que não se escolhe nenhuma, devido à necessidade de ambas para a construção do sujeito poético dual; ou, ainda, a mágoa de lembranças que não existem (poeta fingidor) –, segundo uma estrutura barroca, respalda a afirmativa do conhecimento de Knopfli das técnicas estético-formais da poesia ocidental, ao mesmo tempo que também aponta para a literatura clássica e canônica.

Rui Knopfli também intertextualiza seus versos com os de T. S. Eliot (NOA,

1997, p. 57), além de traduzir diversos outros autores ingleses e americanos como

Dylan Thomas. Identificava-se, ainda, com escritores franceses, entre os quais:

Baudelaire e Verlaine. Apreciava e conhecia Camões, Bocage e Fernando Pessoa,

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atribuindo ao último o ensino da liberdade do discurso poético aos poetas “pós- modernistas” (NOA, 1997, p. 42), muito pela afinidade de visão sobre a poesia, o mundo e o uso da língua, afinal, ambos não escrevem em português, mas em si próprios17.

Além de a Pessoa, dedica versos e poemas também a Luís de Camões, como, por exemplo, "Glosa de Camões" (KNOPFLI, 2003, p. 334 – MVS), em que é feito um trabalho muito próximo ao de "Glosa de Shakespeare" (KNOPFLI, 2003, p. 332 –

MVS), sendo a forma escolhida também o soneto; e as antíteses, características do poeta-mor português, são trabalhadas em versos como: "da cinza escura tornarei por quem / de viver triste sou contente", que dialogam diretamente com o poema camoniano

"O amor é fogo que arde sem se ver", já que no poema knopfiliano e na obra poética de

Camões, em geral, o completo inverso semântico é acoplado para formarem versos poéticos e profundos como conseguir viver na tristeza, mas apresentar contentamento, mesmo assim.

Até que no tempo cesse anónimo o ténue sopro que ao tempo dou. Até que o tempo oblitere o vestígio leve que sobre o esquecimento paira

e mais não é que fino e branco pó na brancura calcinada. Até que o tempo olvide a voz que nele teimosa tece e enreda

a frágil teia e triturando o som em eco fruste me converta e insatisfeito ainda reduza o eco a muda vibração silente, da cinza escura tornarei por quem de viver triste sou contente. (KNOPFLI, 2003, p. 334 – MVS)

No poema "Pessoa Revisited" (KNOPFLI, 2003, p. 94 – OPO), em que, a partir de um título em inglês – língua cara a Pessoa e a Knopfli –, dialoga com Fernando

17 Citação retirada da frase de Fernando Pessoa "Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo." (2013, p. 30).

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Pessoa e seus heterônimos por meio de um encontro, que se quer físico, mas se faz literário.

Esta noite encontro-te, poeta. (...) sendo apenas o lúcido abismo da minha insônia, sigo da margem o rio dos teus versos. (...) E rias, como um insulto amargo, por detrás de Álvaro de Campos snob, ou oculto na frieza geométrica e longínqua do Ricardo reis. Cerebrais, frios, são, dizem, os teus versos. (KNOPFLI, 2003, p. 94-96 – OPO)

O poema “O poeta é um fingidor” (KNOPFLI, 2003, p. 222 – MVS) dialoga claramente com os versos pessoanos. Deve-se entender que Knopfli e Pessoa trazem para suas obras uma estética de “inconformismo” na forma como apreendem o mundo.

Em Knopfli, entretanto, a realidade é interpelada, reapropriada, reinventada e, em

Pessoa, é fugidia, “pois toda a exterioridade significa uma materialidade que é adversa ao poeta (...)” (NOA, 1997, p. 71).

Portanto, no poema de Knopfli, pensa-se que o poeta também é um fingidor, que

“Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”

(PESSOA, 1998, p. 98). E a sua dor é entretecida e entristecida a cada verso do poema.

A semântica da dor – fingida ou não – é reforçada pelos adjetivos “triste”,

“baço”, “entristecida” e pelos verbos “esmorece”, “entristeço”, “entristecer”,

“constranger”, “contristar”.

Entreteço palavras na malha áspera destes versos e a tessitura triste que faço mais esmorece no azul baço do papel. (...)

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(KNOPFLI, 2003, p. 222 – MVS)

A tessitura poética é árdua, pois a malha é áspera num papel azul baço; a sinestesia que ocorre ao longo do poema simboliza o tom adotado nos versos. Nesse entristecer, ao longo do entretecer poemático, dois mundos que convergem se colocam:

“A textura entristecida dos versos / e a tristeza entretecida da alma” (KNOPFLI, 2003, p. 222 – MVS). O primeiro é o mundo do poema, cuja textura é entristecida; o segundo

é o mundo do poeta, cuja tristeza entretece os fios da alma. Nota-se que o mundo da representação (poesia) e o do representado (poeta) vão misturando-se nos versos seguintes por meio da repetição fonética /tr/ e /s/, da anáfora da conjunção condicional

"se" e dos quiasmas produzidos, já não sabendo mais se é o representado o causador da representação ou o contrário. Salienta-se que o sujeito poético não se lembra do começo: se foi através do fazer poético, “se de entristecer palavras”; “se de contristar palavras” (KNOPFLI, 2003, p. 222 – MVS); ou se através do poeta, “se de entretecer sentimentos”, “se de constranger a alma” (KNOPFLI; 2003, p. 222 – MVS).

E logo esqueço onde tudo isto teve começo: Se de entristecer palavras, se de entretecer sentimentos, se de constranger a alma, se de contristar palavras: se me contristei constrangendo se me constrangi contristando.

Sei que me contristo entretecendo e me entreteço de tristeza. (KNOPFLI, 2003, p. 222 – MVS)

Contudo, ambos convergem e poeta e poesia se fundem: “se me contristei constrangendo / e me constrangi contristando” (KNOPFLI, 2003, p. 222 – MVS). O poema finaliza reafirmando essa relação fingidor/fingido que a poesia pessoana apresenta: o poeta se entristece no entretecer da palavra (poética), ao mesmo tempo em que o poeta se entretece nessa tristeza entretecida por ele em versos.

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Rui Knopfli demonstra amplitude de seu conhecimento intelectual construtor de uma poesia híbrida, ao não se fechar na dicotomia Europa x África. O poeta também olha para o "irmão mais velho" brasileiro ao absorver sua literatura, como no poema, já citado, "Então, Rui?" (KNOPFLI, 2003, p. 207 – MVS), em que dialoga com

Drummond, e, ainda, volta-se para a África Saariana ao trabalhar com alguns de seus elementos nos livros O escriba acocorado – OEA (1978) e O Monhé das cobras – OMC

(1997), cujos motivos serão abordados em capítulos adiante.

A figura do escriba, intelectual que na antiguidade copiava textos, principalmente os sagrados, assemelha-se à figura do poeta Knopfli, que se debruça sobre sua poesia, conferindo-lhe sacralidade: "Hibridismo (...) pressupõe (...) a possibilidade de se desenvolver práxis mais ativas, criativas e livres, sem preconceitos, já que todos não deixamos de ser híbridos ou mestiços." (ABDALA JR, 2004, p. 19).

Do modernismo brasileiro Knopfli absorveu “temas e motivos alicerçados no quotidiano e no coloquial, a língua jovialmente reinventada, a subtileza da ironia”

(NOA, 1997, p. 43) dos mestres Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, que também dialogam em intertextualidade com o moçambicano, como, por exemplo, em

“Terra de Manuel Bandeira” (KNOPFLI, 2003, p. 44 – OPO).

Acredita-se nesta tese que, mais do que absorção, Knopfli soube interagir com outras culturas, literaturas; e nesse processo não deu as costas para o lado africano que também faz parte de seu eu cidadão do mundo, tornando-se, assim, um poeta híbrido e diverso, que não copia, mas conversa, dialoga e que, com um novo pulo do gato, recria.

Knopfli demonstra domínio estético ao intertextualizar com Carlos Drummond de Andrade. Além de epígrafes dedicadas ao poeta brasileiro que, assim como Knopfli, canta um mundo caduco, o poema "Então, Rui?" (KNOPFLI, 2003, p. 207 – MVS) tece

82

uma conversa com "José" (ANDRADE, 1987, p. 20), emblemática figura do poema de

Drummond.

Enquanto "José" (ANDRADE, 1962, p. 20) é "sem nome", um anônimo na totalidade, mas também "faz versos" (ANDRADE, 1987, p. 20), em "Então, Rui?"

(KNOPFLI, 2003, p. 207), a figura humana apresenta um "corpo magrote", um "rosto miúdo" e também é poeta; esta característica pode ser entendida como um duplo do próprio poeta:

Sobes o barranco, corpo magrote e alguns empenos, rosto miúdo, nariz expressivo, o olho muito agudo, ríspido qual ave de presa. (KNOPFLI, 2003, p. 207 – MVS)

Tanto José, quanto a figura de rosto miúdo desse último poema são anônimos diante da cidade, que vive ao redor deles, mas Knopfli usa esse fato para poder, com um olhar que "tem a curvatura / terna e feroz duma grande-angular" (KNOPFLI, 2003, p.

207 – MVS), entender a geografia dessa urbe, cuja paisagem se impõe diante de seus olhos, depreendendo dela uma beleza ironicamente comovente:

Sobes o barranco, corpo magrote e alguns empenos, rosto miúdo, nariz agressivo, o olho muito agudo, ríspido tal qual ave de presa. Tua capital a teus pés, sem que o saiba, longilínea, alinhada, de carros pequenos e brilhantes entre acácias de miniatura. Coças o peito na zona do esterno num jeito muito teu. E olhas. Teu olhar tem a curvatura Terna e feroz duma grande-angular. Esse perfil distante de cimento e argamassa é toda uma geometria decantada e gostosa molhando os quadris deleitados no charco doce da baía. Diacho, que perfil mais bonito, hem? Então, Rui, que é isso, Não vais agora comover-te? (KNOPFLI, 2003, p. 207 – MVS)

Percebe-se, nesses versos citados, a coloquialidade, marca presente também no poema do poeta brasileiro. Ela apresenta-se nas marcas da oralidade como "hem" e "que 83

é isso" e no discurso direto, com a presença de um vocativo – Rui –, definindo um questionamento no diálogo que se coloca nos versos.

Em O país dos outros (1959), as epígrafes iniciais de Drummond de Andrade e

Eluard demonstram o olhar de Rui Knopfli para outras literaturas, como se já anunciasse o que viria em sua obra daí por diante.

Esse livro, de 1959, já questionava o fato de o país ser dos outros; suas epígrafes demonstram que há uma reação por parte do poeta que usa Carlos Drummond de

Andrade para dizer: "Porém o meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvou / e dou a poucos uma esperança mínima" (KNOPFLI, 2003, p. 33 – OPO). O sujeito poético de O país dos outros espalha, aos poucos que o lerão, uma esperança, mesmo que mínima. E finaliza com a ideia de liberdade e pertencimento geográfico indefinido, relacionado à natureza de forma geral, citando versos de Eluard (KNOPFLI, 2003, p. 33

– OPO):

Nous vivons dans l'oubli de nous métamorphoses ...... Nous sommes corps à corps nous sommes / terre à terre Nous naissons de partout nous sommes / sans limites.18

Uma das características da hibridação tensa em Knopfli é essa presença de afetivas intertextualidades em seus poemas e que, a partir de Máquina de areia – MA

(1964), os sentimentos de conflito e as mudanças que o poeta já antevia em seus livros anteriores direcionaram seu labor estético para a premonição de uma catástrofe coletiva e pessoal:

18 Tradução livre: Nós vivemos no esquecimento de nossas metamorfoses ------Nós temos corpo a corpo nós somos terra a terra Nós nascemos em todos os lugares nós somos sem limites 84

Escrita em 1964, ano em que deflagra a confrontação armada em Moçambique, Máquina de areia erige-se como a representação estética da instabilidade, das incertezas e dos conflitos que se avolumavam num dos espíritos mais criativos no espaço africano de língua portuguesa. É assim que, em poemas como, por exemplo, "Anemoscopia", se começa a desenhar, com traços cada vez mais energéticos, a propensão profética da poesia de Rui Knopfli. Isto é, a visão premonitória de uma catástrofe individual e coletiva (NOA, 1997, p. 63)

O nome sugestivo dessa obra escrita em 1964 dialoga com a “Grande máquina do mundo”, de Camões, que, nos cantos IX e X, narra o momento em que Tétis, deusa da Ilha dos Amores, mostra a Vasco da Gama um mundo muito maior, de delícias e afins.

A capa da primeira edição de A máquina de areia (anexo 2) continha uma ampulheta simbolizando o tempo ou a mudança dos tempos: "A ampulheta simboliza a

'queda eterna do tempo' (Lamartine); seu escoamento inexorável que se conclui, no ciclo humano, pela morte. Mas significa também uma possibilidade de inversão do tempo, uma volta às origens." (CHEVALIER; GHEEMBRANT, 1995, p. 79).

Aproxima-se a máquina knopfiliana da máquina camoniana, já que ambas compreendem o mundo como cíclico e têm como expectadores o poeta, no primeiro caso, e o navegador, no segundo:

Vês aqui a grande máquina do mundo. Etérea e elemental, que fabricada Assim foi do saber, alto e profundo, Que é sem princípio e meta limitada. Quem cerca em derredor este rotundo Globo e sua superfície tão limada É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende, Que a tanto engenho humano não se estende. (CAMÕES, 2003, p. 282)

Vasco da Gama, nos versos camonianos, e seus navegantes são premiados pelos deuses pela valorosa ventura, permitindo ao capitão português a visão contemplativa do mundo; já no poema de Knopfli, a máquina é de areia, pois soterrará o futuro de seu mundo. Assim, em 1964, o poeta, por meio de sua máquina/ampulheta, percebe um futuro obscuro, esquecido pelos deuses.

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A ampulheta que ilustra a capa da obra (anexo 2), além de metaforizar o tempo, dialoga com o primeiro poema "Pirâmide" (KNOPFLI, 2003, p. 171-174 – MA), evidenciando a primeira visão do poeta – mais uma vez no Egito –, pois, visualmente, a ampulheta seria a junção de duas pirâmides.

Ao invés de olhar o futuro apenas, o sujeito poético olha para o passado, como no poema "Novo testamento" (KNOPFLI, 2003, p. 178-180 – MA), em que trabalha com a figura de Jesus em contraponto aos deuses camonianos. O poema divide-se em quatro partes, em que reconta a teogonia, por meio da simbologia do sete, que é o tempo da criação, segundo os preceitos judaico-cristãos: "Sete dias de escuridão / transfigurada em luz vivíssima" (...), "Sete dias à beira da traição (...)" e "sete círculos de inferno (...)"

(KNOPFLI, 2003, p. 178-180 – MA) e critica a humanidade, por meio da violência infringida à figura de Jesus Cristo, evidenciando o lado negativo do ser humano:

Sete círculos de inferno, cento e sessenta e oito vergastadas e a coroa de dez mil e oitenta espinhos dilacerando a voz que conturbada se equilibra nas arestas da loucura. (KNOPFLI, 2003, p. 178-180 – MA)

E questiona a verdade: "O que é a verdade? Aí, estendido / no silêncio do coma e na recusa / das palavras, tu és a verdade" (KNOPFLI, 2003, p. 178-180 – MA)

E a última estrofe do poema, a única nominada – ressurreição – vai trabalhar o olhar de Jesus, mas também o olhar do poeta diante dessa nova realidade que está se configurando em Moçambique, durante o processo de descolonização. O olhar torna-se mais desconfiado:

O regresso ao sol é o regresso ao princípio, porque o sol tem o brilho novo do princípio e as coisas têm o ar estranhamente fresco do primeiro dia da criação. É simplesmente um novo princípio, um como que recomeço de tempo,

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sob a vigilância de um olhar agora mais lúcido e magoado, um olhar que se demora e se organiza sobre os seres e os objectos, tacteando-lhes o sentido profundo e oculto. Os músculos e o sangue e os nervos reaprendem cautelosamente o caminho que os olhos desvendam no dia claro. A liberdade é a ressurreição. (KNOPFLI, 2003, p. 178-180 – MA)

No poema "O aviador" (KNOPFLI, 2003, p. 209 – MVS), o poeta usa a imagem romântica do piloto que paira sobre paisagens montanhosas, contemplando "(...) os tons de verdes da paisagem, o bordo / das montanhas e o lado de lá / do horizonte"

(KNOPFLI, 2003, p. 209 – MVS), emparelhando-a à imagem do próprio poeta, que também pode pairar sobre paisagens da escrita. Ambos podem ver o lado de lá do horizonte, o poeta por sua destreza em abarcar outros mundos, e o aviador por estar no

"coração tubular" (KNOPFLI, 2003, p. 209 – MVS) de uma máquina que não é a de areia, mas que também permite o seu olhar além do horizonte, finalizando com a constatação de que por esses motivos "o piloto é / a seu modo, um poeta" (KNOPFLI,

2003, p. 209 – MVS).

Poeta-piloto, poeta-ladrão, poeta que confunde e "desconfunde": poeta múltiplo e diverso. Este é Rui Knopfli que soube trabalhar sua bagagem cultural e muitas intertextualidades afetivas, instaurando uma nova categoria na literatura moçambicana: a dos poetas intelectualmente híbridos.

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2.4. O Cosmopolitismo de Rui Knopfli e a Revista Calibam

(...) estes cadernos Calibam representam, de forma bastante impressiva, caso único de uma publicação, no espaço geográfico e político em que se inseriam, uma abertura a diversas posturas de escritas, aglutinando vozes tão diferenciadas. Indubitavelmente, um dos exemplos paradigmáticos dessa disponibilidade que os nossos escritores – nada de maniqueísmo – manifestam em relação a linguagens a praticar (SAÚTE, 1996, p. X – RC)

Como afirma Nelson Saúte (1996) na epígrafe acima, a Revista Calibam19 – RC, e, mais amplamente, a poesia de Rui Knopfli e o próprio poeta são dotados de um cosmopolitismo intelectual, já que ele tornou-se o primeiro grande poeta moçambicano aberto a uma cidadania do mundo capaz de revelar quão flexível e tênue é a fronteira da poesia. Assim, entende-se que Rui Knopfli é um cosmopolita intelectual, cidadão do mundo literário, conhecedor dos espaços da escrita e das artes e fundador de uma geopoética cosmopolita em relação à intelectualidade / ao amadurecimento poético, já que sua visão era ampla e abarcava diversos locais, em que se inseria a palavra poética à sua frente.

Inicialmente, deve-se compreender que cosmopolita é a pessoa que se julga cidadã do mundo inteiro ou que considera o mundo a sua pátria. O vocábulo advém do termo grego kosmopolítes, em que Kosmós equivale a "mundo" e epolítes, a "cidadão".

Rui Knopfli é um cidadão híbrido – conforme foi evidenciado no subcapítulo 2.3 desta tese – e cosmopolita. Todavia, seu cosmopolitismo ocorre por duas vias:

19 Há duas possibilidades de escrita para o vocábulo Caliban / Calibam. Nós oscilamos de acordo com a referência usada, mas no texto da tese, dar-se-á preferência ao termo Calibam, na escrita em Língua Portuguesa.

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a) Cosmopolita no espaço geográfico, histórico e social, pois se inseria em um ambiente provinciano20 – Lourenço Marques dos anos 1960 –, que contrastava com seu comportamento de fácil adaptação, devido à absorção, por diferentes vias, de culturas variadas, que não a sua de origem, e com seu conhecimento de mundo, também adquirido por muitos caminhos, mas, sobretudo, pela observação crítica do poeta sobre a vida. b) Cosmopolitismo intelectualizado, pois ele era, ou almejava ser, cidadão do mundo literário. Queria-se maldito: deitava-se Shakespeare, sonhava-se Camões, acordava

Eliot. É o seu pensamento, transbordante em poesia, que o elevava ao grau de kosmopolítes das palavras. Tudo que sempre desejou ser: um cosmopolita do intelecto.

A geopoética que se objetiva trabalhar neste item é a que deixa transparecer o cosmopolitismo intelectualizado do poeta, que, apesar de sui generis, possui algumas características inerentes àquilo que Silviano Santiago denomina como cosmopolitismo do pobre (2008, p. 45-63). Isto se dá porque Knopfli teve uma família que foi imigrante, ao desbravar uma África desconhecida 21. Seus pais portugueses foram a Moçambique e, por mais que tenham passado para o poeta a nacionalidade, cultura e língua – como já tratado nesta tese –, também não o impediram de ser influenciado pelas culturas locais, que diminuíram nele as marcas da nacionalidade portuguesas. Knopfli não é um poeta de uma nação, ele é, reafirma-se, um poeta do Kosmós das palavras, um cosmopolita do verbo e do olhar.

Além disso, em sua infância, o poeta passava as tardes nas matinês, dando os primeiros passos para o contato com o mundo, por meio dos filmes de faroeste. Assim,

20 Deve-se considerar que o provincianismo da capital da colônia de Moçambique ocorre em comparação às grandes cidades como Paris, Lisboa, Londres e, também, a cidade sul-africana de Johanesburgo, e, não, em relação às outras regiões moçambicanas. 21 Lembra-se de que os portugueses emigrados para Moçambique possuíam melhores condições financeira dos que os emigrados para Angola ou outras colônias. 89

pulava as fronteiras e observava as paisagens adiante delas, que poucos conseguiam ter a oportunidade de ver:

O xerife mantinha a fidelidade ao cavalo branco e desaparecia, com os bigodes e a estrela de lata, numa nuvem de pó e solidão. E a rapariga pálida de cabelo aos caracóis escondia o ar decepcionado no vasto peito de Oklahoma Kid. Tudo tão vulgar, mas tão sagrado, nessas distantes matinées do Gil e do Scala, hora galante e viril da nossa tonta meninice. (KNOPFLI, 2003, p. 205-206 – MVS)

Essa experiência permitiu que certos personagens dos poemas knopfilianos compusessem seu cenário cinematográfico, poético e memoralístico como, por exemplo: "Randolph Scott, esgrouviado e angular"; "Bill Eliot, de carão amarrado";

"Joel McCrea – Búfalo Bill – comendo (...) os fígados do índio vilão Yellow Dog"

(KNOPFLI, 2003, p. 205-206 – MVS).

Os olhos infantis guiam as apreensões desse primeiro contato com o mundo exterior, inserindo-se nele profundamente, marcando-o e refletindo-se, posteriormente, na obra do poeta. Suas vivências memorialísticas22 afetam sua escrita que se torna plena de poesia, composta pelas lembranças das certezas inocentes da meninice:

O mulatinho de Don'Ana abria muito os olhos de espanto, eu tinha agonias e suores, digestão parada e a malta dava urros e assobios. Nossa participação era efectiva: jamais algum ladrão de gado, ou ratoneiro dos bancos de Albilene e Kansas City, foi preso e dominado sem que, dentes e punhos cerrados, tivéssemos dado o alarme. No dia em que um traidor inominável matou pelas costas Jesse James, saímos silenciosos e de lágrima furtiva. (KNOPFLI, 2003, p. 205-206 – MVS)

22 Esse aspecto será aprofundado no capítulo 4.

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O cosmopolitismo em Rui Knopfli é intelectualizado, porque ele, além de ser um sujeito híbrido, como já estudado, é um expert em literatura, filosofia, história, cultura mundial, permitindo que ocorra, portanto, uma fusão entre sujeito, informação e mundo, o que transborda em uma poesia dialogante em relação às ciências ocidentais e orientais.

E a cada obra, em que seu amadurecimento transparece, percebe-se um maior envolvimento do poeta que, cansado de viver à margem – e lutar contra ela –, decide ceder e aceitar sua condição real, preferindo, no entanto, respirar, sentir, viver e sonhar através das letras de seus poemas, do que por meio do duro sentimento de ser mais um à parte da realidade nua e crua de Moçambique.

O seu cosmopolitismo se concretiza no sentido de apresentar um contato visceral com as outras literaturas, tornando a poesia knopfiliana aberta às demais literaturas, filosofias e a pensamentos sobre o mundo, como se evidencia, por exemplo, a partir das epígrafes de todos os livros do poeta, em que os autores referenciados são, ou possuem, uma essência literária, cultural e pessoal cosmopolita: Drummond de Andrade e Eluard, em O país dos outros; D. H. Lawrence, em Reino submarino; mais uma vez,

Drummond com seu mundo caduco, Eliot e Thornton Wilder, em Máquina de areia;

Leonard Feather e um provérbio africano que pouco fala e muito diz ("Sem que tenhas atravessado o rio, não te rias das mandíbulas do jacaré"), em Mangas verdes com sal;

Jorge de Sena, em A ilha de Próspero e, também, em O escriba acocorado; Camões, em O corpo de Atenas; e, por fim, Antoine de Saint-Exupéry, em O monhé das cobras.

O poeta também, devido ao seu cosmopolitismo, é, literariamente, muitos personagens em um só, como evidencia o poema "O fio da vida" (KNOPFLI, 2003, p.

226 – MVS), em que olha de fora os diferentes tipos de homens que existem, mas que, na verdade, são o reflexo das multifacetadas visões desse único homem: o próprio eu lírico. Há o homem que reza, o que olha na escuridão, os que esperam a orla marítima,

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os homens que se arrastam, os que se encontram "debruçados em pleno azul"

(KNOPFLI, 2003, p. 226 – MVS) e "deslizam sobre os densos verdes" (KNOPFLI,

2003, p. 226 – MVS), os desatentos, os que espreitam, os "por fora e por dentro"

(KNOPFLI, 2003, p. 226 – MVS), os das mil ciladas do cotidiano.

Há homens que rezam na penumbra das catedrais dolentes e há outros que do alto das pontes olham a escuridão rumorejante das águas. Há homens que esperam na orla marítima e outros arrastando-se no viscoso esterco dos subterrâneos. Há homens debruçados em pleno azul e outros que deslizam sobre densos verdes; há os desatentos na atenção e os que espreitam atentamente a ocasião. Há homens por fora e por dentro do cimento armado, suspensos das mil ciladas do quotidiano voraz; de encontro aos muros, às paredes, ao sol do meio-dia, ao visco da noite, às sediças solicitações de cada instante. Há a impotência poderosa da oração e a obcessão amarga dos suicidas e, de permeio, os que, porque hesitam, porque ignoram, porque não creem, não oram, nem se suicidam e se quedam ante a impossibilidade de destrinça entre o fio da vida e a vida por um fio. (KNOPFLI, 2003, p. 226 – MVS)

Percebe-se, mais uma vez, que o poeta é um cosmopolita das artes; com elas, viaja, conhece, instaura, subverte e se demonstra um cidadão do mundo. Sem o sentido de nacionalidade portuguesa forte ou latejante, ou, ainda, o de identidade local, o poeta torna-se um "cosmopolita desenraizado", segundo conceito de Appiah (2008): "(...) como ele próprio, um homem sem um sentido forte de nacionalidade ou identidade local

(atrevo-me a dizer, um cosmopolita desenraizado)" (APPIAH, 2008, p. 21).

O cosmopolitismo literário em Knopfli é percebido pela presença de diferentes referenciais em sua poesia, como, por exemplo, em "O autor a um amigo que lhe dissera não ser ele capaz de citar mais que três Thomas na vida cultural anglo-saxónica"

(KNOPFLI, 2003, p. 252 – MVS), em que o poeta, demonstra seu conhecimento

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literário, por meio de certa ironia, do ar de vitória, da inteligência e da superioridade, relacionando alguns Thomas anglo-saxões que cruzaram seu olhar literário e o ajudaram a se tornar um cosmopolita pela escrita literária:

Thomas Moore Dylan Thomas Thomas Stearns Eliot John Thomas [D. H. Lawrence] Thomas Gainsborough Por quem me tomas? (KNOPFLI, 2003, p. 252 – MVS)

Destarte, evidencia-se, também, outra característica cosmopolita: a arrogância.

Ela também aparece quando o sujeito poético, em um rompante, não acredita em seu leitor, sentindo-se superior a este: "Você compreende Thelonius Monk? / Não. Você não entende." (KNOPFLI, 2003, p. 251 – MVS).

Sua autoconfiança é corroborada no poema "If" (KNOPFLI, 2003, p. 254-255 –

MVS), em que, a partir da conjunção condicional "se" em inglês/ português, passa conselhos como um grande conhecedor do mundo. Claro está que o título em inglês, contrastando com a escrita do poema em português, quer evidenciar os diversos conhecimentos linguísticos que o poeta possui, pois isso também o caracteriza como cosmopolita.

Outro ponto de apoio para o seu cosmopolitismo são as amizades que traçou ao longo da vida física e artística, como, por exemplo, no poema "Velasquez", em que, por meio de uma bonita homenagem, Knopfli iguala-se ao pintor espanhol, dialogando com este, o que e corrobora a ideia de seu cosmopolitismo ser traçado pela via artística e literária.

Knopfli e João Garabato Dias (também conhecido por António Quadros e ainda por Frei Joannes Garabatus) deram início à Revista Calibam – RC, cadernos abertos às manifestações linguísticas e poemáticas em língua portuguesa. Esta revista foi um

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caminho encontrado para o cosmopolitismo literário em um espaço muito provinciano.

Foi lançada em quatro exemplares – sendo que os números três e quatro foram publicados reunidamente, devido às pressões que a PIDE fazia à casa de impressão da revista –, entre os anos de 1971 e 1972, período em que Moçambique e outras colônias portuguesas em África adquiriam um tom crepuscular, devido à guerra que fez muitos mortos.

Tal periódico buscava uma expressão genuína, de dentro para fora, que evidenciasse o universo particular, expondo-o ao mundo literário:

É a questão que se põe da linguagem do colonizado: porque é que o colonizado há-de falar na linguagem do colonizador? Não interessa a linguagem que ele fala, desde que, quando ele se exprima, não se exprima como colonizado, mas como ser humano independente e livre. E essa era a questão (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 536)

Era esta liberdade que Rui Knopfli, junto a Grabato Dias, queria para sua revista de frequência não periódica, o que fazia ganhar tempo contra a censura da PIDE. A simbologia de Calibam advém da peça A tempestade de Shakespeare, em que a personagem Calibam antagoniza com Próspero, sendo a primeira personagem, uma representação do colonizado e a segunda, representativa do colonizador 23.

Calibam, segundo George Lamming, "é o excluído, o que está eternamente abaixo da possibilidade... É visto como uma ocasião, um estado de existência que pode ser apropriado e explorado para os fins do desenvolvimento próprio de outro". Se assim for, será preciso mostrar que Calibam tem uma história que pode ser percebida por si só, como resultado do esforço do próprio Calibam (SAID, E., 2011, p. 333)

Apesar de todas as críticas, Rui Knopfli, junto com Eugénio Lisboa e Antônio

Quadros/Grabato Dias, chamados de "geração destoante", devido ao não alinhamento literário às ideologias políticas, publicaram, além da Revista Calibam – RC, o periódico

A Voz de Moçambique, na década de 1970, período bem próximo à independência.

23 O subcapítulo 3.2. abordará com mais profundidade a temática de Próspero e Calibam.

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A Revista Calibam não se prendia à temática da moçambicanidade – mas também não a rejeitava –, sendo, portanto, um periódico aberto a diversos pensamentos e posicionamentos de escrita, com diferentes vozes, indiciando, ainda mais, seu cosmopolitismo literário:

Estes cadernos de poesia ancoram numa importante tradição – é abusivo o termo, mas serve-nos à falta de melhor – de uma literatura moçambicana, poesia principalmente, profundamente cosmopolita. À flagrante universalidade se deve aduzir uma preocupação de reflectir problemas marcadamente locais. Nos cadernos cabem as vozes poéticas de José Craveirinha, Jorge Viegas, Fonseca do Amaral, Rui Nogar, Rui Knopfli, Sebastião Alba, Orlando Mendes entre outros. Eugénio Lisboa escreve uma nota introdutória no primeiro número sobre a tradução de Rui Knopfli dos poemas de T. S. Eliot. Tanto o polaco Zbigniew Herber como a anglo-saxónica Marianne Moore seriam vertidos para o português sob a diligência do autor de O País dos Outros, que é ainda quem assina as respectivas notas de apresentação, nos números 2 e 3/4 designadamente (SAÚTE, 1996, p. IX – RC)

A dimensão literária que esta revista possuía era tanta, que, além de traduções – feitas por Knopfli – de poemas de T. S. Eliot, Zbigniew Herbert e Marianne Moore, agregaram-se no mesmo espaço nomes com intenções e estilos literários distintos, como os de: Jorge de Sena, Luís Amaro, António Ramos Rosa, José Craveirinha, Noémia de

Souza, Eugénio Lisboa, Fonseca do Amaral, Rui Nogar, Herberto Helder, Glória de

Sant'anna e, até mesmo, Orlando Mendes, escritor representativo da geração anterior.

Isso se dá, porque a

(...) a revista queria-se aberta a todos os horizontes de língua portuguesa , tivesse esta a colaboração que tivesse e apresentasse ela os desvios a que tem jus todo o corpo vivo que se expande por várias latitudes e se abriga debaixo de sóis de quentura diversa. (LISBOA, 1996, p. XIII – RC)

Assim, o periódico aos poetas de língua portuguesa

(...) temporariamente torrados pelos trópicos (Herberto Helder), moçambicano-portugueses de anda-cá-e-lá (Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Lourenço de Carvalho) e portugueses seiscentistas, mas revelados, pela primeira vez, em Moçambique (Frei Ioannes Grabatus) (...) (LISBOA, 1996, p. XIV – RC)

Knopfli rende homenagem a Shakespeare, quando, no primeiro volume do periódico, lança seu poema "Glosa de Shakespeare" – trabalhado no subcapítulo

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anterior, 2.3 –, em que, no estilo de soneto, indica as contradições do ser poeta. Publica ainda "Glosa de Camões" e "Glosa de Anphiteu" (KNOPFLI, 1996, p. 29 – OPO), evidenciando, mais uma vez, seu conhecimento do cânone literário mundial, assim como do fazer poético tradicional, neste caso, a glosa e o soneto.

No segundo volume, os organizadores procuram expandir os focos da revista, deixando-a ainda mais cosmopolita, ao traduzir, como já dito anteriormente, o poeta, dramaturgo e ensaísta polonês Zbigniew Herbert, abstendo-se de publicar poemas próprios. Rui Knopfli confessa que a tradução do poeta europeu viera-lhe "de segunda mão", por se tratar de uma tradução do inglês e não do original, mas ao mesmo tempo afirma a importância da mesma:

Traduzir poesia de própria língua original constitui risco saldado, a mor das vezes, em resultados que mal resgatam trabalho e suor postos no empreendimento. Traduzi-la em segunda mão aproxima-se muito já de certas travessias do ignoto, praticadas em plena trevas. (...) tenho pisado melhor ou pior, os dois terrenos, menos para prestígio pessoal do que pelo prazer de tentar recapturar, no nosso idioma, algo de uma grandeza poética que, por barreiras de ordem linguística, não seria de ordinário acessível a inúmeros de nós (KNOPFLI, 1996, p. 35 – RC)

Seguidamente, Rui aproxima-se do poeta polaco ao descrever a habilidade, o olhar e o fazer poético deste, pois, de certa maneira, Knopfli tinha intenções literárias de liberdade parecidas:

Um poeta político, portanto, embora não no sentido de "comprometimento" que ao termo se empresta na esfera ocidental. Mas nocturnamente político como o é, por exemplo, a leitura que Jean Kott (...) nos propõe de Shakespeare. A severa concisão, a sobriedade controlada, a lucidez e o equilíbrio aliados a uma independência incorruptível e ordenadas em meio do caos e do horror – estigmas dominantes na poesia de Herbert [e também na poesia de Knopfli] –, eis o que me esforcei por convir (KNOPFLI, 1996, p. 35 – RC)

Knopfli introduz no terceiro número da revista a poesia de Fonseca Amaral, desculpando-se pelo "esquecimento" deste poeta, exalta-o evidenciando que é uma poesia dolorosa, saída do pós-guerra, como já mencionado, corroborando com o fato de

Calibam ser aberta a diferentes pensamentos, partindo do particular para o universal.

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No quarto e último volume, aproxima-se de Marianne Moore, mas eleva-a ainda mais, ao compará-la a nomes como "Graciliano Ramos, na prosa, e João Cabral de Melo

Neto, na poesia." (KNOPFLI, 1996, p. 71 – RC). Ela era uma poeta que possuía a sensibilidade necessária que a pusera no grupo de

(...) exíguo corpo da poesia durável escrita no nosso tempo; desse exíguo corpo de escritos em que, entre tudo aquilo que passa por poesia, uma sensibilidade original e uma inteligência alerta e uma funda compaixão se conjuram para a preservação da vida na Língua Inglesa (KNOPFLI, 1996, p. 71 – RC)

Percebe-se que a Revista Calibam já era um mote, uma experimentação que

Knopfli estava propondo, que culminaria no seu livro que viria a seguir, em 1972: A ilha de Próspero, em que retoma a temática shakespeariana da tensão entre Próspero, o tirano, e Calibam, o tiranizado.

Portanto, comprova-se que o cosmopolitismo em Rui Knopfli é intelectualizado, como se pôde verificar em seus poemas, e, ao mesmo tempo, contaminador, já que expandiu para as artes em Moçambique os pensamentos e comportamentos de liberdade sobre o mundo, promovendo a Revista Calibam – exemplificação máxima da abertura aos novos pensamentos e visões literárias do mundo dentro do contexto literário de

Moçambique – e abrindo-se ao planeta em sua obra poética.

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3. O FAZER POÉTICO E AS PAISAGENS GEOGRÁFICAS

Reajo às antigas e estipuladas fronteiras, junto ao meu sangue às mil pulsações do inquieto momento. (KNOPFLI, 2003, p. 97 – OPO)

Os versos da epígrafe demonstram a intenção poética de Rui Knopfli: romper com as antigas fronteiras que o aprisionaram em um espaço fora do espaço – literário e de sua pátria –, criando, assim, um novo lugar, uma nova paisagem para sua poesia que pulsa inquietantemente. Desta maneira, a partir de sua interação com o mundo ao redor

– poético, físico e memoralístico –, o poeta instaura uma geopoética, expressa, em seus poemas, por meio de versos cortados pelos afetos despertados por tais paisagens. Essas, portanto, passam a ser entendidas como elementos operadores que possibilitam a análise, no campo da memória, da identidade, da cultura, do corpo e também da escrita.

Alinha-se esse conceito de paisagem às ideias de Michel Collot em sua obra

Poética e filosofia da paisagem (2013), segundo o qual

a palavra paisagem não designa, evidentemente, os lugares descritos pelo autor estudado, mas certa imagem do mundo intimamente ligada ao estilo e à sensibilidade do escritor: não a tal ou a tal referente, mas um conjunto de significados (COLLOT, 2013, p. 54)

Rui Knopfli, em sua poesia, observou o ambiente a sua volta, transformando-o em paisagens poéticas que apontam para a história, para a colonização, para seus conterrâneos, para os espaços que habitou. "Um ambiente não é suscetível de virar paisagem, senão a partir do momento em que é percebido por um sujeito" (COLLOT,

2013, p. 19).

Desse modo, o poeta rompe com o ambiente visual (físico e poético) estruturado como paisagem, criando uma poesia que possui um horizonte poemático que "articula o visível e o invisível, o próximo e o distante". (COLLOT, 2013, p. 21). No poema "O

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campo" (KNOPFLI, 2003, p. 154), Knopfli anula a ideia pastoril e bucólica traçada pela literatura – e também pintura – ocidental, para relacionar aquele espaço à realidade geográfica de África.

Saio para o campo. O campo aqui não é o campo, mas a savana eriçada de micaias e capim feio e desigual. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 154 – RS)

Há, nesses versos, de certa forma velada, uma exaltação à terra africana, como se imputasse a ela um caráter de realidade que os ambientes descritos na literatura ocidental, em geral, não transmitem, como é o caso, por exemplo, da poesia pastoril, cuja modalidade poemática é constituída pela tendência medievalizante, a paisagem do campo e seu bucolismo, o culto à espiritualidade e ao misticismo.

(...) Entre isso o capim espreita, descolorido, espigado e hirsuto. Nada me sugere a face pastoril, rosto tranquilo de uma criança sonhando. Mas eles estão no seu mundo, e eu passeio pelo campo. (KNOPFLI, 2003, p. 154 – RS)

O poeta vai evidenciando perspectivas que se modificam e se complementam de acordo com o deslocamento do ponto de vista que ora vislumbra a situação vigente, ora volta-se para sua poesia, trabalhando com metáforas dissonantes e também com expressões sintagmáticas que refletem diferentes pontos de vista sobre uma paisagem.

Por exemplo, a Ilha de Moçambique será chamada de "ilha dourada" (KNOPFLI, 2003, p. 76 – OPO), com "ruas prisioneiras / e casas a mirar o tédio" (KNOPFLI, 2003, p. 76

– OPO); de "Arquipélago desmembrado" (KNOPFLI, 2003, p. 280 – MVS); de

"Muipíti" (KNOPFLI, 2003, p. 348 – AIP).

Neste último poema, a Ilha de Moçambique é personificada e adjetivada de acordo com seu papel em cada ambiente histórico-social através dos séculos. A começar pelo título "Muipíti", que significa um pássaro típico da ilha, na língua macua, o sujeito

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lírico apresenta sua Ilha de Moçambique com seu nome original africano, mediante seu ponto de vista, escrita por seu discurso e descrita na paisagem traçada por suas palavras.

Por definição, a paisagem é um espaço percebido, ligado a um ponto de vista: é uma extensão de uma região (...) que se oferece ao olhar de um observador. (...) De fato, a noção de paisagem envolve pelo menos três componentes, unidos numa relação complexa: um local, um olhar e uma imagem (COLLOT, 2013, p. 17)

No caso de Knopfli, encontrar-se-ão como locais em seus poemas: as cidades que o influenciaram – Londres, Lourenço Marques, Paris, Johanesburgo –, as linhas de seus versos e também a Ilha de Moçambique. O olhar do poeta, por vezes, mira de dentro para fora, e, outras, de fora para dentro: "A paisagem implica um sujeito que não reside mais em si mesmo, mas se abre ao fora." (COLLOT, 2013, p. 30). No poema

"Muipíti" (KNOPFLI, 2003, p. 348 – AIP), a ilha é percebida pelo poeta de dentro, como alguém que a conhece e a habitou: "Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente (...)" (KNOPFLI, 2003, p. 348 – AIP), mas também de fora, como um observador privilegiado, pois, já que tem um conhecimento profundo daquele espaço, consegue abarcar com seu olhar um horizonte mais amplo.

No passado, a "velha ilha" (KNOPFLI, 2003, p. 348 – AIP) fora convertida em

"puta histórica", de "trejeitos torpes de cortesã decrépita" (KNOPFLI, 2003, p. 348 –

AIP), porque fora um local de cruzamento de muitas etnias e culturas, por ter sido sultanato árabe durante séculos, antes da colonização lusitana. Os portugueses, ao chegarem, buscaram apagar os traços orientais desse espaço – mesmo sem total sucesso

–, e, por isso, o adjetivo "pseudo-oriental" (KNOPFLI, 2003, p. 348 – AIP) usado no poema também para qualificar a ilha.

(...) Moçambique tem impregnados em sua memória histórica traços de culturas várias: a dos africanos de origem banto que habitavam essa região da África Austral; a dos árabes que, antes dos portugueses, se instalaram na Ilha de Moçambique e comerciaram com as tribos negras do continente, tendo-as iniciado, também, na arte de navegar; e a dos lusitanos marinheiros, que, comandados por Vasco da Gama, aportaram nessa ilha no ano de 1498.

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(...) Por esse motivo, aponta para as influências orientais e ocidentais presentes ainda hoje no imaginário sociocultural moçambicano (SECCO, 1999, p. 10)

A Ilha de Moçambique é um dos lugares cortado pelos afetos do poeta, uma vez que desperta a memória e a recordação de "doridas lembranças do tempo" (KNOPFLI,

2003, p. 348 – AIP), além de assumir, na poesia, o tom de espaço de denúncia da dilaceração cultural dos elementos orientais e africanos que foram oprimidos pela imposição dos valores culturais portugueses.

Mas, enquanto em "Muipíti" (KNOPFLI, 2003, p. 348 – AIP) a ilha é personificada "negativamente", por causa dos efeitos colonizadores, em "Lenda"

(KNOPFLI, 2003, p. 347 – AIP) a mesma é mistificada, descrita como "o insuportável diamante iridiscente / de que ainda hoje guarda o resplendor" (KNOPFLI, 2003, p. 347

– AIP). Isto ocorre, porque

Acumulando estórias e acumpliciando-se com a História, a Ilha, ao longo dos séculos, vem superando seus próprios limites e excedendo-se na capacidade de apontar para algumas realidades, numa operação um tanto surpreendente para sua pequena extensão e sua anunciadíssima agonia (CHAVES, 2005, p. 212)

As imagens trazidas pelo poeta para muitos de seus versos são complexas e, por vezes, contraditórias. Em relação à Ilha de Moçambique, sobre a qual se falou anteriormente, o eu lírico faz descrições como as seguintes: "(...) ruas vagarosas, / caminhos sempre abertos para o mar" (KNOPFLI, 2003, p. 348 – AIP); "(...) brancura / implacável destas ruas, destes muros, / do aço brunido em que mar e céu se fundem"

(KNOPFLI, 2003, p. 363 – AIP); e ainda:

Perfazem o horizonte raso desse microcosmo em que a fome, apesar de tudo, sorri, telhados de macute que se repetem sempre iguais, ruelas de terra batida entrelaçadas em labirinto rústico, o peixe, sobre a teia de lacalaca, curtindo ao sol de um longo meio-dia, as crianças que brincam seminuas na poeira cinza, o cão esquelético preguiçando à sombra e a galinha tonta que cisca na distância. 101

(KNOPFLI, 2003, p. 362 – AIP)

Elementos vão descrever a paisagem da Ilha, agora por outro ângulo, permeado pela carência, visualizando os mais humildes. O cenário é constituído como um lugar pequeno, entendido como representação micro da fome macro em que Moçambique se inseria no momento. Descreve-se um espaço muito característico da ilha, pontuado por elementos marcantes e afetivos como os telhados de macute, que se repetia até onde a vista poética poderia abarcar; as ruelas labirínticas de terra batida; e a teia de lacalaca, local onde os peixes eram postos para secar.

Compõe-se, portanto, uma paisagem que reflete um espaço semi-urbano, pobre, em que crianças acinzentadas brincam na poeira. Há o cão e a galinha. Este cenário salta aos olhos como uma fotografia de Sebastião Salgado; instaura-se uma poética que focaliza o espaço urbano e espaço social, como quem gritasse: aqui há fome.

Logo, pode-se afirmar que as imagens tecidas nas composições paisagísticas de

Knopfli são poético-literárias, históricas, sociais e, espacialmente, geográficas. Para exemplificar, encontram-se sintagmas como: "Olhando o manso Tejo dos poetas"

(KNOPFLI, 2003, p. 63 – OPO) ao referir-se a Lisboa; "(...) velha Europa" (KNOPFLI,

2003, p. 121 – RS) referindo-se ao continente em oposição à "África garrida"

(KNOPFLI, 2003, p. 160 – RS); ou, ainda, "(...) cidade vestida de rigoroso escuro"

(KNOPFLI, 2003, p. 243 – MVS), ao voltar seu olhar para Londres. Com esses exemplos de metafóricos sintagmas, entende-se que "a própria palavra metáfora tem uma conotação espacial, [pois] os poetas sabem bem que essa transferência é indissociável de um transporte no espaço." (COLLOT, 2013, p. 36).

O poema "Memorial de Kish" (KNOPFLI, 2003, p. 445-446 – OCA) é uma metáfora poemática das cidades que desaparecem pelo esquecimento ou ficam vivas na memória de Rui Knopfli. A partir de referências às cidades sumérias de Kish, Ur, Uruk,

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Lagash e Eridu, que hoje se situam na região do Irã e Iraque, o poeta traça um paralelo velado com as cidades que habitou e o marcaram:

Das lembranças que na alma se representam guardo as cidades que no tempo morrem e agonizam no presente. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 445-446 – OCA)

A cidade de Kish teve uma grande importância política e comercial na região, uma vez que, geograficamente, situava-se próxima à cidade de Babilônia, assim como a

Ilha de Moçambique que fora um importante ponto de comércio entre o Oriente e o

Ocidente.

Também é representada no poema a figura lendária de "Gilgamesh" – rei da

Suméria e personagem principal da obra mesopotâmica Epopeia de Gilgamesh em que o rei é um herói proveniente da linhagem dos deuses –, adjetivado como "o construtor"

(KNOPFLI, 2003, p. 445 – OCA), pois, segundo sua epopeia, foi ele quem edificou as muralhas da cidade de Uruk. Apesar de ter sido um grande rei, segundo a lenda, também foi tirânico e cruel, assim como a colonização, que, apesar de trazer certas benesses, se mostrou violenta e desumana.

Pela observação de que muitas cidades terminam e viram meros elementos para estudos arqueológicos –

(...) delas só resta alguma ossada vagamente arqueológica e o branco anonimato de uma poeira

sem data (...) (KNOPFLI, 2003, p. 445-446 – OCA)

–, o poeta percebe que as paisagens urbanas dependem das vontades e do pensamento de quem está no poder, como aconteceu com a cidade da Suméria, cujas construções estavam de acordo com os desejos e ideologias de "Gilgamesh". Knopfli mostra que o mesmo ocorreu e ocorrerá com Moçambique no passado e no futuro, tendo em vista que

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"mudando-se os tempos e as vontades, / se mudam nomes, gestos e feições" (KNOPFLI,

2003, p. 445-446 – OCA), clara alusão ao poema de Luís de Camões "Mudam-se os tempos / mudam-se as vontades". Portanto, Rui Knopfli parte da literatura e volta para a mesma, ao querer evidenciar a importância das cidades para si e para a história.

A partir da constatação da morte das cidades, pelo tempo ou pela memória, "na agonia mansamente adiada / do presente, morrem as cidades (...)" (KNOPFLI, 2003, p.

445-446 – OCA), o poeta evidencia o exílio:

Dentre nós, alguns pressentem-no e voltam o rosto. Ou partem para outros lugares, de outras cidades, noutras terras cuja morte

por estrangeiro, de todo desconhecem. (KNOPFLI, 2003, p. 445-446 – OCA)

E conclui, por meio da aproximação da Babilônia de Sião com Moçambique, que o exílio é um peso para os que partem – e também para o poeta que se sente exilado no momento da escrita deste poema24 –, pois:

Levam consigo, entanto, a dádiva do silêncio e o grave entendimento de saberem que em Babilônia de Sião, interditas são as vozes (KNOPFLI, 2003, p. 445-446 – OCA)

A imagem histórica aparece, por exemplo, em forma de crítica ao colonialismo.

"A paisagem como um fenômeno, que não é nem uma pura representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro entre o mundo e um ponto de vista"

(COLLOT, 2013, p. 18). Deste modo, encontra-se na poesia de Knopfli o seu ponto de vista ao chocar-se com a realidade de seu mundo: percebe que vivia em um território colonizado por portugueses e no seio de uma família pertencente à classe colonizadora, mas, ao mesmo tempo, sentia-se como um sujeito fragmentado, que soubera observar e absorver o melhor e o pior dos dois mundos. Foram muitos deslocamentos paisagísticos,

24 O tema do exílio em Rui Knopfli será aprofundado no capítulo 4.

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fazendo com que o poeta concluísse que: "(...) A pátria somos nós" (KNOPFLI, 2003, p.

338 – MVS) e reafirmasse – por meio das palavras de Jorge de Sena, presentes na epígrafe do livro A ilha de Próspero (1972) – que:

Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci. [...]. (KNOPFLI, 2003, p. 343 – MVS)

Assim, em "Pedra no caminho" (KNOPFLI, 2003, p. 155), que dialoga com o poema "No meio do caminho" de Carlos Drummond de Andrade, Knopfli canta o

"mundo caduco" e em três estrofes apresenta a metamorfose da pedra em algo perigoso, por ela estar na mão de alguém que a segura "com amor e raiva" (KNOPFLI, 2003, p.

155).

Toma essa pedra em tua mão, toma esse poliedro imperfeito, duro e poeirento. Aperta em tua mão esse objecto frio, redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito bruto. Uma pedra, uma arma em tua mão. Uma coisa inócua, todavia poderosa, tensa, em sua coesão molecular, em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida ensolarada, tu és um homem um pouco diferente. Ao meio-dia segurando uma pedra. Segurando-a com amor e raiva. (KNOPFLI, 2003, p. 155 – RS)

Um caminho é percorrido pelos versos do poema: a pedra de "(...) poliedro imperfeito, / duro e poeirento" (KNOPFLI, 2003, p. 155 – RS), "frio / redondo (...) acerado" (KNOPFLI, 2003, p. 155 – RS) e "coisa inócua" (KNOPFLI, 2003, p. 155 –

RS), transforma-se em "(...) uma arma em tua mão" (KNOPFLI, 2003, p. 155 – RS)

"(...) poderosa, tensa" (KNOPFLI, 2003, p. 155 – RS); e o homem – que no início recebe a pedra de alguém que o ordena receber, por meio da repetição dos verbos

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"tomar" e "segurar" no imperativo, evidenciando a sua submissão – metamorfoseia-se, juntamente com a pedra, em alguém que pode fazer a diferença, pois tem o poder, já que ele pode ser a pedra no caminho para o status quo, por estar "segurando-a / com amor e raiva" (KNOPFLI, 2003, p. 155 – RS), lançando-a, física ou poeticamente, em direção ao colonialismo vigente no momento.

Tal imagem de amor e ódio chega a ser pictórica, ganhando uma beleza, que, talvez hoje, poderia ser representada pela obra de arte "Muitas pessoas nunca têm iniciativa porque ninguém mandou" presente no livro/catálogo Banksy – Guerra e spray

(2012) do artista gráfico inglês Banksy, em que também há um homem no meio do caminho, como quem, indeciso, lançasse um buquê de rosas, cheio de amor e ódio.

Revela-se, então, a atualidade que esses versos knopfilianos – da maneira como os de

Drummond – mantêm.

O poeta moçambicano, assim como o artista plástico inglês, demonstra sua preocupação com os anônimos / desconhecidos de sua pátria, dirigindo seu olhar para eles e investindo a paisagem que os rodeia de significados:

(...) a paisagem não é apenas um procedimento social, econômico e político, mas (...) nela podem ser investidos significações e valores tanto coletivos como individuais, todo um imaginário ao qual a ficção e a poesia podem dar sua plena expressão (COLLOT, 2013, p. 15)

Esta ideia é enfatizada no poema "A moral da história" (KNOPFLI, 2003, p. 216

– MVS), em que o sujeito poético lança seu olhar para a paisagem comum de uma construção, ao mesmo tempo, em que, nas entrelinhas, trabalha a consciência e o labor estético.

O poema inicia com uma conjunção adversativa – "Entretanto a vida contrói-se,

é um facto" (KNOPFLI, 2003, p. 216 – MVS) –, causadora de estranheza sintática, pois não há informação anterior para que se possa entender a que fato este sintagma alude e se opõe. Contudo, esticando o olhar para além das linhas do verso, depreende-se desta 106

conjunção adversativa o significado da locução concessiva "apesar de", como se, a par de tudo que tem acontecido – social, político, poético e pessoalmente –, a vida continuasse e se construísse ad infinitum.

E continua nos versos seguintes:

O edifício ainda não se vê, mas os alicerces ocultos estão sólidos e profundos e operários silenciosos, de rosto obscuro, deslizam neles com uma eficiência anónima e implacável. (KNOPFLI, 2003, p. 216 – MVS)

Percebe-se que há uma divisão de sentidos, porque, a partir da ideia da construção de um edifício, releva-se não só a edificação física de um espaço, mas também a das consciências, cujos alicerces são profundos e sólidos, ou seja, as ideias de mudanças já figuram nos desejos interiores desses anônimos operários que, ao mesmo tempo em que constroem o prédio, revolvem-se. Por serem anônimos, não despertam perigo imediato ao status quo: "Gente ignorada, sem importância" (KNOPFLI, 2003, p.

216 – MVS), contudo permitem que Knopfli lance seu olhar e perceba a grande moral dessa história: agora são gente sem nome, anônimos que não importam a ninguém, mas que, na verdade, são necessários, porque, sem eles, não haveria a situação vigente de colonizador x colonizado. Como define Fanon, em Pele negra, máscaras brancas

(2008), a relação de colonizador só existe, porque o colonizado se deixa colonizar e vice-versa. Entretanto, como as consciências estão sendo construídas, a situação irá se reverter e, em algum momento, essas pessoas que agora se ignoram não poderão mais ser esquecidas em breve, porque elas terão as pedras na mão e estarão cheias de "amor e raiva." (KNOPFLI, 2003, p. 155 – RS):

Gente ainda sem nome aqui e com que ninguém se importa, mas que importa a toda a gente. (KNOPFLI, 2003, p. 216 – MVS)

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Assim, lançando seu olhar para esses desconhecidos, o poeta busca também matéria para seus poemas, uma vez que percebe que essa gente sem nome é prenhe de poesia em todos os seus movimentos e que só cabe a ele transportá-la para as linhas de um papel.

(...) Gente que ignora certamente estes versos mas sabe de toda poesia que há neles, porque a poesia está implícita nos movimentos que traça. (KNOPFLI, 2003, p. 216 – MVS)

No poema "Virá..." (KNOPFLI, 2003, p. 261 – MVS), por meio de versos com verbos no futuro de presente do indicativo, o sujeito lírico prenuncia a guerra futura, prevendo-a e sabendo que não há nada a fazer para mudar este destino. A guerra chegará "no bojo noturno do avião" (KNOPFLI, 2003, p. 261– MVS), "oculta no tambor das balas" (KNOPFLI, 2003, p. 261 – MVS) e trará destruição e morte evidenciadas por meio de uma metáfora dissonante – "(...) a flor / que nos desabrocha alucinada as entranhas / e nos esmaga o peito (...)" (KNOPFLI, 2003, p. 261 – MVS) –, na qual associa a flor que desabrocha a uma bala que perfura as entranhas de um homem. E finaliza, sem esperança: "Inútil qualquer precaução. Virá." (KNOPFLI, 2003, p. 261 – MVS).

Virá no bojo nocturno do avião, na sede inextinguível do carburador, oculta no tambor das balas,

presa ao decisivo dedo indicador. Será o coágulo negro que tomba no declive suave da artéria, a flor

que desabrocha alucinada nas entranhas e nos esmaga o peito e nos lateja nas fontes e nos enreda em funestas espirais.

Respire fundo, não faça esforços Demasiados, precisa muito repouso. Inútil qualquer preocupação. Virá. (KNOPFLI, 2003, p. 261 – MVS)

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Em "Festa" (KNOPFLI, 2003, p. 101 – OPO), o poeta descreve a celebração da independência, de acordo com sua sensibilidade, porque sabe que o melhor a fazer antes da comemoração é

pesar, respirar, captar as múltiplas vivências da tranquila alegria que irá brotar ininterrupta,

quando romper a manhã. (KNOPFLI, 2003, p. 101 – OPO)

A sua razão lhe diz isso e a paisagem que vislumbra não é positiva, mas tem um fio de esperança como pode ser verificado nos versos acima. O poeta trabalha com sobreposição de imagens; a primeira da negação de um cenário festivo, lascivo e dado ao álcool:

(...) Nada de estandartes desfraldados, bandeiras a baloiçar-se ao vento. Nem gritos, nem manifestações, nem meetings no bulício da praça. Tão-pouco a embriaguez desvairada, a louca conquista da rua. (KNOPFLI, 2003, p. 101 – OPO)

E a segunda imagem é de sobriedade por parte dos africanos "vencedores" que devem aprender, antes de tudo, a olhar para frente de rosto erguido:

Quando romper a manhã saibamos erguer a fronte ao sol puro. Em silêncio olhar de frente, na curva do horizonte, o novo sol nascente. (KNOPFLI, 2003, p. 101 – OPO)

O sujeito lírico não é apenas um observador desse cenário de transformação, mas também participa dele – vide o uso do verbo "saber" na primeira pessoa do plural do imperativo –, e, portanto, também deseja para si a sabedoria necessária do recolhimento.

O horizonte, mais uma vez, aparece como metáfora para o futuro, para a mudança; o infinito que se esconde logo ali, onde a vista não pode mais alcançar.

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Michel Collot (2013, p. 59) afirma: "O sentido de um texto literário, tal como o de uma paisagem, é indissociável de sua textura sensível, a saber, de seus significantes."

(COLLOT, 2013, p. 59). Rui Knopfli, no poema "Ars poética 66" (KNOPFLI, 2003, p.

240-242 – MVS), traça uma poética repleta de metáforas dissonantes que se fundem para dar origem a um poema hermético, porém debruçado sobre a metapoesia:

"Situações há em que não é possível / a comoção; / resulta o verso hermético e rarefeito" (KNOPFLI, 2003, p. 241 – MVS).

O poema divide-se em nove estrofes que se dobram sobre o fazer poético, em plena metapoesia. Como um tratado de bem escrever poesia, Knopfli aponta, segundo seus próprios conceitos, para questões cruciais de um bom poema: a) A hermeticidade e o fingimento:

Os meus versos nem sempre são aquilo que parecem e nunca dizem o que parece estarem a dizer. (KNOPFLI, 2003, p. 240 – MVS) b) A necessidade dos detalhes:

(...) o mínimo detalhe pode ter uma importância máxima.

Olhando o rio, há quem só veja a transparência das águas sem atentar no sofrimento das margens, tal como não é imediatamente óbvio que o cariz amargo destes versos (...) (KNOPFLI, 2003, p. 240 – MVS)

A paisagem está intimamente ligada à textura das palavras que despertam outros sentidos; no caso do poema citado, o sabor é amargo.

Para Michel Collot,

(...) a paisagem não poderia se reduzir a um puro espetáculo. Ela se oferece igualmente aos outros sentidos, e tem relação com o sujeito inteiro, corpo e alma. Não apenas se dá a ver, mas também a sentir e ressentir. Na paisagem, distância se mede pelo ouvido e pelo olfato, conforme a intensidade dos ruídos (...). Todas essas sensações

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comunicam-se entre si por sinestesia e suscitam emoções, despertam sentimentos e lembranças (COLLOT, 2013, p. 51)

Portanto, podem ser transformadas em poesia de boa qualidade questões que vão desde o simples olhar para as nuvens até o prelúdio da "(...) morte e a agonia, / cores de que vai tingir-se no papel do poema / e no horizonte do dia" (KNOPFLI, 2003, p. 241 –

MVS).

Outro ponto levantado pelo poeta é a autocrítica em relação à própria poesia, mesmo que de maneira irônica, pois é evidente sua vaidade em relação aos seus escritos; Knopfli é um poeta exigente consigo mesmo e atento à qualidade estética de seus versos:

São mal equilibrados, numa economia exígua de palavras, estes versos (...) Este aqui, comprido, deselegante, irrespirável pervertendo irremediavelmente o ritmo do poema (...) (KNOPFLI, 2003, p. 240-241 – MVS)

E completa com o que é realmente essencial para sua poesia, como se começasse mirando a paisagem delimitada pelo horizonte da ars poética, para, aos poucos, fechar- se e centrar-se no microcosmo geopoético de sua escrita, afirmando:

No essencial, porém, os meus versos não têm ambição maior que esta: A de serem os versos de um menino da cidade, vértice minúsculo no polígono do betão, do gin & tonic, do volante Nardi e do asfalto. (KNOPFLI, 2003, p. 242 – MVS)

Os sentidos poéticos dos versos knopfilianos são produzidos pela transfiguração das palavras comuns em matéria de poesia (DUFRENNE, 1969, p. 48). O poeta aprendeu a lidar com a metamorfose e a transcriação da linguagem e faz uso desses processos, buscando o estado primeiro da criação estética.

Como se opera esta triunfante metamorfose da linguagem? Da maneira mais simples; a poesia a restitui a seu estado primeiro, lhe devolve o vigor 111

e o frescor originais, a reconduz à natureza. (...) Natureza é antes de tudo necessidade. E esta necessidade é o indício da obra, quando ela é bela, antes do ser de sua matéria (DUFRENNE, 1969, p. 49)

Portanto, mesmo quando toca nas questões delicadas do contexto histórico- social e econômico de Moçambique e África, Knopfli consegue transfigurá-las, trazendo leveza ou mais peso à situação, somente com o uso de suas palavras, e cenários que pinta e referências às outras paisagens, sobretudo às literárias, como se depreenderá no trecho abaixo, em que o horror domina a cena:

Este outro, com toda a aparência de inocente, esconde um estupro horroroso, àquele, constrange-o certo tipo de anomalia inconfessável. Este aqui quis dizer... quis dizer, mas dissimulou, que por detrás dele espreitava a vigilância implacável de um sátrapa de olhos azuis. (KNOPFLI, 2003, p. 241 – MVS)

Para entender uma paisagem literária, deve-se considerar a maneira como ela é focalizada e expressa pelo escritor; por isso, nesta tese, evidenciam-se as diferentes facetas paisagísticas presentes na obra knopfliliana, pois se entende que,

no que concerne à paisagem literária, não se trata mais de reconduzir problemáticas obsoletas, como a do 'sentimento da natureza' ou investigações visando a identificar e a situar geograficamente o quadro evocado em tal ou tal texto (...) (COLLOT, 2013, p. 49)

O que se quer comprovar é que Rui Knopfli, com sua poesia, funda em

Moçambique uma nova literatura, cuja paisagem tem um papel de operador para as transformações literárias, histórico-sociais e pessoais. Nos poemas knopfilianos facilmente se encontra a negação dos moldes europeus, como alguns que já foram demonstrados ao longo deste estudo. No entanto, Knopfli não destaca apenas na negação da paisagem literária instituída pelo cânone europeu, pois, mais tarde, também nega o cânone da literatura moçambicana. É um poeta das margens, que nunca se alinha aos cânones.

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Assim, através de seu vasto conhecimento de mundo, oscila entre a negação de certos elementos como, por exemplo, a "rosa", que, em primeiro momento, não diz nada ao poeta, pois ele prefere as micaias – flores típicas de África –, para, mais tarde, afirmá-la como tema, ao descobri-la no poema "A descoberta da rosa" (Knopfli, 2003, p. 273 – MVS), justificando sua atitude primeira pela inexperiência como poeta, pela sua juventude e pela sua rebeldia:

Dez anos de poesia (...) (...) jamais me debrucei deveras sobre o tema da rosa. De resto eram para mim, creio, marginais as flores. Vícios de formação e juventude, uma tão intensa preocupação do humano que olvidei a discreta angústia da rosa. (KNOPFLI, 2003: 273 – MVS)

Knopfli trabalha arduamente cada verso, mesmo havendo negações a este procedimento em alguns de seus poemas. Ele é sempre um fingidor... É evidente o esmero com que a palavra é posta na linha do papel e sua combinação com o todo da poesia demonstra que Rui, com seu "(...) perfil / agudo de pássaro curioso" (KNOPFLI,

2003, p. 242 – MVS), vê "(...) paisagens só perceptíveis aos olhos / de quem quiser olhar-me bem nos olhos / que só são duros por pudor da ternura" (KNOPFLI, 2003, p.

242 – MVS), isto é, só são perceptíveis àqueles que também têm o olhar de poeta, de

"pássaro curioso".

Procurou-se explicar, por conseguinte, como o pensamento e o espaço na poética knopfiliana, por meio de metáforas e estruturas poéticas, exprimem ideias bastante abstratas (COLLOT, 2013, p. 35), mas não menos valorosas.

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3.1. Paisagens da África, ao Norte: O escriba acocorado e a revisitação da história

Seja um escriba. Isso lhe salvará da labuta e lhe protegerá de todo tipo de trabalho. Você será poupado de enfrentar a enxada e o alvião, de forma que não terá que carregar cestas. Você ficará livre de manipular o remo e será poupado de todo tipo de sofrimento (Um texto destinado a instruir os escribas, usado durante o Império Novo)25

O escriba acocorado – OEA (1978) foi escrito após a saída de Rui Knopfli de

Moçambique, o que traz um tom diferente a esta obra e marca a literatura do poeta, que, deste ponto em diante, mira a paisagem da perspectiva de fora para dentro, mudando de posição somente no âmbito memoralístico, o que pode ser evidenciado com mais força nos livros O corpo de Atena – OCA (1984) e O monhé das cobras - OMC (1997).

O escriba acocorado (anexo 4), que apresenta ironia e sarcasmo em alguns pontos, revisita a memória, a literatura e o mundo ascético de Rui Knopfli, já que resgata linguisticamente o tempo não só das entranhas das lembranças, mas também da imaginação. Já no poema "Proposição" (KNOPFLI, p. 377-378 – OEA), que abre o livro, o escriba começa a explicitar seus objetivos: depor sobre os acontecimentos históricos, sobre os sentimentos de poeta e sobre a literatura.

A figura do escriba depõe sobre a História, pelas linhas do papiro, amarguradamente. É o testemunho de um homem que não foi feliz diante dos acontecimentos, que não pôde suportar a situação e que partiu. O escriba, neste caso, é o personagem que conta no poema, mas também uma extensão do poeta, que tem a pretensão de marcar com o seu olhar certas paisagens físicas e literárias que o influenciaram.

25 In: http://www.fascinioegito.sh06.com/escribas.htm. Acesso em: 13/07/2014. 114

Deve-se entender que o escriba – figura importante no antigo Egito, pois além de saber escrever, cuidava também da administração das cidades26 –, metamorfoseia-se em poeta e vice-versa.

Servidor incorruptível da verdade e da memória, escrevo sentado e obscuro palavras terríveis de ignomínia e acusação. De pouca ternura também. Na penumbra deste recanto anónimo, a aranha sombria entretece na quebradiça

baba lucilante o fabrico da História que há-de ler-se. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 – OEA)

Nos versos acima, o escriba se apresenta: é aquele que tem uma responsabilidade com a verdade e com a memória, uma vez que cabe a ele narrar a História com imparcialidade. Todavia, sua escrita é hermética, porque escreve de modo obscuro

"palavras terríveis de ignomínia e acusação" (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 – OEA).

Observa-se o uso do vocábulo "obscuro", que deixa de adjetivar o espaço, para obscurecer o próprio contador, cujas palavras são denunciadoras e, por tal razão, precisam ser obscuramente dissimuladas.

Nesses mesmos versos citados acima, encontramos o "fabrico da História", apontando que este livro olhará para a História Geral e não apenas de Moçambique. E continua:

(...) Séculos de aprendizagem

me ensinaram uma humildade serena. Escrevendo, escrevo-me, reconciliando com os agravos suportados e as ofensas infligidas. Os olhos que mal vêem, viram e não querem esquecer. E o que vêem agora, descortina-o a exercitada

sabedoria de quatro sentidos despertos. (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 – OEA)

Esses versos evidenciam a fusão poeta e escriba, ambos são conhecedores de séculos de aprendizagem: o poeta, ciente dos séculos de literatura que traz em sua

26 In: http://www.fascinioegito.sh06.com/escribas.htm. Acesso em: 13/07/2014.

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bagagem; e o escriba, dos séculos de história e cultura que lhe foram passados para que pudesse exercer essa profissão. Para ambos, a escrita é o meio usado para se reconstruírem diante do mundo, como forma de se reconciliarem com suas memórias, formadas através de suas visões. Poeta e escriba depõem, pois, sobre o que viram e guardaram dolorosamente na memória:

Enganei e fui enganado à porta do tempo; no deserto aprendi com a sede a parcimónia. A um só tempo três mulheres amei e a nenhuma delas deveras amava. (...) (...) Venho de longe, no verbo latino, no axioma grego, fui escravo no Egipto, homens

morreram a meu lado e vendo-lhes os olhos agónicos e súplices, voltei horrorizado o rosto (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 – OEA)

Nesse trecho do poema não se sabe quem foi enganado ou quem amou três mulheres. O poeta? O escriba? Os dois? Ambos viram horrorizados os sofrimentos, a morte e a agonia; o escriba, por meio da escravidão, e o poeta, por meio da guerra. Não há uma definição à qual guerra se referem tais palavras, o que amplia e, mais uma vez, corrobora, a ideia de se contar uma história de horizontes profundos.

Esse poema é uma declaração amargurada de um poeta e escriba infeliz, apesar de suas tentativas de viver uma vida considerada, estereotipadamente, ideal –

"Engendrei filhos, plantei a árvore, ergui pedra / a pedra uma morada" (KNOPFLI,

2003, p. 377 – OEA) –; ele sente o peso da idade e do fim:

Imóvel, assomo agora ao limiar maldito onde,

à fugitiva luz que estremece e, roxa, coagula, velhos que ninguém conforta, hesitam e guardam, repartindo em partes iguais menos pão do que amargura resignada (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 – OEA)27

27 Nesse trecho há referências ao canto XXIV de A Ilíada, em que Príamo suplica a Aquiles, como fora evidenciado pelo próprio Rui Knopfli nos notas finais do livro O escriba acocorado (ver KNOPLFI, 2003, p. 407 – OEA).

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E caminhando para o final de sua proposição, evidencia que neste livro encontrar-se-á uma pintura de paisagens quebradas e sobrepostas – "Esta é a sequência das imagens quebradas que o sol / descarna" (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 – OEA) –, pois poeta, escriba e os moçambicanos são figuras frágeis e quebradiças, ocupando espaços ainda mais delicados: o espaço do não lugar, o espaço da história, o espaço das guerras, mas também o espaço das letras. Isso, porque Knopfli entende que:

(...) a poesia é uma coisa que transcende fronteiras. Há uma parte do Rui Knopfli que foi criada, foi fabricada, foi feita em Moçambique; (...) eu sou e serei até o fim um poeta em língua portuguesa – já tenho escrito coisas em língua inglesa, mas sou mais fraquinho (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 535)

Assim, fecha-se o poema com o objetivo final deste livro: emprestar sua voz para contar a história do outro – seja ele um anônimo, o poeta ou, ainda, o escriba –, marcando-a no tempo, já que "A História que há-de ler-se é por mim escrita. /

Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não." (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 –

OEA).

A paisagem apresenta um duplo movimento de territorialização e desterritorialização28, o que permitiu a Knopfli mirar, a partir do território da África do

Norte, a História, revisitando-a, e, por vezes, retirando seu caráter de território histórico- geográfico para inseri-la no território da geopoética. "Essa dialética do próximo e do distante inscreve na paisagem uma dinâmica bastante análoga ao duplo movimento de territorialização e desterritorialização" (COLLOT, 2013, p. 34).

Gilles Deleuze e também Guatarri conceituam "desterritorialização" como

A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída o território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte (DELEUZE. Apud: SANTOS, 2011, p. 159)

28 O vocábulo "desterritorialização" é empregado no seu sentido referencial de desenraizamento e também com a significação dada por Deleuze e Guatarri a este mesmo termo. Para esses filósofos, o conceito de "desterritorialização" apresenta um caráter de positividade, pois só os de "fora do lugar" veem além.

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Para esses teóricos, não há desterritorialização completa, uma vez que, ao sair de um território, ocupa-se outro. Rui Knopfli sofre o processo de desterritorialização, entretanto, passa a ocupar o território das letras.

Partindo da reflexão de que, a rigor, território é aquele de imobilidade [ainda segundo os teóricos citados acima] e organização, o efeito de desterritorializar é uma ação de desordem, de fragmentação, para descobrir e suscitar novos saberes menos convencionados, assumindo uma percepção extraordinária que está disposta a atrair novas ideias além das esperadas (SANTOS, 2011, p. 160)

O exílio, de certa maneira, trouxe a Rui Knopfli a liberdade para entregar-se a diversas paisagens, deixando que escrevesse sem o drama de não compor uma literatura de e para Moçambique: "Eu entendo que a poesia é uma coisa maior do que ser de, e que a poesia que nós fazíamos podia ser em Moçambique ou de Moçambique (...)"

(KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 534). Portanto, permitiu-se partir do Norte da África,

Egito, em direção ao mundo, sem amarras que o prendessem a seu país; livre, pôde olhar para o futuro, para o passado, para a história da humanidade como um todo.

É no poema "O escriba acocorado" (KNOPFLI, 2003, p. 448 – OCA), presente na obra O corpo de Atenas, que se define quem é esse escriba/poeta que, de cócoras, dobra-se à poesia. Primeiro, ele é um anônimo sem rosto e sem individualidades, assim como o poeta, cujo objetivo primeiro é a poesia e não a fama:

Sentado na pedra de ti próprio, não tens rosto, senão o que, de anónimo, a ela afeiçoou a mão que assim te quis. Do resto, do que de individualidade, porventura,

em ti existiria, se encarregou a persistente erosão dos dias. De vago, neutro olhar sem órbitas, permaneces hirto, fitando sempre mais além da morna penumbra que te envolve

no halo intemporal que é, do tempo, o nexo único. Nesse olhar de não ver tudo se inscreve, repensa e adivinha: teus limites e, ainda, o que excederia tua humana

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estatura. Sem contornos, em sombra e sono te diluis no que, de ti, nunca saberemos. Porém, límpida e escorreita, até nos chega a laboriosa escrita que no papiro ias lavrando. (KNOPFLI, 2003, p. 448 – OCA)

Poeta e escriba vão fundindo-se a cada verso transcorrido, entendendo-se que o

"neutro olhar sem órbitas" "fitando sempre mais além" (KNOPFLI, 2003, p. 448 –

OCA) já não pertence nem ao poeta, nem ao escriba, separadamente, mas aos dois em conjunto, já que ambos conseguem fitar para além do horizonte: o poeta, por seus versos, e o escriba, pela História.

Nota-se, ainda, que o escriba funciona como metáfora que reconta a história devedora do mundo, partindo sempre das referências literárias. Assim, o poeta afirma nas notas do livro O escriba acocorado:

Além disso, O escriba acocorado, não obstante depoimento pessoal, contém explicitamente um número considerável de referências literárias intencionais – a par das que nem tanto o serão – cuja paternidade, com maior número de razões, julgo necessário atribuir: (...) (KNOPFLI, 2003, p. 407 – OEA)

Tais referências estão relacionadas à literatura mundial e a seus personagens icônicos, como, por exemplo, A Ilíada e Aquiles, que são aludidos nas notas feitas por

Rui Knopfli: "Ao longo do texto, os vários tempos [se entrelaçam], o presente poético encontra também o pretérito representado pela evocação do canto XXII de A Ilíada.

(KNOPFLI, 2003, p. 408 – OEA); "Proposição – versos 40 a 44 – Reportam-se à súplica dirigida por Príamo e Aquiles, no canto XXIV de A Ilíada". (KNOPFLI, 2003, p. 407 – OEA).

Logo, entende-se que a história a ser transmitida pela pena do escriba possui horizonte mais amplo que abarca não apenas a história do mundo – que o escriba se propôs a contar –, mas também a história da literatura e a sua própria história de poeta/ escriba.

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Percebe-se, deste modo, claramente, no livro O escriba acocorado, a presença de três pontos de referências: (1) a histórica, com a figura do escriba, com a referência à guerra e à pátria, a denúncia da escravidão etc.; (2) a mitológica, com Atenas "(...) aos ardis de Atenas (...)" (KNOPFLI, 2003, p. 377 – OEA), por exemplo; (3) a literária e as pessoais, do poeta e do escriba.

O escriba-poeta depõe sobre uma história em ruínas:

O inconforto que adormece em nossas relações com o mundo exterior, um sentimento de que, estejamos onde estejamos, continuamos exilados, cresce dentro de nós e se mistura com melancolia, com amargura, com frustração, pelas ruínas que espalhamos pela História (LINS, 1993, p. 33)

Essa história em ruínas, composta por paisagens quebradas, toca a questão da pátria, no poema de mesmo nome. Em "Pátria" (KNOPFLI, 2003, p. 379-380 – OEA), encontra-se mais um exemplo de um panorama, que é entendido como um espaço visto, mas que não é habitado ou vivido, segundo Collot (2012, p. 210). Isto posto, nesse poema visualiza-se a paisagem do antes da guerra por meio de um voo panorâmico:

(...) Depois, com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos, aldeias, vilas e cidades com homens dentro, a paisagem estendia-se a perder de vista até ao capricho de uma linha imaginária. A isso chamávamos de pátria. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 379-380 – OEA)

Neste poema a ausência de contornos que dão relevo a paisagem, faz com que se esteja diante de uma descrição panorâmica, já que não se explana o que e encontra atrás de cada árvore ou entre as vielas das cidades, possuindo, portanto, uma visão geral do ambiente e não mais aprofundada.

Com o olhar voltado para a geografia, o poeta apreende a imagem de uma pátria tranquila, revestida pelo afeto da memória que filtra esse olhar, acrescentando ternura:

"A emoção sentida frente à paisagem é, para ele, mais que uma simples participação

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afetiva: é o signo de um pertencimento do espírito humano ao universo natural"

(COLLOT, 2013, p. 42).

Em seguida, inicia-se uma metamorfose da linguagem para indicar uma modificação de paisagem, traçando uma nova geopoética:

(...) Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente, o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados. Ou tambores de paz simulando guerra. Esta não terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 379-380 – OEA)

Há uma mudança no vocabulário que vai transformando a paisagem, do território no poema denominado pátria, antes da guerra de libertação – como já visto –, na paisagem deste mesmo território pós-guerra.

O sentido de um texto, como o de uma paisagem, baseia-se na disposição dos elementos que o compõem; é por sua aptidão para criar novas relações e solidariedade inédita entre as palavras que o escritor pode levar em conta a singularidade de sua relação com o mundo: 'trata-se de produzir um sistema de signos que restitui, por seu agenciamento interno, a paisagem de uma experiência, é preciso que os relevos, as linhas de força dessa paisagem induzam a uma sintaxe profunda, a um modo de composição e de narração, que desfaçam e refaçam o mundo e a linguagem usuais' (COLLOT, 2013, p. 47)

Nos versos de Rui Knopfli anteriormente citados, verifica-se, mais uma vez, a presença do adjetivo "obscuro", palavra que vai aparecer em muitos outros poemas de O escriba acocorado, sempre migrando de conotação; ora adjetivando o espaço / tempo /

História, ora a poesia. Aqui, volta-se para o vocábulo "recesso", que é entendido como pausa no tempo, de onde brota a possibilidade da quebra do silêncio, contrapondo, no verso seguinte, com o lugar do barulho, estereotipadamente africano: "canto bárbaro e dolente"; "gargalhada", "a lasciva surdina de corpos enlaçados" (KNOPFLI, 2003, p.

379-380 – OEA), e autenticando com a imagem de uma festa tribal – "Ou os tambores de paz simulando guerra" (KNOPFLI, 2003, p. 379-380 – OEA) –, que canta paz em

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ritmo de guerra, como um prenúncio óbvio de que ela virá. Entretanto, a estrofe e o enjambement, cuja finalidade neste poema é dar mais ênfase à ideia de continuidade das ações poemáticas, ocorrem para contradizer e ironizar essa obviedade, afirmando que a guerra nunca se anunciaria de modo tão remoto e convencional. E ao final do referido poema, através da conjunção adversativa "mas", ocorre uma mudança definitiva da paisagem para o cenário de guerra:

(...) Mas o sangue adubou a terra, estremeceu o coração das árvores e, meus irmãos, meus amigos morriam. Uma só e várias línguas eram faladas e a isso, por estranho que pareça, também chamávamos pátria. (KNOPFLI, 2003, p. 379-380 – OEA)

Os três primeiros versos são a descrição feita de metáforas, relacionada à terra – do sangue que aduba a terra –; ao que dela brota – o estremecimento das árvores, da mãe natureza; e ao que para ela volta, já que ao morrer retornamos ao seio da terra –, referência ao Gênesis 3:19, que afirma que "do pó viemos e ao pó voltaremos".

Constata-se um multiculturalismo dentro desta diferente "pátria", cujos habitantes nem sempre falavam a mesma língua, mesmo sendo conterrâneos.

A história, para além da guerra, é referida por meio do dia 25 de abril que conotará diferentes ideias ao longo do livro. O poeta explicita quais são os poemas pré e pós 25 de abril de 1974 – data da Revolução dos Cravos em Portugal:

(...) Esses são, realmente, os anos do remorso, da digestão, do exílio, de diáspora. Que se refletem no Escriba acocorado – que eu já tinha começado a escrever antes de sair de Moçambique, em 1971. (...) O primeiro poema "proposição", é anterior ao 25 de Abril. A "Pátria" não o é, foi escrito em Lisboa, já. Este, [sic] "O mesteiral de Ilium" é anterior. Este poema é talvez o mais antigo do livro: Heróis e mitos", foi escrito em Quelimane, muito antes de 25 de Abril, foi publicado na Colóquio, com uma ou outra variante. (...) "Imagens quebradas" é posterior ao 25 de Abril, não posso situá-lo. (...) Pois. "Ao lume da água" é anterior ao 25 de Abril. "Encantações e exorcismos", este, vou-lhe explicar, é possivelmente dos mais antigos do livro... (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 550-551)

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O dia 25 possui diferentes marcas históricas, a primeira delas, o início da guerra de descolonização/libertação em 25 de setembro de 1964; em seguida, já citada, a derrubada da ditadura Salazarista no dia 25 de abril de 1974; e a independência de

Moçambique em 25 de junho de 1975.

Em "Heróis e mitos" (KNOPFLI, 2003, p. 383-385 – OEA), parte-se do espaço literário e mitológico da guerra de Troia, para metaforizar o espaço real da guerra histórica que foi a Revolução dos Cravos. Neste poema, muitas referências são lançadas para compor um cenário que dialoga com o heroísmo das histórias gregas – "Em breve choraremos Heitor, Pai, / sobre ele se abaterá a ira / implacável de Aquiles" (KNOPFLI,

2003, p. 383-385 – OEA) – e com a força implacável do colonialismo e da ditadura – metaforizada por Aquiles –, causadora dos choros pelas quedas de bravos "Heitores" que tentaram fazer a diferença.

Porém, entre a dualidade Heitor x Aquiles/Colonizador x Colonizado, tem-se

No gineceu Hécuba, absorta e envelhecida, lê horas a fio, de Hermann Broch

a James Hadley Chase. (KNOPFLI, 2003, p. 383-385 – OEA)

É clara, nesses versos, a referência à tragédia grega de Eurípedes, Hécuba e as troianas, que, ironicamente, é antibélica, tanto que Hécuba encontra-se em leitura absorta – e não em luta – de dois autores emblemáticos para a história da literatura:

Hermann Broch e James Hadley Chase. O primeiro, Broch, é escritor austríaco do século XIX que produziu romances de cunho profético em relação à existência do nazi- facismo. É considerado um autor modernista, já à frente de seu tempo, assim como o poeta Knopfli, que também previu a aproximação da guerra e possuía ideias incompatíveis com sua geração. O segundo escritor citado, James Hadley Chase, também conhecido por René Lodge, entre outros pseudônimos, escreveu obras

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ambientadas nos Estados Unidos da América, só tendo ido a esse país uma única vez, provando que a literatura deve ser livre de amarras territoriais, pois o que está em jogo é a implementação de uma nova geopoética, assim como pensava Knopfli ao partir do norte da África para o seu voo poemático.

O exemplo histórico demonstra o impacto da contradição. Por um lado, manifesta-se a necessidade da instauração de mudanças; por outro lado, o desgaste político, psíquico e social diante do imperativo de se decidir pela mudança interrompe a ação (LINS, 1993, p. 27)

Knopfli tem noção da força do exemplo histórico como manifestação de mudança, tanto que, mais uma vez, volta, no poema "Metamorfose" (KNOPFLI, 2003, p. 400-401 – OEA), à questão do dia 25 de abril com versos metafóricos que pintam uma paisagem de sangue:

As estações. A crueldade de Abril engendrando flores, o ponteiro curando de impor ao quadrante o rigor escamoteado pela fluidez nebulosa, o sangue ansioso entre a sístole e a diástole, o sangue atónito entre o rumor e o silêncio. (KNOPFLI, 2003, p. 400-401 – OEA)

Nesse mesmo poema, a figura histórica de Platão e o espaço da Antiguidade são trazidos em forma de questionamento do poeta/escriba, pois ambos tiveram os destinos ligados às letras e às filosofias antigas: "(...) as coisas que Platão escreveu e os sábios / desde a mais remota antiguidade estudam, / pergunto-me se o meu destino nisto se concertou:" (KNOPFLI, 2003, p. 400-401 – OEA). Portanto, há uma paridade entre o filósofo grego e o escriba africano, como se o segundo ainda se questionasse sobre seu destino de continuador e transmissor de pensamentos e conhecimentos ao longo dos séculos.

Em "Mesteiral de ilium" (KNOPFLI, 2003, p. 381- 382 – OEA), mais uma vez, a literatura e as figuras históricas são trazidas ao poema. Primeiramente deve-se entender o título que remete a alguém vindo de Troia, cuja profissão seja artesanal. O poeta, por exemplo, que faz das mãos instrumentos de transmissão de seus afetos. E

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Knopfli, nas notas do fim do livro, aponta para a primeira figura referenciada no poema

"Com perdão de Virgílio, mesmo as ofertas divinas requerem a intervenção da mão instrumentalizadora do artífice" (KNOPFLI, 2003, p. 408 – OEA);

Em seguida, percebe-se que o poema também expõe a evolução científica, representada pela figura de Galileu Galilei, pois essa personagem histórica contribuiu para o entendimento do panorama científico de hoje, já que, por meio de seus estudos matemáticos, físicos e astronômicos, o cientista italiano descobriu a lei dos corpos, enunciou o princípio da inércia e defendeu a posição heliocêntrica do universo.

Dobrado para trás, o corpo em arco tenso, percebeu no firmamento a Via Láctea29, cascata lenta de cristais giratórios tombando derramada para lá do horizonte. Um instante se suspendeu, conjecturando

se espaço e terra e ele, elos da mesma continuidade cósmica, pulsando em uníssono, constituiriam fracções de um acabado e unívoco todo. (KNOPFLI, 2003, p. 381-382- OEA)

Conclui, a seguir, com a constatação da mudança de pensamento em relação ao universo: "De côncavo, o céu tornara-se convexo" (KNOPFLI, 2003, p. 381-382 –

OEA). Portanto, nota-se que o poeta-escriba tem um olhar que vislumbra a história da ciência do mundo, a mudança de pensamento significativo para a humanidade, como as ideias de Platão, os poemas de Virgílio e as descobertas de Galileu Galilei.

(...) Compreendeu:

tentativa, mas inexoravelmente, sábios, os tentáculos luminosos procuravam-se. Edificação imemorial, porém exausta e ameaçada de ruína, (...)

A prazo indeterminado o gelo insuportável de uma luz eterna substituiria o modular das estações, o ritmo pendular dos dias precedendo as noites. O seu tempo seria, ou não, um segmento ínfimo

29 Galileu Galilei descobriu também a Via Láctea.

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daquele tempo outro, imensurável, (...) Por tal motivo retornou a ferramenta e voltou com afinco à tarefa interrompida. (KNOPFLI, 2003, p. 381-382 – OEA).

O olhar do poeta-escriba também se volta para a força que a religião cristã teve na História, e, com o poema "Livro das Horas" (KNOPFLI, 2003, p. 398-399 – OEA), questiona o catolicismo e a visão cristã instituída por ele. A expressão "Livro das horas", além de nomear o poema, é também o nome de um livro de oração sagrado comum na Idade Média, ricamente ilustrado, que era usado como forma de ligação direta com Deus, sem precisar mais da mediação da igreja para comunicar-se com o

"Criador". Com esse título, metaforiza-se a relação que o poeta/escriba tem com a religião, isto é, a comunicação com Deus pode ser feita por livros e, melhor ainda, pelo poema, sobretudo o intitulado "Livro das Horas".

Entretanto, o escriba, que muito viu, não poderia abster-se de relatar sobre questões relacionadas à religião como, por exemplo, a Torre de Babel, retratada no poema "Babel e o labirinto" (KNOPFLI, 2003, p. 396-397 – OEA), e o poeta, pelo muito que viveu, usa o mesmo poema como metáfora para comentar sobre o 25 de abril histórico e, também, literário, conforme confessa em entrevista: "Claro que é Eliot, que

é meu mestre, aqui em "Babel e o labirinto". Tem duas coisas: tem o Abril de 25 de

Abril e o Abril do Eliot, mas o fundamental é o Abril do Eliot." (KNOPFLI. In:

LABAN, 1998, p. 554).

Primeiramente, esse poema remete à história simbólica da torre, cuja rica significação é a seguinte: forma de ligação dos homens com o céu, eles buscavam construir uma torre que permitisse a humanidade atingir o espaço da divindade, ao mesmo tempo em que se aprofundava em labirintos subterrâneos, ligando-se aos mundos profundos também. Entretanto, tal petulância humana fez com que Jeová

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acabasse com a empreitada, confundindo as línguas e dispersando os homens pelo mundo:

(...) a Torre de Babel tornou-se a obra do orgulho humano, a tentativa do homem que pretende subir à altura da divindade e, sobre o plano coletivo, da cidade que se levanta contra Deus (...). Foi por essa razão que Jeová dispersou seus edificadores: Todo mundo servia-se de uma mesma língua e das mesmas palavras. (...) Jeová então desceu para ver a cidade e a torre que os homens haviam construído. E disse: Vejo que todos formam um único povo e falam uma só língua, e tal é o princípio de suas empreitadas! Nenhum desejo agora para eles será irrealizável. Vamos! Vamos descer e confundir sua linguagem, para que eles não mais se compreendam uns aos outros. Jeová, de lá, os dispersou sobre a superfície da terra e os homens pararam de construir a cidade. Por isso foi chamada de Babel, pois foi onde Jeová confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi de onde os dispersou por toda a superfície da terra. (Gênesis, 11, 1-9) Símbolo de acordo orgulhoso e tirânico, ao mesmo tempo de confusão, dispersão e de catástrofe, tal é o sentido da Torre de Babel. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p. 888-889)

As metáforas de Babel, no poema de Knopfli, é representativa de Moçambique e da preocupação do poeta com os rumos da futura nação "(...) Não aquece em Abril o sol

/ da primavera." (KNOPFLI, 2003, p. 396-397 – OEA). Uma atenção especial é dada à

Babel poética, pois a confusão da linguagem que Jeová criou está presente em "Sílabas dissonantes cunhadas na têmpera / de novos metais gelam no ar translúcido"

(KNOPFLI, 2003, p. 396-397 – OEA), versos que apontam também para a confusão de ideias e vontades que Knopfli prevê em um Moçambique pós-guerra: serão todos irmãos, mas não se compreenderão, porque suas línguas serão diferentes, isto é, suas vontades não se emparelharão.

(...) Cegos caminhamos a ocultas de nós próprios, enquanto nós próprios nos espreitamos outros desde um mapa longínquo e luminoso

que sabe ao fruto perdido da inocência. (KNOPFLI, 2003, p. 396-397 – OEA)

Nesses versos, encontram-se os conceitos da paisagem que observa e é observada ao mesmo tempo, mas, paradoxalmente, é um observar vindo por outros sentidos, já que "cegos caminham": "A paisagem não poderia se reduzir a um puro

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espetáculo. Ela se oferece igualmente aos outros sentidos, e tem uma relação com o sujeito inteiro, corpo e alma. Não apenas se dá a ver, mas também sentir e ressentir"

(COLLOT, 2013, p. 51). Essa metáfora, do caminhar na cegueira, aponta, ainda, para as incertezas que o futuro, que não se mostra em nenhuma forma de luz, somente na escuridão que o poeta/escriba pressente.

Pode-se verificar essa outra relação que Knopfli cria com a paisagem em poemas como "A salamandra e o fogo" (KNOPFLI, 2003, p. 402-403 – OEA), em que resistir é a mensagem metaforizada pela figura da salamandra, uma manifestação viva do fogo, mas que também se refere a um hieróglifo de homem morto de frio, no Egito, ou, ainda, a representação do justo, no período medieval (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p. 778-779).

Além dessas roupagens, no poema, atribui-se à salamandra a metáfora da resistência dos homens em relação à guerra: "Resistir, porém. Permanecer (...)", "(...) da salamandra a persistência" (KNOPFLI, 2003, p. 402-403 – OEA); e do poeta/escriba em relação à vida: "Esquecido antes do rescaldo e das cinzas / sobreviver: um teimoso e rude / perfil (...)"; "Caminhar, prosseguir, levar por diante / a escura lâmpada de

Guernica, / o pergaminho cobrado no deserto." (KNOPFLI, 2003, p. 402-403 – OEA).

Na paisagem, distância se mede pelo ouvido e pelo olfato, conforme a intensidade dos ruídos, segundo a circulação dos fluidos aéreos (...), e a proximidade se experimenta na qualidade tátil de um contorno, no aveludado de uma luz, no saber de um colorido. Todas essas sensações comunicam-se entre si por sinestesia e suscitam emoções, despertam sentimentos e acordam lembranças (...) (COLLOT, 2013, p. 51)

Portanto, os versos sinestésicos do poema "A salamandra e o fogo" (KNOPFLI,

2003, p. 402-403 – OEA) evidenciam um aspecto da paisagem que é aguçado por outros sentidos diferentes da visão; contudo, que ao transcrevê-lo em poema, a linguagem exigirá o uso, via palavras, do olhar como aguçador dos diferentes sentimentos objetivados pelas linhas poemáticas. Isto é, mesmo não sendo necessária para uma

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paisagem física, a visão, dentre outros sentidos, será sempre primordial para a linguagem literária.

(...) da carne em sofrimento

o funesto estrugido anseia ouvir. Epiderme de amianto, olhos de cristal, indecifrável arremedo de reptilínea fleugma, forjada na fria dor de outros limes menos indulgentes,

observá-los por entre o denso fumo que os perturba, com o meio sorriso de vaga troça que a vacilante postura do fogo consente e acautela. (KNOPFLI, 2003, p. 402-403 – OEA)

Há uma fusão poética das paisagens histórica e literária, impossibilitando de diferenciá-las, como no poema "Encantações e exorcismos" (KNOPFLI, 2003, p. 390-

391 – OEA), em que o profano e o sagrado se encontram dicotomizados dentro da lógica do título do poema que ora remete às encantações via memória – "Ténues, vacilam as lembranças, / deslocando-se na confusa retina da memória" (KNOPFLI,

2003, p. 390-391 – OEA) –, ora aos exorcismos, com elementos que se referem ao sagrado, como, por exemplo, a paisagem de festa que dialoga com tal dicotomia, já que, utilizando-se vocábulos negativos, corta-se a ideia de ambiente celebratório:

(...) Na tarde bandeiras mortas de alegria. Excedendo a luz, altas paredes emolduram obscuras máscaras de emudecido pranto. (KNOPFLI, 2003, p. 390-391 – OEA)

A figura de Amos, que será trabalhada adiante, a relação com a tragédia grega e os sintagmas como "salmodiam", "anjo tutelar" e "anjo negro" (KNOPFLI, 2003, p.

390-391 – OEA) sustentam a dicotomia entre o profano e o sagrado.

A imagem do corredor, como ambiente de passagem de um lado a outro, sem a possibilidade de desvios, reforça a ideia de emparedamento, da falta de escolha do sujeito poético e, principalmente, a metáfora de linha do tempo, como se pudesse haver

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um atravessamento temporal por meio deste espaço em que o passado é deixado para trás no corredor, o presente está acontecendo a cada passo com o qual se encaminha para o fim, que é a luz do futuro.

O poema já inicia com uma brincadeira de sentidos incompletos. A conjunção

‘que’ e a preposição ‘em’ finalizam períodos, deixando aberto o que aconteceu em algum lugar: "Ao longo do corredor que. No fim do corredor / em." (KNOPFLI, 2003, p. 390-391 – OEA). Para, em seguida, a sinestesia das palavras recriar paisagens da memória:

(...) Ou, por outra, na sala de sombra por sobre a superfície de um chão de cimento polido a cera vermelha. (...) (...) Ténues, vacilam as lembranças, deslocando-se na confusa retina da memória. (...) Para lá do court de ténis, meu pai assobia do outro lado da infância. (...) Esvoaçam quebradiças sobre o canavial rumo à linha de figueiras-bravas. Seguimos o féretro a passo lento. Onde não sobejam lágrimas. Lento e absorto, entre lápides e memórias,

pedras e esquecimento. (...) (KNOPFLI, 2003: 390-391 – OEA)

Uma figura bíblica é trazida ao poema "Amos", contudo, esse homem carrega, poematicamente, muitas significações: Amos do Velho Testamento da bíblia cristã;

Amos da tragédia grega de Eurípides, que dialoga com a tragédia de Amos, homem real que Knopfli conheceu, cuja história foi de condenação à prisão perpétua, decido ao assassinato de sua esposa e do amante dela – "uma tragédia passional" (KNOPFLI. In:

LABAN, 1998, p. 552). O Amos real foi trabalhar como mordomo na casa dos pais de

Helder Macedo e, desta maneira, esse homem atravessa o olhar observador de Knopfli.

Assim, temos um personagem bíblico, um trágico grego e um histórico moçambicano que se encaixam, no poema, formando um único: o Amos poético.

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(...) A que vêm aqui, urdidas na sombra móvel, estas figuras de tragédia antiga? Sinuosa e lânguida salmodia

uma voz recôndita nos fundos do quintal. Amos, meu velho e gentil gigante, que pavoroso crime pesa sobre o teu silêncio empedernido, que encoberta mágoa talhou a amargura do teu perfil asteca. (KNOPFLI, 2003, p. 390-391 – OEA)

Knopfli finaliza o livro O escriba acocorado com o poema "Posposição"

(KNOPFLI, 2003, p. 405-408 – OEA) que se refere às ideias lançadas no poema que inicia a obra "Proposição" (KNOPFLI, 2003, p. 377-378 – OEA), dicotomizando e concluindo, dessa forma, as propostas. Agora o escriba/poeta já se sente com dever cumprido de contar a(s) h/História(s):

(...) Pouco importa: o que eu havia a dizer eu o disse com frontal clareza. Estancou o caldal do pranto onde manara já o ímpeto da alegria. Escrevo contra o silêncio. (KNOPFLI, 2003, p. 405-406 – OEA)

O poeta/escriba afirma, nesse último verso citado, o real objetivo de sua escritura: acabar com o silêncio da História, dos "perdedores", dos silenciados.

Da mesma forma como começa o primeiro poema do livro, aqui, o poeta-escriba também se encontra acocorado a escrever sob a fraca luz do dia: "Escrevo sentado sob a fraca luz que do alto desce." (KNOPFLI, 2003, p. 405-406 – OEA), contudo, diferentemente do primeiro em que se propõe a tecer as histórias tendo sempre a verdade como premissa, neste, quer vencer o silêncio em seus diferentes modos, chegando à conclusão de que:

(...) Sobram-me

exíguos e difíceis companheiros: a roxa luz do ocaso, meia dúzia de livros de alguma poesia árdua e monótona, um ou outro filósofo de guardado renome, a música sempre redentora, silêncio, a noite e mais silêncio.

Em cada lugar devoluto um rosto ausente, um olhar velado confluindo sobre a mesma paisagem de sol e agitada sombra. 131

(KNOPFLI, 2003, p. 405-406 – OEA)

Knopfli se joga em seus versos, olhando, como espectador do tempo, tanto a história da literatura, quanto a história mundial, já que as fronteiras foram diluídas e, agora, o sujeito que olha é persona30; é o poeta e o escriba que entendem o silêncio como algo fundador: "O silêncio não é vazio, ou sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma instância significativa. Isso nos leva à compreensão do 'vazio' da linguagem como um horizonte e não como falta" (ORLANDI, 2007, p. 68). Portanto, o poeta moçambicano, que se transveste de escriba egípcio, preenche os espaços com o vazio poético, forma profunda de discutir as mazelas e os afetos nas entrelinhas do poema, como já percebido ao longo desta tese.

Para Rui Knopfli o silêncio e o vazio da poesia servem como abertura para o horizonte e suas diferentes possibilidades. Não podendo, destarte, ser entendido, no caso do poeta como uma falta ou ausência aprisionadora, mas, sim, como força motriz para a movimentação rumo ao horizonte.

Percebendo, por conseguinte, esse vazio silencioso da linguagem, Knopfli consegue romper com as últimas amarras que o prendiam a um conceito redutor de poesia, e entrega-se a esta como um escriba o faz com suas histórias.

30 Neste texto, o vocábulo persona tem a acepção utilizada pela psicologia e não a do teatro grego.

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3.2. Paisagens insulares: a Ilha de Próspero e o repensar do colonialismo

Para mim, A Ilha de Próspero é a negação – ou é a outra face – da moeda que é a Mensagem, com seu sentido épico. (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 546)

Rui Knopfli, nesta fala, usada como epígrafe, aponta o caminho seguido por ele em A ilha de Próspero – AIP (1972). Concorda-se que este livro efetua uma continuação do tom épico iniciado em Camões, retomado por Pessoa e refigurado por

Knopfli. Refigurado porque, agora, o tom deixa de ser celebratório, para, sob o olhar dos vencidos, cantar e repensar o colonialismo e a decadência do Império.

Segundo Alexandre Lobato, como já foi referido, com A ilha de Próspero, Knopfli dá seguimento à tradição épica portuguesa iniciada por Camões e retomada por Pessoa, mas renunciando ao "frêmito" renascentista do primeiro e obviando a "majestade estática" do segundo. Segundo Lobato ainda, a obra de Knopfli não deixa de ser ela própria uma epopeia sincretizada, "um recortar da História em que o mito [da originalidade e invencibilidade portuguesa] é fragmentado na sua totalidade", e "se reveste de uma condição angustiosamente humana" (MONTEIRO, 2003, p. 136)

Partindo de uma aproximação entre as ilhas, a real e física, a Ilha de

Moçambique – a ilha histórica – e a ilha ficcional – ou a ilha do poeta –, refletem sobre a história da Ilha de Próspero como metáfora do colonialismo e, também, do desassossego, como afirma Rita Chaves (2002, p. 96):

(...) a ilha organiza-se como a metáfora de uma identidade em desassossego, num processo que mistura recusa e perseguição, muito distante de encontrar no terreno da subjetividade a serenidade que as monções ofereciam à difícil arte de navegar (CHAVES, 2002, p. 96)

Devido a seu caráter circular e a seu distanciamento do continente, cujos

"caminhos [eram] sempre abertos para o mar" (KNOPFLI, 2003: 349 – AIP), o horizonte paisagístico de uma ilha traz a profundidade do infinito e do enclausuramento:

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mar longo e abissal, céu e uma linha do horizonte que se perde, não mais distinguido cada elemento neste infinito azul.

Diluída essa primeira fronteira, a ilha também carrega o imaginário das viagens e dos sonhos: "Como local por excelência de utopias, as ilhas se ligam aos desejos inconscientes que foram recalcados no silêncio do outrora, projetando também, entretanto, esperanças a se realizarem em tempos futuros." (SECCO. In: Metamorfoses,

2002, p. 16) –, mas a ilha de Knopfli se despe desse imaginário para enxergar a paisagem da colonização e do imperialismo, também revelando desejos recalcados do observador-poeta, porém, sobretudo, evidenciando a decadência e a desesperança no modelo de colonização.

A Ilha de Moçambique tem uma importância para este repensar a história e também a literatura, pois:

Historicamente, essa ilha guarda a memória de conflituosas e tensas relações entre África, Brasil e Portugal. Literariamente, foi cantada por vozes de grande expressão: Camões, Jorge de Sena, Tomás Antônio Gonzaga (exilado na Ilha) e, naturalmente, por muitos poetas moçambicanos: Rui Knopfli, Alberto de Lacerda, Orlando Mendes, Glória de Sant'Anna, Virgílio de Lemos, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Nelson Saúte e outros (SECCO, 2002, p. 15)

Rui Knopfli, consciente da importância de Muipíti, tece uma paisagem, que "(...)

é configurada, ao mesmo tempo, por agentes naturais e por atores humanos em interação constante: é, portanto, uma coprodução da natureza e da cultura em todas as suas manifestações (...)." (COLLOT, 2003, p. 43).

Assim, percebendo os vários intercruzamentos culturais, literários e históricos presentes neste espaço circular, o poeta repensa a situação vigente do fim do colonialismo em uma escala macro, a partir da escala micro que a ilha representa.

Afinal, a Ilha de Moçambique fora local em que árabes, indianos e africanos, principalmente bantos e macuas interagiam antes da chegada dos portugueses e de seu

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modelo de apagamento cultural da memória dos vencidos. Entretanto, há nesta ilha vestígios dessas presenças passadas, como uma memória que resiste a todas as mudanças do tempo.

Segundo Rita Chaves, no capítulo "A Ilha de Moçambique: entre as palavras e o silêncio", presente no livro Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários (2005), a poesia de Knopfli, a de Luis Carlos Patraquim e a de Eduardo White trabalham com sobreposições de imagens que o imaginário da ilha oferece, por meio de suas referências. Assim, "De certo modo, na relação com a Ilha projetam-se as conturbadas relações com Moçambique, o país em composição, a nação em montagem, esse chão convulso onde, em movimento, se articulam desejos e tensões." (CHAVES,

2005, p. 215).

A ilha de Próspero fora publicada em 1972, ano de comemoração pelos quatrocentos anos da primeira edição d'Os Lusíadas. Contrapondo diretamente o tom celebratório com que Camões cantou os feitos de Vasco da Gama e sua honrada gente lusitana, Knopfli revela o fim dessa história iniciada pelo grande poeta português, evidenciando que as conquistas abertas a partir da viagem do virtuoso marinheiro terminam de maneira desastrosa e decadente, como se pudesse prever a Revolução dos

Cravos, iniciada alguns anos após.

A paisagem da ilha física descrita nos poemas revela um lugar de tédio e abandono, com muitas referências às diversas culturas que ali passaram e com a presença marcante dos elementos poderosos da colonização. Isto se dá por meio de construções que dizem:

Escasso como a praceta defronte, como a ilha, como o céu estrangulado pelo aperto dispneico das vielas. (...) Na mesa dos fundos (...) (...) – um arabista paulatino

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traduz do francês um texto urdu. (KNOPFLI, 2003, p. 352 – AIP)

Nesses versos, há presença dos outros que não os portugueses ou africanos, mas os árabes. Árabes que têm conhecimento de línguas e cultuam seu deus nas mesquitas, contradizendo a ideia de paganismo e selvageria imposta pela colonização portuguesa em relação aos asiáticos. Ou ainda, nos versos abaixo, em que Knopfli se rende totalmente ao Oriente, renegando a arrogância colonizadora lusitana e exaltando Maomé ao invés de Cristo, chegando a dar a este uma fisionomia moura.

(...) Pórticos, frontarias, o metal das armas e o Poder exibem sua sigla a arrogância do conquistador. Porém o mel de tâmaras que modula o gesto dessas gentes, o cinzel que lhes aguça a madeira dos perfis,

a lenta chama que lhes devora os magros rostos, meus são. Dolorido e exangue o próprio Cristo é mouro da Cabaceira e tem a esgalgada magreza de um velho cojá asceta.

Raça de escribas, mandai, julgai, prendei: Só Alá é grande e Maomé o seu profeta. (KNOPFLI, 2003, p. 355 – AIP)

O processo de colonização portuguesa fora feito por uma metrópole fraca, que não conseguira acompanhar o ritmo do mundo e passar pela revolução industrial; portanto, fizera da Igreja Católica uma grande aliada para a dominação/desestruturação de seus territórios em África:

Admitir de uma vez por todas, sem titubear por receio das consequências, que na colonização o gesto decisivo é o do aventureiro e do pirata, o do mercador e do armador, do caçador de ouro e do comerciante, o do apetite e da força, com a maléfica sombra projetada por trás por uma forma de civilização que em um momento de sua história se sente obrigada, endogenamente, a estender a concorrência de suas economias antagônicas à escola mundial (CÉSAIRE, 2010, p. 17)

A igreja, para "marcar" a presença portuguesa, assumia a responsabilidade de

"acção de dominação/desestruturação cultural" (CABAÇO, 2009, p. 93). Knopfli percebeu essa força religiosa no processo de imposição colonial e voltou seu olhar para os vestígios católicos deixados em Moçambique, símbolos de uma época de opulência e

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poder, demonstrando que agora restava decadência na paisagem atual e futura do

Império. O poema "S. Paulo" (KNOPFLI, 2003, p. 356 – AIP) corrobora esta ideia.

O Palácio de São Paulo construído em 1610, com a função inicial de servir de colégio para a Companhia de Jesus, para depois exercer a função de residência de governadores e, por fim, tornar-se um museu, é representado na poesia de Knopfli como um local de muitas lembranças, afetos e histórias:

Povoado de sombras e fantasmas, é ranger de passos o que escutamos, ou apenas o estalido que o tempo arde na madeira ressequida dos sobrados? (...) Não só as portas e os muros. Também as sombras. E os fantasmas. (KNOPFLI, 2003, p. 356 – AIP)

São os fantasmas da imposição católica e colonial que se fazem ecoar pelas salas do palácio e pelas linhas do poema. Tal local, cuja importância histórica é inegável, foi vítima, assim como a ilha e Moçambique, das perversidades desse sistema.

O simbolismo de A ilha de Próspero, denúncia de um misto de desencanto e fascínio, funciona como um agrupamento de 'correlativos objectivos' que propiciam um conjunto de imagens exprimindo diferentes ideias e sensações. E é assim, aproveitando superiormente a cor local, que Knopfli reinventa e revitaliza o conflito Calibam e Próspero, isto é, a tensão entre o elemento autóctone e o conquistador (NOA, 1997, p. 54)

Por meio da personificação do Palácio, o poeta pinta a paisagem de seu destino, mostrando que, com suas treze órbitas, ele pode mirar o mar e o horizonte, como o fez durante todos esses séculos e visualizar o vazio externo e interno, pois, fora espoliado e usado de acordo com os vários e diferentes interesses que passaram sob seu teto – assim como a própria Ilha de Moçambique:

Pilhado, sangrado, espoliado pela voraz cobiça de sátrapas, clérigos e soldados, apenas te largaram a pesada alvenaria rectangular, treze órbitas vazias com que fitas a praça, e o mar em frente (...) (KNOPFLI, 2003, p. 356- AIP)

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A obra A ilha de Próspero remete à peça de William Shakespeare, A tempestade, como já referido, que possui grande aproximação com as questões coloniais, pois trabalha com as lutas pelo poder e dominação (Próspero), com a relação de submissão

(Calibam31, que teve sua ilha dominada por Próspero, e tornou-se seu escravo, sendo-lhe também imputada a língua) e com a assimilação (Ariel personagem sempre a serviço de

Próspero).

A Ilha de Próspero é uma obra que mais do que a apreensão por Knopfli da essência do texto de Shakespeare – A tempestade, que tem como personagem central, Próspero – traduz a retroprojecção de toda uma constelação simbólica a partir de uma realidade geográfica de incontestável valor histórico e cultural: a Ilha de Moçambique (NOA, 1997, p. 53)

O poema "Ilha dourada" (KNOPFLI, 2003, p. 76 – OPO), primeiramente publicado em O país dos outros, aparece também na segunda edição, em 1989, de A ilha de Próspero. O aprisionamento, a desesperança e as características de uma paisagem prisioneira e cansada evidenciam as relações de Próspero-colonizador e

Caibam-colonizado.

Segundo Fátima Monteiro (2003), ocorre em "Ilha dourada" (KNOPFLI, 2003, p. 76),

O lamento, do sujeito poético em particular, [que] deverá ser lido principalmente como entendimento pelo mesmo sujeito da sua condição trágica dum Calibam exilado na pátria. Uma condição que lhe permite o amargo prazer de, diferentemente de Próspero, sentir-se a si próprio, como as "ruas prisioneiras e velhas casas" a que alude o poema, "um prisioneiro" da história. Então, o sujeito poético de "Ilha dourada" é, finalmente, aquele que recebe de Próspero, ou do colonizador, um legado de expropriação que o converte, por ironia da mesma história, num sujeito, também ele, expropriado de naturalidade, melhor dizendo, de nacionalidade (MONTEIRO, 2003, p. 63)

A relação de assimilação, comum na colonização portuguesa, também é trazida à reflexão por meio do poema "Canção de Ariel" (KNOPFLI, 2003, p. 361). Ariel, em

31 Como já citado anteriormente, não há um consenso sobre a escrita do vocábulo "Calibam ou Caliban". Segue-se, portanto, o modelo de escrita em Língua Portuguesa e, quando citação, obedecer-se-á ao original.

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Shakespeare, é o fiel servidor, que recebe em troca pela lealdade a sua "liberdade", muito próximo ao que relata Appiah em seu livro Na casa de meu pai (1997) ao tratar da questão da assimilação:

(...) Embora o quadro seja complexo demais para um resumo conveniente, a política colonial francesa, em linhas gerais, foi de assimilation – transformar africanos "selvagens" em negros e negras franceses "evoluídos" (...). Mesmo depois de uma brutal história colonial e de quase duas décadas de contínua resistência armada, a descolonização da África portuguesa, em meados dos anos 70, deixou atrás de si uma elite que redigiu as leis e a literatura africana em português (APPIAH, 1997, p. 20)

Knopfli vai cantar essa peça chave da colonização: o assimilado. Sua importância para o sistema imperialista é crucial, uma vez que ele é a figura de aceitação do status quo que recebe a linguagem e quer a máscara branca.

O poema é a descrição dos assimilados sob o olhar do poeta. Os adjetivos usados para referenciar esse "Ariel", metaforizador dos assimilados: "Esquálido de vultos aracnídeos", cheios de "condoída mágoa", de "magros ombros" e com "melancólico resignado olhar" (KNOPFLI, 2003, p. 361 – AIP), mas que são tão essenciais para a edificação da paisagem colonizadora: "Assim imóveis e mudos, cravados / nos muros, nas pedras, na paisagem" (KNOPFLI, 2003, p. 361 – AIP).

Os assimilados gozavam de vantagens junto aos colonos portugueses, e, por isso, de certa maneira, deram "(...) as costas à Terra firme, / cujo rumor, surdos, ignoram"

(KNOPFLI, 2003: 361 – AIP), não ouvindo o "tumulto que sobe do continente"

(KNOPFLI, 2003: 361 – AIP), e essa atitude, que não demonstra força e amor pelos seus, inquieta o sujeito poético que pergunta:

Que oculto fascínio, secreto ópio, da baixa coralina os atrai? Que vozes entorpecentes surdinas do abismo estarão ouvindo? (KNOPFLI, 2003, p. 361 – AIP)

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O que a Ilha, metáfora do aprisionamento colonizador, neste caso, possui de tão forte que entorpece esses moçambicanos que não conseguem se mobilizar com os ecos da revolta. É uma incógnita que se envereda pelo fato de

(...) só os assimilados, legalmente, não indígenas (embora socialmente discriminados) passavam a gozar do mesmo estatuto jurídico dos colonos, subordinando-se, como estes, ao regime vigente na metrópole. (...) A questão dos assimilados era decisiva para as sensibilidades dos colonos que com eles disputavam empregos qualificados e posições de decisão económica e institucional (CABAÇO, 2009, p. 108-109)

E, talvez por essa vontade submissa de pertencer ao grupo do outro, "de perde- se-lhe no longo mar" (KNOPFLI, 2003: 361 – AIP), o sujeito poético afirma a sua única certeza: de que "não são estes os filhos de Calibam" (KNOPFLI, 2003, p. 361 – AIP).

Esquálidos vultos aracnídeos, escorre-lhes a condoída mágoa ao longo dos magros ombros. Assim imóveis e mudos, cravados nos muros, nas pedras, na paisagem, dão costas à Terra Firme, cujo rumor, surdos, ignoram.

Perde-se-lhes no longe do mar, entre irisados reflexos e sugestões da areia o melancólico resignado olhar. Que oculto fascínio, secreto ópio, da baixa coralina os atrai? Que vozes entorpecentes surdidas do abismo estarão ouvindo?

O tumulto que sobe do continente não os inquieta ou contagia, em seus rostos não há sinal, centelha ou fulgor do incêndio que, no horizonte próximo, lavra. Imóveis e antigos, fitam o mar. Não são estes os filhos de Caliban. (KNOPFLI, 2003, p. 361 – AIP)

Outro ponto delicado da colonização portuguesa em África refere-se à escravidão. Knopfli também rememora este tempo, porque não se pode esquecer um dos maiores êxodos forçados da história do mundo e da maneira como a colonização, para justificar a desumanização do homem negro, adota-lhe o caráter bestializado.

(...) a colonização, repito, desumaniza o homem mesmo o mais civilizado; que a ação colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo do homem nativo e justificada por esse desprezo, tende inevitavelmente a 140

modificar aquele que a empreende; que o colonizador, ao habituar-se a ver o outro como besta, ao exercitar-se em tratá-lo como besta, para acalmar sua consciência, tende objetivamente em transformar-se ele próprio em besta (CÉSAIRE, 2010, p. 29)

Assim, no poema "Alguns desenhos" (KNOPFLI, 2003, p. 358 – AIP), Knopfli relembra a escravidão com desenhos deixados em uma parede, que recontam a travessia transatlântica enfrentada por esses negros:

O espaço não define o céu e o mar, antes

o determinam o movimento das embarcações e o grito silencioso que das enxárcias o cruza de lés a lés. De perfil apruma a proa contra a corrente a nave azul como que furtando-se à que, cor de sangue coagulado,

se lhe aferra à popa, adernando hostil. Toda a lisa superfície do muro se encrespa no que parece um entrechocar de ondas ou frémito de combate. (KNOPFLI, 2003, p. 358 – AIP)

A voz do colonizado também é ouvida no poema "Os pedreiros de Diu"

(KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP), porém, agora, não os escravos, mas colonizados da

Ásia:

A importância dos comerciantes indianos aumentaria quando, em fins do século XVII, a máxima autoridade portuguesa no chamado "império do Oriente", o vice-rei da Índia, entregou à Companhia de Manzanes de Diu o monopólio do comércio entre Diu e a Ilha de Moçambique. Os manzanes disseminaram na costa moçambicana grande número de baneanes [comerciantes hindus de Diu], todos seus assalariados (CABAÇO, 2009, p. 65-66)

Os pedreiros vindos de Diu eram considerados artistas habilidosos, responsáveis por muitas construções na Ilha de Moçambique. Suas marcas também fazem parte desse cenário decadente que um dia serviu "Por glória nossa, / em louvor da vossa Glória"

(KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP), isto é, construíram monumentos para contar a honra e as glórias do império português.

O poema "Os pedreiros de Diu" (KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP) inicia com versos sonoros, que remetem à ideia de repetição, da não mudança, da espera, olhando para a mesma paisagem que, no caso, é o barco que transporta os pedreiros:

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Céu e mar, mar e céu, dia após dia, sem outro deleite que a lenta metamorfose das nuvens, desmesurados carcinomas devorando o azul do espaço. (KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP)

Além do jogo de palavras céu/mar, há, ainda, a presença da metáfora dissonante, pois as nuvens em um céu azul trazem uma ideia de tranquilidade e, certo olhar infantil, entretanto, ao compará-las com "desmesurados /carcinomas", essa expectativa positiva se desfaz. E o espaço, de bucólico, torna-se melancólico.

Neste poema a perspectiva é do outro, a dos pedreiros, que, apesar da relação desigual, ousam falar e também relatar suas condições de semiescravos. Portanto, o eu poético assume a voz coletiva desses pedreiros para pintar suas condições:

Salobra a água, a ração mínima, a alguns (os mais felizes?) leva-os a febre e a disenteria, engole-os o verde sombrio do oceano sem fundo.

Enrolados na nossa magreza e em roupa breve, jazemos na aspereza escaldante do tombadilho enquanto as hiras e as braças gotejam o seu moroso suplício. (KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP)

E a chegada, após uma viagem tão incerta, não traz a segurança de estar em terra firme:

Um dia, quando avoluma insuportável a sede e decresce a pouca esperança, chegamos, enfim. (KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP)

A partir de certo momento, os pedreiros tomam totalmente a palavra e se dirigem diretamente ao seu interlocutor imperialista, pintando a paisagem da colonização a partir dos olhos de asiáticos colonizados. Isto é, pessoas de condições afins, mas em posições diferentes.

Ao invés dos Senhores, somos escuros (por vezes mais escuros até) como o gentio da costa fronteira. (KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP)

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E, finalizam, afirmando-se diante da situação que os levaram de Diu para

Moçambique, justificando e transmitindo a paisagem que eles apreenderam:

Somos os pedreiros de Diu, prestáveis, engenhosos capazes de todo o sacrifício, uma mão-de-obra barata e generosa, que desconhece a exaustão e os horários. Templos, moradias, fortins e baluarte, nós os gizámos e concebemos. (KNOPFLI, 2003, p. 360 – AIP)

Como se percebe, Knopfli canta os encarcerados, como ele, os negros pobres moçambicanos, os Calibam, os árabes e os asiáticos, entretanto, o poeta também enfoca o português colono que, muitas vezes, deixa de se sentir português para se sentir africano, pois sua identificação se dá muito mais com as terras de África, do que com a metrópole europeia já tão distante deles.

Partindo da figura de D. Estevão de Ataíde – capitão-general de Moçambique, que lutou contra os cercos holandeses em defesa da terra portuguesa e da colônia moçambicana –, o poeta visualiza aqueles que, há muito, deixaram Portugal, para defender Moçambique, exaltando sua bravura e grandeza. Knopfli o faz, a partir de um poema-epitáfio em que homenageia este personagem histórico e literário, pois fora cantado, também, por Antônio Durão, no livro Cercos de Moçambique (1952).

Aqui jaz D. Estevão de Ataíde. Retirado ao baluarte de Santa Bárbara. (...) (...) muitas vezes aí sonhou sonhos e visões achados no delírio da vigília sem fim. E se nelas mal percebia as indistintas feições

do Reino, acordava-lhe opressa a face desnuda desde outro de pouca fantasia, muitas guerras, trabalhos e mortes. Assim, rosto desditoso embora, foi que aprendeu

a amá-lo. Por isso dizia " – Não negoceio. Resisto." (...) (...) E o português que era D. Estevão de Ataíde nasce na morte moçambicano. 143

(KNOPFLI, 2003, p. 366 – AIP)

No poema "A dama e o jogral" (KNOPFLI, 2003, p. 350), Rui Knopfli, a partir da personificação da ilha (Dama) e do jogral (povo), evidencia que o momento de uso e abuso desta ínsula já passou e, se o castelão (Portugal) não prestar atenção, quem vai ficar com a dama será o humilde jogral.

Com dignidade inerente à tua posição presidiste, na gala de tuas melhores roupagens, a inaugurações, actos públicos e religiosos e, sozinha, meditaste (...) (...) Mas a alegria maior, a mais íntima, guardava-la sempre para mirada terna que nunca deixámos de trocar. Ensina-o uma velha sabedoria: enquanto dorme o castelão, penetra o jogral humilde na alcova da princesa. (KNOPFLI, 2003, p. 350 – AIP)

Há também uma autoironia em relação a como o poeta se sente diante de sua pátria, pois ele não é nem do grupo do castelão, nem realmente do jogral, cabendo-lhe, mais uma vez, a função de espectador e relator da paisagem de decadência que começava a se pintar diante de seus olhos.

Proscrito na pátria, saborosa ironia! a mim coube o destino de cantar-te na toada monótona desde áspero bordão. (KNOPFLI, 2003, p. 350 – AIP)

O estilo trovador escolhido também é proposital: apropria-se de uma tradição literária europeia medieval (trovadorismo) para anunciar a queda de um império europeu: o português.

Por um lado, de forma porventura mais acentuada do que no anterior, Knopfli põe em evidência neste poema (...) tradições discursivas e prosódicas distintas, num exercício que revela de novo a condição híbrida do espaço e cultura que servem de suporte temático e contextual ao livro em que o poema se inscreve. Por outro lado, o poema efectua também uma auto-ironização do sujeito em relação à sua auto-reconhecida condição de "proscrito" na própria pátria. A ironia advém do facto de esse sujeito, sentindo-se ou sabendo-se proscrito por razões que se prendem com raça e dominação histórica, saber igualmente caber-lhe enquanto barco lúcido dessa história de dominação e hibridização, a habilidade única de a cantar e contar (MONTEIRO, 2003, p. 118)

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E também para evidenciar a burocracia, ineficiência e os jogos de interesse que esse sistema suscita:

Vários foram os que, por elaborados contratos ou vantajosas conveniências de família, te esposaram em uniões burocraticamente consumada e te expuseram a seu lado na pompa solene dos cerimoniais para os três Estados. (KNOPFLI, 2003, p. 350 – AIP)

Rui Knopfli, portanto, a partir de um olhar crítico que se coloca proscrito à pátria, revela o fim de um império grandioso que se fez presente em Moçambique por muitos séculos. E este olhar passa pelos elementos que fizeram parte desse processo, como as figuras humanas de diferentes classes, rostos e etnias; as marcas históricas que o apagamento cultural não conseguiu retirar completamente, da Ilha de Moçambique, da qual se olha o continente.

Pode-se constatar neste livro que a mensagem é que o reino de Próspero está ruindo e a vez de Calibam e de seus filhos está chegando.

(...) Embora seja crucial, não basta apenas afirmar uma identidade diferente. O principal é ser capaz de ver que Calibam tem uma história passível de desenvolvimento, como parte do processo de trabalho, crescimento e maturidade a que apenas os europeus pareciam ter direito. (SAID, E., 2011, p. 333)

Em Knopfli, a Ilha de Moçambique "desfila seus múltiplos significados, ora associada a Próspero, ora a Calibam" (CHAVES, 2005, p. 216), projetando na poesia os conflitos do escritor com seu universo de poeta enclausurado e também à margem.

A ilha de Próspero é um roteiro poético da Ilha de Moçambique em suas diferentes e fragmentadas paisagens. O poeta curioso fixou seu olhar agudo e perspicaz na colonização e em seus elementos, na composição fragmentada do povo que habita esse espaço, mas, principalmente, mirou, com a força de uma previsão irônica, a derrocada e decadência do Império português.

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Esse é momento em que Rui Knopfli se assume Calibam e ri, e percebe que "Os colonizados sabem que, no decorrer de tudo, possuem uma vantagem sobre os colonialistas. Sabem que seus "amos" provisórios mentem" (CÉSAIRE, 2010, p. 16).

Destarte, ciente dessa informação, o poeta volta seu olhar para a capela Nossa Senhora do Baluarte – construída no extremo norte da Ilha de Moçambique, junto à Fortaleza de

São Sebastião –, metaforizadora tanto da presença portuguesa e católica, que a construíra logo no início das incursões à ilha, quanto da decadência da mesma, pois, hoje, a igreja – personificada no poema – mira a paisagem, imóvel, sem perspectivas.

"Senhora do Baluarte" (KNOPFLI, 2003, p. 365 – AIP) é um soneto clássico, composto por enjambement entre todas as estrofes, como forma de continuidade poemática e, também, metaforicamente cronológica. Sabe-se que o poema refere-se à primeira capela construída na Ilha de Moçambique, evidenciando a passagem do tempo e a permanência dela, como símbolo de um Império em crise, que enfrenta o "desafio

áspero do vento e da areia" (KNOPFLI, 2003, p. 365 – AIP), mas, ainda assim, permanece lá "Erecta e incólume" (KNOPFLI, 2003, p. 365 – AIP).

O fim do poema, ironicamente ácido, aponta a decadência por meio do abandono de Deus – é o não dito, mais uma vez, com sua "aresta cortante", que penetra na poesia knopfiliana – em um país católico ao extremo que teve, durante considerável tempo, o domínio do "mundo" e que, agora, precisa lidar com o seu novo lugar que começa a se dirigir à margem.

(...) Capela extrema e recolhida, ante quem nossa incauta

humanidade se desnuda silente, humilde e comovida, que orgulhoso e implacável Deus, na terra, recusaria em ti sua morada? (KNOPFLI, 2003, p. 365 – AIP)

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E, no poema "Velho colono" (KNOPFLI, 2003, p. 151 – RS), explicita o sentimento de fim. Tanto colonizador, quanto colonizado se mostram apreensivos com o futuro incerto: "(...) ele e o tempo. O passado certamente, / que o futuro causa arrepios de inquietação." (KNOPFLI, 2003, p. 151). O passado é personificado e, como uma sombra, seguirá o velho colono, da mesma forma que ainda ecoa no Portugal contemporâneo.

Sentado no banco cinzento entre as alamedas sombreadas do parque. Ali sentado só, àquela hora da tardinha, ele e o tempo. O passado certamente, que o futuro causa arrepios de inquietação. Pois se tem o ar de ser já tão curto, o futuro. Sós, ele e o passado, os dois ali sentados no banco de cimento.

Há pássaros chilreando no arvoredo, certamente. E nas sombras mais densas e frescas, namorados que se beijam e se acariciam febrilmente. E crianças rolando na relva e rido tontamente.

Em redor há todo o mundo e a vida. Ali, está ele, ele e o passado, sentados os dois no banco de frio cimento. Ele, a sombra e a névoa do olhar. Ele, a bronquite e o latejar cansado das artérias. Em volta os beijos húmidos, as frestas gargalhadas, tintas de outono próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo, vai aproveitando. (KNOPFLI, 2003, p. 151 – RS)

Brinca-se com rimas internas na segunda estrofe – "certamente", "febrilmente" e

"tontamente" em que as sílabas rítmicas são "mente" jogando com o duplo sentido da linguagem irônica, já que se pode entender apenas como uma rima ou ir além e enxergar neste horizonte linguístico o verbo mentir, na terceira pessoa do singular do presente do indicativo.

Por fim, o poeta lança um olhar desesperançoso e declara: "O tempo que cada qual, a seu modo, / vai aproveitando." (KNOPFLI, 2003, p. 151 – RS); é como se

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dissesse: Aproveite o tempo presente, porque o futuro é decadente para o Império e incerto para Moçambique.

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3.3. Paisagens urbanas: as cidades de Johanesburgo, Paris, Lourenço Marques,

Londres

O tempo passeia sobre a cidade (KNOPFLI, 2003, p. 162 – RS)

Rui Knopfli caminhou, assim como o tempo, por cidades reais e fictícias, atuais e históricas, observando, apreendendo e refletindo sobre o que elas tiveram a lhe oferecer. No poema, cujos versos foram usados como epígrafe, "Relógio de sol"

(KNOPFLI, 2003, p. 162 – RS), a cidade é personificada e acariciada pelo tempo – "O tempo pousa seus dedos / arenosos / sobre o rosto macio da cidade" (KNOPFLI, 2003, p. 162 – RS) –, pois, como já citado nesta tese, as cidades estão em constantes mudanças e muitas delas pereceram, de acordo com o passar do tempo e dos acontecimentos históricos. Devido à perenidade do tempo, seus dedos são arenosos, como uma ampulheta a se esgotar ou como a areia a escorrer por entre as brechas das mãos.

O tempo disfarça-se na cidade, uma vez que, nela, assume uma postura de rapidez que não se percebe, com mesma intensidade, em lugares do interior ou mais afastados. Principalmente ao se pensar no estereótipo do tempo africano, segundo o qual havia maior concentração de horas para a reflexão e para a tomada de decisões comunitárias ou familiares; nas cidades, também os africanos inserem-se num tempo intenso, acelerado, que se disfarça "na aresta da esquina" (KNOPFLI, 2003, p. 162 –

RS), espreitando as mudanças, como qualquer outro cidadão urbano do mundo.

O tempo escoa como quem desce as escadas de uma cidade: três degraus e continua a caminhar...

escoa-se invisível

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pelas ruas pelas pedras, pelas coisas e pelas sombras alongando-se na tarde (KNOPFLI, 2003, p. 162 – RS)

Consciente da efemeridade do tempo e de seu papel de ator na existência das cidades – "Cidade. / Ritmo de coração / em tempo de máquina" (KNOPFLI, 2003, p.

163 – RS) –, o poeta reflete em seus versos diferentes paisagens urbanas, sob diferentes perspectivas temporais e emocionais. Tais espaços formam-se por meio de paisagens naturais e culturais que vão se modificando de acordo com variantes, como o aspecto econômico, o papel social e cultural que recaem tanto sobre a urbe, em geral, quanto sobre o poeta-observador.

Entende-se, ainda, que o espaço urbano adquire uma dimensão simbólica de acordo com o olhar, a percepção e a vivência de quem observa essa paisagem, além de ser "o reflexo tanto de ações que se realizaram no presente como também aquelas que se realizaram no passado e que deixaram suas marcas impressas nas formas espaciais do presente" (CORRÊA, 1989, p. 8). Deste modo, olhando um pouco mais além, Knopfli refletiu não apenas sobre as cidades reais, mas também sobre as sonhadas e as literárias.

Eugénio Lisboa, companheiro de longa data de Rui Knopfli, ressalta a importância das cidades para o poeta e amigo:

O Rui, impregnado da leitura de grandes poetas e prosadores de língua portuguesa, francesa, inglesa, espanhola, italiana e, via traduções, de muitas outras línguas e civilizações, passou a vida a sonhar com as grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos e teve ocasião de visitar algumas delas. Em Lourenço Marques, levou uma vida cultural intensa, muito activa e gozada, indo ao cinema, lendo revistas de cinema francesas e inglesas, frequentando as boas livrarias e teatros de Johannesburgo, colaborando no Cine-Clube (com debates e traduções de filmes) e na manufactura e direcção de páginas e suplementos culturais, n’A Voz de Moçambique, n’A Tribuna, na Objectiva (revista do Cine-Clube), traduzindo Albee (The Zoo Story) para o Teatro de Amadores de Lourenço Marques, do Mário Barradas, polemicando com gana e com gozo, contribuindo, em suma, com força, com zelo, com inteligência e, às vezes, com maldade, para a animação cultural daquela bonita cidade à beira do Índico plantada (a nossa “capital da memória”, como nos

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sussurrava ao ouvido a subtil Maria de Lourdes Cortez, lembrando-nos dos livros do Durrell...) (LISBOA, 2013)32

Desta forma, evidencia-se que as cidades, pelas quais Rui Knopfli cruzou, física e literariamente, afetaram-no profundamente e, entendendo isto, o poeta passou à poesia a sensibilidade que aqueles espaços suscitavam em seu ser e refletiam em seu mundo:

Em primeiro lugar, o conjunto dos elementos sensíveis que constituem a matéria e como o terreno de sua experiência criativa. Tratam-se, aos olhos do crítico, de temas provenientes da vida sensorial e emocional do autor, que reaparecem com insistência em sua obra, onde assumem uma significação específica. (...) Esses temas privilegiados são portadores de ressonâncias subjetivas e de valores éticos e estéticos, e constroem, então, ao mesmo tempo em que uma imagem do mundo, uma imagem do eu (COLLOT, 2013, p. 55)

Entretanto, quatro paisagens urbanas sobressaem na obra de Knopfli, transportadoras de ressonâncias subjetivas, éticas e estéticas que formam o mundo pessoal e social do poeta: Lourenço Marques, colonizada, e , independente;

Johanesburgo, das descobertas; Paris, das idealizações e Londres, do frio exílio.

Percebe-se que essas cidades despertavam emoções em Rui Knopfli, causadoras de uma poesia afetuosa ao inserir-se em alguma dessas urbes.

Objetiva-se, portanto, nesse subcapítulo, verificar como essas quatro paisagens urbanas se estabelecem na poesia de Rui Knopfli e quais tipos de reflexões elas suscitam.

Ainda conjecturando sobre o urbano, Angel Rama (1998, p. 23) afirma que as cidades nasciam de acordo com os planos ideológicos transmitidos e também à moda do período, caracterizando-as como polos de difusão de ideias em oposição ao campo, local

32 Lisboa, Eugênio. "Pro memória: Rui Knopfli, 15 anos". In: http://dererummundi.blogspot.com.br/2012/06/pro-memoria-rui-knoplfi-15-anos.html. Acesso em:

20/08/2014.

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da barbárie: "A cidade foi considerada o espaço civilizador em oposição ao campo onde se engendra a barbárie" (RAMA, 1998: 26)33.

Diferentemente de muitos poetas, Rui Knopfli não sacraliza as cidades como locais amorosos, mas sim como locais que despertam afetos. O ato de "afetar" é entendido como algo que marca profundamente o ser humano34, agregando todos os sentimentos cabíveis de serem despertos em um indivíduo –, isto é, locais que refletem, flexionam, abalam e deslocam este sujeito poético. Portanto, diferencia-se, mais uma vez, Rui Knopfli de alguns outros poetas coloniais, que estavam "possuídos pelo impuro amor da cidade" (RAMA, 1998, p. 80)35. Enquanto Rui passava a entender a cidade em sua dimensão arquitetônica, histórica, ideológica e afetiva, alguns outros buscavam exilar-se nelas o quanto antes:

Os nossos companheiros tiveram a coragem de partir, vivem nas grandes cidades, com história, do mundo, eu fui covarde e fiquei. (KNOPFLI, 2003, p. 79-81 – OPO)

O poeta, nesse poema, "Carta para um amor" (KNOPFLI, 2003, p. 79-81 –

OPO), trabalha com as paisagens urbanas que, de alguma forma, o afetaram e o constituíram como sujeito do mundo que é. Com uma ironia cortante, aponta para as cidades que povoam a sua imaginação, por curiosidade ou imposição:

Cidade! nunca fui mais longe do que

33 "(...) las ciudades como foco civilizadores, oponiéndolas a los campos donde veía engendrada la barbarie." (RAMA, 1998, p. 26)

34 A concepção desta tese sobre os afetos insere-se no projeto de pesquisa da Professora Doutora Carmem Lúcia Tindó Secco, docente em Literaturas Africanas na Faculdade de Letras da UFRJ, intitulado Por entre memórias, esquecimentos e afetos: tendências da poesia angolana e moçambicana dos últimos anos.

35 "Cuando desde fines del XIX la ciudad es absorbida en los diogramas que despliegam los lenguages simbólicos y toda ella parece devenir uma floresta de signos, comienza su sacralización por la literatura. Los poetas (...) son poseídos del 'impuro amor de las ciudades'". (RAMA, 1998, p. 80)

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à raia de Espanha. Creio amar Paris, conheço Paris dos filmes, a Concórdia dos postais, a Torre Eiffel divulgada, Hitler passando sob o Arco do Triunfo. Amo Paris em Aragon e Eluard, Paris dos pintores, Paris de Eremburgo. Amo outras cidades, todas grandes cidades. Madrid dos espanhóis e do coração despedaçado, Stalinegrado das batalhas, Berlim do triunfo. Nunca fui às grandes cidades, amo-as porque os homens mas ensinaram a amar. (KNOPFLI, 2003, p. 79-81 – OPO)

No trecho acima, verifica-se uma descrição pontual dos elementos que definem

Paris, ou seja, seu conjunto arquitetônico e histórico e, também, o efeito que a cidade francesa produz no poeta advindo da literatura e da arte. Como afirma Eugénio Lisboa:

"A alma do Rui nunca foi africana, o que é muito diferente de ele se ter sentido bem, a viver em Lourenço Marques, enquanto sonhava com viagens a Paris e, sobretudo, a

Londres..." (LISBOA, 2012)36.

O olhar observador, neste caso, se expande sobre as cidades antigas da velha

Europa e, por meio de elementos históricos que afetaram o mundo, – como a presença de Hitler–, o poeta evidencia nunca ter estado fisicamente nessas grandes cidades que crê amar e cujo "amor" acontecera por imposição da educação que lhe fora "eivada" pelo sistema. Critica, claramente, os padrões de educação imperialista nas colônias, em versos irônicos compostos por metáforas dissonantes, como: "Cidade! / amo em retórica discursiva / as outras cidades." (KNOPFLI, 2003, p. 79-81 – OPO).

Como já citado, as cidades são constituídas por elementos naturais e culturais que variam de acordo com o tempo, a história e, também, a memória. E as cidades

36 Lisboa, Eugênio. "Pro memória: Rui Knopfli, 15 anos". In: http://dererummundi.blogspot.com.br/2012/06/pro-memoria-rui-knoplfi-15-anos.html.

Acesso em: 20/08/2014.

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coloniais são a potência máxima dessa constituição, pois assumem um papel transcultural (RAMA, 1998, p. 27)37, por envolverem vários olhares sob um mesmo espaço, impondo um ponto de vista único que se diz "superior" ao do autóctone.

A cidade colonizada é planejada antes mesmo de se saber a possibilidade de sua existência. Ela é pensada para enquadrar, emparedar seus cidadãos, impedindo confusões e desordens futuras, ao mesmo tempo em que o colonizador tenta implantar um modelo urbano mais europeizado (RAMA, 1998, p. 21)38 por acreditar ser este o modo que melhor civiliza e educa o "selvagem".

As cidades africanas são, na sua génese e essência, cidades duais, coexistindo num mesmo espaço duas realidades que, embora sejam cultural, técnica e morfologicamente díspares, são interdependentes e estão imbricadamente ligadas. A cidade de cimento é a cidade herdada dos poderes coloniais, uma cidade para aqueles que dominavam e onde assentava a estrutura administrativa dos territórios. Como o nome indica, é uma cidade edificada em materiais nobres e perenes, estruturada de forma racional, expressa frequentemente em traçados tendencialmente geométricos. No entanto, fruto do crescimento económico e da consequente demanda de mão-de-obra para o sector industrial que se instalava nas cidades, nasceram nas áreas periféricas cidades improvisadas, ditas informais, albergando populações provenientes do interior, que trazem para a cidade os modos de vida próprios e ancestrais e os incorporam no espaço urbano. Tecnicamente opostas, estas duas faces da mesma moeda estabeleceram relações de interdependência muito fortes: a cidade de cimento necessita da força de trabalho dos que habitam a cidade informal, estes necessitam da cidade formal para assegurar a própria sobrevivência. (FERNANDES; MENDES, s/d, p. 01-02)

Como corroborado acima, na colonização africana, o espaço é dividido desde a sua fundação, a partir de ideias que denegriam os "da terra"; os espaços destinados a eles eram segregados racialmente, com construções pobres e com padrões urbanísticos precários, contrastando com os espaços dos colonos que possuíam melhores condições.

Knopfli habitava o espaço destinado aos colonos durante a sua vida em Moçambique.

37 "Aunque el primer verbo fue conjugado por el espíritu religioso y el segundo por el laico y agnóstico, se tratava del mismo esfuerzo de transculturación a partir de la lección europea." (RAMA, 1998, p. 27)

38 "(...) se debe pensar la ciudad, lo que permitiría evitar las irrupciones circunstanciales ajena a las normas estabelecidas, entorpeciéndolas o destruyéndolass. El orden debe quedar estatuído antes que la ciudad exista, para así impedir todo futuro desorden (...)" (RAMA, 1998, p. 21)

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Especificamente sobre as cidades coloniais portuguesas, entende-se que:

As cidades dos países africanos de expressão portuguesa sendo originalmente criadas pelo poder colonial, obedecem a uma matriz comum, morfológica e esteticamente reconhecível no universo colonial lusófono e sedimentada por décadas de prática na manipulação dos espaços em que se enquadrava. Eram cidades com a função primordial de se constituírem como plataformas entre o espaço colonial africano, próprio e por vezes de outros países europeus, de onde drenava as matérias-primas, e a metrópole, só posteriormente assumindo o papel de pólo estruturador do território envolvente, não funcionando, assim, como no Portugal metropolitano ou no universo europeu, enquanto instrumento gerador e difusor de capital humano e económico, antes (...) o que condicionava o crescimento urbano e gerava uma permanente necessidade de mão-de-obra, quer européia quer africana. (FERNANDES; MENDES, s/d, p. 04)

No caso particular de Moçambique, os bairros periféricos eram construídos com materiais da natureza como madeira, capim, caniço, – esses últimos vocábulos tornaram-se termos vulgares para designar os locais periféricos e carentes em

Moçambique: "Amo-te cidade da infância, / com girassóis e casas de madeira e zinco"

(KNOPFLI, 2003, p. 79-81 – OPO).

Knopfli não olha apenas para o aspecto paisagístico, mas também histórico e social, como afirma:

Cidade, menina fútil de pouca história, carros pequenos nas ruas, velas na baía, patinadores nos ringues, terra de sete estuários, de cinema e cafés buliçosos, de alegrias e pequenas traições, leviana, ingénua, snob, bonita, mulata, branca, hindu, negra de cabelos louros e olhos amendoados, morena sensual, terra índica, minha terra, minha amada inocente, prostituída. (KNOPFLI, 2003, p. 79-81 – OPO)

Em um crescente, a cidade passa de "menina fútil de pouca história" (KNOPFLI,

2003, p. 79-81 – OPO) à prostituída. Uma cidade colonial, para o poeta, sempre será prostituída, pois se rende aos vencedores. A cidade é "leviana, ingênua, snob, bonita"

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(KNOPFLI, 2003, p. 79-81 – OPO) e plurirracial. Era esta a cidade almejada por

Knopfli e, não, as marcadas pelo provincianismo.

O território moçambicano, sobretudo a ilha, já possuía aglomerados urbanos que viviam de trocas comerciais anteriormente à chegada dos portugueses. Estes, ao começarem a colonizar, impuseram o modelo português, com padrões técnicos e burocráticos, culturais e sociais inversos àqueles a que as populações locais estavam acostumadas, ocorrendo, portanto, o choque e o conflito, pois a cidade colonial foi um corpo estranho se estabelecendo.

Da escada de serviço e do elevador para o prédio, do prédio para a rua, da rua para a praça, da praça para a cidade, da cidade para o subúrbio, onde crescem a doença, o medo, a fome e o futuro, (...) (KNOPFLI, 2003, p. 213-215 – MVS)

Em meio a esses choques, Knopfli olha para a população local, para refletir sobre o papel crucial dela – mesmo à margem – para a construção da cidade e da sociedade colonizada:

Nós os humildes e os humilhados, os que não temos rosto próprio porque somos o rosto da multidão. Nós, o branco-branco, o preto-preto e o branco-preto. (...) E velho guarda negro do elevador, a piscar, a piscar um sono nunca redimido. E o contínuo que não vai de elevador, mas sobe pela escada de serviço até o quinto andar, carregando em jeito de via sacra a bicicleta da firma. (...) Na fuligem luminosa do cais, nas zonas de carga e descarga, na longa fita de asfalto ardente, na perigosa articulação dos ângulos de betão do prédio de onze andares.

(...) Os que dormitam atentos, em bancos públicos de jardim, (...) (KNOPFLI, 2003, p. 213- 215 – MVS)

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Os anônimos da terra eram necessários para a manutenção daquele espaço e da relação colonizado/colonizador, tanto quanto aqueles outros: advogados, administradores, sacerdotes, escritores, educadores, homens das palavras, detentores do poder do signo e da pluma, fundadores da Cidade das letras (RAMA, 1998, p. 32)39 – como Knopfli –, mas que, diferentemente do poeta estudado –, esses letrados estavam

"estritamente associados às funções do poder e compunham (...) um país modelo de funcionariado e burocracia." (RAMA, 1998, p. 32)40, algo que Knopfli percebera e abominava. E, com seu olhar profundo, critica:

Os que alimentam de miséria a sua miséria e outros que, estando melhor, a nutrem na miséria de pequenas e grandes indústrias. E os que nem sequer a alimentam no lôbrego ventre de oficinas e fábricas. (KNOPFLI, 2003, p. 213-215 – MVS)

E o poeta retoma, vislumbrando um cotidiano em que todos os que compõem essa cidade são vistos de maneira mais aproximada, quase íntima, formando, por signos da escrita knopfiliana, uma paisagem árida, seca, dolorida e sarcástica:

Toda população flutuante do elevador e da escada de serviço, do prédio e da rua; o senhor engenheiro com uma dor de corno e dois projectos enguiçados; o clínico preso aos afazeres (cinco prédios, uma hérnia estrangulada e o consultório cheio de pacientes); o advogado a correr atrás dos prazos, dos prazos cada vez mais curtos; a senhora enfrentando a crise difícil da menopausa, a viúva de negro que vai ao médico com uma pontada no baixo-ventre e uma amostra de urina num frasco embrulhado em papel de jornal. (KNOPFLI, 2003, p. 213-215 – MVS)

39 "Em el centro de toda ciudad, segun diversos grados que alcanzaban su plenitud em las capitales virreinales, hubo uma ciudad letrada que componía el anillo protector del poder y el ejecutor de sus órdenes: Uma pléyade de religiosos, administradores, educadores, profesionales, escritores y múltiples servidores intelectuales, todos esos que manejaban la pluma, estaban estrechamente asociados a las funciones del poder y componían (...) um país modelo de funcionariado y de burocracia."(RAMA, 1998, p. 32).

40 Idem.

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Após a independência, a perspectiva sobre as cidades informais mudaram: deixaram de ser espaços tolerados, mas não reconhecidos, para se tornarem um espaço de valorização e tentativas de organização.

Rui Knopfli viveu grande parte de sua vida em Lourenço Marques, sob o regime da colonização, com as vantagens que sua família gozava em relação aos "outros" moçambicanos, vivendo em bairro de cimento:

Esse perfil distante de cimento e argamassa é toda uma geometria decantada e gostosa molhando os quadris deleitados no charco doce da baía. Diacho, que perfil mais bonito, hem? (KNOPFLI, 2003, p. 207 – MVS)

E, não, no Alto-Maé, que até lhe despertava certa estranheza: "é engraçado a gente aqui do Alto-Maé" (KNOPFLI, 2003, p. 159 – RS). Como já ficou bem explicitado nesta tese, Knopfli não é um poeta do caniço e sim do cimento.

No interior de Moçambique ocorre a sua infância, período de que guarda imagens e percepções que contribuem para o rapport imagístico-espacial com África que desde início povoa a sua poesia. Como coloca Eugénio Lisboa, Rui Knopfli vive tanto em Moçambique como após a sua saída de 'o país dos outros', e à semelhança de demais contemporâneos seus (...). Fosse como opositor do regime colonial- facista, fosse como poeta-profeta do nascimento do Moçambique independente, nascimento para o qual corrobora poética e criticamente, mesmo sabendo de antemão que o facto acarretaria inevitavelmente o corte umbilical entre o autor e o espaço físico e de afectividade independente. (MONTEIRO, 2003, p. 21)

Saiu de Lourenço Marques em 1975, levando consigo uma paisagem que foi guardada, refletida, recuperada e ressignificada em sua obra, retornando, em 1990, por poucas semanas, a Maputo. A questão que se observa é que o poeta deixou uma cidade, com seus aspectos culturais colonizadores – Lourenço Marques – e retornou para o mesmo território, renomeado, Maputo, que, após a independência de Moçambique apresenta aspectos culturais de local pós-colonizado, que ainda busca um caminho a seguir depois de tantos anos de guerra. Portanto, como afirma Eugénio Lisboa, Rui

Knopfli se decepcionou com a realidade da Lourenço Marques/Maputo que encontrou:

158

"O regresso à cidade das acácias e dos jacarandás foi, como é costume, nestes casos, um desencontro doloroso: os locais mudam, as pessoas desaparecem e nós mudamos também. Nada é nunca o mesmo e os regressos bons não existem." (LISBOA, 2012)41

Há também que notar a relação de Rui Knopfli com a língua e com a cultura inglesa e anglo-americana. Apesar de nascido em Moçambique, ficou cerca de um ano em Johanesburgo, na África do Sul, devido a um curso de arquitetura, que nunca veio a terminar – fora as tantas outras visitas que fez à cidade durante a sua juventude. Lá, o autor teve parte da sua educação literária e cultural formada, sendo apresentado ao jazz, ao cinema e à pintura americana, que tiveram seu auge no início da década de 1950 até

1960. Além disso, podiam-se encontrar, neste sítio, as literaturas censuradas em

Portugal e Moçambique, o que fez com que o poeta junto a outros, como Eugénio

Lisboa e Rui Guerra, retornasse diversas vezes a essa cidade.

A África do Sul, de maneira generalista, fora importante para os moçambicanos no período de colonização por dois motivos: a) Econômico: Era a rota de imigração. As imposições coloniais portuguesas eram muito fortes, com jornadas de trabalho extensas, em condições insalubres e salários muito baixos, criando nos moçambicanos "a perspectiva de que o cenário na África do

Sul seria melhor, mesmo sendo uma ilusão, já que o trabalho nas minas era perigoso demais, equiparado ao salário pago por este serviço" (ZAMPARONI, 1999, p. 146). b) Johanesburgo fora uma janela aberta para os literatos, estudiosos, homens das letras e

ávidos por cultura censurada, porque foi a cidade que propiciou a inclusão dos moçambicanos em uma ideia mais ocidental de urbe.

41 Lisboa, Eugênio. "Pro memória: Rui Knopfli, 15 anos". In: http://dererummundi.blogspot.com.br/2012/06/pro-memoria-rui-knoplfi-15-anos.html. Acesso em: 20/08/2014.

159

A influência da língua inglesa aparece em versos, vocábulos ou pequenas expressões em inglês e em quatro poemas intitulados “Sketch-Book”, publicados na primeira edição de Reino submarino (1962)42.

Francisco Noa (1997, p. 39-40) afirma que Knopfli "abriu-se para a cultura europeia e americana por motivo individual"; o tempo que passou em Johanesburgo foi determinante para "seu encontro decisivo com a literatura inglesa” (NOA, 1997, p. 40); e, por motivo coletivo, devido à “intensa e efervescente atmosfera cultural dos anos

1950 e 1960, na ressaca da Segunda Grande Guerra e que se fazia sentir também na capital moçambicana.” (NOA, 1997, p. 40).

Era através da África do Sul. Por exemplo, havia uma série de filmes – porque a África do Sul conservava, e conservou sempre, uma herança tipicamente britânica que é a do parlamentarismo; de maneira que havia umas certas liberdades formais que tinham que ser concedidas. Por exemplo, os tipos deixavam entrar um livro marxista; mas um romance que, por exemplo, relatasse um affeire que envolvesse um indivíduo de cor com uma mulher branca, ou vice-versa, era logo banido, percebe? Era essa mesquinharia (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 462)

Como afirmado pelo poeta na citação acima, Johanesburgo também foi uma cidade que afetou Knopfli em outras questões além das culturais. Foi nessa cidade que entendeu o que era racismo e passou a intuir, conviver e enfrentar o ritmo frenético de uma cidade dita "grande" e "moderna".

Em relação ao racismo o poeta afirma:

(...) eu só tive esse choque no período em que fui estudante em Johanesburgo. Aí é que tive, embalado nessa coisa de transparência, de que lhe falei, aí é que tive o grande choque, o que me fez reflectir sobre a injustiça da situação colonial num país que, ironicamente, já não era colónia – porque já era a República da África do Sul. (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 459)

E com o poema "Kwela para amanhã" (KNOPFLI, 2003, p. 90-91 – OPO) lança seu olhar para a paisagem matinal de Johanesburgo, mostrando a face mais agressiva

42 Na Obra poética (2003) e na Antologia poética (2010), organizada por Eugénio Lisboa, apenas o poema "Winds of change" foi republicado.

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dessa urbe. Kwela é música de rua da África do Sul com base do jazz e do som marabi, que esteve em destaque na década de 1950 e que, ironicamente, é usada como motivo para o sujeito poético flanar43 pela cidade, visualizando, com olhar de águia, a geopoética daquela paisagem urbana, que se manifesta em Johanesburgo, metaforizando qualquer cidade grande de África, naquele momento. A partir do contato com essa urbe,

Knopfli percebeu as relações raciais e de poder ali e em Moçambique onde vivera cercado de imensa proteção colonizadora e não conseguira distinguir – ao menos na infância – as questões de pele:

Mil e tal crianças negras fazem bonecos de lama no coração do slum. 44 Mil e tal rapazes atléticos, loiros, vermelhuscos, vestidos de cáqui, erguem para o ar o brilho das culatras nos Union Grounds (KNOPFLI, 2003, p. 90-91 – OPO)

Além das questões de raça e poder, compreendeu a violência e o drama aos quais as cidades aludem, mas que, também, ao mesmo tempo, encobrem com sua sobriedade e impessoalidade:

Há dois minutos precisos, o bus Mayfair atropelou um mineiro e o sangue abre-lhe a vermelho, na fuligem do rosto, uma rede caprichosa de carreiros. (...) Houve a noite passada quatro assaltos à mão armada, três sangrentas brigas de rua e uma mulher matou a golpes de machado o marido, porque tinha relações incestuosas com a filha. (...) Desde a madrugada já se trataram no hospital cento e duas urgências. (KNOPFLI, 2003, p. 90-91 – OPO)

43 Flanar é o ato de passear pelas ruas, observando. Representado pela figura do flâneur, que é um observador da vida urbana e das mudanças que estão acontecendo na sociedade, este ato deambulatório foi trabalhado por Baudelaire e retomado, estudado e aprofundado em Walter Benjamin.

44 Favelas, comunidades sul-africanas.

161

Outra constatação de Knopfli foi o anonimato que as cidades impõem aos seus cidadãos, que, como máquinas, seguem suas rotinas estressantes e corridas. Nos versos abaixo, sente-se uma influência chapliniana de Os tempos modernos, em que Carlitos, assim como os demais trabalhadores da fábrica, é apenas mais uma força de trabalho, não distinguindo-se dos demais. E quando, por meio da ironia e brincadeira, Carlitos se destaca – no caso, por meio de um surto de loucura, que o faz ver parafusos e porcas para serem apertados em qualquer superfície redonda, causadora de cenas clássicas e hilárias –, a solução é expulsá-lo daquele ambiente, já que ali não há espaço para o diferente.

Um milhão de pessoas, à hora matutina do rush, move-se automaticamente na longa fita do asfalto, ao comando dos sinais luminosos automáticos. (...) O rosto das pessoas É sólido e impenetrável (KNOPFLI, 2003, p. 90-91 – OPO)

No poema, foca-se no anonimato e na repetição mecânica das tarefas, que no filme é verificado pela repetição do ato de apertar parafusos, e Knopfli personifica nas entrelinhas da sua vida, o Carlitos que, expulso da fábrica/literatura parte pelo mundo dentro de sua loucura, causada pelo ambiente no qual inseria.

Por último, o poeta percebe do ritmo capitalista – sobretudo estrangeiro –, em que as reais intenções do mundo imperialista em relação aos países ditos periféricos transparecem-se com seu objetivo de lucro e seu conceito de "Time is money". Assim, são o capitalismo e os capitalistas, por meio de seus negócios e empresas, que decidem sobre o que acontece, ou deixa de acontecer, na cidade:

O Sr. Du Prez conferenciou com o Sr. Potgieter e subiram as ações da Companhia Diamantífera (KNOPFLI, 2003, p. 90-91 – OPO)

162

Rui Knopfli finaliza seu caminhar por essa surpreendente paisagem, com a certeza de que o tempo realmente não para, que espreita nas esquinas das cidades, com seus ritmos acelerados e seu modo egoísta, porque, apesar de tudo o que foi visto e sentido naquela manhã poemática, em nada afetou verdadeiramente a cidade, somente o sujeito poético, que já afirmara gostar mais de vislumbrar a dureza das margens e não a beleza das águas.

Knopfli é um poeta marginal, no sentido de habitar as margens da literatura e da vida. Há um desassossego em seu olhar poético que lhe imputa uma inadaptação a todos os espaços em que habita.

Sabia-se na carne – literalmente – o que se sabe: que toda palavra é ação e toda ação é política. Fazendo o ato poético crescer para fora de seus limites convencionais – a margem pode ser, muitas vezes, mais vasta do que se imagina –, os poetas misturaram poesia (...) trazendo ao território da palavra tudo o que expressasse a urgência de contrapor à solidão o companheirismo, à incerteza a esperança, à violência a alegria [embora essa característica em Knopfli se manifeste apenas por meio da memória poética], ao autoritarismo a liberdade, à morte a vida. (FERRAZ, 2013, p. 07).

Knopfli demonstra, por meio de aproximações e afastamentos líricos, as relações surgidas nas cidades, comparando/metaforizando Johanesburgo com outras cidades grandes do Ocidente.

Por essa via, Johanesburgo, aparece como substituta próxima ao que o poeta achava ser a vida cultural europeia e americana, sendo eleita por ele como tema para alguns de seus poemas.

(...) a poesia de Knopfli reflecte um sujeito africano e profundamente europeu, mas sobretudo um europeu cultural e não geográfico, onde Moçambique fora sempre o ‘lugar onde’, e a Europa, o horizonte espiritual a integrar. (MONTEIRO, 2003, p. 22)

No poema “À Paris” (KNOPFLI, 2003, p. 201-202 – MVS), constrói-se a dualidade entre a afirmação x negação de Johanesburgo ser Paris. O poeta lança seu olhar sobre a cidade sul-africana, sonhando-a como francesa e, outras vezes, americana ou inglesa. 163

A presença de artigo masculino e pronome possessivo masculino diante da palavra Paris, “O meu Paris” / “um Paris” / “o Paris”, (KNOPFLI, 2003, p. 201-202 –

MVS) parece um desacordo gramatical, já que substantivos que nomeiam cidades não possuem gênero, entretanto, na verdade, o que se busca é uma diferenciação de “Paris” ou “da cidade de Paris” verdadeira, daquela sonhada pelo poeta. A verdadeira é impessoal, por isso a ausência dos artigos; a do poeta é pessoal, é dele, é fundida a

Johanesburgo.

Johanesburgo, “certamente com menos luz”, é a Paris do poeta, porque ali teve tantas descobertas, quanto se tivesse se dirigido à "Cidade Luz real". Acessou livros, filmes, enfim, a cultura que ele acreditava encontrar na sonhada cidade europeia.

Aqui compro meu livrinho proibido e vejo o último Antonioni, aqui sou bem o estrangeiro cobiçoso de espanto. (KNOPFLI, 2003, p. 201-202 – MVS)

E afirma que as duas cidades não são tão diferentes assim, porque na sul- africana há

(...) o mesmo movimento endemoninhado, as luvas brancas do polícia sinaleiro, o brilho das montras, a cor da moda, os mesmos amorosos que se beijam sem pudor nos bancos das áleas ensolaradas (KNOPFLI, 2003, p. 201-202 – MVS)

O vocábulo “mesmo” reafirma as semelhanças entre as cidades, porém, em um olhar mais aproximado, essas características poderiam ser atribuídas a qualquer cidade grande. Logo em seguida, essa construção é desfeita com a negação dos elementos que caracterizam unicamente a cidade de Paris, impossíveis de serem representados em

Johanesburgo: “(...) o Sena / não há e a Torre Eiffel / que também não” (KNOPFLI,

2003, p. 201 – MVS).

164

O que o poeta revela é a sua vontade de ser estrangeiro em ambas cidades, tendo o direito de flanar45, como Baudelaire, pelas ruas de sua Paris africana, projetando-se, imaginariamente, na sua idealizada Paris francesa. Francisco Noa (1997) afirma que em

Knopfli

A subjetividade poética emerge, portanto, do desequilíbrio entre a visão harmoniosa e caótica da cidade em que sobreleva uma baudelairiana (e por que não eliotiana?) "mélancolique spleenétique" atracada de conjugações espaço-tempo determinadas. Assim, quer imagens de interiores (...), quer imagens de exteriores (...) são sistematicamente associadas em Knopfli (NOA, 1997, p. 68)

Desejava, portanto, aprender, admirar este “sítio” africano, vendo-o como europeu; queria olhar “essas mulheres / excêntricas e belíssimas” (KNOPFLI, 2003:

201-202 – MVS), vestidas à moda europeia, assim como os homens que adotaram um estilo de vida anti-materialista muito em voga nos anos 1950 e início de 1960, os beatniks, que eram vistos como também excêntricos, mas feiíssimos.

O adjetivo “excêntrico” revela duas visões sobre como o eu lírico apreendia o que era de fora. Para as mulheres, vestir-se com roupas da moda ocidental era algo excêntrico, por não estarem nos padrões africanos de vestimentas, mas se consideravam, ao mesmo tempo, “belíssimas”, reafirmando sua aceitação quanto ao que o Ocidente exportava culturalmente. Percebe-se, assim, como já observou Roland Barthes (2005), que a moda ocidental resultava de uma

(...) sobreposição de vários sistemas de sentidos: por um lado, o que se poderia chamar de 'código indumentário', que regulamenta certo número de usos, e por outro lado a retórica, ou seja, o modo como a revista exprime esse código, modo este que remete a certa visão do mundo, a uma ideologia (BARTHES, 2005, p. 376)

Completamente contrário é o sentido dado ao adjetivo “excêntrico”, quando se refere aos beatniks, que adotaram uma filosofia de vida distanciada dos padrões da

época, – ocidental e africano –, pois acreditavam que o mal vinha do convencionalismo

45 Rui Knopfli assume o tédio e o spleen baudelarianos, inaugurando, em África, a problemática do flanêur diante das grandes cidades, o que se faz por uma atitude idealizada.

165

burguês, da artificialidade social e do homem de terno cinza, colocando-se o mais distante possível da moda convencional ditada pelo Ocidente. (BARTHES, 2005, s/p).

Knopfli – que possui um olhar híbrido sobre o mundo, atravessado pelas culturas de ambos os lados do globo – apresenta, assim, uma visão mais aberta para as situações observadas, o que possibilita uma maneira mais crítica e intensa de enxergar as excentricidades que se impõem nas paisagens adiante.

Os versos seguintes assinalam, ironicamente, uma crítica aos padrões americanos da moda: “tudo com ar sincero / mas pouco convincente do made in USA”

(KNOPFLI, 2003, p. 201-202 – MVS). Isto é, eles são apenas tentativas sinceras de cópias de um modelo ocidental e em pouco convencem.

Johanesburgo, “de menos luz”, é uma cidade onde o poeta viveu algum tempo e lhe acrescentou uma vasta cultura, a ponto de levá-lo a se sentir viajando pelas ruas francesas do “Montparnasse de Hilbrow”, referindo-se ao Quartier Latin, bairro de efervescência negra, nos arredores da Sorbonne, na França, nas décadas de 1930 a 1960, onde se parava para tomar um coffee turco e ouvir uma apresentação de saxofone e jazz.

É, pois, via Johanesburgo que Knopfli toma consciência dos

(...) debates que animaram o Quartier Latin, na década de trinta, sobre temas literários e políticos, debates nos quais foi-lhes dito que não tinham nenhuma civilização original e nada traziam à história do mundo. Eles tinham que responder e começaram. As glórias passadas na África, as riquezas, o ideário necessário ao equilíbrio do mundo futuro, os tantãs e as danças, a emoção, a intuição enfim, tudo o que podia ser expresso. (...) Um novo nome, um conceito, todo um vocabulário nasce neste contexto, para onde se canalizavam os debates: a negritude, quer dizer, a personalidade negra, a consciência negra (MUNANGA, 1986, p. 42)

Atente-se para o fato de o sujeito poético “ouvir o sax maravilhado / de Kippie

Moeketsi” (KNOPFLI, 2010, p. 201-202 – MVS), que é um famoso instrumentista sul- africano e concluir: “O jazz, sim, / é genuíno e tem um bite / todo local” (KNOPFLI,

2010, p. 201-202 – MVS). Como se, ali, no polo cultural da África, o jazz, cuja simbologia, além de remeter aos antigos negros e escravos americanos, apresentasse 166

“uma vibração melódica e rítmica que se reconhece (...) na juventude lourençomarquina” (NOA, 1997, p. 41), como se ganhasse uma sonoridade típica dessa terra, porque já não era mais a cópia do outro, mas a transformação dele.

Fátima Monteiro (2003) afirma que a poesia de Knopfli é

marcada pela modernidade, ou ainda por cadências estilísticas em voga ao tempo da sua escrita. É o caso por exemplo da influência do jazz, particularmente do bipbop, que da década de 50 e inícios de 60 se infiltrará e estabelecerá em meios poéticos conotados com irreverência sócio-política e vanguarda artística, e aos quais Knopfli terá acesso através da África do Sul (MONTEIRO, 2003, p. 31)

A sensação de solidão do eu lírico knopfiliano é grande. Ele se sente um estrangeiro na paisagem fria e sombria que descreve:

O néon e a madrugada silenciosa, o asfalto molhado, a luz da aurora e a luz dos reclamos misturando-se, a minha solidão (...) (KNOPFLI, 2003, p. 202 – MSV)

E anda pelas ruas como um solitário estrangeiro “cobiçoso de espanto”

(KNOPFLI, 2003, p. 202 – MVS), em busca de novas opções de conhecimento.

Knopfli é um poeta "estrangeiro", cuja importância é nenhuma, tanto na

Johanesburgo real, quanto na Paris sonhada, porque ele é um “de fora” em ambas as cidades. Somente em sua terra natal, com seus pontos de apoios emocionais – casa, família, amigos, objetos pessoais, língua etc. –, é que ele poderia, ou não, se sentir mais enraizado, contudo também se sente exilado na sua própria terra natal.

Londres, a quarta paisagem urbana recortada nesta tese, não sobressai na obra de

Rui Knopfli tanto quanto as demais, entretanto seu poder afetivo causa, no sujeito poético, um dissabor, que só é abandonado nas rememorações da infância.

Londres é a cidade do exílio, cuja paisagem é escura, chuvosa, fria e, em nada, remete à quente, ensolarada e colorida Moçambique, fazendo com que o poeta se

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fechasse ainda mais em sua obra e seu humor começasse a adquirir o travo amargo da mágoa.

Mágoa índica, doída saudade ao sol- poente de praias na distância, travado na garganta o soluço à luz crepuscular que persiste e teima não tornar-te olvido. Sal saudade (KNOPFLI, 2003, p. 443 – OCA)

Há referências literárias à cidade de Londres, ou da cultura e história da Grã-

Bretanha, por meio, mais uma vez, de Shakespeare ou das lendas de Rei Artur, por exemplo, evidenciando ser esse o elemento de afeto que este espaço urbano provoca no poeta.

Altas estante, soberba e estranha biblioteca. Nas prateleiras, dísticos coloridos em lombadas de vidro fosco. E no grande livro aberto da mesa, por caracteres, copos,

cinza e fumo. (...) A inscrição é efêmera, mas imobiliza-se no tempo, como o velho rei Mago se debruça sobre o tabuleiro de xadrez, em nome de uma bela história. (...) na saudação do peregrino, pergunto-te, e pergunto-me, adiando a resposta, que teremos nós a ver com D. Sebastião e o rei Artur, além do nevoeiro. (KNOPFLI, 2003, p. 455 – OCA)

No poema acima, os elementos caracterizadores do espaço aparecem na imagem da "biblioteca soberba" do "velho rei Mago" (KNOPFLI, 2003, p. 455 – OCA), em D.

Sebastião e rei Artur que desapareceram nas brumas e no nevoeiro, remetendo ao jeito misterioso que a paisagem, o poeta e a poesia possuem. Em Londres elementos simbólicos da poesia perdem ainda mais o brilho: "Rosas inglesas rosa-pálido tingido / de alvura (...)" (KNOPFLI, 2003, p. 452 – OCA). Contudo, isto se dá, porque o olhar que abarca essa paisagem também perdera sua cor, como uma consequência pesada do exílio tão distante. 168

Semelhante ao processo que ocorreu em Paris, entretanto, nessa cidade, o que despertava afeto era a projeção imagético-literária que, embora nunca visitada, a cidade francesa suscitava em sua imaginação juvenil; enquanto em Londres, o afeto ocorre a partir do espaço físico para o espaço do imaginário. Rui Knopfli, mais maduro, vive na urbe londrina real – que é mais dura e áspera que a dos sonhos e literaturas de outrora –, e não a suporta, usando, portanto, a literatura, a cultura, a história, entre outros, para povoarem a sua paisagem, como maneira de fuga, como também fizera, muitas vezes, rememorando Moçambique.

Assim, Rui deixou-se amolecer e entranhar-se nas paisagens que a Grã-Bretanha lhe oferecia e desiste de resistir, sucumbindo a elas:

Eu não

posso fugir-te: lentamente desces, instalas-te no meu sangue. Não tenho rosto e esqueço o meu nome. (KNOPFLI, 2003, p. 456 – OCA)

Interessante observar os dois últimos versos citados que traçam uma relação entre cidade e poeta. Eles fundem-se nela, ao ponto de deixarem-se sucumbir ao que as cidades têm como característica: o anonimato ou, ainda, a massificação. Em Londres,

Knopfli é efetivamente mais um rosto na multidão, massificado e misturado à cidade, funde-se perdendo o nome.

O poema "Smile" (KNOPFLI, 2003, p. 243 – MVS) – sorriso, em inglês –, apesar de ter sido escrito antes da saída do poeta de Moçambique e de sua ida para

Londres, consegue compor a paisagem física que vai afetá-lo futuramente, amargurando-o, ao mesmo tempo, que o alegrando, por meio das metáforas que a imagem poética do signo "sorriso" provoca. Ambiguidades de Rui Knopfli.

Teu sorriso punha uma breve nota cálida no cenho franzido do céu. 169

O teu sorriso arriscava um tímido fulgor na máscara de gelo, (...) da cidade vestida de rigoroso escuro (...) a cidade ameaçava sorrir para o teu sorriso (...) O teu sorriso, todo dentes e ternura. (KNOPFLI, 2003, p. 243 – MVS)

O sorriso cálido, tímido, gelado que ameaçava com seu rigor e sua sobriedade inglesa, com o passar dos versos, vai se metamorfoseando, como se estivesse iniciando uma aproximação afetiva entre o poeta e a cidade, a partir da pontuação de seus símbolos: "Regent Park", "Tower Bridge" ou, ainda, "Kings' Road", chegando a um sorriso afável de uma cidade que evitou sorrir, mas, no fim, também acolheu, com sua ternura, mais um de seus filhos, fruto de múltiplos exílios.

Todavia, o poeta, de olhar curioso, deixou-se sucumbir pela apatia como declara

Eugénio Lisboa, acerca da passagem de Rui Knopfli por Londres; Lisboa era

Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e Rui, Conselheiro de Impressa da mesma instituição, o que rendeu uma acentuada convivência entre ambos. Assim,

Eugénio pôde afirmar:

De Londres aproveitou pouquíssimo: pouco teatro, pouco cinema, pouquíssimas das impressionantes, monumentais e frequentes exposições que por ali passavam. Mesmo livros, comparando-se com os que adquiria compulsivamente em Lourenço Marques e na África do Sul, muito poucos. Uma quase apatia... (LISBOA, 2013)46

Pode-se concluir, ainda, que há uma relação entre o local e o internacional, relação esta que troca de lugar, de acordo com o ponto de vista do poeta. Em Lourenço

Marques, sonhava Johanesburgo; na cidade sul-africana, imaginava América e Europa e, quando, finalmente, nesta se encontra, só pode pensar em Moçambique. Em um esquema de inversão, em primeiro lugar via-se de dentro para fora – do local em África

46 Lisboa, Eugênio. "Pro memória: Rui Knopfli, 15 anos". In: http://dererummundi.blogspot.com.br/2012/06/pro-memoria-rui-knoplfi-15-anos.html. Acesso em: 20/08/2014.

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para o internacional no Ocidente –, para, em seguida, reverter-se para o de fora para dentro – do Ocidente internacional, tentando buscar aquele local africano deixado lá na infância dos rios sem nomes de sua terra.

171

3.4. Paisagens literárias: o espaço multifacetado da poesia

Ajustei minha cabeleira longa, coloquei-lhe ao de cima meu chapéu de coco em fibra sintética, sacudi a densa poeira das asas encardidas e, dependurada a lira a tiracolo saio para a rua em grande uniforme de poeta. (KNOPFLI, 2003, p. 194 – MVS)

Neste subcapítulo, objetiva-se demonstrar como Knopfli veste o uniforme de poeta e, com sua lira dissonante a tiracolo, revela um espaço que abarca as linhas do papel. Por entender que a lírica possui maior poder de expressão subjetiva da paisagem, já que permite que o poeta se exprima de dentro para fora, enquadrado pelo horizonte que a poesia lhe confere, debruçar-se-á, aqui, sobre as dobras dos versos knopfilianos, sílaba a sílaba, buscando evidenciar os componentes subjetivos de sua experiência com as paisagens, sobretudo, literárias.

Entre os gêneros literários, a poesia, e especialmente a poesia lírica, parece particularmente apta a exprimir esses componentes subjetivos da experiência com a paisagem. A enunciação lírica, em primeira pessoa, corresponde à focalização da paisagem no ponto de vista de um sujeito. Bakhtin foi capaz de demonstrar que a visão proposta pela poesia se distingue radicalmente da visão romanesca, precisamente pelo fato de que, nela, o mundo é percebido de dentro, como o horizonte da consciência poética, enquanto que o narrador de um romance adota um ponto de vista sempre mais ou menos exterior, que situa suas personagens mais objetivamente no interior de seu meio ou de seu entourage (COLLOT, 2013, p. 52)

Pode-se afirmar, portanto, que Knopfli era dotado dessa consciência poética que moldava o seu horizonte, como em "Ideia do poema" (KNOPFLI, 2003, p. 435 – OCA) em que, por meio de um vocabulário erótico-imagético, o poeta descreve como uma simples ideia "Fluida, indecisa, volátil / inconcreta" (KNOPFLI, 2003, p. 435 – OCA), transmuta-se em poesia, usando a palavra "audaciosa, pertinaz, envolvente" (KNOPFLI,

2003, p. 435 – OCA) como instrumento para tal transformação. Entende-se que poeta e

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poesia têm o horizonte poemático nas palavras – "Por outro lado, é antes na própria letra do texto, em seus significados gráficos e fônicos, que se dá a ver e a entender poeticamente a paisagem" (COLLOT, 2013, p. 61) – e que, somente junto a ela, a ideia pode ser apreendida, pois a palavra

Cativa-a e perturba-a lentamente, subverte-lhe a vontade, exalta-lhe os sentidos

e, amorosamente, nela penetra desfigurando-a. (KNOPFLI, 2003, p. 435 – OCA)

Com as palavras moldando as ideias do poeta, o poema nasce como outra instância, pois já não é ideia e, sim, palavras, cujos horizontes poemáticos delimitam:

Da ideia já nada, ou quase, sobra. Senão o poema. (KNOPFLI, 2003, p. 435 – OCA)

Knopfli vai, em diferentes momentos, voltar-se para alguns cânones instituídos na tradição ocidental; assim produz, por exemplo, o poema "A ũa moça de olhos verdes que o poeta tomara por azuis" (KNOPFLI, 2003, p. 197 – MVS). A partir de seu título até o fim desse poema, trabalha-se, por meio da ironia, com a literatura instituída – o trovadorismo português transparece no título do poema (em "A ua moça de olhos verdes que o poeta tomara por azuis") –, intertextualizando, dentre outros, com Camões

"Dinamene não era escura?" (KNOPFLI, 2003, p. 197 – MVS) e, acima de tudo, com uma temática muito simples e repetida na história da literatura: o amor. O poeta demonstra sua capacidade de compor um poema com essas características e, ao mesmo tempo, ir além:

Insistes que são verdes os teus olhos que eu quero ver azuis: este o problema aparente. Farrapos do mar, Pedaços do céu, Verdes que os sintas, Azuis vistos por mim, 173

Que importa? (KNOPFLI, 2003, p. 197 – MVS)

No trecho acima, verifica-se a presença da metáfora das cores dos olhos, já sem ideia metafórica que instaura o novo, como uma crítica às temáticas repetitivas e distantes da realidade dura, que ele, Rui Knopfli, vivera. Ao mesmo tempo, tal metáfora aponta para a questão do olhar de dentro para fora: a moça observada pelo poeta se reflete nele e ele, nela; assim, para o poeta, os olhos são azuis, pois, dessa forma, os vê quem de fora está, mas para o ser em observação – no caso, a paisagem – os olhos são verdes, porque esse olhar é do seu interior para o exterior.

O poeta, todavia, consegue, com maestria, romper com a metáfora velha e carregada de significados sem "vontade de fruidez" (BARTHES, 2004, p. 20), e instaurar uma nova, trabalhando a aproximação entre o "denso verde misterioso / dos fundos abissais" (KNOPFLI, 2003, p. 197 – MVS), ofertado pela moça, e a "serenidade polida dos azuis" (KNOPFLI, 2003, p. 197 – MVS), por ele implorado. Desta forma,

Knopfli evidencia a "estandardização das metáforas" (DUFRENNE, 1969, p. 46) que consiste no empobrecimento dos sentidos, de acordo com a repetição de seu uso: "(...) pois metáforas quando surpreendem quando novas, esmorecem rapidamente e assumem um sentido literal que bem cedo se propaga e não mais desperta reminiscências (...)"

(DUFRENNE, 1969, p. 46).

Ou ainda, quando troça com a poesia concretista em "Poemazinho concretista inspirado em João de Deus, primeiro poeta dito, com vista aos leitores (adultos) das primeiras letras" (KNOPFLI, 2003, p. 199 – MVS). Mais uma vez o título envia a mensagem irônica corroborada pelos versos do poema:

vi a uva vi a úvula vi a vulva fulva à viúva

viste uma ova. 174

(KNOPFLI, 2003, p. 199 – MVS)

O poeta tem consciência do papel da obra de arte no mundo como motivadora, questionadora, visionária..., mas entende que ela não deve ser entregue de maneira simples e mastigada e, sim, que ela deve aguçar e incitar para além do óbvio, cabendo ao artista este papel, pois

A arte e a literatura não podem explicitar na sua integralidade e em toda integridade um real que escapa à compreensão da linguagem e da representação. Muito menos que a evocação lírica, uma descrição realista não alcançaria a realidade de uma paisagem. A verdade de um texto não reside em uma improvável adequação ao modelo exterior, mas unicamente em sua realidade de obra de arte (COLLOT, 2013, p. 113)

Assim sendo, o poeta, entende que obra de arte e artista fundem-se, devido à impessoalidade de um e à função da outra, formando uma coisa só que ele reafirma no poema "Notas à margem de uma leitura" (KNOPFLI, 2003, p. 322-323 – MVS):

Que, na verdade, o assunto nuclear à obra de arte – nem sempre óbvio ou explícito ou claro – é sempre e somente o próprio artista. (KNOPFLI, 2003, p. 322-323 – MVS)

A paisagem, como já afirmado, não é só vista, como também, sentida de múltiplas maneiras; da mesma forma acontece com a poesia de Rui Knopfli, que embute em sua obra os valores afetivos influenciados pelas diferentes geografias: literária, social, pessoal.

A paisagem não é apenas vista, mas percebida por outros sentidos, cuja intervenção não faz senão confirmar e enriquecer a dimensão subjetiva desse espaço, sentido de múltiplas maneiras e, por conseguinte, também experimentado. Todas as formas de valores afetivos – impressões, emoções, sentimentos – se dedicam à paisagem, que se torna, assim, tanto interior quanto exterior (COLLOT, 2013, p. 26)

Em "Imagem reflectida" (KNOPFLI, 2003: 305 – MVS), a paisagem, além de vista do poeta para o mundo, é, também, sentida em mágoa: "A imagem leva-a ele: / um peso morto, / uma mágoa inútil." (KNOPFLI, 2003, p. 305 – MVS).

175

Em certos poemas, a paisagem descrita pelo poeta é ressentida, amargurada,

"melancolérica", reflexo de um olhar que enxerga por meio desses filtros. Entende-se que a produção literária está intimamente relacionada ao visível e à experiência do sensível, e que a lírica, espaço de melhor expressão das sensibilidades, em Knopfli ora toca em uma lira soante, ora dissonante. "A paisagem distinta é composta por tudo o que um sujeito valoriza positiva ou negativamente no mundo sensível, porque o sentir é inseparável do ressentir" (COLLOT, 2013, p. 56).

A lira knopfiliana toca dissonante em versos metapoéticos como

(...) O verso engendra-se lentamente na tristeza insone das horas: um tiro certeiro apontado ao coração dos homens. Far-se-á luz. Só o mistério ficará por solver. (KNOPFLI, 2003, p. 223 – MVS)

O verso nasce da tristeza e pode ter a força de um tiro que faz movimentar o homem. Isso é o que deseja o poeta. Há um ritual para o fazer poético, metaforizado no toque da lira, pois o poeta senta-se e deixa-se observar e ser observado pela paisagem poética que está a se formar nas linhas do papel e nas melodias da lira.

(...) de forma a que a paisagem prossiga, sem sobressaltos, a sua imobilidade de chão circular balizado por sombras pontiagudas. (KNOPFLI, 2003, p.227 – MVS)

Knopfli é um poeta sofredor, mas totalmente entregue à poesia, permitindo que o

Genius (AGAMBEN, 2007, p. 18-19) que existe dentro de si aflore; assim, aceita a impessoalidade que a poesia lhe confere, para que o seu desejo de genialidade seja alcançado.

Eu sinto que Genius existe em algum lugar, que há em mim uma potência impessoal que impele a escrever. (...) Escrevemos para nos tornarmos impessoais, para nos tornarmos geniais (...) o poeta que faz pose e se dá ares de importante, ou, pior ainda, agradece, com fingida humildade, pela graça recebida. Frente a Genius, não há grandes homens; todos são igualmente pequenos. (...) De fato, o poeta celebra seu triunfo no não reconhecimento (...) (AGAMBEN, 2007, p. 18-19) 176

Portanto, dando-se ao seu Genius, o poeta afirma tristemente no poema "Sem nada de meu" (KNOPFLI, 2003, p. 320 – MVS) que é desprovido de tudo, que se deu

"por inteiro" (KNOPFLI, 2003, p. 320 – MVS), enquanto os demais faziam ou acreditavam fazer o mundo. Como consequência de tamanha entrega, chega-se à impessoalidade dos órgãos, como se o poeta se despisse de sua carcaça e sobrasse apenas "coração, vísceras e um corpo. / Com isso vou vivendo" (KNOPFLI, 2003, p.

320 – MVS).

A característica mutável do Genius faz com que se encontre na poesia knopfiliana uma variação de perspectiva de olhar ao longo de sua obra, como se oscilasse entre o Genius cândido ao tenebroso, sempre por meio da ironia do olhar e da escrita. (AGAMBEN, 2007, p. 20).

O poema "Cartas da véspera" (KNOPFLI, 2003, p. 304 – MVS) evidencia uma entrega cega do poeta à poesia; ela, que o exaure, o leva à febre e suga sua a alma, tal qual o demônio Mefistófeles fizera com Fausto na obra de Goethe.

O labor poético é árduo e os vocábulos reveladores das sensações travosas que este trabalho oferece:

Era a neblina, o orvalho e a friagem, o olhar opaco e palato salobro. De madeira, as mãos. Labor de febre o de passar a alma ao papel. De mim sobrava um corpo vegetal inteiriço e dormente, boiando na líquida superfície da manhã (...) Assim, aos poucos, se me foi a alma toda em sobrescritos. Invólucro vazio, o corpo, dei-o ao demo. (KNOPFLI, 2003, p. 304 – MVS)

Ao entoar sua lira, Knopfli expressa a sua paisagem sensível, entretanto, ao terminar, o espaço da sensibilidade fica vago, pois a poesia se realiza no momento em 177

que a leitura acontece; portanto, ocorre um deslocamento do poeta toda vez que um poema se finda, projetando um vazio a ser ocupado apenas, temporariamente, por um leitor, que pode ter despertado em si as mesmas paisagens ou sensibilidades, ou nenhuma, deixando o livro para trás, sem testemunhar aquele sentimento.

(...) a poesia aquele pensamento e aquele sentimento se lhe tornaram reais, precisos e indesapropriáveis em cada detalhe, em cada matiz (assim como se o tornam para nós apenas no momento em que lemos poesia). (...) Para que se façam presentes, importa, pois, que alguém tome pela mão o livro, arrisque-se na leitura. Mas isso pode significar apenas que tal indivíduo ocupará no poema exatamente o lugar vazio que o autor ali deixou, que ele repetirá o mesmo gesto inexpressivo através do qual o autor tinha sido testemunha de sua ausência na obra (AGAMBEN, 2007, p. 62)

A paisagem vai produzir e ser produzida por meio de sentidos: a percepção e o olhar crítico do autor; a imagem do mundo que reflete a imagem do eu e o ponto ainda não tocado nesse subcapítulo: o papel do leitor. Este é responsável por receber e constituir aquelas imagens dotadas de sentido. "É a conjunção de uma percepção singular do mundo, de uma organização literal, de uma impressão de leitura e de sua elaboração crítica que produz o que se poderia chamar de um 'efeito-paisagem'".

(COLLOT, 2013, p. 55).

A paisagem adquire aspecto transgressor na geopoética de Knopfli, assim como o poema e o poeta:

A paisagem transgride a oposição entre o sujeito e o objeto, o individual e o universal; embora possa assumir todos os valores da afetividade mais íntima, a convergência dos olhares faz dessa afetividade um lugar comum para mim e para os outros (COLLOT, 2013, p. 27)

Nos três poemas que compõem "Notas para a regulamentação do discurso próprio" (KNOPFLI, 2003, p. 429-431 – OCA), encontra-se o roteiro seguido pelo poeta para regulamentar seu discurso. E, ao passá-lo ao leitor, informa-lhe como seu discurso deve ser lido, entendido, pensado, recuperado, representado e reproduzido.

Primeiramente, o leitor é questionado quanto a sua capacidade de entender o discurso poético que ali se põe: "Podes tu, que apenas chegas e tudo ignoras / das 178

traiçoeiras dificuldades experimentadas / nos lameiros que atolam o percurso [?]"

(KNOPFLI, 2003, p. 429-431 – OCA).

O poeta entende que a "aventura da linguagem" é o que guia o poeta, o leitor e a poesia, conferindo ao poema uma característica de barco pirata que se aventura pelo mar das palavras:

Um barco embandeirado de signos, sons, rútilas conotações e uma carta de prego. Um porão de surpresas, a rota misteriosa, e, por certo... por certo... um tesouro com ilha

em redor. (...) (KNOPFLI, 2003, p. 429-431 – OCA)

É a relação de amor às palavras que unem esses três pontos necessários para que a obra de arte se configure como tal. Rui deseja o signo e evoca a fidelidade à palavra que o compõe como poeta, mas também o tortura (KNOPFLI, 2003, p. 335 – MVS).

Que, transformando-as em fim, o amor das palavras não corrompa e destrua o amor da verdade. Que, a prevalência do jogo gratuito me não arraste e me seja concedida a benfeitoria da recusa, em todas as circunstâncias e por ilimitado prazo.

Que, o ser-lhes fiel, me não desobrigue da fidelidade à fidelidade, ao sangue e à voz. Que, anacrónico, discursivo, explícito, negado, escarnecido e reduzido ao limbo, um homem de gravata e fato escuro, contrariando o sentido único do tráfego, a horda irreprimível da excepção endémica desdobrada, por contágio, em excepção generalizada, eu venha, ad absurdum, a constituir a excepção da excepção. Que as palavras sejam, pois, não uma exclusiva volição

de ser ou de significar; se conduzam, porém, de tal forma que, em significando, sejam e, sendo, signifiquem; e uma e outra coisas e interpenetrem e interliguem, tão aturada e porfiadamente, que obstruam e interditem todo e qualquer escrutínio

unilateral, sendo como tornadas são, objecto outro e não a soma das parcelas integrantes. (KNOPFLI, 2003, p. 429-431 – MVS)

Está aí uma das visões do poeta sobre o valor das palavras, que só podem ser realmente apreendidas em contraponto ao silêncio: "Na exactidão vocabular se articula

179

o discurso. / Tenho só este exíguo e perplexo pecúlio / de palavras à beira do silêncio"

(KNOPFLI, 2003, p. 429-431 – OCA).

O sentido de um texto, como o de uma paisagem, baseia-se na disposição dos elementos que os compõem; é por sua aptidão para criar novas relações e solidariedade inédita entre as palavras que um escritor pode levar em conta a singularidade de sua relação com o mundo (COLLOT, 2013, p. 47)

Outra característica da poesia de Knopfli são as múltiplas faces que sua geopoética assume; devedora de uma literatura mais ampla, a poesia knopfiliana olha para diversas direções e incorpora as mais diferentes faces, como, por exemplo, no poema "Lee Marvin" (KNOPFLI, 2003 p. 326 – MVS) em que vários ícones da cultura pop – a começar pelo próprio Lee Marvin, que intitula o poema e foi um ator hollywoodiano, cujos filmes de ação Knopfli apreciava – são ressignificados poeticamente.

Conclui-se, portanto, que o corpo da poesia, assim como o do poeta, é "ao mesmo tempo, vidente e visível, tocante e tocado, sujeito e objeto; abre-nos a um mundo do qual ele mesmo faz parte" (COLLOT, 2013, p. 37-38) e que Rui Knopfli abriu-se, completamente, de corpo, alma e poesia, às palavras, para que, as

"transcriando", ele também pudesse "se transcriar". Apesar da impessoalidade que se busca na poesia, em Knopfli, encontram-se marcas tão características, como a ironia, as multicafes poéticas, o esmero com a palavra, que não há um afastamento real do sujeito- poeta, que se abstém, se anula, em prol do próprio eu lírico.

180

4. EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA E DO EXÍLIO

Não chego ao infinito. Fiquemos então assim: Eu o cavalo melancólico ruminando mágoas e silêncios num gasto panorama bucólico (KNOPFLI, 2003, p. 127 – RS)

Neste capítulo, desenvolver-se-ão as ruminações, mágoas e os silêncios bucólicos que se apresentam na geopoética de Rui Knopfli. Assim como dito na epígrafe e no título, chega-se ao último momento desta tese com o olhar agudo para as questões que afetaram o poeta em estado de exílio, evidenciando como se constrói o panorama poético de Knopfli a partir de suas memórias ("consentidas" ou não), a presença da família, do amor, dos amigos e como ele consegue lidar com a solidão e a morte que o acompanham em suas andanças pelo mundo, até seu estabelecimento em

Londres, e, depois, em Portugal, onde falece.

Entende-se como afeto aquele sentimento que abala o ser; diretamente ligado à linguagem do sensível e inerente à lucidez das afecções. Segundo Ana Mafalda Leite, em entrevista à Professora Doutora Carmen Tindó, na obra Afeto e poesia (2014),

Os afetos são a força primordial de qualquer tipo de conhecimento (...). A literatura é um espaço de refração estética das emoções e da idealização do mundo, por isso a emoção perpassa em toda a representação ou dramatização de enredos, personagens, quer na ficção, quer na poesia. (...) o mundo é todo ele animado de uma estranha luminosidade que pulsa como um coração aceso. Escrever é sentir essa pulsação como um rumor alucinado e brando. Afetos e desafetos me percorrem como as fases da lua (...) (LEITE. In: SECCO, 2014, p. 98-99)

Knopfli, portanto, diante de sua história e sua bagagem cultural é atravessado por afetos e desafetos e, mesmo que esta não tivesse sido sua intenção primeira, ele é o pioneiro em Moçambique a tecer, em um momento no qual a literatura tinha outros

181

"objetivos" e "obrigações", uma geopoética de afetos permeada pelos sentimentos sensíveis, como sinaliza Adelino Timóteo:

Na verdade, devo destacar em primeiro lugar o Rui Knopfli, que se estende um grande apelo (...). Há aqui [na poesia de Knopfli] uma demarcação sobre a fronteira do real e do sensível, fazendo imergir o território do afeto, que a poesia, aquela concreta, não se compadece senão com a dimensão do sensível, em pleno tempo colonial, aludiu aos colonialistas em face do que estava: O país dos outros (1959). Em Máquina de areia, outro seu livro, ficou subjacente a premonição através de um poema que é a certidão de óbito do colonialismo (TIMÓTEO. In: SECCO, 2014, p. 91)

Afecções são modos de sentir, relacionados diretamente ao corpo, por meio de imagens e ideias que "manifestam emoções, sentimentos, provocados por causas externas, sensações. A emoção age sobre o corpo." (SECCO, 2014, p. 14), enquanto os afetos são internos, presos à dimensão do sensível que age nas paixões, nos desejos, nas pulsões, no corpo e na alma.

Rui, que se exila, em 1975, – primeiramente em Portugal e, em seguida, em

Londres –, por não se sentir mais em segurança em Moçambique, devido aos conflitos e

às rixas com os portugueses colonizadores, leva consigo, contudo, uma grande compreensão de diversos espaços moçambicanos, pois, entre as décadas de 50 e 70, trabalhou como funcionário de propaganda médica, o que lhe permitiu percorrer várias regiões moçambicanas e aproximar-se mais delas, conhecendo-as melhor.

Durante este período em que esteve ausente de Moçambique, continuou colaborando em jornais da época; além de A Voz de Moçambique, também escreveu para Notícias, que, mais tarde, foi chamado de A Tribuna. Colaborou, ainda, em

Notícias da Beira, publicando crônicas. Também dirigiu a revista quinzenal Tempo.

(MONTEIRO, 2003, p. 22-25).

Em exílio, sua literatura começa a ser desamarrada das questões provincianas, processo que, de certa forma, era necessário para uma escrita somente focada em

Moçambique e seus problemas. Deste modo, acredita-se que o livro O escriba 182

acocorado (1978) – escrito já em exílio – é um exemplo relevante, pois, como já afirmado nesta tese, é um livro que parte da África do norte, em específico, Egito, para pensar diversas questões históricas e sociais concernentes ao mundo. Contudo, claro que também olha para o país natal do poeta.

Nele, por conseguinte, começam a aparecer os primeiros indícios de um exílio que passará a marcar a geopoética knopfiliana. A fratura que esta condição causará em

Knopfli, levá-lo-á a transbordar uma poesia mais seca, melancólica, fechada em seus pensamentos afetivos sobre o mundo.

O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E, embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre (SAID, E., 2003, p. 46)

Em O corpo de Atena (1984) a fratura e a ideia de impotência diante de sua realidade percorre o olhar poético de Knopfli, como poderá ser constatado no poema

"Derrota" (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 – OCA), em que, a partir do título, percebe-se que é um sujeito com olhar vencido que canta, ou melhor, desabafa, por meio de adjetivos, metáforas e memórias, seus afetos e desafetos de exilado, consciente de que

"o que fomos / jamais seremos" (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 – OCA).

Este é o poema do derrotado, do exilado, daquele que se encontra à margem, deslocado e, também, expatriado. Assim, exemplificam-se os afetos e afecções que percorrem o poeta durante este período em que se encontra fora de sua terra natal, sonhando-a, sentindo-a poematicamente, revelando uma memória que o conforta neste

"terrível experienciar" (SAID, E., 2003, p. 46).

A crítica Miriam Volpe (2005) auxilia este trabalho, contribuindo para o entendimento do exílio e de suas diferentes formas:

183

Exílio, expatriação, a sinonímia da palavra é variada e inclui, entre outros: expulsar da pátria, degredar, desterrar, banir, extraditar, deportar. Mas também pode significar: afastar, apartar, arredar, e, como reflexivo, afastar-se do convívio social (VOLPE, 2005, p. 78)

Neste capítulo evidencia-se que, em Knopfli, tais significações se misturam poeticamente em uma explosão de sentimentos que buscam na memória apoio para sobreviverem aos diferentes afetos que pululam dentro do sujeito poético.

Mágoa índica, doída saudade ao sol- -poente de praias na distância, travado na garganta o soluço à luz crepuscular que persiste e teima não tornar-se olvido. Sal saudade, (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 – OCA)

Esta estrofe de abertura do poema "Derrota" (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 –

OCA) imprime uma paisagem que ratifica o sentimento de ruína do eu poético. Os versos constroem uma paisagem da memória vista por sintagmas relacionados ao campo da dor, do negativo, da perda: "Mágoa índica" – metáfora profunda e arrebatadora, pois mostra um desgosto imenso comparável ao mar Índico, diretamente relacionado ao espaço geográfico banhado por este oceano, em especial, Moçambique, sua pátria renegadora; "doída saudade" e "Sal saudade" (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 – OCA), em que o som sibilar no fonema [s] remete a uma ideia de sopro e afastamento, corroborando em força significativa o vocábulo que forma "saudade", que, além de salgada – pelas lágrimas e pelo mar –, é dolorida; e "ao sol- / -poente de praias na distância" (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 – OCA), em que se revela a presença da memória da praia da imaginação que quer preencher os espaços fraturados da realidade com a paisagem bucólica e silente destas costas. Seriam moçambicanas que estão presas em dois espaços, o temporal, já que é uma rememoração ou uma tentativa de, e o espacial, pois estas praias estão efetivamente "na distância"?

Há uma possibilidade de se acrescentar à reflexão sobre o exílio, um novo conceito, o de tempo. Todo desterro implica um "destempo" (termo cunhado por Joseph Wittlin), pois o exilado seria despojado não só de sua terra, mas também dos acontecimentos no tempo que transcorre em seu 184

país enquanto ele está fora. Também é frequente que, durante o exílio, se viva em dois tempos simultâneos, no presente da terra que acolhe e no passado que se deixou para trás, sendo que este último pode tiranizar o presente pela nostalgia do que se perdeu (VOLPE, 2003, p. 82)

Rui Knopfli que, diante de sua realidade de marginalizado e desterrado, procura transcriar memórias poéticas que o aproximem de outros degredados, vai até a mitologia grega para se emparelhar com os argonautas – navegadores ousados que empreitaram a perigosa busca pelo "Velocino de Ouro" – que, assim como o poeta, em sua ousadia literária, almeja o seu "Velo de ouro", mas não com a ideia mitológica helênica simbolizando poder e prosperidade, mas com uma nova ideia de conotar pertencimento, como se o seu prêmio fosse o poder da pertença e a prosperidade poética.

(...) fermento de orientes perdidos na rota inversa de argonautas privados de deuses e mitos. Cansados de tantas pátrias, de pátrias rejeitados, na pátria indesejados (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 – OCA)

Entretanto, tanto o poeta quanto os argonautas seguem perdidos em rotas inversas. Errantes, cansados de perambular por entre pátrias, sentem-se nessas pátrias indesejados: Jasão, em relação a sua pátria, pois seu tio Pélias, ao matar o rei e irmão, tomara o território como seu, submetendo o sobrinho-herói ao exílio na Tessalia; e o poeta, em relação a Moçambique, espacial e literariamente, pois de lá fora retirado e conduzido à margem dos indesejados.

Não é verdade (...) que o exílio é irremediavelmente secular e insuportavelmente histórico, que é produzido por seres humanos para outros seres humanos e que, tal como a morte, mas sem sua última misericórdia, arrancou milhões de pessoas do sustento da tradição, da família e da geografia? (SAID, E., 2003, p. 47)

Knopfli é um poeta que, ao se sustentar em muitas tradições, não é sustentado por nenhuma; a família é seu ponto de apoio; entre as idas e vindas de seu olhar, há sempre o pouso nos filhos e no amor. Fora do local geográfico de origem, insere-se no

185

ambiente poemático, fazendo dele seu espaço de vida, como se o único lar disponível para o poeta fosse o da escrita (SAID, E., 2003, p. 58):

Por mortalha o precário resguardo deste discurso penosamente vencido nas longas diuturnidades da insónia. Ainda que cantar seja seu modo, não canta, chora meu canto. (KNOPFLI, 2003, p. 443-444 – OCA)

Em O monhé das cobras – OMC (1997), o discurso é apurado e o poeta dedica- se à memória com um olhar mais latente, já que o livro se divide em partes que referenciam tanto a questões afetivas, quanto memoralísticas: "I. Os nomes, os lugares";

"II. As estátuas"; "III. O desterro".

O aspecto mnemônico em Knopfli terá um papel crucial de apoio para o sujeito fragmentado. Seus poemas apontam para uma memória que muitas vezes é preenchida pela imaginação do poeta que recria um espaço afetuoso e desejável para si, não deixando de revelar as duras afecções despertadas pela realidade pesada de exilado.

No poema "Encontro" (KNOPFLI, 2003, p. 128 – RS), o sujeito lírico busca, por meio das linhas poéticas, encontrar a amada, a memória, o espaço perdido da terra natal, e suprir a ausência e a perda:

Visito esse lugar. Procuro-te nesse recanto habitual. Sei que não estarás lá, mas finjo ignorá-lo, procuro pensar que saíste, que saíste há pouco, numa ausência breve, como se tivesses saído para logo regressares. (KNOPFLI, 2003, p. 128 – RS)

A visita feita ao lugar é por via da memória e imaginação, já que, desde o início, há a consciência de que não se pode recuperar o passado concreto, a não ser pela, inconcretude imaginativa da lembrança. Por isso, a condicional "se", seguida pelo verbo ter, no Pretérito Imperfeito do Subjuntivo, traz a intenção de (im)possibilidade daquele

186

regresso, e corrobora, assim, para reafirmar o espaço geopoético memoralístico na poesia knopfiliana.

Quando chegasses, se tu chegasses, dir-te-ia: tu lembras-te? E o verbo acordaria ecos, Nostalgias distantes, Velhos mitos privados. (KNOPFLI, 2003, p. 128 – RS)

Quem seria o sujeito que partiu? A amada? O poeta? O verso? O eu lírico quer compartilhar lembranças com alguém ausente em sua memória, pois não há rosto, apenas o sentimento afetuoso, mas também mentiroso, de retorno. E a paisagem, deste modo, articula-se e se projeta por via da imaginação, para suprir tais perdas e diminuir o sofrimento frente à realidade:

(...) inúteis diálogos numa praça gris que imagino em tarde de invernia. Então disfarço, ponho-me a inventar, por exemplo, uma longilínea praia deserta, uma fina, fria, nebulosa praia muito silenciosa e deserta. (KNOPFLI, 2003, p. 128 – RS)

Knopfli foi atravessado por raízes diversas que não o prenderam a um único espaço, por isso não há em sua poesia a característica do nacionalismo. Por não apresentar uma ideologia triunfante para seu país e, principalmente, pelo fato de não se sentir pertencente somente àquele espaço, possui um dilaceramento que lhe é insuportável diante da realidade que se apresenta aos seus olhos quando enxerga um

Moçambique contemporâneo a ele.

O exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado de ser descontínuo. Os exilados estão separados das raízes, da terra natal, do passado. Em geral, não têm exércitos ou Estados, embora estejam com frequência em busca deles. Portanto, os exilados sentem uma necessidade urgente de reconstituir suas vidas rompidas e preferem ver a si mesmos como parte de uma ideologia triunfante ou de um povo restaurado. O ponto crucial é que uma situação de exílio sem essa ideologia triunfante – criada para reagrupar uma história rompida em um novo todo – é praticamente insuportável e impossível no mundo de hoje (SAID, E., 2003, p. 50) 187

Seu espaço é escuro e profundo, coberto de mágoas e angústias. E o poeta afirma: gritarás o meu nome e não responderei, porque não faço parte daquele espaço que afirma uma nacionalidade em exílio, não faço parte de nenhum espaço, e, todavia, pertenço a vários espaços ao mesmo tempo, reafirmando diversas realidades e não uma

"patrialidade".

Gritarás meu nome em ruas desertas e a tua voz será como a do vento sobre a areia: um som inútil de encontro ao silêncio.

Não responderei ao teu apelo, embora ardentemente o deseje. O lugar onde moro é obscuro lugar de pedra e mudez:

não há palavras que o alcancem, gelam-lhe os gritos por fora. (KNOPFLI, 2003, p. 297 – MVS)

Knopfli percebera a dinâmica nacionalista que começava aos poucos a se instalar em Moçambique e rechaçava-a, a partir de seu não engajamento político, mas, principalmente, literário, tendo como consequência o isolamento do cânone, fato que influenciou sua poesia. "Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientada, criando um novo mundo para governar" (SAID, E., 2003, p. 54). O poeta também sofreu as desorientações de exilado, desde antes do exílio físico, pois, como já mencionado, ele primeiro foi sentenciado ao exílio literário, devido ao não entendimento e encaixe de sua obra ao modelo da literatura vigente.

Os subcapítulos, a seguir, se desdobram sobre as questões levantadas pelo poeta em volta desta temática do exílio, do sentimento de exilado e do fato de estar fisicamente nesta condição. Almeja-se aprofundar as questões voltadas para as memórias do poeta, assim como suas relações com a família, o amor, os amigos, a solidão e a morte, pois esses são temas muito caros ao sujeito poético e saltam, mesmo que involuntariamente, dos versos knopfilianos. 188

4.1. Memória vivida e "memória consentida"

Percorres o escuro rio da memória, véus e neblinas, opacos musgos do esquecimento. Reaprendes (KNOPFLI, 2003, p. 330-331 – MVS)

Rui Knopfli percorre o rio da memória, em contraponto ao "Rio Lete", da mitologia grega, que é o rio do esquecimento; o caminho a se percorrer neste subcapítulo também é repleto de musgos de esquecimentos que são preenchidos pela imaginação da memória que se consente lembrar.

Entendem-se dois tipos de memória em Knopfli: aquela vivida, que ele busca em sua poesia como forma afetuosa de se reaproximar do passado existente; e a "memória consentida", permeada pela imaginação que ocupa as fissuras do tempo, do espaço e do exílio com imagens poéticas que servem de auxílio e força ao poeta em seus dias de apátrida, ajudando-o a suportar essa condição dentro do mundo e os atravessamentos afetivos, decorrentes.

Memória involuntária, afetos, afecções e poesia se encontram interligados. Esta não existe sem afetos, uma vez que a linguagem dos poetas lida com o sensível, afetando o ser nas suas diversas dimensões: existencial, ontológica, metafísica, histórica, social, cultural, política (SECCO, 2014, p. 16)

No poema "Memória consentida" (KNOPFLI, 2003, p. 474-475 – OCA), que integra o livro O corpo de Atenas (1984), evidencia-se uma geopoética da memória instaurada pelo poeta em seus livros. Misturam-se reminiscências como forma de preenchimento dos espaços vazios que ocorrem quando há "a lembrança agoniada / de não mais poder lembrá-las" (KNOPFLI, 2003, p. 474-475 – OCA).

Esse poema é uma justificativa para o uso da "memória consentida", pois não é possível ao indivíduo viver apenas de lapsos de lembranças que remontam a um

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"estilhaço / ou fragmento, como o latido / de um cão na tarde dolente" (KNOPFLI,

2003, p. 474-475 – OCA); o sujeito precisa de um passado, e isso lhe dá agonia. Seus afetos atingem a alma; o poeta sabe que precisa de uma biografia e que, após tanto tempo à margem, recuperar esse passado inexistente não é possível, cabendo apenas à imaginação o preenchimento dos espaços vazios necessários para o sujeito exilado tolerar mundo.

(...) relances há em que creio, ou se me afigura, ter tido, alguma vez, passado

com biografia, onde se misturam datas, nomes, caras, paisagens que, de tão rápidas, me deixam apenas a lembrança agoniada de não mais poder lembrá-las. (KNOPFLI, 2003, p. 474-475 – OCA)

Rui encontra-se "Neste lugar sem tempo nem memória" (KNOPFLI, 2003, p.

474-475 – OCA), no local do exílio, que, apesar de acolhedor aos seus exilados, não se compartilha com esse sujeito, vivendo cada um em seu tempo: a cidade de exílio, no tempo real e difícil, "só escuridão total" (KNOPFLI, 2003, p. 474-475 – OCA); e o sujeito no tempo das lembranças de "luz absurda" (KNOPFLI, 2003, p. 474-475 –

OCA), pontes para rememorações afetivas com seu lugar de origem, cujas marcas e características ele não identifica mais em seu espaço de vivência atual.

E o sujeito poético indaga, retoricamente, como forma de corroborar sua posição diante do uso da memória em seus poemas e em sua vida:

De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem provêm tais sombras melancólicas, ferindo de indecifráveis avisos

este lugar em que, não sendo consentido o coração, se não consentem tempo e memória? (KNOPFLI, 2003, p. 474-475 – OCA)

Ciente do dilaceramento causado pelo exílio, Knopfli refugia-se na Mnemósine poética, transmitida em versos que percorrem os rios das lembranças e da imaginação,

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já que, dentro da realidade, o poeta começa a dar as primeiras demonstrações das consequências desta situação:

Pelo agudo álcool das madrugadas, quando mortalidade e exílio me laceram e carne intoxicada, arde em mim mais alta a chama ávida e imperiosa que, naquela, reaviva a fome do seu corpo, tão pura invenção do meu engenho ardente (KNOPFLI, 2003, p. 398-399 – OEA)

Passa, então, a sofrer de um exílio interior que, muitas vezes, se confunde com alienação, mas que, na verdade, fez que o poeta se sentisse mais à vontade para querer habitar completamente o espaço da poesia, pois esse permitia a rememoração e a tentativa de positividade que um tempo de outrora possibilitava. Entretanto, sabe-se que o período colonial, no qual crescera, apesar de rodeado pelo lado colonizador, fora muito instável, o que cabe pensar que tais afetos positivos buscados por Knopfli são complementados pela imaginação, devido aos contrassensos daquele momento.

O exílio interior (...) poderia ser considerado uma forma de alienação em quase todos os sentidos que a palavra implica, pois (...) [ver] essa atitude como a de quem está distante, apartado; estranho, estrangeiro; desconhecedor; desatento; desviado, indisposto, dado que transferiu para outrem as decisões e o domínio de sua vida e seu destino (VOLPE, 2003, p. 82)

Dois poemas podem ser utilizados para exemplificar o amargor diante de uma felicidade preenchida apenas pela imaginação e do sentimento de afastar-se da realidade, projetando-se no futuro. O primeiro caso é o do poema "Feliz" (KNOPFLI,

2003, p. 302 – MVS), em que, com a metáfora do retrato – fotografia entendida como elemento de eternização de um instante –, o poeta deixa escapar o travo de uma lembrança de felicidade passageira de um momento longínquo que não se sabe se vivido ou consentido, mas que termina amarelecido no fundo da memória:

Alcançando-se, a epiderme dos dedos longos.

Eras feliz. Dizias, o sol morno sobre os cabelos. Feliz como nos retratos, 191

como na tarde longínqua do sorriso. Como rio tranquilo.

Existiu e não é. Os retratos amarelecem ao fundo da gaveta. (KNOPFLI, 2003, p. 302 – MVS)

O segundo caso é o poema "Lembranças do futuro" (KNOPFLI, 2003, p. 306 –

MVS), em que se consente, explicitamente, a paisagem poética, em que só é possível

àqueles que estão à margem, sofrendo esses afetos de longe, mas observando-os atentamente e transmitindo-os como forma de premonição em seus versos.

O poema inicia com uma inversão sintagmática que causa estranhamento: "Traz- me lembranças tristes o porvir" (KNOPFLI, 2003, p. 306 – MVS), para, em seguida, afirmar que nestes poemas estarão presentes "consentidas saudades" (KNOPFLI, 2003, p. 306 – MVS), pois há um sujeito sofredor que precisa desabafar:

O pranto do homem é menino perdido, mas a criança que chora na margem não se chora. Chora o homem:

só os poetas têm lembranças do futuro. (KNOPFLI, 2003, p. 306 – MVS)

A memória em Knopfli, como já foi comprovado por meio de diversos estudos sobre sua obra, aparece, sobretudo, projetada na infância e adolescência: "(...) Com uma criança / aprendi certas coisas. Por uma / criança regresso à memória" (KNOPFLI,

2003, p. 458 – OCA). Infância se caracteriza, assim, como um espaço de magia e memória.

Cortado o cordão que a unia à vida, [a criança] tenta recriá-lo por meio da afetividade e do brincar. Inicia assim um diálogo que só terminará quando recitar o monólogo de sua morte. Mas suas relações com o exterior já não são passivas, como na vida pré-natal, pois o mundo lhe exige uma resposta. A realidade precisa ser povoada com seus atos. Graças ao brincar e à imaginação, a natureza inerte dos adultos – uma cadeira, um livro, um objeto qualquer – de repente adquire vida própria. Com a virtude mágica da linguagem ou do gesto, do símbolo ou do ato, a criança cria um mundo vivo onde os objetos são capazes de responder às suas perguntas. A linguagem, despida de suas significações intelectuais, deixa de ser um conjunto de signos e volta a ser um delicado organismo de imantação mágica (PAZ, 2014, p. 196)

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A magia infantil expande-se também aos afetos direcionados à amada, que recebe um espaço especial na gaveta da memória. Portanto, a deusa Mnemósine também se manifesta nos sabores, na imagem da amada, na geografia daquele espaço em África:

Ouvindo mar bater no longe, dele tivera, nos lábios e na boca, o gosto acre e forte que dura na memória mais que nos sentidos. Conhecera-lhe, nos pulsos e na garganta, o palpitar agitado do sangue, seus ouvidos abrigaram-lhe o manso gemido, arquejante o corpo contra as altas paredes da noite.

Sentira-lhe o lume da intimidade, lento primeiro, logo torrencial, ardendo até as cinzas da exaustão. Sobre o fatídico lado esquerdo dormira rente ao seu sono, no desprevenido

desalinho dos corpos sem pudor, bem longe, ainda, de perceber, no horizonte descarnado da manhã próxima, o concerto de sinais anterior à conjura dos astros. (KNOPFLI, 2003, p. 459 – OCA)

O mar que se ouve bater ao longe, no poema acima, corrobora a presença afetiva da Ilha de Moçambique na poesia de Knopfli. O poema "Inventário" (KNOPFLI, 2003, p. 452-453 – OCA), confirma a ideia da presença marcante do espaço insular na memória afetiva do poeta:

(...) A ilha ao sol, ao sonho, amortalhado na distância.

O cajueiro e a mafurra, micaias agrestes, panoramas da infância, dolorosos, esbatidos fantasmas de outro tempo, agigantados em olmos e castanheiros na oval cinzenta.

(...) Toda a memória inflectindo o gesto, o gesto já só na memória que de si mesma se desprende e afasta, conjecturando, indolor, a paisagem neutra dos dias que se avizinham ermos. (KNOPFLI, 2003, p. 452-453 – OCA)

A ilha desperta afetos da memória, que, em relação à infância, são vividos, pois o adjetivo "dolorosos" corrobora a perspectiva de uma infância complicada, em meio ao 193

contexto geo-político-social moçambicano nos anos coloniais. O que o poeta guarda no seu baú de memórias vividas são "fantasmas esbatidos", e, talvez, por isso, sua tendência de buscar uma "memória consentida" pela imaginação.

Miriam Volpe (2003) atenta para a questão dos que ficaram no lugar deixado pelo exilado e os vazios consequentes deste fato.

Raramente, nos estudos sobre o exílio, se tem falado do vazio deixado pelo êxodo, e tampouco de suas repercussões sobre as pessoas que ficam. (...) ao exílio residencial, ou insílio, de cunho sociológico, sofrido por parte do povo (...) que ficou no país, em relação a esse vazio (VOLPE, 2003, p. 80)

O poeta, também neste âmbito, olha para o povo de seu país de nascença. Assim, escreve com o olhar de um cidadão do mundo uma poesia moçambicana, que quer pensar aquele espaço e rememorar aquela geografia. Todavia, seu olhar vivaz não se deixa iludir em relação à dura realidade que aflora naquele espaço, e, um pouco por isso, quando mira Moçambique no presente não há sonhos ou imaginação, diferentemente, de quando se volta para esse local no passado.

Observa-se que o processo de insílio em Knopfli começa anteriormente ao de exílio físico. A presença desse estado, isto é, processo em que o sujeito se torna estrangeiro no próprio país – como um exilado interno, que foi "desclassificado" como cidadão – pode ser verificado já na primeira obra de Rui, em que se demonstra o seu deslocamento dentro de sua terra natal.

Contudo, essa cisão do insilado vai acompanhá-lo em todo seu percurso de sujeito no mundo e de poeta, como se pode averiguar nos versos finais do poema "Villa dei misteri" (KNOPFLI, 2003, p. 460 – OCA), em que se entrega ao álcool como forma de sobreviver e conviver com o seu eu interior:

(...) Devora-me um álcool lento e tedioso. De todas as mortes sofridas, só esta temo e não desejo. (KNOPFLI, 2003, p. 460 – OCA) 194

Mais tarde, o poeta comenta o seu silêncio de insilado:

É que nós não sendo culpados, aceitamos ficar calados para não perturbar, nem dificultar, determinadas – por muito cruéis, por muito negativas que sejam – transformações históricas inevitáveis. Nós, os que tínhamos consciência das coisas. Percebe? Entenda-me... Eu podia estar hoje a integrar em Portugal um aceso partido político de ex-colonialistas, anti- racistas, libertários, não sei o quê, a aproveitar todas essas coisas – mas preferimos o silêncio, escolhemos o silêncio, instalámo-nos nas Babilónias e no sofrimento calado das nossas Babilónias (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 558)

Devido a estas e a outras diversas questões conflituosas abordadas nesta tese, o poeta começou a fissurar-se ainda dentro de Moçambique, já que se sentia desde sempre uma pessoa estranha, diferente, transpassando para seus versos a lírica também do

"anverso", isto é, aquilo, que não é versável, tamanha crueza.

O poema, cujo título é "Verso e anverso" (KNOPFLI, 2003, p. 267 – MVS), ratifica essa perspectiva. Inicialmente, com significado sintático do verbo "dizer" no futuro do pretérito "diria" e no futuro do presente "direi", o poeta denuncia a impossibilidade de falar sobre amor, ternura ou amizade nessa realidade anversa, que é a crueza da realidade da guerra; é tão duro o que seus olhos apreendem que só se pode falar de algo mais afim: a morte.

Diria palavras altas como amor, palavras lentas como ternura, ou duráveis como amizade

Desceu um véu de luto sobre o amarelo esmaecido da savana, lá onde dormem os corpos mutilados e onde cresta, rente a terra, o sangue derramado.

Baixou sobre a serenidade das coisas um sono obscuro e terrível. Poluiu o teu sorriso, o meu desejo; intercala os gestos e as vozes ciciadas.

Cerramos os olhos para a penumbra donde brotam, nítidas, as imagens: Há uma criança no fogo, o pavor de um soluço estrangulado, fulgurantes, rápidas chamas.

Direi palavras insuportáveis como morte. (KNOPFLI, 2003, p. 267 – MVS) 195

Os adjetivos "altas", "lentas" e "duráveis" singularizam o amor, a ternura e a amizade, aumentando o choque sintático-semântico-poético e, principalmente, visual das estrofes cruas que pintam a guerra. Como justificativa para o fim dos poema, só a morte pode ser pensada em meio a esse cenário que abarca poeta, poesia e Moçambique.

Existe, no entanto, a vida para ser seguida e as relações sociais são estruturadas com máscaras – como as africanas? – que servem para serem vestidas em cada ocasião.

Assim, o poeta, cindido, precisa de sua máscara cotidiana para seguir em frente em sua vida povoada de afetos dilacerantes: "A face oculta-se / das lágrimas próximas / na máscara dos compromissos diários" (KNOPFLI, 2003, p. 138 – RS).

Rui Knopfli, embora à parte do mundo, impõe-se como velho, antigo, sabedor africano que muito conhece sobre o passado e que muito pode entender sobre o futuro.

Como se quisesse recriar suas raízes naquele espaço africano, colocando-se como igual, como maneira de retorno e de expressão de seu desejo de sair do exílio/insílio, mas, não, para a realidade espacial de Moçambique, e, sim, para a realidade poética que aquele espaço tem a oferecer, como a beleza da simbologia do velho em África. "O exílio como conceito e como experiência pode ser considerado bilateral, se percebido em sua inter-relação com o não-exílio. Há um princípio de reversibilidade implícito nessa situação, que é o do desejo de se querer voltar" (VOLPE, 2003, p. 83).

Não envelheço. Torno-me antigo. O velho sempre viveu em mim, sempre o pressenti no olhar magoado demorando-se nas coisas, em certa lentidão não premeditada dos gestos e nas lembranças confusas de uma outra recuada idade (KNOPFLI, 2003, p. 229 – MVS)

Tamanha a metamorfose e fratura "insílica" do sujeito em velho, que algo que era interno passa, pouco a pouco, a transparecer na parte física deste insilado em sua

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pátria e exilado dela também: "Eis que, enfim, o reboco / se lhe começa a assemelhar"

(KNOPFLI, 2003, p. 229 – MVS).

Entende-se, logo, que tamanha crueza que a realidade impinge ao poeta tem como solução fuga, escape, a busca na memória, seja ela vivida ou "consentida" pela imaginação de paisagens que lhe trazem o frescor de um tempo que jamais voltará ou existiu. Fica, portanto, no poeta, o amargo sabor do exílio e do insílio.

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4.2. Família e amor

O amor enraíza-se em nossa corporeidade e, nesse sentido, pode-se dizer que o amor precede a palavra. Mas o amor encontra-se, ao mesmo tempo, enraizado em nosso ser mental, em nosso mito, que, evidentemente, pressupõe a linguagem e, nesse sentido, pode-se dizer que o amor decorre da linguagem. O amor, simultaneamente, procede da palavra e precede a palavra. Trata-se de um interessante problema, uma vez que há culturas em que não se fala de amor. Mas mesmo nestas culturas, em que não se fala de amor e que o amor não emergiu enquanto noção, será que, verdadeiramente, não existe amor? Ou será que sua existência decorre do não-dito? (MORIN, 2003, p. 17)

Dentro de seus exílio e insílio, atravessado por diversas culturas, Knopfli sempre teve o amor e a família como temas caros para apoio de si diante de diversas paisagens que se formaram ao longo de sua geopoética. Portanto, mesmo para esse sujeito fraturado e para uma sociedade como a moçambicana – que fora marcada pela colonização e guerras, sempre permeada pelo sentimento de inferioridade –, há espaço para o amor, mesmo quando não-dito.

A obra de Rui Knopfli é uma declaração de amor aos temas afetuosos ao poeta, como a literatura que o compõe intelectualmente, as cidades e espaços que o marcaram e as pessoas que lhe significaram.

A família apresenta-se como elemento afetivo, tanto que familiares figuram, não só em poemas, mas também nas dedicatórias da maioria dos livros de Knopfli: a) O país dos outros:

A meus pais À Maria João e às nossas filhas (KNOPFLI, 2003, p. 31) b) Reino Submarino:

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"À memória de minha filha Maria Manuel" (KNOPFLI, 2003, p. 105)

c) Máquina de areia:

A meus filhos Maria João e José Rui, este pouco, – o melhor que lhes sei dar (KNOPFLI, 2003, p. 168) d) Mangas verdes com sal:

"À memória de meu pai" (KNOPFLI, 2003, p. 187) e) O escriba acocorado:

"À Maria João / por último, mas não em último" (KNOPFLI, 2003, p. 373) f) O monhé das cobras:

À memória da minha mãe, que me ensinou o amor dos livros e da leitura e da Carmen, segunda mãe. (KNOPFLI, 2003, p. 481)

A instituição "família" é "reconhecida" socialmente e, no espaço de

Moçambique, é marcada por diferentes tradições culturais advindas de distintos lados do mundo e influenciadas por diversas visões, inclusive, ou, talvez, sobretudo, pela visão religiosa. Claro está que Rui Knopfli olha com atenção para esta instituição e que, apesar do amor dedicado em versos à sua esposa, filhos e pais, também visualiza a

"instituição da família" criticamente, como no poema "Casamento de conveniência"

(KNOPFLI, 2003, p. 51 – OPO), em que, ironicamente, analisa o primeiro passo para a

"formação" da família: o casamento.

O poeta traça um retrato dos casamentos tradicionalistas ou, ainda, movidos por motivos outros, como políticos, o que era comum nos períodos colonial e pós-colonial.

Seria, desta forma, uma espécie de olhar aguçado para o binômio tradição x

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modernidade. Neste poema há a ausência do amor, as personagens passeiam na rotina de uma vida sem graça e prosaica:

Seremos na vida, como dois funcionários públicos da mesma repartição cujas circunstâncias obrigam a ver-se e a conectar diariamente. Nada mais. (KNOPFLI, 2003, p. 51 – OPO)

O eu lírico dialoga diretamente com a futura esposa, Juventina, evidenciando a ela o que o futuro matrimônio dos dois lhes reserva, principalmente, porque, por ser fruto de uma união de conveniência – pela vontade dos pais dele, em nome da "boa família", do "bom nome", da virgindade de Juventina, da possibilidade do eu lírico ganhar casa e um carro –, não há amor, não há cumplicidade:

Meus pais não querem que ame a quem amo. Pretendem que me case contigo, Juventina. Não és boa, nem és má, nem bela, nem feia e dizem-te prendada e virtuosa, mas, quanto te aborreço!, Juventina. Dão-me um automóvel e uma casa pra que case contigo, Juventina. Tens um nome que te quadra à figura, rapariga, e trazes intacto o selo necessário. (KNOPFLI, 2003, p. 51 – OPO)

A paisagem tecida quebra com o estereótipo do casamento perfeito de

"comercial de margarina". Não há espaço para afetos em uma união em que o coração dos que vão se unir não estão em comum acordo. Todavia, a forma como o poeta expressa em seus versos a sua posição diante da situação de se ver amarrado a alguém que não se ama para sempre demonstra uma crueza profunda e bem cáustica.

Com a tua estupidez morreremos de chatice e levar-te-ei obrigatoriamente ao cinema, uma vez por semana. Aceitarás com submissão que te mande à merda de quando em vez

200

e não farás muitas ondas. (KNOPFLI, 2003, p. 51 – OPO)

E o fim do poema denuncia a atitude machista, que reafirma o emparedamento feminino dentro da sociedade moçambicana, já que o que é oferecido à Juventina é uma vida triste e sem afeto, e não cabe a ela a real decisão de seu destino. Assim, o sujeito poético, de modo irônico, termina com uma afirmação incisiva direcionada à mulher com quem se casará, dando a ela ideia do que o futuro iria lhe impor: "Sei que não pedes mais, / é pegar ou largar, / Juventina!" (KNOPFLI, 2003, p. 51 – OPO).

O amor à amada ou ao ser amado aparece também em Knopfli. A mulher ora aparece como ser almejado, belo, dotado de uma áurea especial – como a figura da mãe

– e ora aparece como objeto, fruto de um olhar permeado tanto pelo tradicionalismo africano, quanto pela tradição machista ocidental, como pôde ser observado no poema

"Casamento de conveniência" (KNOPFLI, 2003, p. 51 – OPO) analisado anteriormente.

Em "Telegrama" (KNOPFLI, 2003, p. 258 – MVS), os versos são dedicados à mãe, com uma escrita aguda e dura; com afetos, o poeta desenha uma relação mãe e filho real, dificultosa, silenciosa, pois viver é um ofício diário difícil.

Ao longo desses anos todos nada temos dito – meia dúzia de palavras trocadas para o ofício difícil da vida diária e quantas delas proferidas com azedume. Não te roubou, a brancura dos cabelos, a doçura que nos teus olhos mais se acentua. Mãe, este silêncio anda cheio de ternura. (KNOPFLI, 2003, p. 258 – MVS)

O transbordamento afetivo do poeta aparece em diversos momentos relacionado

à sua filha. Sabe-se que Rui perdeu uma de suas meninas e dedica o livro Reino submarino à sua memória, como já visto. Elencou-se, portanto, para este ponto da tese, discutir dois poemas que revelam a memória afetiva que o poeta nutre por essa filha e pela infância. Em "A uma criança longe" (KNOPFLI, 2003, p. 135 – RS), refere-se a 201

uma criança que partiu, morreu. Para o seu amor paternal, essa situação é sufocante, pois ele tem consciência de que

Escrevo-te estas palavras sabendo que não a lerás. (...) Nunca mais nos encontraremos. Jamais. (KNOPFLI, 2003, p. 135 – RS)

Por isso, sua dicção é dura e seca em relação à perda. É uma espécie de contradição, pois, nesse poema, devido ao laço afetivo estreito com essa criança distante, não há registro de espiritualidade, em contraponto com muitos outros poemas, inclusive alguns trabalhados nesta tese, em que Knopfli remete versos até mesmo a Alá.

Estamos irremediavelmente longe de todos os contactos possíveis, mas tu aconteceste, encheste o frio de nossas vidas com calor do teu sorriso e a graça de teus gestos. (KNOPFLI, 2003, p. 135 – RS)

Essa criança pode ser entendida como duas personagens: sua filha que faleceu e também a criança da infância do próprio poeta que também já não existe mais, mas que, em ambos os casos, podem ser revividas por meio da memória, tanto a vivida quanto a

"consentida".

Por intermédio de uma escrita que tece uma paisagem afetiva repleta de metáforas visuais, o poeta desabafa sua dor:

Breve, como breve paira a leve folha outoniça, ou a humilde gota de chuva que se desprende do beiral, foi a tua presença entre nós. Sua lembrança persistente está no gosto amargo do sorriso, marcada na fronte, no brilho empalidecido de nossos olhos. (KNOPFLI, 2003, p. 135 – RS)

O segundo poema escolhido também revela uma preocupação com os rumos do país, além das imagens relacionadas à sua família, principalmente esposa e filha: 202

Retorno

Subo um passeio branco alastrado de sombra, luz e folhas caídas. Pela mão vai minha filha, juntos subimos rente ao fim da tarde (...) Absorto, caminho rumo ao fim do tempo, ela, rumo ao princípio. O meu poente roxo é a sua alvorada estridente. (...) Vou partindo. Ela apenas chega. A tarde cai e não é triste morrendo (KNOPFLI, 2003, p. 45 – OPO)

Ele sabe que a mudança chegará em breve e se preocupa com o futuro de sua filha47, em "alvorada estridente" (KNOPFLI, 2003, p. 45 – OPO), dentro de

Moçambique que, por sua vez, também já aguarda a aurora de sua independência. A metáfora das folhas caídas vem ratificar a perspectiva de tempo se passando e se afunilando para o sujeito poético nos dois poemas supracitados. Dualiza-se o fim do poeta, em contraposição à alvorada da filha e do contexto moçambicano. O tom outonal dado ao poema é sacralizado pelo último verso, em que o final da tarde não é triste, mas o fim da vida sim.

Em todos os seus livros, há uma intensa preocupação com o tempo e sua efemeridade, que, neste poema, transparece por meio da ideia do fim e do tempo que corre para todos, como um movimento circular de vida e de morte, que o "entardecer" pode simbolizar.

(...) o exilado pode fazer do exílio um fetiche, uma prática que o distancie de quaisquer conexões e compromissos. Viver como se tudo a sua volta fosse temporário e talvez trivial e cair na armadilha do cinismo petulante, bem como da falta lamuriosa de amor (SAID, E., 2003, p. 57)

47 Aqui, refere-se à filha, nenhuma delas em específico. Por isso, acredita-se melhor entender a questão da metáfora "alvorada estridente" como uma vida que se principia, assim como o dia e Moçambique, na antecena do alvorecer de sua independência.

203

O poeta, porém, não corre esse perigo. O amor paternal mistura-se em seus versos, pois Rui é pai de crianças e pai de seus versos, ambos dividem seu afeto e seu olhar carinhoso. O poema "Ladrão de versos" (KNOPFLI, 2003, p. 208 – MVS) autentica essa afirmativa ao trazer para o mesmo espaço o fazer poético e o amor paterno, figurado na imagem do filho que, com uma gargalhada, rouba os preciosos e frágeis versos de seu pai: "Uma gargalhada de meu filho / rouba-me um verso"

(KNOPFLI, 2003, p. 208 – MVS). Entretanto, a perda de um verso não está acima dos sentimentos que nutre pelo filho:

(...) Meu Deus, troco todos os meus versos mais perfeitos pelo riso antigo e verdadeiro de meu filho. (KNOPFLI, 2003, p. 208 – MVS)

E os versos mais perfeitos de Knopfli são aqueles, cujos afetos transbordam com uma dicção cortante, irônica, inteligente, forte, crua e dura. Assim, os afetos em relação ao seu lugar de exílio, como visto, é transbordante nos versos knopfilianos. A partir de um espaço de exílio, constrói a paisagem afetiva de um país poético permeado pelo amor e pela cor. Ao contrapor Moçambique a Londres, para a primeira há uma carga semântico-amorosa ligada aos afetos familiares e amorosos, enquanto que, para a cidade inglesa, evidencia as suas fissuras de exilado.

São muitos os amores knopfilianos e todos eles possuem lugar cativo em sua poesia, desde a morena que pairava na sua imaginação adolescente até as tardes cinzas londrinas vistas de sua janela. Os amores de Knopfli são amaros, deixam um travo de dor e ironia em seus versos.

204

4.3. Amigos

(...) os laços de amizade favorecem uma dinâmica da alegria onde forças se adicionam abrindo caminho para a produção de ideias adequadas – condição de nossa liberdade e da passagem dos afetos passivos aos afetos ativos (GOMES; SILVA Jr., 2013, p. 45)

Rui Knopfli não foi um poeta de muitos amigos, mas, sim, de amigos fiéis. Junto com Rui Guerra, Eugénio Lisboa, Noémia de Souza, José Craveirinha e alguns outros, seus afetos, relacionados à amizade, despertaram, podendo também ser evidenciados nos primeiros livros de sua obra poética. Esses laços de amizade favoreceram o amadurecimento do poeta como sujeito em um mundo fissurado.

Com os amigos, suas experiências literárias se moldaram, como pôde ser observado no caso da Revista Calibam, por exemplo, pois este periódio foi formado pela união e força de vontade de amigos que tinham o apreço pela literatura como ponto em comum. O elemento condutor, que, neste caso, associa essas mentes tão diferentemente direcionadas, é o amor às letras, tecendo, portanto, uma resistência literária durante um tempo de literatura tão engajada.

(...) depreendemos em Arendt a concepção da amizade como amor mundi que é a capacidade de se associar e de se igualar aos outros através da palavra e da ação, e tradução da consciência do pertencimento ao mundo comum. Nesse sentido, a amizade apresenta-se dotada de ampla possibilidade de resistência às potências destruidoras inerentes aos processos de naturalização, massificação e solidão contemporâneas (...) (AGUIAR, 2011, p. 137)

O livro O corpo de Atena (1984) é dedicado "Aos Amigos / que nas horas incertas / deram como certos" (KNOPFLI, 2003, p. 423 – OCA). O poeta deixa registrado, portanto, em sua obra a importância desses que são irmãos por escolha afetiva.

Percebe-se uma divisão nas amizades do poeta: 205

a) há os amigos de Rui Knopfli, moçambicano, exilado em Londres e que sofre a ausência desses, os quais, ou se exilaram também, ou continuaram em Moçambique.

Essa amizade "perpassada pelo mundo acolhe a diferença inerente àqueles que se relacionam a partir de algo que está entre eles (...), aproximando-os e os distanciando"

(AGUIAR, 2011, p. 138); b) há os amigos que fazem de um coletivo de humanidade. O poeta olha para os cidadãos do mundo – mas, sobretudo, os moçambicanos – e, em um gesto afetivo de amizade, dá-lhes visão e voz, por meio da poesia. Essa amizade é solidária, pois o poeta se compadece de seus iguais; c) há, por fim, as amizades literárias afetivas que aparecem pelas intertextualidades, hibridismos ou poemas dedicados a nomes significativos do conhecimento universal.

O poema "O corpo de Atena" (KNOPFLI, 2003, p. 439 – OCA) exemplifica essas amizades knopfilianas: encontra-se nos versos o hibridismo a presença, mais uma vez, da mitologia grega, que olha para os homens sofredores, trazendo um pouco de luz reflexiva para esses amigos amedrontados.

Nem Diónisios, nem Apolo, deus ou semideus, apenas o amedrontado bicho humano que, pelo delito da palavra, expia nas trevas sua própria substância (KNOPFLI, 2003, p. 439 – OCA)

Faz-se necessário atentar para figura mitológica de Atena e suas simbologias, pois, de certa maneira, seu corpo é a poesia de Knopfli, como o poema, neste momento analisado, pode evidenciar.

Atena é (...) a deusa vitoriosa, pela sabedoria, pela engenhosidade, pela verdade. Até mesmo a lança que segura na mão é uma arma de luz; separa e transpassa as nuvens como um relâmpago; é um símbolo vertical; assim como o fogo (...) Atena é, efetivamente, a protetora dos lugares altos, acrópoles, palácios, cidades (deusa políade); inspiradora das artes civis, agrícolas, domésticas, militares; inteligência ativa e industriosa. É uma deusa do equilíbrio interior, da medida em todas as coisas (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1995, p. 97) 206

A deusa grega é a personificação de algumas necessidades de Moçambique naqueles anos de agonia e guerra. Clama-se por amor, poesia e arte, justiça, fecundidade, sabedoria, força e, principalmente, paz. E, buscando a mitologia grega que simboliza essas ideias, o poeta pede ajuda, pois sabe que

A palavra só rompe ferida pela luz mais insuportável, repetindo no vento o clamor do sangue. Todo aquele que contemplou o corpo de Atena vê mais além. Escuramente. (KNOPFLI, 2003, p. 439 – OCA)

Observa-se que a escolha pela lírica, em forma de súplica à deusa que inspira as artes, funciona como uma forma de pedido em oferenda, revelando, também, a presença do imaginário ocidental nas composições do poeta.

As amizades reais, como Rui Guerra, Virgílio de Lemos ou Eugénio Lisboa, apresentaram ao poeta Rui Knopfli – aqui já entendido como uma fusão do sujeito lírico e do sujeito real – os amigos fictícios e literários.

Apanhei esse vício através da minha mãe e com outros amigos como Rui Guerra, como o Virgílio de Lemos e tal; íamos a Minerva Central, que era a principal livraria de Moçambique, e ansiosamente, à espera até que eles abrissem os pacotes. Para comprar o que? Para comprar literatura de cordel! (...) A via foi por aí. Um dos primeiros livros sérios que eu me lembro de ter lido – era muito adolescente – estou a ver a capa: era uma capa encarnada, com um quadrinho branco no meio que tinha as mãos dum pianista! Era um livro da minha mãe e acho que chorei imenso. Era O músico cego, de Vladimir Kirikenki. (...) eu como o Rui Guerra – a malta intelectual lá do tempo do liceu – lia, em casa dele, Dostoiewiski; de maneira que os textos que ele escrevia eram sempre "a morte é um camelo negro que, pára à porta..." – éramos todos metafísicos no pior sentido. É claro que, ao mesmo tempo, não nos dávamos – como filhos de uma pequena burguesia branca – com as outras culturas... (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 442- 443)

O poeta, contudo, aos amigos, escritores, dedica-lhes palavras afetuosas, mas, também, críticas, como no caso de José Craveirinha, amigo com o qual teve um desentendimento e com quem ficou um tempo sem falar:

(...) com a espantosa inspiração dum Craveirinha que é um caso único – com todos os defeitos, que o Craveirinha tem vários. O Craveirinha é capaz de arrancar a maior trouvaillhe e a maior nota de mau gosto! PE um 207

criador vulcânico. O tipo é capaz de desaguar na imagem mais portentosa – nunca mais me esqueço "que eram como falos dourados erectos no ventre da noite"... Só um africano é capaz de encontrar esta magia. (...) Tem esses deslizes... Mas é evidente que tem o direito de ser julgado pelo seu melhor – e o seu melhor é espantoso (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 452-453)

Entende-se que os laços de amizade são incessantes trocas de informações, afetos e subjetividades que auxiliam ao sujeito a se compor no mundo.

A condição de viver com (conviver), onde os amigos compartilham ideias e valores, propicia a formação das noções comuns, como conhecimento do modo de relação entre seres singulares. Em outras palavras, as trocas de opiniões, de ideias, valores etc. no diálogo entre amigos possibilitam o conhecimento das noções comuns, isto é, das propriedades comuns que lhes permitem se reconhecerem como homens. (...) Portanto, a amizade é útil, pois aumenta a capacidade de agir dos homens (GOMES; SILVA Jr., 2013, p. 47)

O poeta também traz uma memória afetiva em relação ao amigo de infância, Rui

Guerra:

No sentido escolar éramos [Rui Knopfli e Rui Guerra] uma amitié amorouse: não era visto um sem o outro... (...) Desde muito novos. Colaborações literárias... Começámos a escrever praticamente juntos, a lermo-nos um ao outro: prosa, o verso era um vício secreto... Eu tinha um bocado de vergonha do verso: a gente tinha poetas muito bons como um Fonseca Amaral e outros assim (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 472)

Knopfli entende que as relações de amizade são campo propício para a formação de ideias adequadas e de reflexão crítica, a partir da abertura para as divergências de expressões, pensares e opiniões. Assim, o amigo Virgílio de Lemos, apesar das divergências político-literárias, também é contemplado pelo poeta:

(...) mas o Virgílio que foi tudo na Mocidade Portuguesa, que cantou as loas do regime, quando teve, realmente, a ocasião de fazer contas consigo próprio, politicamente sofreu muitíssimo mais do que nunca sofri, e de todos os lados... O Virgílio de Lemos é o que se chama um indivíduo que, intelectualmente, nós metíamos no bolso... É claro que, tendo andado na escola com ele, a gente não recusa a amizade, nem a cumplicidade (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 471)

Rui Knopfli defende o fazer literário da amiga também exilada Noémia de

Sousa:

A Noémia de Sousa, no seu discursivismo, os puristas literários podem, de certo modo, contestá-la, achar-lhe fraquezas literárias: mas, quer dizer: por um lado, é uma coisa pioneira e, por outro, tem uma força e uma

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autenticidade e uma indignação que eu não troco por muita literatura melhor elaborada (KNOPFLI. In: LABAN, 1998, p. 483)

Em relação à Noémia de Sousa, os três tipos de amizade elencadas nesta tese ocorrem: eles são amigos por meio da convivência e de pontos de interesse em comum; pela amizade solidária, já que Noémia possuía um olhar e uma voz coletiva latente em sua poesia, que Rui Knopfli defendia e entendia; pelas amizades literárias e afetivas que são caras a ambos os poetas.

Através de seus laços de amizade, os sujeitos (...) demonstram formas de organização e de luta, mobilizadas pela força da solidariedade, resistindo a condições opressivas e compondo a amizade como uma recusa do servir (...) A resistência (...) implica razão e virtude. (...) a virtude do corpo coletivo é a sua potência de composição e de organização (...) A estratégia de resitência-ativa do conatus do corpo coletivo (multidão) nasce do gesto de querer bem ao outro – próprio da amizade, na busca de combater o mal que lhe acomete e de livrá-lo de sua miséria (GOMES; SILVA Jr., 2013, p.49)

Estes são apenas alguns de muitos afetos dedicados aos amigos por parte de

Knopfli. Com seu olhar aguçado e perspicaz, é capaz também de captar com ternura as lembranças dos momentos em que as amizades faziam parte das relações mais importantes para o indivíduo e que, por meio delas, muitas portas se abriram.

Isso acontece devido ao caráter libertador e de solidariedade da amizade, que permite o afastamento – e até a cura – para solidão e o desamparo:

(...) a amizade (...) manifesta uma solidariedade ativa, pois os amigos sustentam uns aos outros nas qualidades especificamente humanas da palavra e da ação. O amigo apoia e defende, para o outro, um lugar no mundo que lhe viabilize a oportunidade de revelar quem é. Partilhar o mundo mostra-se superior a partilhar o sofrimento, pois a abertura para o outro é ativa (AGUIAR, 2011, p.140)

O poema "Adeus Xico" (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS) é um adeus ao amigo que morreu aos trinta anos:

Porque Xico, morreu anteontem à tarde e foi a enterrar ontem à tardinha, num dia de sol claro e céu muito azul.

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(KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

O poeta traça um panorama memorialístico de sua vida e da relação de amizade que teve com Xico. O poema inicia com um tom de coloquialidade que abre espaço para lembranças e intimidade, mas também evidencia a liberdade que essa amizade nutria em ambos:

O Xico fez trin'anos inda outro dia. Eu disse-lhe: Ó Xico! estamos velhos! Parece que foi ontem o tempo do liceu. (KNOPFLI, 2003, p.143-147 – RS)

Neste ponto, entende-se a abertura de dois horizontes na lembrança: o primeiro, em que o poeta no tempo presente da escrita lembra quando Xico fez trinta anos; o segundo ocorre quando, já dentro da memória do tempo do aniversário, entra-se em um segundo horizonte da paisagem que se volta para um passado ainda mais antigo, referindo-se ao tempo da infância:

O Zandamela quando chegou a minha casa era um miúdo a quem nós pregávamos partidas, depois foi abrindo os olhos, aprendendo e às tantas, até fazia de piloto e tal. Ó Xico, que belos tempos e de repente estamos com trint'anos. (...) Era tudo belo por princípio: As brincadeiras malucas, o riso desordenado, as terríveis aventuras, as incursões até às Lagoas, as más notas todo o fim de período, e a paisagem certamente. (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

Xico é a representação do amigo na alteridade, que funciona como modo de abertura de horizontes para o diferente e para as relações afetuosas de troca de afecções positivas ou negativas, mas extremamente necessárias para a construção do sujeito no mundo. "A amizade compreendida em sua qualidade política, ou seja, enquanto vínculo 210

agonístico que permite transformações no registro da subjetividade, diz respeito à potência dos encontros e às forças mobilizadas por estes" (GOMES; SILVA Jr., 2013, p.

39). O poeta descreve o amigo Xico, cujo sorriso é sua característica marcante:

O Xico sorriu com aquele sorriso triste e inteligente, um sorriso a dizer-me que já sabia de tudo. (...) Calou-se, então. Calou-se e sorriu de novo. E aquele sorriso triste ficou a boiar na luz pardacenta da tarde que guardo comigo. O Xico nunca tocou muito bem piano. Tinha ouvido, algum talento, aprendeu um pouco de música, o bastante para se ouvir a si mesmo. (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

A caracterização do amigo por meio do sorriso, do silêncio, da tristeza, mas também pela desqualificação como pianista, define o olhar do poeta para o outro, marcando-o na memória que irá acompanhá-lo:

É assim que me lembro do Xico, um sorriso a boiar triste na luz triste da tarde, sobre um piano onde até o riso rasgado das teclas é triste e branco (...) (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

Há, ainda, espaço, nesse poema, para uma olhadela ferina para o mundo e a cultura ocidental. Por meio do adágio mal tocado pelo amigo no piano, Knopfli, usando, ironicamente, outro significado da palavra "patética", coloca-se criticamente para o seu mundo:

E nós gostávamos do modo desajeitado como alinhava com ternura as notas da Patética. Nós gostávamos sobretudo da Patética, mesmo mal tocada. (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

O adágio da Patética é uma sonata para piano de Beethoven, simbolizando o

"melhor" da cultura musical europeia; todavia, brinca com a polissemia e a

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ambiguidade do vocábulo "patética" – "que sabiam agora a um outro significado"

(KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS) –, remetendo tanto à peça musical de Ludwig van

Beethoven, quanto ao fato de significar algo que desperta compaixão ou tristeza sendo comovedor, trágico (LARROUSSE, 2009, p. 615) e, principalmente, algo ridículo, conotando uma situação patética.

Esse é um poema que percorre a linha do tempo da memória, marcando a sua passagem da infância para o tempo adulto através de vocábulos e metáforas formadoras de uma geopoética visual, como as do trecho abaixo:

Então amanhecemos a descortinar os matizes no verde da paisagem, a descobrir espinhos na ramagem das micaias, a amar os tons envernizados na fruta dos cajueiros. Atrás de nós fechavam-se portas definitivas, acordávamos adultos. (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

E o olhar do poeta volta-se para os diferentes caminhos traçados pelos seus antigos companheiros de liceu, evidenciando certas questões referentes à realidade moçambicana de sociedade em formação, cuja burocracia, compadrios estão em alta. A figura do Amadeu personifica esses amigos separados pela vida após se cruzarem de maneira intensa e afetuosa no momento da infância e adolescência. Revelam-se, portanto, os laços afetivos que se fazem e desfazem ao longo da vida.

Um dia chegou o Amadeu, com licenciatura em Direito novinha em folha. O mesmo tipo de sempre, sem perneiras. Anda cheio de trabalho, a vida afastou-o de nós, frequenta outras esferas (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 - RS)

E, por fim, Knopfli abre seu olhar para os demais amigos que foram para os negócios, para a luta ou, ainda, para o exílio:

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Nós com trint'anos, o Amadeu com banca de advogado, uns no comércio, nas gasolineiras, em bancos, outros nos matos e tantos dispersos pelas europas, e esta sensação de vazio e impossibilidade dentro de nós. (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

A realidade dura da paisagem da vida adulta entra em contraposição com os afetos mnemônicos, reforçando um luto melancólico pela perda do amigo e pela não mudança da realidade ao seu redor, o que ele consegue apreender, aos trint'anos, com nitidez:

Passado o espanto dos primeiros contactos com a vida (...) vimos com nitidez o verdadeiro recorte dos seres e dos objectos, cores plasmado em graus de sombra, a evidência real dos volumes das coisas reais e surgimo-nos outros, descentrando-nos da nossa invulnerabilidade, destronando-nos de reis dum universo inviolável que supúnhamos existir, para ficarmos assim na vida, despertos enfim no meio do caminho. (...) E com a nitidez dos matizes e a verdade de estarmos descentrados da nossa louca invulnerabilidade, fui acompanhá-lo. Com os meus cabelos brancos ainda poucos e ainda jovens e os trin'anos sem ilusões, na tarde de sol claro e céu muito azul, onde apenas ocorria este facto de o sol estar claro e o céu muito azul, fui dizer-lhes adeus. (KNOPFLI, 2003, p. 143-147 – RS)

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Ainda sob um olhar melancólico para a passagem da vida, volta-se para os amigos do exílio em Londres, com quem também criou laços afetivos feitos e desfeitos ao longo do tempo. "Assim como o exílio territorial é uma ausência que pode ser compensada pela nostalgia e pelo desejo de retorno ao país de origem, o insílio (...) seria um vazio que pode ser preenchido através do sonho de se desfazer a alienação (...)"

(VOLPE, 2003, p.84) – e mais ainda, esse vazio é preenchido, principalmente, pelos laços de amizade que se criam no país acolhedor do exilado, como é demonstrado no poema "O tempo e o newsagent" (KNOPFLI, 2003, p. 524-525 – OMC).

A partir da imagem do newsagent – banca de jornal ou quiosque, em português – em que o tempo é marcado, dia a dia, com as novas notícias dos periódicos diários, quinzenais, mensais, o poeta traça um registro panorâmico dos laços de afetividades criados no exílio e que também foram desfeitos, evidenciando a efemeridade de alguns desses relacionamentos:

(...) o Newsagent, qual peça de precisa relojoaria (no meio

do quadrante o sorriso intemporal de Mr. Shah), é registro implacável da passagem do tempo. (KNOPFLI, 2003, p. 524-525 – OMC)

A passagem do tempo é percebida pelo desaparecimento de rostos conhecidos que se cruzavam frequentemente no newsagent:

(...) lembrando que a morte se vai inscrevendo nos rostos de forma cada vez mais nítida. Ainda esta manhã

me interrogara quanto ao paradeiro de certas pessoas que via, quase diariamente, no Newsagent onde compro jornais, revistas e tabaco. (KNOPFLI, 2003, p. 524-525 – OMC)

Entende-se, junto a Octávio Paz (2014), a perspectiva de dois tempos: o cronológico – "uma sucessão homogênea desprovida de qualquer particularidade.

Sempre igual a si mesmo, ignorando o prazer e a dor, ele só transcorre" (PAZ, 2014, p. 214

202) –, que se revela na cotidianidade do poeta que vai regularmente à banca, ou que percorre as ruas para chegar à sua residência, sem levar em conta as nuances ao seu redor; e o tempo mítico, que está "impregnado de todas as particularidades da nossa vida: é ao longo como uma eternidade ou breve como um sopro nefasto ou propiciatório, fecundo ou estéril." (PAZ, 2014, p. 202). Neste tempo, transpõe-se uma pluralidade de tempos; "tempo e vida se fundem e formam um único bloco, uma unidade impossível de cindir. (...) O amor e a poesia também nos revelam, fugaz, esse tempo original" (PAZ, 2014, p. 202), o que se encontra, também, na atenção dada aos amigos do exílio e suas particularidades. Assim, o poeta continua sua indagação diretamente ao Mr. Frazier, proprietário da banca, que lhe responde sobre cada amigo, representando a fusão do tempo cronológico e do mítico que se estrutura e ratifica pelas linhas afetivas dos versos:

Que será feito de Joyce? A Joyce (...) reformou-se

Reformou-se e foi para casa fazer companhia ao periquito, de que tanto falava (...) e o empertigado Coronel Jones? Mr Frazier, vitimado pela doença Alzheimer

recolhe a um lar da Terceira Idade (...) o Coronel Jones já partiu, comanda agora

um exército de sombras (...) (...) E o Oliver, esse era jovem? Oliver foi para o Bahrein exercer em arábico a sua perícia contabilística (...) De Ian Thomas, OBE, costureiro da Corte sei eu que tropeçou, ingloriamente, num by-pass da aorta, o inverno passado (...) (KNOPFLI, 2003, p. 524-525 – OMC)

Essa fusão temporal e poética pode ser percebida na preocupação do poeta com o destino dos amigos. Ao tratar deles e trazê-los para o campo mítico da poesia, suas histórias ganham um caráter temporal diferente, que lhe empresta vida no instante do

215

poema: "Essa dicotomia se manifesta na oposição entre História e Mito, ou História e

Poesia. (...) [pela] poesia e [pelo] conto de fadas, o homem tem acesso a um mundo onde os contrários se fundem" (PAZ, 2014, p. 203). Assim, a partir dessa premissa, entende-se que Knopfli usa a poesia também para repensar a história – como foi visto nos capítulos anteriores desta tese – e, agora, a utiliza, ainda, para contar a história dos amigos, que são arrolados em seus poemas por uma hierarquia que obedece aos diferentes níveis da amizade com ele mantida.

Rui Knopfli é um poeta atravessado e composto por híbridos laços de amizade: reais, imaginários, literários, mnemônicos; todos esses fantasmas da amitié são exorcizados em sua poesia, como forma de desabafo, enquanto, também, perpetuam no tempo – mesmo que apenas na escrita – os laços afetivos que lhe são caros e doridos.

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4.4. Solidão e morte

Dentro de mim secou um rio, corre um deserto, áspero caudal de som

Mudado em palavras sobe-me à garganta um ácido tempo de abandono

Trilo amargurado (KNOPFLI, 2003, p. 293 – MVS)

Rui Knopfli é o poeta, cujo rio secou; não há os flúmenes caudais da infância, da memória ou da imaginação. Apenas restou o deserto áspero da solidão e, mais à frente, da morte. Cabe-lhe, então, mudar-se em palavras, segurar-se em relação às suas amarguras. Neste momento, mais maduro, já não sabe mais se vale a pena deixar-se sufocar nesse tempo de abandono.

O duplo significado da solidão – ruptura com um mundo e tentativa de criar outro (...). A solidão é uma ruptura com o mundo caduco e preparação para a volta e a luta final. (...) O solitário é um doente, um galho morto que é preciso cortar e queimar, pois a própria sociedade corre perigo se algum dos seus integrantes é vítima do mal (PAZ, 2014, p. 198)

Assim, o poeta, padecendo desse mal da solidão – "Meus olhos padecem a noite

/ e nela se esgota" (KNOPFLI, 2003, p. 293 – MVS) –, prepara-se para o fim de tudo, do mesmo modo em que se concebe mais alheio do que nunca, pois a consciência de galho morto lhe chegou ao coração: "enquanto meu coração / rufla no silêncio, / obscura câmara mortuária" (KNOPFLI, 2003, p. 293 – MVS).

Isso, porque a "solidão é uma pena, isto é, uma condenação e uma expiação. É um castigo, mas também uma promessa de fim do nosso exílio. Toda e qualquer vida é habitada por essa dialética" (PAZ, 2014, p. 190)

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Rui Knopfli, mesmo antes de seu exílio, já sentia a presença dilacerante da solidão, não apenas devido ao insílio que lhe acometera desde tenra idade, mas também pelo sentimento de não pertença a nenhum espaço que lhe era caro, entre os quais o território moçambicano e as literaturas de língua portuguesa: "(...) a solidão (loneliness), a não pertença ao mundo e a consciência de desimportância e de dispensabilidade

(selflessness) da população" (AGUIAR, 2011, p. 134) são algumas características dos modelos de regimes que dominaram o território moçambicano antes e após sua independência.

E é com a simbologia do deserto, espaço que reflete o exílio e o insílio de

Knopfli, que o poeta tece o poema homônimo – "O deserto" (KNOPFLI, 2003, p. 234 –

MVS). Este se inicia com a pintura da paisagem desértica, transbordante de afetos e de olhos que a apreendem pela primeira vez, sem podê-la compreender na totalidade:

Vendo-se pela primeira vez não se apreende logo o deserto. Sabemo-lo quando cessa de ser o caudal de areia que se fita sem se ver e se principia sem se fitar. Quando cessa de ser a brancura luminosa de minúsculos cristais para ser tudo quanto ficou para trás e é já sombra sendo ainda sol. (KNOPFLI, 2003, p. 234 – MVS)

Há uma semântica da escuridão, promovida pelo verbo "cessar" e reforçada pela imagem que remete à sombra em pleno dia. O poeta sofre o mal da solidão, pois sente o calor do deserto sob a sombra fria de sua vida e resgata figuras que habitam esse espaço:

O deserto é isso. Não quando o vemos mas quando o sabemos. Que o deserto é dentro de nós, como uma imensidão silente, uma lonjura interminável e anestesiada de que não nos apercebemos senão como um vago espaço neutro, para descobrirmos aos poucos que o habitam estranhas figuras que têm gestos graves e a face na penumbra e que a penumbra apenas revela da face o espanto que há sobre estas indistintas feições (KNOPFLI, 2003, p. 234 – MVS)

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Estar no deserto é estar em plena solidão, não apenas externa, mas, sobretudo, interna, devido à anomalia que acomete o sujeito só.

Assim, o homem maduro atacado pelo mal da solidão é uma anomalia em épocas fecundas (...). Na época do trabalho comum, do canto em comum, dos prazeres em comum, o homem está mais só que nunca. O homem moderno não se entrega a nada do que faz. Uma parte de si, a mais profunda, está sempre intacta e alerta (PAZ, 2014, p. 197)

Destarte, Rui Knopfli, em meio a esse afeto, sabe que escrever "volta a ser uma atividade criadora de realidades, isto é, uma atividade poética" (PAZ, 2014, p. 196), e tal qual uma criança que imagina mundos para viver pelo instante da brincadeira, ele cria mundos poéticos, espaços em que se insere para viver, pelo instante da poesia, aquela realidade imaginada e reconfortante; assim, se revigora, longe da problemática do exílio e inteiro de afetos que o afastam do isolamento. Isso corre no poema "Só e surpreso" (KNOPFLI, 2003, p. 298-299 – MVS), em que o eu lírico sente a presença do

"anjo cego" que o acompanha. Este funciona como uma forma de preencher o vazio, por via da imaginação poemática deste guia e, também, revela a existência de um segundo ser – sentido apenas pela sua respiração –, de presença que traz conforto, ternura e amor ao sujeito poético:

A meu flanco havia alguém para lá do anjo cego que guia meus passos. E esse alguém que havia respirava audível e ritmado algures por sobre meu ombro. Lembro, com toda nitidez, ter erguido um muro de ternura

em redor dessa respiração. E de tê-la coberto amorosamente (KNOPFLI, 2003, p. 298-299 – MVS)

Essa condição dolorosa é inerente ao ser humano. Todos, em algum momento de seu percurso pela vida, vão se sentir sós, uns com mais intensidade, outros com menos; alguns saberão lidar com isso, e outros, como o poeta, se refugiarão em outros espaços criados, principalmente, pela arte.

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Todos os homens, em algum momento da vida, se sentem sós; e mais: todos os homens estão sós. Viver é separar-nos do que fomos para ingressar no que vamos ser, futuro sempre estranho. A solidão é o substrato último da condição humana. Homem é o único ser que se sente sozinho, o único que é busca de outro. Sua natureza – se é que se pode falar de natureza quando nos referimos ao homem, o ser, justamente, que se inventou quando disse "não" à natureza – consiste em aspirar a realizar-se em outro. O homem é nostalgia e busca de comunhão. Por isso, toda vez que sente a si mesmo, sente-se como carência de outro, como solidão (PAZ, 2014, p. 189)

Portanto, o poeta constata:

São coisas de que me recordo e todavia não existem, porque as tenha talvez inventado e tenham apenas durado

o tempo efémero da invenção, o bastante para serem apenas a mágoa de nunca terem sido. Assim me descubro só e surpreso

à deslumbrada luz do sol. É mudo e interdito que desapareço na paisagem: uma pedra, uma árvore, uma sombra oblíqua. (KNOPFLI, 2003, p. 298-299 – MVS)

A literatura, principalmente no exílio em Londres, espaço gélido e impessoal que impelia o poeta à nostalgia dos tempos de outrora, foi também um local para se refugiar.

Isso se demonstra em diversos poemas – vários deles trabalhados nesta tese48 –, cuja presença da intertextualidade, hibridismos intelectuais e textuais, conhecimento de mundo, citações, dedicatórias, homenagens etc. corroboram essa ideia de preenchimento do vazio pelo espaço das artes.

As cidades europeias possuem uma história íntima de acolhimento de exilados, como evidencia Edward Said (2003) em relação à capital francesa: "Paris pode ser a capital famosa dos exilados cosmopolitas, mas é também uma cidade em que homens e mulheres desconhecidos passaram anos de solidão miserável" (SAID, E., 2003, p. 49).

48 Não se sente a necessidade de aprofundar – também para não soar repetitivo –, neste subcapítulo, cada um desses temas, já que os mesmos foram vastamente aprofundados em momentos anteriores deste trabalho.

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Como toda cidade de exilados, a solidão é também uma de suas características. Solidão e exílio, sempre à espreita, caminham de mãos dadas pelas ruas e vielas dessas cidades.

Knopfli percebe essa espreita e, no poema "Justerini & Brooks" (KNOPFLI,

2003, p.454 – OCA), revela os afetos solitários que a úmida Londres lhe transmite:

só preâmbulo da vigília, que é o gélido acordar da imaginação para as fronteiras dormentes do horizonte protelado.

Este trajecto subterrâneo e húmido pelos túneis do infortúnio, que é o adiar moroso da morte, no prolongar silencioso da vida,

lágrimas da noite tornadas pranto da madrugada, rumor débil e distante brandindo já no sangue o endurecer das artérias. (KNOPFLI, 2003, p.454 – OCA)

Em meio à tamanha solidão, o sentimento de finitude, por via da morte, se apresenta. É a morte do poeta, da poesia, dos mitos, de Moçambique... "Nossas vidas são uma aprendizagem diária de morte. Mais que a viver, aprendemos a morrer. E aprendemos mal" (PAZ, 2014: 190). Compreendendo a vida como uma insônia prolongada e a morte como um sono eterno, não há uma crença na transcendência, pois para o poeta "não há o outro lado da rua" (KNOPFLI, 2003, p. 313-315 – MVS):

O sono após a insónia prolongada, o dia acerbo e a tarde lenta como um veneno subtil. A treva enfim. (...) Devagarinho vamos adivinhando o horror da tua ausência. E aos poucos que principiamos a perder-te

não há o outro lado da rua. (KNOPFLI, 2003, p. 313-315 – MVS)

Apreende-se que, para Knopfli, a morte é a separação total e, por se levar um ente querido – provavelmente sua filha –, a dor é tão trevosa e longa quanto o tempo da

221

insônia do viver. Dura e crua, essa visão para a morte da alma se desdobra para olhar a morte do corpo, em que não há espaço para outra semântica senão a da penumbra, da dor e da putrefação.

No poema "O avô em viagem" (KNOPFLI, 2003, p. 225 – MVS), o poeta olha para a crueza do fim, das dores, da ausência e para a presença de afetos e da humanidade do ser, no sentido de corroborar que a morte – que pode ser degradante – vem para todos. O fim perde totalmente seu conceito metafísico e se apresenta como um rito de passagem para o nada e para a putrefação da carne.

Meu avô hemiplégico no leito, o morno olhar móbil, o odor ácido a urina e medicamentos. A tarde velha de um cinzento estriado de amarelos tristes mordendo o creonte baço da cortina. (KNOPFLI, 2003, p. 225 – MVS)

A paisagem do quarto do avô traz uma perspectiva de passagem para a morte como algo dolorido para o indivíduo, além de evidenciar a perda de uma certa dignidade no momento em que o ancião se encontra moribundo:

Restos escuros de chá num copo, partículas de comida e tabaco no parqué, o silêncio comprido e frio dos corredores. Baladas em fundo de um relógio perdido. (KNOPFLI, 2003, p. 225 – MVS)

A geopoética de Knopfli também vai abarcar a dor dos que ficam, entretanto, o sujeito lírico, apesar de tratar-se de seu avô, mantém-se como expectador da cena: "Sob os risos da malta, à sombra / da tangerineira grande do quintal, / não era audível o pranto da velha casa" (KNOPFLI, 2003, p. 225 – MVS).

Com ironia, o poema "Quina – três elegias breves" (KNOPFLI, 2003, p. 522-523

– OMC), olha para a morte como uma vontade divina, ao mesmo tempo em que a concebe como forma de fuga à realidade, de cessamento de suas ausências afetivas:

Nos caminhos da sua inescrutável 222

sabedoria, dá Deus com uma mão o que, com a outra, retira. Da direita

colhemos infinita amizade, só para que a esquerda, encurtando-nos a vida, exígua de mais a tornasse

para que, numa ou noutra, ambas coubessem. Perca-se, então, a vida. Só a nossa morte, da tua nos libertará. (KNOPFLI, 2003, p. 522-523 – OMC)

O exílio também pode ser entendido como a morte do cidadão para aquele território que ele deixou para trás: "O exílio tem origem na velha prática do banimento.

Uma vez banido, o exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o estigma de ser um forasteiro. (...) o termo 'exilado', (...) traz consigo um toque de solidão e espiritualidade"

(SAID, E., 2003, p. 54). Então, banido, solitário, dolorido, Rui Knopfli sente na alma e na poesia que o "desterro perpétuo equivale a uma sentença de morte" (PAZ, 2014, p.

199).

No entanto, Rui é um sujeito desterrado desde a árvore genealógica, como afirma no poema "As origens" (KNOPFLI, 2003, p. 527 – OMC), em que, pela perspectiva da morte, afirma-se como pertencente a uma geração "luso-africana", surgida anteriormente ao seu nascimento:

Paro diante de jazigo de família, Vila Viçosa, Alentejo profundo. Afinal tudo principiou aqui. O apelido seria, puramente como os outros, alentejano, não fora a incursão oportunista

do estrangeiro, que perturbaria o resto, confundindo o futuro e as interpretações. Aqui, neste silêncio solar e vertical, estou apenas diante de um jazigo modesto que, humildemente, reza ser o de Angélica

da Boamorte Rosa (com acrescentado apelido). Aqui onde tudo terá começado, ou novo ciclo se iniciaria. Feita de lavras em pousio e esperança adiada, pertencemos todos a esta áfrica lusitana

que pelas outras se expandiria. Por estas andámos perdidos, ignorando então que a passagem obrigava ao regresso. Não 223

fora isso e seria apenas o poeta local, sobrenome Rosa, aguardando o lugar que lhe caberia. (KNOPFLI, 2003, p. 527 – OMC)

Neste poema traça-se a paisagem de suas origens, como forma de revisitação do passado e reafirmação de uma possível permanência no tempo, através da memória dos laços familiares. Assim, os ascendentes do poeta, de estirpe originária da pequena e charmosa Vila Viçosa, Alentejo, Portugal, cruzaram seus caminhos com o suíço que acrescentou o sobrenome "Knopfli" a Rui e, por fim, optaram por partir para a África, na leva de portugueses desterrados, em busca de melhores possibilidades de vida nas colônias. Portanto, tem-se em Knopfli alguns desterros: o da sua estirpe que migrou de

Portugal para Moçambique; o do poeta que não se encontra reconhecido pelo espaço moçambicano – exílio, insílio; e o desterro literário vivido em relação do demorado reconhecimento da importância de sua literatura.

É um poeta de múltiplos banimentos e cravejado pela solidão, como um palhaço medroso, assistindo ao espetáculo na ribalta da vida:

Vão repondo a tragédia, ano após ano e eu, obstinadamente, a perseguir o papel que persisto ali me competia para além de espectador passivo. (KNOPFLI, 2003, p. 526 – OMC)

Com o último poema da obra poética de Rui Knopfli, deixa-se "Cair o pano"

(KNOPFLI, 2003, p. 528 – OMC) desta tese e, usando a imagem tecida – o mesmo que o poeta fizera em O escriba acocorado –, o sujeito lírico se personifica no monhé das cobras e, findo o trabalho, recolhe:

Ao longe, no extremo distante da caixa

de areia, o monhé das cobras enrola a esteira e leva o cesto à cabeça, cumprindo o papel exacto que lhe coube e executou com paciente sageza hindu. (KNOPFLI, 2003, p. 528 – OMC)

224

Despede-se, também, a autora desta tese, de amigos que a ajudaram a compor esta pesquisa contribuindo com suas ideias e teorias, por meio de teorias literárias, estudos sobre África, Moçambique, colonialismo, poesia, orientações e apoio: "Assim, os comparsas convocados / para esta derradeira comédia a abandonam, verso / a verso, consignando-a ao olvido" (KNOPFLI, 2003, p. 528 – OMC).

225

5. CONCLUSÃO

As dores de amor são dores de solidão. Comunhão e solidão, desejo de amor, se opõem e se complementam (PAZ, 2014, p. 189)

Rui Knopfli é um poeta dos desejos, do amor, da comunhão literária e intelectual, mas também da solidão, do exílio/insílio e da morte. De um olhar agudo e crítico, percebe, desde cedo, as paisagens de dentro e de fora, abarcadas ou não pelos horizontes reais e, também, da poesia. Sua geopoética abrange os homens – como indivíduos emparedados, livres, híbridos, cosmopolitas, orientais, ocidentais etc. –; o território africano, em particular, moçambicano; o Império português da ascensão à queda; a história; a poesia como expressão estética; os amigos e a família; os afetos particulares da vida; a política; a arte... o mundo.

O poeta, portanto, levanta temas afetivos, instaurando uma geopoética transbordante de desejo de pertencimento, memória, questionamentos sobre o fazer poético e as dores do exílio e do insílio. Em oito livros, presentes na Obra poética

(2003) e na Revista Calibam, pôde-se perceber o caráter liberto da poética knopfiliana busca. Madura e rebelde, ela sempre se quis sem amarras para voar, visualizar, transpirar e transcriar as realidades que se impuseram diante de si, sem a necessidade de obrigações com qualquer estabelecimento ou instituição formal. Claro está que tais rebeldias geraram consequências, como o afastamento literário e o esquecimento canônico de Knopfli, além de atritos, delitos e conflitos deste com as normas, os estatutos e os ideais vigentes.

Talvez, por isso, o olhar aquilino do poeta para o cânone instituído, ao mesmo tempo em que queria fazer parte dele – contradições knopfilianas –, originou

226

intertextualidades e diálogos com grandes nomes da literatura, ao ponto, como foi evidenciado nesta tese, de Rui Knopfli dizer-se da mesma linhagem de Camões, Pessoa,

Eliot, Jorge de Senna, Drummond de Andrade, todos considerados como amigos, irmãos, parte de sua poesia e de sua constituição intelectual híbrida e cosmopolita.

Knopfli entendeu o papel da poesia como forma de resistência em um "mundo caduco" e não como resistência panfletária, conforme a poesia moçambicana fora tomada durante o período de lutas contra a colonização. Desta forma, sua poesia é concebida como resistência para o eu fraturado, em estado de insílio permanente diante de uma realidade que o pôs também em exílio, não só geográfico-espacial, como literário.

Afirma-se, portanto, que Rui Knopfli transmite para sua poética, como um todo, as fraturas que o compõem como sujeito em seu mundo excludente. Sabendo-se à margem, sente-se livre para focar outras paisagens; questionar e repensar a história; como um escriba acocorado, ou um velho africano, olhar para o passado, sofrer o presente e prever o futuro; flanar pelas cidades sonhadas, letradas e vividas; ressignificar, dentro do espaço da Ilha de Moçambique, o colonialismo, por meio de

Calibam, Próspero e Ariel.

Ratifica-se a existência de uma geografia literária knopfiliana, cuja ironia e rebeldia são suas maiores características. O poeta entende o horizonte abarcado pelo seu olhar – e outros sentidos poéticos também – e usa essa paisagem como operadora de seu processo poético que revela, questiona, afirma tanto uma realidade crua e dorida, quanto uma realidade mnemônica "consentida" ou vivida.

Para chegar a tal entendimento sobre a poesia de knopfiliana, foram consultados ensaios de Michel Collot sobre as questões que envolvem a poesia, a paisagem poética, o ser poeta, o horizonte poemático e a geopoética; Linda Hutcheon trouxe à luz a ironia

227

e suas arestas cortantes, que são deveras pontiagudas em Knopfli; Angel Rama evidenciou a importância da urbes e das cidades letradas e, portanto, contribuiu para esclarecer algumas indagações relativas aos afetos despertados pelas cidades de

Lourenço Marques/Maputo, Johanesburgo, Paris e Londres; o cosmopolitismo e o hibridismo intelectual presentes em uma poesia transbordante de afetos, que apontam para várias direções, devido ao vasto conhecimento de mundo do poeta, foram compreendidos através de ideias e conceitos de Ramazani e Appiah; a experiência do exílio, assim como as fraturas do insílio, foram entendidas por meio das ideias de

Edward Said e Miriam Volpe; os temas da amizade, amor, família, solidão e morte foram estudados com base em Octávio Paz e Hannah Arendt.

Os aspectos que envolvem a poesia como ser transformador e literário, a vida, as sociedades e as culturas africanas e moçambicana, e o fazer poético receberam o apoio teórico de Barthes, Dufrenne, Benjamin, Césaire, Ki-Zerbô, Fanon, Eugénio Lisboa,

Micheal Laban – cujas entrevistas foram cruciais para o entendimento dos pensamentos de Rui Knopfli. Foram também consultados ensaios de Francisco Noa, Fátima

Monteiro, Fátima Mendonça, Ana Mafalda Leite, Rita Chaves, Carmen Tindó etc..

Rui Knopfli é, para esta anã sentada em ombro de gigante, o que a música

"Astronauta lírico", do compositor Vitor Ramil (2014) e cantada por Ney Matogrosso, define: "um astronauta lírico em terra" (RAMIL, 2014). Isto é, alguém que olhando do alto da lírica consegue apreender os pormenores dos espaços que se impõem diante de si. Entretanto, a "terra" que visualiza, não é azul – como afirmam os astronautas –, mas, sim, acinzentada, cor de chumbo, cor de solidão, ou, em sépia, cor da memória.

Esta pesquisa se iniciou há cinco anos com uma decisão de "viajar" com o poeta por diversas noites e "conhecer a[s] cidade[s] magnífica[s]" (RAMIL, 2014) e poéticas

228

de Moçambique e sua ilha, a Paris sonhada, a Johanesburgo dos descobrimentos e a

Londres do exílio.

Por meio da poesia de Knopfli, pôde-se "alcançar a cúpula mais alta" (RAMIL,

2014) e também enxergar aqueles espaços e pessoas que tanto tinham a dizer. E a autora desta tese foi "a teu lado, leve" (RAMIL, 2014) e pensativa, pois também tinha consciência de estar tratando de um "astronauta lírico" (RAMIL, 2014), talvez um dos poucos a olhar o mundo por essas diferentes perspectivas geopoéticas.

Fecha-se esta tese com um poema significativo de Knopfli, em que o poeta afirma ter findado seu trabalho, mesmo que retomado mais adiante. Assim como os temas levantados, apontados e nem sempre aprofundados da maneira como foram desejados, portanto, também aqui, há de se retornar:

O livro fechado

Quebrada a vara, fechei o livro e não será por incúria ou descuido que algumas páginas se reabram e os mesmos fantasmas me visitem. Fechei o livro, Senhor, fechei-o,

mas os mortos e sua memória, os vivos e a sua presença podem mais que o álcool e de todos os esquecimentos. Abjurado, recusei-o e cumpro, na gangrena do corpo que me coube,

em lugar que lhe não compete, o dia-a-dia de um destino tolerado. Na raça de estranhos que me mudei, é entre estranhos da mesma raça que, dissimulado e obediente, o sofro.

Aventureiro, ou não, servidor apenas de qualquer missão remota ao sol poente, em amanuense me tornei do horizonte severo e restrito que me não pertence, lavrador vergado sobre o solo alheio

onde não cai, nem vinda, desmobilizada, sombra elíptica do guerreiro. Fechei o livro, calei todas as vozes, contas de longe cobradas em nada. Fale, somente, o silêncio que lhes sucede. (KNOPFLI, 2003, p. 478 – OCA)

229

Apesar de fechado o livro, não há, totalmente, um ar de negatividade neste poema, há, sim, uma ponta de esperança sob o olhar do poeta, – assim como nos diversos mitos que lhe são caros –, de ter também o seu prêmio: o seu "velo de ouro" do reconhecimento.

E o "velocino de ouro" desta tese é a autora ter conseguido chegar até aqui, após atravessar rios que mudaram também o seu modo de enxergar o mundo e as paisagens ao seu redor, fazendo-a deixar, então, um até breve ao senhor de olhar agudo, com a certeza de que logo voltará aos seus sedutores poemas.

230

6. BIBLIOGRAFIA:

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7. ANEXOS

 Anexo 1: Capa da obra O país dos outros, 1959

248

 Anexo 2: Capa da obra Máquina de areia, 1964

 Anexo 3: Capa da obra A ilha de Próspero, 1972

249

 Anexo 4: Capa da obra O escriba acocorado, 1978

 Anexo 5: Capa da obra Monhé das cobras, 1997

250