XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – João Pessoa – 2012

Bellinati-Tatit: interfaces entre o Violãosolístico e a Canção Popular Brasileira

Francisco Saraiva da Silva USP – [email protected]

Resumo: O trabalho constituiuma reflexãoa partir de duas entrevistasa respeito do processo criativo que se alimenta do contato entre o repertório do violão solístico e a canção popular no Brasil.Trata-se de um recorte do trabalho de mestrado que venho desenvolvendo em que utilizo entrevistas comalguns dos principais compositores brasileiros, tanto do universo do violão quanto da canção, a fim de observar a interação entre as práticas composicionais correntes em tais universos.

Palavras-chave:Bellinati, Tatit, Canção, Violão.

Bellinati-Tatit: interchanges between Solo Guitar and the Brazilian Popular Song Abstract: On the basis of two interviews the present paper reflects on the creative process that thrives on the contact between the repertoire of Solo Guitar and popular music in . It is an extract of my master´s thesis for which I interview some of the main Brazilian composers, from the universes of both Solo Guitar and Brazilian Song, in order to observe the connections between compositional practices deployed in these universes.

Key words:Bellinati, Tatit, Song, Solo guitar.

1-Introdução

O presente artigoapresenta o recorte de duas entrevistas, uma com Paulo Bellinati e outra com Luiz Tatit, a respeito do processo criativo que se vale tanto de recursos instrumentais, mais especificamente do violão, quanto de recursos tradicionalmente utilizados no âmbito da canção popular. Para tanto estudaremos o campo de interação entre a música para violão e a canção com o objetivo de levantar procedimentos recorrentes no fazer de alguns dos principais compositores brasileiros. O interesse por este tema nasceu de meu percurso como violonista-compositor. Inicialmente compus para violão. Aos poucos a “vocalidade” foise revelando em minhas melodias conferindo-lhes condição de canção, e levando-as a acolherem letra e interpretação vocal. As expressividades próprias aos universos do Violão e da Canção vêm se influenciando mutuamente ao longo da história da música brasileira. O violão partindo da posição de instrumento usual no acompanhamento da canção, e a canção estabelecendo“vocalidade” que se torna parâmetro para a “melodia instrumental”, também referencial à música composta para o próprio violãosolístico.

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“Canhoto (1889-1928) foi, sem dúvida, o primeiro ídolo popular do instrumento, profissional pioneiro no campo dos recitais e gravações e compositor de obras de autêntica brasilidade. Esta seria sua maior contribuição para o violão, firmar bases do “estilo brasileiro”, posteriormente cultivado e desenvolvido por Dilermando Reis: e valsas ingenuamente concebidos do ponto de vista da construção, apresentando harmonias e encadeamentos básicos que funcionam como suporte a melodias que se destacam pelo estilo cantabile (muitas das quais receberiam posteriormente letra) em detrimento de um caráter puramente virtuosístico- instrumental. (TABORDA, 2011: p.141)

2- Violão–Canção

A distinção entre o violão e a canção se esclarece na medida em que observamos suas especificidades no fazer musical. O equilíbrio sonoro do instrumento garante ao violão solísticointegridade que o leva a ser tratado como “pequena orquestra”, onde cada relação intervalar entre vozes pode ter importância estrutural para a peça, e sugerir, inclusive, o desenho da melodia principal. O compositor Manuel de Falla (1933), em prólogo para a “Escola Razonada de la Guitarra” de Emílio Pujol, exalta as qualidades do violão solista:“Instrumento admirable, tan sombrio como rico... ycómo no afirmar que, entre los instrumentos de cordas com mástil, es la guitarra el más completo y rico por sus possibilidades harmônico-polifónicas?” 1 Fator marcante no repertório do violão erudito europeu, o aspecto “harmônico- polifônico” contaminoudecisivamente o violão popular brasileiro. A prática das duas escolas entrelaça-se no Brasil, desenvolvendo-se através da exploração detais possibilidades musicais. Já a Canção, que por natureza é uma melodia acompanhada, equilibra em primeiro plano a melodia com a palavra, priorizando as exigências do canto para atingir plena expressividade. Na colocação de Almirante2 (1963) o termo “música popular” figura em equivalência a canção se contrapondo a uma maior elaboração no plano musical. Cito-o: “Mais uma vez ficou provado que o êxito da música popular depende e quase exclusivamente do valor intrínseco de sua melodia e da graça e inspiração de seus versos. Arranjos, gravações trabalhadas, etc., naturalmente ajudam, mas são simples acessórios...” 3

Tatit define o “cancionista” ao delinear as habilidades e visão dos criadores que atuam no campo da canção: Parece, realmente, que o ouvido dos cancionistas possui uma Gestalt própria... adota algumas sequências de acordes (quando toca algum instrumento) e algumas regularidades rítmicas como pontos demarcatórios para a invenção melódica; propõe e memoriza melodias globalmente sem se deter nos detalhes de passagem...Se a

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tendência do músico é desenvolver um ouvido analítico, chegando ás unidades mínimas do som (embora não perca a noção do todo), o ouvido do cancionista privilegia o tratamento global da obra, não se importando com alterações localizadas. (TATIT, 1995: p.163) 4

A significativa distinção entre a figura do “cancionista” e do “músico” representa uma baliza para o trabalho teórico que Luiz Tatit vem desenvolvendo, não por acaso no curso de Letras, acerca da canção popular. Apresentamos uma colocação de Tatit extraída da entrevista que se tornou inaugural para nossa investigação sobre o trânsito entre os universos delineados: “Essa distinção entre canção e música não é para que os universos se afastem ou se separem, não é essa a questão. É para que entendam que a vocação para canção é diferente da vocação musical.” As múltiplas formas como essas vocaçõesse traduzem em música, cantada ou instrumental, e as diferentes funções que o violão exerce nesse panorama revelam um campo de interação promissor. O que nos leva a iniciar um processo de entrevistas a partir dessas duas primeiras, a fim de registrar o olhar do cancionista frente à composição para violão e, no sentido contrário, o olhar do compositor-violonista frente à canção. As entrevistas foram gravadas no segundo semestre de 2011, uma com o cancionista Luiz Tatit e outra com o violonista-compositor PauloBellinati. Em ambos os casos as conversas deram continuidade aos diálogos quevínhamos desenvolvendo em encontros anteriores.

3- Bellinati–Tatit

A partir de agora seguimos com a transcrição das entrevistas (sempre em itálico), pontuadas por algumas reflexões a respeito do conteúdo apresentado. Minha primeira questão para Paulo Bellinatireferiu-seàs contribuições entre o violão solístico e a canção brasileira. Sua resposta oferece, pela ótica do “músico”, um pequeno histórico que contextualiza o trânsito de elementos entre os universos abordados: Bellinati: O violão é um instrumento que sempre esteve na mão dos principais compositores estando, de alguma forma, fundido à criação da música popular brasileira. Acho também que o violão solo vem, através dos tempos, enriquecendo a canção de uma maneira muito significativa.

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Vejam, o violão de 7 cordas é um exemplo crucial na história da música brasileira, que possibilita uma expressão gigantesca do músico em um acompanhamento: num bem simples, o violonista pode realizar uma idéia, um contraponto sensacional em baixo sem deturpar o estilo original.Tanto no samba, quanto no e na seresta... Tudo que é seresta, tudo que é valsa-serenata foi enriquecido, em um primeiro momento, por esse tipo de músico que vem do choro. Na evolução da música brasileira chega-se ao período pré Bossa-nova/Bossa- nova, no qual acontece novo giro. Os músicos, influenciados pelo jazz e pela música europeia, começam a enriquecer as harmonias de uma maneira incrível. Esses músicos fazem a Bossa-nova aparecer, marcada pela sofisticação da execução instrumental. O Garoto, junto a outros músicos, é um dos pioneiros desse processo que culmina com João Gilberto, com um violão de acompanhamentomas muito elaborado. Um violão que acompanha um samba bem simples, bem raiz, condensando a estrutura do samba numa batida e nasofisticação harmônica. O violão se transforma realmente numa “pequena orquestra”. Garoto (Aníbal Augusto Sardinha 1915-1955) teve sua obra paraviolão solo transcrita e gravada integralmente por Paulo Bellinati5. A ligação queBellinati traça entre os dois violonistas, o especialista em acompanhamento e seu precursor solista, é ilustrada pelacélebrefrase de João Gilberto: “O violão de Garoto é o coração do Brasil” Saraiva: Essaidéiade violão enquanto orquestra é mais comum em peças pra violão solo que em violão de acompanhamento, mas João Gilberto, talvez pela dimensãocamerísticana qual atua, abre uma possibilidade de intercâmbio entre essas duas práticas. Bellinati: Acho que isso é uma coisa bem tradicional na música brasileira. Tudo conspira para um violão mais elaborado e é de mão dupla. A canção se enriquece com esse violão mais sofisticado e vice versa. A evolução mostra que isso vai crescendo de um jeito marcanteaté os dias de hoje, culminado de uma maneira incrívelcom Guinga, um compositor que extrai do violão a própria composição. Ele pega o violão e ao tocar as cordas soltas já está fazendo opções composicionais. O Violão vai oferecendo a música para ele, e a partir daquela sofisticação harmônica acaba criando uma nova melodia, uma canção muito mais elaborada.

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Em contraposição a esse olhar do músico, que apreende a elaboração musical oferecida pelo violão6, apresentamos o olhardocancionista Luiz Tatit, intimamente ligado à vocalidade. Tatit: Tem cancionistas especialistas em letras, é o que a gente chama de letrista, e o cancionista especialista em melodias, que faz melodias e não é músico. O que é interessante é que ao fazer a melodia, a cabeça do cancionista já está visando alguma letra, nem que ele não a faça e que vá entregar para alguém fazê-la. Ele já está imaginando uma entoação lá dentro. Um compositor como Guinga ou outros músicos, que não são cancionistas típicos, com o domínio que têm do instrumento, acabam extraindo melodias, que acabam virando entoação, e unidades entoativas, mas tem uma outra origem, que é a instrumental. A partir daí é que se trabalha a diminuição, ou seja, o instrumento sugere a linha, mas se for instrumental demais você atenuaa musicalidade para que aquilo vire uma coisa entoável. Senão não funciona como Canção, perde a eficácia de Canção, mesmo se for a coisa mais linda do ponto de vista musical. Colocação que sublinha o jogo entre aspectos instrumentais e vocais no conteúdo melódico-entoativo de uma composição. Quando comento sobre o convívio que Guinga teve com Nelson Cavaquinho e sua atuação como instrumentista gravando com (duas figuras fundamentais para a canção brasileira) e de como esse tipo de convívio pode ter aguçado o instinto de cancionistade Guinga, Tatit segue em pergunta enigmática. Tatit: Mas o que o Guinga apreciaria no Cartola?O que ele aproveita do Cartola que mal toca violão? Depois de meus protestos inicias e de meu canto buscando explicitar a rara modulação harmônica presente, por exemplo, na música “Acontece” de Cartola. Modulação que estabelece bases para relações entre tonalidades distantes, incrementando o cancioneiro brasileiro e alimentando diretamente a música que Guinga viria a produzir. Tatit aprofunda a questão. Tatit: Esse tipo de passagem modulatória que você frisa é muito pouco, e é uma coisa que Guinga não teria por que admirar, já que faria com a maior facilidade. O que vale para o próprio Cartola é a música como um todo.

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ETatit canta a mesma “Acontece”, buscando atrelar o sentido da letra aos intervalos melódicos da melodia. Entoa: “Por que tudo na vida acontece”, e diz: Esse acontece é afinado para ir lá pra cima, para dar uma idéia de suspensão. Que ainda vai dizer mais. Entoa: “E acontece que já não sei mais amar”, e avalia: Tudo, toda a entoação é extremamente bem articulada. E o que acho interessante é que toda a história da Canção é marcada exatamente por gente extremamente capaz do ponto de vista musical requisitar continuadamente quem tem pouquíssimos recursos instrumentais, porém uma intuição precisa no fazer de melodias maravilhosas. Essa é a minha curiosidade. Saber o que os músicos-instrumentistas vêem. E se de fato eles têm consciência de que o que eles admiram são as unidades entoativas. Porque, às vezes, você diz unidades entoativas e eles acham que são unidades melódicas, e não é isso. É da própria fala. É difícil chegar nisso por que precisa se ter certa afinidade, uma certa massa de conversa a respeito. Assim como no ato da composição de uma canção, parece-nos que o desafio que desponta, também no plano teórico do estudo sobre canção, é o do estabelecimento de uma faixa de sintonia entre o olhar do “cancionista” e o do “músico”, na qual ambosobservem,cumplicimente,o casamento entre o que a palavra oferece como “unidade entoativa” e a música apresenta como “unidade melódica”.

4 - Conclusão

É evidente a diferença entre a prática composicional espontânea do “cancionista”, que é fortemente atrelada à figura do “sambista”, e a de um compositorcom viés erudito, que coloca em pauta,de forma consciente,aspectos musicais comodirecionalidade, unidade motívica e equilíbrio fraseológico. Recursos que se apresentam no repertório erudito em melodias de canções que não se limitam à utilização de materiais diatônicos,baseadosem arpejos, ou mesmo que evitem saltos dissonantesa fim degarantir uma emissão vocal estável e, com isso, a “eficácia” da entoação coloquial priorizada no olhar deTatit. Assim como no universo do violão, instrumento que carrega a marca popular mesmo quando atua em repertório erudito, também no universo da canção as fronteiras entre esses ambientes, apesar de existirem, nunca inviabilizaram o intercâmbio entre suas práticas.

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Segundo Wisnick: “Esse movimento cruzado de encontros entre o popular e o erudito sinaliza a permeabilidade constitutiva da música praticada no Brasil.” 7 É notável no cancioneiro brasileiro uma elaboração musical que sintetiza gestos autorais, populares e eruditos,em processos criativos que se alimentam de ambas as práticas. Processos que estudaremos,em seu intercâmbio com o repertório violonístico, ao longo das próximas entrevistas. “Parece mesmo que a história nos presenteou com uma passagem, uma janela aberta, que permitiu aos brasileiros uma porosidade rara entre as práticas eruditas e populares, dando origem a um campo intermediário. De onde nasceu uma importante vertente na música popular brasileira que se sedimentou no âmbito da canção popular.” (ANDRADE, 1964: p.34)

A Canção épresente,já há tanto tempo e de forma tão marcante no ambiente musical brasileiro,que acaba se inscrevendo naturalmente mesmo na música que se propõe a ser totalmente instrumental. Fato notável também na história da música europeia, que no Brasil ganha vida e força própria. Bellinati nos dá um exemplo capital da relevância dessa via de “mão dupla” entre a canção e o violão, que pode ser explorada das mais variadas maneiras, ao comentar a obra para violão solo de Garoto: Bellinati: O Garoto era um compositor que fazia canção no violão. Saraiva: Você fala das canções que receberam letra e vieram a ser gravadas com interpretação vocal,como“Gente humilde” e “Duas contas”? Bellinati: Falo de todas as músicas dele! Eram canções instrumentais, não eram solos de violão. Era uma canção que ele tocava no violão. Era um violão que cantava.

Referências:

ANDRADE, Mario de. Modinhas Imperiais. São Paulo: Ed. Martins,1964.

BELLINATI, Paulo. The Guitar Works of Garoto.San Francisco: Guitar Solo Publications, 1991.

CARDOSO, Thomas F. S. Um violonista-compositor Brasileiro: Guinga. A presença do idiomatismo em sua música. , 2006. 140 f. Dissertação de mestrado UNIRIO.

PUJOL, Emilio.EscuelaRazonada de la Guitarra. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1956.

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TABORDA, M.O Violão e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011.

TATIT, L.O Cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1995..

______A Canção-eficácia e encanto. São Paulo: Atual Editora, 1986.

WISNICK, José Miguel.Encontros entre o popular e o erudito. Disponível em: http://www.tecsi.fea.usp.br/eventos/Contecsi2004/BrasilEmFoco/port/artecult/musica/poperu d/index.htm. Data do acesso: 07/07/2012

SARAIVA,Chico (Francisco Saraiva da Silva). Entrevistas com Luiz Tatit e Paulo Bellinati no segundo semestre de 2011. São Paulo. Gravação em vídeo. Estúdio particular.

1Prólogo de Manuel de Falla para a EscuelaRazonada de la Guitarra de Emílio Pujol. 2 Apelido pelo qual era conhecido Henrique Fôreis, radialista, cantor e pesquisador da música popular brasileira, cujo acervo pessoal constitui hoje o acervo do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. 3 ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa cit. In: Tatit, L. A Canção-eficácia e encanto. São Paulo: Atual Editora, 1986, p.1. 4 TATIT, L.O Cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1995. 5 BELLINATI, P. The Guitar Works of Garoto.1991.Guitar Solo Publications.SanFrancisco,USA. 6 Processo investigado na dissertação de CARDOSO, Thomas F. S. Um violonista-compositor Brasileiro: Guinga. A presença do idiomatismo em sua música. UNIRIO 2006. 7 Wisnick José Miguel. Encontros entre o erudito e o popular.Disponível em: http://www.tecsi.fea.usp.br/eventos/Contecsi2004/BrasilEmFoco/port/artecult/musica/poperud/index.htm. Data do acesso: 07/07/2012

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