Orange is The New Black: Quando nem tudo será sobre pessoas brancas?, por Stephanie Ribeiro

(HuffPost Brasil, 30/06/2016) ATENÇÃO: Este texto contém spoilers da quarta temporada de , série da

O que é ser negro ainda é algo que também é definido por pessoas brancas. Um exemplo são as narrativas Hollywoodianas de sucesso que até contam histórias de pessoas negras, desde que não sejam contadas por pessoas negras. Foi assim que se fez e é assim que as produções se mantém.

O filme Histórias Cruzadas sempre me é indicado por pessoas “não negras” em uma discussão sobre a vivências das empregadas domésticas no Brasil: “Você tem que ver Histórias Cruzadas, querida, vai adorar!”.

Depois que eu assisti ao filme, fiquei me perguntando: por que eu adoraria a história da maioria das mulheres negras sendo contada e protagonizada por uma mulher branca? Porquê?

Ser empregada doméstica é um fardo de mulheres negras, profissão esta que é uma imposição e não uma escolha de quem ainda sente as marcas das escravidão sobre sua narrativa. Entretanto, quando falamos sobre isso, contamos por meio de filmes a história da moça branca e inocente que questiona esse sistema e salva negros. Pois negros não se salvam e se rebelam sozinhos.

Lembrou de novelas e filmes sobre escravidão? Então. Sim, é a mesma ideia: vários negros que sofrem, mas não sabem (mesmo?) e precisam que alguém indique para eles a saída desse sistema opressor. Esse alguém deve ser branco, pois mesmo que o vilão seja uma pessoa branca, as narrativas insistem em evidenciar que “nem todo branco é assim”. “ não sofre nem metade do que as outras sofrem, pois é branca, de classe alta e “enganada” por uma lésbica”

Seria cômico se realmente não fosse trágico. Não crítico essas histórias em si, não julgo se Histórias Cruzadas é um bom filme ou não, mas o meu ponto é em como o negro só é relevante como coadjuvante das narrativas, mesmo quando a narrativa tem foco em histórias vivenciadas e que têm importância ao movimento negro.

Pois bem, isso me incomoda. Então, quando disseram para eu assistir Orange is the New Black, eu acompanhei todo o frisson em cima da série, e não esperava a repetição desse padrão.

A personagem Piper Chapman não sofre nem metade do que as outras sofrem pois é branca, de classe alta e “enganada” por uma lésbica. Pobre Piper que nunca sabe o que está fazendo (contém ironia neste comentário).

A todo momento ela é “protegida” por homens brancos que têm poder naquele espaço. Ela usa esses privilégios e mesmo assim se sente no direito de comparar sua dor com a das demais. Um dos comentários absurdos logo no início da série é ela lamentando que está presa há duas semanas, para uma senhora negra com quem divide cela, ou pressupondo que sofre algum tipo de preconceito na prisão por ser branca.

Vamos falar sobre privilégio branco

Em Orange, Piper Chapman não consegue entender o quão ridícula ela é, quando a maioria só está presa por querer metade do que ela têm. Afinal, ela foi presa por estar atrás de uma vida fora do “padrão perfeito” familiar dela, enquanto muitas estão presas por não terem um padrão perfeito familiar. É isso o que a narrativa das negras e latinas mostra em sua maioria.

E quando os contextos começam a se tornar cada vez mais trágicos, Piper vai se distanciando e vivenciando um conto de fadas romântico numa prisão, mesmo que fora da bolha dela mulheres estejam brigando, grupos estejam pregando a supremacia branca, mulheres estejam sendo estupradas por guardas e assassinadas. Comecei, então, a ter raiva. E estou muito raivosa, cansada e querendo gritar: O fato da Chapman não ser “mais protagonista” aos olhos de muitos, não é verdade. Ainda é sobre a história dela. O problema é que Piper nunca esteve incluída. O sistema não foi feito para punir pessoas como ela, mas para manter o racismo vigente. Os privilégios criaram uma cerca que ela não ultrapassou e nunca irá ultrapassar.

Esse é o ponto. Ela nunca será como as outras, pois o sistema, no máximo, pune os “white trash” e mesmo assim não é da mesma forma que os negros, latinos e etc. são punidos. Inclusive, falando sobre essas “minorias” eu sempre escuto:

“Nossa, Stephanie, mas tem tantas negras, latinas e até uma trans na série. Isso não conta?”

Conta elas terem um emprego, garantia de um salário e visibilidade. Mas me chama atenção ver um texto como, “Orange is the New Black: Como são as 26 atrizes longe da prisão”, e perceber que muitas negras e latinas participaram da série Law & Order: Special Victims Unit e Law & Order. Duas séries de investigação policial, o que me faz pensar que negras e latinas tem chances nessas narrativas políciais/investigativas. Eu queria mesmo é ver mulheres negras protagonizando, desde Gossip Girl até House Of Cards.

“Mas é preciso ser coerente com a realidade negra de vocês”. Realidade que a gente escolheu ou que nos foi imposta? Discurso meritocráticos ou que transformam excessões em regras não me servem. Sei muito bem que as chances são traçadas conforme a cor, conta bancária, construção familiar. E para negros e latinos nos EUA (não que no Brasil seja muito diferente para negros) isso é sempre uma escassez de acessos. A realidade é mantida e perpetuada quando só contam a nossa história por um olhar, e esse é branco.

Esses são alguns dos principais Oscars ganhos por mulheres negras e os papeis que elas tiveram nas produções: Hattie McDaniel e Octavia Spencer ganharam como empregadas domésticas, a segunda do já citadoHistórias Cruzadas. Nenhum desses filmes realmente questiona o racismo e a ligação que ele tem com o trabalho doméstico. São raras as produções que evidenciam que no fundo estamos falando na manutenção do olhar escravocrata cobre mulheres negras.

Nós negros somos muitos e diferentes. Mas até quando só a nossa dor será vendável?

Histórias Cruzadas teria sucesso em fazer isso se possibilitasse que as mulheres negras falassem por si. Mas qual sistema racista e machista será mudado enquanto o oprimido não puder ter voz?

Halle Berry e Mo’Nique ganharam Oscars como mães ausentes e opressoras. Halle em um filme em que ela, a mãe solo negra que sofre racismo e oprime o filho negro gordo, transa com o homem que é racista com ela (esse filme é super gatilho para mim e para qualquer pessoa negra que sabe como racistas violentos, como esse do filme, não são pessoas que queremos transar. É pura objetificação da mulher negra).

E Mo’Nique por Preciosa (não preciso nem comentar sobre, é a história de mais dor e sofrimento que já vi no cinema. Me dói a alma o fetiche em cima dessa história terrível. Além do mais, me dói entender que a mãe de Preciosa é opressora e vítima de toda aquela história também). E, por fim, Lupita Nyong’o que ganhou sua estatueta como mulher escrava, violentada física e sexualmente em 12 anos de escravidão.

Nós negros somos muitos e somos diferentes. Mas quando se trata dos personagens que negros fazem em novelas, filmes, séries, até quando só a nossa dor será vendável?

A história de Orange Is The New Black é baseada na história real de uma mulher que foi presa e que por um ano recebeu visitas do seu namorado todas as semanas – esse que já era um escritor conhecido e que a ajudou a escrever o livro sobre sua experiência na prisão.

Piper não foi obrigada a conviver com sua ex, que nem era uma mulher magra, de olhos claros e longos cabelos pretos. Era uma mulher gorda, fora do padrão e que só passou algumas poucas semanas novamente em contato com Piper, e não teve nenhum tipo de relação sexual com ela. Ou seja, a narrativa da série da Netflix é uma invenção que se baseia em algoritmos e faz o que o público quer ver.

Não dá para fingir que não existe um fetiche. Além disso, Orange Is The New Blacknão mostra nenhuma relação afetiva que envolva negras com negras. E usa personagens em relações inter raciais para dizer que existe alguma forma de racismo reverso.

Tudo isso é visto com ares de liberação sexual e empoderamento feminino. Mas para quem? A romatização e a leveza da primeira temporada me causaram desconforto. Parecia um conto de fadas sobre um presídio e essa não é a realidade.

“Estamos falando de racismo só por essa história existir e ter sido escrita sob o olhar e protagonismo de uma mulher branca”

A personagem de “Crazy Eyes” sendo colocada como uma tarada sexual que assediou a pobre Piper me deu raiva novamente. Até porque os roteiristas tinham escrito essa personagem para pouco mais de duas aparições, só que o talento de Uzo fez ela ser mantida. Me causa repulsa saber que a negra “louca” iria ser usada só para mostrar que a pobre branca presa sofreu assédio lésbico.

As mulheres negras só servem de objetos para a narrativa de alguém branco. O que me lembra que a única “vilã” causou raiva da narrativa, reforçando o estereótipo de mães negras abusivas serem “vilãs”, manipuladoras e negligentes. Estou falando da “Vee”. Na terceira e na quarta temporada a série fica mais dramática, a estética inclusive muda e os temas ficam mais realistas…

Só queria lembrar que a série mudou de status com o tempo. Ela não me soa tanto de humor quanto era no começo e passou a intensificar o drama. Nessa mudança, as narrativas negras e latinas ficaram mais evidentes. Isso seria perfeito se não fosse tudo baseado no fetiche em cima da dor negra/latina.

Então, não acredito que isso seja à toa, não acredito que isso não seja comercial, e pior, não acredito que estão usando as narrativas negras e latinas em um lugar diferente do construído há anos pelo cinema e produções midiáticas, ou seja, mais do mesmo. Aparentemente, as pessoas brancas que escrevem e assistem série tem certo prazer na dor negra, latina e indígena, mas só se ela for realmente muito evidente.

O racismo não aconteceu só na quarta temporada. A forma como o tema, ao longo da série, vem sendo tratado, me incomoda. Não existe uma narrativa opressora só agora. Estamos falando de racismo desde o primeiro episódio. Estamos falando de racismo só por essa história existir e ter sido escrita sob o olhar e protagonismo de uma mulher branca, em um sistema carcerário que pune, em sua maioria, mulheres negras.

É desse sistema carcerário norte-americano, que é o maior do mundo, que estamos falando. O sistema carcerário do país mais rico do mundo, que é mantido na base da exploração da mão de obra negra e latina, pois os presos valem dinheiro.

Sempre foi sobre racismo

E vai continuar sendo enquanto não questionarmos porque as narrativas negras não geram séries, protagonistas, histórias felizes, voltas por cima, livros, empatia. Estamos falando de racismo desde o começo da série. No entanto, muita gente que não percebeu ou achou que essa poderia ser uma narrativa de humor, sendo ela baseada numa vivência trágica motivada pelo capitalismo e ódio a negros/latinos.

Eis que a quarta temporada chegou e matou uma personagem negra. É claro que eu nem precisava dizer que a pessoa que morreu é negra, pois sempre as pessoas negras morrem em filmes para dar ênfase no drama. Tanto que nós, negros, estamos acostumados com a morte de personagens negros.

Com Poussey não seria diferente, ela morre nas mãos de um policial que nem é “tão ruim assim”, que é fofo, que tem uma boa história. E sabe qual foi a desculpa da escritora? Queríamos evidenciar o movimento “Black Lives Matter”.

Ok! Depois dizem que é a Beyonce, mulher, negra e vítima de racismo, que usa o movimento negro para gerar comoção, vendas e dinheiro. Sabe, negros norte americanos estão se mobilizando ativamente. Não é só Beyoncé, Lamar, ou grandes discursos como de Viola Davis e Jesse Williams.

São muitas pessoas falando de racismo e agindo, em um país rico, poderoso, chefiado por um presidente negro, contudo que tem números sobre violência, morte e encarceramento da sua população negra cada vez maiores. Então podemos falar sobre isso sem usar clichês hollywoodianos.

Existe um grupo de supremacia branca na série e precisaram matar uma negra para enfatizar que racismo existe e mata? Black Lives Matter não é só sobre morrer, é sobre racismo e um sistema carcerário do país onde os negros são 13% da população total, só que 40% dos encarcerados. Não é preciso matar negros, está evidente (ou deveria estar se a questão racial fosse bem escrita e abordada) que tudo ali é sobre Black Lives Matter. Afinal, o racismo precisa matar para a gente se comover?

Brancos precisam identificar o racismo, sem que precisemos morrer, sem que precisemos passar fome e morar nas ruas, sem que precisemos ser agredidas por racistas, sem que precisemos desenhar o que é racismo a todo momento. Brancos precisam entender que se o grupo de supremacia branco é chocante, o silêncio dos demais brancos para a existência dele também é.

Piper gozou dos privilégios e ainda goza quando em um sistema que prende, mata e destrói vidas negras e latinas, ela dá a volta por cima e vive a autora de um livro, e a protagonista de uma série sendo a exceção da exceção de histórias que geralmente tem cor.

Isso também é sobre racismo. E vocês precisavam ter entendido antes de negros terem dito.

Acesse no site de origem: Orange is The New Black: Quando nem tudo será sobre pessoas brancas?, por Stephanie Ribeiro (HuffPost Brasil, 30/06/2016) ‘Orange is the New Black’ e a persistência de opressões e privilégios, por Joanna Burigo

(CartaCapital, 23/06/2016) A quarta temporada é escancaradamente politizada e captura bem o esprit du temps feminista

Já faz alguns anos que o que acontece de mais interessante e socialmente relevante no universo das produções audiovisuais se concentra em seriados – tanto os veiculados na TV quanto os que consumimos sequiosamente via Netflix.

Desde Família Sopranos, série da HBO sobre uma família mafiosa que veiculou de 1999 a 2007, parece ser consenso entre a crítica especializada que o formato, hoje mais que o Cinema, captura e expressa o zeitgeist.

As aclamadas séries Breaking Bad e Mad Men, juntamente com Sopranos, são costumeiramente tratadas como a santíssima trindade desta era de produções televisivas que, com técnicas cinematográficas e roteiros astutos, primam por qualidade narrativa e se distanciam do modelo ordinário dos tradicionais enlatados.

Séries de TV costumavam ser vistas como puro entretenimento, mas hoje o modelo desempenha funções um pouco mais intelectuais, e uma das características mais marcantes desta fase dos programas seriados é a inclusão – em muitos deles – do pensamento e do discurso feminista.

Mad Men, sobre a indústria de publicidade na Nova York dos anos 1960, se sobressai por escolher expor as consequências negativas da cultura patriarcal nas vidas de todas as personagens do show. A série fornece tantos exemplos de situações em que o que chamamos de privilégio masculino e branco se revela, que ela chega a facilitar a compreensão do conceito para leigos.

O feminismo em Mad Men não é declarado, até porque na época em que a narrativa se dá, a dita segunda onda ainda não tinha estourado propriamente, e é apenas em um dos últimos episódios que um nome feminista aparece (o de Betty Friedan, que lançara A Mística Feminina em 1963).

Mas o pensamento feminista está embutido no processo criativo, e isso fica bastante evidente no desenrolar dos arcos das protagonistas – é impossível não reparar que os sucessos e fracassos profissionais de Joan Holloway, Peggy Olsen e Betty Draper estão indelevelmente imbricados nas relações de poder que informam suas relações com homens, no trabalho e em casa.

Mas se Mad Men se destaca, esta não é a única série a demonstrar como é possível inserir questões feministas em sua produção. Os seriados baseados nos quadrinhos da Marvel vêm representando mulheres de formas bem diferentes do papel feminino clássico das narrativas sobre super-heróis: saem as belas coadjuvantes que precisam ser salvas, entram protagonistas complexas e repletas de humanidade.

A relação entre Jessica Jones, super-heroína do seriado homônimo, e Kilgrave, seu algoz e arqui-inimigo na primeira temporada, é uma metáfora sublime para relacionamentos abusivos e a força necessária para sair deles.

Muitas outras séries lançadas nos últimos dez anos incorporam questões árduas de gênero em seus roteiros, e críticas feministas agudas podem ser encontradas também em produções de fora dos EUA, além de nos costumeiros enlatados de lá. Da sagaz mente de Tina Fey veio Unbreakable Kimmy Schimidt, comédia situacional que satiriza a vida comezinha da Nova York atual com personagens femininas hilariantes e completamente falhas.

A neozelandesa Jane Campion denuncia o patriarcado através da cultura do estupro no drama Top of The Lake, onde a facilidade com que feminismo vira culto também é abordada. E foi a série britânica The Fall que nos presenteou com Stella Gibson, quiçá a personagem escrita da forma mais competentemente feminista que se tem registro.

Mas talvez a série que mais explicitamente aborde questões sobre mulheres – e com uma honestidade brutal, tanto nas cenas dramáticas quanto nos momentos mais cômicos – seja mesmo Orange Is The New Black.

Para a espectadora novata, num primeiro momento pode até parecer que Orange Is The New Black seja sobre Piper Chapman, uma mulher branca e narcisista condenada por transportar dinheiro para sua namorada traficante, e que entra no complexo prisional via Penitenciária Litchfield, onde se desenrola a história.

Todavia logo fica evidente que a série na verdade é uma saga tragicômica sobre interações entre mulheres que vivem às margens da sociedade, lidando com a persistência de opressões e privilégios institucionais relacionados a gênero, etnia e classe social.

Esta descrição se aplica às três primeiras temporadas, e na mais recente – mais abertamente politizada do que as anteriores, e disponível na Netflix desde sexta-feira 17 de junho – questões de identidade cultural e tensões referentes a racismo e alteridade são testadas num novo e carregado contexto: superlotação, corporativismo selvagem, e a ascensão de um fascismo militarista no presídio recém-privatizado.

O show se manteve tocante, mas as fortes emoções que ele já costuma engendrar foram intensificadas nesta temporada, que está ainda mais sombria e bufa. A combinação entre a privatização do presídio e a enxurrada de novas prisioneiras foi perfeitamente utilizada pela série para evidenciar não somente a falta de ética que perpassa certas decisões corporativas, mas também para explorar as motivações por trás da violência que permeia a vida de pessoas sem privilégio social.

A inserção de novas detentas e da nova equipe correcional na narrativa dá continuidade ao hábito das criadoras da série de utilizar personagens como símbolos de estruturas sociais. Desde a primeira temporada, os papéis masculinos em especial são usados como arquétipos, estereótipos ou protótipos de grupos, instituições e posições de poder e privilégio patriarcais.

O diretor do cárcere, Joe Caputo, personifica bem esta simbologia, e é perceptível o quanto seu poder oscila de acordo com a situação: perante as detentas Caputo se faz de durão, mas diante de seus superiores ele geralmente encarna o executivo bobalhão.

Caputo é um ser humano complexo, mas o show deixa claro: ele é um homem em posição de autoridade, e apesar de sofrer para conciliar seu desejo genuíno de conferir bem estar às prisioneiras e a preocupação legítima em relação aos rumos de sua carreira, ele conta com um sistema social que vai validar ou mesmo glorificar suas ações e decisões mais egoístas.

O mais novo papel masculino, o do guarda prisional Desi Piscatella, concentra em si homossexualidades misóginas e personalidades com inclinações totalitárias, e é precisamente a sordidez deste fascista gay que inspira uma coalizão inesperada entre as detentas – reforçando assim o simbolismo da complexidade dos feminismos pós-modernos que a série parece pretender projetar.

As histórias das detentas sempre foram contadas através de suas interações na prisão e com flashbacks de suas vidas antes do cárcere, que escavam suas psiques e as conferem um caráter mais humano e menos institucional – o que avigora que o protagonismo desta série é indiscutivelmente das mulheres.

Uma detenta que foi introduzida nesta temporada, no entanto, personifica alguns sistemas sociais. Judy King, personagem que emula Martha Stewart (uma Ana Maria Braga estadunidense, que foi sentenciada a cinco meses de prisão, em 2004, por envolvimento em um escândalo no mercado de ações) simboliza o poder que reside nas – e emana das – mãos de celebridades.

King é racista e egocêntrica, abusa do domínio que sua fama impõe até mesmo sobre os funcionários da cadeia, e assim encapsula a cegueira e a inclinação dominante que são inseparáveis do privilégio branco e rico.

Orange Is The New Black não tem medo de problematizar questões espinhosas, e as roteiristas chegam a exagerar na adição de camadas que conferem complexidade às já polêmicas situações.

Os argumentos sobre semântica religiosa que aconteceram na quarta temporada entre a judia convertida Cindy Hayes e sua nova companheira de cela, que é muçulmana, dissipam dúvidas com as quais gentios sempre questionam os dois dogmas, mas como o diálogo se dá entre duas mulheres negras, o sentido pesado da histórica inimizade é completamente deslocado, e é o humor surreal da cena o que facilita a abordagem de tema tão denso.

Fantasias românticas também são desconstruídas, especialmente através do idealismo ilusório de Lorna Morello, que agora está casada com um marido que mal vê, mas cuja cena da visitação – particularmente vívida e carregada de tensão sexual, emoção e vergonha alheia – nos leva a ter empatia com os devaneios amorosos oriundos de sua solidão.

Sexualidade e romances interraciais também compõem o pacote de tópicos abordados nesta temporada, e confesso que ao assistir a breve altercação entre Big Boo e o casal e Brook Soso imaginei que Judith Butler ficaria feliz com o tensionamento entre gênero, sexualidade e raça que a cena faz.

A asiática Soso diz se apaixonar por pessoas e não gêneros, e namora Poussey, negra e declaradamente lésbica; enquanto ensaiam um jogo informal de basquete, as duas são interpeladas por Boo, a sapatona mais dyke da série, que é branca, e que pede que a “gracinha de sexualidade fluída” saia da quadra para que os “homens de verdade” possam jogar.

Nos poucos minutos em que a cena se dá, a série ratifica o que a teoria de gênero propõe: questões de sexualidade e identidade são melhormente compreendidas na seara do social do que em função de biologia.

O fato de que todas as participantes da cena eram mulheres, e de que a orientação sexual de todas era lésbica, não impediu que um atrito esportivo fosse retoricamente pautado pela sexualidade e identidade de gênero das participantes. A vida é complexa, e onde há relações de gênero, há relações de poder…

Sofia Burset, a presidiária trans da série que fez de sua atriz – a também transexual Laverne Cox – uma pop star internacional, terminou a terceira temporada na solitária, e é lá que ela passa a maior parte da quarta.

Sua relativa ausência pode ser compreendida como analogia para o apagamento social de pessoas trans, e a pichação na parede das alas comuns, onde se lê que “Burset tem um pau”, corrobora com essa interpretação: nesta temporada, o pouco tempo de cena de Sofia reflete a baixa recepção social para subjetividades trans, que quando não são aniquiladas, tendem a ser invisibilizadas ou forçosamente reconfiguradas por causa de sua fisiologia.

Saúde mental também foi um tópico bastante explorado, e se Suzanne “Crazy Eyes” Warren foi o papel que personificou instabilidades psíquicas ao longo das três primeiras temporadas, nesta última as questões de sanidade foram bem exploradas em outras personagens.

A aproximação entre a detenta Lolly Hill e o oficial prisional Sam Healy, que se dá em função de os dois compartilharem histórico de psicoses, resgata a humanidade de ambos e relembra a audiência de que loucura não é crime.

Mas o tema central desta mais recente temporada são relações raciais e étnicas. Tendo a campanha #BlackLivesMatter como pano de fundo, a série não desperdiçou a oportunidade de demonstrar a velocidade com que argumentos anti-racistas são resignificados – e diante das tensões que se acumulam no presídio lotado, não demora para que um grupo neonazista se forme por ali, trazendo retrocesso até mesmo para os confins do já ultrapassado sistema penal.

O aumento no número de detentas também significou que as latinas agora formam a maioria, mas isso não se traduz para supremacia: os flashbacks de Maria Ruiz, Maritza Ramos e Blanca Flores, bem como seus empreendimentos financeiros no cárcere e os xingamentos trocados entre elas (que se referem às cubanas como “Bacardi Bitches”), explicitam muitas das tensões entre linhagens latinas que vemos acontecer com as detentas.

A série – que pode e deve ser vista de uma só vez, pois já está inteiramente disponível – aborda questões difíceis sem torná-las desagradáveis, e consegue fazer piada de absolutamente todos os cuidados politicamente corretos que costumamos tomar.

Um dos diálogos envolvendo a sensacional cozinheira russa Galina “Red” Reznikov, resume este espírito: ao transformar a marcação à ferro de uma suástica, feita em uma das detentas, em um quadrado contendo uma cruz, ela diz: “Quando Deus te dá uma suástica, ele abre uma janela. Daí você lembra: Deus não existe”.

Mas a Deusa sim. E ela adora Orange Is The New Black.

Acesse no site de origem: ‘Orange is the New Black’ e a persistência de opressões e privilégios, por Joanna Burigo (CartaCapital, 23/06/2016)