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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Vítor Aquino de Queiroz D´Ávila Teixeira

A Pedra que Ronca no Meio do Mar: baianidade, silêncio e experiência racial na obra de

Campinas 2017

Vítor Aquino de Queiroz D´Ávila Teixeira

A Pedra que Ronca no Meio do Mar: baianidade, silêncio e experiência racial na obra de Dorival Caymmi

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

Orientadora: Heloísa Pontes Co-orientador: Luiz Gustavo Freitas Rossi

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO VÍTOR A. DE QUEIROZ D. TEIXEIRA, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. HELOÍSA PONTES.

______

Campinas Abril de 2017

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 15 de março de 2017, considerou o candidato Vítor Aquino de Queiroz D´Avila Teixeira aprovado.

Profa. Dra. Heloísa André Pontes

Prof. Dr. André Domingues dos Santos

Profa. Dra. Rose Satiko Gitirana Hikiji

Prof. Dr. Christiano Key Tambascia

Prof. Dr. Robert Wayne Andrew Slenes

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

Para John Monteiro e meu avô Francolino Neto, in memoriam. Para minha mãe, Grácia Queiroz, e para o meu grande amigo, Daniel Dinato.

AGRADECIMENTOS

Xangô havia perdido a guerra. Todos os súditos da cidade e toda a sua coorte haviam abandonado aquele homem, um dos maiores governantes de Oyó. Somente uma dúzia de ministros de estado – que mais tarde ficariam conhecidos, no Brasil, como “os doze obás de Xangô” – e Oyá, a mais jovem de suas muitas mulheres, apoiavam agora o rei derrotado. Depois de ter incendiado acidentalmente o palácio real de Oyó e de fugir com Oyá, que também era chamada de Iansã, ele desapareceu num bosque sagrado. Seus inimigos disseram logo: - Obá so! Obá so! – o rei se enforcou. Ato contínuo, seus doze últimos partidários correram até o bosque para recuperar os corpos do soberano e de sua rainha, mas encontraram apenas uma árvore ayan queimada. Ela havia sido fulminada por um raio e, logo depois, uma voz ensurdecedora se ouviu: - Elemi ô guigun, ará funfun – viverá ele para sempre, o clarão do raio. Os obás de Xangô começaram a gritar então, alegremente: - Obá ko so! Obá ko so! – o rei está vivo, ele não se enforcou. Essa é a origem do trovão1.

Xangô, o orixá de Caymmi, tem pavor da morte, conforme veremos depois, na Conclusão dessa tese. O candomblé – religião que estará presente ao longo de todo esse

1 Para maiores informações sobre o orixá Xangô (Ṣàngó) – grosso modo orixá (òrìṣà) dos trovões, das pedreiras, da realeza Yorubá e consequentemente da justiça – e seus mitos cf. Pierre VERGER., Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns na de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: EDUSP, 1999 (1957) e Reginaldo PRANDI, Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. Decidi abrir essa tese especificamente com esse mito, ademais, por que muitos dos protagonistas das próximas páginas relacionaram-se diretamente com ele – pelo menos no contexto simbólico-litúrgico do terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador – reencenando-o de certa forma. Dorival Caymmi e (ambos Obá Onikoyi), (Obá Arolu) e Hector Páride Bernabó, o Carybé (Obá Onanxocun) foram obás de Xangô. Este mesmo orixá, numa das continuações possíveis do mito, prova que está vivo observando secretamente a cidade de Oyó e castigando as injustiças da vida social com seus raios. Mais tarde alguns cortesãos (necessariamente sábios, bons observadores e capazes de circular por códigos e locais diversos) herdaram essa função de vigilância comunitária, convertendo-se nos “olhos do rei” (Oju Obá). Pierre Verger, finalmente, desempenhou o papel de oju obá do terreiro que congregou todos os artistas mencionados acima.

trabalho – é, porém, uma religião “de possessão e da morte”2, de acordo com um de seus maiores estudiosos. Apesar disso, as atividades rituais que acompanham a fé nos orixás costumam ser extremamente festivas, ruidosas e coloridas. Os obás de Xangô, no mito acima, não poderiam imaginar o significado que a euforia deles assumiria em outras terras e em outros tempos. O rei deles – derrotado, provavelmente, numa guerra-civil do final da Idade Média oeste-africana – viveria, dançaria e comeria, efetivamente, através dos corpos de inúmeros fiéis cubanos, brasileiros, nigerianos, argentinos, estadunidenses, etc. É preciso morrer, afinal de contas – total ou parcialmente, física ou socialmente – para poder circular tanto, através de outros espaços, de outras ideias, de outros corpos, de outras pessoas. Este é um dos argumentos centrais dessa tese. Talvez ele (e ela) tenha(m) sido elaborado(s), sem que eu me desse conta, como uma espécie de homenagem inconsciente à memória de John Manuel Monteiro. Dedico este trabalho, então e em primeiro lugar, à John, que me incentivou quando eu ainda não tinha a mínima ideia do que queria fazer, orientou a escrita do meu projeto logo depois, continuou a me incentivar (mesmo quando eu passei a ter ideias demais), insistiu para que eu desse aula na graduação, junto com Christiano Tambascia, e foi, acima de tudo, um amigo querido que eu costumava encontrar pelos corredores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP. Agradeço a todos os outros alunos que John Monteiro orientava ou supervisionava naquele momento, logo antes de morrer – são exatamente vocês que (junto com os nossos antigos colegas) mantêm o nome, o pensamento e a pessoa dele vivos. Muito obrigado, então, a Chris, mais uma vez, Oscar Martinez, Patricia Lora, Lucas Mestrinelli, Karina Melo, Raul Contreras e Luciano Cardenes. Passamos por um momento muito triste e difícil juntos, seremos malungos para sempre. Ernenek Mejía e Mariana Petroni merecem um agradecimento especial. Obrigado pelas madrugadas incontáveis de conversa, cerveja, pimenta e, sobretudo, de encorajamento constante. Mari, quatro anos se passaram e sua risada continua me dando forças pra seguir adiante. Erne, com você eu aprendi e aprendo sempre aquilo que nunca estará em qualquer manual... que ser um antropólogo, dentro ou fora da academia, é ser um cabrón político, inquieto, anárquico, generoso e amoroso.

2 Vivaldo da Costa LIMA, A Morte e o Morrer: uma abordagem antropológica (1999) in LIMA, Lesse Orixá: nos pés do santo. Salvador: Corrupio, 2010, p 287.

Esta tese é dedicada também ao meu avô, Francolino Neto, um homem da geração de Caymmi e outro filho de Xangô. Meu avô, um advogado conhecido, era um digno representante da burguesia negra baiana de outrora. Foi em sua imensa biblioteca (ela ocupava um andar quase inteiro de sua casa, em Ilhéus) que eu descobri o mundaréu dos livros. Foi com ele que eu ouvi pela primeira vez também, com uns quatro ou cinco anos de idade, a “Saudade de Itapoã” de Dorival. Aquela criança que eu fui ainda está – dentro de nossas lembranças, vô – ali, no seu colo, encantada diante de tanta beleza. Grácia Queiroz, minha mãe, não merece apenas o agradecimento genérico – o famoso “obrigado por tudo” – que os doutorandos costumam destinar a seus pais. Ela foi, para mim (desde muito antes do início oficial da pesquisa que daria origem a este trabalho), uma assistente de campo fiel, bem-disposta e perspicaz. Basta dizer que recebi de presente praticamente todos os livros da minha bibliografia específica com dedicatórias como essas: “Para você, com todo o meu amor e admiração – Ps. Para ser lido APÓS a conclusão da dissertação de mestrado” ou “Vítor, que este livro possa ajudá-lo no doutorado. Com todo amor e carinho”. Minha mãe querida esteve presente, enfim, em todas as etapas desse trabalho e de todas as maneiras possíveis: por telefone, ao vivo, de carro, de avião, etc. Minha vó Pupu, mãe da minha mãe, disse há muito tempo que queria me ver doutor. Será um prazer dar mais uma alegria à esta senhora que, do alto de seus noventa e poucos anos de idade, vive rindo e cantando. Muito obrigado, minhas tias e meus tios queridos – Hélvia, Mércia, Clécia, Lúcia, Lília, Sônia, Eduardo Nunes e Sérgio Villarroel – pelo carinho e apoio de uma vida inteira. Agradeço também a Felipe, João, Bruno, Duducha, Arthur, André, Maurício e Larissa, meus primos-irmãos! Tio Alcir – meu guru, meu amigo, meu ídolo e meu pai emprestado – merece um agradecimento especial por todas as longas e divertidas conversas que tivemos (e que, na certa, ainda vamos ter) a respeito de todos os temas dessa tese, de Jorge Amado às tensões raciais de Salvador. Pra não falar também do estímulo, das broncas e da pergunta – “como vai a tese, Vitinho?” – que só ele poderia fazer com tanta firmeza, mas também com tanto amor. Hercília e Ricardo Kuma são outros tios que também desempenham o papel de verdadeiros pais para mim. Sem eles eu não teria nem concluído sequer a minha graduação. Desde os meus dezessete anos de idade eles me acolheram, afinal, me deram um quarto no apartamento deles e, de certa forma, terminaram de me criar. Espero que vocês entendam, tios queridos, minhas ausências tantas vezes injustificáveis e saibam que sem o apoio (muitas vezes prático e direto!) de vocês essa tese não teria existido.

Agradeço também a minha família paterna, especialmente a minha avó Clementina e meu pai Carlos D´Ávila por esses últimos anos de reconhecimentos e reencontros.

Sem o apoio, a confiança e a cumplicidade dos artistas, intelectuais e religiosos que eu pude entrevistar nos meus dois primeiros anos de pesquisa (e que abriram suas portas para me receber em suas casas, estúdios e ateliês) o meu trabalho, obviamente, não teria sido possível! Antes de mais nada, agradeço imensamente à toda a família Caymmi – especialmente à Stella Aponte Caymmi, Dori, sua mulher Helena Leal, Danilo, dona Dinahir e seu filho Durval – por terem dividido comigo tantas coisas, pensamentos e emoções íntimas, deixando- me ver, ainda, um monte de objetos, quadros, etc. que haviam pertencido à Dorival (ou seja, ao pai, avô, sogro e irmão deles). A família do pintor Carybé mereceria, além do meu agradecimento individual, um caloroso aplauso coletivo. Dona Nancy e sua filha Solange, que me receberam prontamente e que abriram para mim o ateliê do famoso Hector Páride Bernabó, divulgam incansavelmente, com muito empenho e criatividade, a obra desse artista. Junto com seus outros parentes, elas mantêm uma página sobre Carybé no Facebook, um museu interativo e duas galerias em Salvador, além de disponibilizarem a obra dele para exposições, downloads, tatuagens, etc. Sem dúvida, o exemplo delas deveria ser imitado pelos familiares de todos os artistas e de todas as pessoas públicas já falecidas! Agradeço aos funcionários da Fundação Pierre Verger que me permitiram ir até a biblioteca e até o quarto de dormir desse babalaô francês, além de consultar (numa manhã de muito trabalho) os negativos de suas inúmeras fotografias. Tive o raro privilégio de ouvir Rosa Passos cantar o -canção “Valerá a Pena”, de Dorival, a capella e só para mim, durante uma entrevista muito útil e agradável. Obrigado, Rosa. Também pude atravessar o espelho que costuma separar os cientistas humanos de seus interlocutores em três momentos inesquecíveis. Ao tomar praticamente meia garrafa de uísque com Antônio Risério, ouvindo segredos impublicáveis e declarações bombásticas; ao lacrimejar junto com Peter Fry depois de ter acompanhado o curso das lembranças desse homem de sensibilidade singular; e ao cantarolar junto com Gilberto Gil no meio de uma entrevista que terminou virando um lero muito do divertido e cheio de cumplicidade.

Agradeço ao terreiro do Opô Afonjá (especialmente ao ogã Eduardo de Oxum e à Mãe Detinha de Xangô, in memoriam) pelas poucas, mas importantíssimas, horas de sossego que eu passei por lá. O candomblé é uma religião que prima pela cortesia, pela atenção e pela amabilidade. Eu não poderia deixar de agradecer, então, à minha própria casa-de-santo, o Ilê Axé Oxumarê, a Babá Pecê e a Tinho de Oxóssi. Obrigado por todo axé e por toda compreensão! Entrevistei ainda Lydia Hortélio e Robert Slenes. Ambos são meus mestres e meus amigos queridos, são intelectuais de rara integridade que me formaram e que sempre foram, para mim, grandes modelos de tudo, de profissão e de vida. Robert (ou melhor, Bob) foi o meu primeiro orientador, mas eu sei que sempre terei coisas para aprender com ele. Além de ser o maior responsável por eu ter seguido uma carreira acadêmica, Bob me ensinou, sempre com muito entusiasmo, muitas risadas e muito cuidado, o seu método dispersivo, a paixão pelas notas de rodapé, a necessidade de se comprometer ética e politicamente com tudo o que se pesquisa e um gosto pelo conhecimento que, nas situações políticas e institucionais atuais, chega a ser subversivo. Muito obrigado, meu querido professor!

Todas as ideias dessa tese passaram, de uma forma ou de outra, pelo olhar atento e, principalmente, pelas risadas de meus amigos. Agradeço, em primeiro lugar, à extraordinária turma de pós-graduação que entrou junto comigo no programa de Antropologia Social do IFCH, em 2012. Obrigado, Catarina Trindade, Fernanda Gallo, Erne e Luciano Cardenes (mais uma vez), Patrick Thames, Berman, Ana Elisa, Vanessa Durando, Gábor Basch, Lis Furlani, Blanco, Rebecca Slenes, Daniela Feriani, David Reichhardt, Ana Piu, Adriano Godoy, Berenice Morales e a todos os demais. Formamos um grupo extremamente unido a partir de (e não “apesar de”) todas as nossas inúmeras diferenças, nacionalidades e sotaques. Reivindicamos juntos uma série de coisas, discutimos em conjunto as nossas pesquisas, e, sobretudo, espalhamos muita magyammm pelo IFCH. Ao longo desses anos fiz outros amigos queridos nesta mesma instituição. Jesus Ranieri, Josué Pereira da Silva, Laymert Garcia dos Santos e Fernando Lourenço – todos eles professores do Departamento de Sociologia, onde eu trabalhava em 2012 – me incentivaram a escrever um projeto e a me inscrever na seleção de pós-graduação da Antropologia,

discutiram comigo uma série de ideias e, inclusive, me deram importantíssimos contatos de pesquisa. Agradeço aos funcionários do IFCH que me deram todo o apoio desse mundo. Não tenho como fazer jus à generosidade de Viviane Biondi, ao companheirismo de Fábio Guzzo, ao carinho dos bibliotecários, e à dedicação dos secretários do instituto, de um modo geral. Amnéris Maroni, obrigado por ter me tirado diversas vezes do caos e do tédio! Susana Durão, Carlos Vieira, Patrícia Gimeno, Taniele Rui, Leonardo Ruffing, Christiano Tambascia (mais uma vez!) e Daniela Ferreira, sem a cumplicidade de vocês teria sido impossível fazer qualquer coisa. Obrigado pela amizade sincera e prazerosa. Carolina Cavazza é a minha grande companheira de conversa, de copo, de viagem, de tudo. A minha amiga fiel. Essa tese é sua também, Carol! É uma honra dividir contigo os nossos familiares, as nossas inquietações, os nossos credos políticos e, acima de tudo, nossas paixões em comum. Muito obrigado, Bárbara Castro, Nathalia Oliveira, Mariana Marques, Talita Castro, Michele Lima, Gláucia Destro – que esteve comigo durante o último mês de revisão dessa tese – e Vanessa Ortiz. Eu tenho o orgulho e o privilégio de contar com a inteligência e o companheirismo de todas essas amigas geniais. Vocês são a família que eu escolhi para mim. Para que eu escrevesse bem este trabalho, em perfeito estado de saúde física, mental e espiritual, os orixás trouxeram João Fred de Oliveira, meu amigo de adolescência, até Campinas e ainda me fizeram conviver com Chico Dias de Andrade. As páginas dessa tese devem muitos às nossas conversas intermináveis e livres, sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis, de Zen budismo à Sonny Rolllins. Obrigado, meus queridos amigos! Agradeço também a Érica Rios e seu bom-humor contagiante, valeu Kika! Agradeço de todo coração à Rafael Serra, o nosso grande Pablito, Kelly Baldini, Inácio Dias de Andrade, André Oliveira, Lucas Spinelli, Luís Otávio, e Ricardo Normanha, o Flóqui, todos membros dessa família que eu encontrei aqui em Campinas. Sem Diogo Cardoso, Natália Schimidt, Pedro Galdino e Yasmine Ramos, meus antigos alunos que viraram ótimos amigos, esse doutorado não teria saído. Agradeço especialmente ao camarada Diogo, por tantas noites de cerveja e de antropologia, pela vizinhança, pelos passeios, pela amizade incrível e por ajudar tanto na escrita dessa tese. Esse trabalho também é seu, moço bonito! Muito obrigado, Luísa Nova, Marquitos Valls, Denise Monzani e, em nome de todos os outros orientandos de Helô Pontes, você, meu querido Rafael do Nascimento César, pela alegria, pela torcida constante e pela admiração mútua que sempre tivemos.

Esta tese é dedicada a um amigo em especial, Daniel Dinato. Ele, que apareceu em minha vida e em pouco tempo se tornou um dos meus grandes parceiros, foi responsável em grande medida pela finalização dessa tese. Durante todo o período de escrita do trabalho, Dani me incentivou, criou um horário e uma rotina junto comigo e, ainda, me fez encontrar tempo para beber muita cerveja, muito rum e muito vinho. Dividimos, e continuamos a dividir, nossas alegrias e nossas tristezas com um respeito, um carinho e um companheirismo que são únicos. É, eu ganhei um irmão nisso tudo. Dani, seguimos juntos amigão, conviver contigo é uma das grandes felicidades que a vida me deu.

Agradeço, com muito carinho e reconhecimento, à minha orientadora, Heloísa Pontes, e ao meu co-orientador, Luiz Gustavo Freitas Rossi. Contar com a precisão, com o rigor, com a minúcia e com a empolgação de vocês dois, em todos os momentos, foi (e, pra falar a verdade, continuará sendo por muito tempo ainda) um dos maiores aprendizados da minha vida. Esta tese é de vocês que leram e discutiram, passo a passo, nota a nota, imagem a imagem, tudo o que está escrito nela. Muito obrigado! Gostaria de agradecer à Marilda Santanna e Carlos Leal por terem me convidado a publicar um texto que, depois de alguns ajustes, viria a ser um dos capítulos deste trabalho. Agradeço aos professores Omar Ribeiro Thomaz e Christiano Key Tambascia (só dá ele!) que estiveram na minha banca de qualificação e aos professores Robert Wayne Slenes, meu querido Bob, Rose Satiko, André Domingues, e (última vez) Christiano Tambascia por terem aceitado o meu convite para participarem da banca de defesa. Muito obrigado, meu caro Omar – você que leu tudo o que eu fiz, desde a minha graduação até hoje! –, Rodrigo Ramassote e minha amiga Taniele Rui por terem aceitado o convite para serem os meus suplentes. Agradeço imensamente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a FAPESP, que custeou o presente trabalho.

MARICOTINHA

Se fizer bom tempo amanhã Se fizer bom tempo amanhã eu vou!

Mas se, por exemplo, chover Mas se, por exemplo, chover... não vou.

Diga a Maricotinha Que eu mandei dizer que eu não tô.

Não tô, não vou Não vou, não tô.

Se fizer bom tempo amanhã Se fizer bom tempo amanhã eu vou!

Mas se, por exemplo, chover Mas se, por exemplo, chover... não vou.

Uma chuvinha fininha redinha, Cotinha... aí piorou!

Nem tô, nem vou Nem vou, nem tô.

Dorival Caymmi3

3 Maricotinha é uma das últimas composições de Caymmi. Foi lançada por ele e por Tom Jobim em 1994, no CD Antônio Brasileiro. Cf. Antônio Carlos de Almeida JOBIM (Tom Jobim), Antônio Brasileiro. Columbia, 1994, faixa 9.

RESUMO

Dorival Caymmi, cantor e baiano, conseguiu obter e manter um sucesso notável ao longo de uma carreira de setenta anos. Esta tese, escrita na interseção entre a Antropologia Social, a Etnomusicologia e a História Social, procura refletir sobre este êxito à luz da negociação de identidades locais/nacionais e das transformações que teriam ocorrido no âmbito das experiências raciais no Brasil do século XX. O trabalho conta com três capítulos dedicados, respectivamente, à trajetória biográfica de Caymmi, a uma discussão sobre o gênero autoral das canções praieiras e à análise de sua obra musical. O foco da análise é progressivamente ampliado durante a tese partindo, basicamente, do cotidiano deste artista e chegando, nas suas últimas páginas, à considerações de caráter mais geral.

Palavras Chave: Dorival Caymmi; Música Popular Brasileira; Candomblé; Identidade; Relações Raciais.

ABSTRACT

Dorival Caymmi, a composer and singer from Bahia, had an enormous and continuous success during a seventy years career. This doctoral thesis had been written on a disciplinary intersection between Social Anthropology, Ethnomusicology and Social History. It is, basically, a reflection about this successful case in the light of local/national identity negotiations and, also, of some seminal changes concerning Brazilian racial experiences in the twentieth century. The work has three chapters about Caymmi´s biography; the musical genre that he has created, the so called canções praieiras; and his compositional skills.

Keywords: Dorival Caymmi; Brazilian Popular Music; Afro-Brazilian Cults; Identity; Racial Relations.

SUMÁRIO

Introdução – Ói eu! 16

1. Doutorado, congado e reisado 17 2. A matéria prima dos sonhos 23 3. Cabelos brancos, aquela coisa toda 25 4. Olha o vento 28 Intermezzo Um intelectual baiano 31 5. Auô, uma história sem feitiçaria 35 Intermezzo O que não pode ser dito de nenhuma outra maneira 39 6. A pedra que ronca no meio do mar 40

Capítulo 1 – Não jogue os búzios, mãe Menininha! 46

1. Aquela terra de mistérios e igrejas 48 Intermezzo Uma canção que se pareça com a minha Stella 51 2. Salvador, 09 de março de 1968 53 3. A Pedra da Sereia 55 4. Pardo, paisano e pobre 59 Intermezzo Os Pândegos da África 65 5. Uma cadeira na Academia 68 6. Itapuã 73 7. Me dá medo que ele tenha uma coisa 77 8. A atmosfera morna das estrelas 81 9. Com uma graça muito natural 88 Coda Dorival Caymmi – vinte anos depois, a volta do filho pródigo ou a dramática confluência do eterno reencontro: emoção e suspense! 93

Caderno de Imagens 97

Caymmi em atividade 99 A volta para Salvador 104 Itapuã 107 Retratos da velhice 109

Capítulo 2 – Canções praieiras 111

1. Itapoã, 27 de junho de 1954 112 Intermezzo Canções praieiras 120 2. A trama do bordado 122 3. O sargaço da maré 127 4. Influências 131 5. Filho da casa real da inspiração 138 6. O ponto mais alto da criação brasileira 141

Capítulo 3 – Se quiser falar de mim... 146

1. Vagabundagem 147 2. Maurino, Dadá e Zeca 150 3. A carta roubada 160 Intermezzo Os patriarcas da baianidade 172 4. Fartura 174 5. Se quiser falar de mim... 178 6. Buda nagô 182 7. Sargaço-mar 187 8. Querer morrer para viver com Yemanjá 190 Coda O gênio da raça 193 9. Promessa de pescador 194

Conclusão – A pedra que ronca no meio do mar 200

1. , 17 de agosto de 2008 201 2. O Corpo do Patriarca 204 3. Intimidade 207 4. Auô 211 Coda Os otás de Xangô 215

Bibliografia 219

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Introdução

Ói eu!4

O texto a seguir corresponde à introdução desta tese. Ele teve o seu título curto e expressivo retirado de uma das canções praieiras do cantor e compositor Dorival Caymmi, Morena do Mar. Começo-o com uma descrição etnográfica da visita que eu fiz ao local da morte de Caymmi, o último apartamento em que ele viveu no Rio de Janeiro. Em seguida são apresentados os primeiros materiais de pesquisa que tive acesso – excetuando-se a discografia e a bibliografia específica, é claro – as entrevistas que fiz com alguns artistas, intelectuais e parentes daquele músico5. Essas primeiras atividades de campo não foram narradas apenas para reiterar um topos clássico da literatura antropológica: as aventuras do etnógrafo bem-intencionado que consegue acessar seu objeto de estudo depois de uma série de dificuldades. Tentei utilizá-las, ao longo das próximas páginas, para problematizar e complexificar o sujeito central da pesquisa, Dorival Caymmi, ora subdividindo ora multiplicando-o em entidades analíticas diversas. Este jogo de entidades, de recortes e de espelhos também acabou produzindo, aliás, um efeito constante na escrita desta tese como um todo. Eu tentei marcar, permanentemente, que os seus objetos principais e os materiais de pesquisa que foram utilizados (músicas, quadros, fotografias, romances, etc.) são, antes de tudo, criações estéticas – guardando, por

4 cf. a primeira estrofe de Morena do Mar, canção lançada num LP de 1965 por Nara Leão. Informação obtida em Jairo SEVERIANO, Rodrigo FAOUR, Sílvio Júlio RIBEIRO e Stella CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi in S. CAYMMI, Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 591. Ela pode ser ouvida, na sua única interpretação caymmiana, em D. CAYMMI, Caymmi (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1972, lado A, faixa 2. 5 As entrevistas realizadas para esta pesquisa foram as seguintes, em ordem cronológica: 1. Lydia Hortélio, Salvador, 01/01/2012; 2. Gilberto Gil, Rio de Janeiro, 11/04/2012; 3. Dorival Tostes Caymmi (Dori), idem, 03/05/2012; 4. Danilo Tostes Caymmi, São Paulo, 23/05/2012; 5. Dinahir Caymmi, Rio de Janeiro, 16/06/2012; 6. Stella Aponte Caymmi, idem, 17/06/2012; 7. Rosa Passos, Brasília, 14/09/2012; 8. Mãe Detinha de Xangô, Salvador, 27/10/2012; 9. Solange Carybé, idem, 14/01/2013; 10. Prof. Dr. Peter Fry, Rio de Janeiro, 01/05/2013; 11. Antônio Risério, Lauro de Freitas, 25/05/2013; 12. Nancy Carybé, Salvador, 31/05/2013 e 13. Prof. Dr. Robert W. Slenes, Campinas, 22/05/2014.

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conseguinte, um caráter extremamente polifônico, polissêmico e reflexivo6. O texto do presente trabalho – com suas licenças poéticas, seus pastiches e, vez por outra, suas meta- narrativas – é uma tentativa de ressaltar, de acompanhar (e de homenagear) portanto, esse aspecto sensível e estético das próprias fontes consultadas. Apresentadas, enfim, as personas, a mitologia e os temas transversais que foram criados a partir da figura e da trajetória de Dorival Caymmi, eu prossigo com a minha introdução fazendo uma delimitação do tema, do escopo e dos objetivos principais desta tese de doutoramento. O texto continua com uma breve reflexão sobre uma ideia indispensável em todo o trabalho de análise desenvolvido nos últimos quatro anos: o silêncio. A primeira seção deste trabalho é, finalmente, concluída por algumas considerações a respeito dos constrangimentos necessariamente implicados nas lembranças, nas narrativas hagiográficas e repetitivas da mitologia caymmiana ou nos testemunhos históricos e, finalmente, por uma descrição pormenorizada de cada um dos capítulos da tese.

1. DOUTORADO, CONGADO E REISADO

Foi depois de uma longa entrevista com , filho do meio do casal, Dorival e Stella Caymmi que eu ouvi, pela primeira vez, o seguinte:

“Pronto, agora dá pra você fazer mestrado, doutorado, congado e reisado!”

A frase era ambígua. Nela, e no sorriso sem graça que a acompanhou, havia a um só tempo um jogo humorístico de palavras, um desafio implícito, a constatação de que ele, Dori, tinha falado demais e, principalmente, ironia. Dori havia marcado a entrevista comigo às 14 horas do dia 03/05/2012 num sexto andar da Rua Ronald de Carvalho, muito perto da Praça do Lido. Eu sabia que aquele tinha sido o último apartamento da vida de seu pai, Dorival. Uma placa de bronze, que ficava logo na entrada do prédio, trazia as linhas que transcrevo abaixo:

“DORIVAL CAYMMI NASCEU EM SALVADOR BA EM 30/04/1914. Neste prédio – junto

ao mar que tanto exaltou – viveu seus últimos dias onde faleceu em 16 de agosto de 2008.

6 Para uma reflexão a respeito deste caráter sensível e reflexivo do fazer musical (e artístico--visual) cf. Rose Satiko Gitirana HIKIJI, Música Para Matar o Tempo: intervalo, suspensão e imersão in Revista Mana, vol. 12, n.1, 2006 e A Música e o Risco: etnografia da performance de crianças e jovens participantes de um projeto social de ensino musical. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2006.

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Cantor e compositor de notável talento, o conjunto de sua obra engrandece a música brasileira.

EDIFÍCIO ADRIANO DE BARROS”

Essa homenagem ao ex-morador ilustre conseguiu aumentar a minha expectativa e a minha apreensão, que já eram grandes. Uma parcela importante do meu tema de pesquisa estaria, certamente, materializada ali. No texto do projeto de doutorado – que havia sido aprovado pelo Departamento de Antropologia Social do IFCH-UNICAMP, no processo seletivo do final de 2011 – eu procurava, afinal, uma justificativa e uma metodologia suficientemente boas para poder estudar as obras realizadas durante os últimos quarenta anos de atividade artística daquele “notável talento” e, especialmente, as imagens e discussões associadas a ele. O pai de Dori, tendo vivido “seus últimos dias” naquele prédio e enquanto um indivíduo envelhecido que pouco saía de casa, devia ter visto da sua janela os bares, a feira semanal e o mesmo pedaço da praia de Copacabana que eu também podia ver no início daquela tarde. No seu apartamento, além da própria disposição dos cômodos, talvez ainda restassem, inclusive, alguns de seus pertences pessoais e instrumentos de trabalho, como o seu violão. Por outro lado, uma parte do eixo principal do meu projeto – as homenagens e o conjunto de temáticas que estavam relacionados indissociavelmente com a pessoa, a figura pública, de Dorival Caymmi – também estava ali, e de modo ainda mais concreto, ao alcance da minha mão. Naquela placa de bronze da entrada, afinal, cabiam em poucos centímetros o mar de suas Canções Praieiras, a Bahia de sua juventude e o Rio de Janeiro, onde o artista passou a maior parte da sua vida. Havia uma menção ao seu talento incomum, que teria sido capaz de influenciar a “música brasileira”, tornando-a melhor de um modo geral. E, finalmente, o bronze identificava Dorival exclusivamente com a sua carreira de “cantor e compositor” profissional “esquecendo”, como a maioria do público e da crítica havia feito desde os anos de 1930, a sua atividade amadora de pintor e desenhista. Eu estava intimidado. Conseguir prestar atenção a toda aquela série de elementos, objetos e discursos intercruzados e sedimentados, não seria fácil. Descobrir significados ocultos, ligações e intencionalidade em tudo, adotando uma espécie de método crítico-

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paranoico à la Salvador Dali7, também não seria uma boa ideia. Embora soubesse que isso era ainda melhor do que ficar distraído. A preocupação exclusiva com os aspectos técnico- metodológicos da entrevista de Dori até poderia ter sido interessante. Porém, desse jeito, eu deixaria passar uma oportunidade que talvez fosse única. Estar num local, enfim, bastante significativo para a vida pessoal de Caymmi, num cenário em certa medida importante para a construção coletiva de suas mitologias, máscaras e personas8 e deixar de percebê-los etnograficamente, de pensar a respeito das interações simbólicas que tornaram, um dia, esses espaços visíveis, parecia um contrassenso. Toquei o interfone pontualmente e fui recebido por Dori com impaciência. Ele foi logo dizendo que estava com dor no pé e tinha que botar gelo no machucado, que precisava almoçar e terminar alguns arranjos e que uma repórter iria aparecer em algum momento para fazer uma matéria. Helena Leal, sua esposa e produtora, estava por perto, mas não falou mais do que “boa tarde” inicialmente. Ela parecia querer observar-me discretamente e às vezes ia até a cozinha onde o almoço estava sendo preparado por alguém que não cheguei a ver. Nas paredes da sala estavam mais ou menos uns quinze quadros de períodos distintos da trajetória de Dorival enquanto pintor amador. A princípio tive que me controlar para não ficar encarando essas telas, mas percebi que os mais antigos estavam datados dos anos de 1940. Bem na minha frente, atrás de Dori, estava aquela pintura de uma sereia mergulhada n´água e nos oxés9 de Xangô que servira de base para a capa do LP de “Caymmi”197210:

7 Salvador DALI, Sim ou A Paranóia: método crítico paranoico e outros textos. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. 8 Marcel MAUSS, Uma Categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa, a de “eu” (1938) in MAUSS, Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003 (1950). 9 José BENISTE, Dicionário Yorubá – Português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. Oxé (òṣe) do iorubá (èdè Yorùbá) é o termo usado para designar um machado duplo, às vezes antropomorfo, como é o caso da tela de Caymmi, associado ao culto do orixá Xangô. 10 D. CAYMMI, Caymmi. 1972. Imagem retirada do Acervo Dorival Caymmi / Instituto Antônio Carlos Jobim (de agora por diante ADC) in www.dorivalcaymmi. com.br. Último acesso em 20/05/2015.

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Em outros cantos estavam dois autorretratos, um de caráter mais realista em diversos tons de marrom em que um jovem Dorival parecia bastante severo e outro com alguns elementos abstratos. Nesse último, os traços do rosto de Caymmi eram mais esquemáticos. Havia uma tela incompleta perto de uma cadeira de balanço, da coleção de bengalas que a sua neta Stella havia fotografado para a sua biografia11 e da janela que dava para o mar. A foto deve ter sido tirada em outra casa. Se levarmos em conta a primeira fala de Dori, seus pais moraram naquele prédio entre dezembro de 2007 e agosto de 2008, “no ano que eles morreram”. As bengalas arrumadas num cesto de vime e todos os outros objetos do “universo pessoal”12 caymmiano que apareciam fotografados no livro haviam sido dispostos de maneira muito semelhante, contudo. O apartamento todo, aliás, dava uma impressão incômoda. Muito mais do que a materialização de uma experiência já passada, que eu esperava encontrar quando estava lá em baixo, parecia que Dorival estava vivo e que poderia aparecer a qualquer momento. As coisas não deviam ter mudado de lugar naquele apartamento desde a morte de Dorival. Essa possível dificuldade de lidar com o desaparecimento da pessoa e de algumas das personas de Caymmi talvez explicasse alguns detalhes inusitados daquele espaço. Num de seus cômodos havia um prato de barro em cima de um armário cheio de comida já seca. Era

11 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, p. 554. 12 Id., ibid.

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uma oferenda pessoal13 de um seguidor do candomblé que havia sido feita quando Caymmi ainda era vivo e que ainda não tinha sido retirada (essa informação foi confirmada na entrevista com Danilo). Fazê-lo não é algo simples14 para quem acredita nos orixás. Não é à toa que Danilo conta com muita hesitação a seguinte história na sua entrevista:

“Vou te explicar o que aconteceu. Nós não sabíamos, e dentro daquele apartamento você viu um altar de Xangô, os assentamentos dele estavam lá. Mamãe antes de morrer mandou o Guto, que é meu produtor aqui. Levou os assentamentos dela de volta pro candomblé do Gantois. O candomblé de Mãe Menininha, porque mamãe era filha de lá desse candomblé. E papai era do outro, do Axé Opô Afonjá, onde toda minha família vem, desde o meu avô. Frequentavam o meu avô Durval, meu pai. Eu também sou, tenho assentamentos no... o meu assentamento tá no Axé. Mas eu não sabia o que aconteceu. Esses assentamentos tavam lá, ele faleceu, eu desconhecia, eu tinha e via umas coisas só no alto. Aí uma sobrinha minha tirou aquilo e aconteceu uma coisa incrível, que chamou a atenção. O Dori tava sentado com o apartamento fechado. Foi no apartamento, tava tudo com a janela fechada, pulou um vaso e ZUM no chão PÁ! Eu falei "Bom, nisso aí tem coisa." Caiu do nada e a gente foi ver, pedir a uma outra, uma mãe de santo no Rio de Janeiro que entende mais de candomblé, ela falou "Pô, os assentamentos dele tão aqui. Eu não vou... como é que vai fazer?"”15

A própria utilização da casa, que também se reflete na história, aliás, era curiosa. O apartamento fica fechado a maior parte do tempo, embora seja aparentemente limpo com regularidade, e quando Dori, que vive em , vem ao Rio de Janeiro ele ocupa o espaço por uns dias. Esse era o caso na nossa entrevista. Ao longo da entrevista, no entanto, a impaciência inicial e essa configuração de relações entre sujeitos e objetos foram mudando uma a uma. Logo no início do seu depoimento, o filho de Dorival me aproximou espontaneamente de um dos quadros, dizendo: “E você olha pra cara dela na fotografia, vê se dá pra convencer ela de alguma coisa... não!”. Ele apontava para a “fotografia”. Tratava-se, na verdade, de um retrato a óleo de sua mãe e

13 cf. Roger BASTIDE, O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (1957), passim para uma descrição minuciosa da relação entre o culto público, o culto interno dos terreiros e o culto doméstico aos orixás entre os seguidores dos candomblés de nação Ketu, ou nagôs. 14 cf. Juana ELBEIN DOS SANTOS, O Nàgô e a Morte: pàde, àsèsè e o culto ègun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1976 (1972), passim. 15 As falas reproduzidas aqui foram, em sua maioria, modificadas em relação às transcrições ipsis verbis que foram feitas. Alterei a pontuação em alguns casos. Excluí repetições, reticências e cacoetes que não influem no sentido dos depoimentos em outros. Porém, quando essas marcas de oralidade acrescentam nuances importantes ou servem para enfatizar alguma coisa, decidi mantê-las. Agradeço a Adam Junqueira pela ajuda nas transcrições.

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esposa de Dorival, que também se chamava Stella. Houve uma pausa para o almoço, para o qual fui convidado – e senti que precisava aceitar a gentileza, mesmo já tendo comido. Helena Leal acabou sentando-se à mesa e participou bastante da segunda parte da entrevista, depois do almoço. Os compromissos de Dori foram adiados até as cinco ou seis horas da tarde quando ele finalmente disse, referindo-se à repórter: “Mas é isso, eu vou tomar um banho que daqui a pouco vem uma mulher aí que tenho que cantar não sei o que...” e eu desliguei o gravador, encerrando o seu depoimento. Terminada a gravação Dori quis me mostrar a casa junto com Helena, cômodo por cômodo. Foi aí que vi o “altar de Xangô” de Danilo e a cama em que seu Dorival havia morrido. Dori deu um tapinha num dos travesseiros, aquele que ficava mais à direita, e disse “papai morreu aqui”. A sensação incômoda da presença de Caymmi era cada vez maior para mim, exatamente por estar vendo ali uma imagem acabada e contraditória de sua ausência. Talvez o sentimento fosse compartilhado pelo casal, embora Dori já houvesse falado que não ficava muito impressionado com essas coisas e que conviveria bem, de certa forma, com o pai morto, ainda que ele fosse um fantasma. O filho de Dorival já havia comentado que ele era mais silencioso dentro de casa. Meu interlocutor chegou a dizer, inclusive, que ele foi até certo ponto um pai ausente. Nesse trecho da sua entrevista Dori emocionado, no entanto, trocava de opinião:

“E eu não tenho nem constrangimento, eu durmo no quarto, durmo na cama que ele morreu. Eu não... pra mim isso não... eu não acredito em fantasma não. E se ele fosse fantasma, seria um fantasma ótimo, eu bateria altos papos com ele. A noite inteira ficaria acordado, só conversando. Mas ele era um ótimo papo e as pessoas adoravam isso nele.”

Talvez o fato de que sua entrevista tivesse durado uma tarde inteira no total e contava nesse momento com umas duas horas gravadas, contrariando a sua própria expectativa inicial, fosse responsável pela frase do “congado e reisado” que seria repetida por Danilo vinte dias depois, também em off e no final do nosso encontro. Talvez a exibição tão explícita de suas emoções o deixasse constrangido na frente de um estranho. De qualquer forma havia uma boa dose de ironia ali, disfarçando todas essas coisas ou lançando um desafio para mim de alguma maneira. A impressão que eu tive ao sair daquele apartamento e abrir a porta do elevador era muito parecida com o que sentia na minha experiência de campo do mestrado.

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Os jongueiros do interior do Estado de São Paulo por mim estudados anteriormente16 não eram artistas muito famosos fora de suas localidades, mas também começavam seus depoimentos desconfiados. Os mestres e curandeiros também falavam muito, no final das contas, utilizando as palavras com uma maestria impressionante, aliás, e me dando mais informações do que eu poderia utilizar. Por fim, eles também olhavam para mim na hora em que eu ia embora de um jeito muito estranho e irônico. Seus olhos pareciam dizer “sim, mas o que é que você é capaz de fazer com todas essas coisas?”

2. A MATÉRIA PRIMA DOS SONHOS

Stella, filha de e do médico venezuelano Gilberto Paoli, é neta e biógrafa17 de Dorival, tendo escrito ainda dois trabalhos acadêmicos sobre o tema18. Ela escreveu num dos capítulos finais do seu primeiro livro sobre o avô, na época ainda vivo, que ele “gosta de se aproximar da janela a qualquer hora do dia – critica muito quem encosta móvel interditando o livre acesso a ela.”19 A curiosa observação seria confirmada por alguns vizinhos do artista que encontrei por acaso enquanto fazia viagens de pesquisa no Rio de Janeiro e em Salvador. Jorge – antigo morador da Sá Ferreira, outra rua de Copacabana, entre 1982 e 1984 – por exemplo, lembrava-se de ver Dorival diariamente na janela com as cortinas abertas. Embora possa haver um equívoco com relação ao endereço do compositor, uma vez que, de acordo com o relato fornecido por Dori Caymmi no início da entrevista, nesse período seus pais viviam na paralela “Souza Lima, onde viveram a maior parte do tempo”, não há motivos para duvidar dessa informação en passant. Eduardo, adolescente na Itapoã, Salvador, dos anos de 1970, por sua vez, cruzava sempre pela frente da janela ou da varanda da casa do artista e sempre o encontrava por ali. Dessa vez, porém, o pouco tempo que o compositor teria passado no bairro, antes de se mudar para o Rio Vermelho e depois voltar definitivamente ao Rio faz que com essa última informação pareça um pouco mais próxima da imaginação a posteriori do antigo vizinho.

16 Vítor QUEIROZ. “Olha só, ô meu Tambú, como Chora o Candongueiro”: as estrelas e os toques da tradição no jongo de Campinas e Guaratinguetá. Campinas: dissertação de mestrado, IFCH/UNICAMP, 2011. 17 cf. S. CAYMMI, 2001, p. 563. 18 S. CAYMMI, Caymmi e a : o portador inesperado (1938-1958). Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2008 e O Que é Que a Baiana Tem?, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 19 cf. S. CAYMMI, 2001, p. 553.

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A janela, o violão de Caymmi – duas vezes roubado e restituído de acordo com as suas duas biografias20 – e a placa de bronze do Edifício Adriano de Barros são, evidentemente, elementos muito mais tangíveis do que o processo de envelhecimento ou as outras características que desempenharam o papel de verdadeiros temas transversais nas entrevistas que realizei. Esses temas, que passo a chamar assim a partir de agora, aparecem, afinal, em todas elas e são aparentemente muito significativos. Ainda que essas janelas, bronzes, objetos que pulam sozinhos e instrumentos tratem-se de objetos concretos, de coisas que têm uma circulação um pouco mais restrita, eles também tiveram (e ainda têm) uma enorme importância para a construção da pessoa do compositor. Esses itens, afinal, também foram/são capazes de condensar materialmente, enquanto elementos icônicos21, determinadas relações e percepções coletivas sobre o indivíduo e/ou a pessoa de Dorival. É possível que a própria tangibilidade desses objetos, aliás, converta-os em elementos semânticos sui generis, singularmente capazes de agregar significados às experiências pessoais do e em relação com o artista. A velhice de Dorival Caymmi – que eu também utilizei para pensá-lo naquela tarde da entrevista com Dori – parecia, por outro lado, ter um outro peso e uma concretude diferente. Ela moldava claramente a realidade (e era, por sua vez, obviamente moldada pela mesma), mas grande parte de sua eficácia peculiar residia em seu caráter parcialmente intangível. Ela era feita, em outras palavras, da “matéria prima dos sonhos”, de acordo com o bordão de Freud na sua “Interpretação”22. A velhice de Caymmi não pertencia, porém, exclusivamente à minha imaginação e nem podia ser resumida a uma série de circunstâncias e processos biológicos. Na verdade, o seu envelhecimento tratava-se de uma imagem icônica e plurissignificativa que é, até hoje, associada muitas vezes à figura do artista. As marcas físicas de sua longevidade formam, enfim, um dos estereótipos que se repetiriam de uma maneira ou de outra em todas as entrevistas que eu fiz: os meus temas transversais. Esses lugares-comuns a respeito do meu sujeito de pesquisa – que serão explorados melhor nas próximas sessões do presente texto – aparecem, na verdade, em todas as fontes documentais disponíveis sobre Dorival. Eles podem ser considerados verdadeiros precipitados discursivos, que sintetizam e sobrepõem, através de metonímias e de outras imagens verbais, um conjunto de ideias, de projeções e de narrativas relacionadas ao

20 Marília BARBOSA e Vera de ALENCAR, Caymmi: som, imagem e magia. Rio de Janeiro/Salvador: Fundação Emílio Odebrecht/Sargaço Produções Artísticas, 1985.e S. CAYMMI, 2001. 21 cf. Michael HERZFELD, Intimidade Cultural: poética social no Estado-Nação. Lisboa: Editorial 70, 2008 (2004), passim para uma definição do conceito de iconicidade utilizado aqui. 22 cf. Sigmund FREUD, A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001 (1900), passim.

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compositor. Foi por meio destes signos repetitivos, finalmente, que eu pude entrever aos poucos uma espécie de mitologia caymmiana. A trajetória e a história pessoal do indivíduo Caymmi – um jovem baiano simpático nascido em 30/04/1914 de “Côr parda, Cabelo crespo, Olhos cast. escuros, Altura 1m.66, Nariz grande, Rosto oval [e] Boca regular”, “cart. de Ident. nº 118022”, que deixou a sua terra natal em 01/04/1938 e logo fez sucesso no Rio de Janeiro, tornando-se um músico internacionalmente famoso nas décadas seguintes, casou-se em 30/04/1940, teve muitos amigos e 3 filhos, envelheceu, conseguiu ampliar cada vez mais o seu prestígio no panteão da música popular brasileira e morreu em 16/10/200823 – é imediatamente refratada em múltiplas perspectivas através desses núcleos semântico-temáticos. Os dados documentais, os fatos recém listados e a materialidade dos objetos mencionados nos parágrafos anteriores parecem tornar-se, aliás, paradoxalmente menos reais do que as inter-relações muitas vezes intangíveis entre as personas criadas pelo músico e a partir dele, os personagens de suas criações e os estereótipos não-exclusivistas – eles poderiam ser aplicados, afinal, à outros sujeitos, lugares e coisas – que foram utilizados para descrever a interface pública da pessoa de Dorival. A mitologia caymmiana tem o poder de nos aproximar, levando-se em conta as suas inúmeras mediações, exageros e espelhamentos, da biografia do “gênio da raça”24 e de sua obra. Por outro lado, esses mesmos conteúdos impossibilitam qualquer leitura essencialista, unitária e ingenuamente coerente do meu sujeito de pesquisa25. Caymmi pode ser subdividido, afinal, em uma série objetos de análise diferentes que dialogam entre si e que tem como pano de fundo certos temas muito mais amplos tais como as relações raciais no Brasil. Nos próximos itens dessa introdução reproduzo grosso modo o percurso que me levou dos temas transversais particulares encontrados nas entrevistas à essas macropreocupações.

3. CABELOS BRANCOS, AQUELA COISA TODA

23 Esses dados foram retirados das duas biografias de Caymmi – cf. BARBOSA e ALENCAR, Caymmi, 1985 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001 – e de alguns documentos pessoais reproduzidos no ADC. Foram consultados o “Certificado de Reservista de 2ª Categoria” emitido pelo Ministério da Guerra em 12/02/1936 de onde extraí a primeira citação; a “Certidão de Casamento de Dorival Caymmi e Adelaide Tostes” de 30/04/1940 e a “Carteira Profissional” do músico emitida pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 28/06/1944. O número do documento de identidade de Caymmi foi retirado desta última fonte. 24 cf. , Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem, 1996, disco 1, faixa 8. Caetano atribui essa expressão, na verdade, a João Gilberto. A frase da qual retirei a citação é a seguinte: “O João Gilberto fala sempre que o Caymmi é que é o gênio raça, né?” 25 cf. Pierre BOURDIEU, A Ilusão Biográfica (1986) in Marieta de Morais FERREIRA e Janaína AMADO, Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro; Editora da FGV, 1998, pp. 183-191, um texto clássico sobre este assunto.

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Dori fez um show na UNICAMP no dia 29 de março de 2012. Naquela ocasião, um dia e um mês antes do aniversário de seu pai – Caymmi faria 98 anos se estivesse vivo – ele cantou e tocou o repertório de seu último disco, inteiramente dedicado às composições mais recentes dele e do letrista Paulo César Pinheiro, seu parceiro desde 196926. A capa do álbum traz uma fotografia do artista com uns quatro ou cinco anos de idade abraçado com o icônico violão de Dorival. Durante o espetáculo Dori – depois de cantar emocionado a música “Velho do Mar”, que no disco tem seu título complementado por um “meu pai”27 entre parênteses – empregou várias vezes a expressões velho e meu velho para referir-se a ele, numa fala dirigida à plateia. A velhice e a progressiva falência do corpo físico de Dorival Caymmi foi um dos temas recorrentes na fala da maioria dos meus entrevistados. Esse é um dos pontos fulcrais na construção da imagem, da pessoa de Caymmi, ao longo de seus quarenta últimos anos de carreira junto com a raça, a genialidade, a sexualidade, a autenticidade, a religiosidade, a preguiça e a sabedoria. Esses temas são muitas vezes sobrepostos e podem se aglutinar de muitas maneiras a depender de quando, onde, por que e quem fala. A maioria deles é empregada, inclusive, em situações que envolvem uma boa carga de dubiedade. Essa ambivalência é tão intrínseca e tão definidora que, acredito, pode ser tratada como um elemento estrutural. Os temas transversais desempenham o papel de significantes tão carregados de sentido que podem atrair um número incomum de significados. Através da comparação entre o conjunto de entrevistas realizadas, a bibliografia específica e as fontes primárias do ADC esta tese dedicou-se, em grande medida, a fazer duas perguntas muito simples de formular e difíceis de responder. Por que estes e não outros temas transversais aparecem associados especificamente à Caymmi e como esses temas puderam virar lugares-comuns ou verdadeiros estereótipos permeando, sem combinação prévia, a fala, a escrita ou o olhar de tanta gente diferente durante pelo menos quarenta anos? A polivalência de uma dessas imagens prototípicas – a da velhice como signo autossuficiente e, simultaneamente, como pretexto para expressar outros assuntos – marcou por exemplo, o início da entrevista de Gilberto Gil. Nela a velhice de Caymmi é ao mesmo tempo um elemento descritivo e, nas suas palavras mesmo, um tobogã que o músico usa para cair em outras águas. É um pretexto para expressar o seu pertencimento a uma espécie de

26 Dorival Tostes CAYMMI (Dori Caymmi), Poesia Musicada (CD). Rio de Janeiro: Acari, 2011. 27 Id., faixa 7.

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linhagem de discípulos, descrever uma cerimônia que demonstra o respeito que “amigos, colegas” dedicavam ao idoso artista e, principalmente, demonstrar o afeto que ele sentia por Dorival:

“É, claro, embora eu tenha lembranças também, eu me lembro qual foi a última vez que eu estive com ele, foi quando ele fez 90 anos. Ele morreu aos 94, né? Quando ele fez 90 todos os discípulos, amigos, colegas deles foram cumprimentá-lo numa reunião que se fez pra comemorar o aniversário dele, aqui no, no Palácio, antigo Palácio do Rio de Janeiro. E eu me lembro dele já na cadeira, já sem nem poder propriamente levantar e circular pela festa. Ficou ali recebendo as pessoas e eu fui falar com ele, ele levantou os olhinhos assim e “uh, Gil!”. E eu dei um beijo nele, e lhe afaguei o cabelo, o algodão. Como costumam falar, o algodão. Ele tinha até esse apelido, né, o Algodão, por causa do cabelo, fartos cabelos brancos macios e cabelos brancos, aquela coisa toda.”

Por outro lado, nas entrevistas feitas com os parentes do compositor, a interação muito grande com esse indivíduo, Dorival Caymmi, parecia atribuir à sua velhice física uma série de lembranças intensas, com forte carga emotiva e, às vezes, incontroláveis. Dori e Danilo, por exemplo, descreveram com tristeza a morte progressiva do pai, marcada antes de seu falecimento pela progressiva surdez, cegueira e pelo tremor nas mãos e na voz que o teriam impedido de continuar tocando seu violão e cantando suas músicas. É importante assinalar, entretanto, que assim como havia um potencial de signo nas metonímias de Gil, nessa velhice muito mais referencial e biológica dos Caymmi há espaço também, ainda que seja residual, para a imagem icônica e para o sonho. Esse tema da velhice poderia conduzir o resto desse texto à uma discussão hermenêutica sobre todos os outros estereótipos caymmianos. Contudo, ao invés de seguir essas e outras pistas deixadas pelas pesquisas de campo que eu realizei, de antecipar o assunto dos capítulos seguintes e de perder de vista os objetivos dessa introdução, tentarei restringir ao máximo o foco analítico desta tese nos próximos itens. Através de um episódio crucial na trajetória artística e biográfica do “Buda Nagô”28 – que será o ponto de partida para o meu primeiro capítulo, aliás, e que está diretamente relacionado à pintura reproduzida na página 21 acima também – explicitarei o tema deste trabalho como um todo e apresentarei o conceito chave do silêncio.

28 Gilberto Passos Gil MOREIRA (Gilberto GIL) e Dinahir Tostes CAYMMI (Nana CAYMMI), Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará (LP). WEA, 1991, lado A, faixa 4.

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4. OLHA O VENTO

Sensações Movimento de um ser Que produz O seu som que produz Movimento

E olha o vento: Nele estão os sons

Leandro Morais29

Jorge Amado na contracapa do LP “Caymmi”, de 197230, utilizaria o talento de um de seus melhores amigos, a estreia recente dos filhos dele e o cargo que os dois compartilhavam no candomblé do Opô Afonjá para descrevê-lo como um músico veterano que ainda mantinha uma harmonia e uma organicidade incontestáveis em relação ao povo baiano: “Um patriarca da música popular, uma família de músicos, um obá da Bahia, mestre Dorival Caymmi sentado em meio do povo, em roda de amor”. Descontando-se os elogios comuns às notas que acompanhavam os LPs e o estilo grandiloquente que Jorge Amado costumava empregar para falar do trabalho de seus amigos ou protegidos31, o seu texto não consegue disfarçar uma opinião controversa. Ele havia sido o maior responsável pela volta de Dorival à Salvador em 1968. Em 1972, porém, o compositor já havia se mudado outra vez para o Rio de Janeiro. Esse evento de média duração – que marca uma espécie de último turning point na carreira do “cantor e intérprete do seu povo”32 – seria utilizado posteriormente para sublinhar as tensões entre Caymmi e o governo da Bahia, a imprensa local e, em medida muito menor, com outros artistas baianos, como os primeiros cantores de axé music no início dos anos de 199033. Entre o final de 1971 e o início 1972 Jorge seria um dos poucos a sustentar, e de maneira tão edulcorada, a permanência de Dorival em Salvador. O romancista aparentemente forçava a barra no texto curto da contracapa daquele LP. Ele iniciava sua nota dizendo, por exemplo: “Com o tempo ainda curto do regresso definitivo de Dorival Caymmi ao mar da

29 cf. Leandro MORAIS, Preta (CD). Brasília / Rio de Janeiro: Coletivo Palavra, 2014, faixa 12. 30 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” (contracapa) in D.CAYMMI, Caymmi, 1972. 31 cf., por exemplo, em relação ao próprio Dorival Caymmi, D. CAYMMI e Jorge AMADO, Cancioneiro da Bahia. São Paulo: Martins, c.1967 (1947); AMADO, Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1991 (1944) e AMADO, Depoimento de Jorge Amado in D. CAYMMI, Caymmi: som, imagem, 1996, disco 1, faixa 1. 32 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in D.CAYMMI, Caymmi, 1972. 33 cf. S. CAYMMI, 2001, pp. 539-51

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Bahia...” (grifo meu)34. Porém alguma coisa havia acontecido entre seu amigo e, de acordo com as entrevistas de seus familiares, as elites baianas. Em outro texto sintético encontrado ironicamente na mesma contracapa, dessa vez um autógrafo de Dorival dedicando, já distante da boa terra35, o álbum à Carybé – eu pude achá-lo, junto com quase toda a obra gravada de Caymmi, entre os discos particulares deste último, no seu ateliê – está escrito:

“Meu Carybé: apesar de tudo, consegui gravar o disco. Tá aí. Seu Caymmi. Rio 27- out.72” (grifo meu)

Esses episódios da virada da década de 1960 para a seguinte e todas as tensões envolvidas neles são os marcos iniciais do período analítico privilegiado pela minha pesquisa. A partir desses ventos, desses rumores, mal-entendidos e alusões laterais presentes nas fontes do ou sobre este momento da biografia do compositor eu poderia ter um acesso privilegiado à problemática que permeia esse trabalho como um todo. O silêncio de Caymmi e de suas canções, as lacunas e os interstícios deixados pelas fontes disponíveis não poderiam ser tratados, porém, como um epifenômeno das fontes disponíveis e muito menos como detalhes desimportantes36. Eles acabaram acompanhando cada passo desse esforço de reconstituição parcial de determinadas situações e de análise. Como o vazio do “vento que ondula as águas” e que só é visível “nas folhas do alto do coqueiral”37 não poderia ser o objeto central de uma tese de doutoramento eu decidi segui-lo e levá-lo em conta para poder atingir e controlar melhor o centro do meu interesse, o objetivo desta pesquisa. O presente trabalho tem, na verdade, dois focos de preocupação. Por um lado, ela descreve a trajetória artística e pessoal de Dorival Caymmi (enfatizando sobretudo os últimos

34 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in D.CAYMMI, Caymmi, 1972. 35 cf. Manuel BANDEIRA, Crônicas da Província do Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2006 (1937). Expressão recorrente, refere-se à cidade da Bahia, Salvador. Pode ser encontrada em diversos lugares, por exemplo, na abertura da crônica “Impressões da Bahia” (pp.33-45) – “Nunca vi cidade tão caracteristicamente brasileira como a “boa terra”. Boa terra! É isso mesmo.” (p.33) – que Manuel Bandeira publicou originalmente em O Jornal, por acaso no mesmo dia em que Dorival completava 13 anos de idade, 30/04/1927 (p.268). 36 cf. Claudio E. BENZECRY, El Fanático de la Ópera: etnografia de una obsesión. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2012 (2011). O trabalho de Benzecry foi inspirador neste sentido. O autor passa boa parte de seu livro sobre os aficionados pela ópera na Argentina estabelecendo relações entre as suas observações etnográficas e a categoria nativa do amor. Benzecry entende esse amor muito específico como um elemento constitutivo do seu campo e não como uma falsa consciência, um resíduo ou um epifenômeno das relações sociais. 37 cf. D. CAYMMI, Saudades de Itapoan, lançada – segundo a SEVERIANO, FAOUR, RIBEIRO e S. CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi in S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 600 – pelo próprio compositor em 1948 num 78 rpm da RCA-Victor.

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40 anos desse longo percurso biográfico e criativo) e, por outro, sua argumentação tenta relacionar estes mesmos dados e obras com os temas da raça e, principalmente, da experiência racial do compositor, em particular, e da população brasileira de um modo geral. A escolha deste período final da vida do compositor como um ponto privilegiado, para onde deverá convergir a maioria das reflexões do meu trabalho, se deu por algumas razões. Antes de indicá-las, no entanto, é preciso dizer que este não será o único intervalo de tempo coberto pelo presente texto. Eu o escrevi, na verdade, mais ou menos de trás para frente. Para entender os problemas específicos colocados pela velhice de Caymmi e para adensar as diversas considerações que podem ser inspiradas por ela, afinal, se fez necessário revisitar e até mesmo retraçar boa parte da vida particular e profissional do artista baiano. Em 1968 – data na qual a Câmara Municipal de Salvador aprovou a doação de uma casa para o compositor iniciando o referido período de maior concentração analítica da pesquisa – a pessoa de Caymmi, já estava construída. O músico já era um ícone da música popular brasileira, tinha um enorme sucesso e sua imagem já estava suficientemente assentada e estereotipada de acordo com os signos metonímicos ou os temas transversais já mencionados. A partir de então, o indivíduo Dorival veria a sua figura pública ser retrabalhada ad infinitum por ele e, principalmente, por outros artistas. O meu sujeito de pesquisa foi, em outras palavras, progressivamente substituído pelo próprio imaginário criado por e através dele, uma vez que seu corpo físico, cada vez mais envelhecido, se afastara dos palcos e dos estúdios de gravação. A manutenção do seu êxito inabalável nestas condições havia sido, aliás, a pergunta inicial que guiaria todas as minhas investigações posteriores. O segundo e talvez principal objeto de estudo, portanto, é uma dessas imagens icônicas, prototípicas, que se tornaram cada vez mais importantes para a compreensão da biografia e do trabalho do compositor. O conceito de raça e a trajetória de Dorival foram dispostos, no plano do texto e da análise, como dois alvos espelhados, não sendo possível apreender um deles sem a ajuda do outro. Caymmi e suas experiências raciais multifacetadas – que sobrepuseram, ao longo do tempo, uma série de aspectos particulares, familiares, coletivos, simbólicos e sócio-históricos – estarão sempre conjugados indissoluvelmente, como a figura e o fundo de uma imagem. Neste trabalho, entretanto, essa temática racial sofrerá um pequeno desvio teórico. A atuação peculiar de Dorival Caymmi desafiava as conceituações mais usuais de raça no Brasil. O músico, extremamente silencioso em sua vida particular e também em suas obras, jamais lançou mão de uma identidade racial definida e isenta de ambiguidades. Durante a

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pesquisa tive, então, que rever a ênfase na identidade, nos grupos diferenciais, nos relacionamentos interétnicos, nos discursos e nas performatividades multiformes das experiências raciais38. Ao acompanhar e escutar as fontes documentais, os familiares e os regravadores de Caymmi, senti a necessidade de trabalhar com os avessos destas muitas ideias de raça. Em todas elas, eu encontrava sujeitos e coletividades delimitáveis e distintos que viviam e afirmavam suas condições e preconceitos raciais quase sempre na chave da positividade. Esta tese tem como ponto central, então, a proposição analítica de uma experiência racial multifacetada, vista pelos olhos e pelas canções das diversas personas e indivíduos que compuseram, e ainda compõem, a figura de Caymmi. E foi assim que o silêncio tornou-se, portanto, não apenas um objeto de investigação dentre tantos outros, mas também uma importante ferramenta analítica. As experiências raciais que serão discutidas aqui se dão mais pela vivência, pela admiração estética, pela ausência e pelo acesso a determinados sistemas místico-simbólicos, do que por afirmações diretas, racionais, programadas e inequivocamente políticas. As categorias e as identidades raciais, no entanto, parecem ter envolvido sempre uma forte carga emotiva, quer elas fossem ensaiadas, performatizadas e publicadas como objetos teóricos pelos intelectuais em atividade no Brasil ou não. Então, ao invés de forçar uma dicotomia que na verdade não existe, essa conceituação mais silenciosa das ideias de raça e de experiência racial pretende apenas lançar luz sobre um aspecto íntimo e pouco articulado de todos estes fenômenos. Nos itens seguintes desse texto eu continuo a falar da minha experiência de campo – apresentando, dessa vez, um dos cenários mais importantes para esta pesquisa, o candomblé do Ilê Axé Opô Afonjá que até pouco tempo tinha entre os seus membros o compositor Dorival Caymmi – e introduzo, en passant, uma primeira leitura à contrapelo desse tema da raça.

Intermezzo UM INTELECTUAL BAIANO

38 Os estudos raciais no Brasil costumam situar-se ao longo de um contínuo que tem, grosso modo, duas orientações de pesquisa como extremos. Os intelectuais que tenderam a buscar sobrevivências africanas, adaptações, divisões étnicas ou substratos biológicos-culturais negros (e.g. Raimundo Nina Rodrigues, Manuel Querino, Pierre Verger e Melville Herskovits) e aqueles que enfatizam a mestiçagem, a convivência ou a fluidez classificatória do povo brasileiro (e.g. Euclydes da Cunha, Gilberto Freyre, Jorge Amado e Peter Fry) têm, no entanto, uma característica em comum. A raça adquire normalmente um aspecto concreto e exteriorizado nos seus diversos traços, contribuições, temperamentos ou fronteiras étnicas. A produção destes autores e a bibliografia específica sobre essa temática são enormes, não cabendo indicá-las aqui.

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Michael Herzfeld39 talvez esteja certo ao situar a intimidade numa espécie de interseção entre a linguagem fluida, mas estruturante dos estereótipos, o jogo interminável (e político) das categorizações versus contra categorizações e o simbolismo dos ícones, imagens que vão se sedimentando durante as interações sociais até tornarem-se núcleos carregados de valor significativo, afetivo e ativo. O conceito de intimidade cultural desse antropólogo – um elemento identitário estruturante que às vezes pode até transgredir fronteiras, ligando de formas insuspeitas a macro e a micropolítica – baseia-se, é claro, em rituais de cumplicidade. A experiência e principalmente as categorias raciais historicamente variáveis que foram (e que ainda são) empregadas para nomear, destacar, descrever ou discriminar os negromestiços, no caso da minha pesquisa, também desempenharam esse papel ambivalente de ícones culturais. As duas categorias, ambas expressas quase sempre com muita afetividade, atuaram, em cada uma das fontes documentais e durante todo o meu trabalho de campo, mais como marcadores sociais da intimidade do que da diferença. O antropólogo Peter Fry, por exemplo, parece ter acessado uma série de lembranças muito fortes ao falar desses temas na entrevista que fizemos. Ele enfatizou bastante, naquela ocasião, as alianças, as negociações e o convívio entre determinados indivíduos e grupos sócio-raciais, mesmo encarando o conflito e a suspeita como elementos constituintes das relações interétnicas no Brasil. Ao comentar a relação entre intelectuais, artistas e o candomblé de nação Ketu de um modo geral e mais especificamente a instituição dos obás de Xangô no terreiro do Opô Afonjá, meu interlocutor ficou com o rosto vermelho e seus olhos ficaram cheios d´água. Ele disse em seguida, um pouco constrangido:

“Me deu vontade de chorar porque gosto muito dessas pessoas. Sim, porque essas pessoas são os grandes intermediários, não é isso? Os protetores, porque a Mãe Aninha inventou isso um pouco pra proteger esse... muito bem sucedido. Muito bem sucedido. Se ela não tivesse feito isso, quem sabe a Mãe Stella não estava na posição em que está, né? Porque ela conseguiu segurar o Axé Opô Afonjá fazendo essas alianças...”

39 cf. HERZFELD. Intimidade Cultural, 2008, passim para a recensão a seguir.

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O antropólogo segue o raciocínio um minuto depois ao trazer à tona a figura de Vivaldo da Costa Lima (1925-2010), que parece ter sido um de seus melhores amigos no Brasil:

“Vivaldo era exatamente essa mesma ideia, né? Vivaldo tinha... era um intelectual baiano assim, quase um estereótipo, né? Um homem, no caso um homem de posses, né, porque o pai dele tinha inventado a Jurubeba Leão do Norte, então a família já era uma família abastada, do interior, de Feira de Santana. E... o Vivaldo era de formação dentista, coitado. Mas ele, ele era um homem cosmopolita, muito viajado, deu aula na Argélia, estudou em Londres, ia fazer doutorado em São Paulo e não terminou. E ele tinha, ele tinha essa relação. Sabe o que me lembra um pouco? As figuras que aparecem no livro do Hermano Vianna sobre o samba, é, porque ele, ele tinha relações íntimas com a elite baiana, com certeza. E o trabalho que ele fez lá no Pelourinho no início, trabalho pioneiro de fato, foi através do Antônio Carlos Magalhães. Aliás, ACM, e... Então ele tinha essa relação com a elite da Bahia, a elite acadêmica e tal e, ao mesmo tempo, ele tinha relações íntimas com a elite negra da Bahia, dos terreiros sobretudo, sobretudo. Ah, e também no meio artístico, né? Com quem ele brigava com todo mundo direto, direto porque era uma pessoa muito briguenta, né? Mas também as pessoas, muitos respeitavam. Então Vivaldo, é... Como eu te falei, foi Vivaldo que me, que me apresentou à Bahia. Por isso que eu fico um pouco emocionado de falar dele. Considero um raríssimo privilégio... e sentimos muita falta dele, muito.” (grifo meu)

A obra desse grande intermediário, um intelectual icônico e estereotipável40, hoje se encontra enterrada na vala comum do folclore e dos testemunhos êmicos dos informantes. No entanto, embora – ou por isso mesmo – seus escritos sejam militantes, Vivaldo tem uma honestidade intelectual difícil de encontrar, descobrindo pacientemente suas vastas fontes de informação, exibindo-as e deixando claro o tempo todo aquilo que é lacunar no conhecimento disponível sobre o candomblé e suas prováveis41, mas sempre discutíveis42, ligações com a África Ocidental.

40 cf. HERZFELD. Intimidade Cultural, 2008, passim a respeito da relação entre estereótipos e ícones da forma que são empregados aqui. Para o autor estereótipo é ao que tudo indica uma categoria, algo maior do que um simples conceito. Trata-se de uma forma de pensar estruturante que parece se estender a todos, de antropólogos a políticos e ladrões de gado, embora com implicações político-epistêmicas muito diferentes, dependentes de relações sociais específicas. 41 cf., por exemplo, Pierre VERGER., Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: EDUSP, 1999 (1957). 42 cf, por exemplo, Camila AGOSTINI, Africanos no Cativeiro e a Construção de Identidades no Além- Mar: Vale do Paraíba, século XIX. Campinas: dissertação de mestrado – IFCH/UNICAMP, 2002; Beatriz Góes DANTAS, Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Campinas: dissertação de mestrado – IFCH/UNICAMP, 1982.

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Talvez esse outro intelectual feiticeiro tenha sofrido, décadas depois, os revezes do cruzamento de categorias que cancelaram a vocação, a promessa intelectual do Edison Carneiro (1912-1972), estudado por Luiz Gustavo F. Rossi43 – acrescentando-se aí provavelmente a homossexualidade de Vivaldo. Talvez seu feitiço tenha se tornado ineficaz após certo tempo também, assim como o de Edison: na época de sua morte Vivaldo ainda era temido, mas talvez não fosse mais tão respeitado. É interessante notar que Pierre Verger (1902-1996), talvez por não ter sido criado desde o princípio na sociedade que adotou com tanto fervor, foi – através de sua enorme influência junto à pequena editora Corrupio – um dos poucos intelectuais que elogiaram, divulgaram e discutiram seriamente a obra de Vivaldo. O fotógrafo-adivinho francês, que fez questão de mudar até seu nome44 ao entrar em contato com os candomblés era também outro dos “grandes intermediários”, por sinal, talvez o maior de todos45. Essa figura ímpar será, ademais, um dos protagonistas desse trabalho, aparecendo de uma maneira ou de outra em todos os capítulos seguintes. De qualquer forma, a instituição dos obás de Xangô por Mãe Aninha, “a figura feminina mais ilustre dos candomblés da Bahia”46, e Martiniano Eliseu do Bonfim em 1937 tem diversas interpretações. Seguindo Vivaldo da Costa Lima47, a mãe de santo “entronizou (...) os 12 Obás de Xangô, para que os mesmos fossem o esteio da Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, o seu núcleo básico de suporte espiritual. Aos obás caberia também zelar pelo culto de Xangô, como os antigos ministros de Xangô nas terras iorubás cultuaram a memória de seu Alafin divinizado”48 (grifo do original). No entanto fica claro, até nos textos de Vivaldo, que esse corpo de obás tinha também funções de suporte simbólico, jurídico e às vezes material do terreiro frente à sociedade local. Não é à toa que depois da primeira geração de ministros do Opô Afonjá a presença de artistas,

43 cf. Luís Gustavo Freitas ROSSI, O Intelectual Feiticeiro: Édison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2016 (2011), passim. 44 cf. Heloísa PONTES, Intérpretes da Metrópole: história social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual, 1940-1968. São Paulo: EDUSP / FAPESP, 2010, pp.209-33 para uma discussão a respeito da importância e dos possíveis significados da mudança do nome de um indivíduo e/ou da assinatura de um artista. 45 cf. Lula Buarque de HOLANDA, Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos (DVD). Europa Filmes (Brasil), 1998; José J. BARRETO, Carybé & Verger: gente da Bahia. Salvador: Solisluna / Fundação Pierre Verger, 2008. 46 cf. Édison CARNEIRO, Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Conquista, 1961 (1948), p.63. 47 cf. Vivaldo da Costa LIMA, Os Obás de Xangô (1966), pp.59-88; A Direita e a Esquerda no Candomblé da Bahia (1985), pp. 139-82; Aninha e os Obás de Xangô (2003), pp. 293-306 e A Roma Negra: breve história de uma metáfora (2003), pp. 307-214 in LIMA, Lesse Orixá: nos pés do santo. Salvador: Corrupio, 2010. 48 cf. LIMA, Lessé Orixá, 2010, pp.60-1.

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políticos e intelectuais de renome comecem a aparecer entre seus quadros49. No contexto desta pesquisa, três dos indivíduos que mais aparecem nas entrevistas, nos documentos e na bibliografia consultada – Caymmi, Carybé e Jorge Amado – foram obás. E Gilberto Gil é um dos atuais zeladores do culto de Xangô na roça de São Gonçalo do Retiro.

5. AUÔ uma história sem feitiçaria50

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.

Manoel de Barrros51

Mãe Detinha de Xangô, uma das iaôs52 mais velhas do Opô Afonjá, deve hoje ter um pouco menos do que noventa anos. Ela recebeu-nos em sua própria casa, que fica bem próxima do barracão e da habitação da ialorixá Stella de Oxóssi. Depois de perder a sua desconfiança inicial, Detinha começou a contar uma série de histórias esclarecendo diversas dúvidas rituais sobre a relação entre Dorival Caymmi e aquela roça de candomblé. Um dos momentos mais interessantes de sua entrevista, porém, não estava relacionado com o compositor falecido recentemente. Detinha fazia alguns comentário a respeito da relação nem sempre harmoniosa entre intelectuais, seus livros e o Opô Afonjá. No meio dessa fala a idosa filha de santo conseguiu sintetizar exemplarmente a definição de segredo que permeia o candomblé, dizendo mais ou menos o seguinte:

49 cf. Id., passim. 50 cf. AMADO, O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria. São Paulo: Companhia. das Letras, 2010 (1988), livro cujo subtítulo é parafraseado aqui. 51 Manoel Wenceslau Leite de BARROS, Uma Didática da Invenção in BARROS, O Livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. 52 cf. BASTIDE, O Candomblé da Bahia, 2001; BENISTE, Dicionário Yorubá, 2011 e VERGER, Notas Sobre o Culto, 1999. Iaô (iywàwó), do iorubá (èdè yorùbá), é sinônimo de aiá (àya) e significa literalmente esposa, mulher casada. Iaô é um termo corrente nos candomblés brasileiros de nação Ketu É utilizado aqui quase exclusivamente como sinônimo de pessoa que passou pelo ritual completo de iniciação e que pode entrar em transe, uma “filha de santo”. Em alguns casos, a palavra iaô pode ser empregada para iniciados masculinos. Por outro lado o termo ialorixá (iyálòrìṣà) é utilizado de maneira mais restrita para designar uma “mãe (iyá) de santo (òrìṣà)”. Aparentemente não há uma relação direta, nem etimológica nem semântica, entre iaô e as palavras de sonoridade parecida auô (awo), segredo, ou auô (áwo), fundamento.

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“Segredo é segredo. Não tem nada de mais, não tem mistério, só tem segredo. Então se você pega e mostra acaba tudo.”

Auô (awo) quer dizer segredo, mistério, em iorubá53. Mais do que uma palavra auô é um conceito operante nos candomblés brasileiros de todas as nações. Uma vez que o aumento de capital simbólico e mágico na hierarquia religiosa dos terreiros é diretamente proporcional à posse de conhecimentos cuja força está associada à sua circulação restrita54, o auô (awo) é, de acordo com um trocadilho comum nas roças de Ketu, a base do auô (áwo). Essa última palavra, quase homófona, se não fosse pelo prolongamento de sua primeira sílaba, tem uma relação semântica estreita com o segredo. Auô (áwo), enfim, significa fundamento – em outras palavras, os alicerces que mantem concretamente um candomblé de pé, os objetos enterrados ali, o que embasa em profundidade o poder daquela casa – e por extensão o próprio culto aos orixás55. Esse culto, por sua vez, tem pelo menos uma semelhança com o Caymmi assentado e silencioso das minhas entrevistas e de todas as outras fontes. Gilberto Gil é o atual Obá Onikoyi do Opô Afonjá. Antes da morte de Dorival eles parecem ter convivido por um momento no cargo. Esse posto, afinal, que parece na verdade tratar-se de uma pessoa religiosa, é divisível entre uma direita efetiva e esquerda substituta ou consultiva. Uma prática comum nos candomblés de Ketu56. “Caymmi ainda me via, tava lá, era, então, éramos dois, um, éramos dois em um”, disse Gil em seu depoimento. No início da sua gravação o artista fala do seu antecessor desse jeito:

“É, e lógico, sempre a lembrança daquele homem muito, muito calmo, muito assentado, né? É, no candomblé a gente tem essa expressão de “assentar o santo”, né? E o Caymmi é assim pra mim, uma pessoa completamente assentada naquele lugar da, da coerência absoluta, não é? Do viver em tudo, do bom e do ruim, do certo e do errado, no longe e no perto. Enfim, aquele homem certo, né? É como eu vejo.”

53 cf. BENISTE, Dicionário Yorubá, 2011. 54 cf, Fredrik BARTH. O Guru, o Iniciador e Outras Variações Antropológicas. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2000. O artigo “O Guru e o Iniciador” de Fredrik Barth que dá nome à última coletânea brasileira de seus trabalhos, traz uma tipologia e uma discussão sobre as formas de aquisição de conhecimento em contextos religiosos que, por si só, já seriam pertinentes para os estudos sobre candomblé. É interessante perceber, ademais, que o autor enfatiza precisamente – para além da própria relação entre mestre x discípulos e iniciador x iniciados – a circulação de informações como elemento configurador da crença. Em outro artigo do livro esse elemento chave torna-se uma das dimensões fundamentais de apreensão e/ou descrição etnográfica das chamadas “sociedades complexas”. 55 cf. BASTIDE, O Candomblé, 2001; e VERGER, Notas Sobre o Culto, 1999, passim. 56 cf. LIMA, Lessé Orixá, 2010, pp.139-82.

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Os versos da canção “Buda Nagô”, de 199157, parecem compartilhar essa visão que seu autor teria sobre Caymmi vinte e um anos depois. Talvez encarar o adjetivo nagô do título, outro nome para a nação Ketu a qual pertencem os dois artistas, ou os 2 compassos de abertura depois da anacruse58 como uma referência à sucessão dos obás e a esse “dois, um” muito posterior seja cair outra vez “naquele lugar da coerência absoluta” dos delírios paranoides que Clifford Geertz qualificou um dia como ilusão e estória59. Talvez, tanto Geertz quanto Gil tenham razão, no entanto, em outro aspecto da questão. A intenção de Gil, na entrevista e na canção, talvez não seja mesmo fazer a “análise cultural” de qualquer sistema humano nem descrever a “existência verdadeira” das coisas. Pelo contrário, ele parece empregar a sua dicção idiossincrática para poder conseguir falar do caráter sobre-humano que ele atribui ao seu irmão de esteira60:

“Tem uma figura destacada pra mim, absolutamente mítica, que passaram... a existir num plano, é, mítico, mitológico. De uma certa forma, tiveram suas qualidades humanas, pessoais e etc., diluídas, quer dizer, pra dar lugar, dar lugar a uma, uma, uma configuração de entidade num plano, num plano outro. E Caymmi é uma dessas figuras...”

Essas duas últimas citações de Gil são trechos de uma mesma fala. Trata-se da primeira resposta do músico na sua entrevista. Elas expressam, e da forma mais explícita

57 cf. MOREIRA e RENNÓ, Gilberto Gil, 1996, p. 338-9 e MOREIRA, Parabolicamará, 1992, lado A, faixa 4. 58 MOREIRA, Id., ibid. Gil parece ter construído esses dois compassos a partir de a) um salto melódico relativamente grande, uma quinta justa descendente, com repouso na subdominante ré (D), que acaba desempenhando a função de baixo ao longo da música e de b) uma pausa métrica inusitada. Ambos os elementos composicionais são característicos, aliás, do samba-de-roda baiano e parecem separar semanticamente as sílabas da palavra ím- / par. 59 cf. Clifford GEERTZ, A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989 (1973), p.28, para esta citação e as seguintes do mesmo autor nesse parágrafo. 60 cf. Hector Paride BERNABÓ (Carybé), Depoimento de Carybé in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem, 1996, disco 1, faixa 16 e VERGER, Notas Sobre o Culto, 1999. , que também é ligado ao Opô Afonjá, diz na sua entrevista “frequentando o candomblé, quer dizer, nós somos irmãos de esteira”. Esse parentesco religioso refere-se a seu próprio pai, Dorival, e soma-se de algum modo à relação de consanguinidade entre os dois. Carybé num depoimento lançado originalmente em 1985 também usa a expressão para falar de seus amigos, obás de Xangô naquela roça: “O Axé de Opô Afonjá, candomblé de mamãe Senhora, uniu três pessoas que hoje em dia são três irmãos de esteira – cada um tem uma esteira, é! Agora, um é Obá Onikoyi, outro é Obá Arolu e o outro é Obá Onanxocum. Em português, seriam Dorival Caymmi, Jorge Amado e Carybé. E, aí nos unem laços assim secretos e misteriosos, não é?” A expressão “irmão de esteira”, muito comum nos candomblés, faz referência a um grupo de pessoas que saíram de um mesmo “barco”, que foram “feitos” em cima da mesma esteira, no chão da mesma “camarinha”, ou seja, que estão unidos por uma iniciação em comum. Essa locução pode marcar também, se utilizada de modo menos estrito, o compartilhamento de um cargo na hierarquia religiosa, como parece ser o caso dos obás, e/ou um laço forte de amizade entre determinados membros de um terreiro. Esse laço envolve, na maioria dos casos, uma série de prestações e contraprestações.

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possível, a versão extrema, mitológica, do conjunto de personas que formam a imagem de Dorival Caymmi. Essa entidade – um orixá, quem sabe, que talvez interceda por Gil “do alto do seu roko, a sagrada gameleira em Opô Afonjá” 61 –, é possivelmente um cruzamento de muitos dos temas transversais mencionados até aqui: a genialidade, a religiosidade e a sabedoria, no mínimo. Entender como atua, se manifesta e pode se expressar esse “plano outro” da diluição das “qualidades humanas” na experiência particular desse artista e nessa espécie de mitologia construída ao redor de Dorival Caymmi, de um modo geral, é precisamente um dos objetivos da minha pesquisa. E nesse caso, talvez, a utilização de um método pouco apropriado de apreensão e análise dessas “conversas bem malucas”, como diz Risério, leve apenas à conclusão de que todas elas não passam “[d]a ilusão de um paranoico ou [d]a estória de um trapaceiro”62. Pelo menos, e voltando ao cotidiano social, não parece muito arriscado ver nessas declarações míticas de Gil, assim como nas antinomias de “Buda Nagô”63, a convivência “do bom e do ruim, do certo e do errado”. Em ambos os casos é perceptível, também, uma utilização êmica, por alguém que frequenta os candomblés, do significado ritual de assentar um santo – precisamente o de enterrar os auô (áwo) individuais ou coletivos num terreiro, lessé orixá64. A fala de Mãe Detinha de Xangô é muito significativa, de qualquer forma. Nessa religião altamente hierárquica, a discrição e o silêncio parecem tornar-se não só uma ética, mas também uma educação específica65 da conduta, a regra implícita de qualquer interação intra e intergrupal. Mas a sua contraparte – a possiblidade eterna da circulação maldosa da fofoca, do feitiço e da suspeita66 – também está sempre presente e talvez seja, inclusive, tolerada num culto que, ao que tudo indica, não recua totalmente diante da incoerência e do erro humano, “do longe e do perto” de Gil. Os próprios santos, afinal, fazem intrigas, mentem, trapaceiam e se arrependem de vez em quando67. Talvez Gil não quisesse dizer tanto, mas o relativo silêncio de Caymmi, seu assentamento e a rede de temas transversais e histórias

61 cf. Gregório de Matos e GUERRA (ed. de James AMADO), Gregório de Matos: crônica do viver baiano seiscentista, obra poética completa. Rio de Janeiro: Record, 1999 (1969), p. 25. 62 cf. GEERTZ, A Interpretação das Culturas, 1989, p.28. 63 cf. MOREIRA e RENNÓ, Gilberto Gil, 1996, p. 338-9 e MOREIRA, Parabolicamará, 1992, lado A, faixa 4. 64 cf. LIMA, Lessé Orixá, 2010. O subtítulo da obra dá o significado da expressão, literalmente “nos pés do orixá, do santo”. 65 cf. Marialda J. SILVEIRA, A Educação pelo Silêncio. Ilhéus: Editus, 2003, passim. 66 cf. Júlio S. BRAGA, O Fuxico de Candomblé. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1998. 67 cf. Reginaldo PRANDI, Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, passim.

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tecidas ao seu redor guardam no mínimo uma analogia com tudo isso. Não se pode dizer muito mais coisa sem infringir o auô (awo) – esse segredo que, de acordo com a velha iaô, reside no ato de não contar e não na existência de qualquer conteúdo específico – nem cair de vez, de maneira ingênua e inábil, na mitologia caymmiana, diluidora das suas “qualidades humanas”.

Intermezzo O QUE NÃO PODE SER DITO DE NENHUMA OUTRA MANEIRA

O silêncio e o auô (awo) dos candomblés de Ketu que eu encontrei em toda a minha pesquisa de doutorado pareciam conviver sempre com algo próximo da definição diametralmente oposta – mas talvez complementar – de segredo dos jongueiros que havia estudado no mestrado68. Para eles a circulação das palavras, histórias, memórias e informações é exatamente a condição de sua força encantatória e de seu mascaramento. Apareceram na maioria das fontes estudadas, afinal, o uso hábil das palavras, o tempero, o feitiço armado com determinadas expressões e conceitos que, se bem utilizados de modo precisamente histórico, sociológico e contextual, abriam a porta para mais um paradoxo. As narrativas, mesmo as mais mirabolantes, as estórias que talvez Geertz não apreciasse muito69, o próprio ato de estar diante de uma plateia, de uma máquina de escrever, de um microfone ou de um entrevistador relembrando mitos e criando fatos, talvez sejam os únicos jeitos de contar e dividir experiências de outro modo incomensuráveis e inexprimíveis. A relação entre familiares, por exemplo, e a ausência de um pai materializada num travesseiro, numa casa praticamente intocada, os fuxicos e as insinuações, o assentamento de Caymmi, a criação de linhagens e de alianças, as redes de amigos inseparáveis, os recados indiretos dados maliciosamente aos outros, solidariedades imprevistas, o alumbramento, como diria o jovem Manuel Bandeira70, diante de um conjunto de canções. Em síntese e nas palavras de outro indivíduo ligado ao surrealismo, o contador de histórias Jean-Claude Carrière:

68 cf. a nota n. 16 acima. 69 cf. GEERTZ, A Interpretação das Culturas, 1989, p.28. 70 cf. BANDEIRA, Carnaval (1919) in Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.

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“Como as minhocas que, dizem, tornam fértil a terra que atravessam às cegas, as histórias passam das bocas aos ouvidos e vêm dizendo, há muito tempo, o que não pode ser dito de nenhuma outra maneira71.”

Depois de todos esses signos de mistério e de indefinição é preciso, agora, concluir esse longo texto introdutório. Passo a descrever então, capítulo por capítulo, a estrutura da minha tese de doutoramento. É uma forma de contrabalançar, com alguma racionalidade, o vento irrequieto que soprará constantemente através de todas as páginas deste trabalho.

6. A PEDRA QUE RONCA NO MEIO DO MAR72

Esta tese de doutoramento é intitulada “A Pedra que Ronca no Meio do Mar: baianidade, silêncio e experiência racial na obra de Dorival Caymmi” para indicar, precisamente, cada um dos temas inter-relacionados que já foram apresentados nesta introdução e que constituem o meu objeto de estudo. Esses três núcleos de significados acessados, todos eles, através de múltiplas fontes, narrativas, canções, eventos sobrenaturais e constrangimentos diversos, serão discutidos em três capítulos e num pequeno caderno de fotografias. O primeiro capítulo da tese chama-se “Não jogue os búzios, mãe Menininha!”73. Nesta seção do trabalho o sujeito central da pesquisa, o indivíduo Dorival Caymmi, será apresentado através de uma série de acontecimentos significativos, já referidos no quarto item desse texto, e do olhar atento do seu melhor amigo, o romancista Jorge Amado. O capítulo inicia-se com a volta do popularíssimo compositor para a sua cidade natal no final dos anos de 1960. São descritos aí, por um lado, determinados eventos de sua biografia prévia que influenciaram diretamente esse retorno às origens e, por outro, as tensões sociais que Dorival enfrentou em Salvador naquele período. Esses acontecimentos todos deixam-nos entrever uma espécie de crise pessoal que teria sido materializada em ataques cardíacos, no excesso de bebida e numa tristeza habilmente disfarçada, revelável apenas pela leitura atenta dos documentos disponíveis. Eu levanto a hipótese, nesse momento, de que todos esses dissabores tinham como pano de fundo, paradoxalmente, o sucesso e o reconhecimento acumulados por Caymmi ao longo das décadas precedentes.

71 cf. Jean-Claude CARRIÈRE, Contos Filosóficos do Mundo Inteiro. São Paulo: Ediouro, 2008 (2004), p. 7. 72 cf. Itapoan, canção praieira lançada no LP Caymmi, de 1972 (lado B, faixa 12) pelo próprio compositor. Informação obtida na Discografia Essencial, p. 585. 73 cf. AMADO, Vinte Anos Depois in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c.1967, p.16.

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Dorival Caymmi já era chamado de “patriarca da música popular”74 brasileira aos cinquenta e poucos anos de idade. A sua figura tinha envelhecido tanto física quanto socialmente. O compositor já era conhecido, então, por seus cabelos brancos, era chamado de velho por todos e já tinha sido recuperado por uma geração posterior de músicos, os criadores da bossa-nova. No início dos anos 1970 ele seria invocado novamente como uma espécie de ancestral pelos jovens baianos da Tropicália. O excesso de trabalho que sobrecarregou Dorival nas décadas de 40 a 60, provocou, finalmente, alguns problemas de saúde que levaram-no a abandonar progressivamente a sua carreira de palco, causando o que o seu filho Dori chamou, na entrevista que fizemos, de o início de sua morte. Aparentemente, Caymmi buscava três coisas em Salvador: 1. recuperar uma determinada imagem do seu passado, 2. reavivar uma rede de amigos e colegas – que envolvia artistas como Pierre Verger, Carybé e, obviamente, seu compadre Jorge Amado – e 3. buscar uma solução espiritual para os seus problemas nos candomblés do Gantois e do Opô Afonjá. O texto aproveita-se conjuntamente desses três objetivos para ampliar, então, o seu escopo e falar da própria cidade de São Salvador. A mobilização peculiar dos marcadores étnico-raciais pelos habitantes daquela cidade entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX é especialmente destacada ao lado de outras singularidades históricas. Depois de subir e descer as ladeiras do antigo burgo de Tomé de Souza – uma capital estadual que foi se tornando, inclusive, cada vez mais negra no imaginário sócio- político local – o capítulo faz uma descrição sumária das relações entre os quadros governistas, a intelectualidade de Salvador e do Rio de Janeiro, a crítica musical e a população destas duas cidades. A atuação pública dos amigos de Caymmi mencionados acima – e, sobretudo, as habilidades comunicativas particularmente impressionantes de Jorge Amado, neste sentido – serão enfocadas neste contexto. Em seguida, alguns dilemas da carreira do jovem Dorival serão apresentados, em paralelo com determinadas transformações no interior da produção de música popular no Brasil. Essas mudanças, pelas quais o compositor Dorival Caymmi passou, serão elencadas no final deste primeiro capítulo e no início do seguinte. O texto de ambos destaca, especialmente, o amadorismo inicial da chamada Época de Ouro do rádio brasileiro, o progressivo acúmulo de reconhecimento social dos músicos no país, as inovações técnico-industriais e as sucessivas trocas de geração, cada vez mais profissionalizadas, nesse métier.

74 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in D.CAYMMI, Caymmi, 1972.

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As últimas páginas deste primeiro capítulo abordam, conforme já foi indicado, um dos temas-chave da tese: o êxito duradouro de Dorival Caymmi. Este mesmo assunto abrirá, na sequência, a próxima seção do texto. O segundo capítulo, “Canções praieiras”, começa com um relato sobre o auge do sucesso comercial do compositor, que teria ocorrido na década de 1950. São descritas, então, a primeira homenagem pública de grande porte que ele recebeu, em Salvador, e a gravação do seu LP inaugural, no Rio de Janeiro. Antes disso, eu apresento um pequeno caderno de fotografias. Essas doze imagens, que enfocam diversos momentos da vida de Caymmi, foram selecionadas para acompanhar o texto do primeiro capítulo. Elas deverão reforçá-lo, ajudando-o a introduzir e situar a figura do compositor – que é, evidentemente, a personagem principal da tese, o meu sujeito de pesquisa – materializando-a visualmente. Depois de discorrer sobre o sucesso de Dorival Caymmi na década de 1950, o texto do segundo capítulo prepara as seções seguintes da tese através de uma breve discussão conceitual. Partindo da ideia de biografia estendida este capítulo, afinal, tenta fazer uma transição entre a perspectiva analítica biográfica utilizada até este momento do trabalho e a noção alargada de obra, autor ou pessoa que já foi anunciada nesta introdução. Tal noção será mobilizada, em seguida, numa discussão sobre o gênero autoral de Caymmi: as canções praieiras. A obra de Caymmi, de um modo geral, e esse conjunto emblemático de composições, em particular, serão vistos ao longo do segundo capítulo exclusivamente através de olhares exteriores. Serão recolhidos e repensados, neste sentido, depoimentos de seus familiares, de Gilberto Gil – um de seus regravadores mais importantes – e do amigo Jorge Amado, entre outros. No terceiro capítulo da tese, “Se quiser falar de mim...”75, serão analisadas as músicas e as entrevistas do próprio Caymmi. Após uma comparação resumida entre as obras daquele mesmo grupo de amigos citado anteriormente – Jorge Amado, Pierre Verger, Carybé e “poeta maior da terra e do mar baianos”76 – serão feitas algumas considerações sobre a interação desses artistas com os seus objetos de representação. Eles todos situaram-se, a partir dos anos 30 e 40, numa fronteira móvel e ambivalente que parece confundir mais do que separar personagens e analistas, militantes e tradutores, demiurgos e criaturas.

75 Esse título foi extraído da letra da Modinha de Tereza Batista, cf., a respeito, Jorge AMADO e Dorival CAYMMI, Modinha de Tereza Batista in Mário ROCHA e Roger HENRI (prods.), Tereza Batista (CD). , 1992, faixa 2. A canção, baseada num poema de Jorge Amado, é chamada alternativamente de Modinha para Tereza Batista. Ela foi lançada em 1992 por uma das noras de Dorival, Simone Caymmi, então esposa do seu filho Danilo Caymmi no disco supracitado. A música fazia parte, junto com Vamos Falar de Tereza, da trilha sonora da novela Tereza Batista da rede Globo. Informações obtidas na Discografia Essencial, p. 591. 76 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in D.CAYMMI, Caymmi, 1972.

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Nesse ínterim é discutido o suposto ocultamento dos conflitos nas imagens da Bahia produzidas por essa confraria de artistas, cujas produções praticamente compartilhadas serão analisadas mais detalhadamente. Argumenta-se que a ausência de questões sociais explícitas nas obras desses quatro criadores esconde, na verdade, o enaltecimento da liberdade e da dignidade da população negra e pobre de Salvador presente em cada um de seus trabalhos artísticos e um relacionamento ambíguo de todos eles com o poder público local. Duas canções de Dorival Caymmi, “Promessa de Pescador” e “Sargaço-Mar” 77, são cotejadas minuciosamente depois disso. As duas composições têm exatamente a mesma temática: a prece de um pescador que acompanha um presente oferecido por ele ao orixá Iemanjá. Na primeira delas, composta em torno de 1938, esta cena é descrita a partir de uma apreciação exterior e levemente exotizante. “Sargaço-Mar”, por sua vez, foi criada quase quarenta anos depois. Nesta canção, Dorival faz – utilizando tanto a poética de seus versos quanto uma musicalidade estranha – um jogo muito complexo, no qual o intérprete amalgama-se com o mar e com a própria matéria-prima da música. O resultado é uma espécie de construção em abismo, cheia de paradoxos insolúveis, afinal trata-se de uma não-canção que tenta descrever o silêncio e que é significativamente análoga à experiência histórico- individual do seu compositor naquela década de 1970. A conclusão, também intitulada “A Pedra que Ronca no Meio do Mar”, retoma, sob outro ponto de vista , um dos temas centrais da tese: a ideia de que a experiência racial, no Brasil, foi simultaneamente produzida e sentida por artistas, intelectuais ou populares. Em outras palavras, o conceito de raça sofre, nesta passagem do texto, aquele deslocamento teórico aludido no quarto item desta introdução. As demarcações raciais serão reconsideradas, portanto, enquanto um silêncio, um olhar tanto interior quanto exteriorizado, mas dificilmente objetificável, vinculando-se, antes de tudo, a experiências afetivas, religiosas ou estéticas não necessariamente performático-discursivas. O texto desta seção conclusiva apresenta rapidamente uma carta escrita por Dorival Caymmi para Jorge Amado78, na qual o músico pede a seu compadre uma série de itens

77 cf. D. CAYMMI, Sargaço-Mar e Promessa de Pescador. Sargaço-Mar, apresentada pela primeira vez na temporada de shows que Caymmi fez em 1976 junto com , foi lançada pelo autor apenas em 1984. Informação obtida na Discografia Essencial, p. 599. Estra gravação pode ser ouvida em D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia (LP), 1985, disco 2, faixa 4. Promessa de Pescador foi lançada, de acordo com a Discografia Essencial, p. 596, pelo compositor em 1939, num 78 rpm da Odeon. 78 A correspondência de Caymmi encontra-se parcialmente disponível no site do ADC. Ao longo da pesquisa eu pude visualizar, transcrever e fotografar outras cartas e, principalmente, bilhetes do meu sujeito de pesquisa. Esse primeiro documento citado e que se tornaria uma das fontes mais valiosas para análise foi encontrado, no entanto, de maneira insólita. A jornalista Tatiane MENDONÇA fotografou-o em 2012 numa exposição do Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, que homenageava Jorge AMADO. Em poucas semanas e a partir do blog de MENDONÇA – cf. http://opurgatorio.com/ 2012/06/29/as-obrigacoes-de-caymmi-e-outras-

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africanos, e uma descrição do enterro do compositor. Em seguida, repasso as sucessivas gerações de regravadores de Dorival Caymmi de João Gilberto em 1959 à produção atual de Rosa Passos e da família do compositor79. Essas diversas linhas de apropriação do trabalho do “Buda Nagô”80 que incluíram a sofisticação jazzística, a afirmação reiterada da baianidade e diversas construções em torno da experiência racial do compositor e dos próprios intérpretes, teriam sido responsáveis tanto pela produção antecipada de um antepassado quanto pela manutenção do sucesso de Dorival. Ao que tudo indica, aliás, a criação e a sobrevivência deste ídolo foram promovidas, simultaneamente, por uma espécie de parentesco putativo que envolveu esta série de artistas que quiseram aliar-se e relacionar-se com Caymmi. Não é à toa que a mitologia caymmiana organizou-se – segundo as expressões ditas por Gilberto Gil, na entrevista que fizemos – através dessas linhagens e casas reais.81 As diversas linhas argumentativas que compõem essa tese encontram-se, por fim, através da seguinte questão: teria este ícone, este produto Dorival Caymmi, amplamente vendido e veiculado por ele próprio e por outros artistas, se tornado atrativo e eloquente através da ambiguidade inerente ao trânsito entre determinadas condições de inferioridade e superioridade sociais relativas (negro/mestiço, popular/sofisticado, genuíno/construído, único/replicável, inculto/estudado, baiano/carioca, involuntário/ intencional, masculino/feminino)? O texto é concluído, então, com a afirmação de que estas relações e lugares-comuns fornecem, na verdade, a matéria-prima para a construção dos sonhos (a raça e a baianidade, por exemplo) e de um “outro” (velho, não-humano, divino, gênio, natural, primitivo, incriado) amável e potencialmente perigoso. Dorival Caymmi está, obviamente, no cruzamento dessas e de tantas outras linhas de fuga. A argumentação da tese tem aqui o seu ponto de chegada que poderia, voltando-se às primeiras páginas desta introdução, ser outro. Afinal, qualquer um dos temas coletivamente relacionados ao meu sujeito de pesquisa poderia ter sido utilizado para a visualização parcial dessa totalidade que eu resolvi chamar de mitologia caymmiana. Neste trabalho, no entanto,

artes/, última visita feita em 10/08/2016 – a transcrição da carta do músico virou um sucesso de público na rede, tornando-se um viral. 79 cf. respectivamente João Gilberto P. P. de OLIVEIRA (João Gilberto),Chega de Saudade (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1959; Rosa M. F. PASSOS, Rosa Passos Canta Caymmi (CD). Rio de Janeiro: Lumiar Discos, 2000 e Dori CAYMMI, Nana CAYMMI e Danilo CAYMMI, Nana, Dori e Danilo: Caymmi (LP). Som Livre, 2013, entre outros. 80 cf. a nota n.28 acima. 81 Além dessa entrevista – na qual Gil disse referindo-se a Caymmi ipsis verbis “sou filho, sou discípulo, sou linhagem” e, logo depois, “pertencemos a, temos um, temos um clã, somos dinásticos, temos, né?, temos superstições” – a letra de “Buda Nagô” acrescenta a ideia de casa à estas relações de parentesco. O verso que intitula a canção segue afirmando o seguinte: “Dorival é um buda nagô / filho da casa real da inspiração”. A respeito dessa música cf. a nota n.28 acima.

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privilegiou-se a questão racial que é, inclusive, uma metáfora extraordinária de todas as outras temáticas correlatas. A conclusão desta tese – stricto sensu – trata-se de uma obviedade: Caymmi não se construiu sozinho. Investigando-se a trajetória e o sucesso de um único homem é fácil acessar o pano de fundo de uma história coletiva e vice-versa. Este imbricamento de temas e de pessoas é expressado da melhor maneira possível através de um último exemplo etnográfico. Os costumes funerários do candomblé são enriquecidos por uma pequena variação no terreiro de Dorival, o Opô Afonjá. Ao invés da destruição costumeira de todos os pertences do morto, neste egbé82 o objeto litúrgico- individual mais importante – a pedra que simboliza a própria pessoa de um fiel, o otá, recebendo alimentos e sacrifícios regularmente – é, às vezes, preservado83. Esse detalhe é uma marca de exceção – uma vez que no Opô Afonjá só se preservam os otás dos chefes de culto ou de outros homens ilustres – e, paradoxalmente, de não- diferenciação. Dorival Caymmi ainda é um indivíduo, uma pessoa viva e ritualmente ativa no seu candomblé, mas a sua história, sua trajetória individual, está ladeada de maneira indistinguível e, no limite, pode ser substituível por outras. O otá do compositor está guardado num enorme balaio, que contém também as pedras de seus irmãos notáveis dispostas misturadamente, umas sobre as outras.

82 cf. BASTIDE, O Candomblé, 2001; BENISTE, Dicionário Yorubá, 2011 e VERGER, Notas Sobre o Culto, 1999. Um egbé orixá (egbé òrìṣà), a comunidade dos fiéis de uma casa de candomblé, é constituída por duas categorias de pessoas – iaôs, filhas e filhos de santo, e seus dignitários masculinos e femininos, os ogãs e as ekédis – encabeçadas por um chefe de culto. 83 As cerimônias fúnebres são importantíssimas para o candomblé. Nelas, em geral, os pertences pessoais e litúrgicos dos fiéis mortos são destruídos e tenta-se apressar a transformação deles em ancestrais benfazejos com uma série de cantos específicos e de versões invertidas dos ritos costumeiros. A preservação do otá no Opô Afonjá é, portanto, bastante significativa. As palavras seguintes de Vivaldo da Costa Lima dão uma ideia da centralidade da morte na cosmologia “[d]os chamados cultos afro-brasileiros. As religiões de possessão e da morte. Pois isto é o que elas são. O que o candomblé é. Religiões que equacionam a vida com a morte e cuja participação implica, forçadamente, a identificação do nascimento com a morte. E em que os mortos – os antepassados da linhagem – são considerados e louvados como se fossem vivos. E os vivos são simplesmente mortos a ser.” cf. LIMA, A Morte e o Morrer in LIMA, Lessé Orixá, 2010, p.287.

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Capítulo 1

Não jogue os búzios, mãe Menininha!84

Foram-se dissolvendo a dança e o canto na meia-luz do palco, as filhas-de-santo arrodilharam-se no improvisado terreiro, os alabés tocaram a saudação para o obá, o chefe da nação, o ministro mais importante, o bem-amado do povo e dos orixás. Êle vinha vindo do fundo da noite da Bahia, todo cercado dêsse céu e da vida das ruas, parecia um pescador de Itapoã, a pele côr do temporal e da espera, os cabelos brancos do muito saber, o sorrir mais doce e o falar macio. Atravessou por entre as iawôs arrodilhadas, suas filhas e suas irmãs. A platéia se levantou em aplausos, gritou seu nome, mais uma vez o reconheceu e o proclamou:

Caymmi! Dorival!

Jorge Amado85

Este capítulo, conforme indicado nas páginas precedentes, destina-se basicamente a apresentar o meu sujeito de pesquisa, Dorival Caymmi. As considerações que serão feitas daqui para frente a respeito do “cantor e intérprete de seu povo”86 não foram concebidas, porém, a partir de uma chave única e exclusivamente biográfica. O texto seguinte não cairá, portanto, na tentativa de buscar coerências aonde elas não existem87. Esse indivíduo não será enfocado isoladamente e suas escolhas não serão entendidas como manifestações imediatas de uma vontade de potência88 em estado puro, isenta de constrangimentos sociais. A tentação de julgar as atitudes do compositor baiano a posteriori ou de reforçar a mitologia caymmiana – tratando-o, desde a sua juventude, como uma espécie de prefiguração das personas do gênio, do velho ou do sábio que ele assumiria no decorrer de

84 cf. Jorge AMADO, Vinte Anos Depois in Dorival CAYMMI e Jorge AMADO, Cancioneiro da Bahia. São Paulo: Martins, s/d, c.1967 (1947), p.16. 85 Id., p. 12. 86 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” (contracapa) in D. CAYMMI, Caymmi (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1972. 87 Uma discussão clássica sobre este assunto pode ser encontrada em Pierre BOURDIEU, A Ilusão Biográfica (1986) in Marieta de Morais FERREIRA e Janaína AMADO, Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro; Editora da FGV, 1998, pp. 183-191. 88 Essa expressão, no original em alemão Der Wille zur Macht, é um dos conceitos mais importantes da obra do filósofo Friedrich Nietzsche. A citação dessa “lei originária” no texto acima não deve ser confundida, porém, com o início de qualquer discussão filosófica.

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sua longa carreira – será, finalmente, evitada. Ao invés de imaginar a pessoa complexa do músico Dorival Caymmi a partir desse conjunto de ideias simplistas o presente capítulo procurou apreendê-la através de seus contornos sociais, históricos e simbólicos. Salvador, o Rio de Janeiro, a profissão de Caymmi, seus amigos e familiares são os motes que guiarão as próximas páginas. Discutirei rapidamente cada um desses elementos, formando durante a exposição uma espécie de cenário que deverá emoldurar toda a minha tese. Em outras palavras, eu esboçarei, através de um exercício de antropologia histórica, o palco da trama que se desenrolará ao longo deste trabalho. Apresentarei as suas personagens principais e tentarei fazer ainda, na medida do possível, uma sinopse de seus diversos enredos paralelos. Entretanto esse primeiro capítulo não deve ser lido apenas como um pano de fundo para a atuação dos sujeitos ou das personas que eu encontrei durante a minha pesquisa. Ele não é, da mesma forma, um novo texto introdutório e seguramente não adiará a exposição de questões supostamente mais importantes. O palco que será montado e explorado a seguir é indispensável para o desenvolvimento argumentativo do presente trabalho como um todo. Os diversos contextos que serão parcialmente reconstruídos nas próximas páginas desempenharam certamente um papel muito importante em todas as problemáticas engendradas por e através de Caymmi. As figuras, as relações e os lugares que compuseram estes cenários foram os elementos que tornaram possíveis, afinal, a existência do “gênio da raça”89 e de sua obra, delimitando-os de diversas formas. Sem este esforço de reconstrução parcial da cena e dos atores que ajudaram a construir a figura de Dorival Caymmi é impossível entender e dimensionar, afinal, suas atitudes e suas obras. As informações contidas neste capítulo são essenciais, portanto, para o desenvolvimento das análises musicais e das reflexões sobre raça que ocuparão as próximas seções dessa tese. O detalhamento das canções do “enternecido poeta dos pescadores”90 e a descrição cuidadosa de uma série de ícones, imagens especulares e fantasmas que constituem a mitologia caymmiana mencionada acima, na introdução do presente texto, não fazem muito sentido sem o conhecimento dos atores, do cenário e da trama que serão descortinados aqui.

89 cf. Caetano Emanuel Viana Teles VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia (CD). Rio de Janeiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1996 (1985), disco 1, faixa 8. 90 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c.1967, p.9.

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O “mestre Dorival Caymmi”91e sua trajetória artística aparecerão, consequentemente, em todas as páginas do presente capítulo. O nosso compositor estará às vezes semioculto no fundo do palco, é verdade, mas na maior parte do tempo ele atuará, junto com seus companheiros e antagonistas, na boca da cena.

Antes de partir para o segundo capítulo da tese eu quis deixar um pequeno caderno de imagens à disposição dos leitores. Escolhi doze fotografias apenas. Elas condensam emblematicamente, porém, alguns aspectos da vida pessoal e, especialmente, da carreira pública de Caymmi. Estas fotografias encontram-se divididas em quatro grupos. As primeiras imagens selecionadas dizem respeito às atividades profissionais do compositor, da rádio e da televisão aos shows e às gravações em estúdio. Os retratos seguintes foram tirados em Salvador e apresentam, de uma forma ou de outra, os três elementos que caracterizaram a volta do compositor à sua cidade natal nos anos 60 e 70: as relações dele com o poder público local, com o candomblé e com o seu próprio círculo de amizades. O terceiro conjunto imagético é formado por duas fotografias bastante diferentes de Caymmi na praia de Itapuã. Os retratos que encerram esse caderninho foram tirados, por fim, nos últimos anos de vida do “Buda Nagô”92 e explicitam, materializando-as de maneira exemplar, uma série de imagens construídas em torno da sua pessoa.

* * *

1. AQUELA TERRA DE MISTÉRIOS E IGREJAS93

Jorge Amado, no final dos anos 60, fez de tudo para que o seu melhor amigo, Dorival Caymmi, voltasse para a “cidade de São Salvador”94. A capital baiana talvez fosse o lugar mais importante do mundo para esse escritor tão peculiar.

91 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D.CAYMMI, 1972. 92 Gilberto Passos Gil MOREIRA (Gilberto GIL) e Dinahir Tostes CAYMMI (Nana CAYMMI), Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará (LP). WEA, 1991, lado A, faixa 4. 93 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 94 Dorival Caymmi termina uma de suas canções, “São Salvador”, reiterando de maneira enfática essa expressão de uso corrente na capital baiana. O refrão da música é justamente: “Ô, Bahia, ai ai! / Bahia cidade de São Salvador”. Cf. D. CAYMMI, São Salvador, lançada – segundo Jairo SEVERIANO, Rodrigo FAOUR, Sílvio J. RIBEIRO e Stella CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi in S. CAYMMI, Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 595 – pelo próprio compositor em 1960 num 78 rpm da Odeon.

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Ele era, e continua sendo até hoje, o romancista mais conhecido, mais vendido e mais traduzido do Brasil. Filho de um fazendeiro não muito rico95, Jorge Leal Amado de Farias nasceu em 1912 na zona rural de Itabuna ou de Ilhéus. O “menino grapiúna” passou a infância nesses dois municípios do Sul da Bahia. A maior parte da vida daquele jovem bem-educado e extremamente persuasivo, porém, aconteceria longe dali. Jorge correu o mundo, afinal. Ele viveu em Salvador, no Rio de Janeiro, em , em Praga e até no Sudão. As “ruas e os mistérios”96 da capital baiana, no entanto, não sairiam de sua vida diária, de sua atuação pública e da sua prosa. A partir dos anos 50, pelo menos, e até o final da sua vida o escritor passou a viver intensamente o cotidiano “denso e oleoso”97 de Salvador frequentando seus candomblés, seus bares, eventos universitários, ateliês de artistas conhecidos e, de quebra, os casarões dos políticos baianos. Jorge Amado estabeleceu, ao longo do tempo, alianças importantes em cada um desses espaços do antigo burgo colonial virando, simultaneamente, um participante ativo e um dos principais intérpretes das disputas locais, dos inúmeros ebós98 deixados nas encruzilhadas dessa cidade tão diversa e inusitada. Depois dos anos 60 o endereço do romancista, de sua mulher e de seus dois filhos não mudaria mais, apesar das diversas temporadas que eles passariam juntos em Paris. A família Amado viveu, até a morte de Jorge, na Rua Alagoinhas, número 33, no bairro do Rio

95 Esses e outros dados biográficos de Jorge Amado podem ser encontrados, primariamente, em alguns de seus próprios livros – cf. AMADO, O Menino Grapiúna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1981) e Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. São Paulo: Cia. das Letras, 2012 (1992) – e nas coleções de memórias de sua segunda esposa, cf., por exemplo, Zélia GATTAI, A Casa do Rio Vermelho. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. Entre as fontes secundárias destacam-se, além dos trabalhos acadêmicos sobre o autor – cf., por exemplo, Luís Gustavo F. ROSSI, As Cores da Revolução: a literatura de Jorge Amado nos anos 30. São Paulo: Annablume, 2009 e Ilana S. GOLDSTEIN, O Brasil Bet- Seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo: SENAC, 2010 – uma infinidade de sites, notícias e publicações comemorativas, é o caso de José de J. BARRETO, Carybé, Verger & Jorge: obás da Bahia. Salvador: Fundação Pierre Verger/Solisluna, 2012. 96 cf. AMADO, Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios Rio de Janeiro: Record, 1986. Esse livro, lançado originalmente em 1944, foi revisto e ampliado nas versões posteriores. A edição de 1976 em especial envolveu, praticamente, uma remodelação total do conteúdo da obra. Na primeira página do exemplar consultado, que data de 1986, Jorge Amado resume, finalmente, o trabalho de criação contínua do seu guia: “No espaço de tempo decorrido desde aquela primeira edição ilustrada com magníficas gravuras de Manuel Martins, este guia teve algumas versões, necessárias devido ao crescimento e às modificações ocorridas na cidade, mantendo-se, no entanto, a estrutura fundamental e o espírito do livro. A partir de 1976, as edições foram iluminadas pelos desenhos de Carlos Bastos, belos como a cidade. Aos poucos este guia foi se convertendo numa espécie de enciclopédia da vida baiana...”. Dessa forma, Bahia de Todos-os-Santos acabou se convertendo também numa fonte estratégica e privilegiada, numa espécie de panorama retrospectivo da atuação e das relações que o seu próprio autor desenvolveu com e na cidade do Salvador ao longo do tempo. Exatamente por esse motivo, o livro será citado algumas vezes ao longo do presente capítulo. 97 Id., p.65. 98 Ebó, no idioma litúrgico utilizado no candomblé de nação Ketu, o èdè Yorùbá, é uma locução verbo- nominal que significa literalmente “fazer comer” e, por extensão, “oferecer um sacrifício”. A expressão refere- se, normalmente, às oferendas votivas, mágicas ou propiciatórias “arreadas” ao ar livre pelos fiéis dessa religião. Cf., a respeito, José BENISTE, Dicionário Yorubá-Português. São Paulo: Bertrand Brasil, 2001.

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Vermelho, em Salvador. As cinzas do artista estão, inclusive, enterradas até hoje no jardim dessa casa. Durante a sucessão de suas obras ficcionais a velha cidade da Bahia também ocuparia uma posição extremamente privilegiada, chegando a rivalizar com a própria terra natal do escritor. O romance de estreia de Jorge Amado, “O País do Carnaval”, boa parte das suas obras de juventude e, principalmente, as narrativas picarescas que o transformaram num best seller internacional a partir dos anos 60 envolvem, afinal, descrições detalhadas e recriações exaustivas das entidades religiosas, dos logradouros e dos habitantes de Salvador99. As palavras do próprio escritor, porém, são capazes de resumir e arrematar da melhor forma possível essa questão da escolha da capital baiana como o centro de sua vida pessoal e, consequentemente, de sua criação artística:

“Essa é a minha cidade e em todas as muitas cidades que andei, eu a revi num detalhe de beleza. Nenhuma assim, tão densa e oleosa. Nenhuma assim, para viver. Nela quero morrer, quando chegar o dia. Para sentir a brisa que vem do mar, ouvir à noite os atabaques e as canções dos marinheiros.”100

O seu bem-humorado compadre Dorival, para completar o “mistério e [a] densa beleza”101 do lugar, havia nascido ali em 30 de abril de 1914 e agora, cinquenta e quatro anos depois, Jorge estava prestes a realizar o antigo sonho de trazê-lo de volta. Embora este anseio não fosse exatamente individual e envolvesse uma parte expressiva dos circuitos sociais, artísticos, religiosos e políticos locais, conforme veremos ao longo deste capítulo, é inegável o protagonismo de Jorge Amado nas idas e vindas daquele enredo em particular. O retorno de Caymmi, o talentoso filho pródigo, à cidade da Bahia não era um projeto recente, mas foi articulado cuidadosamente e efetivado, afinal, pelo romancista.

99 cf. AMADO, O País do Carnaval. São Paulo: Cia. das Letras, 2011 (1931); Suor, idem, 2011 (1934); Jubiabá, idem, 2008 (1935); Mar Morto, idem, 2008 (1936); Bahia de Todos-os-Santos, 1986 (1944); A Morte e a Morte de Quicas Berro d´Água, idem, 2008 (1959); Os Velhos Marinheiros ou o Capitão-de-Longo-Curso, idem, 2009 (1961); Os Pastores da Noite, idem, 2009 (1964); Dona Flor e seus Dois Maridos, idem, 2008 (1966); Tenda dos Milagres, idem, 2008 (1969); Teresa Batista Cansada de Guerra, idem, 2008 (1972) e O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria, idem, 2010 (1988). 100 cf. AMADO, Bahia de Todos-os-Santos, p. 65. Antes de incluir esse texto numa das versões do guia de ruas e mistérios Jorge Amado o havia publicado, com pouquíssimas alterações, na revista Manchete, como uma “reportagem poética”. O mesmo trabalho, “ilustrado musicalmente” pelo violão de Caymmi, pode ser ouvido ainda em AMADO, Canto de Amor à Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Canto de Amor à Bahia e Quatro Acalantos de “Gabriela, Cravo e Canela” (LP). Rio de Janeiro: Festa, c. 1958, lado A. 101 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, c.1967, p. 7.

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A partir de 1968 os capítulos dessa novela – na qual as pressões da vida pública e as motivações privadas pareciam estar, o tempo todo, associadas inextricavelmente – sucederam- se numa rapidez espantosa e a trama toda ganhou consistência. Stella, a geniosa mulher do cantor e compositor Dorival Caymmi, havia finalmente aceitado os convites insistentes de Jorge102 naquele ano. Essa aprovação, que deve ter sido um teste dificílimo para a conhecida lábia do seu compadre escritor, era tudo o que faltava. A família Caymmi se renderia, em breve, aos misteriosos encantos da boa terra103.

Intermezzo UMA CANÇÃO QUE SE PAREÇA COM A MINHA STELLA104

Adelaide Tostes – a moça havia adotado o nome artístico de ´Stella Maris´ havia pouco tempo105 – cantava no auditório da Rádio Nacional no dia em que Dorival a conheceu, em 1938. Ela, uma adolescente de apenas 16 anos, logo desistiria da sua própria carreira para virar dona de casa unindo-se àquele talentoso baiano recém-chegado à cidade do Rio. Caymmi não pôde interferir, entretanto, na decisão de sua noiva:

“O maior fã que eu tive foi Caymmi. Dorival não queria que eu deixasse de cantar, sem sacanagem. Tanto que nas festas ele fazia questão que eu cantasse e os amigos também. Ele sempre me acompanhava no violão e cantávamos juntos...” 106

102 cf., a respeito, S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, pp.419-51. Dados complementares foram obtidos através de entrevistas realizadas com alguns parentes do compositor: os filhos Dorival Tostes Caymmi, 02/05/2012 e Danilo Tostes Caymmi, 23/05/2012; e a sua neta, Stella Aponte Caymmi, 16/06/2012. 103 cf. Manuel BANDEIRA, Crônicas da Província do Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2006 (1937). Expressão de uso corrente na primeira metade do século XX, hoje em relativo desuso. Referia-se à cidade da Bahia, Salvador. Cf., por exemplo, a abertura da crônica “Impressões da Bahia” (pp.33-45) – “Nunca vi cidade tão caracteristicamente brasileira como a “boa terra”. Boa terra! É isso mesmo.” (p.33) – que Manuel Bandeira publicou originalmente em O Jornal, por acaso no mesmo dia em que Dorival completava 13 anos de idade, 30/04/1927 (p.268). 104 cf. D. CAYMMI e José Eugênio SOARES (Jô SOARES), Entrevista: Caymmi no sofá do Jô (vídeo). São Paulo: Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), 1997 in http://conversadebalcao.com.br/entrev ista-caymmi- no-sofa-do-jo/. Última visita feita em 10/04/2016. A citação completa é: “Olha aqui, o pecado é eu não ter qualidades artísticas, talento pra fazer uma canção que se pareça com a minha Stella! Stella você está me assistindo, você sabe...” 105 Essa informação, assim como os próximos dados a respeito da juventude de Stella, foram retirados de S. CAYMMI, O Que é Que a Baiana Tem?: Dorival Caymmi na Era do Rádio, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 149-56. 106 Id., p. 154.

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A firmeza que ela demonstrou naquele momento – ao terminar sua carreira de maneira inesperada, um mês antes de casar com Dorival – talvez revele mais sobre a sua personalidade do que a própria escolha de retirar-se voluntariamente da vida pública. Abrir mão de ambições profissionais e artísticas para dedicar-se integralmente à preocupações domésticas certamente não era uma decisão incomum para uma moça dos anos 30. A obstinação e a impulsividade que acompanhariam a jovem Stella daí em diante, porém, nunca corroboraram os padrões comportamentais vigentes. Com o passar do tempo ela se converteria numa espécie de matriarca da família Caymmi. O casamento de Stella e Dorival ocorreu no dia 30 de abril de 1940. O baiano completava 26 anos naquela data e, certamente, não conhecia ainda todas as artimanhas do seu ofício de músico profissional107. Ela passaria a decifrá-las junto com o marido, organizando rigorosamente sua agenda, suas finanças e até seus expedientes criativos. Sem o aval da esposa, portanto, Caymmi jamais teria voltado para Salvador no final da década de 1960. “Stella era um dengo que metia medo”108... o compositor diria, em síntese, depois de uns quarenta e tantos anos de vida conjugal 109. Por conta da escassez de registros diretos que caracteriza a intimidade construída no âmbito privado, Stella não aparecerá tanto quanto deveria no decorrer desse trabalho. É impossível, entretanto, conceber a biografia, as múltiplas atividades e, inclusive, a obra de Caymmi sem a sua influência e a sua presença constantes. O casal esteve junto até mesmo nas roças de candomblé – a partir dos anos 70 e da ida para Salvador – dividindo, portanto, práticas rituais comunitárias, crenças específicas e uma série de obrigações místicas particulares. O limitado contexto doméstico, para o qual essa mulher dedicada e impetuosa se voltou inteiramente, só pôde ser exteriorizado, afinal, via determinados fragmentos da realidade – fotografias, depoimentos, documentos institucionais e memórias recuperadas –,

107 cf., a respeito, S. CAYMMI, O Que é Que a Baiana Tem?, 2013, pp. 147-80. 108 cf. Marília BARBOSA e Vera de ALENCAR, Caymmi: som, imagem e magia. Rio de Janeiro/Salvador: Fundação Emílio Odebrecht/Sargaço Produções Artísticas, 1985, p.83. 109 Stella abdicou de sua carreira, mas não de seu nome artístico. Embora a esposa de Caymmi tivesse mantido seu nome de batismo, ´Adelaide Tostes´, em sua documentação pessoal, ela nunca mais se apresentaria desse jeito. Stella preferiu manter, inclusive dentro de casa, a lembrança dos seus tempos de cantora através do uso constante de seu antigo pseudônimo. Cf., a respeito de sua biografia e, especialmente, dos 60 anos que viveu ao lado de Dorival, S. CAYMMI, 2001, passim e as entrevistas feitas com: Dorival Tostes Caymmi; Danilo Caymmi; sua neta Stella Caymmi; Dinahir Caymmi, 16/06/2012; e Nancy Carybé, 31/05/2013. O livro “Intérpretes da Metrópole” de Heloísa Pontes traz uma discussão inspiradora sobre a questão dos nomes artísticos e de suas implicações de gênero, cf. Heloísa PONTES, Intérpretes da Metrópole: história social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual, 1940-1968. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2010, passim.

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que foram aparentemente muito bem escolhidos, controlados e transformados em narrativas anedóticas ou episódicas ao longo dos anos. Esses conteúdos esparsos tornaram-se, com o tempo, verdadeiros sedimentos recontáveis de uma experiência. Contudo, a protagonista dessas histórias todas é, paradoxalmente, muito pouco visível no interior de cada uma delas. Dito isto, não deixa de ser interessante conferir pelo menos duas opiniões muito semelhantes sobre o impacto de Stella na vida do “enternecido poeta dos pescadores”110. Ambas foram comunicadas às três biógrafas do compositor111por amigos que conviveram intimamente, e durante muito tempo, com a família Caymmi. O jornalista e compositor Fernando Lobo – um dos fiéis companheiros de profissão e de botequim que Dorival teve no Rio de Janeiro, desde os anos 40 – descreveu assim o relacionamento do casal:

“Stela não se separou de Caymmi, era o destino dela. A vida do Caymmi sem Stella seria muito engraçada: um vagabundo que tocava violão no meio da rua. Stella é aquela mulher que ele ganhava 50 mil réis e ela roubava 35. Grande mulher, minha comadre Stella. Ela, que é uma pessoa desorganizada, organizou o Caymmi. Stella a vida toda mandou nele. Ele saía da linha, teimoso, e ela puxava. No carinho ou na porrada. Ela manda nele, sim, graças a Deus.”112

e finalmente Jorge Amado, uns quarenta anos depois da negociação que fez seu compadre voltar à Salvador, explicou da seguinte maneira a relação de parceria e complementariedade que teria existido entre eles:

“Ele não teria feito nem um terço do que fez, se não tivesse tido ao lado dele Stella Maris, que o sustentou, que lhe deu os pés na terra. Porque ele é um sonhador, está no ar, ele é um ser muito especial, muito extraordinário, preguiçoso, vive da amizade, da ternura. E ela é que amarrou Caymmi.”113

2. SALVADOR, 09 DE MARÇO DE 1968

110 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.9. 111 cf. BARBOSA e ALENCAR, Caymmi: som, imagem e magia, 1985 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001. 112 cf. BARBOSA e ALENCAR, Caymmi: som, imagem e magia, 1985, p.77. 113 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 182.

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Jorge Amado uniu-se à alguns dos políticos e intelectuais baianos mais influentes da década de 1960 – dentre eles Antônio Celestino, Wilson Lins e Odorico Tavares – para acelerar o retorno de Caymmi. Através dessas alianças o escritor conseguiu ir muito além do convencimento familiar e das negociações com sua comadre Stella. No início de 1968, por exemplo, a municipalidade de Salvador aprovaria a doação de uma casa para instalar o “patriarca da música popular”114 brasileira. Odorico, um pernambucano que havia chegado na cidade do Salvador em 1942, com 30 anos de idade, também parecia ter acendido velas para todos os santos nas encruzilhadas da sociedade baiana115. Conhecido jornalista, empresário e colecionador de arte, além de ser o braço direito de Assis Chateaubriand no estado da Bahia – e, consequentemente, o diretor dos principais meios de comunicação de lá – o todo-poderoso Tavares foi, ainda, um dos responsáveis pela divulgação da arte moderna em Salvador, na década de 40, pelo chamado “renascimento baiano” alguns anos depois e pela inserção de jovens artistas na sociedade local. O pintor argentino Hector Paride Bernabó, mais conhecido como Carybé, foi, inclusive, um de seus protegidos no início dos anos 50116. O apoio fundamental desse empresário tão influente deve ter ajudado a convencer o então governador da Bahia, Luís Vianna Filho e a proposta do grupo foi votada logo, no dia 9 de março, na Câmara dos Vereadores de Salvador. De qualquer forma, a volta do compositor parece ter assumido uma importância inegável e muitos significados superpostos para os aliados de Jorge Amado naquela empreitada. No dia em que a doação da casa seria aprovada o político e escritor Wilson Lins fez um último pronunciamento na Câmara, defendendo a posição do grupo. Seu discurso continha bons argumentos e passagens contundentes. Dorival Caymmi, que morava no Rio de Janeiro desde 1938, além de representar a cultura da Bahia dentro e fora do país, deveria viver entre os baianos. Lins fazia algumas

114 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D.CAYMMI, 1972. 115 cf., a respeito dos dados biográficos de Odorico Tavares e, especialmente, da atuação dele enquanto mecenas, incentivador e colecionador de arte, Carlos Eduardo da ROCHA, Codofredo FILHO, Wilson LINS e Renato Berbert de CASTRO, Odorico Tavares. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 1981; Luís G. Pontes TAVARES (org.), Apontamentos Para a História da Imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia/Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2005; Emanoel ARAÚJO, A Arte Brasileira da coleção Odorico Tavares (catálogo). Salvador: Museu de Arte da Bahia, 1982 e ARAÚJO, A Minha Casa Baiana, Sonhos e Desejos de um Colecionador (catálogo). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005. 116 A entrevista realizada com Nancy Carybé, viúva de Hector Paride Bernabó, em maio de 2013 dá uma ideia da influência decisiva que Odorico Tavares exerceu, pessoal e profissionalmente, na vida do pintor. O nome do empresário foi citado diversas vezes naquela ocasião.

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ligações entre “o gênio da raça”117 e outros artistas nativos, sugerindo uma espécie de árvore genealógica da criatividade local, e reivindicando para o homenageado um lugar definitivo nesse cânone específico. Em alguns momentos do seu pronunciamento ele dava a entender, inclusive, que Dorival ainda não havia adquirido o reconhecimento merecido em sua própria terra. A maioria das ideias do discurso encontra-se sintetizada no trecho a seguir:

“Já nos envergonha bastante o fato de os ossos de Castro Alves terem levado mais de meio século sem túmulo. Não esperemos que Caymmi morra para lhe darmos a última morada, mas tratemos de lhe dar agora a casa onde ele viva sentindo-se cada vez mais orgulhoso de ter nascido entre nós.118”

As últimas palavras do parágrafo citado são especialmente significativas. O orador reservava indiretamente para si mesmo, para o seu grupo e para os baianos, de um modo geral, um lugar de honra naquela sessão da Câmara Municipal de Salvador. Caymmi deveria, afinal, ter orgulho “de ter nascido” entre eles. Nessa curiosa, e sutil, inversão de papéis a intelectualidade, o poder público e o território da Bahia seriam uma espécie de fons et origo da vida e da obra do compositor. Eles seriam capazes de compreender em todos os sentidos possíveis119 aquele artista e suas criações. A proposta de doação da casa previa, consequentemente, um alto rendimento simbólico para todos os vereadores presentes. Wilson Lins havia colocado um espelho diante da sua audiência. Aquela homenagem afinal refletia e devolvia, beneficiando à comunidade política e intelectual da terra, o reconhecimento público atribuído pelo grupo de Jorge à Dorival Caymmi.

3. A PEDRA DA SEREIA

Stella e Dorival fizeram, ao longo do ano de 1969, a mudança para Salvador. Em 1970 o casal passou a viver na capital baiana. Eles estabeleceram-se, junto com alguns poucos

117 cf. Caetano VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia, 1996. 118 Wilson LINS, Discurso proferido na Câmara Municipal de Salvador, 09/03/1968 apud S. CAYMMI, 2001, p. 427. 119 O verbo compreender pode assumir, de acordo com o dicionário online Priberam e.g., os significados seguintes: 1. abranger; 2. encerrar; 3. conter; 4. entender; 5. alcançar com a inteligência; 6. perceber; 7. notar; 8. depreender; 9. saber apreciar. O contexto político e argumentativo citado acima envolvia cada uma dessas nuances. Cf. http://www.priberam.pt/dlpo/compreender, última visita feita em 01/08/2015.

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familiares, numa casa escolhida pelo compositor120. O imóvel de arquitetura eclética havia sido construído nos anos 30, tinha dois pisos e linhas simples. Depois de alguns contratempos ele havia sido adquirido pela municipalidade e doado, finalmente, para o artista. A escolha do novo endereço por Dorival é fácil de entender. Jorge Amado morava perto, “no [mesmo] território livre do Rio Vermelho, onde habitam artistas, escritores e Iemanjá”121. A distância entre as casas dos dois não passava de 1 quilômetro e meio. O pequeno sobrado de Caymmi, que ele passaria logo a chamar de “A Pedra da Sereia”, devia lembrá-lo, também, dos velhos tempos, da sua infância e adolescência passadas na Bahia. A fachada do imóvel não tinha sido alterada desde 1934, ano de sua construção. Dorival, por sua vez, deixou a cidade da Bahia e foi “pro Rio morar”122 no final dos anos 30. Ele havia nascido em Salvador, na Capelinha de São Caetano – um prolongamento empobrecido da Cidade Alta que costuma ser identificado, erroneamente, como um dos subúrbios da Cidade Baixa123 – em 30 de abril de 1914124. O senhor Durval Caymmi, pai do compositor e de seus outros seis irmãos, conseguiria alugar um sobrado, com os seus modestos vencimentos, uns dez anos depois. A família mudou-se primeiro para a Saúde e depois para Ladeira do Carmo.

120 As informações específicas sobre essa casa podem ser cf. em S. CAYMMI, 2001, pp. 427-51. É interessante ressaltar que, neste caso, o livro de Stella Caymmi pode ser considerado também uma fonte primária. A autora, então com 8 anos de idade, foi com os avós para Salvador, tendo vivido com eles no Rio Vermelho e, mais tarde, em Itapuã. 121 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D.CAYMMI, 1972. 122 cf. D. CAYMMI, Peguei um Ita no Norte, canção lançada – de acordo com a Discografia Essencial, p. 594 – pelo próprio compositor em 1945 num 78 rpm da Odeon. 123 A cidade do Salvador divide-se em duas, a Cidade Alta e a Cidade Baixa, desde o século XVI. A construção do burgo fortificado se deu, a partir de 1545, no alto de um maciço rochoso que estende-se em direção ao Oceano Atlântico e que recebeu o nome de Cidade Alta. O porto da primeira capital da América Portuguesa foi transferido no início do século XVII da Barra para o antigo Bairro da Praia, que ficava muitos metros abaixo do centro administrativo e religioso de então, hoje o bairro do Pelourinho. A vizinhança do porto e da igreja da Conceição da Praia foi aterrada e Salvador ganhou uma faixa de terra que avançava do burgo até a Península de Itapagipe, passando pela velha Ribeira das Naus, hoje apenas Ribeira. A área, que logo foi chamada de Cidade Baixa, é muito extensa, compreendendo diversos bairros. Essa macrorregião sempre foi considerada periférica em relação à Cidade Alta e concentra, além dos equipamentos urbanos mais pesados do município – indústrias, comércio de grande porte, armazéns, o porto e as centrais de abastecimento urbano – seus maiores índices de pobreza. Cf., a respeito, Pedro de A. VASCONCELOS, Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus: Editus, 2002, passim. 124 Os dados disponíveis sobre a infância do compositor são, de um modo geral, bastante específicos e podem ser encontrados nas suas próprias entrevistas – cf., por exemplo, D. CAYMMI e João MÁXIMO (apresentação de Madeleine ALVES), Caymmi por Ele Mesmo. Rádio Cultura AM, 1994 (retransmitido em 31/05/2014 às 10h), disponível em http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi -por-ele-mesmo, última visita feita em 02/08/2015 – e nas suas duas biografias, BARBOSA e ALENCAR, Caymmi, 1985 e S.CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001. A entrevista feita com sua irmã Dinahir Caymmi foi utilizada para complementar esse conjunto de informações.

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Durval trabalhava como funcionário da alfândega durante o dia, mas à noite era, conforme o linguajar da época, um verdadeiro pândego, um chibante sedutor125. Essa elegância toda, além de ser uma fonte constante de desavenças entre ele e sua esposa, Aurelina Cândida Soares – que terminaria finalmente deixando o marido pra trás em 1927, numa decisão muito inusitada para a época126 –, talvez fosse um jeito de lidar com um problema, com uma barreira social praticamente intransponível. Durval era, afinal de contas, um homem de côr. Ele havia nascido em 1878 e até os seus dez anos de idade o trabalho escravo de pretos, pardos, crioulos e cabras existia formalmente na cidade. E depois de poucos anos a situação de estigmatização e segregação racial não devia ter mudado tanto na sociedade baiana. É certo que, se ele tivesse mais dinheiro, estudo ou influência, esse “problema” poderia ser contornável, mas esse não era o seu caso127. Durval, além do mais, tinha outra espécie de mancha de origem também associada à cor. Seus avós paternos, imigrantes italianos de poucas posses, nunca aceitaram o casamento do filho Henrique Caymmi com a mulata Saloméa de Souza. A tentativa que Durval fez de superar a ilegitimidade da união de seus pais e a sua própria aparência foi concretizada, porém, de um jeito peculiar, que hoje poderia ser considerado incoerente. O pai de Dorival Caymmi não perdia um samba e um candomblé. A família de Ioiô, era assim que todos se referiam à Durval fora do porto, foi para o Carmo, na Cidade Alta, em 1925. O boêmio chefe-de-família não deixaria mais a região. Apesar dessa ascensão geográfica, Ioiô ainda tinha uma série de problemas financeiros e certas limitações sociais. Seu filho Dorival, por exemplo, teve que abandonar os estudos no início da adolescência. Jorge Amado, no entanto, poderia dizer a respeito da educação do seu compadre Caymmi o mesmo que ele afirmava sobre a sua própria juventude. O escritor lembraria por exemplo, numa de suas entrevistas, o seguinte: “Foi em 1926, aos catorze anos, que comecei a trabalhar. E viver intensamente a vida popular da Bahia.128” Jorge comentaria em seguida que

125 Os valentões, as pessoas elegantes ao extremo, amigas do luxo e da ostentação e todos os exibidos podiam ser chamados de chibantes naquela época. Para uma definição de pândego cf. o Intermezzo das próximas paginas. As duas palavras podem ser encontradas facilmente em qualquer dicionário da língua portuguesa, cf., por exemplo, o dicionário online Priberam: http://www.priberam.pt/ dlpo/. 126 cf., a respeito, especialmente S. CAYMMI, 2001, pp. 61-6, além do conjunto de fontes citado acima na nota de n. 124. 127 Essa relativa mobilidade sócio-racial (que obviamente convivia com o racismo científico, com a segregação socioeconômica e com uma infinidade de práticas discriminatórias) parece ter sido uma especificidade da Bahia de outrora. O tema será abordado a seguir, no Intermezzo dos “Pândegos da África”, e posteriormente através da discussão sobre baianidade que será feita a partir do oitavo item desse texto. 128 AMADO e Alice RAILLARD, Conversas com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, c. 1991 (1990), p. 33.

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esse período em que viveu “numa ruela vizinha ao Largo do Pelourinho, no coração da velha [cidade do Salvador]”129 – ou seja, a menos de 150 metros do Carmo e do sobrado que pertenceu à família Caymmi – o marcou profundamente. O romancista reputaria essa “vida popular” e o “território do Pelourinho”130 posteriormente como “suas universidades”131. É claro que, no caso de Dorival, essa aproximação entre os saberes da rua e o conhecimento acadêmico teria sido mais coerente. Jorge Amado, afinal, frequentou também outros estabelecimentos de ensino formal como internatos bem conceituados e a prestigiosa Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. A maioria de suas criações literárias, no entanto, seria ambientada permanentemente no “coração da Velha Bahia”132. Os de Caymmi se situariam igualmente neste mesmo cenário de sobrados e vielas. Ainda que a versão amadiana dos fatos (Jorge afirmava que os dois haviam se conhecido em Salvador, conforme a citação abaixo) não fosse inteiramente verdadeira133, mesmo tendo sido praticamente vizinhos, de certa forma as declarações do romancista nesse sentido tinham alguma validade sociológica:

“Não sei, não me recordo quando e onde conheci Dorival Caymmi, quando nos apertamos as mãos pela primeira vez e pela primeira vez rimos juntos nossa alegria. Foi, com certeza, na Bahia, antes da partida do nosso Ita, levando-nos – ao aprendiz de compositor e ao aprendiz de escritor – para tentar exercer nossos ofícios no Rio. Naquele tempo quem quisesse seu lugar ao sol tinha de começar pelo sacrifício de sair de sua terra. Para nós, a terra da Bahia onde éramos livres adolescentes nas ruas e nas praias.134” (grifos meus)

129 Id., ibid. 130 Expressão retirada das páginas iniciais de AMADO, Tenda dos Milagres, 2008. A citação completa é: “Aqui, no território do Pelourinho, nessa universidade livre, na criação do povo nasce a arte.” 131 AMADO e RAILLARD, Conversas com Jorge Amado, c. 1991, p. 33. 132 Id., ibid. 133 Dorival Caymmi afirmava ter conhecido Jorge Amado, afinal, “já adulto, em 1939”, no Rio, “apresentados por uns estudantes na Avenida Rio Branco, entre o Café Nice e o Café Belas Artes. Ele já tinha escrito O País do Carnaval e ficamos amigos desde então.” A precisão aparente dessa fala do compositor é contrabalançada, porém, pela cronologia literária de Jorge. O País do Carnaval, lançado em 1931, havia sido, enfim, apenas o primeiro livro do escritor. Entre esse romance de estreia e o possível encontro dos dois amigos na Avenida Rio Branco ele já havia criado obras muito mais populares e reconhecidas pela crítica tais como Jubiabá (1935) e Capitães da Areia (1937). O depoimento de Caymmi encontra-se em Beatriz Coelho SILVA e D. CAYMMI, Caymmi Relembra Amizade com Jorge Amado. São Paulo: Jornal do Estado de São Paulo, edição de 07/10/2001, disponível in http://cultura.e stadao.com.br/noticias/geral,caymmi-relembra-amizade-com-jorge- amado,20010807p3648, última visita feita em 30/10/2015. 134 cf. AMADO, Vinte Anos Depois in D. CAYMMI e AMADO, c.1967, p.13.

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Os dois amigos talvez se identificassem tanto um com o outro, afinal, por terem sido formados na mesma “universidade” das ruas do Pelourinho, numa mesma época. Ambos mantiveram como referência, nas criações artísticas de sua vida adulta, esse mundo específico da convivência íntima, da miséria e das relações raciais ambíguas que caracterizavam a sociedade baiana do início do século XX. Embora o romancista se empobrecesse e enegrecesse ao narrar o seu passado, talvez porque ele se identificasse com as suas personagens e seus antigos vizinhos, a recriação que Dorival Caymmi faria das scenas típicas bahianas135 também era, obviamente, mediada por contatos, memórias e experiências futuras. Esse mundo típico da Bahia de outrora parece ter atraído, por sua vez, duas outras figuras que se tornariam muito importantes na vida desses dois compadres: Carybé e Verger. Ambos diriam, várias décadas depois – e nestas lembranças revividas à posteriori a veracidade não é exatamente o elemento mais significativo – que só haviam aportado na Bahia de Todos os Santos, coincidentemente, por causa da leitura do romance “Jubiabá”, de Jorge Amado136. Essa velha Bahia, que formou ou que está presente nas obras desses quatro artistas, precisa ser descrita com mais detalhes, portanto, nas próximas páginas. As trajetórias de Seu Durval Caymmi, de mãe Aninha, “figura modelar do candomblé baiano d[aquele] tempo”137, e de uma personagem da ficção amadiana deverão guiar esse détour histórico.

4. PARDO, PAISANO E POBRE

Durval Caymmi nasceu em 1878, conforme indicado acima, e morreu em 1964. Ele era muito parecido com Pedro Archanjo, um dos personagens mais importantes da obra de Jorge Amado. O protagonista do romance “Tenda dos Milagres”, “pardo, paisano e pobre – tirado a sabichão e a porreta” 138, havia sido criado durante a mudança do seu compadre Dorival para Salvador e parece ter sido bastante significativo para o escritor. Jorge diria por

135 Esse é o rótulo genérico que os sambas de Dorival Caymmi receberam no Rio de Janeiro das décadas de 30 e 40. Essas denominações eram concebidas, em geral, pelos quadros da indústria fonográfica do período e não passavam necessariamente pela aprovação dos compositores. O primeiro 78 rpm gravado pelo músico baiano e por em 1939 – contendo as músicas O que é que Bahiana Tem? (lado A) e A Preta do Acarajé (lado B) – já trazia essa classificação impressa em sua capa. O disco em questão foi o primeiro êxito da carreira de Caymmi e talvez seja a gravação mais estudada de toda a música popular brasileira. Cf., a respeito, S. CAYMMI, O Que é Que a Baiana Tem?, 2013 e Walter GARCIA, Melancolias, Mercadorias: Dorival Caymmi, , o pregão de rua e a canção popular-comercial no Brasil. Cotia: Ateliê Editorial, 2013. 136 cf., a respeito, José Barreto de JESUS, Carybé, Verger & Jorge: obás da Bahia. Salvador: Fundação Pierre Verger / Solisluna., 2012. 137 Vivaldo da Costa LIMA, O Candomblé da Bahia na Década de Trinta in LIMA, Lessé Orixá: nos pés do santo. Salvador: Corrupio, 2010, p. 194. 138 AMADO, Tenda dos Milagres, 2008.

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exemplo, duas décadas depois do lançamento do livro, “a meu ver, o personagem mais completo de toda minha obra é Pedro Archanjo”139. A narrativa, que foi editada em 1969 pela Livraria Martins de São Paulo com ilustrações de Carybé, é parcialmente ambientada na Bahia dos tempos de Ioiô, na virada do século XIX para o XX. De acordo com todas as fontes disponíveis e, especialmente, com os depoimentos de seus familiares Durval Caymmi tinha quase todas as qualidades que fizeram Jorge Amado eleger, justamente, Pedro Archanjo como o personagem mais significativo da sua obra. Ele representava, afinal, um síntese entre a ascensão social de uma certa pequena- burguesia de côr, em geral através do estudo e os saberes não-científicos, as atividades da “universidade livre”140 das ruas e do povo pobre. Entre as noites de boemia dos chibantes mulherengos que transitavam pelo “território do Pelourinho”141 e a respeitabilidade diurna dos trabalhadores honestos da alfândega, da academia ou dos escritórios comerciais. Entre a mestiçagem biológica e cultural da democracia racial e a manutenção, inclusive como arma de luta e contestação, das tradições africanas que formaram a identidade baiana. As histórias de Durval Caymmi, assim como o caráter de Pedro Arcanjo, não são apenas ficções ou criações a posteriori. Essa mobilidade sócio racial e esse comportamento baseado simultaneamente no apagamento de potenciais conflitos entre negros e brancos, na

139 AMADO e RAILLARD, Conversas com Jorge Amado, c. 1991, p. 305. 140 AMADO, Tenda dos Milagres, 2008. 141 Id. ibid. Os bairros que compõem atualmente o Centro Histórico de Salvador – citando novamente o romance de AMADO, “se estende[m] e se ramifica[m] no Tabuão, nas Portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa dos Sapateiros, nos mercados, no Maciel, (....) no Largo da Sé, (...) [e] na Barroquinha” – formavam uma zona de boemia, de meretrício e de comércio popular que contava com pequenos hotéis, quitandas, lojas de artesãos, a exemplo da própria Tenda dos Milagres da narrativa amadiana, e uma infinidade vendedores ambulantes. O Pelourinho concentrava ainda uma quantidade grande de curandeiros e de terreiros de candomblé. Cf., a respeito, Vivaldo da Costa LIMA, Um Boicote de Africanas na Bahia do Século XIX (1987); Festa e Religião no Centro Histórico (1988) e, principalmente, O Candomblé no Centro Histórico (1994) in LIMA, Lessé Orixá, 2010. Com raras exceções é nesse Pelourinho de outrora que estão ambientados os romances soteropolitanos de Jorge AMADO. Depois do tombamento da área pela UNESCO como Patrimônio Mundial em 1985 e, principalmente, das reformas empreendidas na década de 1990 pelo governador do Estado, Antônio Carlos Magalhães, o Centro Histórico de Salvador perdeu a maioria dessas antigas características convertendo-se numa zona preservação museológica e de entretenimento turístico. Cf., acerca da chamada “reabilitação” do Pelourinho, VASCONCELOS, Salvador, 2002 e Antônio RISÉRIO, Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004 (2000). A Ladeira do Carmo, para onde a família de Durval Caymmi se mudou em meados dos anos 20, ficava também naquele velho “território do Pelourinho”. As músicas que o seu filho Dorival viria a lançar nas décadas seguintes podem ser vistas basicamente como reminiscências e recriações dessa zona da cidade. Excetuando-se as chamadas canções praieiras ambientadas em Itapoã e a produção intimista à qual o compositor se dedicaria nos anos 40, o Pelourinho e o Carmo forneceram, muito tempo depois da infância e da juventude de Caymmi, o cenário ideal – das sacadas dos sobrados aos ambulantes brejeiros de Severo do Pão – para as letras dos sambas que ele compôs. Cf., entre outros, os sambas “Adalgisa”, “Severo do Pão” e “Você Já Foi à Bahia”, todos de Dorival CAYMMI e lançados – de acordo com a Discografia Essencial, pp. 579, 601 e 604 – respectivamente, pelo próprio autor e pelo num LP da gravadora , em 1967; pelo compositor, novamente, num LP da EMI de 1987; e pelos Anjos do Inferno em 1941 num 78 rpm da Columbia.

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aquisição de conhecimentos formais e na manutenção dos antigos laços religiosos, de compadrio e de vizinhança teriam, de fato, existido durante a belle époque baiana. As relações entre raça, cor e prestígio social em Salvador parecem ter sido, inclusive, sempre muito complexas e ambivalentes. As fronteiras que teoricamente separavam as categorias jurídico-raciais, durante o período escravista, e, no pós-abolição, os grupos étnicos da cidade – seguindo a terminologia de Fredrik Barth e Abner Cohen142 – eram marcadas cotidianamente por burlas, alianças e mudanças de status trabalhosas, mas até certo ponto negociáveis143. Numa de suas canções, inclusive, o próprio Dorival Caymmi refere-se às ambiguidades raciais de sua terra natal. Ele utiliza esse aspecto da sociedade baiana para retratar, com bom-humor e ironia, a cidade de “São Salvador” que intitula a música. O velho burgo é descrito na letra da composição como “a terra do branco mulato / a terra do preto doutor”. Caymmi parece indicar aliás, neste último verso, duas das estratégias de mobilidade sócio raciais na Bahia do pós-abolição que foram mencionadas acima: o estudo formal e a exibição de conhecimentos eruditos144. A partir das últimas décadas do século XIX, porém, e pelo menos até o início da década de 1930 a sociedade baiana passou por uma série de transformações vertiginosas. A interrupção do tráfico ilegal de escravos; a substituição definitiva da monocultura açucareira pela produção cacaueira no sul do Estado da Bahia e pelo velho concorrente do plantio de cana, o fumo do Recôncavo; o impacto da Lei Áurea; a hegemonia cultural dos nagô entre a população negra da cidade145; a chegada de imigrantes italianos, sírio-libaneses, portugueses e

142 cf. Fredrik BARTH. O Guru, o Iniciador e Outras Variações Antropológicas. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2000 e Abner COHEN. Custom & Politics in Urban África: a study of hausa migrants in Yoruba towns. Berkeley / Los Angeles: University of California Press, 1969. 143 cf., a respeito, um dos estudos clássicos produzidos através do chamado Projeto Unesco, no Brasil de meados do século XX, Thales de AZEVEDO, As Elites de Côr numa Cidade Brasileira: um estudo de ascensão social. Salvador: EDUFBA/EGBA, 1996 (1953) e o recente Luís G. ROSSI, o Intelectual “Feiticeiro”: Édison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil. Campinas: IFCH/UNICAMP (tese de doutorado), 2001, especialmente o seu primeiro capítulo, pp.41-88. 144 Para maiores informações a respeito deste samba cf. a nota n. 94 acima. 145 A cidade do Salvador, o Recôncavo Baiano e alguns outros portos da região Nordeste receberam uma quantidade enorme de escravos clandestinos da África Ocidental, mais especificamente do Golfo da Guiné, após 1830, o ano da proibição do tráfico negreiro transatlântico pelas autoridades brasileiras. Esses cativos todos, advindos de uma mesma área geográfica, linguística e cultural, produziram um impacto sócio demográfico expressivo nesta região do país e especialmente na Bahia, africanizando-a na segunda metade do século XIX. As comunidades oeste-africanas – particularmente o grupo étnico dos nagô do centro-sul da atual Nigéria que encontrava-se no auge do seu poderio político e que trocava milhares de prisioneiros capturados, num ciclo interminável de guerras civis, por armas europeias – conseguiram reproduzir ao redor da Baía de Todos os Santos uma série de práticas agrícolas, religiosas e familiares próprias. Com o tempo os povos nagô e jeje conseguiriam transformar suas línguas, suas crenças e seus costumes funerários em artefatos culturais hegemônicos. Cf., a respeito, RISÉRIO, Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval afrobaiano. Salvador: Corrupio, 1981 e VASCONCELOS, Salvador, 2002, pp. 177-257; Pierre VERGER, Fluxo

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espanhóis; as reformas urbanísticas de Salvador que passaram a empregar várias centenas de trabalhadores pouco qualificados na construção civil e, finalmente, as primeiras experiências de produção industrial na região que seguiram-se à implantação de tecelarias na Península de Itapagipe e à organização fabril da pesca nas grandes armações do litoral atlântico soteropolitano146 alteraram sensivelmente as relações sócio-raciais no cotidiano da população local. As ofertas de emprego atraíram, por exemplo, antigos trabalhadores e escravos rurais para a capital baiana. Os habitantes do Recôncavo, sobretudo, deslocaram-se massivamente para Salvador no fin de siècle. Essa migração de curta distância podia ser encarada simultaneamente como uma das inúmeras causas e como o sintoma mais visível do fim da civilização do açúcar no Estado. As velhas estratégias da mestiçagem e do branqueamento podiam ser exercidas agora de novas maneiras com o afluxo de imigrantes caucasoides– no linguajar dos acadêmicos da época – mas pobres e, em geral, do sexo masculino. As redes de comércio, a monetarização crescente da vida urbana, o auxílio mútuo prestado pelas sociedades religiosas católicas e pelos candomblés e a prática generalizada do compadrio permitiram, ademais, um pequeno acúmulo de capital financeiro por parte dos membros das novas elites de côr147.

Em alguns casos exemplares, inclusive, todos esses elementos, ou pelo menos a maioria deles, parecem ter agido em conjunto e influenciado as trajetórias de certos indivíduos negroides que alcançaram posições de prestígios, tornaram-se conhecidos e mudaram os rumos da história da capital baiana naquela época.

e Refluxo do Tráfico de Escravos Entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 1987 e RISÉRIO, Uma História da Cidade da Bahia, 2004. 146 Entre 1850 e 1888 – ou seja, apenas 50 anos antes de Caymmi conhecer Itapoã – armações de grande porte, com até 144 escravos, foram instaladas ali e nas praias vizinhas do vilarejo, cobrindo toda a região norte da cidade. Elas tinham uma organização fabril e pescava-se em larga escala. As relações de trabalho parecem ter sido caracterizada pela exploração e pela violência extremas. As rebeliões contra os armadores e senhores-de- escravos eram frequentes. A indústria têxtil que instalou-se na zona de Itapagipe tinha características muito diferentes. Ela era formada por pequenas e médias propriedades concentradas, também, numa área suburbana. O tratamento destinado aos trabalhadores destes empreendimentos surgidos imediatamente depois da abolição parece ter sido menos opressivo. Ainda hoje existe nas imediações de Montserrat, por exemplo, um bairro chamado Vila Operária. A Vila foi erguida como um conjunto habitacional para os empregados da fábrica de tecidos Cia. Empório Industrial do Norte do empresário Luiz Tarquínio em 1892. Ela era basicamente uma daquelas experiências que Karl Marx havia ironizado chamando-as de socialismo utópico em meados do século XIX e contava com assistência médica, creche, escola, salão de esportes e armazéns que vendiam gêneros alimentícios subvencionados. Cf., a respeito da indústria têxtil e da Vila Operária, Marilécia Oliveira SANTOS, A Trouxa de D. Izaura: o viver no interior da Vila Operária de Luiz Tarquínio na cidade de Salvador – BA in Mosaico, Cpdoc/FGV, edição n. 6, ano IV. A escravidão e as revoltas de pescadores em Itapuã são descritas no clássico João José REIS, Rebelião Escrava no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, especialmente pp. 70 e ss. 147 cf. AZEVEDO, As Elites de Côr numa Cidade Brasileira, 1996.

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Esse foi o caso de Eugênia Anna Santos, mais conhecida como mãe Aninha ou ainda Obá Biyi, que viveu entre 1869 e 1938 e que aparecerá algumas vezes daqui para frente, ao longo deste capítulo. Aninha era filha de brasileiros pobres, de côr, que descendiam, ambos, da etnia gurunsi. Entretanto aos 15 anos de idade, mais ou menos, ela fez a cabeça com a ialorixá148 Marcelina da Silva, Obá Tossi149, iniciando-se no candomblé da nação Ketu. A recém-nomeada Obá Biyi passou a fazer parte, consequentemente, do conhecido candomblé da Barroquinha uma das comunidades religiosas mais importantes do povo nagô – que, pelo menos desde a década de 1850, era o grupo étnico hegemônico entre os negros da cidade do Salvador150. Através da conversão religiosa e do parentesco putativo Aninha contou com o apoio dos nagô, mas também deve ter sido auxiliada pela antiga irmandade católica de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos à qual pertencia. Essa irmandade, uma das mais velhas da Bahia e de toda o Brasil colônia, custeava cerimônias funerárias e prestava socorro financeiro aos seus membros, todos eles de côr, desde 1685. Aninha conseguiu – certamente através dessas redes religiosas, que eram também eminentemente políticas, sociais e financeiras – abrir um pequeno estabelecimento comercial na Ladeira da Praça, no Pelourinho. A jovem tinha aprendido bem as estratégias de sobrevivência das pretas minas, nagôs e hauçás “do tempo do imperador” que apregoavam seus quitutes, fármacos e amuletos pelas ruas do velho burgo151. Obá Biyi vendia comida, ervas, certos produtos importados da Guiné que são empregados até hoje por todos aqueles que cultuam os orixás, e ninharias. A lojinha dela ficava, aliás, bem defronte à igreja do Rosário e não distava mais do que 350 metros da residência de sua mãe-de-santo, Obá Tossi. Em 1909, pouco depois de ter aberto a sua venda no centro da cidade, Aninha já tinha conseguido acumular capital suficiente para comprar um terreno barato em São Gonçalo do Retiro. O novo endereço ficava muito longe do Pelourinho. São Gonçalo, na verdade, é até hoje uma zona periférica da capital baiana. Na primeira década do século XX não existia propriamente um bairro ali. A região possuía uma mata

148 cf. Roger BASTIDE, O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (1957) e José BENISTE, Dicionário Yorubá – Português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. O termo ialorixá (iyálòrìṣà) é utilizado para designar uma “mãe (iyá) de santo (òrìṣà)” . 149 A ascensão social e religiosa da escrava sudanesa Marcelina da Silva, Obá Tossi, foi analisada cuidadosamente no artigo Lisa Earl CASTILLO e Luis Nicolau PARÉS, Marcelina da Silva e Seu Mundo: novos dados para uma historiografia do candomblé Ketu. Salvador: Afro-Ásia (revista), n. 36, pp.111-51, 2007. Marcelina, que havia conseguido comprar a sua liberdade em meados dos século XIX, realizou algumas viagens entre a Bahia e a África Ocidental, tornando-se – junto com outros babalaôs, pais e mães de santo daquela época– uma das principais responsáveis pela implantação dos rituais da etnia nagô na cidade do Salvador. 150 cf. a nota n. 145 acima. 151 A locução adverbial que está entre aspas é, na verdade, um verso de Caymmi e faz parte da canção Você Já Foi à Bahia?. cf., a respeito desta música, a nota de n. 141 acima.

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frondosa e uma colina desabitada que encontrava-se rodeada por algumas roças de subsistência e um pequeno número de casas. Obá Biyi fez desse lugar isolado o seu próprio terreiro de candomblé, o Ilê Axé Opô Afonjá. Depois disso Eugenia Anna Santos ficaria conhecida popularmente como Mãe Aninha. Ela assumiria aos poucos a liderança de toda a comunidade nagô da cidade do Salvador – a cidade das mulheres, diga-se de passagem, que seria etnografada por Ruth Landes alguns meses depois da morte de nossa ialorixá152. Aninha seria, ainda, a grande responsável (junto com pais e mães-de-santo como Procópio, Tia Massi, Cotinha, Bernardino e Menininha do Gantois, o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim e o jovem Deoscóredes M. dos Santos) pela reafricanização do candomblé baiano nos anos 20 e 30. Obá Biyi passou a incorporar uma série de intelectuais, políticos e artistas locais lessé orixá, ou seja, no interior da estrutura litúrgica do Opô Afonjá. Esse contato intenso e deliberado com a sociedade envolvente dos brancos e dos bem-nascidos renderia vantagens concretas para os cultos afro-brasileiros – a luta pela garantia da liberdade religiosa no Brasil e pelo fim da repressão policial aos candomblés protagonizada por dois amigos daquela ialorixá, o folclorista Edison Carneiro e o jovem deputado comunista Jorge Amado, por exemplo – além da proteção ao terreiro. Essas ações de Aninha só foram possíveis, tendo sido planejadas ou não, por causa das brechas e das alianças promovidas por essa velha sociedade baiana. Mas, por outro lado, elas também produziriam uma série de mudanças nesse mesmo contexto. A relação entre a permanência e as transformações no interior da comunidade negra na Salvador daqueles tempos, as ambições de Aninha, as estratégias de ascensão social da população baiana de cor e o próprio funcionamento dialético daquela sociedade específica seriam resumidos, de maneira exemplar, por uma frase da própria ialorixá: “eu quero ver é meus filhos com anel de doutor no dedo lessé orixá”. A própria noção dominante de baianidade – que será discutida aqui e ali, ao longo de todo este trabalho – seria modificada e sofreria uma racialização e uma identificação com o mundo dos terreiros a partir das articulações sociais encabeçadas pela velha mãe-de-santo e por seus correligionários nos anos 30. Anos mais tarde, o próprio Dorival Caymmi faria parte de uma de suas inovações, o corpo dos Obás de Xangô do Opô Afonjá, reatualizando o compromisso do povo nagô com os homens de prestígio da sociedade local e nacional.

152 cf. Ruth LANDES, The City of Women. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1994 (1947). Mãe Aninha morreu em janeiro de 1938, enquanto a antropóloga estadunidense chegaria na cidade do Salvador apenas em agosto desse mesmo ano. Ela realizaria um tralho de campo de sete meses nos candomblés e nas ruas da capital baiana.

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Eugenia Anna Santos alcançou, ao longo dos seus 69 anos de vida, um prestígio social incomum, ainda que este tenha sido proporcionado por aquela Bahia peculiar. Para dimensionar a enorme influência e a popularidade que essa mulher obteve basta conferir a descrição que Vivaldo da Costa Lima fez de seu enterro baseado, por sua vez, num obituário que Edison Carneiro publicou na ocasião. Obá Biyi parece ter merecido honras fúnebres dignas de uma rainha. Poucos brancos daquela época, inclusive, devem ter sido enterrados assim:

“O corpo de Aninha foi transferido, à noite, para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Pelourinho, de onde sairia o cortejo fúnebre, no dia seguinte, 4 de janeiro, no começo da tarde, em direção ao cemitério das Quintas dos Lázaros. Edison Carneiro e D. M. dos Santos, Didi, deixaram precisas descrições do sepultamento de Aninha. E O Estado da Bahia, de 5 de janeiro, publicou sobre o mesmo uma ampla matéria, em cinco colunas e com três fotografias. Segundo a mesma, mais de duas mil pessoas compareceram e acompanharam, a pé, o cortejo, até as Quintas; o comércio das imediações da Igreja do Rosário, no Taboão e na Baixa dos Sapateiros, cerrou suas portas em homenagem a Aninha, muito querida e respeitada na área e dela moradora, por longos anos, em casa vizinha à Igreja onde foi velado o seu corpo. Diz ainda a reportagem que “o Cônego Assis Curvelo, na capela do cemitério, fez a encomendação do corpo, seguindo-se o sepultamento em cova recém-aberta”. Falaram, na ocasião, vários oradores, entre esses o Sr. Álvaro McDowell de Oliveira, em nome da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, o escritor Edison Carneiro, além dos representantes do Centro Cruz Santa e da Irmandade do Rosário. Por fim, “terminada a cerimônia, duas marinettis levaram grande número de amigos de Aninha para São Gonçalo, a fim de tomar parte nas cerimônias fúnebres preparatórias do axexê da querida mãe de santo.”153”

Intermezzo OS PÂNDENGOS DA ÁFRICA

153 LIMA, O Candomblé da Bahia na Década de Trinta (1987) in LIMA, 2010, pp. 201-2.

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A descrição “da velha São Salvador” e de sua sociabilidade peculiar pode ser arrematada, depois das exéquias de Aninha, com uma volta às figuras de Seu Durval Caymmi e de Pedro Achanjo. O adjetivo pândego, que os filhos de Ioiô utilizariam154 para descrever o primeiro muitos anos depois daquele período histórico, hoje está em relativo desuso. Porém, esse termo era muito comum naquela Bahia da virada do século XIX para o XX e referia-se alguém muito festeiro, ruidoso, que só pensava em se divertir. Em Salvador desfilavam, então, alguns clubes carnavalescos que saíam pelas ruas da cidade cantando músicas em línguas africanas, particularmente o kikongo, o fongbe e o èdè Yorùbá, dançando e percutindo instrumentos musicais dos candomblés. Para o estudioso Antônio Risério essas novidades teriam sido responsáveis pela primeira africanização do carnaval baiano, para outros autores essa africanização não se restringiu aos festejos públicos nem aos últimos anos do século XIX. Esses clubes pioneiros, de qualquer forma, eram chamados de afoxés. Um deles eram Os Pândegos da África que contava com a participação do renomado Manuel Querino, uma espécie de intelectual orgânico da raça africana na Bahia, conforme o título de um livro seu. As opiniões de então sobre essas associações carnavalescas e sobre a população de côr, de um modo geral, eram conflitantes e ambíguas. “Na interpretação dos jornalistas os Pândegos da África promoviam nas ruas um verdadeiro candomblé”, sendo que essa última palavra assumia uma forte carga pejorativa para a maioria dos cidadãos baianos da época, e “para ele [Manuel Querino], o desfile desse clube era a reprodução de festejos que ainda aconteciam na África”. Essa africanidade toda era um motivo de orgulho, contrariando os paradigmas racistas hegemônicos daquele período, para o escritor e para os outros pândegos afro- baianos155. Manuel Querino, junto com o fidalgo Miguel Santana156 havia sido, aliás, um dos modelos de Jorge para “o personagem mais completo” de toda sua obra, Pedro Archanjo.

154 cf. a nota n. 125 acima. 155 As duas citações encontram-se em Wlamyra R. de ALBUQUERQUE E Walter Fraga FILHO, Uma História do Negro no Brasil. Salvador/Brasília: Centro de Estudos Afro-Orientais e Fundação Cultural Palmares, 2006, p.232. Cf. a respeito, também, a fonte primária Manuel Raimundo QUERINO, Costumes Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938 e o artigo de Wlamyra ALBUQUERQUE, Esperanças de Boaventuras: construções da África e africanismos na Bahia (1887-1910) in Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, nº2, 2002, pp.215-245 156Miguel Arhcanjo Barradas Santiago de Sant´Anna (1896-1974) – também conhecido popularmente pelo título que possuía no terreiro do Opô Afonjá, Obá Aré – foi o principal modelo para a criação do protagonista de Tenda dos Milagres, segundo o próprio Jorge Amado. Cf., a respeito, AMADO e RAILLARD, Conversas com Jorge Amado, c. 1991 e AMADO, Tenda dos Milagres, 2008. Este possível descendente de nobres do subgrupo tapa da etnia nagô era um homem elegantíssimo e mulherengo, além de ser um intelectual autodidata de enorme erudição. Ele teve uma trajetória de ascensão econômica notável, chegando a possuir uma empresa naval, mas terminou a vida na pobreza. Miguel Santana, o famoso “fidalgo”, foi também um defensor

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Ambos teriam sido, assim como o boêmio Durval Caymmi, representantes típicos dessa joie de vivre que caracterizou a ascensão social limitada de certos negros e mestiços baianos da virada do século XIX para o XIX. Embora existissem todos esses recursos de integração, convivência e ascensão social, é evidente que homens reais e fictícios, tais como Seu Durval e todas as outras figuras mencionadas acima, nunca tiveram exatamente as mesmas facilidades que os seus aliados, companheiros e amigos brancos. Até mesmo os membros mais prestigiosos dessas elites de côr – a exemplo do professor Souza Carneiro, pai do folclorista Edison Carneiro – parecem ter sofrido uma série de limitações, impossibilidades e preconceitos. As poucos fotografias que restaram de Durval Caymmi sintetizam este paradoxo. Mesmo nos retratos do final de sua vida o velho chibante se veste com todo o esmero possível, mas, apesar dessa elegância fora de moda, as marcas de seu rosto revelam um desmazelo e uma tristeza inesperados157:

incansável dos candomblés baianos. Jorge diria a seu respeito: “Sabe mais sobre a Bahia do que os doutores e os eruditos do Instituto, os historiadores e os membros da Academia. Sabe por ter vivido. Foi rico e é pobre, teve mando de barcos, hoje possui apenas o respeito do povo – bênção, Obá Aré!” A citação encontra-se em AMADO, Bahia de Todos-os-Santos, 1986. Miguel Santana é, ademais, um dos personagens do romance de AMADO, O Sumiço da Santa, 2010 (1988) e um dos “negros ilustres” citados por Thales de AZEVEDO no clássico As Elites de Côr numa Cidade Brasileira, 1996. 157 Durval Caymmi (fotografia retocada), autor ignorado, década de 1940. Esta imagem, que reproduzido a seguir, foi retirada do Acervo Dorival Caymmi / Instituto Antônio Carlos Jobim (de agora por diante ADC) in www.dorivalcaymmi. com.br. Último acesso em 16/03/2016.

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5. UMA CADEIRA NA ACADEMIA

Dorival, o quarto filho de Ioiô, viveu na freguesia do Carmo, entre farras, serestas e empregos temporários, até o início de 1938. No dia 1° de abril desse ano ele embarcou na terceira classe do navio Itapé. O “môço Caymmi”158 levava pouca coisa além de uma mala que havia custado 500 mil reis do ordenado de Seu Durval e um violão, cuidadosamente embrulhado, para evitar quaisquer problemas com a polícia durante o trajeto. O jovem Caymmi chegou na capital federal nos primeiros meses do Estado Novo de Vargas e no auge do radio broadcasting brasileiro. Era magro, bonito, ainda não tinha completado 24 anos de idade, e ambicionava, somente, um cargo modesto numa redação de jornal ou numa repartição pública. É significativo que ele tenha escolhido, 32 anos depois de sua partida para o Rio, precisamente um sobrado da época em que tinha se afastado da sua terra natal. A “Pedra da

158 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, c.1967

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Sereia” e sua arquitetura fora de moda deviam formar, para Caymmi, uma espécie de imagem do passado, uma recordação seletiva, cuidadosamente reimaginada e presentificada. A rua onde ficava a nova vizinhança até hoje não é asfaltada e suas casas ficam todas de um lado só. O oceano Atlântico fica logo ali, diante das janelas dos moradores, atrás de um pequeno barranco. Caymmi encontrou, naquela praia do Rio Vermelho, o cenário típico duma Bahia de outrora, o território imaginário e idílico que, segundo ele próprio, podia ser visto “das sacadas dos sobrados da velha São Salvador”159. A escolha do imóvel, porém, não agradou muito Stella. A “Pedra da Sereia” precisava de reformas que se arrastaram por muito tempo. O mar e o vento enchiam a casa de areia e os móveis de salitre. Esses problemas foram apenas os primeiros de uma série de contratempos e mal-entendidos que a família Caymmi enfrentaria em Salvador. Para exemplificá-los basta mencionar um acontecimento. Antes de relatá-lo, é muito interessante acessar a história em questão diretamente, através de uma fonte de época. A edição de sexta-feira, 21 de agosto de 1970, do Jornal da Bahia160, além de manter os seus leitores informados de uma situação constrangedora, enfim, trazia sobretudo uma série de nuances e hesitações:

159 Este é um dos versos do samba “Você Já Foi à Bahia?”, cf., a respeito, a nota n.141 acima. 160 cf. Wilson Relembra que a Academia Foi Criada por Negros e Mulatos e D. Stella: esta é a Academia de Caymmi in Jornal da Bahia. Salvador, 21/08/1970. As duas reportagens encontram-se, na íntegra, no ADC in www.dorivalcaymmi.com.br. Último acesso em 20/04/2016. As imagens reproduzidas abaixo também foram retiradas deste site.

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Evidentemente esse embaraço em relação a uma das questões centrais do cotidiano de Salvador e também desta tese – a transformação das experiências raciais e de suas possíveis representações – diz mais coisas sobre a sociedade baiana que lia e escrevia tais notícias nos anos 70 do que sobre os episódios acima relatados. Contudo, os eventos que teriam ocorrido naquela ocasião, e que os jornais de então nos deixam apenas entrever, são extremamente interessantes e reveladores161.

161 cf., a respeito, a série de reportagens sucessivas veiculadas pelo Jornal da Bahia – Caymmi Desiste da Academia (20/08/1970) e Caymi (22/08/1970) – além das duas matérias citadas na nota anterior. Todas essas fontes encontram-se in www.dorivalcaymmi.com.br. Último acesso em 20/04/2016.

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Walter da Silveira, que havia sido o primeiro grande crítico de cinema da Bahia, era também um membro da Academia Baiana de Letras162. Em 1970, ele havia sugerido a candidatura de Dorival Caymmi para ocupar uma cadeira nessa instituição. A proposta agradou, aparentemente, a outros acadêmicos, a exemplo de Jorge Amado e do então presidente da casa, Wilson Lins. Ainda que este fosse um convite feito e ratificado por uma série de amigos e de aliados, sendo que pelo menos dois deles, como já vimos, haviam sido responsáveis diretos pela volta de Dorival à Salvador, aconteceu alguma coisa esquisita no meio do caminho. É impossível saber ao certo se a candidatura de Caymmi foi ou não barrada pelo racismo de alguns dos membros daquela Academia ou por qualquer outro obstáculo institucional. O professor Antônio de Assis Barros, um dono de livraria praticamente desconhecido fora dos círculos literários locais, teria ido à casa da Pedra da Sereia, no entanto, especificamente para fazer uma intriga a respeito desta virtualidade. Ele expôs, provavelmente em primeira mão, o convite feito ao “gênio da raça”163 e, simultaneamente, relatou à família de Dorival que houvera uma reação racista contra a figura do compositor no interior da Academia. Por mais infundado que seja um boato, é obvio que ele não pode surgir da ligação entre elementos incongruentes a priori. A eficácia de um fofoca, afinal, só pode verificar-se através da junção de posições sociais e de circuitos específicos – a Academia Baiana de Letras e um músico popular “de côr”, por exemplo – com a dupla expectativa de que contextos historicamente tão diversos até podem relacionar-se, mas estarão sempre sujeitos a tensões irredutíveis. De qualquer forma, a reação viva e imediata de Stella Caymmi deve ter surpreendido Antônio de Assis Barros. Ele não podia prever que – além de morder a isca e de acreditar, portanto, na possibilidade de haver mesmo uma conexão maldosa entre os dados e os agentes apresentados por seu interlocutor – a esposa de Dorival espalharia, indignada, tanto o boato em questão quanto a identidade do intriguista.

162 cf., a respeito da trajetória Walter da Silveira (1915-1970), José Umberto DIAS (org.), História do Cinema Vista da Província. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), 1978 e, especialmente, DIAS (org.), Walter da Silveira: o eterno e efêmero. Salvador: FUNCEB e Oiti Editora e Produções Culturais, 2006. O lançamento da candidatura de Caymmi nesta agremiação deve ter sido uma das últimas ações de Walter. O pioneiro da crítica cinematográfica local morreria de câncer logo depois disso. Ele ocupava a cadeira de número 13 da Academia, era militante comunista e, desde 1964, encontrava-se deprimido por conta da situação política do país. 163 cf. Caetano VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia, 1996.

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O imbróglio atravessaria, outra vez, as instituições baianas, a imprensa local e a privacidade da família Caymmi. O professor Assis Barros havia tocado numa questão muito delicada. A defesa da Academia Baiana de Letras feita por Wilson Lins revelava, consequentemente, um indisfarçável mal-estar. O presidente daquela agremiação intelectual elitista – que congregava e ainda congrega uma parcela bastante privilegiada da população letrada de Salvador – tentava identificar a si próprio e a história da instituição aos “mulatos e negros” que tê-la-iam fundado. Porém, é sintomático que esses “eminente[s] home[ns] de côr” estivessem situados ora no passado “saudoso”, ora no interior de um raciocínio comparativo que ligava-os a um fenótipo, o “sarará”. Essa categoria aproxima-se, junto com outras como “galego”, “mulato pra branco” ou “claro”, precisamente da extremidade branca – ou, melhor ainda, desprovida de “côr” – do confuso e contraditório espectro de identificações raciais vigente, tanto naquela época quanto nos dias hoje, em quase todo o Brasil. O professor Assis Barros tentou desmentir, em seguida, as suas insinuações, indo outra vez à Pedra da Sereia. Tendo em vista a personalidade resoluta de Stella e o histórico familiar do próprio Caymmi, entretanto, a questão não pôde ser esquecida de um jeito tão simples e imediato. Defrontar-se com o racismo de uma instituição – fosse ele tramado, real, virtual ou implícito – não deveria ser nada fácil, afinal, para o filho de Ioiô e para a sua mulher. O velho Durval havia se esmerado para livrar-se dos constrangimentos raciais e de sua origem abastardada através da aparência e do consumo de determinados bens simbólicos. Uma cadeira na Academia representaria, provavelmente, a grande vitória da família de Ioiô contra o preconceito de côr. A resposta que Stella deu aos jornais, num de seus raros momentos de exposição pública, foi personalizar o caso, levando-o definitivamente para o âmbito familiar:

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6. ITAPUÃ

O governo baiano, além do mais, passou a cobrar de volta rapidamente o favor que tinha feito ao comprar o sobrado do Rio Vermelho para o casal. O compositor acabou virando uma espécie de músico oficial, sendo indiretamente coagido a apresentar-se de graça em eventos da prefeitura e do estado. A “Pedra da Sereia”, finalmente, passou a atrair turistas depois de um tempo.

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Dorival e Stella decidiram, então, mudar de endereço. Eles foram para Itapuã, afastando-se do centro de Salvador e tentando desvencilhar-se dos curiosos. A cidade que viu Caymmi nascer, contudo, estava muito diferente. Quando ele partiu para o Rio de Janeiro “levando no coração e na inteligência aquela sedução sem fim da[quela] terra”164, Itapuã era apenas uma vila de pescadores isolada do velho burgo. Os amigos de Dorival iam até lá a pé ou tentavam conseguir uma carona na marinetti165 que fazia semanalmente o abastecimento do povoado ou “no caminhão de Seu Lisboa”166. Nos dias de maré cheia, aqueles veranistas improvisados só tinham um jeito de chegar até a praia. Eles dependiam da boa vontade dos canoeiros e dos saveiristas. Décadas depois – num depoimento dado a sua neta e biografa Stella –, o idoso Caymmi, já com mais de 90 anos de idade, ainda se lembraria de Itapuã de forma absolutamente idílica e idealizada:

“Fui pela primeira vez a Itapuã no caminhão de Seu Lisboa. Era aquele paraíso, andava de canoa, via cardume. Aquele coqueiral e aquela quantidade de coco imensa. Você dizia assim: “Vamos no Justiniano”. Chegava lá, entrava naquela roça de coqueiral, dizia assim: “Arranja um coco aí pra gente”. Ele subia no coqueiro, jogava lá de cima meia-dúzia de cocos de primeira. Vinha logo cortando o coco, abrindo e a gente virando na cara. Então, o veraneio aí passou a ser encantador. Eu passei a amar o mar. Via a gente de lá com roupas simples, chapéu de palha, aquelas agulhas de tecer rede, tudo feito por eles mesmos. Fui me acostumando e vendo a poesia do mar, aquele processo de puxar rede, comer o peixe na hora, muito xaréu...”167

Antônio Risério, apesar de alguns exageros, deve ter alguma razão ao dizer que o compositor teria produzido uma imagem seletiva, paradisíaca e pré-industrial de Itapuã168. As fotografias que seu amigo Pierre Verger tirou dessa praia, aliás, parecem reforçar duplamente essa hipótese. O fotografo francês conheceu o lugar, na década de 50, depois que uma série de transformações radicais já havia ocorrido, modificando a sua paisagem. O processo de

164 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, c.1967, p. 7. 165 Dado fornecido pela irmã do músico, Dinahir Caymmi, na entrevista que fizemos em 16/06/2012. 166 Esta segunda forma de acesso ao antigo vilarejo de Itapuã seria relembrada pelo próprio compositor num depoimento dado à sua neta e biógrafa Stella Caymmi. Cf. S. CAYMMI, 2001, p. 78. Ver a citação na íntegra logo abaixo. 167 S. CAYMMI, 2001, p. 78. 168 cf. RISÉRIO, Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo/Salvador: Perspectiva/COPENE, 1993, passim.

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apagamento dessas mudanças é evidente também no recorte das imagens que ele produziu naquela época. Verger retrataria um ambiente primitivo, belíssimo e artesanal no qual a presença humana parece confundir-se com a amplidão da paisagem169:

Em 1971, quando Caymmi resolveu voltar para Itapuã, o vilarejo havia se transformado radicalmente, porém. As cabanas de palha tinham sido substituídas por condomínios privados, as ruas tinham sido asfaltadas, o novo aeroporto de Salvador ficava agora ali perto e uma estrada fazia a ligação do bairro com o centro da cidade170. O velho paraíso da sua juventude existia apenas nas lembranças do artista – especialmente naquelas

169 VERGER, Arrastão (Itapuã), década de 1950. Esta imagem foi retirada da página “BAHIADOC: arte documento” in http://bahiadoc.com.br/. Último acesso em 16/03/2016. 170 Itapoã manteve o seu isolamento do século XVII, quando foi instalada ali uma armação pesqueira rudimentar, até meados do século XX. A zona parece ter sido marcada sempre pela pobreza. No final da década de 1940 foi aberta, porém, a estrada Amaralina-Itapoã. Os loteamentos subsequentes modificaram, junto com a explosão demográfica, a paisagem da praia permanentemente. Cf., a respeito, VASCONCELOS, Salvador, 2002, passim. .

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imagens revividas muitas décadas depois, a exemplo do longo depoimento reproduzido acima –, nas suas fotografias pessoais mais antigas e nas letras de suas canções. Um ano depois, a aventura tinha chegado ao fim. Embora o seu compadre Jorge ainda começasse o texto que acompanhava o único álbum lançado por Dorival nessa época com uma locução adverbial indubitável, “Com o tempo ainda curto do regresso definitivo de Dorival Caymmi ao mar da Bahia”, e terminasse-o, numa sequência de imagens poéticas, homogeneizando a população local ao reafirmar a integração entre o artista e sua terra, “um obá da Bahia, mestre Dorival Caymmi sentado em meio do povo, em roda de amor”171, seu amigo músico já havia alugado, outra vez, um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. É muito significativo que esse disco, chamado apenas de “Caymmi”, reunisse um grande número de canções inéditas do compositor172, indicando por um lado um pico de criatividade sem precedentes em sua vida e, por outro, que essas músicas novas fizessem referências explícitas apenas à antiga cidade do Salvador. Caymmi decidiu ignorar completamente o alvoroço da capital baiana dos anos 70 e, com exceção do candomblé, as novas experiências vividas por lá. A canção praieira “Vou ver Juliana”, por exemplo, deve ter sido composta entre 1967 e 1968 e foi gravada pelo compositor em seguida173. Itapuã já era um bairro ruidoso, cheio de ônibus e banhistas, mas a sua letra descreve, sintomaticamente, uma situação vivida cotidianamente na sua adolescência. A música narra o dilema de alguém que precisa ver Juliana, mas não tem dinheiro para pagar o saveirista. Os versos de abertura, “quando a maré vazar / vou ver Juliana”, levam o ouvinte imediatamente para aquela Itapuã de acesso precário e de belas morenas dos anos 20 e 30. Depois do recitativo inicial, Caymmi utiliza, como costumava fazer no gênero autoral das canções praieiras, um samba de roda na seção intermediária. Esse momento da música termina com uma longa enumeração de lugares- comuns, frases que remetem à infância e ditados cômicos:

“como eu não tenho dinheiro

171 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D.CAYMMI, 1972. 172 cf. D.CAYMMI, 1972. O álbum em questão possui, ao todo 13 faixas, cada uma delas contendo uma canção apenas. Das 13 canções 9 – ou seja, aprox. 70% do total – foram interpretadas pelo compositor pela primeira vez neste LP. São elas: Morena do Mar (faixa 2), Santa Clara Clareou (3), Canto de Nanã (4), Dona Chica (5), Oração de Mãe Menininha (6), Eu Cheguei Lá (7), Vou Ver Juliana (11), Itapuã (12) e Canto do Obá (13). Dessas 9 músicas 6 – aprox. 45% do total – são, de fato, inéditas. Elas correspondem às faixas 3, 4, 5, 6, 12 e 13. Finalmente, 8 delas – todas menos Itapuã, totalizando aprox. 60% do álbum – foram feitas para este disco e/ou tratavam-se de composições muito recentes. 173 cf. D. CAYMMI, Vou Ver Juliana, lançada – segundo a Discografia Essencial, p. 604 – em 1968 pelo Quarteto em Cy no LP Em Cy Maior, da Elenco (lado A, faixa 3). A canção foi gravada pelo compositor em seguida no álbum Caymmi de 1972 (lado B, faixa 11).

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o remédio é esperar bate palma, palma, palma bate pé, pé, pé caranguejo só é peixe na vazante da maré é melhor esperar sentado do que esperar de pé pra ver Juliana”174

A tonalidade maior e o bom-humor da música contrastam com a dedicatória sucinta e ressabiada que Dorival fez para outro amigo seu, o pintor Carybé. Em apenas duas linhas o compositor, já de volta ao Rio de Janeiro, condensa todo o acúmulo de mal-entendidos, o desânimo que o fez sair da Bahia outra vez:

“Meu Carybé: apesar de tudo, consegui gravar o disco. Tá aí. Seu Caymmi. Rio 27-out. 72”.175

Ele nunca mais voltaria a morar em sua terra natal.

7. ME DÁ MEDO QUE ELE TENHA UMA COISA

A insistência de Jorge pode parecer esquisita quarenta e tantos anos depois de todos esses acontecimentos. Por que o escritor teria se esforçado tanto, afinal? Por que ele havia mobilizado, além da família Caymmi, o meio artístico local, a intelectualidade e o poder público baiano? Por que o seu compadre Dorival precisava mudar com tanta urgência do Rio para Salvador? E, principalmente, por que Jorge não quis admitir, até o último momento, a volta do “cantor e intérprete de seu povo” para a capital carioca, mesmo sabendo de todas as quizilas e decepções que ele tinha acabado de viver na sua terra natal? O conhecido romancista queria garantir a presença de Dorival Caymmi na Bahia por muitas razões. É claro que a volta daquele artista à Salvador poderia trazer para ele e para o seu grupo de aliados naquele momento, de Wilson Lins e Odorico Tavares aos vereadores da

174 D. CAYMMI, Vou Ver Juliana in D. CAYMMI, 1972 (lado B, faixa 11). 175 Essa dedicatória manuscrita – que já foi mencionada e reproduzida acima, na minha introdução – encontra-se na contracapa do exemplar deste álbum que pertenceu à Carybé. Eu pude achar o LP em questão, junto com quase toda a obra gravada de Caymmi, entre os discos que ficavam guardados no ateliê do pintor. Estive neste espaço, que localiza-se no bairro de Brotas, Salvador, no dia 28/05/2013.

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cidade, passando pelos irmãos-de-esteira Pierre Verger e Carybé e pelo reacionário governador do estado, Luís Vianna Filho176, algumas benesses partidárias além dos impactos artísticos, intelectuais e simbólicos mais óbvios. Jorge, porém, tinha outras preocupações que diziam respeito à vida privada de seu grande amigo. É provável que o escritor tenha intensificado seus convites depois do dia 28 de agosto de 1968, tentando convencer a família Caymmi a se mudar com urgência. Cinco meses depois daquela sessão da Câmara que havia aprovado a doação de um imóvel para o “patriarca da música popular”177, Dorival, o homem que estava por trás das cerimônias e dos elogios, teve uma crise hipertensiva e foi internado às pressas. O compositor ficou hospitalizado vários dias, até 16 de agosto, na Clínica São Vicente, no bairro da Gávea, Rio de Janeiro. Esse não era o primeiro pico de pressão que causava um hiato forçado no cotidiano de Caymmi e a suspensão de todas as suas atividades. A crise anterior que tinha ocorrido dois anos antes, em 20 de julho de 1966, envolveu inclusive convulsões e um deslocamento de maxilar. Jorge Amado previa, obviamente, outros ataques. Dorival bebia muito nas boates e casas de show em que trabalhava todas as noites. A sua rotina de trabalho era muito pesada entre as décadas de 50 e 60, envolvendo viagens internacionais, turnês, contratos de trabalho com os circuitos de entretenimento do Rio de Janeiro e compromissos com rádios, canais de televisão e algumas gravadoras. A EMI-Odeon, uma empresa de origem alemã que dominava grande parte do mercado fonográfico brasileiro desde as primeiras décadas do século XX, e o seu diretor-artístico Aloysio de Oliveira eram os principais empregadores de Caymmi e os

176 Luís Vianna Filho (1908-1990) talvez tenha sido um dos políticos mais conservadores do Brasil. Filho do último governador baiano do século XIX – um jurista sertanejo que, junto com o governo federal, desmantelaria o arraial de Canudos – ele havia nascido em Paris, no início do século XX. Os governos de Luís Vianna Filho (1967-1971) e de Antônio Calos Magalhães (1971-1975), seu sucessor imediato, marcariam o alinhamento perfeito entre as diretrizes adotadas pelo estado baiano e as doutrinas as ditadura civil-militar então vigente no Brasil. Durante a sua gestão, Vianna Filho adotou uma série de medidas desenvolvimentistas – a maior delas seria a construção do Centro Industrial de Aratu (1967), ainda hoje em funcionamento. A educação pública sofreria, contudo, uma série de cortes em sua administração, ainda que ele próprio fosse um intelectual ligado à algumas das maiores instituições culturais do período. Além de ser professor da UFBA e de ter recebido quatro comendas do Estado Novo Português, o governador baiano fazia parte do IHGB, da Academia de Letras da Bahia, da Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Portuguesa de História. O discurso de posse de Vianna Filho, lido no dia 1º de janeiro de 1967, resumia bem o seu credo político através daquilo que seria o lema de seu mandato, o trinômio “Ordem, Trabalho e Moralidade”. A família Viana, entretanto, continua exercendo o seu poder político – Luís Viana Neto (1933 - ) foi, durante muito tempo, um dos senadores da república. Suas candidaturas filiaram-se, sucessivamente aos seguintes partidos: ARENA, PDS, PMDB e PFL. A respeito da história política da Bahia e das vicissitudes de sua administração pública cf. os já citados RISÉRIO, Uma História da Cidade da Bahia, 2004 e VASCONCELOS, Salvador, 2002, assim como a última versão, revista e ampliada, de História da Bahia, o estudo clássico feito em 1959 pelo historiador da UFBA Luiz Henrique Dias TAVARES (TAVARES, História da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009). Para obter outros dados acerca de Luiz Viana Neto, cf. a página dele no site do Senado Federal: http://www25.senado.leg.br/web/senadores/senador/-/perfil/2977. Última visita feita em 20/04/2016. 177 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D.CAYMMI, 1972.

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responsáveis diretos pela parcela mais significativa dos rendimentos do músico naquela época. Aloysio, em 1938, havia curiosamente participado do início da carreira do jovem Dorival Caymmi, recém-chegado no Rio de Janeiro. O cantor carioca fazia parte do Bando da Lua, conjunto vocal que acompanhava Carmen Miranda e que viajou com a célebre artista para os Estados Unidos. O compositor baiano, por sua vez, gravou com eles O que é que a Baiana tem? naquele mesmo ano. O samba foi um dos maiores sucessos do show business brasileiro, impulsionando as carreiras de todos os envolvidos na produção daquele fonograma. Essa canção bem-humorada sobre as roupas, os balangandãs e a graça das mulheres de Salvador foi, na verdade, o primeiro trabalho de Caymmi lançado em disco, sendo também o primeiro registro comercial de sua voz e de seu violão178. Voltando da Califórnia em 1956, um ano depois da morte de Carmen, Aloysio de Oliveira assumiu um dos maiores cargos da Odeon no Brasil, instalando-se outra vez no Rio de Janeiro. É possível, inclusive, que o próprio Dorival Caymmi tenha sido indiretamente responsável pelo retorno do seu antigo colega. O músico baiano contaria o caso desse jeito, muitos anos depois:

“O diretor da Odeon, um inglês – um cavalheiro baixinho, muito afável e gentil – queria que eu fosse o diretor-artístico da gravadora. Lembro-me bem: o convite foi feito num chá das cinco, num estilo bem inglês, no escritório dele, na Avenida Rio Branco. Sabe o que eu disse para ele? „O homem que o senhor quer não sou eu. O homem que o senhor precisa vive nos Estados Unidos e se chama Aloysio de Oliveira.‟ Para a minha surpresa, coisa que muita gente não acredita, o carro dele, do diretor da Odeon, emparelhou com o meu táxi na Rua do Russel, no Flamengo, e ele me falou: ´Olha, achei o homem. Ele vem pra assumir a Odeon.´ Ele tinha ido para os Estados Unidos buscar o Aloysio. Dias depois, ele era o diretor-artístico da Odeon.”179

De qualquer forma, o homem passaria a selecionar todos os músicos que seriam veiculados pela gravadora desde então. Enquanto diretor-artístico, Aloysio foi um dos personagens mais importantes da história da música popular brasileira até o final dos anos 70. A sua atuação nesse cenário, embora não seja normalmente reconhecida, foi indispensável,

178 Para maiores informações a respeito deste samba, cf. a nota n. 135 acima. 179 S. CAYMMI, 2001, p. 331-2.

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dentre outras coisas, para o estabelecimento da bossa-nova – lançando, por exemplo, João Gilberto e Antônio Carlos Jobim – e por boa parte do sucesso de Caymmi nas décadas de 50 e 60180. A mistura nem sempre harmônica entre amizade e trabalho, no caso do relacionamento de Caymmi com Aloysio de Oliveira, talvez gerasse outras insatisfações e problemas para o compositor baiano. Ele teria lançado pelo menos um disco contra a sua vontade, o álbum Caymmi também é de Rancho de 1973181. E antes mesmo da volta de Dorival para Salvador, Aloysio já havia constrangido algumas vezes o músico, que era um dos artistas mais rentáveis do seu staff, a fazer determinados shows e a gravar 78 rpms em datas ruins ou com arranjos que desagradavam-no. Esta sobrecarga de trabalho e de viagens, somada com as possíveis tensões entre Caymmi e o diretor-artístico da EMI-Odeon, não justificavam, porém, todos os ataques e crises do compositor nem a pressão reiterada para que ele voltasse à Salvador. Aparentemente, “o cantor das graças da Bahia”182 sentia uma tristeza de outra ordem. De qualquer forma, seus parentes e amigos mais íntimos estavam extremamente preocupados. É possível perceber parte dessa apreensão no texto abaixo, publicado nesta mesma época, em 1969, numa das reedições do “Cancioneiro da Bahia” e assinado por Jorge Amado. O romancista expõe claramente a fragilidade de seu amigo dessa forma:

“O homem de cabelos brancos e rosto môço curvado sôbre o violão, seu canto de amor pesando sôbre o coração de cada um, e essa emoção a nos envolver, a envolver o filho de volta à sua casa, o poeta de volta à sua musa, numa atmosfera de lágrimas contidas. Contidas? Na meia-luz do palco o rosto do poeta, iluminando ternura; na platéia sucedem-se as palmas, a emoção cresce, intensa. Na cadeira ao lado, Mário Cravo me diz: – Me dá medo que êle tenha uma coisa.

180 A maioria das obras de Caymmi – 10 dos seus 17 álbuns de carreira (aprox.. 59%) e muitos dos 78rpm gravados por ele entre as décadas de 1930 e 1960 – foi lançada pela EMI-Odeon, ou simplesmente Odeon, na cidade do Rio de Janeiro. Entre 1957 e 1973, Aloysio de Oliveira dirigiu a produção de 8 desses 10 álbuns (80%). Os LPs de Dorival que saíram pela Odeon podem ser classificados em criações exclusivamente autorais (80%) e em discos que também incluem, entre as suas faixas, composições de outros músicos (20%). Em relação à interpretação destes trabalhos é curioso notar que a mesma razão observada anteriormente mantêm- se, ainda que simetricamente invertida. Este conjunto de LPs é formado por 2 discos solo – ou seja, que exibem apenas o violão e a voz de Caymmi (20% ) – e por 8 álbuns (80%) que contam com diversos acompanhamentos orquestrais. Para maiores informações a respeito, cf. S. CAYMMI, Discografia do intérprete Dorival Caymmi (LP e CD) in S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, pp. 606-9. 181 D. CAYMMI, Caymmi Também É de Rancho (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1973. 182 Cantor das graças da Bahia é mais um dos apelidos dado à Caymmi por Jorge Amado. Cf. AMADO, O Moço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7.

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Isso se passou há bem poucas semanas, nas festas iniciais do Teatro Castro Alves, em abril – nas rosas de abril – quando Dorival Caymmi voltou à cidade para inaugurar o seu teatro. Saímos juntos depois, na morna atmosfera de estrelas, e fomos pelas ruas mais antigas e mais íntimas até as portas do mar, na rampa de frutas, de olores e adormecidas velas. – Meu irmão, meu irmãozinho... A voz ainda trêmula na confluência do eterno reencontro.”183

8. A ATMOSFERA MORNA DAS ESTRELAS

Dorival Caymmi parecia ter envelhecido antes do tempo. Daí Jorge ter empregado uma série de antíteses para descrevê-lo na citação reproduzida acima. O artista de “rosto môço” que ainda não havia completado os seus 60 anos, afinal, já tinha “cabelos brancos” há pelo menos uma década e meia, se curvava emocionadamente “sôbre o violão”, falava com a voz “trêmula” e envolvia a todos “numa atmosfera de lágrimas contidas”. Depois de seus dois maiores sucessos de público, “Marina” (1947) e “Maracangalha” (1956)184, o músico não precisava provar mais nada para ninguém. A viagem daquele “môço Caymmi”185 simpático que pegou “um Ita no norte” e foi “pro Rio morar”186 levando uma carta de recomendação para um primo desconhecido no bolso do paletó parecia cada vez mais distante. Dorival havia atingido, na opinião de seus colegas e dos críticos, o auge de sua carreira artística na década de 50 e detinha um patrimônio financeiro considerável. Ele chegou a adquirir por exemplo, entre outros bens, um sítio apenas com os direitos autorais do hit single “Maracangalha”187. Caymmi passou a chamar essa propriedade, aliás, significativamente com o mesmo nome do vilarejo baiano que sua composição havia tornado conhecido.

183 AMADO, Vinte Anos Depois, in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.13. 184 cf. D. CAYMMI Maracangalha, lançada pelo próprio compositor – segundo a Discografia Essencial, p. 588 – em 1956, num 78 rpm da Odeon; e D. CAYMMI, Marina, lançada simultaneamente – idem, p. 589 – em 1947 por Francisco Alves, Dick Farney, Nelson Gonçalves e Dorival Caymmi em 78 rpm. O samba- canção foi gravado, neste ano, pela Odeon, pela Continental e pela RCA-Victor. O fato de Marina ter envolvido essa multiplicidade de contratos, intérpretes e gravadoras foi uma novidade pra época. Cf., a respeito, André DOMINGUES, Caymmi sem Folclore. São Paulo: Barcarola, 2008, pp. 78-82. 185 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, c.1967 186 cf., a respeito da toada Peguei um Ita no Norte, a nota de n. 122 acima. 187 Marina não havia ficado muito atrás desta marca, porém. A rentabilidade financeira do samba- canção foi destacada, dessa forma, pelo próprio Dorival: “A gente come e bebe por conta dos direitos de ´Marina´ até hoje [1985]...” in BARBOSA e ALENCAR, Caymmi: som, imagem e magia, 1985, p. 77.

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Além de poder veranear, de vez em quando, nessa Maracangalha recém-adquirida do interior fluminense, na cidade litorânea de Rio das Ostras e em Pequeri, sul de Minas Gerais, Dorival contava com uma vida material estável desde, pelo menos, a segunda metade dos anos de 1940. Ele havia criado seus três filhos, afinal, e sustentado a sua mulher Stella com a renda advinda das inúmeras ocupações que, entre outras coisas, levá-lo-iam às crises cardíacas mencionadas no item anterior: as temporadas de shows nas boates cariocas, as participações constantes nos programas da Rádio Nacional e, logo depois, nas transmissões televisivas pioneiras da Rede Tupi, os contratos com a EMI-Odeon, as turnês e, finalmente, as gravações esporádicas de anúncios comerciais.

“Marina”, um samba-canção lento, apropriava-se da linguagem harmônica do jazz norte-americano. A música – que era, inclusive, uma das primeiras incursões do jovem Caymmi por esse gênero musical relativamente novo – passou a integrar rapidamente o repertório básico das noites da Zona Sul do Rio de Janeiro naqueles últimos anos da década de 40. Essa canção ambígua e intimista parecia ter sido concebida, de fato, como uma releitura autoral das dores de cotovelo188, do acompanhamento dissonante, da baixa-amplitude melódica, da “atmosfera de lágrimas contidas”189, das influências musicais estrangeiras e das letras sucintas em forma de monólogo ou de diálogo – dos lugares-comuns, em resumo, que compunham a estética das boates cariocas do pós-guerra. A sofisticação dos acordes que acompanhavam a voz dos crooners ou dos cantores de rádio que interpretaram “Marina” aliava-se ao emprego extremamente coerente e preciso da linha melódica, utilizada para sublinhar a dubiedade do texto poético. Afinal, o namorado dessa morena, por um lado, anunciava o rompimento amoroso iminente do casal numa longa queixa em primeira pessoa. Essa separação, no entanto, não parece verossímil no contexto da canção. Logo o ouvinte consegue intuir que, certamente, ela não será definitiva. O amante chateado sente ciúmes, enfim, por um motivo banal e sua irritação ganha contornos infantis nos últimos versos do tema. Entre uma coisa e outra – o pivô do desapontamento amoroso, “você se pintou”, e a zanga pueril, “eu tô de mal” – o carinho desse homem ciumento por sua

188 Esta expressão – junto com outras palavras destacadas em itálico nas próximas páginas, excetuando- se as marcações de gêneros musicais como canções praieiras e jazz standards – faz parte do linguajar das décadas de 1940 a 1950 sendo, portanto, uma locução nominal êmica. A maior parte desse vocabulário assinalado é de uso corrente até hoje, mas não possui, obviamente, os mesmos significados de então e, principalmente, não levam mais às associações tipificadas, aos clichês – como (harmonia musical, romantismo) sofisticada(o) e (ambiente, atmosfera) burguês(a) – que eu procurei reproduzir parcialmente aqui. 189 AMADO, Vinte Anos Depois, in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.13.

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morena pintada é perceptível ao longo de toda a letra da canção e especialmente através da organicidade do seu material musical. “Marina” talvez tenha sido um dos maiores sucessos de Caymmi por conta, exatamente, desses e de outros traços composicionais difíceis de enquadrar no interior dos sistemas classificatórios que estruturavam o contexto da música popular de então. Essas novidades, no entanto, além de gerar diversas quebras de expectativa acabaram criando uma segunda solução de compromisso entre o compositor e seu público, seus empregadores ou seus colegas. Os recursos músico-poéticos que o artista havia utilizado nas canções praieiras lançadas nos anos imediatamente anteriores haviam sido mantidos e, de certa forma, até exacerbados nos sambas-canções que ele compôs nas décadas de 1940 e 1950. Embora a crítica do período não tivesse reagido muito bem às novidades lançadas pelo jovem Dorival – o baiano ainda não havia completado dez anos de carreira, afinal, quando a pintura de “Marina” passou a fazer sucesso –, ele não havia mudado tanto. A unidade entre letra e música, por exemplo, as influências de determinados compositores impressionistas europeus e, cada vez mais, dos jazz standards norte-americanos, a circularidade melódica e a recriação prosódica da fala cotidiana são alguns dos aspectos formais das chamadas canções do mar190que o artista acabou reaproveitando integralmente ao desenhar o rosto de “Marina”. Além desses elementos técnico-musicais Caymmi também adotaria, nesse tema e em seus outros sambas-canções, determinados princípios estéticos estruturantes que já haviam sido testados nas suas primeiras obras. Entre eles destacavam-se, no caso de “Marina”, uma simplicidade formal ilusória, produzida laboriosamente pelo artista e, no plano da letra, a adoção da perspectiva de um sujeito anônimo que, encontrando-se paradoxalmente oculto pelo emprego insistente da primeira pessoa do singular, descreve certas imagens enquanto discursa, de forma quase teatral, num momento-chave de tensão ou de reflexão íntima. A pesar dessas continuidades todas, a temática e, especificamente, o cenário urbano subentendido nas letras dos primeiros sambas-canções de Dorival parece ter atraído completamente a atenção da crítica. O artista baiano parecia ter deixado – pelo menos do ponto de vista duma parte expressiva da imprensa do Sudeste daquela época – as paisagens

190 As canções praieiras foram chamadas alternativamente de canções do mar e cantigas de pescadores pelo menos até 1954. O Cancioneiro da Bahia, que é de 1947, é dividido, por exemplo, em cinco seções cujos títulos são: Canções do Mar – Sambas – Modinhas, Serenatas e Cantigas – Canções sobre Motivos do Folclore – Canções do Folclore. Cf., a respeito, CAYMMI e AMADO, c.1967 e o segundo capítulo do presente trabalho.

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idílicas da Boa Terra e o folclore do seu povo de lado. A sofisticação romântica191 das boates da Zona Sul do Rio de Janeiro e a atmosfera burguesa da indústria de entretenimento carioca foram logo associadas às novas composições do “môço Caymmi”192. A reprovação dos contatos estabelecidos por um artista popular – e que especialmente, mas não exclusivamente, para os jornalistas filiados aos círculos esquerdistas então vigentes, deveria permanecer fiel à descrição, aos hábitos e à sensibilidade do povo, portanto – com os empresários, os políticos, o comércio musical, as elites intelectuais e as práticas publicitárias não demorou a aparecer em certos veículos de imprensa. Essa opinião negativa chegou a ser parcialmente compartilhada até mesmo por Jorge, o amado compadre do compositor, conforme veremos mais adiante. Ainda que este amigo houvesse, contraditoriamente, levado “o cantor das graças da Bahia”193 a muitos ambientes aristocráticos, logo depois de ambos conhecerem-se no bulevar da Avenida Rio Branco, no final dos anos 30194, essa quizila persistente em torno das noções de povo e de popular se converteria, no limite, na única discordância de peso que os dois manteriam por toda a vida. Esse tipo de incômodo em relação a um músico que Mário de Andrade chamaria então de “popularesco”195 se ainda estivesse vivo – e que havia conseguido ampliar a sua popularidade através de uma rede social invejável e da divulgação de seus novos sambas urbanos num mercado musical relativamente empobrecido – teria motivado, por exemplo, um colunista especializado a escrever uma das críticas mais indiscretas e antipáticas sobre a vida

191 Além de fazerem parte de um vocabulário de época, conforme indicado na nota de n. 188 acima, essa e as próximas duas expressões destacadas em itálico foram retiradas diretamente da coluna O Outro Caymmi do crítico Arnaldo Câmara LEITÃO. Esse texto será citado e discutido a seguir. 192cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p .9. 193 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 194 Para maiores informações a respeito desse encontro, que pode ter sido o primeiro contato entre os dois futuros amigos, cf. a breve discussão das pp. 55 e 56 e a nota n. 133. 195 O ficcionista paulistano Mário de Andrade (1893-1945) foi também um dos estudiosos brasileiros mais influentes da primeira metade do século XX. Mário dedicou-se, entre outras coisas, à construção de um programa analítico que envolvia descrições musicais, reflexões teóricas sobre a relativa homogeneidade expressiva da população nacional, viagens de campo e uma verdadeira descoberta do Brasil através daquilo que era chamado de folclore. Ainda que este programa estivesse sujeito a mudanças, contradições e arranjos diversos ao longo da vida do escritor ele tinha algumas diretrizes mais ou menos constantes. A subdivisão conceitual das criações artísticas em eruditas, folclóricas e populares é uma delas. Mário ainda costumava fazer outra distinção, porém. As obras populares podiam ser mais ou menos genuínas a medida que se aproximassem ou se afastassem do folclore. O termo popularesco, então, aplicava-se à essas últimas produções. Através de um processo de decadência qualitativa, os artistas popularescos acabavam criando imitações grosseiras da expressividade popular tradicional. De acordo com as palavras do próprio Mário – num trecho que refere-se àquilo que chamamos hoje de música popular brasileira – era necessário “discernir, no folclore urbano, o que é virtualmente autóctone, tradicionalmente nacional, o que é essencialmente popular, enfim, do que é popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais”. O trecho citado encontra-se em Mário de ANDRADE, Ensaio Sobre a Música Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006 (1928), p. 134. Para maiores informações sobre este assunto, cf. João FREIRE FILHO e Micael HERSCHMANN, Debatable Tastes: rethinking hierarchical distinctions in Brazilian music in Journal of Latin American Cuultural Studies, vol. 13, n. 3, 2003 e José Geraldo Vinci de MORAES e Elias Thomé SALIBA (orgs.), História e Música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010, passim.

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e a obra do artista baiano naquele final da década de 1940. Arnaldo Câmara Leitão, responsável pela seção radiofônica do jornal paulistano “O Tempo”, expressava assim o seu descontentamento:

“Outra particularidade, tristemente notória no atual Caymmi, são alguns de seus últimos sambas. Parece que as aristocráticas boemias, em que o compositor tem andado de tempos pra cá, estão influindo negativamente em sua produção. Dorival Caymmi está se afastando do povo. Mormente os sambas- canções tipo dos feitos em parceria com o milionário Guinle, românticos, sofisticados e burgueses, traduzem um estado mental suficiente e acomodado, completamente ao inverso daquele que gerou páginas admiráveis, já integradas em definitivo no melhor cancioneiro nacional... (...) Mas, claramente, esse será o tributo pago às reportagens publicitárias valorizadoras, ao champanha e uísque das mansões confortáveis, aos cruzeiros marítimos de iate, etc. Ou será que um dos até agora compositores populares máximos do país atingiu o saturamento criador?”196

Algum tempo depois a jornalista e escritora Isa Leal retomaria essa opinião negativa de um jeito um pouco menos hostil. A crítica bem-humorada que ela havia escrito para a revista carioca “Radar”, no entanto, conseguia ser ainda mais precisa e sintética. O próprio título do texto – “Dorival Caymmi: a jangada voltou só?”197 – já encerrava, indiretamente, um julgamento. Ela também achava que Caymmi havia se perdido artisticamente. A jornalista expôs em seu artigo nitidamente o que, ao meu ver, é a chave de todo esse imbróglio. Dorival Caymmi, enquanto um artista simultaneamente do povo e popular, não deveria ter saído de sua terra, de seu habitat natural – e, consequentemente, de seu ambiente social, simbólico, religioso, folclórico e expressivo original – para não perder a sua essência. Isa Leal começa o seu texto, então, transformando uma das entidades relacionadas às águas e também aos cultos afro-brasileiros, Janaina, numa espécie de interlocutora-fantasma, ao dizer o seguinte:

196 Arnaldo Câmara LEITÃO, O Outro Caymmi in O Tempo (jornal), coluna Rádio Show: São Paulo: s/d apud S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 220-1. 197 Isa Silveira LEAL, Dorival Caymmi: a jangada voltou só? in Radar (revista). Rio de Janeiro, 21/09/1951. Artigo disponível no ADC, www.dorivalcaymmi.com.br. Último acesso em 21/03/2016.

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“Para que foi que ela mesma, a protetora de todos que amam o mar, consentiu em deixar o trovador na crueldade sombria do asfalto? Não imaginou que isso ia alterar a própria essência de quem tinha nascido pra cantar, e somente para cantar a sua terra colorida de saveiros e de torsos de bahianas?”198

Em seguida, ela reprova a familiaridade do compositor com os mesmos ambientes burgueses e artificiais que também haviam indignado Câmara Leitão. Depois de identificar alguns dos novos amigos de Caymmi, a escritora afirma claramente que a música dele é, ou deveria ser, absolutamente incompatível com o milieu e, subtende-se , com a temática da vida noturna na Zona Sul carioca:

“Dorival, segundo ele mesmo conta, tem no momento um circulo de bons amigos, alguns muito talentosos: Hugo Lima, Carlos Guinle, Alberto Lee, Jacques Klein, este pianista de valor. Mas o meio em que vive é que está fundamentalmente errado. (...) Não é no ambiente artificial de uma boate que se criam coisas como ´É Doce Morrer no Mar...´”199

Isa Leal contava ainda com o humor para emprestar leveza, mas também contundência, às suas críticas. O artigo, por exemplo, incluía uma espécie de piada verbo- visual. Logo acima do título – e, consequentemente, do texto – um retrato de meia-página da cantora Isaura García, bastante associada à música urbana e sofisticada das boates, e do próprio Caymmi chamava a atenção dos leitores imediatamente. Ambos parecem sorrir e conversar com muita intimidade, nesta fotografia, detrás de alguns elementos icônicos que referem-se diretamente à vida mundana: um cinzeiro, um cigarro, um prato com aperitivos, um copo e uma garrafa de bebida. Isaurinha, como ela era chamada normalmente pelos radialistas e pelos fãs, segura com força, ademais, os botões do smoking impecável do compositor. É, obviamente, impossível dizer qual o significado deste gesto e qual seria o conteúdo semântico do diálogo entre os dois colegas. A boutade de Isa Leal, portanto, consiste em brincar com essa

198 Id. ibid. 199 Id. ibid.

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impossibilidade justapondo à imagem uma legenda maldosa: “Isaura García parece dizer ao moço Caymmi: „canta, como você sabe, miserável!‟”200

Ainda que a maior parte dos veículos de imprensa do período não concordasse com críticas como essas e que “o môço Caymmi”201 batesse continuamente os seus próprios recordes de popularidade, o acúmulo de opiniões negativas parece tê-lo afetado, e muito. Em 1947, além de “Marina”, o artista compôs outro samba – segundo ele, de uma sentada só, no balcão de um bar do Leblon202. Dorival guardaria a composição, chamada “Saudade da Bahia”203, por uma década.

200 Id. ibid. 201 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, c.1967. 202 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 346. 203 cf. D. CAYMMI Saudade da Bahia, lançada pelo próprio compositor – segundo a Discografia Essencial, p. 599 – em 1957, num 78 rpm da Odeon.

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Jorge deve ter ouvido logo a música nova e chegou até a mencioná-la num texto daquele mesmo ano204. Contudo, o provável entusiasmo do amigo escritor não foi suficiente para tirar da gaveta aquela saudade incômoda da Bahia. Dorival adiou muitas vezes o lançamento deste samba exatamente por considerá-lo um desabafo sentido e espontâneo demais. As dificuldades que o seu ofício de músico profissional colocavam para um bon vivant que era também de um criador meticuloso – e, acima de tudo, um homem cativante que evitava conflitos a todo custo – apareciam em “Saudade da Bahia” como uma vontade impossível de volta às origens. Afinal, se Dorival “escutasse o que mamãe dizia”205, ele não teria feito sucesso algum, mas também não teria que lidar com o azedume dos críticos, com a rede impressionante de fofocas que circulavam nos bastidores das rádios e gravadoras, com a disputa sem trégua pela melhoria das condições de trabalho no show business e, por fim, com o denso nevoeiro de inveja e falsidade que compunham a “morna atmosfera d[as] estrelas”206. Como o próprio músico sintetizaria no último verso do samba, “pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”207.

9. COM UMA GRAÇA MUITO NATURAL

Dorival Caymmi parecia concordar, em certo sentido, com as críticas negativas dos anos 40 e 50. Em “Saudade da Bahia”, por exemplo, o compositor desenvolveu um raciocínio acabrunhado que incorporava algo das insinuações de seus opositores. Ele teria se deixado levar, afinal, por “esse mundo [que] é feito de maldade e ilusão”208. Ainda que o baiano não fizesse referências explícitas aos iates e às mansões de Câmara Leitão – e muitos menos às suas últimas opções artísticas – ele parecia acreditar, pelo menos naquele samba, que a vida de uma celebridade mundana tendia a ser muito “pobre” e equivocada. Embora os ouvidos dos críticos do período percebessem, nos chamados sambas urbanos de Caymmi, uma espécie de rompimento estético – que se concretizaria, aliás, nas próprias relações entre o compositor e determinadas pessoas, ambientes, práticas comerciais

204 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.9. 205 Verso retirado do samba Saudade da Bahia, cf. a nota n. 203 a respeito desta música. 206 AMADO, Vinte Anos Depois, in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.13. 207 Verso retirado do samba Saudade da Bahia, cf. a nota n. 203 a respeito desta música. 208 Idem.

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ou objetos de consumo – não é possível saber se ele concordava ou não com um julgamento desses. Muito antes de viver “na glória e no dinheiro”, porém, é certo que Dorival sempre esteve comprometido com uma série de conciliações musicais. Se os sambas-canções pareciam uma novidade, nesse sentido, é por que as canções praieiras haviam conseguido embaralhar ou burlar – sem nenhum alarde, por sinal – algumas das categorias que estruturavam o consumo e a crítica de arte nos anos imediatamente anteriores. As composições e, mais ainda, a sugestiva mise-en-scène do “enternecido poeta dos pescadores”209 pareciam ter saído diretamente da atmosfera primitivista do litoral nordestino para a maioria dos jornalistas, intelectuais e artistas que estiveram em atividade durante o Estado Novo de Vargas. O sistema valorativo mobilizado pelas elites culturais do Sudeste daquele período – um conjunto híbrido de crenças e de práticas que, obviamente, também contribuía para reproduzi-las continuamente – não havia sido alterado, portanto, pelas primeiras obras de Dorival. Os críticos não quiseram ou não puderam constatar, de 1938 a 1947 pelo menos, que boa parte do apelo comercial das chamadas canções do mar e, simultaneamente, da admiração que eles próprios conseguiam sentir por tais obras provinham da combinação habilidosa e sintética de referências eruditas, folclóricas e populares – de acordo com o linguajar de Mário de Andrade210– que caracterizavam-nas. O “papa do modernismo brasileiro” talvez tenha sido, aliás, o único intelectual importante daquele período que não caiu no canto-de-sereia do músico baiano. Mário deu pouquíssima atenção às gravações de Dorival211. Seu desinteresse, em outras palavras, acabou distanciando-o completamente do julgamento unânime, tipificador e folclorizante em relação ao “môço Caymmi”212. De qualquer maneira, as canções praieiras haviam sido uma primeira solução de compromisso. Através do emprego inventivo de determinadas técnicas composicionais Dorival conseguiu fazer uma série de melancólicas toadas itapuãzeiras e de sambas sacudidos que circulariam rapidamente, a partir do sucesso de “O Que é Que a Baiana Tem?”, em 1938.

209 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.9. 210 cf., a respeito, a nota de n. 195 acima. 211 Mário de Andrade nunca expôs publicamente suas opiniões sobre Caymmi. O historiador André DOMINGUES recupera porém, numa das notas de seu livro sobre o compositor baiano, um documento muito interessante e que pode ajudar a explicar este silêncio. O autor diz o seguinte, por exemplo: “No compêndio das suas anotações em discos de música popular, A Música Popular Brasileira na Vitrola de Mário de Andrade, aparecem três discos de 78 rpm com obras de Caymmi (um sozinho, um com Carmen Miranda e um interpretado pelos Anjos do Inferno), e em apenas um deles – Rainha do Mar/Promessa de Pescador, de 1939 – se lê a sucinta nota: ´Rainha do Mar melhor´” in DOMINGUES, Caymmi sem Folclore, 2008, nota n.154, p. 145. 212 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, c.1967.

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As suas músicas – exatamente por serem um amálgama de referenciais aparentemente incompatíveis – permitiam diversos tipos de escuta e de apreciação e fizeram sucesso nas ruas do Rio, nas casas populares, nos palcos do centro da cidade, nos cassinos, nos corredores das rádios, nas reuniões clandestinas da esquerda e nas mansões grã-finas. Os críticos que condenaram os sambas-canções de Caymmi, de 1947 em diante, estavam certos em diversos níveis. Dorival vinha sendo condescendente, de fato, com a estética romântica das boates cariocas. O músico baiano havia adotado várias técnicas composicionais específicas do jazz norte-americano que seriam, por sua vez, retomadas pelos criadores da bossa-nova dez anos depois. Além disso ele soubera aproveitar com muito jeito e naturalidade as novas possibilidades abertas pelos circuitos de sociabilidades específicos que surgiriam entre as décadas de 1940 e 1960 com as ascensão e a queda das casas-noturnas da Zona Sul, a elitização do consumo da música popular-comercial, o empobrecimento do show business e a hegemonia estética das classes-médias no pós-guerra. Caymmi, porém, havia tomado praticamente as mesmas atitudes desde o dia em que desembarcou no Rio de Janeiro – conforme indicado logo acima – e continuaria agindo desse jeito até o final de sua longa vida. A única novidade nisso tudo, portanto, eram as próprias transformações históricas específicas – presentes, de forma intrínseca, nas apostas das gravadoras e dos teatros, na instabilidade dos arranjos políticos, na alteração das sensibilidades estéticas e na reconfiguração incessante dos expedientes de valoração social – que “o cantor das graças da Bahia”213 parecia levar em conta a cada mudança do tempo.

Em 1956, a gravação de “Maracangalha”214 teve um êxito comercial incomum, mesmo para os padrões de um músico de sucesso. A musica, um samba sacudido215, não tinha nada a ver com romantismo introvertido de “Marina” e, dessa vez, a crítica reagiria com otimismo e muito entusiasmo. Os jornais diários e as revistas especializadas compartilharam imediatamente a animação do público consumidor, ajudando inclusive a transformar “Maracangalha” no hit do

213 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 214 cf., a respeito, a nota de n. 184 acima. 215 “Samba sacudido” é – assim como as “scenas típicas bahianas” da nota 135 acima – um dos rótulos utilizados, no meio musical da época, para denominar parte da produção de Dorival Caymmi. Ainda que seja impossível saber se esse termo êmico veio, junto com o compositor, da Bahia ou se ele teria sido inventado o no Rio de Janeiro mesmo, ele costumava ser empregado consistentemente para demarcar os sambas do compositor que possuíam andamento rápido (em oposição aos sambas-canções) e não se referiam à nenhum tema praieiro. Ainda hoje é muito comum a divisão da obra de Caymmi nessas três grandes marcações de gênero (as canções praieiras, os sambas-canções ou sambas urbanos e os sambas ou sambas sacudidos) – v., por exemplo, a própria divisão dos capítulos do livro de Francisco BOSCO, Dorival Caymmi. São Paulo: Publifolha, 2006..

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carnaval de 1957. O trecho seguinte – retirado de um artigo de Oswaldo Miranda que foi publicado no jornal “Última Hora” de Samuel Wainer em 18 de outubro de 1956 – é um bom exemplo desta recepção calorosa:

“O disco do baiano para a Odeon está vendendo muito e sua produção já se consagrou no assobio anônimo das ruas cariocas. De repente, a cidade é sacudida por um samba bom, um samba muito brasileiro que ganha fácil o assobio das ruas, a repetição nos programas de calouros, a consagração imediata. É o “Eu vou pra Maracangalha”, do baiano Dorival Caymmi... (...) Esse é o samba que a gente aprende e canta instintivamente, porque fala diretamente ao nosso coração, ao nosso gôsto estético.”216

Dorival Caymmi havia atingido o auge do seu sucesso de público e de crítica. Ele tinha, de fato, completado “a conquista do Rio de Janeiro”217. Depois do êxito inesperado de sua estreia com Carmem Miranda ele se tornaria uma das maiores estrelas do métier radiofônico da década de 1940. O “cantor das graças da Bahia”218 havia mostrado os encantos de sua terra natal num espetáculo beneficente organizado pela própria esposa de Getúlio, Dona Darcy Vargas219. O seu charme pessoal e o seu sorriso bonito – que um dia fizeram Stella chama-lo, com ironia, de “tesão de boate”220 – foram filmados e fotografados muitas vezes. Um ano antes do lançamento de “Maracangalha”, como se pode ver no trecho abaixo, retirado de uma revista especializada, Dorival já parecia ter ultrapassado toda e qualquer expectativa a seu respeito:

“É, sem dúvida alguma, um dos monumentos da música popular brasileira. Seu nome figura hoje como um dos maiores intérpretes e compositores das Américas. (...) Sua discografia é das mais belas existentes, e nos fala

216 MIRANDA, Oswaldo, Dorival Caymmi abre uma flor: „Eu vou prá Maracangalha‟ in Última Hora (jornal). Rio de Janeiro, 18/10/1956. Artigo disponível no ADC, www.dorivalcaymmi.com.br. Último acesso em 21/03/2016. 217 A expressão é do próprio Caymmi. Antes de cantar Peguei um Ita no Norte, no álbum comemorativo feito pela Odebrecht em 1984, o compositor assevera que aquela é uma música autobiográfica dizendo: “Eu, por exemplo, vim no Itapé, para a conquista do Rio de Janeiro” in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia (LP). Rio de Janeiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1985, disco 1, lado B, faixa 13. 218 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 219 cf., a respeito, S. CAYMMI, O Que é Que a Baiana Tem?, 2013, pp.181-258. 220 cf. Sérgio AUGUSTO, O ´Tesão de Boate´ na Rota da Boemia in Folha de São Paulo (jornal). São Paulo, 17/04/1994 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 167 e ss.

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profundamente ao coração. Nela se apresenta, vestida a rigor, o que há de mais significativo na música brasileira.”221

As suas relações íntimas com a intelectualidade de esquerda, finalmente, levaram-no a conhecer e a seduzir totalmente diversos artistas do Brasil e do exterior. Pelo menos dois dos escritores mais importantes do século XX, Pablo Neruda e Albert Camus, o elogiaram enfaticamente. O trecho abaixo, retirado do diário deste último e escrito em 19 de julho de 1949, é muito expressivo neste sentido222:

“Jantar na casa dos Chapass, com o poeta nacional Manuel Bandera, pequeno homem extremamente fino. Depois do jantar, Kaïmi, um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem cantar com seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da Faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido.”223

Depois de todo esse reconhecimento, Caymmi devia se perguntar, a partir dos anos 50 – provavelmente diante das mães-de-santo do Opô Afonjá ou do Gantois e de seus misteriosos jogos de búzios –, o que o destino e “o vento que faz cantigas / nas folhas do alto do coqueiral”224 da saudosa Itapuã ainda poderiam lhe trazer.

* * *

221 Parada de Discos (revista), jul. 1955 apud S.CAYMMI, Caymmi e a Bossa Nova: o portador inesperado (1938-1958). Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2008. 222 Os escritores estrangeiros Pablo Neruda (1904-1973) e Albert Camus (1913-1960) visitaram o Brasil em 1945 e 1949 respectivamente. Ambos foram ciceroneados por Jorge Amado e por sua esposa Zélia Gattai. Como era de se esperar, eles acabaram conhecendo logo o compadre Dorival Caymmi e sua produção musical. cf. Albert CAMUS, Diário de Viagem: a visita de Camus ao Brasil (trad. Valerie R. CHAVE). Rio de Janeiro: Record, 1997 (1978), S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001 e Marcelo COELHO, A Doce Morte de Dorival Caymmi in Folha de São Paulo (jornal), São Paulo, 20/08/2008. 223 cf. CAMUS, Diário de Viagem, 1997. 224 Estes versos foram retirados da seção central da canção praieira Saudade de Itapuã. Cf., a respeito, D.CAYMMI, Saudade de Itapuã, música lançada – de acordo com a Discografia Essencial, p. 600 – pelo próprio compositor em 1948 num 78 rpm da RCA-Victor.

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Coda

DORIVAL CAYMMI ______

VINTE ANOS DEPOIS ~ AVOLTA DO FILHO PRÓDIGO!

OU

~ A DRAMÁTICA CONFLUÊNCIA DO ETERNO REENCONTRO:

emoção e suspense! 225

Em 1967, Dorival se apresentou na inauguração do Teatro Castro Alves, em Salvador. Esse show, que esteve sempre presente neste capítulo através da pena de Jorge Amado, seria o primeiro grande espetáculo comemorativo da carreira do compositor. Conforme as palavras do texto “Vinte Anos Depois”226 – um acréscimo às edições do “Cancioneiro da Bahia” posteriores a esta data –, tantas vezes citadas nas páginas anteriores, o “patriarca da música popular”227 foi homenageado, tanto pelo público quanto pelos integrantes do elenco, num clima de forte emoção. Caymmi, enquanto se recuperava dos recentes problemas cardíacos, não poderia saber naquela noite que ele se afastaria cada vez mais dos palcos. As filhas-de-santo, os alabês228, a fina flor da sociedade baiana, Mario Cravo, Carybé e Jorge Amado participavam também de uma despedida. Só alguns poucos, como Jorge, desconfiavam disso.

225 O título desta Coda é um gracejo inspirado em dois textos amadianos. O título do segundo prefácio feito por Jorge para o Cancioneiro da Bahia, em 1967, é um deles. O outro é a página de rosto – que trata-se, por sua vez, de um pastiche bem-humorado das capas dos romances de cordel – do romance Tieta: “Tieta do Agreste / pastora de cabras / ou / A volta da filha pródiga, / melodramático folhetim / em cinco sensacionais episódios / e comovente epílogo: / emoção e suspense!”. cf. AMADO, Vinte Anos Depois, in CAYMMI e AMADO, c.1967 e Tieta do Agreste. São Paulo: Cia. das Letras, 2009 (1977), p.12. 226 AMADO, Vinte Anos Depois, in CAYMMI e AMADO, c.1967. 227 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D.CAYMMI, 1972. 228 Alabê, no idioma litúrgico utilizado no candomblé de nação Ketu, o èdè Yorùbá, significa “tocador, músico”. O termo refere-se, geralmente, àqueles que tocam os atabaques sagrados nos rituais religiosos. Cada terreiro, no entanto, possui apenas um alabê propriamente dito. Apesar do uso corrente e extensivo, o cargo litúrgico de alabê é ocupado apenas pelo chefe desta orquestra de percussão formada por tambores e por idiofones metálicos. Cf., a respeito, BENISTE, Dicionário Yorubá-Português, 2001.

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As atividades de Caymmi sofreriam, a partir de então, algumas mudanças significativas. A carreira do “cantor das graças da Bahia”229, porém, não acabaria naquele momento. Em 1972, já de volta ao Rio de Janeiro, depois de todas as articulações e percalços que marcaram o seu regresso para Salvador – descrito em detalhes neste capítulo –, o compositor possuía, além dos diversos álbuns individuais das décadas de 1950 e 1960, uma sequência de três trabalhos feitos em parceria230. Dorival já havia dividido um disco com anteriormente, em 1958231. Contudo, a frequência cada vez maior de LPs gravados com outros artistas é um indício importante das transformações que estavam ocorrendo em sua trajetória pessoal e artística. Caymmi, afinal, relacionava-se neste momento com alguns músicos muito jovens, como as cantoras do Quarteto em Cy e os seus próprios filhos Dori, Danilo e Nana, além de manter um contato estreito com os dois principais expoentes da bossa-nova, Tom Jobim e Vinicius de Morais. Depois desta sequência de trabalhos feitos em conjunto, o “gênio da raça”232 produziria o seu último disco autoral. Excetuando-se as obras comemorativas que viriam depois – e que apresentariam pouquíssimas canções inéditas – este álbum marcaria o fim de uma sequência de LPs que havia começado em 1953233. Totalizando uma série de onze discos, Caymmi expôs alternativamente, nestas duas décadas, as suas canções praieiras e os seus sambas. É significativo que, depois desses três últimos álbuns em parceria, o compositor tenha sentido a necessidade de fazer um retorno em muitos sentidos. Além de voltar à sua terra natal, no LP “Caymmi” de 1972, o artista

229 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 230 Para uma listagem de todos os LPs de Caymmi lançados até 1973 pela gravadora Odeon cf. as fontes citadas na nota de n.180. Os três discos em parceria que foram mencionados acima foram gravados por outras companhias. São ele, respectivamente, D. CAYMMI, Dorival Tostes (Dori) CAYMMI, Dinahir Tostes (Nana) CAYMMI, Danilo CAYMMI e Antônio Carlos de Almeida JOBIM (Tom Jobim), Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos Nana, Dori e Danilo (LP). Rio de Janeiro: Elenco, 1964; D. CAYMMI, Cybele S. LETE, Cyva S. LEITE, Cynara S. LEITE e Cylene S. LEITE (Quarteto em Cy), Caymmi (Kai-ee-me) and the Girls from Bahia (LP). Los Angeles: Warner, 1965 e D. CAYMMI e Marcus Vinícius de MORAES, Vinícius/Caymmi no Zum Zum (LP). Rio de Janeiro: Elenco, 1967. O LP gravado com o Quarteto em Cy foi relançado pela Odeon, em 1967, sob o título de Caymmi. 231 D. CAYMMI e Ary de Resende BARROSO, Ary Caymmi, Dorival Barroso: um interpreta o outro. Rio de Janeiro: Odeon, 1958. 232 cf. Caetano VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia, 1996. 233 cf. D. CAYMMI, Caymmi, 1972. O disco de 1973 – D. CAYMMI, Caymmi Também É de Rancho, 1973 – não foi considerado aqui por ter sido lançado por conta de exigências contratuais e da insistência de Aloysio de Oliveira, conforme indicado na p. 78 acima. Dorival, inclusive, não costumava contá-lo entre os seus trabalhos gravados.

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retomava também as músicas do mar e as histórias dos pescadores ao reviver o cotidiano e a paisagem de sua juventude baiana. Este gênero musical havia sido, enfim, reconhecidamente a grande novidade que Dorival trouxera para o cenário artístico da primeira metade do século passado, conforme veremos no capítulo seguinte. A carreira de Dorival, em outras palavras, estava passando por uma reviravolta. A partir de 1967, ele se retiraria progressivamente dos estúdios de gravação, dos palcos e da cena pública. Por outro lado, suas atividades artísticas e sua figura continuariam vivas através da divulgação de seu trabalho pelas novas gerações de músicos, de uma série interminável de homenagens e de suas atuações esporádicas no show business. As transformações que ocorreram entre o final dos anos 1960 e o início da década seguinte na produção caymmiana, porém, não se resumiram apenas a perdas, mudanças redutoras e à consequente diminuição de atividades. Dorival apresentava pela primeira vez, no LP de 1972, uma novidade importante que marcaria as suas composições a partir de então: a estética e a religiosidade do candomblé. Junto com o desenvolvimento desta temática, que já estava presente na sua obra anterior, mas que viria para o primeiro plano neste momento, as canções de Caymmi passariam por uma espécie de concentração expressiva. As suas técnicas composicionais anteriores – como o diálogo íntimo entre forma e conteúdo, as ligações semânticas entre as letras e os materiais musicais, o caráter visual e descritivo dos versos e, finalmente, a utilização bastante econômica de todos esses elementos – se intensificariam cada vez mais ao longo da sua produção tardia. Este será um dos temas principais do terceiro e último capítulo deste trabalho.

Em 1972, Caymmi deixou pela segunda vez a sua amada cidade de Salvador. A Bahia, suas personalidades e seus problemas, por outro lado, jamais deixariam a vida e a obra do “gênio da raça”234. Nessa Bahia da segunda metade do século XX, ao contrário do que Jorge parecia acreditar, o destino não poderia ser feito apenas segundo a vontade do seu compadre. Em 1967, o escritor chegou a desconsiderar, de acordo com a citação que intitula o presente capítulo, a ajuda do orixás, dos búzios e da então todo-poderosa Mãe Menininha do Gantois –

234 cf. Caetano VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia, 1996.

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uma das ilustres sucessoras de Obá Biyi –, considerando que a vida futura de Dorival já estava totalmente assegurada e que ela terminaria dentro dos limites da capital baiana235. De certa forma, Jorge tinha razão. Entretanto, nesta nova realidade soteropolitana – que seria vivida, por Caymmi, tanto no Rio de Janeiro quanto na própria Cidade da Bahia, daí em diante – a experiência racial adquiriu uma importância decisiva. Para além das articulações com as elites locais, que continuariam a ser feitas mesmo à distância pelo compositor e por seu grupo de amigos, e das mudanças na percepção da imagem pública de Dorival, este elemento congregaria uma série de tensões e de expectativas sociais. O episódio da Academia Baiana de Letras, mencionado anteriormente, é um bom indicativo das transformações que estavam ocorrendo neste sentido na Bahia dos anos 70. Os terreiros de candomblé da cidade do Salvador sempre estiveram intimamente relacionados com este processo de progressiva racialização das artes e do cotidiano local. De uma forma ou de outra, conforme veremos ao longo desta tese, as atividades públicas e a vida íntima de Dorival tangenciariam, com graus variados de intensidade, todos esses lugares, discursos e apreensões subjetivas envolvidos nesta mudança histórica. O conjunto desses elementos e as ligações complexas de cada um deles com a trajetória do “enternecido poeta dos pescadores”236, porém, só podem tornar-se inteligíveis a partir do esboço de um contexto mais amplo. Este compreende uma revisão histórica da recepção da obra caymmiana nos seus últimos quarenta anos de vida e uma análise das sucessivas negociações dos limites físicos e simbólicos da noção de baianidade. As malhas desta rede, contudo, serão costuradas – e ainda assim parcialmente – apenas no final do presente trabalho, em sua seção conclusiva.

235 cf. AMADO, Vinte Anos Depois in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.16. 236 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.9.

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CADERNO DE IMAGENS

Esse pequeno caderno de imagens não veio parar aqui por acaso. Ele acompanha o primeiro capítulo do presente trabalho e, de certa forma, duplica-o. “Não jogue os búzios, mãe Menininha!”, o capítulo em questão, corresponde à uma tentativa de reconstruir histórica e antropologicamente os cenários por onde Caymmi transitou junto com alguns dos atores que habitaram-nos – basicamente o objetivo principal da minha exposição até aqui – será retomada através da maioria das imagens deste caderno. Outras fotografias, especialmente as três que fecham esta seleção imagética, introduzirão uma das temáticas mais importantes deste trabalho como um todo: o imaginário que se formou ao redor da figura do compositor. É possível visualizar concretamente, afinal, uma parte da construção do anedotário e da mitologia caymmiana através delas.

As doze imagens que compõem o presente caderno são, quase todas elas, retratos do compositor237. Se tais retratos reproduzem, por um lado, a argumentação do capítulo precedente – uma vez que são representações fotográficas dos mesmos cenários e das mesmas pessoas descritas ali, conforme indicado logo acima – elas também têm a capacidade de inverter a relação de figura e fundo que estabeleceu-se até agora: Dorival Caymmi aparece em primeiro plano em quase todas as fotografias selecionadas. O rosto, o corpo e a postura do artista, portanto, serão colocados em destaque a seguir. Acredito então que a figura de Caymmi, junto com alguns eventos descritos ao longo dessa tese, poderão ser materializados nas próximas páginas de um jeito econômico e sintético que as palavras sozinhas não conseguiriam reproduzir. Escolhi doze fotografias que registram momentos muito significativos da vida de Caymmi. Seis delas são anteriores e seis delas posteriores à 1968, ano que marca o inicio do período de maior adensamento analítico da presente tese. As imagens seguintes vão da velha Itapuã da juventude do compositor – anterior inclusive às canções praieiras que o tornariam famoso – até o local da sua morte, aquele apartamento na Zona Sul do Rio de Janeiro que eu visitei e descrevi na introdução deste trabalho.

237 Todas as imagens seguintes foram retiradas do site do Acervo Dorival Caymmi / Instituto Antônio Carlos Jobim (ADC), disponível in www.dorivalcaymmi.com.br. Último acesso em 21/12/2016.

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Além de certas transformações históricas será possível perceber, ao longo deste caderno, algumas mudanças corporais na figura de Dorival Caymmi. Essas mudanças, que serão muito importantes para a argumentação do terceiro capítulo e da conclusão desta tese, alinham-se em dois eixos ou polos: do jovem ao velho e, de maneira muito mais ambígua, do negro (mestiço) ao branco (mestiço).

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Caymmi em atividade

1. O jovem Caymmi, recém-chegado de Salvador, canta numa transmissão da Rádio Nacional. Autor desconhecido, imagem originalmente publicada no jornal A Noite, 1938- 1939, Rio de Janeiro.

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2. Caymmi e seu primeiro aparelho de televisão. Ele foi um dos artistas da chamada “Era do Rádio” que estrearam essa nova tecnologia de comunicação de massas no Brasil dos anos 50. Autor desconhecido, 1952, apartamento de Caymmi, Rio de Janeiro.

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3. Dorival pinta uma de suas telas rodeado por retratos de amigos e familiares. Autor desconhecido, década de 1950, apartamento de Caymmi, Rio de Janeiro.

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4. O poeta e músico Vinícius de Moraes diverte ao mesmo tempo Caymmi e o público da Boate Zum Zum num dos quadros cômicos do espetáculo estreado por ele, pelo Quarteto em Cy e pelo compositor baiano no local. Essa temporada de shows teria sido o fim de um longo ciclo de apresentações intimistas que Dorival fez ininterruptamente nos anos 40 e 50, nas casas noturnas da Zona Sul do Rio de Janeiro. O encontro com Vinícius, o repertório dos primeiros discos de João Gilberto e um LP gravado em conjunto com Tom Jobim nesta mesma época238 compõem um conjunto documental revelador. Eles foram produzidos, afinal, no contexto da primeira reapropriação da imagem e da música do veterano Dorival Caymmi feita por uma geração posterior à sua, a da bossa nova. O espetáculo marca, ainda, uma virada “afro” na carreira dos dois. Paulo Lorgus, 1964, Boate Zum Zum, Rio de Janeiro.

238 cf., respectivamente, D. CAYMMI e Marcus Vinícius de MORAES, Vinícius / Caymmi no Zum Zum (LP). Elenco, 1967; João Gilberto P.P. de OLIVEIRA (João GILBERTO), Chega da Saudade (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1959; O Amor, o Sorriso e a Flor (LP), idem, 1960; João Gilberto (LP), idem, 1961; Getz/Gilberto (LP). Verve, 1964 e CAYMMI e Antônio Carlos JOBIM, Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos Nana, Dori e Danilo (LP). Elenco, 1964.

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5. “Um patriarca da música popular, uma família de músicos.”239 Dorival grava junto com sua filha mais velha, Dinahir Tostes Caymmi (Nana Caymmi), numa sessão de estúdio. Dori Tostes Caymmi, o segundo filho do compositor, dirige ambos. Sem identificação, décadas de 1970 ou 1980.

239 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in CAYMMI, Caymmi, 1972.

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A volta para Salvador

6. Dorival na varanda da casa que a Câmara de Vereadores de Salvador doou para ele e que foi logo batizada como a “Pedra da Sereia”. Autor desconhecido, c.1970, Rio Vermelho, Salvador.

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7. Maria Escolástica da Conceição Nazaré, mais conhecida como Mãe Menininha do Gantois, sorri rodeada de amigos e filhos-de-santo. Da esquerda para a direita estão Jorge Amado (de costas), um ogã240 não identificado (de pé), Dorival Caymmi, Carybé e outro desconhecido. A Oxum mais bonita fez a cabeça de Caymmi no final dos anos 60, mas o compositor mudaria logo de terreiro, indo para o Opô Afonjá. Autor desconhecido, décadas de 1970 ou 1980, Terreiro do Gantois, Salvador.

240 cf. Roger BASTIDE. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (1957); José BENISTE. Dicionário Yorubá – Português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011 e Pierre VERGER, Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns. São Paulo: EDUSP, 1999 (1957). Ogã (ògá) quer dizer literalmente “mestre, chefe”. Nos candomblés Ketu são homens responsáveis por diversas tarefas do culto aos orixás, do sacrifício de animais a pequenos reparos na estrutura física dos terreiros. Um egbé orixá (egbé òrìṣà), a comunidade dos fiéis de uma casa de candomblé, é constituído por duas categorias de pessoas: iaôs, filhas e filhos de santo, e seus dignitários masculinos e femininos, os ogãs e as ekédis.

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8. Os amigos Jorge Amado e Dorival Caymmi. As experiências raciais obviamente diversas – embora elas tenham sido construídas, ao longo do tempo, numa espécie de diálogo intenso e contínuo – desses dois compadres e sobretudo admiração mútua que eles mantiveram pela cultura negromestiça aparece, de forma muito sutil, como o pano de fundo da fotografia. Jorge veste uma bata africana, feita provavelmente com um tecido de capulana de Moçambique, e Caymmi traz no pescoço muitas guias de candomblé. Sem identificação, décadas de 1970 ou 1980.

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Itapuã

9. A Itapuã da juventude de Caymmi. Essa é a praça central do vilarejo, a única que contava com construções de alvenaria naquele tempo. Dorival está num dos degraus da igrejinha de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do local. Os pescadores comemoravam nesse dia, dois de fevereiro, a festa de Iemanjá. Pela movimentação na praça dá para ter uma ideia da baixíssima densidade populacional do povoado. Autor desconhecido, 02/02/1936, Itapoã, Salvador.

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10. O amigo Pierre Verger retrata Caymmi com seu violão no colo sentado na lateral de um barco. A imagem é, aliás, um ótimo exemplo da estética peculiar do fotógrafo francês e de seus confrades, dentre eles o próprio compositor. Dorival protagoniza indubitavelmente a imagem, sua postura é digna e heroica, a cor de sua pele é ressaltada, os elementos icônicos (o mar, a rede de pesca, o cotidiano de Itapuã) aparecem discretamente, exigindo alguma atenção do observador, etc. Pierre Verger, c.1950, Itapuã Salvador.

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Retratos da velhice

11. A velhice, a calma, o bom-humor, a praia e um barco rústico. Dorival posa simultaneamente como ele mesmo e como um venerável homem do mar numa imagem que reúne alguns dos estereótipos associados à sua persona pública. Sem identificação, décadas de 1990 ou 2000.

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12. Caymmi, no final da vida, cultivando os “sentimentos azues” de Victor Pauchet241. A imagem do fundo é um autorretrato dos anos 40. Márcia Foletto, décadas de 1990 ou 2000, apartamento de Caymmi, Rio de Janeiro.

241 cf. Victor PAUCHET, Conservae a Mocidade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1929 (1928), p. 105 e ss.

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Capítulo 2

Canções praieiras

então, fiz do peito um relicário onde guardo para sempre o sargaço da maré e quando eu canto é pra lembrar daquela estrela das canções com a letra errada do luar do Abaeté.

Luciano Bahia242

As canções de Caymmi são ecos de sensações tidas ante a enormidade do mar, do céu, do sol, da ventania. Suas melodias parecem ter sempre existido naquelas palavras, tão naturais em sua justeza. Não parece coisa feita por gente; parece o canto das coisas em si. Daquilo que não tenta, quer, anseia nada porque é. Marina sem pintura.

Arnaldo Antunes243

Cheguei aqui com um violão tocado de maneira esquisita para a época. Diferente da usança comum. O violão era tocado então em acordes perfeitos, quadrados. Sempre tive tendência a alterar os acordes perfeitos. Eu tirava o dedo de cada corda e punha na outra...

Dorival Caymmi244

242 Luciano Salvador BAHIA, Rua da Aurora in BAHIA, #1 (CD). Tratore, 2010, faixa 14. 243 cf. , 40 Escritos. São Paulo: Iluminuras, 2000, p. 82. 244 cf. Marília BARBOSA e Vera de ALENCAR, Caymmi: som, imagem e magia. Rio de Janeiro/Salvador: Fundação Emílio Odebrecht / Sargaço Produções Artísticas, 1985, p. 155.

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1. ITAPOÃ, 27 DE JUNHO DE 1954

A Federação das Colônias de Pescadores da Bahia, pela sua Diretoria abaixo firmada, tem a satisfação de convidar os pescadores, destacadamente das colônias Z 6, de Itapoã, e Z 35, da Boca do Rio, para tomarem parte na homenagem que será prestada, amanhã, 27, ao festejado cantor baiano, Dorival Caymmi, na inauguração da praça do seu nome, em Itapoã, prova do nosso reconhecimento pelo muito que tem feito, cantando o nome da Bahia, terra do seu berço, por todo o país, elevando- se cada vez mais alto.

Mário Paraguassu, Arnaldo Marcelino Pereira e Atalídio Caldeira da Costa O Estado da Bahia, 26/06/1953

“Por último, bastante emocionado, falou Dorival Caymmi, agradecendo a homenagem”245, noticiou o Estado da Bahia, um dos maiores jornais diários baianos da dos anos 1950. Três dias antes, em 27 de junho de 1953, a prefeitura de Salvador havia inaugurado uma placa que oficializava a troca do nome da pracinha de Itapoã. A partir daquela data o modesto terreno defronte à igrejinha do arraial passaria a chamar-se “Praça Dorival Caymmi”. O periódico, que havia sido comprado pelos Diários Associados de Chateaubriand em 1938 e supervisionado pelo empresário e colecionador de arte Odorico Tavares desde 1942246, fez de tudo para valorizar o evento. Talvez o jornal de Odorico desse tanta importância à inauguração da praça por questões políticas locais. Osório Villas-Boas, um inspetor da polícia civil e vereador da municipalidade de Salvador, havia apresentado o projeto de lei que visava alterar o nome da velha praça matriz de Itapoã em 24 de maio de 1953247. Osório, na verdade, parece ter atuado como uma espécie de intermediário entre a câmara municipal e o meio artístico da capital baiana. A ideia do projeto havia partido, aparentemente, do argentino Hector Páride Bernabó, mais conhecido como Carybé, do escultor Mário Cravo248, que então cursava Belas Artes na

245 Uma Apoteose a Inauguração da Praça Caymmi in Estado da Bahia (jornal). Salvador, 30/06/1953. Artigo disponível no Acervo Dorival Caymmi / Instituto Antônio Carlos Jobim (de agora por diante ADC) in www.dorivalcaymmi.com.br. Último acesso em 21/07/2016. 246 cf., a respeito do jornalista Odorico Tavares (1912-1980) e de sua atuação enquanto mecenas, incentivador e colecionador de arte, o segundo item do capítulo precedente. 247 cf. Stella CAYMMI, Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001, pp. 294 e ss. para obter outros pormenores acerca deste projeto de lei e da inauguração da Praça Dorival Caymmi. A respeito de Osório Vilas Boas e da câmara dos vereadores de Salvador de um modo geral, cf. Luiz Henrique Dias TAVARES, História da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009 e o próprio site desta instituição disponível in http://www.cms.ba.gov.br/pagina.aspx?id=1&tipo=1. Última visita feita em 01/08/2016. 248 Mário Cravo (1923 - ), escultor, gravador e pintor, foi um dos pioneiros da chamada estética contemporânea na Bahia e continua sendo, até hoje, um dos artistas plásticos baianos mais conhecidos e

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recém-fundada Universidade Federal da Bahia249 e do próprio Odorico Tavares. De qualquer forma, a cobertura do evento pelo Estado da Bahia250 preferiu evidenciar, além do artista homenageado e do desconhecido vereador Villas-Boas, um extenso rol de autoridades regionais. Ao invés de nomear a rede de criadores e intelectuais em atividade na efervescente Cidade da Bahia de meados do século passado, a já citada edição do dia 30 de junho de 1953 daquele jornal colocava em destaque, por exemplo, “as palavras do prefeito”251, do “sr. Dorival Passos”, representante do governador, e de alguns vereadores. Tudo acompanhado de “grandes aplausos”, de muita “emoção” e de um incontido “entusiasmo popular”, segundo a reportagem. A escrita romanesca dessa notícia de primeira página – que lançava mão de adjetivos pomposos e de um lobby político indisfarçável – é tão exagerada que chega a ter, hoje em dia, um efeito cômico involuntário. “A parte cívica da festa” lembra, afinal, uma solenidade oficial na cidadezinha de Sucupira, vilarejo criado pelo escritor baiano Dias Gomes uma década depois252. A praça de Itapoã das notícias do Estado da Bahia compartilhava com o

influentes. Seu filho, também chamado de Mário Cravo, e seu jovem neto Akira dedica(ra)m-se com sucesso à fotografia artística, ademais. A família Cravo, portanto, atua como uma verdadeira linhagem artística, no cenário cultural baiano, desde a segunda metade do século XX. O argentino Hector Páride Bernabó, mais conhecido como Carybé (1911-1997) mudou-se para Salvador em janeiro de 1950. Desde então ele desenvolveu uma produção visual enorme e bastante diversificada, atuando como desenhista, pintor, gravador, ceramista e escultor. Carybé tornou-se, com o tempo, uma das figuras públicas mais atuantes da cidade, tendo sido capaz de articular os interesses dos candomblés, dos círculos artísticos e do poder político local. Cf., por exemplo, Mário CRAVO JÚNIOR e Sylvia Meneses de ATHAYDE (org.), Cravo: linha, forma e volume (1944-1984). Salvador: Núcleo de Artes do Desenbanco, 1984, a respeito de Mário Cravo, e Bruno FURRER, Carybé. Salvador: Fundação E. Odebrecht, 1989, a respeito do artista argentino. A obra de Carybé será discutida, ainda, no próximo capítulo desta tese. 249 A Universidade Federal da Bahia (UFBA), que havia sido fundada em 1946, tornou-se ineditamente uma das instituições-chave do momento de relativa prosperidade econômica e de intensa efervescência cultural que ficaria conhecido como “renascimento baiano”. Esse período de otimismo, que se estendeu do início da década de 40 até os últimos anos da década de 60, foi caracterizado pela interdependência de vários circuitos, públicos e privados. Não é à toa que artistas já consolidados na cena local, como Mário Cravo, tenham buscado – através de expedientes como cursar uma graduação na UFBA – validar seu trabalho em diversos mecanismos complementares de valoração social. O “renascimento baiano” será descrito em linhas gerais a seguir. Cf., a respeito, André L. M. DIAS, A Universidade e a Modernização Conservadora na Bahia: Edgard Santos, o Instituto de Matemática e Física e a Petrobras in Revista da SBHC, v.3, n.2, Rio de Janeiro, 2005 e Antônio RISÉRIO, Avant-Garde na Bahia. São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995. 250 O Estado da Bahia publicou uma série de reportagens e notícias sobre a inauguração da Praça Dorival Caymmi entre maio e junho de 1953. São elas: “Bem o Merece Caymmi...” (19/05/1953) “Sábado, 27, às 21 horas...” (25/06/53), “A Grande Festa de Amanhã...” (26/06) e “Uma Apoteose...” (30/06). Todas essas reportagens estão disponíveis no ADC. 251 As citações que aparecem entre aspas neste parágrafo e no seguinte foram todas retiradas de Uma Apoteose a Inauguração da Praça Caymmi (Estado da Bahia, 30/06/1953), disponível no ADC. O cabeçalho e o trecho inicial da reportagem, reproduzidos na página seguinte, foram retirados deste mesmo lugar. 252 Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999) adaptou em 1973 a peça de teatro “Odorico, o Bem- Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte” – escrita originalmente em 1962 – a pedido da Rede Globo de Televisão. Os quiproquós da cidadezinha de Sucupira, o enredo tragicômico, a grande quantidade de personagens grotescos e o humor satírico da obra foram mobilizados pelo autor para ironizar a desonestidade, o

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arraialzinho fictício de “O Bem-Amado” as demonstrações de vaidade política, os discursos intermináveis e um grandioso desfile de autoridades, com direito a queima de fogos, bandeirolas e vivas descomunais.

Apesar de enfatizar todos esses estadistas e o caráter cívico da cerimônia, o escritório regional dos Diários Associados talvez contemplasse, também, as aspirações coletivas daquela rede impressionante de artistas e intelectuais que foi mencionada na página anterior. Desde o final dos anos 30 o cotidiano tranquilo da cidade do Salvador e dos municípios vizinhos do Recôncavo Baiano havia sofrido o impacto da descoberta dos primeiros poços de petróleo encontrados no território brasileiro253. Algum tempo depois a região como um todo e, principalmente, a sua capital presenciariam uma série de acontecimentos notáveis254.

autoritarismo e a megalomania dos dirigentes políticos brasileiros. A telenovela foi um dos maiores sucessos teledramatúrgicos da Rede Globo. Cf., a respeito, José DIAS, Odorico Paraguaçu, o Bem-Amado de Dias Gomes: história de um personagem larapista e maquiavelento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. 253 cf., e.g., Lincoln de A. PENNA, Nelson de SENA FILHO e Celeste A. D. e SOUZA, Petróleo no Brasil: três ensaios sobre a Petrobras. Rio de Janeiro: E-papers, 2004 e Maria A. T. MIRANDA, O Petróleo é Nosso. Petrópolis: Vozes, 1983. 254 cf., a respeito desse período de euforia política, econômica e cultural na Bahia e de seus impactos posteriores, José Barreto de JESUS, Carybé & Verger: gente da Bahia. Salvador: Fundação Pierre Verger / Solisluna 2008; RISÉRIO, Avant-Garde na Bahia, 1995 e Jocélio T. DOS SANTOS, O Poder da Cultura e a Cultura no Poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2005 e Roger SANSI-ROCA, Fetishes, Images, Commodities, Art Works: Afro-Brazilian art and culture in Bahia. Chicago: University of Chicago Press, 2003.

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O governo estadual voltou a investir na industrialização local e numa reforma urbana do velho burgo de Tomé de Souza. As antigas construções das centúrias anteriores, junto com os jardins e as praças do século XIX255, ainda sobreviviam, mas foram relegadas ao abandono ou perderam muito de sua importância frente à arquitetura modernista de novas construções. O estádio da Fonte Nova, de 1951, o Hotel da Bahia, de 1952, o Teatro Castro Alves, construído em 1948 e remodelado em 1967, e o pavilhão da Faculdade de Arquitetura da UFBA, de 1968256, são alguns exemplos dessa reestruturação avant-garde da paisagem citadina da capital baiana. Esse conjunto de edifícios arrojados logo passou a abrigar uma série de instituições que se tornaram cada vez mais importantes na conjuntura local. A cidade ganhou uma malha viária nova, formada por grandes avenidas que passaram a acompanhar os rios de Salvador e seus vales. Artistas, professores universitários, capoeiristas, mães-de-santo, jornalistas, industriais e abastados connoisseurs circulavam por esses caminhos abertos recentemente e relacionavam-se de muitas maneiras. Por um lado, Odorico Tavares cuidava dos interesses comerciais do velho Assis Chateaubriand ao noticiar insistentemente a inauguração da Praça Dorival Caymmi. Divulgar uma homenagem desse porte, de caráter oficial e numa Bahia em plena efervescência cultural fazia todo o sentido – e a concorrência disputava, evidentemente, a cobertura desse mesmo acontecimento257. Odorico, além disso tudo, estava profundamente envolvido na agitação intelectual e artística que movimentava a cidade do Salvador naquele período. O jornalista e empresário pernambucano, afinal, havia organizado as primeiras exposições de arte contemporânea da Bahia, apoiava uma série de jovens criadores – do argentino Carybé ao santamarense Emanoel Araújo258 – e ainda mantinha um acervo privado invejável, que contava com uma enorme quantidade de telas, gravuras e esculturas259.

255 cf. RISÉRIO, Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004 (2000), passim e Pedro de A. VASCONCELOS, Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus: Editus, 2002, pp. 259-342. 256 Nivaldo V. de ANDRADE JÚNIOR, Arquitetura Moderna na Bahia, 1947-1951: uma história a contrapelo (tese de doutorado). Salvador: FAU / UFBA, 2012 e VASCONCELOS, Salvador, 2002, ibidem. 257 As notícias dos demais jornais baianos sobre esse evento – incluindo a concorrência interna representada pelo Diário de Notícias, também pertencente ao grupo de Assis Chateaubriand – estão reunidas no site do ADC e podem ser acessadas facilmente através da busca por assunto da subseção Conjuntos → Textos → Jornais, disponível in http://www.jobim.org/caymmi/handle/2010.1/11007/ browse?order=ASC&rpp=20&sort_by=-1&etal=-1&offset=1220&type=subject. Última visita realizada em 05/09/2016. 258 cf. o depoimento do próprio artista que encontra-se em Emanoel Araújo: artista plástico in Haroldo COSTA (org.), Fala Crioulo: o que é ser negro no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2009, pp. 37-43. 259 cf., a respeito, ARAÚJO, A Arte Brasileira da coleção Odorico Tavares (catálogo). Salvador: Museu de Arte da Bahia, 1982 e A Minha Casa Baiana, Sonhos e Desejos de um Colecionador (catálogo). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005.

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O motivo para a cobertura tão entusiástica, pelo Estado da Bahia, daquela noite de festa em Itapuã talvez estivesse amalgamado, então, com a própria existência desse criativo conglomerado de políticos, artistas, patrocinadores e intelectuais do qual Odorico fazia parte. O todo-poderoso jornalista, aliás, tendo sido um dos protagonistas do chamado “renascimento baiano”, também devia se esforçar pessoalmente para promover um evento de grande porte que celebrava a ligação entre a produção cultural, a política oficial e o espaço público na cidade e, consequentemente, ajudava a manter a importância emblemática das artes no panorama local. A troca de nome da pracinha de Itapuã tratava-se, sobretudo, de um ritual social que pretendia expiar qualquer suspeita de ingratidão que o povo baiano porventura tivesse em relação a um de seus filhos mais ilustres. Esse ritual, aliás, assumiu a forma de uma prestação total, onde tudo e todos convergiam para a consagração unânime do compositor, objetivando ainda trazer de volta para a Bahia os rendimentos de seu alto valor simbólico. Este grande ritual cívico, artístico, político, social e empresarial colocava em evidência ademais, direta ou indiretamente, uma parcela significativa dos aliados locais de Odorico, permitia a circulação de uma série de dádivas (e de mercadorias) e ainda reforçava seus contatos com a intelectualidade do Rio de Janeiro – cidade que ainda era, naquele momento, a capital da república. Caymmi vivia no Rio há uns quinze anos, afinal, e trouxe de lá, especialmente para o evento, algumas celebridades, como os cronistas Antônio Maria e e a cantora Ademilde Fonseca. Além disso, “cantor das graças da Bahia”260 visitava frequentemente a sua terra natal e continuava sendo muito amigo de alguns artistas da região. Ele era, por exemplo, um companheiro mais ou menos habitual dos já citados Mário Cravo e Carybé, de Pierre Verger, do vereador Wilson Lins e principalmente de Jorge Amado (que vivia entre a capital baiana e a capital federal) nas noitadas existencialistas do bar Anjo Azul261 e nas boemias artísticas baianas das décadas de 1940, 50 e 60.

260 cf. Jorge AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. São Paulo: Martins, s/d, c.1967 (1947), p.7. 261 O bar e boate Anjo Azul, que ficava na Rua do Cabeça, no centro de Salvador, foi aberto pelo artista plástico Carlos Bastos (1925-2004) e pelo antiquário José de Souza Pedreira (1923-1985) na década de 1940 e existiu até o final dos anos 60. O Anjo Azul foi uma das instituições-chave – embora tivesse um caráter evidentemente informal – do chamado “renascimento baiano”. O bar, que também funcionava como galeria e um pequeno museu, reunia cotidianamente a maioria dos artistas e intelectuais do período em suas mesas. As carreiras de muitas personalidades, que depois se tornariam extremamente famosas, como, por exemplo, Mário Cravo, Carybé, Genaro de Carvalho (1926-1971), Calasans Neto (1932-2006) e Jenner Augusto (1924-2003) não teriam sido possíveis sem a existência do Anjo Azul. O ambiente simultaneamente erudito e boêmio daquele estabelecimento era chamado, com ironia, de “reduto existencialista” pela elite conservadora da capital baiana. Cf., a respeito, André Luiz F. COUTO, Anjo Azul (artigo), disponível in

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A existência dessas parcerias heterogêneas que movimentavam a realidade baiana da época, e a participação de Odorico no interior de muitas delas, vem à luz de forma muito expressiva e singela na fotografia abaixo262. O empresário, de gravata e paletó, conversa com o pintor José Pancetti, que ele mesmo havia convidado para viver na Bahia263. Os dois encontram-se numa das esquinas da Praça Dorival Caymmi algum tempo depois de sua inauguração. É possível que eles estivessem ali acompanhados por outras personalidades, além do jovem fotógrafo cearense que registrou o momento264. O artista plástico – que havia sido marinheiro, que também havia se encantado com a vida praieira e com as paisagens de Itapuã e que passou a ter uma grande afinidade pessoal e expressiva com o músico homenageado naquele mesmo lugar em junho de 1953265 – se veste de forma muito simples. A imagem revela claramente que não havia uma perfeita horizontalidade entre a figura do pintor autodidata – que, aliás, também era confundido frequentemente com os personagens e os temas de suas obras – e um dos maiores connoisseurs de arte do Brasil, embora também seja difícil dizer a priori qual dos dois conferia mais prestígio ao outro naquele exato momento: http://www.raulmendessilva.com.br/brasilarte/temas/anjo_azul.html, última visita feita em 14/09/2016 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 430 e ss. 262 Luiz Carlos BARRETO, Odorico Tavares e Pancetti na Praça Dorival Caymmi, s/d (início da década de 1950), imagem retirada do site do ADC. 263 José Pancetti (1902-1958) foi convidado por Odorico Tavares para visitar Bahia pela primeira vez em 1950. Apesar de algumas indisposições com o meio artístico local Pancetti acabou se mudando para a Boa Terra. Depois de ganhar um prêmio local, de pintar um admirável retrato de Odorico, e de realizar uma das exposições individuais mais importantes de sua carreira, na Galeria Oxumaré (que ficava, diga-se de passagem, no interior do Anjo Azul), ele permaneceu em Salvador (e em Itapuã) até, praticamente, o final de sua vida. O pintor saiu da Bahia apenas em 1957, para tratar, no Rio de Janeiro, a tuberculose que o acompanhava desde a juventude. Pancetti faleceria no Rio, em 1958. As telas baianas do artista estão entre as suas criações mais famosas, e correspondem, grosso modo à última fase de sua produção pictórica. Informações obtidas nas exposições “Modernidade: coleção de arte brasileira Odorico Tavares”, ocorrida no Museu AfroBrasil, São Paulo, entre 25/04 e 04/08/2013; “Aprendendo com Dorival Caymmi: civilização praieira”, Instituto , São Paulo, de 03/03 a 01/05/2016 e; “Pancetti na Bahia”, Museu da Misericórdia, Salvador, de 16/09 a 28/10/2016. Cf., ainda, José Roberto Teixeira LEITE, Pancetti: o pintor marinheiro. Rio de janeiro: Conquista, 1979. 264 Luiz Carlos BARRETO, o autor da fotografia, tinha vinte e poucos anos naquela ocasião e trabalhava como fotógrafo da revista “O Cruzeiro”, um dos periódicos nacionais mais importantes do período. A partir da década de 1960 BARRETO passou a trabalhar com cinema, tornando-se, aos poucos, um dos maiores diretores do país ao lado de sua mulher, a produtora Lucy Barreto, e de seus filhos Bruno e Fábio Barreto. Para maiores informações cf. Fernão RAMOS e Luiz Felipe MIRANDA, Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: SENAC, 2000. 265 Essa conexão pessoal, estética e – de acordo com o Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake – até mesmo filosófica (enquanto uma alternativa civilizacional utópica para o Brasil) que unia os dois artistas foi, pelo menos, o mote da mencionada exposição “Aprendendo com Dorival Caymmi: civilização praieira”. A mostra em questão, afinal, tratava-se basicamente de uma retrospectiva da fase baiana de Pancetti com músicas de Caymmi e com as famosas poltronas moles do designer Sérgio Rodrigues, acompanhadas por uma série de textos e vídeos instigantes. Os textos da exposição podem ser cf., na íntegra, in MIYADA; Carolina de ANGELIS; Julia LIMA; Marcella NIGRO; Olivia ARDUI e Priscyla GOMES, Aprendendo com Dorival Caymmi: civilização praieira (caderno de textos), http://ww w4.institutotomieohtake.org.br/media/exposicoes/2016/caymmi/artebrochura-final-verde-pr0ac-alta.pdf. Última visita feita em 02/02/2017.

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Os discursos dos dirigentes políticos de Salvador – que foram declamados solenemente durante a cerimônia de inauguração dessa mesma placa destacada na fotografia acima – comoveram o filho de seu Durval Caymmi266, de acordo com a já citada matéria do Estado da Bahia do dia 30/06/1953. Contudo, o que deve ter emocionado realmente o “enternecido poeta dos pescadores”267 foi a intensa participação dos moradores de Itapuã em sua primeira homenagem pública de grande porte. Mário Paraguassu, Arnaldo Marcelino e Atalídio – respectivamente presidente, secretário e tesoureiro da Federação das Colônias de Pescadores da Bahia – já haviam convidado, através dos órgãos de imprensa, os demais colegas de Itapuã e da vizinhança para o evento268. João Valentão, os canoeiros, as morenas, as mães chorosas, as noivas do arraial e

266 cf., a respeito do pai de Dorival Caymmi, de suas estratégias para driblar determinados constrangimentos de origem e de suas expectativas sociais, os itens 3, 4 e 5 do capítulo anterior. 267 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p. 9. 268 cf. o convite da Federação das Colônias de Pescadores da Bahia publicado n´O Estado da Bahia, em 26/06/1953, reproduzido acima, na epígrafe deste item, e disponível no site do ADC.

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“as moça de Jaguaribe”269 – todos aqueles que haviam servido de modelo para a criação das canções praieiras do “festejado cantor baiano”270, enfim – compareceram em peso na noite daquele dia 27 de junho. Eles acompanharam “em silêncio e num ambiente de grande emoção” as palavras difíceis dos oradores do centro de Salvador e “o grande show” dos artistas do Rio. As “dezenas de ônibus” e de carros abertos, os almoços e jantares chiques oferecidos pelos clubes sociais da cidade e pelo Hotel da Bahia nos dias seguintes, “com a presença de jornalistas, de autoridades”, provavelmente não podiam ser comparados com as vozes dos milhares pescadores que cantaram a emblemática “Saudade de Itapuã”271, acompanhados de seus familiares e vizinhos. Dorival não costumava a demonstrar suas emoções em estado bruto e, muito menos, em público. Ele seguia à risca o seu livro de cabeceira, o “Conservae a Mocidade” de Victor Pauchet272, nesse e em outros quesitos. “Aprendei a dominar sempre os vossos nervos”, repetia incansavelmente o opúsculo do médico francês. O artista, no entanto, não conseguiu manter o autodomínio dessa vez. Em seu discurso de agradecimento – ali, diante dos seus velhos conhecidos, emoldurado pelos coqueiros, pelas gambiarras e pelo luar de Itapuã – ele chorou ao se perguntar:

“Que fiz eu? Por que esta homenagem que me presta um povo que é o mais legítimo patrimônio, que é a grandeza de tudo que pode cantar este pobre trovador esmagado pelo seu gesto generoso?”273

e continuou, sempre dedicando ao povo, as suas palavras de gratidão:

“Deixarei aos meus filhos este tesouro sem igual: a história desta noite maravilhosa de lua cheia, quando o povo generoso de minha terra veio homenagear o seu

269 João Valentão é o protagonista de uma canção homônima e lançada em 1953, num 78 rpm da Odeon, pelo próprio Dorival Caymmi. As outras figuras itapuanzeiras citadas acima são, na verdade, personagens recorrentes das canções praieiras do compositor. O verso citado foi extraído da letra de A Jangada Voltou Só, lançada em 1941 por Caymmi, num 78 rpm da Colúmbia, de acordo com Jairo SEVERIANO, Rodrigo FAOUR, Sílvio J. RIBEIRO e Stella CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi in S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 585. 270 As citações desde parágrafo e do próximo, excetuando-se e o verso citado na nota anterior, foram todas retiradas da matéria já citada, Uma Apoteose a Inauguração da Praça Caymmi, disponível no site do ADC. 271 cf. D. CAYMMI Saudade de Itapoã, lançada pelo próprio compositor – segundo SEVERIANO, FAOUR, RIBEIRO e S. CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi in S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 600 – em 1948, num 78 rpm da RCA-Victor. 272 cf. Victor PAUCHET, Conservae a Mocidade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1929 (1928). 273 S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 298.

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mais humilde cantor. E eles saberão o quanto vale a grandeza do coração baiano. Meus irmãos da Bahia: muito obrigado!”274

Intermezzo CANÇÕES PRAIEIRAS

Dorival tinha 40 anos quando lançou “Canções Praieiras”, seu primeiro LP275. A tecnologia de gravação em 33⅓ rpm sobre discos de vinil, que permitia a gravação de pelo menos 30 minutos de música, mudaria completamente a produção musical, a recepção da mesma e o mercado fonográfico mundial. Porém, naquele ano de 1954, o novo formato ainda estava em fase de implantação276. Caymmi havia acabado de completar, então, seus quinze anos de carreira artística e era um dos cantores e compositores mais populares do Brasil naquele momento277. Portanto, não surpreendente que ele tenha sido escolhido para testar as últimas novidades do mercado da música e da comunicação. A originalidade do primeiro LP do artista baiano não estava restrita, apenas, à escolha de um aparato tecnológico de ponta. Dorival gravou o disco sozinho no estúdio carioca da Odeon. O compositor – provavelmente com a ajuda de Aloysio de Oliveira, o diretor artístico da empresa no país278 – havia convencido os produtores da Odeon a lançarem um disco sem as orquestras, os coros e os regionais que acompanhavam normalmente as produções de música popular no Brasil. O repertório do disco, porém, contrastava com toda essa aura de inovação e modernidade. Caymmi se voltava inteiramente para o conjunto de canções praieiras que ele havia feito nas décadas de 1930 e 1940. Além de evocar, através do conteúdo poético-musical daquelas composições, muitos de seus primeiros sucessos e os veraneios da sua mocidade

274 Id., ibid. 275 Dorival CAYMMI, Canções Praieiras (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1954. 276 A tecnologia de fabricação dos discos de vinil, que foram chamados comercialmente de Long Play (LP), foi desenvolvida no final da década de 1940, nos Estados Unidos, pelo engenheiro Peter Goldmark. A nova mídia – feita com um polímero mais resistente que os antigos materiais fonográficos, a cera e a goma-laca, e podendo atingir mais ou menos 25 minutos de gravação por lado – foi lançada em 1948 pela . O LP começou a ser produzido no Brasil, porém, apenas em 1951. Caymmi, portanto, foi um dos primeiros músicos brasileiros a gravarem neste formato. O vinil ainda estava em fase de teste em 1953. Em nosso país, a nova tecnologia suplantaria apenas em 1968 os velhos78rpm, em número de vendas. Cf., a respeito da história do LP, Mike EVANS, Vinyl: the art of making records. Nova York: Sterling, 2015. 277 cf., a respeito da popularidade de Caymmi nas décadas de 40 e 50, os itens 8, 9 e a Coda do primeiro capítulo desse trabalho. 278 cf., a respeito de Aloysio de Oliveira, o item 7 do capítulo precedente.

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vividos numa Itapuã idílica, “pré-industrial”279, o primeiro álbum de Dorival não acrescentava quase nada ao cancioneiro daquele “enternecido poeta dos pescadores”280. A maioria das faixas consistia em regravações.

Dorival Caymmi estava no auge da sua carreira comercial naquele início dos anos 50. Poucos meses depois da inauguração apoteótica da pracinha de Itapuã ele assinava um dos primeiros contratos televisivos do país281 e lançava o seu LP inaugural. É claro que outras homenagens menores já haviam sido feitas ao “cantor das graças da Bahia”282 e que ele já possuía um número considerável de gravações em 78rpm. Porém, os êxitos anteriores do compositor não eram comparáveis, de forma alguma, às dimensões atingidas por aquele conjunto de acontecimentos. Esses dois anos, 1953 e 1954, eram de certa maneira um resumo da trajetória de Caymmi até então, mas também adiantavam muito do que ocorreria depois em sua longa vida pessoal e artística. Por um lado, eles rematavam a construção trabalhosa de uma carreira musical sólida e representavam o resultado das negociações que o compositor havia feito com os meios de comunicação, a imprensa, os intelectuais, os colegas de profissão e o grande público. Por outro, esse momento era apenas o início de uma série interminável de homenagens públicas e de uma nova aproximação de Dorival com as elites culturais, políticas e econômicas “da velha São Salvador”283. As chamadas canções praieiras, porém, relacionavam-se intimamente com todas essas coisas. Depois dos vários lançamentos concomitantes de “Marina”, em 1947284, da popularização impressionante deste samba-canção e das restrições que a crítica especializada havia colocado àquilo que ficou conhecido como a fase urbana285 de Dorival, ele apostava significativamente numa mistura ambivalente de recuos e inovações.

279 cf. RISÉRIO, Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo/Salvador: Perspectiva/COPENE, 1993, passim. 280 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p. 9. 281 Dorival assinou, entre setembro de 1953 e fevereiro de 1954, um contrato televisivo com a emissora Record, de São Paulo. Antes disso, ele já havia participado do grande show de lançamento da TV Tupi, de Assis Chateaubriand, em 20/01/1951. O novo meio de comunicação também estava em fase de teste no Brasil, assim como a tecnologia de gravação em 33⅓ rpm. Cf., a respeito, S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, pp. 285 e 310. 282 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, c.1967, p.7. 283 “Você Já Foi à Bahia”, samba de D. CAYMMI gravado – de acordo com a Discografia Essencial, p. 604 – pelo conjunto musical Anjos do Inferno em 1941, num 78 rpm da Columbia. 284 v., a respeito, os itens 8 e 9 do capítulo anterior. 285 cf., e.g., Francisco BOSCO, Dorival Caymmi. São Paulo: Publifolha, 2006.

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O repertório praieiro, a homenagem emocionada dos pescadores de Itapuã que recebiam novamente o “môço Caymmi”286 em seu vilarejo humilde e as superposições inexatas entre o intérprete e os nativos, o músico consagrado e o “baticum de samba”287 da sua terra natal, a sofisticação harmônica e a autenticidade primitiva, enfim, uniriam transversalmente os diversos tempos e caminhos percorridos pela produção de Dorival e pontuariam, ainda, uma sequência de homologias singularmente posicionadas entre aquelas célebres “canções do mar”288 e esses momentos de síntese de uma trajetória.

2. A TRAMA DO BORDADO

Esse conjunto de eventos importantes que ocorreram na vida do “cantor das graças da Bahia”289 nos anos de 1953 e 1954 – a inauguração da Praça Dorival Caymmi, a gravação do seu primeiro LP, “Canções Praieiras”, e a sua estreia televisiva – explicita, além disso tudo, pelo menos outros dois aspectos que marcariam permanentemente a longa carreira do músico baiano. Por um lado a importância pública – ou seja, social, artística, simbólica e, inclusive, política – de Caymmi começaria a aumentar a partir da década de 1950290. Dorival não estava apenas virando uma praça naquele momento. A sua transformação num ícone, num emblema, assumiria dimensões muito maiores ao longo da segunda metade do século XX e dos primeiros anos do XXI. O disco de João Gilberto que lançou comercialmente o movimento

286 cf. Jorge AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, c.1967, pp.7-11. 287 cf. D. CAYMMI Festa de Rua, lançada pelo compositor – segundo a Discografia Essencial, p. 585 – em 1949, num 78 rpm da RCA-Victor. 288 cf. D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c. 1967, pp. 17-69 e 191, v. também a breve referência à esta denominação na p. 82 acima. 289 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, c.1967, p.7. 290 A trajetória de Dorival Caymmi é uma exceção no contexto da música popular brasileira de um modo geral e, especialmente, entre os músicos surgidos entre as décadas de 1930 e 1950, na chamada Era do Rádio. A maioria dos cantores e compositores daquela época não conseguiu acompanhar muito bem as mudanças nos meios de comunicação – sobretudo a popularização dos televisores e a gradativa hegemonia da veiculação de imagens em detrimento das informações exclusivamente auditivas – a chegada de novas tecnologias no mercado fonográfico e as mudanças promovidas pela juventude Bossa Nova, que conseguiria substituir rapidamente os cânones e os parâmetros estéticos da música comercial do país na segunda metade dos anos 50. Excetuando-se alguns artistas que foram recuperados como retratos vivos do passado – é o caso de Isaurinha Garcia, de e de Aracy Cortes – e de outros que foram considerados cafonas, datados e até mesmo ridículos – como Ângela Maria, Aracy de Almeida e – somente e Caymmi puderam, sem grandes perdas de popularidade, dar prosseguimento às suas atividades musicais, na segunda metade do século XX. Cf., a respeito, Liv SOVIK, Um Lírio em Lamaçal: a atualidade de Ângela Maria in SOVIK, Aqui Ninguém é Branco. Rio de janeiro: Aeroplano, 2009; Jairo SEVERIANO, Uma História da Música Popular Brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008 e José Benedito FONTELES (Bené FONTELES) (org.), O Rei e o Baião. Recife / Brasília: Ministério da Cultura, 2010.

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musical da Bossa Nova em 1959291, por exemplo, já trazia, em sua contracapa, um texto de Antônio Carlos Jobim – que, evidentemente, elogiava o cantor estreante e antecipava possíveis críticas à “sua maneira pessoal e intrasferível”292 de fazer música – , acompanhado de um singelo “P.S – Caymmi também acha”293. Cinco anos depois do lançamento de “Canções Praieiras” Caymmi havia se tornado, em outras palavras, uma personalidade que dispensava apresentações, que parecia possuir um sobrenome exclusivo e que detinha uma autoridade estética indiscutível. Gradativamente ele se converteria numa espécie de “patriarca da música popular”294 para os músicos das gerações seguintes. Por outro lado, esses mesmos acontecimentos indicam a chegada de uma nova etapa, de um novo patamar, na carreira de Dorival. Os primeiros golpes de sorte, os apertos financeiros, os impasses profissionais e, finalmente, a construção de um perfil próprio, de uma individualidade artística, haviam ficado para trás. Ele não precisaria mais conquistar o Rio de Janeiro295, nem a sua Bahia e nem mesmo o Brasil. Caymmi pôde, enfim, reorganizar progressivamente a sua rotina, tornando-a cada vez menos corrida. E cada vez mais privada. A “fase heroica” da vida do compositor deu lugar a um longo período de recolhimento e de criação artística lenta, cuidadosa, sem muitos prazos ou pressões do show business. Dorival se concentraria agora, das décadas de 50 e 60 até o final de sua vida, na reprodução e, principalmente, na manutenção do seu êxito profissional e emblemático. Em que medida o “cantor das graças da Bahia”296 teria planejado tudo isso? Esse gerenciamento de longo prazo da “glória e [d]o dinheiro”297 teria sido voluntário ou não? Tais questões serão discutidas no terceiro e último capítulo desta tese, ainda que elas não admitam duas ou três respostas simples e conclusivas. Por enquanto, é importante apenas salientar o óbvio. A reprodução artística e comercial do sucesso de Dorival Caymmi manteve uma relação direta com toda essa notoriedade social crescente e com as vicissitudes das novas gerações de músicos profissionais.

291 João Gilberto P.P. de OLIVEIRA (João GILBERTO), Chega da Saudade (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1959. 292 Antônio Carlos Brasileiro de A. JOBIM (Tom JOBIM), João Gilberto (contracapa) in GILBERTO, Chega de Saudade, 1959. 293 Idem, ibidem. 294 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” (contracapa) in D. CAYMMI, Caymmi (LP). Rio de Janeiro: Odeon,1972. 295 A expressão, que já foi citada no capítulo anterior, é derivada de um depoimento do próprio Caymmi. Antes de cantar Peguei um Ita no Norte, em seu álbum de 1984, o compositor assevera que aquela é uma música autobiográfica dizendo: “Eu, por exemplo, vim no Itapé, para a conquista do Rio de Janeiro” in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia (LP). Salvador / Rio de Janeiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1985, disco 1, lado B, faixa 13. 296 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 297 cf. D. CAYMMI Saudade da Bahia, lançada pelo próprio compositor – segundo a Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi, p. 599 – em 1957, num 78 rpm da Odeon.

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Acontecimentos tão importantes quanto a inauguração da “Praça Caymmi” ou o lançamento do LP “Canções Praieiras” – junto com essas e outras questões que se relacionam indissociavelmente com cada um deles, evidentemente – podem apontar para horizontes analíticos muito diversos. A partir desse conjunto de informações, e das fontes documentais que me permitiram encontrá-las, interpretá-las ou, no limite, produzi-las, a adoção de uma perspectiva biográfica é bastante tentadora, por exemplo. Contornando o problema intransponível do acesso à maior parte dos dados pessoais e às percepções íntimas de Caymmi, ou de outro biografado qualquer, torna-se muito mais plausível a tentativa de fazer uma espécie de cruzamento entre o registro das atividades profissionais do compositor e outros indícios de sua vivência em geral298. Essa estratégia de escrita biográfica, que foi privilegiada no primeiro capítulo e nas páginas imediatamente anteriores, pode ser ampliada, entretanto. A vida de qualquer um, afinal, abrange simultaneamente uma série muito pequena e muito grande de temas, objetos e acontecimentos. A trama que compõe, e que torna visível, o bordado de toda experiência aparentemente individual pode ser encarada, obviamente, a partir dos seus fios de espessura menor – aqueles que são mais visíveis e particulares – ou, pelo contrário, através da complexa urdidura de possíveis causas, efeitos e constrangimentos, de paralelismos evidentes e de repercussões inusitadas, da imprevisibilidade das inovações e descontinuidades sociais e históricas299. De qualquer maneira, essa questão não se resume apenas a um problema de pontos de vista ou de escalas variáveis. A atuação púbica de Dorival Caymmi, o alcance incomum da sua produção artística e tudo aquilo que ficou registrado das suas experiências pessoais apontam, na verdade, para a complementariedade dessas perspectivas teóricas diferentes. Daqui pra frente, portanto – e particularmente nas últimas páginas dessa tese – tentarei explorar as potencialidades investigativas e narrativas de uma biografia estendida que pretende entrelaçar práticas sociais, raciais e políticas de envergadura baste ampla, como a sucessão das gerações de músicos no Brasil, por exemplo, com a invenção bem-sucedida de

298 cf., como um ótimo exemplo desse tipo de cruzamento em outro contexto histórico e etnográfico, Heloísa A. PONTES, Intérpretes da Metrópole: história social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual, 1940-1968. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2010. 299 Além do já citado PONTES, Intérpretes da Metrópole, 2010 é possível encontrar essa ampliação/ancoragem social, histórica e simbólica de uma perspectiva biográfica em muitos outros trabalhos, cf., e.g., Luiz Gustavo F. ROSSI, O Intelectual Feiticeiro; , Una Modernidad Periférica: Buenos Aires, 1920-1930. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003 (1988) e Borges: un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1995; Silvana B. RUBINO, Rotas da Modernidade: trajetória, campo e história na atuação de , 1947-1968 (tese de doutorado). Campinas: IFCH / UNICAMP, 2002 e Christiano K.TAMBASCIA, Estrutura e Sentido no Africanismo de Mary Douglas: a etnografia no Congo Belga e o campo acadêmico britânico (tese de doutorado). Campinas: IFCH / UNICAMP, 2010.

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uma baianidade muito específica, levada a cabo pelo compositor e por seu círculo de amigos íntimos, ou com a imagem, cada vez mais idealizada e onipresente, de um Caymmi envelhecido. Contudo, para que esse tipo de costura seja proveitoso, é necessário haver explicitado anteriormente quais são os meios, os cenários, os personagens principais, os sistemas classificatórios mais básicos, os fios que compõe, em resumo, o ponto de partida de toda a trama. O capítulo anterior, “Não jogue os búzios, mãe Menininha!”, e a reconstrução histórica esboçada nele foram, exatamente, uma tentativa de situar alguns dos elementos essenciais que deverão ser alinhavados ao longo de todo o meu trabalho. A maior parte desta tese, porém, encontra-se – literalmente, inclusive – entre esses dois extremos analíticos. Entre um e outro, este segundo capítulo e o seguinte compreenderão duas análises distintas, mas integradas, da produção musical do compositor baiano. Desse jeito, através da biografia de uma parte do cancioneiro caymmiano300, será feito um esforço para atingir um ponto intermediário, posicionado entre a imanência confusa do particular e a rarefação transcendental das grandes generalizações. As canções, que circularam por espaços muito diversos e que foram, no limite, o motivo do sucesso de Dorival, são também – conforme será indicado logo adiante – meios privilegiados de acesso às opiniões e aos posicionamentos do “Buda Nagô”301.

As composições de Caymmi – na verdade, as criações artísticas de um modo geral – não deveriam, contudo, ser empobrecidas de forma alguma por um juízo simplista, por uma apreensão direta ou por um aprofundamento unidimensional. Ao invés de analisa-las imediatamente, portanto, eu decidi trilhar um longo caminho preparatório para tentar amenizar os perigos de uma contextualização histórica insuficiente e de uma leitura simbólica primária. Para afastar, exatamente, o fantasma de uma semiótica limitada – na qual forma e conteúdo sobrepor-se-iam prontamente, desconsiderando a instabilidade constitutiva de qualquer sistema classificatório êmico302 – , o presente capítulo é destinado a registrar não

300 A ideia de biografar uma canção – ou outra produção artística qualquer – não é minha. Cf., por exemplo, o livro do importante historiador indiano Sabyasachi BHATTACHARYA, Vande Mataram: the biography of a song. Delhi: Primus Books, 2013 (2003). 301 Gilberto P.G. MOREIRA (Gilberto GIL) e Carlos RENNÓ, Gilberto Gil: todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 338-9 e MOREIRA e Dinahir Tostes CAYMMI (Nana CAYMMI), Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará (LP). Rio de Janeiro: Warner Music, 1992, lado A, faixa 4. 302 A análise semiótica de canções tornou-se praticamente dominante no estudo da música popular brasileira urbana desde o final da década de 1990. Esse tipo de abordagem – que, evidentemente, tem inúmeras qualidades, dentre elas o pioneirismo, a utilização criativa dos materiais sonoros e, principalmente, a

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apenas um, mas diversos significados, diversas categorizações, apreciações e narrativas sobre o gênero musical autoral de Dorival Caymmi, as suas canções praieiras. A linha argumentativa desse texto parte de uma única pista, uma espécie de pergunta- guia: qual teria sido a importância específica dessas “canções do mar”303 para o compositor baiano? A carreira de Caymmi na década de 50, e os dois eventos cruciais descritos nas páginas anteriores, foram escolhidos para começar este segundo capítulo exatamente por substancializar essa duvida central, repartindo-a em duas outras duas questões interligadas. Por que Dorival apresentou (e, posteriormente, gravou) insistentemente as suas canções praieiras depois de já haver consolidado, no decorrer da década de 1940, a sua posição privilegiada no meio artístico da época? – e – De que forma o “patriarca da música popular”304 brasileira voltaria à expor esse gênero musical dos anos 50 em diante? Essas perguntas serão respondidas nos próximos capítulos desta tese. Por enquanto, o conjunto das canções praieiras será utilizado como uma costura, um pivô que tentará unir e sustentar os diversos segmentos do meu trabalho. O gênero praieiro, afinal, desempenhou um papel importante na gravação do álbum305 que sintetizaria o período de intensas transformações narrado em “Não jogue os búzios, mãe Menininha!”. Por outro lado, essas composições – cheias de ambivalências sonoras, vazios, descrições imagéticas, vozes intercruzadas e personagens cênicos – antecipam o desdobramento da pessoa de Dorival em diversas personas, um fenômeno impressionante que será tratado, especialmente nas duas últimas sessões da tese, através das apropriações musicais, de um envelhecimento social privilegiado e dos elementos constituintes da própria produção musical caymmiana. As canções praieiras, por fim, podem contribuir para rematar a ideia de uma expressão silenciosa que foi anunciada na introdução dessa tese e que percorrerá todas as suas partes subsequentes.

inteligibilidade da linguagem empregada nas análises técnicas – foi desenvolvida por pesquisadores da área de letras, especialmente do Departamento de Linguística da USP. A sua premissa básica – a de que existem elos, ou seja, uma relação subjacente entre a melodia e a letra de qualquer canção –, ainda que seja interessante enquanto um método de exploração heurística tende, infelizmente, a simplificar, autonomizar ou sobre-interpretar essas possíveis aproximações analógicas. Cf., a respeito desse tipo de análise, Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002 (1995) e o programático TATIT e Ivã , Elos de Melodia & Letra: análise semiótica de seis canções. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. Alguns dos trabalhos que utilizam essa perspectiva conseguem resolver , hoje em dia, vários dos problemas apontados de forma inovadora, cf., e.g., Walter GARCIA, Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999 e GARCIA, Melancolias, Mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque, o pregão de rua e a canção popular-comercial no Brasil. Cotia: Ateliê Editorial, 2013. A abordagem semiótica, ou melhor intersemiótica, é utilizada numa chave completamente diferentes nas pesquisas sonoras da musicologia e etnomusicologia, v., e.g., Rafael J. de Menezes BASTOS, Música nas Sociedades Indígenas das Terras Baixas da América do Sul: estado da arte in Mana, vol. 13, n. 2. Rio de Janeiro, 2007. 303 cf. D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c. 1967, pp. 17-69 e 191. 304 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D. CAYMMI, Caymmi (LP),1972. 305 D. CAYMMI, Caymmi (LP),1972.

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Os textos deste capítulo e do próximo foram concebidos e escritos juntos. Eles tratam – sob enfoques diferentes, mas complementares – da produção musical de Caymmi. Partindo das questões levantadas neste longo Intermezzo eu tentarei fazer, portanto, uma introdução abrangente nas páginas seguintes, uma espécie de moldura que sirva para ambos.

3. O SARGAÇO DA MARÉ

As canções do músico e pintor baiano Dorival Caymmi são aparentemente simples. Acontece, no entanto, que essa simplicidade parece ter sido construída e trabalhada pelo autor, com a paciência de um artesão, durante a sua longa carreira. Uma característica desse processo criativo – o emprego de gestos músico-poéticos elementares dispostos da forma mais sofisticada possível, conforme será demonstrado neste capítulo – é a série de ambiguidades que ela engendra. Considerando-se, sobretudo, o caso da voz cantada e do sujeito de elocução das canções caymmianas essa rede de ambivalências forma desenhos muito intrigantes, a ponto de desafiar, inclusive, a noção básica de que a canção emana de um eu delimitável. Personagens, entidades divinas ou fantásticas, o cantor, o compositor, o próprio público, fenômenos naturais e a voz subjetiva que emite a mensagem em questão confundem-se, ecoam-se ou sobrepõem-se em muitas de suas obras. A letra e a música de cada uma delas sempre se reforçaram, outra característica da obra de Caymmi, para compor a trama de uma rede que também carregava consigo, obviamente, diversas implicações biográficas e sociais. Dorival inclusive parece ter utilizado a seu favor, conscientemente ou não, essa urdidura complexa de ambiguidades, arranjos e soluções de compromisso desde os primeiros anos de sua longa carreira, conforme indicado no final do capítulo anterior. Este capítulo, assim como o próximo, segue diversas pistas deixadas pela bibliografia específica306, pelas entrevistas que fiz307 e por outras fontes diversas numa tentativa de

306 D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c. 1967; BARBOSA e ALENCAR, Caymmi. 1985; S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001; Caymmi e a Bossa Nova: o portador inesperado (1938-1958). Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2008; O Que é Que a Baiana Tem?: Dorival Caymmi na Era do Rádio, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013; BOSCO, Dorival Caymmi, 2006; Marielson de CARVALHO, Acontece Que Eu Sou Baiano: identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi. Salvador: EDUNEB, 2010; André DOMINGUES, Caymmi sem Folclore. São Paulo: Barcarola, 2009; GARCIA, Melancolias, Mercadorias, 2013; Marilda SANTANNA e Carlos LEAL (orgs.), Cem Anos de Dorival Caymmi: panoramas diversos. Salvador: EDUFBA, 2015 e especialmente RISÉRIO, Caymmi, 1993, um ensaio pioneiro que já havia levantado na década de 90 diversas questões desenvolvidas neste capítulo e neste trabalho como um todo. Além dessa bibliografia específica Caymmi é citado e analisado em diversas obras sobre música popular brasileira como, por exemplo, TATIT, O Cancionista, 2002, Arthur NESTROVSKI (org.), Música Popular Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2012 e SEVERIANO. Uma História da Música Popular Brasileira, 2008.

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analisar a produção caymmiana e de enfrentar, consequentemente, o silêncio308proverbial deste músico.

Os longos depoimentos radiofônicos e televisivos deixados por Dorival309 são, normalmente, engraçadíssimos. Eles não revelam, porém, muita coisa sobre a produção ou sobre os principais interesses do artista, embora contenham algumas informações valiosas aqui e ali. Caymmi estava, em geral, interessado apenas em contar boas histórias. O meu sujeito de pesquisa nunca fez confidências em público, nunca expôs suas opiniões verdadeiras310 e jamais revelaria seus auôs311 na frente dos gravadores e das câmeras. Ao vestir esse personagem bonachão, divertido e tagarela Dorival conseguia manter-se calado, paradoxalmente, sonegando suas posições pessoais em relação a tudo o que de fato era importante para ele.

307 Ao todo foram realizadas 12 entrevistas, nos meus primeiros dois anos de pesquisa: 1. Gilberto Gil, Rio de Janeiro, 11/04/2012; 2. Dorival Tostes Caymmi (Dori), idem, 03/05/2012; 3. Danilo Tostes Caymmi, São Paulo, 23/05/2012; 4. Dinahir Caymmi, Rio de Janeiro, 16/06/2012; 5. Stella Aponte Caymmi, idem, 17/06/2012; 6. Rosa Passos, Brasília, 14/09/2012; 7. Mãe Detinha de Xangô, Salvador, 27/10/2012; 8. Solange Carybé, idem, 14/01/2013; 9. Prof. Dr. Peter Fry, Rio de Janeiro, 01/05/2013; 10. Antônio Risério, Lauro de Freitas, 25/05/2013; 11. Nancy Carybé, Salvador, 31/05/2013 e 12. Prof. Dr. Robert W. Slenes, Campinas, 22/05/2014. Algumas delas serão bastante utilizadas e citadas ao longo deste capítulo. 308 cf., a respeito deste silêncio (que se trata, inclusive, de um dos temas centrais dessa tese), a discussão iniciada no quinto item da minha Introdução acima. 309 cf., entre outros, D. CAYMMI e Fernando FARO, Dorival Caymmi – Programa Ensaio, 1972 (DVD). TV Cultura, 2009 (1972); Aluísio DIDIER, Um Certo Dorival Caymmi (DVD). Rio de Janeiro: Rio Filmes, 1999 e CAYMMI e João MÁXIMO (apresentação de Madeleine ALVES), Caymmi por Ele Mesmo. Rádio Cultura AM, 1994 (retransmitido em 31/05/2014 às 10h), disponível em http://cultura brasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-ele-mesmo, última visita feita em 19/05/2015. Essa última entrevista foi feita, provavelmente, em alguns dias consecutivos e tem, no total, um pouco mais do que sete horas de duração. 310 cf., por exemplo, o depoimento curto de Caymmi em Caetano Emanuel Vianna Teles VELOSO (dir.), O Cinema Falado (DVD). s/prod., 2003 (1986). O compositor tinha uma relação intensa com o PCB nos anos 40 – de acordo com as informações dadas por Antônio Risério na entrevista que fizemos o contato dele com o “partidão” teria sido anterior, inclusive – chegando a fazer um “Hino da Campanha de Prestes” em 1945. Danilo, no depoimento que gravamos em 2012, afirmou ainda que seu pai continuou admirando e buscando informações sobre a União Soviética nas décadas seguintes. Ao invés de opinar sobre o regime castrista em Cuba, seguindo o roteiro do filme “O Cinema Falado” de Caetano Veloso, Dorival preferiu improvisar uma declaração cômica e espirituosa diante de seus entrevistadores, apesar de todas as informações anteriores. A resposta dele frustra habilmente quaisquer expectativas, empregando de um jeito peculiar o verbo “restaurar”, que pode ter um cunho conservador, e construindo aos poucos um raciocínio rocambolesco que visa atingir a boutade “Cuba precisa dar isso [a bunda] pra gente”: “Quando Cuba for governada por uma mulher, como eu desejo, aí naturalmente se restaura aquela graça, quer dizer, o realce, a bunda. Pois é, a bunda por quê... daí o rebolado, aquela graça da rumba, o requebrado que tá nos fazendo falta até hoje. Então nós precisamos restaurar esse negócio. (...) Cuba precisa dar isso pra gente.” A respeito do envolvimento de Caymmi com a esquerda brasileira cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, especialmente as pp. 98, 233-40 e 576, ainda que a autora desconfie bastante da adesão de seu avô às ideologias políticas de seus amigos, chegando a utilizar expressões como “foi cooptado” e “o compositor não escapou de participar”, ambas na p. 237. 311 Auô (awo) significa “segredo” ou “mistério” no idioma litúrgico dos candomblés da nação Ketu, o Édè Yorùbá. Cf., a respeito, José BENISTE, Dicionário Yorubá - Português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011 e, principalmente, o quinto item da Introdução desta tese.

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É nas suas criações, portanto, que se encontram os dados mais significativos a respeito da baianidade, de sua autoimagem e de uma reflexão, que se deu sobretudo no plano expressivo, sobre uma determinada experiência racial. A construção que ele mesmo fazia de suas personas só pode ser acessada, consequentemente, nos 61 manuscritos de letras ou partituras de músicas que ele deixou e nas próprias canções que ele fez durante os seus últimos 40 anos de vida312. As canções praieiras e a importância específica delas serão, conforme indicado acima, os temas principais do presente capítulo. Os documentos citados no parágrafo anterior serão discutidos na próxima seção da tese. O cancioneiro caymmiano será enfocado em seus aspectos exteriores – ou seja, através de uma descrição social, artística e simbólica panorâmica de um único gênero musical – por enquanto.

O terceiro capítulo será dedicado à uma análise vertical, e muito mais particularizada, destas mesmas produções artísticas. As criações de Dorival serão examinadas a partir de três níveis interpretativos cumulativos e complementares. O primeiro deles, caracterizado pela apresentação de fontes documentais, é majoritariamente descritivo. O segundo tenta dar conta do contexto estético e semântico do cancioneiro caymmiano, através de uma comparação entre o trabalho do “enternecido poeta dos pescadores”313 e as obras de alguns de seus amigos. O terceiro e último é representado, finalmente, por uma apreciação mais cuidadosa dos materiais técnico-musicais que se encontram neste mesmo conjunto composicional. As últimas páginas do capítulo em questão serão dedicadas a perguntar – no final desse percurso analítico – quem fala? e quem canta? em duas canções praieiras do compositor: “Promessa de Pescador” e, principalmente, “Sargaço-Mar”314. A primeira delas foi composta antes de 1939 e a segunda em meados dos anos 70, mas as duas descrevem praticamente a mesma cena ou ação – um pescador que se defronta com o mar e faz uma oração pra Yemanjá – com desfechos muito distintos.

312 Os manuscritos e as partituras de Caymmi estão disponíveis na página do ADC. As canções desse período tardio da obra do compositor foram gravadas algumas vezes por ele mesmo e por outro artistas. Vários desses registros fonográficos serão indicados adiante, no decorrer do presente capítulo. As letras de cada uma das composições mencionadas podem ser consultadas nas diversas eds. do Cancioneiro da Bahia e em Almir CHEDIAK, Dorival Caymmi: songbook (2 vols.). Rio de Janeiro: Lumiar, 1994. 313 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p. 9. 314 cf. D. CAYMMI, Sargaço-Mar e Promessa de Pescador, duas canções praieiras lançadas pelo autor, respectivamente, num LP de 1984 e num 78 rpm da Odeon, em 1939, de acordo com a Discografia Essencial, p. 596 e 599.

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Esta semelhança de conteúdo e uma série de diferenças sutis de execução composicional ajudam a perceber melhor como Dorival tratou as temáticas praieiras, espelhando-as numa série de vozes e de mediações. Antes desse exercício de análise, contudo, serão elencadas algumas questões relevantes para os estudos caymmianos e para uma reflexão sobre a criação artística em geral. A terceira seção da minha tese não será, entretanto, apenas um esforço de análise interna da obra musical de Caymmi. As composições do “cantor e intérprete de seu povo”315 apresentam uma homologia com a questão principal de todo esse trabalho: a vivência, a observação e a expressão de certas experiências raciais por parte de seu autor. Esse mote será indicado de uma maneira subjacente em todo o texto do capítulo seguinte e ocupará um papel de destaque nas suas últimas seções.

O texto do presente capítulo antecede, porém, toda essa discussão. As suas páginas discutem única e estrategicamente a parte mais consagrada da produção de Dorival Caymmi, o seu gênero autoral e praieiro – que abrange, inclusive, as duas músicas que serão analisadas no final da seção seguinte. Apresento, neste primeiro momento, alguns temas recorrentes em relação à escuta e apreciação da obra do compositor baiano. O que seriam, afinal, as canções praieiras de Dorival Caymmi? Quais são alguns de seus possíveis significados? Elas foram comparadas com outras produções ou teriam influenciado a obra de outros músicos? Ao invés de afirmar ou deixar de afirmar qualquer singularidade do compositor, o texto deste capítulo pretende fazer um levantamento inicial do que os discursos e contra- discursos sobre um tema específico – a tão falada genialidade e o isolamento expressivo desse artista – proporcionam como fonte de análise e interpretação antropológica. De certa forma, esse conjunto de questões e de preocupações já foi anunciado nos últimos itens do capítulo anterior. Ao longo da presente argumentação, contudo, todos esses temas receberão outro enfoque, dessa vez menos particularizante ou historiográfico e mais interpretativo, impressionista e discursivo. Partindo novamente das entrevistas feitas com familiares e músicos que regravaram a obra de Dorival316 é possível afinal sentir logo, antes de qualquer assertiva técnico-musical, que os meus interlocutores dizem, lembram, sonham e estabelecem relações inesperadas através dos acordes esquisitos do “gênio da raça”317 e de

315 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in D.CAYMMI, Caymmi, 1972. 316 cf. a nota n. 5 acima. 317 cf., VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem, Magia (LP). 1985, disco 1, faixa 8. Caetano utiliza essa expressão, no depoimento citado, atribuindo-a à João Gilberto. A frase já foi mencionada na introdução do presente trabalho, em sua nota de n. 21. A citação continua desta

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suas melodias praieiras. As malhas finas dessas redes, esse emaranhado de associações simbólicas que é formado por muitos sujeitos e objetos diferentes e que se espalha junto com o vento e o sargaço das marés, será retomado e amarrado, por fim, na conclusão do meu trabalho.

4. INFLUÊNCIAS

O gênero musical canção praieira talvez tenha sido criado pelas gravadoras e rádios das décadas de 1930 a 1950, pelo próprio Dorival Caymmi ou por ambos, para rotular boa parte das suas músicas. Descontando-se os possíveis aspectos publicitários do termo e o apelo exotizante daquele jovem baiano recém-chegado na então capital federal – e que logo seria encarado como um dos representantes mais legítimos de sua terra, a ponto de ser caracterizado muitas vezes em fotografias, filmes e espetáculos como um autêntico pescador – , é certo que na época de seu lançamento como compositor e intérprete, entre 1938 e 1939, as suas canções não cabiam dentro das categorias usuais da indústria fonográfica. Não podendo ser classificadas convincentemente como choros, foxtrotes ou frevos e ainda que não tivessem uma estrutura musical ou um ritmo único as composições de Caymmi foram chamadas alternativamente de canções do mar, cantigas de pescadores e de canções praieiras até o estabelecimento final dessa última denominação em 1954, a partir do lançamento do seu primeiro LP318. Na verdade, o que o público e os críticos da época não puderam ou não quiseram perceber, é que parte da dificuldade em rotular as canções de Caymmi dentro dos gêneros disponíveis no mercado fonográfico da primeira metade do século XX devia-se provavelmente à sua insuspeitada escuta, desde a infância, da música de concerto europeia319. As suas canções praieiras são caracterizadas, em sua maior parte, por uma experimentação formal inusitada no contexto musical de sua estreia.

forma: “O João Gilberto fala sempre que o Caymmi é que é o gênio raça, né? Que Caymmi... o João Gilberto... o João Gilberto disse que aprendeu tudo com Caymmi, que a gente deve estar sempre aprendendo com Caymmi. ´Aprenda tudo com ele´, o João Gilberto fala de Caymmi” 318 cf., e.g., BOSCO, Dorival Caymmi. 2006; CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, c. 1967; S. CAYMMI, Caymmi e a Bossa Nova. 2008; José de Jesus BARRETO, Carybé, Verger e Caymmi: mar da Bahia. Salvador: Solisluna / Fund. Pierre Verger, 2008; RISÉRIO, Caymmi. 1993 e D. CAYMMI, Canções Praieiras (LP), 1954; Caymmi e o Mar (LP). Rio de Janeiro: Odeon,1957 e Caymmi: som, imagem e magia (LP), 1985. A denominação Canções Praieiras aparece como um gênero musical autoral em toda a discografia de Caymmi, a partir do LP de 1954, e em toda a bibliografia especifica dedicada ao músico. As obras citadas aqui são, apenas, aquelas que expõem e/ou tematizam mais diretamente o gênero. 319 cf. BARBOSA e ALENCAR, Caymmi. 1985 e S. CAYMMI. Dorival Caymmi. 2001, passim.

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Nessas músicas, divididas normalmente em duas ou três seções contrastantes, alguns elementos de samba, mais especificamente de samba-de-roda – ou citações musicais daquilo que seria chamado de “folk-lore” nas primeiras edições do seu “Cancioneiro da Bahia”320 – misturam-se com cromatismos e com outras técnicas que lembram o chamado impressionismo francês de Massenet, Fauré e Debussy. Antônio Risério, além disso, chamou a atenção, na entrevista que fizemos, para um aspecto curioso da obra de Caymmi. O poeta- antropólogo321 refere-se a uma das conversas telefônicas que ele teria mantido com Dorival e acaba citando uma das canções praieiras como exemplo:

“Ele fala que ali tinha que esperar a maré vazar, porque quando a maré enchia encontrando o rio não dava pra passar. Então os mais malucos passavam por fora de canoa, de jangada. Ele disse "Mas a gente, biritado, esperava." Ele falou "Foi aí que eu fiz a música "Quando a maré vazar / vou ver Juliana...""322 [por]que ele é muito literal nas coisas dele, né? As coisas dele têm isso.”

Esse caráter pictórico das canções de Dorival, de um modo geral, e especialmente do seu gênero praieiro, pode ser considerado mais um dos elementos ambíguos que envolvem a persona do compositor. É fácil ligar essa literalidade caymmiana, afinal, à espontaneidade e a uma relação orgânica com a natureza da Bahia ou do litoral, como fez seu amigo Jorge Amado inúmeras vezes323 Os elogios que o famoso escritor fazia frequentemente ao compadre Caymmi desde os primeiros anos de sua longa carreira pareciam esconder, aliás, um certo incômodo neste sentido. O historiador André Domingues, num artigo recente324, propõe inclusive uma espécie de releitura dos adjetivos exagerados, do estímulo constante e da insistência de Jorge em sua eterna louvação do talento natural, quase divino, da baianidade genuína e da musicalidade popular de seu grande amigo. O romancista e o compositor teriam travado, aparentemente, uma disputa tácita em torno da noção de povo, do que poderia ser considerado como popular e da utilização prática dessas categorias através dos seus muitos anos de convivência.

320 cf. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c.1967. 321 BOSCO e Sergio COHN (orgs.), Antônio Risério. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 57. Essa auto definição foi retirada de uma entrevista publicada originalmente no jornal O Tempo, em 08/01/1997. 322 cf. D. CAYMMI, Vou Ver Juliana lançada, de acordo com a Discografia Essencial, p. 604, pelo Quarteto em Cy em 1968, no LP “Quarteto em Cy Maior” da Elenco, lado A, faixa 3. 323 cf., e.g., AMADO, Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios Rio de Janeiro: Record, 1986.; D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c.1967; CAYMMI. Caymmi. 1972 e CAYMMI, Caymmi.1985, disco 1, faixa 1. 324 DOMINGUES, Bahia a Dois: consonâncias e dissonâncias na aliança entre Dorival Caymmi e Jorge Amado in SANTANNA e LEAL, Cem Anos de Dorival Caymmi, 2015.

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Jorge, em resumo, costumava desencorajar as atividades de Dorival – tais como a pintura, a leitura, a escrita jornalística e outras expressões esporádicas dos diversos interesses325 do “cantor das graças da Bahia”326 – que não tinham uma relação direta com a música, com a “alma e [o] corpo do povo negro”327 ou com a terra natal de ambos. A vida de Caymmi teria sido reimaginada e recontada, ao longo dos anos, nos romances amadianos e nos seus textos de ocasião328, obviamente a partir dos pressupostos que embasavam essas restrições e incentivos específicos. A personagem simultaneamente real e fictícia desse “enternecido poeta dos pescadores”329 desempenharia ainda, junto com o cancioneiro associado a ela, um papel político importante. O compadre Dorival – sendo um homem gentil, sedutor, popular e talentoso – foi visto, de acordo com Domingues, como uma grande esperança na tentativa de aproximação entre as esquerdas de meados do século XX, os intelectuais, os artistas e a população brasileira de um modo geral330. Conforme indicado no capítulo anterior331 essa questão, que aliás nunca se desdobrou em situações verdadeiramente conflituosas, pode ter sido a única divergência significativa entre esses dois amigos. O esforço que Jorge Amado fez para construir e divulgar essa imagem ideal de Caymmi, porém, não foi de maneira alguma uma iniciativa pessoal e isolada. Desde o final da década de 1930, pelo menos, a crítica especializada e os jornais diários caracterizavam o jovem Dorival como um homem simples, nativo e quase folclórico332. Até hoje, mesmo tendo se dedicado a outras temáticas e circulado por diversos ambientes socioculturais, o “cantor e intérprete de seu povo”333 ainda costuma ser confundido com as personagens e as próprias ações de seus sambas-de-roda e, principalmente, de sua poética praieira. É possível afirmar,

325 Além de dedicar-se durante muito tempo à pintura, Caymmi manteve uma atividade esporádica como cronista de alguns jornais cariocas e cultivava, evidentemente, uma série de hábitos e interesses particulares. Esses interesses iam do colecionismo de objetos pequenos – bengalas, anéis e punhais, por exemplo – à leitura de poetas contemporâneos, como Adélia Prado. Dados obtidos na entrevista realizada com Danilo Caymmi em 23/05/2012 (v. a nota n.5 acima); em S. CAYMMI, Caymmi. 2001, passim; nas entrevistas realizadas com o próprio Dorival, e.g. D. CAYMMI e FARO, Dorival Caymmi – Programa Ensaio, 2009; cf. também a descrição jocosa das manias do compositor por seu amigo Carybé in CARYBÉ, Depoimento de Carybé in CAYMMI, Caymmi. 1985, disco 1, faixa 16. 326 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 327 Id., p. 8. 328 e.g., AMADO, Bahia de Todos os Santos, 1986 (1945); Dona Flor e Seus Dois Maridos. São Paulo: Cia. das Letras, 2008 (1966); O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria, idem, 2010 (1988); Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que nunca escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992; D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c.1967; CAYMMI. Caymmi. 1972 e CAYMMI, Caymmi.1996, disco 1, faixa 1. 329 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p. 9. 330 cf. DOMINGUES, Bahia a Dois, especialmente da p. 43 em diante in SANTANNA e LEAL, Cem Anos de Dorival Caymmi, 2015. 331 cf. o oitavo item do capítulo 1. 332 cf., da mesma forma, a discussão levantada no final do capítulo anterior. 333 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in D.CAYMMI, Caymmi, 1972.

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inclusive, que esse tipo de sobreposição acentuou-se continuamente nas últimas décadas da vida e da carreira do compositor baiano. Além de repetir ad infinitum os velhos chavões amadianos sobre a genialidade espontânea e a simplicidade de Caymmi, os músicos e os críticos da atualidade chegariam às vezes, até mesmo a desconsiderar qualquer distinção entre sujeito e objeto, identificando Caymmi com o próprio mundo físico e com as paisagens naturais, como faz Arnaldo Antunes ao dizer coisas como “não parece coisa feita por gente: parece o canto das coisas em si.”334 Por outro lado, considerando-se esse aspecto literal, imagético e evocativo do cancioneiro caymmiano, não é difícil lembrar-se das características programáticas dos compositores nacionalistas do final do romantismo europeu e de suas incansáveis descrições sonoras de paisagens icônicas ou da plasticidade dos títulos poéticos que os autores do impressionismo francês escolhiam para denominar suas partituras. É o caso, por exemplo, de “A Manhã de um dia de Festa” ou do “Diálogo do Vento com o Mar”, peças orquestrais de Claude Debussy.335 Talvez não seja à toa que a Élégie de Massenet tenha sido, de acordo com o depoimento de Dorival que consta numa de suas duas biografias, a primeira melodia que chamou a sua atenção durante os seus primeiros anos de vida, em Salvador. Essa informação, dada por um compositor quase sempre associado à autenticidade baiana e ao “folk-lore”, é muito significativa, sendo ela uma lembrança construída a posteriori ou não. Stella Caymmi transcreve dessa forma a primeira lembrança musical do avô no seu “O mar e o tempo”:

“Tinha uma moça chamada Lídia e seu irmão menor, Augusto. Eles ouviam música na vitrola de corda, passagem do gramofone para a eletrola. Ouvi uma melodia que me tocou profundamente, „Élégie‟, de Jules Massenet. Melodia que guardei e repetia. Eu tinha 4 anos. Foi um despertar violento com „Élégie‟, que me provocava um sentimento pungente, uma melancolia. Parece que chorei, mas eu era tão pequeno, meu Deus.”336

334 cf. ANTUNES, 40 Escritos, 2000, p. 82. 335 cf. Donald J. GROUT e Claude V. PALISCA, História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2005 (1988). Esses títulos, “Le Matin d´un Jour de Fête” e “Dialogue du Vent et de la Mer” no original, foram tirados respectivamente do terceiro movimento de “Ibéria” (1908), a segunda “Image pour Orchestre” de Debussy (1862-1918), e do último “esboço sinfônico” de “La Mer” (1905), uma das partituras mais conhecidas deste mesmo compositor. 336 cf. S. CAYMMI. Caymmi. 2001, p.59.

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Entretanto, uma biografia anterior, porém, parece trazer outra versão da história. A primeira música de Dorival parece ter sido escutada em meio a uma variedade maior de opções. Chamaríamos hoje todas elas de populares:

“Eu me vejo sempre desde muito cedo ligado com música. Tínhamos em casa violão, bandolim e, em casa dos meus avós, piano. Meu pai, além de cantar, tocava violão. E piano. As músicas cantadas na época, tenho certeza de que se cantava de Catulo da Paixão Cearense a Chiquinha Gonzaga”337 (grifo meu).

Essa descrição mais prosaica talvez não chegue a invalidar a outra, já que a pergunta talvez não tenha sido sobre a sua lembrança musical mais antiga. No meio de sua fala, inclusive, Dorival parece responder a uma questão intermediária retirada do texto final – e talvez a estranha separação entre sujeito e predicado, no trecho grifado por mim, seja um indício dessa edição – sobre “as músicas cantadas na época”. Em todo caso, ainda que se confirmem duas versões para um mesmo evento, a curiosidade instigada pela primeira citação não só permanece como, de certa forma, aumenta. Por que Caymmi teria essas duas lembranças? Elas são sucessivas ou teriam sido também simultâneas? Quais poderiam ser os seus objetivos, conscientes ou não, ao contar uma e a outra? Em que contexto específico essas respostas foram dadas? Existe, por fim, uma diferença qualitativa na memória de Dorival entre a escuta familiar mediada por instrumentos acústicos e as novíssimas formas de ouvir música na rua ou na casa dos outros, naquela Bahia do início do século XX? Isso explicaria, ou não, o primeiro episódio que lembra uma espécie de iluminação do “Buda Nagô”?338 Seus dois filhos, que também são músicos, Dori e Danilo, ressaltaram igualmente nas suas entrevistas o gosto do pai pela música erudita e a sua escuta cotidiana dos impressionistas franceses, especialmente de Debussy. Dori, por exemplo, afirmou enfaticamente o seguinte:

“Ele ouvia [música erudita]. Ele ouvia muito. Ele ouvia muito. A minha primeira influência de música foi “Clair de Lune”, de Debussy, que eu ouvi muito pequeno; muito garoto ainda eu me apaixonei por esse som. Foi essa coisa do Debussy, tanto que eu queria tocar piano...”

337 cf. BARBOSA e ALENCAR, 1985, p.29 338 cf. MOREIRA e RENNÓ, Gilberto Gil, 1996, p. 338-9 e MOREIRA e Dinahir CAYMMI, Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará (LP)., 1992, lado A, faixa 4.

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A influência que as peças de concerto, ou quaisquer outros tipos de música teriam, ou não, sobre as técnicas composicionais e as práticas interpretativas de Dorival é, aliás, de uma maneira ou de outra, um tema em aberto que nem sempre é discutido na bibliografia específica. O autodidatismo do artista, por outro lado, é um consenso. Cada estudioso da trajetória de Caymmi, no entanto, apresenta o assunto com uma ênfase específica. Deixando de lado as argumentações mais simplistas que tendem a ligá-lo, sem muita mediação, às origens sociais ou geográficas do “môço Caymmi”339, destaco duas opiniões levemente contrastantes. Para André Domingues a incompatibilidade entre, por exemplo, a escuta de Mário de Andrade e o violão do baiano340 está mais ligada à estética exteriorizada nas suas canções, do que ao autodidatismo em si.341 Risério, porém, não tenta resolver essa outra ambivalência caymmiana, estabilizando-a. Talvez por ser também um antropólogo que se formou e se mantém até hoje fora da academia, como ele mesmo gosta de dizer ou, quem sabe, por ser um poeta que não consegue “arquivar o olhar estético sequer ao longo da leitura de um texto científico – que muitas vezes me fascina por sua geometria conceitual, sua construção rigorosa e cristalina, suas reverberações temáticas, suas simetrias.”342 Ele prefere, de qualquer forma, mantê-la “em suspenso” e cria uma figura de retórica digna de seu xará Antônio Vieira. Dorival é mais espontâneo na medida em que é mais metódico, afinal:

“O coloquialismo caymmiano costuma obscurecer o fato de que Caymmi é um artesão verbal consciente e paciente, como se o coloquialismo não fosse uma questão de estilo, ou como se a “espontaneidade” não fosse uma questão de método.” 343

Antes de prosseguir, vale a pena escutar um comentário de Dona Dinahir Caymmi sobre o assunto. A irmã caçula de Dorival acabou construindo, na entrevista que fizemos, uma bonita visão retrospectiva da carreira desse menino que “foi longe” a partir de suas lembranças domésticas dos anos de 1920 e 30, da inteligência e do autodidatismo. Ela tinha 94 anos quando esse depoimento foi gravado e talvez seja a única, hoje em dia, que pode colocar a questão nesses termos:

339 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967. 340 cf., a respeito da indiferença marioandradiana em relação à música de Caymmi, os itens oito e nove do capítulo precedente. 341 cf. DOMINGUES, Caymmi sem Folclore. 2009, p.115. 342 cf. BOSCO e COHN, Antônio Risério, 2009, p. 57. 343 cf. RISÉRIO, Caymmi.1993, p.147.

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“Dorival sentava, às vezes ia, ficava, ia na cozinha tocar violão, ele já, às vezes andava assim, tocava o violão até andando. E aí papai ficava assim: "Meu Deus, ensinei dois tons a esse menino, ele foi longe!", que ele tem de tocar [sic], ele fazia cada acorde que a gente assim ficava boba de ver, os acordes lindos que Dorival fazia no violão. Foi assim, ó! Papai ensinou uns tons a ele só, sem [que] ninguém ensinasse, sem livros, sem coisa nenhum, ele foi muito inteligente, Dorival. Muito.”

É possível imaginar – retornando à questão das possíveis influências musicais do “cantor das graças da Bahia”344 e a partir da primeira declaração de Dori transcrita acima – a frequência com que se ouvia o compositor de La Mer na casa dos Caymmi, ainda que ele, Dori, tenha associado o impressionismo mais às suas próprias harmonias do que às de seu pai:

“O meu gosto harmônico vem de arranjadores americanos, vem de Ravel, Debussy, música clássica, um tal de... os impressionistas, que eu gosto muito. E quando eu gravei a música dele eu já acrescentei umas coisas assim já do meu modo de ver harmônico, que não era o dele. E a minha visão não tem a ver com o trabalho dele de harmonia. Eu sempre tenho uma visão, e depois eu mudo muito, não consigo fazer a música da mesma maneira por muito tempo, eu começo a mudar muito harmonicamente. Sem tentar destruir o âmago, a história, a ideia inicial, né? Mas eu gosto muito disso, então meu campo é completamente diferente do dele. Ele era espontâneo assim e tudo. Eu já estudei um pouco mais, sabe?”

Danilo, irmão mais novo de Dori, além de ampliar as preferências musicais de seu pai, que passa a incluir as “Partitas” de Bach e o nacionalismo romântico tardio do norueguês Edvard Grieg “[d]e esses compositores, os russos”, relaciona a escuta dele, Dorival, com o seu gosto pelas artes plásticas. Talvez essa ligação entre as pinceladas soltas, o emprego da luz natural e as escalas de tons inteiros seja uma pista a mais para entender a visualidade das composições caymmianas:

“Grieg ele gostava muito, Debussy, Ravel... os impressionistas, né, tanto na música quanto na pintura também. Muito ligado à pintura, às artes plásticas. Isso passou muito pra mim na infância.”

344 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7.

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5. FILHO DA CASA REAL DA INSPIRAÇÃO345

Dorival, com as suas canções praieiras, teria sido um exemplo único de compositor popular cuja obra teria exigido a criação de um gênero musical próprio, na primeira metade do século XX, se não fosse esse também o caso de Luiz Gonzaga346, outro nordestino que estreou no Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 40. Esse artista pernambucano, excetuando-se, talvez, a influência da música erudita, teve um início de carreira parecido com o de Caymmi, associando-se, por sua vez, ao gênero autoral baião347. É curioso notar, aliás, que, de alguma forma, mas não necessariamente por esse motivo específico, os dois compositores são relacionados com frequência. A etnomusicóloga Lydia Hortélio, numa entrevista feita em 2011, considerou, por exemplo, as inovações estéticas de ambos e, ao mesmo tempo, a fidelidade deles às tradições musicais locais, imprescindíveis para o desenvolvimento de uma linguagem musical brasileira contemporânea, a partir de meados do século passado. Gilberto Gil faz, na entrevista que realizamos, uma comparação mais explícita entre os dois compositores “mulatos”:

“Caymmi teria sido o primeiro mulato, baiano nato, mestiço, baiano a cativar, digamos assim, o país, como nação inteira. Como Gonzaga foi o primeiro mulato nordestino a fazer isso, o mulato pernambucano, o mulato do sertão.”348

Em outro momento da sua entrevista Gil compara novamente Luiz Gonzaga e Dorival, ao falar sobre a necessidade que ele teve na volta do seu exílio londrino, que havia durado de 1968 a 1972, de utilizar a música dos dois como “um amuleto”, “um mergulho”, “um tobogã para uma coisa profunda”. A segunda expressão utilizada por Gil, aliás, referia-se diretamente à estética e à temática das canções praieiras de Caymmi. Ele comentava, nesse caso, o tratamento de samba-de-roda que tinha dado à composição “Rainha do Mar”349, uma das

345Este é um dos versos do samba Buda Nagô que Gilberto Gil fez em homenagem a Dorival Caymmi, cf. MOREIRA e D.T. CAYMMI, Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará, 1992, lado A, faixa 4. 346 cf. FONTELES, O Rei e o Baião, 2010. 347 Talvez Dorival não tenha recebido o gênero baião muito bem, aliás. Cf., a respeito, DOMINGUES, Caymmi sem folclore. 2009, p.98. 348 cf. RISÉRIO, Caymmi. 1993, p. 41. Risério em “Uma utopia de lugar”, entretanto, não vê ligação entre os dois compositores. É interessante a utilização que ele faz dessa mesma tipologia que divide o Nordeste em dois para dizer o exatamente o oposto de Gil. 349 cf. D. CAYMMI, Rainha do Mar lançada, de acordo com a Discografia Essencial, p. 596, pelo próprio compositor em 1939, num 78 rpm da Odeon.

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músicas mais representativas do gênero, numa gravação de 1973350. O tobogã, “inflexão” ou “mergulho” referia-se, especialmente, à repetição dos versos finais – “nas onda do mar / aonde ela habita” – no registro mais grave de sua voz. “Esse mergulho” teve, também, o objetivo consciente – pelo menos na lembrança de Gil, quarenta anos depois – de estabelecer, para si, uma posição privilegiada no contexto da música popular brasileira, enquanto um dos descendentes da sua linhagem “fundamental”. Nesse “clã” ou “casa real” Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga, ainda que estivessem vivos, já desempenhavam o papel de ancestrais. Gilberto Gil, comentando ainda a gravação de “Rainha do Mar” numa das falas mais densas da sua entrevista, cita os dois compositores alternadamente, faz uma possível menção ao momento de maior tensão harmônico-melódica – “Meu Senhor dos Navegantes, / venha me valer! / Ô, venha me valer!” – de outra canção praieira, “Festa de Rua”351, e ainda coloca- se no presente para dizer o que pensava no momento em que tocava no estúdio sozinho, com seu violão:

“Eu tô querendo me valer. Eu tô querendo me... né? Valha-me, nossa senhora, valha-me, valha-me, valha-me Caymmi, né? Valha-me Gonzaga, valha-me! Valham-me todos nessa! Eu tô sempre me protegendo. Sempre. É uma forma de reiterar que sou filho, que sou discípulo, sou linhagem.”

Nessa declaração curta de Gil há uma última camada de significados, capaz, por sua vez, de aumentar mais ainda a sua densidade e o seu poder evocativo. Dorival já havia sido gravado algumas vezes em 78RPM, entre 1939 e 1952. Esses fonogramas traziam acompanhamentos orquestrais elaborados ou arranjos para os regionais de choro das rádios de então352. Ele lançaria o seu primeiro LP apenas em 1954, acompanhado unicamente pelo seu violão. Essa escolha, bastante inusitada para a época, talvez tenha partido do próprio compositor e provavelmente enfrentou muita resistência dos técnicos aos produtores comerciais da indústria do disco àquele momento353. É possível encontrar, em algumas falas de caráter técnico-musical dadas por Danilo e por Dori Caymmi em suas entrevistas, uma provável ressonância da posição do pai deles a

350 cf. MOREIRA (Gilberto GIL), Cidade do Salvador (CD). Rio de Janeiro: Universal, 1999, faixa 11. 351 cf. D. CAYMMI, Festa de Rua lançada, de acordo com a Discografia Essencial, p. 585, pelo autor em 1949, em um 78 rpm da RCA-Victor. 352 cf. S. CAYMMI. O Que é que a Baiana Tem? 2013 e DOMINGUES, Caymmi sem Folclore, 2009. 353 cf. BARBOSA e ALENCAR, Caymmi. 1985; S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001 e O Que é Que a Baiana Tem? 2013 e RISÉRIO, Caymmi. 1993.

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respeito desse assunto. Dori informa, por exemplo, que “ele nunca se sentiu bem com” as orquestrações de seu trabalho logo depois de afirmar o seguinte:

“Tinha uma questão muito bacana. Ele era Caymmi e seu violão, né? Muito raramente vinha um otário ou um idiota com ideia de botar orquestra atrás de papai, que é uma coisa que eu acho execrável. Todo o trabalho de orquestra junto com papai tirava toda característica dele. Eu acho que ninguém conseguiu.”

e acrescenta, após alguns minutos:

“Se você perguntasse pra ele qual é o cantor que você acha que canta melhor o seu trabalho ele falava assim "Eu." Ele falava logo, não tinha conversa não. E era mesmo, né?”

Danilo, seu irmão caçula, também disse e repetiu em off que nem os instrumentistas mais talentosos, como Rafael Rabelo, conseguiram imitar o violão de seu pai. É possível, então, concluir, com uma boa margem de probabilidade, que tanto a opinião dos filhos de Dorival quanto a dele próprio sobre a sua capacidade de tocar melhor sozinho deve ter sido a mesma. O LP de 1954 – que é chamado justamente de “Canções Praieiras”354 e é integralmente dedicado ao gênero em questão– ficaria, de qualquer maneira, famoso exatamente por isso.355 Era a primeira vez, no Brasil pelo menos, que uma interação complexa entre violão e voz era explorada de forma explícita e programática e que um álbum inteiro de música popular seria lançado sem as figuras costumeiras dos arranjadores e maestros. Se levarmos em consideração que essa era a instrumentação específica à qual Gilberto Gil fazia referência, na sua fala citada anteriormente, às técnicas musicais empregadas para que ele fosse reconhecido como parte de determinada linhagem e a ansiedade envolvida no seu pedido reencenado, quase religioso, de auxílio aos dois mestres espirituais, os soberanos vivos daquela “casa real”, ganham outro sentido. Ele tinha, afinal, gravado sozinho com seu violão uma das canções praieiras mais icônicas, logo após a sua volta do exílio londrino. “Rainha do Mar”, para completar o gesto audacioso do “discípulo” Gil, fazia dupla com a

354 cf. D. CAYMMI, Canções Praieiras, 1954. 355 cf. S. CAYMMI, Caymmi e a Bossa Nova. 2008 e RISÉRIO, Caymmi.1993.

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faixa anterior, a composição inédita “Ladeira da Preguiça”356. As duas canções seriam tocadas praticamente do mesmo jeito no disco de 1973. A nova música, aliás, incluía também a temática praieira, já que seus versos envolviam uma comparação entre a ilha de Formentera no litoral da Espanha, e um itinerário pelo litoral da Baía de Todos os Santos. É através desse contraste praieiro que Gil tentava deixar uma “mãe” distante, baiana provavelmente – e aqui não importa muito se se trata de uma mãe concreta ou imaginária – mais tranquila. O artista ainda devia brincar, finalmente, com o duplo sentido de tudo isso, dessa “forma inteira”. É até possível que a sua preguiça, tratada de modo muito bem humorado, “de contar pra casa / que esse mundo é uma maravilha” não fizesse referência direta a um dos estereótipos relacionados mais insistentemente com a figura do “enternecido poeta dos pescadores”357. Mas Caymmi, de todo jeito, não parece sair das referências, da perspectiva do jovem exilado na Europa. Gilberto Gil, afinal, invocava e pedia a benção, de uma Formentera ou de outra, ao compositor e ao intérprete Dorival Caymmi.

6. O PONTO MAIS ALTO DA CRIAÇÃO BRASILEIRA358

Embora não seja o único gênero musical ao qual tenha se dedicado ao longo da sua carreira, Caymmi teve o seu nome bastante associado às Canções Praieiras. O mesmo aconteceria com Luiz Gonzaga em relação ao baião, aliás. Essa ligação íntima entre o autor e parte de suas criações teria ocorrido a partir de, no mínimo, dois expedientes que marcaram as primeiras décadas da sua carreira. Ambos já foram mencionados acima, mas vale a pena retomá-los resumidamente nas próximas linhas. Em primeiro lugar, essas canções parecem ter sido essenciais para o compositor fazer nome, criar uma assinatura única, diferenciada, durante o seu lançamento público enquanto compositor e intérprete, algo que se deu através dos programas de rádios e da indústria cinematográfica entre 1938 e 1939359. Esse mesmo efeito parece ter sido buscado continuamente por Dorival ao longo de sua carreira duradoura. A prensagem do seu primeiro

356 cf. MOREIRA (Gilberto GIL) e Carlos RENNÓ, Gilberto Gil. 1996 e MOREIRA, Cidade do Salvador. 1999, faixa 10. A canção, segundo o livro que reúne “Todas as Letras” de Gilberto Gil com anotações e comentários do autor, foi composta em 1971 (p.126). Ela não teria sido lançada, entretanto, nos álbuns anteriores do artista – “Gilberto Gil” (1971), “Barra 69” (1972) e “Expresso 2222” (1972) – sendo, portanto, gravada apenas em 1973 por Elis Regina e pelo autor. 357 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p. 9. 358 cf. AMADO, Depoimento de Jorge Amado in CAYMMI, Caymmi. 1985, disco 1, faixa 1. 359 cf. S. CAYMMI, Caymmi e a Bossa Nova. 2008; O Que é Que a Baiana Tem? 2013, passim.

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LP, em 1954360, o predomínio do gênero praieiro nas composições do emblemático álbum “afro” de 1972361, os programas dos grandes shows que ele fez na segunda metade do século XX362 e, finalmente, o seu último hit single, “Caminhos do Mar”363, são alguns exemplos eloquentes do uso sistemático – especialmente em momentos de autoafirmação ou de incertezas profissionais – do gênero praieiro. Por outro lado com a publicação das diversas edições do “Cancioneiro da Bahia” – livro que tratava, provavelmente pela primeira vez no Brasil, um determinado conjunto de letras de música como uma produção de valor literário intrínseco364 –, com os prefácios que Jorge Amado foi escrevendo para elas365 e com os próprios livros desse seu amigo Dorival Caymmi366 foi sendo relacionado insistentemente com o mar, com o orixá Iemanjá e com o povo baiano negro, mestiço ou mulato367. Stella Caymmi mostra como, finalmente, a atividade da imprensa e da crítica do período tratou de completar o quadro dizendo, de diversas maneiras, que a originalidade de Dorival e suas habilidades técnicas impressionantes estavam diretamente relacionadas com o conteúdo autenticamente baiano e praieiro de sua música e, especialmente, de suas letras. Como já foi discutido anteriormente, Caymmi teria encontrado dificuldades e avaliações negativas toda vez que tentava se afastar desses temas, pelo menos nos seus primeiros anos de carreira.368

360 cf. CAYMMI, Canções Praieiras.1954. 361 D. CAYMMI, Caymmi, 1972. 362 cf., a respeito dos dois espetáculos realizados no Teatro Castro Alves (Salvador –BA) em 1967 e 1984, respectivamente, S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 421 e 467e D. CAYMMI, Setenta Anos (LP). Rio de Janeiro: Funarte/MEC ,1984. O show do compositor com a cantora Gal Costa é descrito, com alguns detalhes, em S. CAYMMI, op. cit., pp. 452-8. As gravações dos shows com a família Caymmi feitos no final do século XX estão disponíveis em CAYMMI, Dori CAYMMI, Nana CAYMMI e Danilo CAYMMI, Caymmi´s Grandes Amigos (LP). EMI, 1986; Dori, Nana, Danilo e Dorival Caymmi (LP). EMI, 1987; Família Caymmi em Montreux (CD). PolyGram, 1991. 363 cf. D. CAYMMI, Danilo CAYMMI e Carlos Eduardo C. A. FALCÃO (Dudu FALCÃO), Caminhos do Mar. A canção – feita para a abertura da novela “Porto dos Milagres”, da Rede Globo de Televisão – foi lançada por Gal Costa, em 2001. Informação obtida na Discografia Essencial, p. 580. 364 O Cancioneiro da Bahia, que já foi amplamente utilizado no capítulo anterior deste trabalho, é inteiramente dedicado à obra de Caymmi. A obra em questão foi uma das primeiras a reunir as letras e músicas de um compositor popular no país. Ela foi organizada por Jorge Amado e ilustrada por Clóvis Graciano em 1947, sendo publicada em São Paulo. Os seus únicos predecessores talvez sejam os livros de Catulo da Paixão Cearense – cf., em relação a estes, SEVERIANO. Uma História da Música Popular Brasileira. 2008, pp. 65-6. 365 cf., e.g., CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. 1947 e s/d. 366 cf., e.g., AMADO, Bahia de Todos os Santos. 1991 e Navegação de Cabotagem. 1992. 367 cf. ROSSI, O Intelectual Feiticeiro, 2011, p.133 et seq. e principalmente As Cores da Revolução: a literatura de Jorge Amado nos anos 30. São Paulo: FAPESP/Annablume, 2009. 368 cf. S. CAYMMI, Caymmi e a Bossa Nova. 2008, passim, junto com a discussão desenvolvida a partir do oitavo item do capítulo precedente.

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Até hoje369, de qualquer forma, as canções praieiras são consideradas, e adoto mais uma vez a linguagem peculiar de Jorge, “o ponto mais alto da criação”370 caymmiana. Seu melhor amigo devia achar isso no mínimo desde 1947371. Muitos consideram, inclusive, seguindo mais um pouco o depoimento que o romancista daria quase quarenta anos depois “o ponto mais alto da criação brasileira”. Dizer, então, que o gênero praieiro tinha seu apelo sedutor para os ouvidos cariocas das décadas de 1940 em diante e que mais tarde, através dos rádios, filmes, fonogramas e da televisão, ele seguiu ganhando adeptos e discípulos por boa parte do país, não acrescenta muita coisa ao que já é sabido e repetido. Depois dessa recapitulação, é interessante refazer ou redimensionar algumas perguntas, ainda que elas não precisem nem devam ser respondidas de um jeito apressado. Como é, de saída, que a popularidade desse conjunto de composições, desse gênero musical autoral em suma, se deu musicalmente? A sofisticação harmônica, os acordes esquisitos372 e a possível influência da música de concerto europeia, seja ela de ouvido ou não, teriam contribuído para a maré cheia, para o apelo extremamente eficaz, das toadas de Dorival? A mistura dessas influências com o samba-de-roda e o “folk-lore” foi outro elemento chamativo naquele Rio interessado nas mais diversas novidades autenticamente locais? E hoje, qual o papel que esses elementos desempenham, passados mais de setenta e cinco anos da estreia de Caymmi? E, por fim, será que essas e outras ambiguidades que envolvem a persona desse músico profissional e pintor retratista amador não são, exatamente, a razão de seu êxito? Talvez essas ambiguidades estejam presentes desde o início nas canções praieiras exatamente por causa da capacidade técnica, violonística, de Dorival Caymmi. No seu violão, afinal, parece caber o virtuosismo extrovertido das seções em ritmo de samba e ao mesmo tempo o silêncio (e o vento)373 que o seu dedilhado parece chamar nos rallentandi tristes daquelas músicas cheias de recitativos e recapitulações. Esses temas serão retomados e retrabalhados no capítulo seguinte, “Se quiser falar de mim...”, através de algumas análises musicais e de uma interpretação simultaneamente social e simbólica dos elementos composicionais frequentemente utilizados por Caymmi.

369 cf. BOSCO, Dorival Caymmi.1996, pp. 47-60. 370 cf. a nota n. 358 acima. 371 cf. CAYMMI. e AMADO, Cancioneiro da Bahia. 1947, passim. 372 cf. a terceira epígrafe da p. 110 acima. 373 cf. CAYMMI, Caymmi e o Mar. 1957, lado A, faixa 4.

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Chegou o momento de concluir essa verdadeira “navegação de cabotagem”374, porém. Essa primeira incursão pela produção musical caymmiana, que manteve as Canções Praieiras o tempo todo à vista, já deve – ou, pelo menos, deveria – ter esgotado seus objetivos analíticos panorâmicos. Depois de passar, em pinceladas soltas, pela intertextualidade corajosa de Gilberto Gil – um artista que, de certa forma, interliga quase todas as partes do presente texto, ao desempenhar uma variedade grande de papéis importantíssimos em minha introdução, aqui e na conclusão da tese – , pela instrumentação de Dorival, pelo pedido de auxílio desse discípulo do “Buda Nagô”375, por uma comparação entre dois compositores nordestinos e pela possível influência de Debussy na musicalidade caymmiana essa incursão pelo gênero autoral de Caymmi termina, também, da maneira mais silenciosa possível.

É quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo pra noite chegar

É quando se ouve mais forte o ronco das ondas na beira do mar376

e essa primeira tentativa de rastrear, de medir a eficácia de um conjunto de canções, esbarra no caráter fascinante delas mesmas. A curiosidade antropológica dá lugar à simples vontade de ouvir. Mais uma vez vale lembrar um dos paradoxos que Antônio Risério adora e sentir junto com Francisco Bosco e Arnaldo Antunes que o efeito, o apelo dessas velhas toadas, é assombroso, que até parece algo metafísico, coisa de outro mundo, nas palavras de um deles, “a certeza do ser”377, categórico e pronto. Em seguida, no entanto, é preciso tomar a direção oposta. Através de uma listagem de músicas lançadas depois de 1967 e de algumas considerações sobre a rotina de trabalho do

374 cf. AMADO, Navegação de Cabotagem, 1992. Além de remeter ao universo literário amadiano, a locução “navegação de cabotagem” – uma espécie de navegação costeira, praticada em águas rasas e que procura manter sempre o contato com a terra firme – descreve bem a estratégia narrativa adotada na maior parte deste capítulo. 375 cf. MOREIRA e RENNÓ, Gilberto Gil, 1996, p. 338-9 e MOREIRA e Dinahir CAYMMI, Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará (LP)., 1992, lado A, faixa 4. 376 cf. CAYMMI, Caymmi. 1996, disco 2, faixa 3. 377 cf. o terceiro capítulo de BOSCO, Dorival Caymmi. 1996, As Canções Praieiras: a certeza do ser, pp. 47-60.

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“mestre Dorival Caymmi”378 as páginas seguintes assumirão uma tonalidade nova e contrastiva. Essa mudança de enfoque analítico será feita com todo o cuidado possível, numa tentativa de não diluir ou tirar a ênfase do caráter humano, do trabalho paciente que produziu essas canções e esse efeito de literalidade genial, de paisagem natural que canta a si mesma. O capítulo seguinte, em outras palavras, tentará associar os conteúdos, as técnicas musicais, os interesses e as vontades específicas expressos nesse cancioneiro à série de circunstâncias históricas que o tornou possível e eficaz, inclusive enquanto matéria prima, enquanto elemento ideal para as criações simbólicas mais diversas ou, até mesmo, para a produção de uma determinada mitologia caymmiana.

378 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” in CAYMMI, Caymmi, 1972.

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Capítulo 3

Se quiser falar de mim...

Me chamo siá Tereza perfumada de alecrim ponha açúcar na boca se quiser falar de mim

Flor no cabelo flor no xibiu mar e rio

Jorge Amado e Dorival Caymmi379

O velho sentado na beira da praia, com os olhos perdidos nas ondas do mar, enxerga o mistério, escreve o destino, espera o chamado, parece sonhar.

Com as mãos ele pega punhados de areia, que escorrem dos dedos, assim devagar, parece que sabe, na sua ampulheta, o tempo que ainda precisa esperar.

O velho encostado num pé de coqueiro, olhando mais longe que a linha do mar, escuta o silêncio soprando segredos que as águas salgadas parecem contar.

Paulo César Pinheiro380

379 cf. Jorge AMADO e Dorival CAYMMI, Modinha de Tereza Batista in Mário ROCHA e Roger HENRI (prods.), Tereza Batista (CD). Som Livre, 1992, faixa 2.

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1. VAGABUNDAGEM

Entre 1967 e 2008 Dorival Caymmi lançou em disco apenas 16 canções inéditas como intérprete e compositor simultaneamente. Neste mesmo período de quarenta e um anos, outros cantores e instrumentistas gravaram praticamente o mesmo número de fonogramas – foram 15 deles381 – registrando, também pela primeira vez, algumas das composições do “Buda Nagô”382. As canções lançadas pelo próprio Caymmi foram as seguintes, em ordem alfabética: “Acaçá”, que fez parte de um show em 1979, mas saiu em disco apenas em 1984; “Adalgisa”, gravada por ele em 1967, 1984 e 1987; “Afoxé” de 1985; “Canto de Nanã”, 1972; “Canto de Obá”, que teve duas gravações no ano de 1972; “Francisca Santos das Flores”, gravada em 1972 e 1984; “Itapoã”, 1972; “A Mãe d´Água e a Menina”, gravada em 1985 e 1987; “Maricotinha”, 1994; “Milagre”, gravada em 1977 e 1984; “Oração de Mãe Menininha”, gravada em 1972, 1984 e 1985; “Retirantes”, 1975; “Santa Clara Clareou”, 1972; “Sargaço- Mar”, gravada em 1985 e 1991; “Severo do Pão”, 1987 e “Vamos Falar de Tereza” de 1992. As gravações de suas músicas inéditas feitas, no entanto, por outros intérpretes na mesma época foram essas: “Anjo da Noite”, com Cynara e Cybele, duas integrantes do Quarteto em Cy, em 1968; “Balada do Rei das Sereias”, com Olívia Hime e seu filho Dori Caymmi, 1987; “Beijos Pela Noite”, gravada por seu outro filho, Danilo Caymmi, e sua nora, Simone Caymmi em 1994; “Cala a Boca, Menino”, com João Donato, 1973; “Caminhos do Mar”, com Gal Costa, 2001; “Canção Antiga”, gravada por sua filha Nana Caymmi em 1986; “Eu Cheguei Lá”, com o grupo MPB-4, 1971; “Horas”, com o Quarteto em Cy, 1975; “Mãe Stella”, com Danilo Caymmi, 1994; “Melodia do Meu Bairro”, com Paulo Tapajós, 1988; “Modinha de Gabriela”, com Gal Costa, 1975; “Modinha para Tereza Batista”, com Simone Caymmi, 1992; “Na Cancela”, com Toquinho, 1993; “Velhas Estórias”, com Danilo Caymmi, 1986 e “Vou Ver Juliana”, com o Quarteto em Cy, 1968.

380 Paulo César PINHEIRO e Dorival Tostes (Dori) CAYMMI, Velho do mar (meu pai) in Dori CAYMMI, Poesia Musicada (CD). Rio de Janeiro: Acari Records, 2011. 381 Essa estimativa e a lista de canções que será apresentada foram obtidas através do cruzamento de dados retirados das fontes seguintes: CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. São Paulo: Martins, 1947 (3ª. ed.); idem, s/d, c. 1967 (4ª. ed.); id., São Paulo: Círculo do Livro, s/d, c.1984; CAYMMI, Caymmi (LP). Odeon, 1972; Caymmi Também é de Rancho (LP), Odeon, 1973; Setenta Anos – Caymmi (LP). Funarte/MEC, 1984; Caymmi: som, imagem e magia (LP duplo). Fundação Emílio Odebrecht, 1985. CAYMMI e Marcus Vinícius de MORAES, Vinícius / Caymmi no Zum Zum (LP). Elenco, 1967. Dorival CAYMMI, Dori CAYMMI, Dinahir Tostes (Nana) CAYMMI e Danilo CAYMMI, Caymmi´s Grandes Amigos (LP). EMI, 1986; Dori, Nana, Danilo e Dorival Caymmi (LP). EMI, 1987; Família Caymmi em Montreux (CD). PolyGram, 1991 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 575-609, especialmente. 382 cf. a nota n. 28 acima.

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Depois da morte do compositor baiano, em 2008, a gravação de suas músicas inéditas ainda continuaria através dos trabalhos de seus familiares As últimas delas, por exemplo, foram o samba “Quando Eu Durmo” e a canção praieira “Sereia”, ambas lançadas por seus filhos em 2013383. Essa lista de gravações permite visualizar mais ou menos o que Dorival Caymmi produziu nas suas últimas quatro décadas de vida. Neste caso a exatidão é impossível. Algumas das canções com certeza foram compostas antes de 1967, uma vez que aparecem registradas nas primeiras edições do “Cancioneiro da Bahia”384. É o caso de “Acaçá”, “Afoxé”, “Canção Antiga”, “Itapoã”, “Melodia do Meu Bairro” e “Santa Clara Clareou”, todas terminadas antes de 1947. “Retirantes” e a melodia de “Canto de Obá” fizeram parte da trilha sonora criada por Dorival para uma adaptação cênica de “Terras do Sem Fim”, romance de seu amigo Jorge Amado. Ambas foram compostas, em ritmo acelerado, no sítio de Jorge em Nova Iguaçu, o Pegi de Oxóssi, entre 7 e 19 de março de 1947385. O título atual e a letra do “Canto de Obá”, que também são de Jorge Amado, não podem ser anteriores ao ano de 1969, no entanto. É muito provável que a aproximação do compositor com o candomblé tenha se dado após 1967 ou 1968, data do início da sua mudança para Salvador, cidade na qual ele moraria nos próximos 3 ou 4 anos386. Foi nesse momento em que ele decidiu “deitar pra fazer o santo”, segundo uma entrevista de 1994387, no candomblé do Gantois. Em seguida Dorival mudou-se para o terreiro do Opô Afonjá, recebendo seu cargo de Obá de Xangô das mãos de Mãe Ondina, ialorixá daquela casa de

383 cf. Dori CAYMMI, Nana CAYMMI e Danilo CAYMMI, Nana, Dori e Danilo: Caymmi (CD). Som Livre, 2013, faixas 1 e 4. 384 cf. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. 1947. 385 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 245-7. 386 Dorival Caymmi nasceu em Salvador em 1914 e mudou-se para o Rio em 1938. Ele residiu na capital fluminense até o fim da sua vida, excetuando-se o período citado. Morou em diversos endereços, especialmente nos bairros praieiros da Zona Sul. Caymmi também teve duas casas de veraneio, que ainda pertencem à sua família, uma em Rio das Ostras, também no estado do Rio, e outra em Pequeri, Minas Gerais. Entre 1967/1969 – a mudança demorou para ser feita por causa da agenda do artista e de entraves familiares – e 1972 ele voltou a viver na sua cidade natal. Essas e outras informações sobre os locais onde o compositor morou podem ser cf. nas duas biografias do compositor: BARBOSA e ALENCAR, Caymmi. 1985 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001; na introdução e no primeiro capítulo do presente trabalho e, principalmente, nas entrevistas que realizei com seus familiares. 387 Essa frase e as demais informações desse parágrafo foram obtidas através do cruzamento de dados entre as fontes seguintes: 1) Lendas e Crenças de um Obá de Xangô, sexta parte da entrevista CAYMMI e MÁXIMO, Caymmi por Ele Mesmo. 1994; 2) o prefácio de Jorge Amado à quarta edição do Cancioneiro da Bahia, AMADO, Vinte Anos Depois in CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c. 1968 (4ª. ed.), pp. 12-6; e 3) a contracapa do LP Caymmi de 1972 também assinada por Jorge in CAYMMI, Caymmi (LP). 1972.

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1969 a 1975388. A letra de Jorge é uma prece que gira em torno dessa nomeação e da vida familiar do seu amigo e “irmão de esteira”.389 Num caso raro – já que o autor raramente mencionava detalhes da sua produção, para além de histórias anedóticas sobre o seu jeito de compor ou sobre a inspiração de alguma letra – sabemos que “Adalgisa” já estava pronta em 1º de novembro de 1956. Naquela altura ela era a sua “mais recente canção”390. Por conta do seu método peculiar de composição391 é provável que outras das 21 músicas restantes, dentre as inéditas lançadas entre 1967 e 2008, tenham sido concebidas na primeira metade do século XX e completadas apenas nos últimos anos de vida do artista. Afinal, Caymmi costumava compor, segundo ele mesmo, na “vagabundagem”, deixando as músicas incompletas por muito tempo até que o surgimento de uma nova ideia contentasse o seu perfeccionismo392. O seu ritmo de criação só parece ter se alterado pelas encomendas que recebeu, quase sempre com prazos apertados. O compositor fez desse jeito trilhas sonoras de peças teatrais, a de “Terras do Sem Fim” que já foi mencionada, por exemplo, e, principalmente, de telenovelas como “Gabriela”, “Tereza Batista” e “Porto dos Milagres”393. De acordo com as palavras do próprio compositor – numa justificativa estranhamente flaubertiana, marcada pela recusa das repetições terminológicas, dos efeitos fáceis, e pela

388 cf. Deoscóredes Maximiliano dos SANTOS (Mestre Didi), História de um Terreiro Nagô (2ª ed. revista). São Paulo: Max Limonad, 1988 (1962) e Maria Stella de Azevedo SANTOS (Mãe Stella de Oxóssi), Meu Tempo é Agora. São Paulo: Editora Oduduwa, 1993, para a sucessão dos cargos principais da hierarquia do Opô Afonjá. Esses dois livros, fontes primárias importantes, foram escritos por integrantes do terreiro. 389 cf. CAYMMI, Caymmi. 1972, lado B, faixa 13. O significado da expressão “irmãos de esteira” empregada por Carybé para referir-se a Jorge Amado e Dorival pode ser cf. na nota de n.60 acima. 390 Entrevista de Dorival Caymmi ao repórter Silvio Guimarães, revista Para Todos, 01/11/1956 apud S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 337-8. 391 As referências a esse método e especialmente ao ritmo de trabalho de Caymmi encontram-se dispersas em toda a bibliografia dedicada à ele. Cf., especialmente RISÉRIO, Caymmi. 1993; GARCIA, Melancolias, Mercadorias, 2013 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001. 392 A sobreposição ou oposição de/entre a preguiça e o perfeccionismo caymmianos são elementos constantes na bibliografia sobre esse artista. Para a primeira discussão crítica a respeito do assunto cf. RISÉRIO, Caymmi. 1993, especialmente, pp. 147 e ss. É provável, ademais, que a preguiça de Dorival – junto com a datação extremamente precisa que ele dava a seus documentos pessoais (conforme veremos no próximo item deste mesmo capítulo) e com o seu próprio fazer musical – tenha sido, também, uma forma peculiar de controlar, ordenar e conferir sentido ao (seu) tempo. Para uma análise inspiradora sobre as relações entre o tempo musical, o tempo ordenado e o tempo da vida cotidiana, cf. Rose Satiko Gitirana HIKIJI, Música Para Matar o Tempo: intervalo, suspensão e imersão in Revista Mana, vol. 12, n.1, 2006 e A Música e o Risco: etnografia da performance de crianças e jovens participantes de um projeto social de ensino musical. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2006. 393 Essas novelas foram exibidas, respectivamente, em 1975, 1992 e 2001 pela Rede Globo de Televisão. Muitas outras produções da Rede Globo como A Escrava Isaura de 1976, O Sítio do Pica-Pau Amarelo de 1977, Tenda dos Milagres de 1985, Celebridade de 2004 e Paraíso Tropical de 2007, utilizaram canções já conhecidas de Dorival Caymmi em suas trilhas sonoras. Para a datação desses programas cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, passim. Danilo Caymmi, filho caçula de Dorival, mencionou ao vivo – num show que assisti em janeiro de 2014 na Caixa Cultural, SP – que a letra para Vamos Falar de Tereza teria sido escrita por seu pai em algumas horas e, na sequência, prontamente ditada por telefone.

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afirmação indireta da relativa autonomia artística em relação às suas diversas expectativas394 – essa lentidão artesanal era a única forma de

“fazer uma coisa amorosa, bonita, procurar direito as frases. O enjoativo de uma música é quando se vê que tem muito „olhar‟, muito „você‟, é a repetição. Uma certa vagabundagem faz bem. Sem ela, não sai.”395

O certo é que, apesar da imprecisão incontornável396 na datação das canções de Caymmi, a listagem e a escuta dos fonogramas lançados a partir de 1967 – associadas à leitura de alguns manuscritos deixados por ele – são as únicas formas de avaliar a sua produção tardia. A seguir os documentos que constituem o exíguo conjunto de fontes primárias diretamente relacionadas aos derradeiros trabalhos do artista baiano serão enumerados, contudo. As técnicas de criação de Dorival serão detalhadas a partir das alterações na letra de uma de suas músicas depois disso. A análise de seus fonogramas poderá, então, encerrar o texto do presente capítulo.

2. MAURINO, DADÁ E ZÉCA

Existem, pode-se dizer, quatro possibilidades de saber o que “o cantor das graças da Bahia”397 teria composto nos seus últimos quarenta anos de vida. A primeira delas são os programas e as gravações dos shows de Caymmi398. Neles, entretanto, não há muita novidade.

394 Para uma discussão clássica sobre este último ponto cf. BOURDIEU, As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia. das Letras, 2002 (1992). 395 cf. CAYMMI e Alessandra BLANCO, Dorival Caymmi: minha preguiça é necessária (entrevista) in Revista da Folha, ano 4, n.207, encarte da Folha de São Paulo, 07/04/1996, p.13. 396 Caymmi manteve, durante boa parte da sua vida, uma espécie de diário em agendas anuais. A informação encontra-se em S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, passim, junto com as fotos de algumas de suas páginas. É possível que nestas fontes encontrem-se mais detalhes de sua rotina de trabalho como compositor. O acesso a essas agendas, entretanto, é praticamente impossível. Elas não se encontram entre os documentos que constituem o ADC – banco de dados que reúne quase todo o material deixado pelo artista em papel, pintura e gravações. Durante a entrevista com Dori Caymmi, feita na última residência do seu pai em 03/05/2012, eu vi e pude folhear algumas dessas agendas, no entanto. Dori permitiu que eu voltasse ao apartamento para analisá-las com calma, mas depois de uma consulta aos outros familiares, o filho do meio de Dorival não permitiu mais o acesso a tais fontes. A recusa justificava-se, provavelmente, pela presença de anotações íntimas, dados bancários e outras informações cotidianas diversas do parente recém-falecido. 397 cf. AMADO, O Moço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 398 Na biografia de Stella Caymmi, por exemplo, há reproduções fotográficas dos programas dos shows de 1967 e 1979, ambos realizados no Teatro Castro Alves, em Salvador. Nas 2 fontes encontram-se as listas de músicas tocadas pelo artista cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 421 e 467. Consultei os registros gravados dessas mesmas apresentações, um deles foi comercializado, cf. CAYMMI, Setenta Anos (LP). 1984. O outro é uma gravação amadora, em fita cassete, feita pela etnomusicóloga Lydia HORTÉLIO durante o show de

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Não existem registros conhecidos de suas apresentações anteriores a 1967 e, nos shows posteriores, o repertório do artista é quase inteiramente formado por velhos sucessos do início de sua carreira. No meio dessas músicas bem conhecidas pelo público, Dorival acrescentou apenas a recém-lançada “Adalgisa” na inauguração do Teatro Castro Alves, em Salvador399. A presença de três ogãs do candomblé do Gantois vestidos de branco e tocando seus atabaques junto com seis filhas de santo paramentadas religiosamente num palco dedicado à alta cultura baiana já deve ter sido um espetáculo bastante inusitado, naquele ano de 1967, para que o músico ousasse outras inovações. Na sua volta ao palco do Castro Alves, em 1979, Caymmi tocou a antiga porém inédita “Acaçá” junto com algumas canções mais recentes – “Milagre”, “Francisca Santos das Flores”, “Oração de Mãe Menininha” – e, novamente, “Adalgisa”400. O mesmo aconteceria nos shows com seus familiares dos anos de 1980 e 1990, a maioria deles registrada em discos401. Na temporada de apresentações feitas com a cantora Gal Costa, em 1976, aparece, enfim, uma informação valiosa. Nela Caymmi cantou pela primeira vez, em público, “Sargaço-Mar”402. A segunda fonte de datação das músicas tardias Caymmi são as três telenovelas que veicularam canções inéditas suas, feitas especialmente para elas. As produções já referidas de “Gabriela”, em 1975, de “Tereza Batista”, em 1992, e de “Porto dos Milagres”, de 2001 lançaram respectivamente “Modinha de Gabriela”, “Modinha para Tereza Batista” junto com “Vamos Falar de Tereza” e, finalmente, aquele que seria o último hit do artista baiano, “Caminhos do Mar”. O terceiro conjunto de referências são as gravações já listadas e o quarto são os documentos reunidos no Acervo Digital Dorival Caymmi pelo Instituto Antônio Carlos Jobim403. Numa das poucas partituras escritas pelo compositor encontramos, por exemplo, um rascunho da “Modinha para Tereza Batista”, então chamada apenas de “Tereza Batista”,

1967. Agradeço à Lydia pelo acesso à essa documentação rara. As gravações dos shows com a família Caymmi feitos nos final do século XX estão disponíveis em CAYMMI, Dori CAYMMI, Nana CAYMMI e Danilo CAYMMI, Caymmi´s Grandes Amigos (LP). 1986; Dori, Nana, Danilo e Dorival Caymmi (LP). 1987; Família Caymmi em Montreux (CD). 1991. 399 Além das fontes mencionadas na nota anterior cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, p. 420 para uma fotografia do elenco do espetáculo citado neste parágrafo. 400 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 421 e CAYMMI, Setenta Anos (LP). 1984. 401 cf. CAYMMI, Dori CAYMMI, Nana CAYMMI e Danilo CAYMMI, 1986, 1987 e 1991. 402 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 452-60. 403 cf. a nota n. 10 acima.

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datado de 1992404, embora esta seja uma informação redundante pela razão mencionada acima. Entre as 61 letras manuscritas, por sua vez, encontram-se poucas canções datadas. A maioria delas são títulos ou apontamentos rápidos. Aparecem, no entanto, alguns dados interessantes. A data da “Modinha de Gabriela” é, por exemplo, confirmada em dois registros. Na última folha pautada do primeiro deles encontramos uma informação bastante precisa: “Composta a 12 de Março de 1975, no apto. C – 01 – do 547 – Bul. Carvalho. À tarde.”405 O segundo406 é um registro posterior à gravação de Gal Costa407 empregada na abertura da telenovela homônima. Nele encontra-se a rubrica “Rio – 29 – jun. 976” e o comentário lateral “Gal lembrou os 3 versos”. A folha avulsa dedicada ao registro da letra de “Sargaço-Mar”408 mostra que essa música deve ter sido criada dois anos antes da sua estreia no show “Gal Costa e Dorival Caymmi”. O papel tem duas redações, com canetas diferentes. Na primeira delas, que contém a rubrica “Rio de Janeiro, 2 de Dezembro de 1974”, o título atual ainda não havia sido escolhido. No cabeçalho encontram-se, em vermelho, duas opções que acabaram ficando para trás, “Deusa do Mar” e “Dôida Canção”. No mesmo documento há o acréscimo posterior , em azul, do nome finalmente adotado: “Sargaço-Mar”. O registro de quatro etapas da criação de “Milagre” é, provavelmente, a informação mais preciosa da série de manuscritos do Acervo Digital Dorival Caymmi. Esse é a única fonte na qual é possível visualizar – passo a passo, mas apenas no caso da letra – o processo de composição de Caymmi indicado acima, marcado pela lentidão, pela vagabundagem e pelo perfeccionismo. No primeiro deles409, que tem a rubrica “Rio, sábado, 12 – jul. 975. 574 – C – 01”, encontramos uma letra provisória e bastante diferente de sua versão final que segue em transcrição literal, mantendo todas as indicações, a disposição dos versos, a ortografia e a pontuação:

404 CAYMMI, Tereza Batista (partitura manuscrita). 1992, disponível em http://www.jobim.org/ caymmi/handle/2010.1/11120, última visita feita em 20/05/2015. 405 CAYMMI, Modinha de Gabriela a (letra manuscrita). Rio de Janeiro, 12/03/1975, disponível em http://www.jobim.org/caymmi/handle/2010.1/12380, última visita feita em 20/05/2015. 406 CAYMMI, Modinha de Gabriela b (letra manuscrita). Rio de Janeiro, 29/06/1976, disponível em http://www.jobim.org/caymmi/handle/2010.1/12419, última visita feita em 20/05/2015. 407 Cf. Maria da Graça Costa Penna BURGOS (Gal Costa), Modinha para Gabriela in Augusto C. Graça MELLO (prod.), Gabriela: trilha sonora original (LP). Som Livre, 1975, lado B, faixa 7. 408 CAYMMI, Sargaço-Mar (letra manuscrita). Rio de Janeiro, 02/12/1974, disponível em http:// www.jobim.org/caymmi/handle/2010.1/12395, última visita feita em 20/05/2015. 409 CAYMMI, Maurino Dadá e Zeca e Me Contaram um Caso um Dia (letras manuscritas). Rio de Janeiro e Rio das Ostras, 12/07/1975 e 17/07/1975, disponível em http://www.jobim.org/caymmi/ handle/2010.1/12537, última visita feita em 20/05/2015.

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“Maurino Dadá e Zeca – ô Embarcaram de manhã Era quarta-feira santa – é Tinha que tê peixe sim sinhô.

(mude o tempo) 1º/ Pode sê que o tempo mude (vira) 2º/ Se sabe que muda o tempo Aí o tempo mudou Maurino guentá, guentou Dadá pouco se importou Zéca nem se incomodou Tinha que tê peixe sim sihô

Era só jogá a rêde e puxá Era só jogá a rêde e puxá”

Por cima dessa primeira letra, escrita com uma caneta de tinta preta, há algumas alterações em vermelho. O “é” do terceiro verso virou “era”. A quarta-feira santa foi qualificada como “dia da salvação, pescadô” no verso seguinte, mas essa emenda foi logo substituída por uma variação da linha original: “tinha que tê peixe pro pescadô”. A repetição desse verso – uma espécie de comentário à parte que poderia ter saído tanto da cabeça de um dos três protagonistas quanto dessa voz não identificada que narra tudo em terceira pessoa – foi excluída, fazendo com que a segunda estrofe da canção intensificasse o seu caráter de ação transformadora no interior da cena descrita. Caymmi, aliás, adotaria definitivamente a sugestão entre parênteses da primeira versão e usaria, com a exceção da primeira linha da estrofe em questão, o verbo “virar”, ao invés de “mudar”, para referir-se à essa transformação tempestuosa. A ação humana que se dá em resposta à essa viração do tempo também foi reforçada pelo compositor na segunda redação. O verso dedicado a Maurino ficou mais claro com o acréscimo de “que é de”, ficando “Maurino que é de guentá, guentou” e a indiferença dos seus colegas desapareceu. Tudo o que vinha depois de Zéca foi riscado. Dadá, por sua vez, não aceitou mais o desastre iminente e ficou muito mais próximo do primeiro pescador através da expressão “que é de lutar, lutou”. Dorival colocaria ainda o verbo “labutá” como alternativa para “lutar”, sublinhando mais o

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trabalho específico dos homens do mar do que uma peleja genérica contra os caprichos da natureza. Cinco dias depois Caymmi preencheria outra folha avulsa que traz no cabeçalho, dessa vez, “Rio das Ostras – 17 – jul. 975 – quinta”, com uma nova versão dessa letra ainda sem título. O registro pode ser encontrado no mesmo link da folha citada acima, no Acervo Digital Dorival Caymmi. A maior novidade dessa terceira etapa de criação é o acréscimo de uma espécie de recitativo que serve para emoldurar toda a canção:

“Me contaram um caso um dia De um fato que se passou Se é verdade o que disseram Foi milagre do Senhor”

É possível que esse recitativo recuperasse uma técnica composicional bastante empregada pelo artista baiano nas músicas do início da sua carreira. Canções como “A Prêta do Acarajé”, “Festa de Rua”, “Saudades de Itapoã” e “Não tem Solução”, todas elas produzidas nos anos de 1930 e 1940 e gravadas até 1960410, também trazem uma fala inicial mais ou menos independente de tudo o que vem a seguir. A métrica dos versos é diferente das estrofes principais e o objetivo deles é, aparentemente, situar o ouvinte, circunscrevendo o tema da canção. Em alguns casos a divisão desses poemas é tão nítida que o sujeito de elocução chega a mudar. É o caso d´“A Prêta do Acarajé”, que abre com o discurso de um narrador que simplesmente desaparece ou, pele menos, transforma-se num hipotético freguês quando a seção central da música começa411. A sonoridade desses trabalhos todos não é apenas dividida em partes distintas. O recitativo e a parte principal deles são, sempre, muito contrastantes, sublinhando uma

410 A Prêta do Acarajé é o lado B de um 78 rpm da Odeon lançado em 1939. Foi, junto com O Que é Que a Baiana Tem?, a estreia de Caymmi como compositor e intérprete. A gravação foi feita por Dorival Caymmi, Carmen Miranda e Dalva de Oliveira. Festa de Rua foi lançada pelo autor em 1949, em um 78 rpm da RCA-Victor. Saudades de Itapoã foi gravada por Caymmi em1948, num 78 rpm da RCA-Victor. Não tem Solução, samba-canção feito em parceria com Carlos Guinle, saiu em 1950, num 78 rpm da Sinter com Dick Farney no vocal. Esses dados foram obtidos na Discografia Essencial, pp. 595, 585, 600 e 591. As canções mencionadas poderão ser ouvidas facilmente em Carlos Alberto SION (prod.), Cantando Caymmi (CD). EMI, 2000, faixa 2 e CAYMMI, Caymmi e o Mar (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1957, lado B, faixa 7; Canções Praieiras (LP). 1954, lado B, faixa 8 e Sambas de Caymmi (LP). Odeon, 1955, lado A, faixa 2. Cf. DOMINGUES, Caymmi sem Folclore. 2009, para uma análise historiográfica muito competente da produção caymmiana lançada entre os anos de 1938 e 1960; assim como S. CAYMMI, O Que é Que a Baiana Tem? 2013 e o primeiro capítulo do presente trabalho para maiores informações a respeito do samba de estreia, em particular, e do início da carreira do jovem Dorival Caymmi, de um modo geral. 411 cf. GARCIA, Melancolias, Mercadorias. 2013, pp. 77-143, para uma análise exaustiva da primeira gravação dessa música.

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alternância de discursos: ora a tonalidade é alterada de menor para maior ou o registro grave é transposto para o agudo, ora a rítmica lenta e a acentuação prosódica são aceleradas ganhando contornos temáticos. Nessa terceira letra da atual “Milagre”, mesmo ignorando seus aspectos musicais, há alguns detalhes interessantes que talvez confirmem esse caráter de oposição ou complementariedade das vozes. As estrofes principais são escritas com a mesma ortografia desviante, em relação à norma culta da língua, como nas primeiras duas versões, trazendo palavras como “pescadô", “guentá” e “puxá”, indicando, provavelmente, um narrador tão praieiro quanto Maurino, Dadá e Zéca. O sujeito que emoldura a ação desses 3 pescadores, no entanto, distancia-se da cena através das formulas verbais “me contaram” e “disseram”, além de estabelecer, com discrição, um duplo juízo de valor. Em primeiro lugar, ele desconfia de seus informantes para, em seguida, afirmar que, se a estória for verdadeira, ela é um verdadeiro “milagre do Senhor”. E por mais que mantenha a coloquialidade, representada desde o início pelo uso da próclise do pronome “me”, esse narrador do recitativo não pronuncia “sinhô” ao invés de “senhor”. É interessante perceber, por fim, que esse emprego do recitativo seguido de ária ou de versos – fórmula bastante utilizada, aliás, nas canções eruditas da Europa que, por sua vez, inspiraram os standards norte-americanos da primeira metade do século XX412, sendo que esses dois gêneros formam, precisamente, duas das maiores influências absorvidas por Caymmi413 – vai sendo progressivamente abandonado pelo compositor. Após a retirada desse trecho da atual “Milagre”, que acontecerá na quarta e última versão de sua letra, esse recurso não aparecerá mais na produção tardia de Dorival. As músicas do artista posteriores ao biênio de 1967 e 68 ficarão, conforme será discutido adiante, cada vez mais curtas, contendo ou uma única seção, com ou sem a divisão entre versos e refrão, ou um trecho principal seguido de uma coda. Ainda nessa terceira versão da aventura de Maurino, Dadá e Zéca o compositor fez outras alterações menores. O verso “tinha que tê peixe sim sinhô” foi trocado definitivamente por um comentário mais ou menos genérico: “dia de pescá e de pescadô”. Na estrofe seguinte Zéca, que tinha ficado sem ação na redação anterior, juntou-se ao trabalho dos outros dois,

412 cf. diretamente, ao invés da vastíssima produção a respeito de uma coisa e da outra, as seguintes fontes originais reeditadas: Franz Peter SCHUBERT, Gesänge. New York / Frankfurt: C.F. Peters Corporation, s/d. e Cole Albert PORTER, Cole Porter: the definitive songbook. Harlow: Faber Music, 2007. 413 cf. as duas biografias de Caymmi, juntamente com o segundo capítulo desta tese, para mais informações a respeito das suas influências musicais: BARBOSA e ALENCAR, Caymmi. 1985, passim e S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, passim.

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porém ainda de forma indecisa. Caymmi escreveu, primeiramente, que ele “hoje não parou, não cansou” e acrescentou em cima dessa frase, “não parou, lutou”. Desse jeito o trabalho dos três, agora, encontrava-se ligado textualmente e de uma forma muito sutil. A resistência de Maurino espelhava-se, num contínuo, no trabalho de Dadá em duas frases sintaticamente idênticas. Um deles “que era de guentá, guentou” e o outro “que era de labutá, labutou”. Ao falar de Zéca, fechando o contínuo das três atitudes possíveis perante uma súbita mudança do tempo, o autor manteve a mesma estrutura de dois termos de ação numa mesma linha – “parou” e “lutou” – alterando, contudo, o número de verbos e um dos tempos verbais. Ao invés de empregar um verbo só – e de apresentar uma ação em potência, no infinitivo, que logo será concretizada através da sua flexão – Dorival descreveu a reação de Zéca de duas formas complementares e sequenciais. Ele, afinal, “não parou” e “lutou”. Essa última expressão, associada anteriormente à Dadá, havia sido recuperada, por sinal, da terceira versão da letra, que foi comentada logo acima. Entre os três versos o compositor parecia montar, portanto, uma sucessão de comportamentos em torno da tempestade: parar, não parar, lutar, aguentar e labutar. Caymmi preferiu, num efeito dinâmico e circular, apresentar a sequência a partir dos seus dois últimos quefazeres. Os dois primeiros pescadores da série já resistem e agem enquanto o repouso – simultaneamente anterior e posterior a todo e qualquer movimento – é associado, ainda que de forma negativa, ao terceiro deles. A linha dedicada às atividades Zéca, afinal, não recebeu como as outras a fórmula de ligação “que é de”. Nela apenas a palavra “hoje” aparece para concatenar os outros elementos sintáticos. É provável que, num dia menos tempestuoso, esse derradeiro homem do mar fosse pouco perseverante, indiferente ou até mesmo preguiçoso, uma vez que o advérbio de tempo “hoje” parece ter, neste caso, uma função claramente adversativa. Além de interligar semântica, sintática e sequencialmente as ações dos três pescadores, Dorival Caymmi foi capaz de listar – em apenas três linhas de rascunho daquela que, no ano seguinte, seria enfim a canção “Milagre” – as principais atividades que os canoeiros ou jangadeiros da velha Itapoã414 podiam tomar quando eram surpreendidos por um temporal e ainda, de que quebra, esboçar as personalidades dos três protagonistas da música.

414 Itapoã, o nome da praia de veraneio da juventude de Caymmi, hoje é um bairro populoso de Salvador. Ele recriaria esse lugar através das suas canções praieiras. Milagre, a música em questão, é uma delas. O papel de Itapoã na obra do compositor já foi indicado nos capítulos precedentes deste trabalho e será rediscutido a seguir, sob um novo ponto de vista. Para referências biográficas sobre a permanência do artista nesta localidade, cf. BARBOSA e ALENCAR, Caymmi. 1985 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, para a primeira discussão existente sobre a Itapoã das canções, cf. RISÉRIO, Caymmi. 1993.

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Esse grau de detalhamento artesanal e de intencionalidade até pode espantar, mas não é, de maneira alguma, um caso isolado dentro da curta produção caymmiana. A quantidade de trabalho envolvido na criação de cada uma das músicas desse artista deve ter sido presumivelmente imensa, embora espaçada por longos períodos de vagabundagem. É isso, pelo menos, o que as entrelinhas de todas as fontes elencadas até agora parecem dizer. O controle total de todas as variáveis de um poema ou de uma canção, entretanto, também não parece uma coisa muito plausível. Foi o livro de Antônio Risério que, ao mesmo tempo, levantou e resolveu logicamente essa questão no interior da bibliografia específica. Nas últimas páginas da sua Utopia de Lugar o autor decide

“perguntar se o texto caymmiano (ou a música caymmiana) é fruto de uma ação premeditada, sob controle lógico, ou se os mecanismos da criação funcionam “automaticamente”. Uma coisa e outra – é a resposta. A produção estética caymmiana não é estranha à racionalidade. Ao mesmo tempo, a técnica da arte, como aprendemos com a psicanálise clássica, está enraizada nos chamados “processos primários” da vida inconsciente.”415

Risério continua citando Roman Jakobson e deixando explicito, através do linguista, que essa “uma coisa e outra” são, na verdade, processos cognitivos ou expressivos simultâneos, sobrepostos e inseparáveis. Segundo os trechos de Jakobson, transcritos pelo antropólogo baiano sem indicação bibliográfica416, a utilização premeditada da língua é até possível, mas a intuição não existiria de fato ou, pelo menos, não seria aleatória nem estaria livre de constrangimentos diversos. Nas palavras do próprio Jakobson: “as peculiaridades marcantes dos processos poéticos de seleção, acumulação, justaposição e distribuição das diversas classes fonológicas e gramaticais não podem ser considerados acidentes desprezíveis regidos pelas leis do acaso. Qualquer composição poética significativa, seja um improviso, seja fruto de longo e árduo trabalho de criação, implica escolha do material verbal, escolha esta orientada num sentido determinado”. E ainda: “a intuição pode atuar como principal ou, ocasionalmente, única

415 cf. RISÉRIO, Caymmi. 1993, p . 151. 416 As seguintes citações de Jakobson estão todas em RISÉRIO, Caymmi. 1993, pp. 151-2. Elas podem ser conferidas em Roman JAKOBSON, Configuração Verbal Subliminar em Poesia, p. 82, in JAKOBSON, Linguística, Poética e Cinema. São Paulo: Perspectiva, 2004. Até 2004, porém, o texto dessa conferência de Jakobson, considerando-se inclusive sua versão original em inglês, era inédito. Risério nos anos de 1980 e 1990 deve ter consultado e traduzido, portanto, uma transcrição avulsa da fala do linguista.

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responsável pela arquitetura das complicadas estruturas fonológicas e gramaticais na obra dos poetas individuais”. Por mais que essa “latência verbal intuitiva” estruturante organize em larga medida as canções de Caymmi, o emprego da polaridade racional no seu trabalho criativo é, logicamente, evidente. O risco de sobre-interpretar os achados e as manipulações formais do compositor baiano é, aliás, relativamente baixo. Afinal toda a bibliografia que se dedicou especificamente à análise poético-musical do cancioneiro desse artista417 acabou revelando um Dorival Caymmi que nem as sucessivas gerações de críticos souberam perceber e avaliar, ao longo de sua carreira418. Os temas do “cantor das graças da Bahia” escondiam, sob a aparente simplicidade de seus recursos estilísticos, uma série de pormenores, de acabamentos técnicos e até mesmo de preciosismos difíceis de classificar como aqueles tais “acidentes desprezíveis” rejeitados por Jakobson. Nesse sentido a técnica caymmiana mais frequente, e obviamente intencional, era a homologia constante e detalhada entre os aspectos auditivos e os aspectos semântico-visuais de suas composições. Na canção praieira “O Mar”419, por exemplo, Dorival apresentou o elemento título da música através do texto “o mar / quando quebra na praia / é bonito / é bonito”. Esses versos e os seguintes são acompanhados por vários deslocamentos harmônicos que promovem, para qualquer ouvinte familiarizado com o sistema tonal, uma sensação de flutuação ou deriva, já que não estamos firmemente amarrados à tônica alguma. Melódica e ritmicamente a sensação de errância ondulatória é espelhada também. As frases, todas elas baseadas em arpejos, assumem as características de um rubato420 com súbitas acelerações. Ainda nesta canção a loucura de uma das protagonistas depois da morte do marido foi textualmente ligada às águas através de uma sequência de assonâncias e anagramas que aproximam sonoramente o substantivo onda dos verbos de movimento utilizados para

417 cf. GARCIA, Melancolias, Mercadorias. 2013, especialmente, pp. 77-143; RISÉRIO, Caymmi. 1993, especialmente pp . 127-53; TATIT, Dicção de Dorival Caymmi in O Cancionista. 2002, pp. 106-26; Paulo da Costa LIMA, Música Popular e Adjacências... Salvador: EDUFBA, 2010 e LIMA, Música Popular e Outras Adjacências...Salvador: EDUFBA, 2012. 418 A relação entre o jornalismo, a crítica musical e o trabalho de Caymmi, aliás, foi marcada por tensões, polêmicas e disputas diversas à revelia do “Buda Nagô”. Cf. a respeito, especialmente para os seus primeiros 20 anos de carreira, DOMINGUES, Caymmi sem Folclore. 2009; S. CAYMMI, Caymmi e a Bossa Nova. 2008 e as últimas páginas do primeiro capítulo desta tese, acima. 419 O Mar foi lançada em 1940, num 78 rpm da Columbia, por Caymmi, de acordo com a Discografia Essencial, p. 587. Para uma análise detalhada da canção Cf. RISÉRIO e Alberto José Simões de ABREU (Tuzé de Abreu), Escrita Sobre o Mar in RISÉRIO, Caymmi. 1993, especialmente pp . 127-53. A música pode ser ouvida facilmente em CAYMMI, Canções Praieiras. 1954, lado A, faixa 3. 420 Rubato – do italiano furtado, subtraído ou adulterado – é um termo do vocabulário teórico erudito bastante utilizado pelos músicos em geral. Significa, literalmente, roubar os tempos de uma frase musical, ou seja, cantá-la ou tocá-la de forma ritmicamente livre, sem o emprego de acentuações previsíveis. Para um descrição circunstanciada a respeito desse e de outros termos técnico-musicais cf. uma obra de referência como Gardner READ, Music Notation Boston: Alleyin & Bacon, 1969.

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descrever as ações da mulher ensandecida: “vive sozinha / na beira da praia / olhando pras ondas/ andando, rondando / e dizendo baixinho: / morreu!”. Para indicar essa relação causal e comparativa sublinhando as ondas sucessivas que ocupam esses versos, Caymmi destacou ritmicamente todos os trechos que eu grifei em itálico, atribuindo a eles uma única nota insistente – ou seja, tornou-os também sonoramente idênticos – repetida sobre uma harmonia em suspensão. Essa homologia pari passu entre texto e música é uma característica presente em todas as canções da longa carreira de Dorival. No plano estritamente musical, Caymmi também costumava esconder o seu virtuosismo técnico. O compositor e musicólogo Paulo da Costa Lima, no entanto, demonstrou que uma única frase melódica foi capaz de gerar, por variação motívica, toda a “Oração de Mãe Menininha”421. Só que a frase em questão – e essa é a conclusão mais interessante da análise de Costa Lima – teria sido obtida, por sua vez, a partir da transformação de um outro tema: a melodia de abertura da conhecidíssima Ave Maria de Franz Schubert. A comparação subliminar entre as duas figuras religiosas, porém, se dava exclusivamente no campo sonoro, através desse expediente melódico discreto. Em nenhum momento da sua oração nagô, afinal, Caymmi invocaria explicitamente a Virgem Maria dos católicos, embora tenha empregado na seção central da música uma série de epítetos – “a estrela mais linda”, “o sol mais brilhante”, “a beleza do mundo”, “a mão da doçura” e “o consolo da gente” – ligeiramente associáveis à devoção mariana. No plano oposto e complementar, o da técnica verbal, bastam dois exemplos curtos retirados de uma mesma canção, a partir da análise que Antônio Risério e Tuzé de Abreu fizeram dela422. Nas gravações que fez d´“O Vento”, o intérprete Caymmi423 repetia sempre a letra duas vezes trocando, porém, apenas uma palavra. Acontece que uma mudança dessas podia alterar tudo na estética despojada do “Buda Nagô”. Na primeira exposição do poema, o cantor dedica-se a narrar a relação de colaboração entre homem e natureza através das linhas “vento que dá na vela / vela que leva o barco / barco que leva gente”. Na volta do tema, logo depois, todos esses versos adquirem uma carga diferente e bastante sombria: “vento que dá na vela / vela que vira o barco / barco que leva gente”424.

421 cf. LIMA, Ai, minha mãe! in LIMA, Música Popular e Adjacências... 2010, pp. 136-47. 422 cf. RISÉRIO e ABREU, Escrita Sobre o Mar in RISÉRIO, Caymmi. 1993, pp. 149-50. 423 O Vento foi lançado em 1949, num 78 rpm da RCA-Victor, por Dorival Caymmi de acordo com a Discografia Essencial, p. 603. 424 A maioria dos intérpretes de Caymmi, aliás, não consegue reproduzir todas as sutilezas das suas canções. Risério e Tuzé de Abreu observaram, , por exemplo, que Gal Costa “não percebeu o detalhe fundamental: virou o barco duas vezes” ao cantar O Vento em seu álbum inteiramente dedicado à obra de Dorival. Cf. RISÉRIO e ABREU, Escrita Sobre o Mar in RISÉRIO, Caymmi. 1993, p. 150 e Maria da Graça Costa Penna BURGOS (Gal Costa), Gal Canta Caymmi. Som Livre, 1976, lado A, faixa 5.

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Aliás, essa mesma estrofe caymmiana parece ter sido construída, anacronicamente, com todo o rigor de um poeta concreto. Mantendo uma métrica inalterável – a união, difícil de ser feita, de um dáctilo (sílabas longa-curta-curta) e de um troqueu (longa-curta), de acordo com a terminologia da poética clássica, mas que muito provavelmente não foram pensados ou nomeados dessa forma por Dorival425 – o compositor repete a primeira e a última palavra de cada verso. Nas duas pontas da estrofe a fórmula “que dá” abre e fecha a sequência ambígua de movimentos, que são também qualificativos. Nas linhas centrais, nas palavras de Risério e Tuzé de Abreu, “é como se o vento ventasse na canção”426. A relativa sensação de repouso “que dá” a fórmula inicial e final é substituída pela expressão dinâmica “que leva” ou aquela outra, dissonante, “que vira”. Embora esse não tenha sido o objetivo de Caymmi, a estrofe é visualmente bonita e muito bem acabada:

“vento que dá na vela vela que leva o barco barco que leva gente gente que leva o peixe peixe que dá dinheiro”

3. A CARTA ROUBADA

Cá na terra, cala – à flor d´água, fala

Antônio Risério427

A terceira versão daquela música que receberia o nome de “Milagre”, porém, não escondia apenas as habilidades poéticas do seu compositor. Na verdade, assim como Edgar

425 Não se deve, entretanto, subestimar a priori a erudição desse músico autodidata. As suas referências são, muitas vezes, surpreendentes. Depois da entrevista que eu fiz com a sua neta, Stella Caymmi, em 16- 7/06/2012, por exemplo, ocorreu um fato bastante curioso. A neta de Dorival deixou que eu mexesse numa pilha de papéis que continham as transcrições, na íntegra, das entrevistas que ela fez com o avô e que teriam dado origem à biografia Dorival Caymmi: o mar e o tempo. Stella pediu para que eu lesse em voz alta o conteúdo da primeira folha que eu tirei do monte. Para a minha surpresa o conteúdo dessa lauda, que não era mencionado em nenhum lugar da biografia, era uma descrição bastante precisa dos primeiros estilos vocais dramáticos da renascença italiana que teriam nascido entre as cidades de Florença, Mântua e Ferrara. Provavelmente Caymmi estava falando desse assunto bastante específico de memória, no contexto mais ou menos improvisado de uma entrevista, sem consultar diretamente nenhum material bibliográfico. 426 RISÉRIO e ABREU, Escrita Sobre o Mar in RISÉRIO, Caymmi. 1993, p. 149. 427 RISÉRIO, Oriki Orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 153.

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Allan Poe já havia intuído num de seus contos mais famosos, “A Carta Roubada”428, Caymmi parecia saber que, às vezes, a melhor forma de ocultar alguma coisa é deixá-la simplesmente ali aonde ela está. Agindo dessa maneira, o “Buda Nagô” teria conseguido disfarçar paradoxalmente, através da explicitação, pelo menos duas questões muito sérias que aparecem em quase toda a sua obra. A relação entre povo e trabalho e a expressão de experiências raciais, num regime de espelhamento formal – uma vez que elas abrangiam tanto as próprias vivências do compositor quanto o cotidiano das suas personagens e negromestiças. É claro que essa estratégia de apagamento ilusório deve ter sido elaborada de forma conjuntural e intuitiva, adotando o significado que Jakobson dá a esses termos. O certo é que ela foi, durante toda a carreira de Dorival, uma espécie de golpe de mestre ou de crime perfeito. Nenhum dos seus críticos, regravadores, estudiosos ou familiares, afinal, conseguiu ou quis seguir as pistas evidentes que ele espalhou por aí nesses dois sentidos429. É interessante perceber que todo o perfeccionismo artesanal empregado até essa penúltima versão da letra da atual “Milagre” servia, no final das contas, para realçar o trabalho humano. Aliás, como fica evidente na análise do poema, é o trabalho desses homens do mar que está o tempo todo sob o foco do compositor. Além dessa segunda estrofe – e do seu encadeamento sutil de três versos, três atitudes possíveis e três pescadores simultaneamente – quase todas as linhas, com a exceção do recitativo inicial, descrevem um dia de trabalho em Itapoã. Esse dia de trabalho é bastante comum, começa com o embarque dos canoeiros e, subentende-se, termina com a volta do barco cheio de curimãs e xaréus. Mas, por outro lado, ele é também um dia extraordinário. A ação se dá, inclusive, numa data especial e envolve uma pescaria milagrosamente farta depois de uma tempestade repentina. Através de seus recursos poéticos sutis, sempre empregados com muita economia, Caymmi descreve, então, a regularidade inescapável – embarcar de manhã e voltar para a praia com fruto do trabalho – do dia a dia de uma comunidade pesqueira e, ao mesmo tempo, várias quebras possíveis na sua inalterabilidade. Afinal, a labuta na Itapoã do compositor é formada por rotinas que também são artesanais e que dependem exclusivamente, da ação de

428 cf. o texto original em Edgar Allan POE, The Purloined Letter (1845), disponível em http:// poestories.com/text.php?file=purloined. Última visita feita em 30/08/2015. 429 A única pessoa que vi comentar algo a respeito, dentre todas as fontes que consultei ou tive acesso até agora, foi Marielson Carvalho, professor da UNEB e autor de um livro sobre Caymmi e a baianidade. O palestrante, ao falar sobre as personagens femininas dos sambas de Dorival, ressaltou que todas elas trabalhavam e muito. Marielson indicou que o fato desses trabalhos aparecerem explicitamente nas letras das canções não deveria ser algo gratuito, mas infelizmente sua argumentação não teve prosseguimento. A palestra em questão ocorreu durante a tarde do dia 18/07/2013, na UFBA, Salvador, numa mesa dedicada aos sambas caymmianos do I Seminário do Grupo Canto de Cada Canto.

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homens específicos. É, em resumo, uma regularidade feita de irregularidades, cheia de acidentes diários e de possíveis surpresas. Em todas as canções praieiras, a não ser naquelas cantadas em primeira pessoa, os pescadores do compositor – Chico Ferreira, Bento, Pedro, Maurino, Dadá e Zéca, entre outros430 – têm nome próprio, por sinal. Eles são indivíduos fictícios, quer tenham sido inspirados em pessoas reais ou não, que são muito bem particularizados e obviamente valorizados pelo artista. Os homens da Itapoã idealizada de Dorival, aliás, são verdadeiros heróis que enfrentam o mar cotidianamente, confiando suas vidas à Deus e à Iemanjá. Na volta de cada pescaria, porém, apesar do cansaço da lida da vida431, esses argonautas do Atlântico meridional432 conseguem ainda ser brincalhões e amorosos com suas mães, namoradas, esposas e filhos. No entanto a irregularidade e a precariedade do trabalho desses homens os tornam extremamente vulneráveis aos caprichos da natureza e de suas entidades religiosas. A viração do tempo na letra da atual “Milagre” é apenas um dos vários momentos de crise em que essa heroica fragilidade aparece na obra de Caymmi. Essa, porém, não é única ameaça que ronda o vilarejo dos pescadores de Caymmi. Esses heróis do povo não velejam, assim como os trobriandeses de Malinowski, para expressar os seus simbolismos rituais, nem para estabelecer uma rede de alianças em cerimônias complexas, nem para trocar as dádivas de uma economia selvagem. Os trabalhadores do mar que provavelmente inspiraram “o cantor das graças da Bahia” devem ter sido, na verdade, homens muito pobres, que mal sobreviviam no seu arraial distante, isolado da cidade de Salvador433. É possível imaginar, nas entrelinhas das canções praieiras, que

430 cf. respectivamente, as canções A Jangada Voltou Só, além das já mencionadas O Mar e Milagre. A Jangada Voltou Só foi lançada em 1941 por Dorival Caymmi, num 78 rpm da Colúmbia e Milagre em LP, pelo autor e sua filha, Nana Caymmi, em 1977 de acordo com a Discografia Essencial, pp. 585 e 590. 431 Esse é um dos versos de João Valentão, música que descreve o momento de descanso desse pescador, deitado na areia da praia do lado da sua morena. A canção foi lançada em 1953, num 78 rpm da Odeon, por Dorival Caymmi de acordo com a Discografia Essencial, p. 585. 432 Referência ao título de uma das obras mais famosas da Antropologia Social, Argonauts of the Western Pacific, de Malinowski. É possível perceber durante todo o livro, aliás, que esse etnógrafo polonês também passou a admirar e a valorizar, assim como Dorival, as façanhas heroicas tecnicamente precárias e as habilidades físicas de seus informantes “selvagens”. Bronislaw MALINOWSKI, Argonauts of the Western Pacific. Oxford: Benediction Classics, 2010 (1922). 433 Itapoã manteve o seu isolamento praieiro, em relação ao centro da cidade do Salvador – junto com os vilarejos pesqueiros de Jaguaribe, Piatã e Santo Amaro do Ipitanga – até pelo menos a década de 1940 do século XX. A zona, caracterizada pela pobreza, pela escravidão semi-rural e pelas grandes armações de pesca, presenciou uma série de revoltas e a formação de quilombos nos tempos da colônia e do império. No final da década de 1940, com a abertura da estrada Amaralina-Itapoã e a inauguração do Aeroporto Internacional Dois de Julho, aqueles povoados distantes foram integrados à malha urbana de Salvador, convertendo-se na “zona norte” da capital baiana. Esses dados podem ser conferidos na análise da urbanização de Salvador disponível em Pedro de Almeida VASCONCELOS, Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus: Editus, 2002, passim. Para uma apresentação geral do espaço geográfico-musical itapuanzeiro na obra de Caymmi v. os capítulos 1 e 2 do presente trabalho. A escravidão e as revoltas da Itapoã colonial/imperial são descritas em João

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Maurino, Dadá e Zéca talvez fossem explorados por uma série de atravessadores, patrões e senhores que, obviamente, não participavam da sua rotina arriscada. Nas músicas de Caymmi, entretanto, essas figuras jamais aparecem434. A valorização do trabalho do povo pelo artista baiano se dá sempre através do cotidiano do trabalhador, geralmente em seus momentos de esforço físico, ou na intimidade de sua vida familiar e religiosa. É, no mínimo, irônica, toda a aura de preguiça associada à Caymmi.435 Nunca se trabalhou tanto nas canções dos outros compositores brasileiros. Pretas sobem e descem ladeiras com seus tabuleiros. Severo do Pão consegue namorar Tereza com um cesto na cabeça. Lá na feira aparece, aliás, tanto cesto e samburá! Os pescadores vão para o mar dizendo alegremente vou trabalhar, meu bem querer. A receita do vatapá é explicada passo a passo, mas, ao invés de enfrentar o seu preparo cansativo, o melhor mesmo é juntar 10 mil réis e contratar uma nêga baiana que saiba mexer. A vendedora de acaçá chama a atenção pelo seu jeito, seu modo de mercar e, finalmente, outra quituteira ambulante responde sem rodeios a um de seus fregueses. O cliente afirma, sorridente, que todo mundo gosta de abará, mas ela retruca logo, é... mas ninguém quer saber o trabalho que dá436. As canções descrevem, então, uma vida de trabalho cheia da liberdade relativa das ruas – onde os barraqueiros e vendedores ambulantes cantam seus pregões, sambam ou

José REIS, Rebelião Escrava no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, especialmente pp. 70 e ss e em RISÉRIO, Uma História da Cidade da Bahia, especialmente pp. 257 e ss. 434 Antônio Risério criticou as canções de Caymmi, no seu longo ensaio e na entrevista que realizamos em 25/05/2013, pela falta de problematização social e pela seleção de aspectos exclusivamente positivos da vida baiana. Em sua Utopia de Lugar, ele diz claramente: “Caymmi compôs uma versão idealizada da Bahia. De uma parte, ele ignora o que não se ajusta à imagem diferencial da região. É o caso das novidades urbanas, por exemplo. De outra, ele exclui programaticamente de sua poesia os aspectos desagradáveis da vida baiana. Veja- se o retrato caymmiano de Itapuã. Não há lugar aí para a incerteza política, as cruezas da opressão social ou a rapinagem econômica.” O trecho pode ser conferido em RISÉRIO, Caymmi. 1993, p. 109. A análise de Walter Garcia, por sua vez, encontra um grande carga de melancolia nas músicas de Dorival. Esse último autor, mantendo-se fiel à maioria das ideias de Risério, vê, porém, uma série de mensagens disfóricas no meio dos seus temas. Cf. GARCIA, Melancolias, Mercadorias. 2013, especialmente, pp. 77-143. 435 Dorival aparentemente não se incomodava com a associação da sua persona pública e do seu trabalho à preguiça. Ele, na verdade, parecia incentivá-la. Além de divulgar a vagabundagem envolvida no seu método de composição e dar muitos depoimentos engraçados à respeito dessa temática em suas entrevistas, o artista chegou a emprestar essa imagem específica até para campanhas publicitárias. Na primeira delas – uma propaganda do Ron Merino lançada no carnaval de 1957 – Caymmi aparece, por exemplo, deitado numa rede, tocando seu violão e sorrindo com os olhos quase fechados. Cf., dentre outras, as entrevistas filmadas CAYMMI e FARO, Dorival Caymmi. 2009 e CAYMMI e DIDIER, Um Certo Dorival Caymmi. 1999. Para uma reprodução fotográfica da publicidade do Ron Merino, ver S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, p. 344. 436 As imagens e os versos citados neste parágrafo foram tirados, respectivamente, das canções A Prêta do Acarajé, Severo do Pão, Balaio Grande, Marcha dos Pescadores, primeiro e último tema da História de Pescadores, Vatapá, Acaçá e, novamente, A Prêta do Acarajé. Severo do Pão foi lançada pelo autor num LP da família Caymmi, em 1987. Balaio Grande, feita em parceria com Osvaldo Santigo, foi gravada em 1941 por Dorival, num 78 rpm da Columbia. A História de Pescadores saiu em LP da Odeon, em 1957, cantada por Caymmi. Vatapá foi lançada em 1942 pelo conjunto Anjos do Inferno num 78 rpm da Columbia. Acaçá, por fim, foi gravada em 1979, no Teatro castro Alves, e lançada num LP de 1984. Essas informações foram obtidas na Discografia Essencial, pp. 601, 580, 591, 602 e 579.

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descansam – e do alto mar, onde só se ouve mesmo o ronco das ondas437. É uma vida sem horários, mas não necessariamente sem patrões. Os melhores amigos de Dorival – o escritor Jorge Amado e o pintor argentino Carybé, junto com o mais reservado do grupo, o fotógrafo e etnógrafo francês Pierre Verger – pareciam dividir com ele, em seus diversos meios expressivos, representações muito semelhantes do povo da sua terra natal ou adotiva438. Pierre Verger, por exemplo, retratou uma dessas baianas quituteiras de um modo singular numa fotografia sem data, mas tirada provavelmente entre 1940 e 1960439:

437 Verso da letra de João Valentão, ver nota 269 acima. 438 O local de nascimento de Jorge Amado (1912-2001) ainda é alvo de disputa pelos municípios de Ilhéus e Itabuna, no Sul da Bahia. O escritor residiu a maior parte do tempo no Rio de Janeiro, em Paris e em Salvador. Pierre Verger (1902-1995) nasceu em Paris e desembarcou no porto da capital baiana em 1946, estabelecendo ali a sua residência permanente. Viveu, até a década de 1970, entre a Bahia e a costa da África Ocidental por conta das suas pesquisas etnográficas. Hector Páride Bernabó (1911-1997), o Carybé, nasceu em Lanús, província de Buenos Aires, filho de um imigrante italiano e uma argentina de origem brasileira. Passou pela Bahia em 1938 e voltou para lá, definitivamente, em 1950. Além das nacionalidades diferentes, as origens sociais deles eram contrastantes. Jorge era filho de um fazendeiro não muito rico da região cacaueira, mas contou com uma educação formal completa e logo começou a ser reconhecido pelos seus primeiros romances. Pierre Verger nasceu numa família abastada da alta burguesia parisiense. Ele foi uma espécie de bon-vivant até ficar órfão, aos 30 anos, e romper totalmente com a sua parentela. As viagens que passou a fazer a partir daí seriam financiadas por seus primeiros trabalhos como fotógrafo. Carybé, finalmente, passou a infância em vários países, uma vez que seus pais extremamente pobres continuavam buscando melhores condições de vida nos lugares mais diversos. Ele não teve, assim como Dorival Caymmi, muito estudo formal e engajou-se numa série de empregos temporários durante a sua juventude. Essas informações biográficas básicas podem ser consultadas na coleção Entre Amigos dedicada à estes artistas, cf. José Barreto de JESUS, Carybé & Verger: gente da Bahia (vol.1). Salvador: Fundação Pierre Verger / Solisluna 2008; Carybé, Verger & Caymmi: mar da Bahia (vol.2). Id., 2009 e Carybé, Verger & Jorge: obás da Bahia (vol.3). Id., 2012. No primeiro capítulo deste trabalho encontram-se, também, mais detalhes sobre a vida e a produção artística de Jorge Amado em particular. 439 As fotografias desse autor não foram datadas por ele. Em alguns casos, é até possível inferir alguma coisa através de informações retiradas das próprias imagens ou da sua biografia. Porém a maioria dos negativos arquivados na Fundação Pierre Verger – que fica no bairro de Brotas, em Salvador – trazem indicações temporais genéricas como, por exemplo, “entre 1946 e 1970”. A maior parte dos instantâneos baianos de Verger foram produzidos, provavelmente, nas décadas de 1940 e 1950. A dedicação progressiva do francês ao candomblé e às pesquisas de campo parece ter sido responsável por um drástico declínio da sua produção imagética após 1957, data de publicação do seu primeiro livro etnográfico. A fotografia citada e reproduzida abaixo foi retirada de JESUS, Carybé & Verger. 2008, p. 111. Os outros dados desta nota foram obtidos a partir das visitas à Fundação Pierre Verger feitas em janeiro de 2013.

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A mulher, negra, tem o seu rosto e sua mão direita em destaque, ambos ocupam o primeiro plano e aproximadamente o centro da imagem. Não se veem outras expressões particularizáveis, mesmo tratando-se de uma pequena multidão. Quase todos estão de costas, com a exceção de duas outras mulheres, também negras, mas distantes e desfocadas, e de duas freguesas brancas. Essas duas clientes é que estão efetivamente no centro da imagem, embora apareçam em segundo plano, e seus rostos foram significativamente cortados pelo enquadramento. Só é possível enxergar seus braços cruzados numa posição de provável impaciência e seus dois vistosos relógios de pulso. Ninguém mais, nessa fotografia, sente a necessidade de marcar o tempo dessa maneira. A única coisa que o pulso da vendedora carrega é uma pulseira que pode ser de palha, remetendo diretamente ao candomblé, ou de metal entrançado. Verger realçou, aliás, de muitas formas o contraste visual entre a baiana e suas freguesas. As cores de pele são diferentes, o rosto muito tranquilo da quituteira contrasta com a pressa aparente das duas e, principalmente, os braços lisos das clientes são o exato oposto daquela mão direita que está fritando um tacho de acarajés. O trabalho da vendedora é valorizado e dignificado pela junção dessa expressão facial serena e dessa mão inusitadamente forte, certamente calejada

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pelo esforço diário, e marcada por uma quantidade grande de veias que saltam desde os seus dedos até a metade do seu antebraço. Pierre Verger, assim como Dorival já havia feito em suas canções, enaltecia sutilmente cada um dos trabalhadores que fotografava através do protagonismo – neste caso, imagético –, das menções explícitas à rotina de trabalho e da afirmação de sua liberdade. A imagem escolhida para análise é, por sinal, uma das poucas em que aparece algum possível conflito, mas ele se dá entre uma vendedora e suas clientes. Nas fotografias do babalaô francês440 a ausência dos patrões também é notável. Talvez seja por isso que seus retratados, que muitas vezes dormem à sombra das árvores ou decidem arriar o cesto da cabeça para sambar, pareçam tão independentes e felizes441:

440 Numa de suas viagens ao Benin, em 1953, Pierre Verger foi iniciado como bàbáláwo – termo em iorubá que significa pai do segredo – recebendo o nome de Fatumbi, “nascido de novo graças à Ifá”. O francês, aliás, passaria a assinar como Pierre Fatumbi Verger a partir de então. Ifá é a divindade associada ao destino humano, ao conhecimento de si e à sabedoria. Ele, junto com os seus babalaôs, é capaz de consultar os odus, os “caminhos”, de cada um – através das práticas divinatórias do opelê Ifá, um colar especial, das nozes de orobô (cola acuminata) ou dos búzios – para a sorte dos outros deuses e dos seres humanos. O cargo de babalaô, mais comum entre os iorubás da África Ocidental e, na diáspora, em Cuba, é bastante raro e valorizado no candomblé brasileiro. A dupla iniciação de Verger – uma vez que ele foi ao Benin “já feito” por Mãe Senhora, na época, a ialorixá do Opô Afonjá – transformou-o num mensageiro entre dois mundos, a África e o Brasil. Na verdade, Verger continuou o trajeto de “volta às origens” e de (re)africanização do candomblé baiano num esforço levado a cabo, significativamente, por outros dois babalaôs ligados ao Opô Afonjá, Martiniano Eliseu do Bonfim e Agenor Miranda da Rocha. O francês teria sido levado para o terreiro, aliás, por seus amigos Jorge Amado e Carybé. Para uma análise detalhada do impacto biográfico dessa viagem de 1953, cf. a biografia antropológica de Jerôme SOUTY, Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. São Paulo: Terceiro Nome, 2012 (2007). O documentário Luiz Buarque de HOLANDA Filho (dir.), Verger: mensageiro entre dois mundos (DVD). Europa Filmes, 2000 (1998) dedica-se precisamente à esse aspecto da vida de Verger. O processo de nagoização e de (re)africanização dos candomblés de Salvador é discutido em Luís Nicolau PARÉS, The Nagôization process in Bahian candomblé in Toyin FALOLA e Matt CHILDS (eds.), The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 2005 e Júlio Santana BRAGA, Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: CEAO / EDUFBA, 1995. 441 Essas fotografias encontram-se nos 3 vols. da coleção Entre Amigos, cf. JESUS, Carybé & Verger. 2008; Carybé, Verger & Caymmi. 2009 e Carybé, Verger & Jorge. 2012. A imagem reproduzida abaixo pertence à longa série de instantâneos (tirados provavelmente entre 1946 e 1952) que receberam o título de dormeurs pelo próprio Verger.

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Os aspectos raciais dessa possível contraposição entre a baiana da penúltima fotografia e suas duas freguesas também são sugeridos de maneira muito discreta. Caymmi, nas suas músicas, costumava ser ainda mais comedido. O “cantor das graças da Bahia”, além de realçar as qualidades heroicas de seus pescadores, contentava-se em elogiar a beleza e o modo de vida de suas pretas, morenas, nêgas e de uma única cafuza442. A cor, a experiência, a fala e o movimento dos negros e dos mestiços, em outras palavras, estão espalhadas, num tom

442 Essas classificações estético-raciais aparecem muitas vezes em quase toda a obra de Caymmi. A rainha cafuza que dança isoladamente o frevo e o maracatu é uma exceção. A quantidade de morenas, porém, é imensa. Cf., respectivamente, as seguintes canções para um exemplo de cada cor citada: A Prêta do Acarajé, Itapoã, Afoxé e Dora. Itapoã foi gravada pelo autor em seu LP de 1972. Afoxé também foi lançada por Dorival em 1985, na trilha da minissérie Tenda dos Milagres da Rede Globo. Dora saiu num 78 rpm da Odeon em 1945, cantada, outra vez, pelo próprio compositor. Informações obtidas na Discografia Essencial, pp. 585, 580 e 582. O ano de lançamento de Afoxé, entretanto, está errado – aparece 1975 ao invés de 1985 – na Discografia. Essas músicas podem ser ouvidas em SION, Cantando Caymmi. 2000, faixa 2; CAYMMI, Caymmi.1972, lado B, faixa 12; MELLO (prod.), Tenda dos Milagres (LP). Som Livre, 1985, lado B, faixa 9 e CAYMMI, Eu Não Tenho Onde Morar (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1960, lado B, faixa 7.

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indubitavelmente entusiasta, por toda a sua obra. Porém, o preconceito de cor, ou qualquer tensão neste sentido, tende a desaparecer junto com os atravessadores das antigas armações de Itapoã e as cabeças das clientes de Pierre Verger. Entre as décadas de 1950 e 1960, Verger, Caymmi e o pintor Carybé tornar-se-iam religiosos, todos filhos-de-santo praticantes e, inclusive, politicamente ativos443. As roças da nação Ketu444 passariam a ser o tema mais frequente nos trabalhos dos três. A iconografia dos

443 Quando entrevistei mãe Detinha de Xangô do Opô Afonjá, no dia 27/10/2012, percebi que esses amigos, intelectuais e artistas são associados ainda hoje, na memória do terreiro, à defesa pública e jurídica do candomblé. O grupo era formado, conforme citado acima, por 3 obás de Xangô, contando com Jorge Amado, e um babalaô da casa. Jorge foi excluído momentaneamente dessa lista, apesar de sua valorização pioneira e constante do povo-de-santo. O romancista, afinal, era o único do grupo que, embora também fosse iniciado, não costumava se identificar tanto como um artista do candomblé. Ele parecia agir mais como um divulgador do exótico, um intelectual interessado na estética “pitoresca” das festas-de-santo ou nas questões políticas e raciais envolvidas naquela religião. Carybé, por outro lado, ocuparia o extremo o oposto, numa possível gradação da fé pessoal dessa lista de amigos. “Ele vivia”, segundo a sua viúva Nancy, entrevistada por mim no dia 31/05/2013, “no Opô Afonjá. Não saía de lá.” O pintor morreu, inclusive, dentro do terreiro, parecendo em tudo uma criação amadiana. Ele teria se ajoelhado na frente da Casa de Xangô e, passando mal por ali, gritou: Puta que pariu, me fodi! e morreu. A família dele, conforme as informações concedidas por sua filha Solange em 14/01/2013, cumpriu a sua última vontade. Apenas seus irmãos de santo puderam carregar o caixão e levá-lo até o cemitério. Para a presença do candomblé na obra dos 4 artistas cf. toda a coleção Entre Amigos: JESUS, Carybé & Verger. 2008; Carybé, Verger & Caymmi. 2009 e, especialmente Carybé, Verger & Jorge. 2012. A importância particular que essa religião tinha para Carybé e Jorge Amado pode ser avaliada pelas citações dos dois neste último livro nas pp. 54 e 114. A representação do candomblé pelo escritor, que foi da dignificação inicial do negro e do operário até as histórias de feitiçaria mais engraçadas e mirabolantes, mas sempre respeitosas, pode ser acessada através de uma leitura comparativa de 4 narrativas suas, cf. Jorge AMADO, Jubiabá. São Paulo: Cia. das Letras, 2008 (1935); Capitães da Areia. Id., 2009 (1937); O Compadre de Ogum. Id., 2012 (1964) e O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria. Id. 2010 (1988). 444 Jorge Amado, Carybé, Verger e Caymmi continuaram, através de seus trabalhos e de suas biografias, o antigo processo de nagoização do candomblé soteropolitano, segundo a expressão de Nicolau Parés. Eles todos, junto com outros intelectuais como Roger Bastide, tiveram os seus primeiros contatos com esta religião através das terreiros da nação Angola ou, no caso de Caymmi, dos candomblés de caboclo. Cada nação de candomblé, é importante lembrar, tem uma língua própria, além de panteões diversos, práticas e ethos peculiares. Em algum momento, em meados do século passado, deve ter acontecido, porém, alguma coisa muito ruim entre esses simpatizantes do povo-de-santo e os angoleiros. Caymmi estava fora da Bahia nesse momento, mas Verger, Carybé e Bastide simplesmente esqueceriam qualquer contato prévio com os minquice de Angola, e encantar-se-iam com a nação Ketu ou nagô. A única exceção talvez seja o caso de Jorge Amado, que já escrevia sobre os candomblés de Ketu nos anos de 1930. Para uma discussão crítica a respeito da nagoização das comunidades de terreiro cf. o clássico, porém desatualizado em diversos níveis, Beatriz Góes DANTAS, Vovó Nagô, Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1985 assim como PARÉS, The Nagôization process in Bahian candomblé in FALOLA e CHILDS (eds.), The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. 2005 e A Formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. Para um rápido pano de fundo da relação entre esses intelectuais e o candomblé cf. JESUS, Carybé, Verger & Jorge. 2012. As dezenas de fotografias que Verger tirou na roça de Joãozinho da Goméia – um pai de santo heterodoxo, irreverente e bastante polêmico – quando chegou à Salvador estão entre as imagens mais bonitas que ele produziu. Elas estão espalhadas nos seus livros, geralmente sem muita identificação, cf. por exemplo, Pierre VERGER, Retratos da Bahia, 1946 a 1952. Salvador: Corrupio, 2002 (1980). É possível vê-las em conjunto apenas no acervo da Fundação Pierre Verger. Na obra de juventude de Jorge Amado uma série de menções diretas aos nagôs podem ser encontradas, por exemplo, no romance AMADO, Capitães da Areia. 2009. A mudança radical de atitude de Bastide em relação à nação Angola pode ser cf. através da comparação entre os seus primeiros textos sobre o candomblé – um deles, inclusive, narra uma festa na Goméia através de uma linguagem poética idílica – e a sua tese radicalmente nagoizada, O Candomblé da Bahia. Entre as notas de rodapé desta última obra existem acusações sérias e descorteses aos tatas e às mametus que encabeçam o culto dos angoleiros e aos praticantes dos rituais de caboclo. Eles são tachados sem meias-palavras, por exemplo, de impuros, charlatães, feiticeiros e deturpados. Para ter acesso aos textos mencionados cf. Fernando Cury de

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deuses africanos no candomblé da Bahia445 ao lado das canções caymmianas e das etnografias cuidadosas de Verger formariam um conjunto enorme de papéis, telas ou esculturas e de gravações e regravações em disco. Os três retratariam as comunidades dos terreiros e os rituais desse culto diretamente associado aos negros e aos descendentes de escravos na Salvador de meados do século XX446 com uma aura de dignidade e de beleza estética ímpares. A aquarela pintada por Carybé em homenagem à Mãe Senhora (e que seria incorporada à recém mencionada “Iconografia dos Deuses Africanos”) é um belo exemplo – junto com o famoso retrato desta mesma ialorixá feito por Pierre Verger, provavelmente, em 1958 – desse emprego cuidadoso dos recursos estilísticos e da composição para gerar um resultado iconográfico simultaneamente austero e majestoso:

TACCA, Imagens do Sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. São Paulo / Campinas: Imprensa Oficial do Estado de SP / UNICAMP, 2009 e BASTIDE, O Candomblé da Bahia. 2001. Para uma análise crítica da produção deste autor sobre o candomblé, cf. Priscila NUCCI, Odisseu e o Abismo: Roger Bastide, as religiões de origem africana e as relações raciais no Brasil. Campinas: IFCH / UNICAMP (tese de doutorado em Sociologia), 2006. 445 Esse é o título de um livro/objeto de arte de grandes dimensões e tiragem muito baixa. A publicação contém 128 aquarelas de Carybé e textos grandes de Jorge, Pierre Verger e do historiador e folclorista Waldeloir Rego (1930-2001). Nas palavras de Carybé o livro estava “à serviço, vale a pena acentuar, da preservação dos valores culturais trazidos da África pelos negros". Cf. BERNABÓ, AMADO, VERGER e Waldeloir REGO, Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. São Paulo/Salvador: Raízes Artes Gráficas/UFBA/FUNCEB, 1980. 446 Apenas a título de ilustração, cf. 3 obras, uma de cada autor, tiradas de um conjunto de trabalhos dedicados à essa temática que é muito maior. As 3 foram selecionadas por causa da quantidade impressionante de dados etnográficos que elas veiculam e por suas qualidades estéticas. CAYMMI, Caymmi. 1972; VERGER, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. 2000 e o recém-citado BERNABÓ, AMADO, VERGER e REGO, Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia. 1980.

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Ao contrário dos primeiros romances de Jorge Amado que privilegiavam a luta de classes – e que passaram a vincular, gradativamente, as experiências raciais de seus protagonistas negromestiços a esse antagonismo inelutável447 – a produção intelectual e artística de Verger, Carybé e Caymmi – e talvez até mesmo a obra de maturidade do escritor – mostraria sempre um dos lados do conflito, obliterando-o inclusive. O trabalho, a relativa liberdade e os cultos nagôs do povo baiano foram enaltecidos e afirmados, até o extremo da identificação pessoal, por cada um deles. Só a Bahia de Gabriela, dos pescadores de Itapoã, dos mendigos, de Mãe Menininha do Gantois, dos trabalhadores braçais, das festas de largo e dos orixás448 podia aparecer nas obras desse pequeno grupo de compadres que rapidamente passou a fazer parte do establishment local e nacional.

447 A inserção de Jorge nos debates raciais dos anos de 1930, quando a sua carreira se iniciou, junto com a análise dos seus primeiros romances, encontram-se, respectivamente, em ROSSI, O Intelectual “Feiticeiro”. 2011, especialmente pp. 102-4 e 133-203 e As Cores da Revolução. 2009. 448 Nas canções de Caymmi essas figuras aparecem respectivamente em Modinha de Gabriela, Caminhos do Mar, Eu Não Tenho Onde Morar, Oração de Mãe Menininha, Retirantes, Festa de Rua e Canto de Nanã, por exemplo. A Modinha de Gabriela foi cantada por Gal Costa na trilha da novela Gabriela, da Rede Globo, em 1975. Caminhos do Mar, feita em parceria com Danilo Caymmi e Dudu Falcão, também foi interpretada por Gal na trilha de Porto dos Milagres, da Globo, em 2001. Eu Não Tenho Onde Morar foi lançada pelo compositor num LP homônimo, em 1960. A Oração de Mãe Menininha foi gravada por Dorival no seu LP de 1972. Retirantes, tema dos anos 40 feito em parceria com Jorge Amado, saiu em disco apenas em 1976. Ele também fazia parte de uma novela da Globo, Escrava Isaura. Canto de Nanã, por fim, também foi lançada pelo autor no seu LP de 1972. Informações obtidas na Discografia Essencial, pp. 591, 580, 584, 594, 596 e 581. Essas músicas podem ser ouvidas em BURGOS, Modinha para Gabriela in MELLO, Gabriela. 1975, lado B, faixa 7;

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Para qualquer um que esteja mais ou menos familiarizado com a produção deles basta pensar o quanto seria inusitado, de qualquer forma, dar de cara com o outro lado do cotidiano de Salvador de, pelo menos meados do século XX até hoje – aquele dos aristocráticos boulevares da Graça ou da Vitória, das procissões de senhoras católicas brancas na Praça da Sé, dos prédios modernistas ou da orquestra sinfônica da UFBA – numa serigrafia de Carybé e ou num samba de Caymmi. E não é possível dizer que esses 4 artistas não conhecessem e, inclusive, não estivessem ligados direta ou indiretamente à vida dessa cidade das classes médias e altas. As relações entre esses quatro artistas com o poder regional, embora marcadas por uma série de ambiguidades e tensões, eram inegáveis. Carybé foi recebido por Odorico Tavares, diretor local dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, na Salvador dos anos 50. Pierre Verger logo estabeleceu contato com a fina flor da intelectualidade soteropolitana, sediada na recém-fundada UFBA. Jorge Amado e Caymmi tiveram as suas obras especialmente oficializadas pelo Estado e por outras instituições baianas. O contato deles todos com os governantes locais da segunda metade do século XX, especialmente com o todo- poderoso, autoritário e bairrista Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), caracterizou-se simultaneamente pela convivência e pela disputa permanentes449.

Intermezzo OS PATRIARCAS DA BAIANIDADE

BURGOS, Caminhos do Mar in Marcos PAULO (dir.), Porto dos Milagres (CD duplo). Som Livre, 2001, disco 1, faixa 1; CAYMMI, Eu Não Tenho Onde Morar. 1960, lado A, faixa 1; CAYMMI, Caymmi. 1972, lado A, faixas 4 e 6; CAYMMI, Retirantes in Herval ROSSANO (dir.), Escrava Isaura: trilha sonora original da novela. Som Livre, 1976, lado A, faixa 3 e CAYMMI, Caymmi e o Mar. 1957, lado B, faixa 7. 449 A bibliografia dedicada à esses artistas tende a ignorar ou até mesmo a ocultar o papel das elites locais nas suas trajetórias. As maior parte das informações sobre Odorico Tavares foram obtidas durante a entrevista com Nancy Carybé em 31/05/2013 e numa visita que fiz, em junho daquele mesmo ano, à exposição Modernidade – Coleção de Arte Brasileira Odorico Tavares realizada no Museu Afro Brasil, Parque do Ibirapuera, São Paulo. A relação de Verger com a UFBA pode ser rastreada nas entrelinhas de seus livros e, principalmente, de seus artigos etnográficos. Os textos que o autor produziu em francês seriam traduzidos, ao longo das décadas, pelo CEAO/UFBA. Essas informações podem ser conferidas na detalha bibliografia desse intelectual disponível no site da Fundação Pierre Verger in http://www.pierreverger.org/br/pierre-fatumbi- verger/sua-obra.html. Última visita feita em 02/05/2015. As relações de Jorge Amado e de Caymmi com o poder público baiano e com grandes empresas locais, como a Odebrecht – evidentes para quem viveu em Salvador nos últimos 60 anos – são, porém, ainda mais difíceis de encontrar nas fontes bibliográficas disponíveis. Com certeza elas estão muito bem documentadas nos jornais diários baianos das últimas décadas. Uma pesquisa dessas, contudo, extrapolaria os meus objetivos. Dentre o conjunto de fontes indiretas para estes dois últimos casos destaco, por exemplo, AMADO, Navegação de Cabotagem. 1992; BARBOSA e ALENCAR, Caymmi. 1985 e S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, passim.

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Jorge e Dorival haviam começado a fazer sucesso nacionalmente desde a década de 1930, a partir da ida de cada um deles para o Rio de Janeiro, então a capital federal450. Nas décadas de 1950 e 1960 as obras dos dois já estavam, inclusive, envolvidas num processo de internacionalização crescente. A chegada e o estabelecimento definitivo de Carybé e de Verger em Salvador, que se deu em torno de 1950, seriam logo seguidos da amizade com o escritor já reconhecido. Em seguida, por intermédio deste, Caymmi passaria a integrar, mesmo vivendo no Rio de Janeiro, essa pequena confraria451. Carybé e Verger não eram famosos então e, embora tivessem entre 30 e 40 anos, ainda estavam começando as suas carreiras artísticas. Para sobreviveram os dois trabalhavam de forma intermitente para a imprensa. A produção conjunta dos quatro artistas ocupou o papel de establishment na cultura baiana de meados do século XX numa velocidade espantosa. Eles tornaram-se as figuras centrais do chamado renascimento baiano, um momento de mudanças aceleradas na capital baiana, que viu, em pouquíssimo tempo, desde o surgimento de uma linguagem arquitetônica própria e modernista até a criação da UFBA. Nunca mais, depois da renascença local, esses quatro amigos sairiam debaixo dos holofotes. As gerações seguintes de criadores regionais procuraram reivindicar sempre uma espécie de parentesco estético e espiritual com eles, transformando-os em verdadeiros patriarcas da baianidade contemporânea. Por coincidência ou não, desde que todos os quatro se conheceram, na década de 1950 a identificação entre eles não demorou a surgir e se expressou de diversas formas. Caymmi fazia a trilha sonora das novelas de Jorge e pintava retratos do artista plástico argentino. Verger fotografava o “cantor das graças” da Bahia com seu violão e jogava búzios para ele. O romancista grapiúna citava todos os outros nos seus livros e Carybé ilustrava essas mesmas publicações com desenhos originais452. Além dessa prática endógena de valorização dos

450 cf., a respeito da intensa amizade, do sucesso de ambos e do meio artístico-cultural carioca, o primeiro capítulo deste trabalho, acima. 451 Para um pano de fundo do encontro dos quatro, e para cf. os dados reproduzidos nos próximos parágrafos, ver toda a coleção Entre Amigos, especialmente JESUS, Carybé & Verger. 2008, p. 86 e ss. O renascimento baiano pode ser melhor avaliado através de RISÉRIO, Avant-Garde na Bahia. São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995. 452 Para as novelas amadianas da Rede Globo musicadas por Caymmi, cf. a nota 393. Os retratos que Dorival fez de Carybé foram mencionados nas entrevistas que fiz com a viúva e com a filha do pintor em 2013, mas também in BERNABÓ, Depoimento de Carybé in CAYMMI, Caymmi. 1985. Os negativos das duas sessões de fotografia que Verger fez com o compositor – uma em Itapoã e a outra no Passeio Público do Palácio da Aclamação que fica no centro de Salvador, ambas em 1946 – encontram-se na Fundação Pierre Verger e estão abertos para consulta. Algumas dessas imagens estão em Carybé, Verger & Caymmi. 2009, pp. 16, 26 e 88, junto com uma referência à consulta aos búzios que Dorival teria feito, mais tarde, com o Fatumbi. As menções de Jorge Amado aos seus amigos encontram-se dispersas em sua obra, alguns exemplos podem ser encontrados em AMADO, Bahia de Todos os Santos. 2012 (1945); Dona Flor e Seus Dois Maridos. São Paulo: Cia. das Letras, 2008 (1966) e Navegação de Cabotagem, 2012. As ilustrações de Carybé encontram-se nas primeiras

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parceiros e divulgação de seus trabalhos, os quatro amigos compartilhavam, no plano artístico, mais do que os seus interesses temáticos. Eles dividiam também, através de linguagens específicas, praticamente as mesmas formas de representá-las, criando, assim, uma espécie de projeto único ou de uma obra só.

4. FARTURA

É cedo, talvez o sol ainda demore para se esconder lá para os lados do Abaeté. O céu está azul claro, é uma verdadeira aquarela, e há luz para todo lado. A areia da praia é muito branca. Certamente não estamos muito perto da cidade de Salvador. Só em Jaguaribe ou em Itapuã, com suas dunas e seus coqueirais, dá para encontrar uma areia dessas, tão brilhante e fininha. O dia de trabalho deve ter rendido hoje. Não se vê, afinal, uma nuvem sequer no horizonte. Este, ocupando apenas o quarto superior da imagem, é formado por três faixas de

edições de AMADO, A Morte e a Morte de Quincas Berro d´Água. Id., 2008 (1961); O Compadre de Ogum. Id., 2012 (1964); O Sumiço da Santa. Id. 2010 (1988) e A Descoberta da América Pelos Turcos. Id. 2008 (1992).

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cores claras. Em cima o azul do céu, embaixo as ondas verdes do mar453. Entre uma coisa e a outra há uma linha cinzenta que parece estar longe demais. As mães e as mulheres dos pescadores, porém, não devem olhar para essa pincelada com boa vontade. Se sabe que muda o tempo, afinal, se sabe que o tempo vira454... O dia de hoje não será nada triste nesse povoado que não está na aquarela. A velha Itapoã, aquele vilarejo distante que deixava de existir no mesmo momento em que Carybé decidiu pintá-lo e Verger fotografá-lo455, deve estar diante do pescador que preenche, sozinho, a imagem quase toda. Os frequentadores do ateliê do artista ou das galerias de arte são obrigados, então, a assumirem a perspectiva de um filho distraído ou da morena do mar456 aliviada com a volta do noivo. A pesca foi muito boa. O homem que está indo para casa bem que poderia, aliás, olhar para essa plateia de connoisseurs e dizer assim: ô, morena do mar... ói eu! É uma tarde de fartura e o pescador, nessa hora, caminha de volta para o seu bem querer457 trazendo o sustento em seu corpo. Suas duas mãos seguram uns três ou quatro peixes grandes, azuis e amarelos. O pescoço dele tem, além disso, um enfeite esquisito, uma espécie de colar formado por mais uns sete peixes aquarelados. É bem mais do que o único peixe bom que ele prometeu – eu vou trazer – hoje de madrugada. Seus dois companheiros também estão na pintura, ali no fundo, e caminham em direção à esquerda, para os lados de Ipitanga, onde fica o atual aeroporto da capital baiana. Não seriam eles Maurino, Dadá e Zéca, aqueles três homens que embarcaram de manhã?458 Eles usam, apenas, dois chapéus de palha, um boné vermelho e o colar de peixes, a estranha roupa que cobre todo o tronco do primeiro pescador. Os três homens do mar andam

453 Esse é o segundo verso do refrão de É Doce Morrer no Mar, ligeiramente alterado pela supressão do em inicial – originalmente, nas ondas.. etc. A canção foi lançada por Caymmi em 1941, num 78 rpm da Columbia. Informação obtida na Discografia Essencial, p. 584.O tema pode ser ouvido em CAYMMI, Canções Praieiras. 1954, lado B, faixa 5. A letra dessa música, e consequentemente o verso citado, são de Jorge Amado e já haviam sido publicados parcialmente em seu romance Mar Morto. Cf. AMADO, Mar Morto. São Paulo: Cia. das Letras, 2008 (1936). 454 Versos da segunda estrofe de Milagre, v., a respeito desta canção, o segundo item deste capítulo. 455 A construção da estrada Amaralina-Itapoã e a transferência do aeroporto da cidade para o distrito de Santo Amaro do Ipitanga, a praia que fica logo depois dos coqueirais de Caymmi, aconteceram ambas na década de 1940. Itapoã mudaria rapidamente depois disso. Entre os anos 40 e 50, que marcam o início da residência de Verger e Carybé na capital baiana, o povoado rústico e isolado cantado por Dorival começava a se urbanizar aceleradamente com a aparição dos primeiros loteamentos habitacionais. Informações geo-históricas obtidas em VASCONCELOS, Salvador. 2002, passim. 456 Esse é o título de uma canção lançada num LP de 1965 por Nara Leão. Informação obtida na Discografia Essencial, p. 591. A citação do final do parágrafo são os versos de abertura dessa mesma música. Ela pode ser ouvida, na sua única interpretação caymmiana, em CAYMMI, Caymmi. 1972, lado A, faixa 2. 457 Vou trabalhar, meu bem querer – frase já citada anteriormente – um peixe bom eu vou trazer e meus companheiros também vão voltar são 3 dos versos que compõem a letra da Marcha dos Pescadores, também chamada de Canção da Partida. Para maiores informações, ver nota 436. 458 Verso da primeira estrofe de Milagre, v., a respeito desta canção, o segundo item deste capítulo.

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nus pela praia. É, não estamos perto do centro de Salvador mesmo. Ali só os meninos que não têm onde morar e, por isso moram na areia459, não têm vergonha de andar desse jeito. Mas Carybé nem quis chamar muita atenção para isso. A cintura do trabalhador que se aproxima cada vez mais do povoado é marcada, somente, por pinceladas rápidas de tinta preta. A pele dos três pescadores, aliás, foi pintada com essa mesma tinta escura e com vários tons de marrom. A impressão de que essa marinha itapuãzeira é, na verdade, um instantâneo de Pasárgada ou mesmo do paraíso é acentuada pela abundância de tudo – de luz, de areia, de peixe. E, além do mais, um vira-lata abana o rabo e está prestes a latir do lado esquerdo do dono, o mesmo pescador que ocupa a maior parte da pintura. Para completar o quadro de fartura, uma jaca enorme está jogada no chão, do seu lado direito. Parece que esse trabalhador é uma espécie de Adão que, daqui a pouco, vai começar a dar nome a todos os bichos e plantas460. Seus dois companheiros ao fundo parecem caminhar depressa, com passos maiores, talvez ainda estejam longe de seus destinos. Mas o simpático Adão praieiro, assim como o João Valentão de Caymmi, nem precisa dormir pra sonhar461. Ele é a própria natureza. Suas pernas não terminam, confundem-se com a brancura da praia de Itapoã. Seus passos, da mesma forma, não têm pressa nenhuma, apesar da expectativa do cachorro, da morena ou do filhinho. O homem parece até estar parado numa pose solene de carta de tarot462.

459 Estes são os dois primeiros versos de Eu Não Tenho Onde Morar – “eu não tenho onde morar / é por isso que eu moro na areia”. Ver nota n. 448 para maiores informações. 460 Referência à segunda versão do surgimento da vida e do homem de acordo com o livro do Gênesis. “Iahweh Deus modelou, então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens...” Gen, 2, 19-20 in Gilberto da Silva GORGULHO, Ivo STORNIOLO e Ana Flora ANDERSON (coord.), Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1985 (1973), p. 34. 461 João Valentão, na canção dedicada à ele “nunca precisa dormir pra sonhar/ por que não há sonho mais lindo / do que sua terra, não há”. Ver nota 269. 462 A aquarela de Carybé traz, por coincidência, precisamente o mesmo ordenamento de volumes e de figuras da carta de tarot Le Monde (O Mundo). Os animais que simbolizam os 4 evangelistas na tradição católica – o leão, touro, o homem e a águia – rodeiam, por exemplo, a figura central desse trunfo. Esses quatro seres estão colocados nos mesmos lugares, respectivamente, do cachorro, da jaca, e dos dois companheiros de pescaria que circundam o protagonista da aquarela. A respeito do tarot de Marselha e da carta em questão cf. o conhecido estudo histórico de Michael DUMMETT, The Game of Tarot: from Ferrara to Salt Lake City. Londres: Duckworth, 1980. Para o significado dos arcanos maiores cf. um dos manuais mais conhecidos dessa prática divinatória no Brasil em Carlos GODO, O Tarô de Marselha. São Paulo: Pensamento/Cultrix, 1985.

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A ligeira semelhança entre essa aquarela de Carybé e um trunfo de tarot é, certamente, apenas uma casualidade. Mas o fato de que outras imagens pareçam espreitar as criações desse artista plástico (além de ser um dos temas clássicos da história da arte de um modo geral) é algo interessante per se. Por trás da aparente simplicidade de suas pinceladas certeiras e dos traços pintados à mão livre dá para imaginar sempre, no acervo deixado por Carybé, uma série de níveis imagéticos sobrepostos. O pintor trabalhava habitualmente esses níveis todos, que podiam vir dos seus esboços e croquis preparatórios à citação de obras alheias, até que eles formassem uma unidade expressiva coerente. Os quadros, desenhos e esculturas resultantes deste processo tentavam unir, aparentemente, a maestria técnica dele, empregada sempre de maneira discreta, à sua rigorosa economia expressiva e ao apagamento relativo dos fantasmas acumulados ao longo desses passos intermediários463. Para Carybé, um criador que começou a sua carreira como cartunista e desenhista de cartazes publicitários464, a comunicação direta, a concisão e a simplicidade eram fundamentais. A destreza técnica e a erudição imagética, presentes em cada uma de suas obras, não poderiam ser escondidas totalmente, mas também não precisavam ser alardeadas. Mesmo nos grandes painéis dos últimos anos de sua vida, cheios de personagens e de informações gráficas concorrentes, existem figuras centrais bem definidas, linhas de força muito nítidas e um equilíbrio invejável produzido pelo manejo das cores ou dos volumes465.

463 Muitos dos estudos preparatórios de Carybé, já suficientemente aperfeiçoados, acabaram virando obras independentes. Na casa do pintor, onde se encontra o seu ateliê, eu pude ver, porém, alguns de seus esboços e as telas que ele não chegou a concluir. As visitas foram feitas na última semana de maio de 2013. A partir dessas fontes foi possível entrever o método de criação desse artista. A totalidade do acervo deixado por Carybé e os seus possíveis croquis, no entanto, são de difícil acesso. Eles encontram-se espalhados, especialmente em coleções particulares, e não existe ainda um catálogo que dê conta dessa obra multifacetada. Em um circuito muito limitado e que não está ligado particularmente às artes plásticas – o dos meus parentes em Salvador – existem, só a título de exemplo, dois trabalhos originais do pintor não registrados em lugar algum: uma serigrafia no apartamento de um dos meus tios e uma aquarela na sala de espera do clínico que atende a família. Para cf. uma parte do trabalho do artista, junto com algumas análises da sua produção, as obras de referência seguintes são muito úteis: Sylvia Menezes de ATHAYDE (coord.), As Artes de Carybé: pintura, desenho, gravura, escultura. Salvador: Núcleo de Artes do Desenbanco, 1986 e Bruno FURRER, Carybé. Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1989. 464 As atividades iniciais de Carybé na imprensa diária aparecem brevemente nos textos biográficos dedicados à ele como, por exemplo, JESUS, Carybé & Verger. 2008, passim. Na entrevista que fiz com Nancy Carybé em 31/05/2013 os primeiros trabalhos do pintor foram, porém, um assunto recorrente. A viúva de Carybé enfatizou a chegada do casal na Bahia em 1950 e o esforço do marido, naquela época, para deixar de ser apenas um “desenhista de jornal”. 465 O painel A Fundação da Cidade de Salvador, por exemplo, é uma obra de grandes dimensões com aproximadamente 2,5 m de altura e pelo menos 6 m de comprimento. Carybé misturou, nessa obra de 1978, uma quantidade incomum de técnicas e de materiais. O trabalho envolve duas esculturas em pedra-sabão, o retrato de um mazombo em azulejo, uma placa de cerâmica, dois baixos-relevos em cimento, uma cena portuária em óleo sobre tela, um trecho de pintura em afresco e três conjuntos de entalhes em madeira. O artista conseguiu fazer uma obra coesa, apesar de toda essa diversidade de suportes e de habilidades, na qual todos os sub-painéis dialogam entre si graficamente. Mesmo tendo conteúdos variados, cada uma das partes remete-se ao todo através

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A sua aquarela itapuãzeira, porém, tem ainda mais um parentesco, dessa vez nem um pouco evidente, com a obra de seu amigo Dorival Caymmi. A imagem, como um todo, parece ter sido condensada por Carybé – conforme a linha de raciocínio traçada nos dois últimos parágrafos – até ser reduzida ao seu mínimo expressivo, atingindo assim uma naturalidade coloquial e aparente. Mas é bom reforçar que, na produção desse artista plástico, não há espaço para o improviso verdadeiro nem para as emendas visíveis. Não há um milímetro de papel subutilizado na composição. Pelo contrário, assim como as estampas religiosas dos católicos ou as coreografias rigorosamente cênicas e miméticas dos xirês do candomblé466, tudo parece fazer sentido aqui. Cada gesto, cada objeto representado e cada elemento do cenário, aliados à disposição de tudo isso no retângulo da folha de papel, parecem querer dizer alguma coisa a respeito do protagonista. Ele não ocupa apenas o centro da imagem, tudo parece convergir para qualifica-lo e para dizer – ainda que não exista, para a infelicidade dos seus admiradores, uma chave de decifração tão prática e inequívoca quanto os manuais de tarot ou os catálogos dos museus – o que é que ele simboliza.

5. SE QUISER FALAR DE MIM...

Dorival e seu compadre Carybé, ao invés de habitarem o universo agitado e prolixo das narrativas ou as artimanhas maliciosas das tópicas retóricas, optaram claramente pela

da repetição de formas – como uma linha em diagonal que repete-se na metade do trabalho, em sentido vertical – e da utilização de apenas duas gradações de cores: azuis acinzentados e ocres avermelhados. O painel pode ser visitado facilmente, pois está num lugar público, o foyer do Teatro Castro Alves, em Salvador. 466 Os orixás do candomblé dançam, em suas festas, através dos corpos de seus filhos-de-santo. Essas danças, na verdade, formam uma espécie de linguagem dinâmica que tem um vocabulário de movimentos muito bem definido. Os gestos que estruturam essa linguagem corpórea são codificados e decodificados nos seus mínimos detalhes. O dedo indicador estendido pode representar, por exemplo, a ponta de uma das flechas do orixá caçador Oxóssi. O filho-de-santo virado pode unir esse dedo, contudo, ao polegar da outra mão. A flecha já está no arco formando o ofá, o símbolo dessa divindade. As suas duas pernas podem estar paradas, agachadas ou em movimento, uma diante da outra. O orixá estará, respectivamente, descansando, emboscando uma presa no meio dos matos ou cavalgando. As mãos de Oxóssi podem, enfim, ser rapidamente afastadas do seu tronco contraído e os dedos que formavam o par arco–flecha podem ser separados um do outro com a mesma velocidade. A flecha foi atirada. O filho-de-santo pode, ainda, olhar de um lado para o outro procurando o animal abatido, guardar o ofá trazendo as mãos até a cintura e segurar as patas do bicho com os dois punhos bem fechados. Movimentos como esses – todos eles acompanhados ou incitados por uma verdadeira sonoplastia à cargo dos três atabaques que tocam nos xirês – são utilizados e recombinados para narrar coreograficamente as aventuras mitológicas dos orixás ou para descrever o caráter e os atributos deles. A bibliografia específica sobre o candomblé é, infelizmente, muito pobre no que diz respeito a esse caráter cênico e coreográfico dos transes. Indicações úteis sobre o assunto podem ser encontradas, porém, em Ângela LÜHNING, Música, Coração do Candomblé in Revista USP, n.7, pp. 97-115. São Paulo, 1990; BARBARA, Rosamaria, A Dança Sagrada do Vento in Cléo MARTINS e Raul Giovanni da Motta LODY (orgs.), Faraimará, o caçador traz alegria: Mãe Stella, 60 anos de iniciação. Rio de Janeiro: Pallas, 2000 e Paulo Petronilio CORREIA, Corpo-Transe no Candomblé: performance e cotidiano in Artefactum: revista de estudos em linguagens e tecnologia, n. 1, 2014, disponível em http://artefactum.rafrom.com.br/index.php/artefactum/article/view/ 247, última visita feita em 12/05/2015.

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iconicidade das cenas e pelos retratos. O movimento até existe neste universo contemplativo, mas ele ou é cíclico quase sempre ou parece, paradoxalmente, estático. A outra escolha que ambos tomaram, ao longo de suas carreiras, foi o emprego insistente de sínteses representativas, de símbolos, nas suas obras. As pinturas e as canções desses irmãos de esteira têm, afinal, uma estética auto referencial em diversos níveis. As partes de um desenho ou um período inteiro da trajetória dos dois podiam representar o todo, que seria transformado com o tempo, através da continuidade dos traços expressivos, num conjunto equilibrado e coerente467. O contrário também acontecia e o sentido desse todo, que chegava a incluir a biografia dos dois indivíduos, acabaria virtualmente acessível nos detalhes mínimos de cada uma de suas partes. Essa estética foi inteiramente baseada na observação direta e nas lembranças dos dois compadres. Porém, ao longo de cada uma de suas realizações, este conjunto de situações concretasse transformaria, intencionalmente ou não, em florestas de símbolos468 e de ícones particulares, mas também universalizáveis. O método de trabalho dos dois e suas escolhas artísticas eram, afinal, “uma questão de técnica, mas também de instinto” – tomando de empréstimo uma expressão do escritor e comediante Dario Fo469 que, por sua vez, corrobora o pensamento estrutural de Jakobson. Embora Caymmi tenha saído gradativamente dos palcos, a partir do final da década de 1960, e Carybé não tenha feito uma obra performática sequer em toda a sua carreira, existem semelhanças formais entre os efeitos de duplicação, montagem e iconização das artes do palco e a trabalhosa simplicidade artesanal da produção deles dois. Não é preciso nem invocar os trejeitos cênicos de Dorival, que acabaram ficando registrados nas suas entrevistas filmadas470, nem rememorar as sucessivas leituras corporais das suas próprias personas, das morenas e dos pescadores que este compositor fazia apenas com um movimento da boca, dos

467 O artigo clássico sobre A Ilusão Biográfica de Pierre Bourdieu traz uma reflexão interessante a respeito da aparente coerência que os discursos biográficos tendem a assumir retrospectivamente. Essa ilusão não se dá apenas, no caso específico desses dois artistas, através de recuperações a posteriori de suas trajetórias. Ela também parece, parafraseando outra vez o autor, ter estruturado e ter sido estruturada pela seleção dos aspectos formais e conteudísticos de suas obras ao longo do tempo. Para localizar o artigo mencionado cf. a nota n. 25 acima. 468 Referência ao livro Floresta de Símbolos de Victor Turner, uma das obras mais importantes da Antropologia Social a respeito do simbolismo. Cf. Victor TURNER, Floresta de Símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EDUFF, 2005 (1967). 469 Dario FO, Manual Mínimo do Ator. São Paulo: SENAC, 1999 (1987). 470 CAYMMI e FARO, Dorival Caymmi. 2009 e CAYMMI e DIDIER, Um Certo Dorival Caymmi. 1999.

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olhos ou das sobrancelhas quando interpretava suas canções ao vivo471 para mostrar como se davam, na prática, esses procedimentos análogos. Basta olhar para as pinturas de Carybé e para as composições do Obá Onikoyi (esse é o nome ritual que foi assumido por Caymmi na hierarquia do Axé Opô Afonjá472) para flagrar o jogo de espelhos criados pela sobreposição de personagens e de elementos tipificados, de verdadeiros emblemas, em suas obras. Esses trabalhos artísticos são, antes de tudo, firmemente baseados em seus próprios códigos expressivos – o equivalente à concretude dos corpos, das máscaras e dos gestos, as matérias primas dos atores. Em outras palavras, ao explorarem deliberadamente as potencialidades de uma linha curva, de um material como o concreto ou das sílabas homófonas, eles representam a si mesmos – sem cair, no entanto, na metalinguagem. A única exceção nesse sentido são os versos estranhamente desmetrificados de abertura de Sargaço Mar473, que se referem, em tempo real, à música que está sendo cantada e ouvida simultaneamente, mas que não tem autoria definida: “quando se for esse fim de som / doida canção / que não fui eu que fiz...” A interação entre o ritmo melódico, o andamento prosódico da letra e o conteúdo da Modinha de Tereza Batista474, por outro lado, pode exemplificar bem o emprego conscientemente estético que Dorival fazia dos significantes, dos elementos estruturais de um tema. Nesta valsa, ao que parece, o compositor utilizou uma única informação musical – o compasso ternário simples em 3/4, marcado em todos os seus tempos fortes e fracos por uma sucessão inalterável de semínimas – para produzir todo o resto. Somente a letra, de Jorge Amado, estava pronta475 antes da seleção desse verdadeiro alicerce rítmico. Mas, no ato de

471 cf. especialmente CAYMMI e FARO, Dorival Caymmi. 2009. Essa entrevista é, na verdade, um show entremeado de perguntas. Ela segue o formato que o produtor musical Fernando Faro criou para o Programa Ensaio, exibido pela TV Tupi e posteriormente pela TV Cultura desde o final da década de 1960 até hoje. Com a câmera fechada o tempo todo no rosto de Caymmi é possível perceber a grande variedade de nuances que a sua expressão facial adquiria durante a interpretação de cada um dos seus temas. Essa expressividade chega a ser teatral em alguns casos. Os dados biográficos básicos de Fernando Faro podem ser cf. no site do programa Ensaio, disponível em http://tvcultura.cmais.com.br/ensaio, última visita feita em 13/05/2015. 472 Obá Onikoyi trata-se de uma denominação transferível após a morte do seu possuidor. O sucessor de Dorival e herdeiro de seu título, hoje em dia, é o músico Gilberto Gil. O cargo de Onikoyi identifica um dos integrantes – ele é o quinto titular do lado esquerdo, ossi – do conjunto de obás de Xangô que a casa mantem. O chamado corpo dos obás foi criado por Mãe Aninha e pelo babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim em 1936. Para maiores informações sobre o assunto cf. os artigos pioneiros de Vivaldo da Costa LIMA, Os Obás de Xangô (1966) e Aninha e os Obás de Xangô (2003) in LIMA, Lessé Orixá: nos pés do santo. Salvador: Corrupio, 2010, pp. 59-87 e 293-305. 473 cf. a nota n. 314 acima. 474 cf., a respeito, a primeira epígrafe deste capítulo e sua nota correspondente. 475 A quadrinha de Jorge Amado utilizada na composição de Caymmi é, na verdade, a epígrafe do romance Tereza Batista Cansada de Guerra. Cf. AMADO, Tereza Batista Cansada de Guerra. São Paulo: Cia. das Letras, 2008 (1972).

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transformá-la numa canção, Caymmi acabou escolhendo-o, certamente, como ponto de partida. A impressão de ingenuidade e de previsibilidade dessa cadência repetitiva é confirmada pela melodia, formada somente por arpejos e fragmentos escalares descendentes, e pela divisão antinatural dos versos. Em sua modinha, cantada em primeira pessoa, Tereza Batista, afinal, faz coincidir as sílabas do texto com as semínimas do ritmo de base. O resultado, ainda que seja deliberadamente singelo, não lembra de jeito nenhum o encadeamento da fala comum, ao contrário da maioria das canções do artista. A jovem heroína do romance de Jorge Amado separa, na verdade, sílaba por sílaba o que vai sendo dito como se estivesse no meio de uma brincadeira infantil. A letra, no entanto, fala dela mesma de duas maneiras justapostas. O seu conteúdo semântico é uma auto descrição da protagonista adolescente e já Cansada de Guerra: “me chamo siá Tereza / perfumada de alecrim / ponha açúcar na boca / se quiser falar de mim”. E o seu conteúdo formal, através dos dispositivos composicionais já mencionados, também confirma todas essas características de doçura, feminilidade e infantilidade que qualificam a personagem. A “história de cordel” de Jorge, no entanto, é marcada o tempo todo por oposições dualistas. A heroína, que tem que escolher entre dois amores, depois de uma vida sexualmente terrível, também é filha dos orixás contrastivos Iansã e Omolu. Jorge Amado utiliza essa referência aos deuses do candomblé para explicar a personalidade de Tereza que é cheia de antíteses internas. Ela é, por um lado, festeira, alegre e brigona, mas também é calada, sisuda e misteriosa. A letra da modinha original, aquela que está na epígrafe do romance, seria ligeiramente alterada por Caymmi. O compositor acrescentaria uma dedicatória em forma de recitativo e três versos após a quadrinha do seu compadre. Esse acréscimo final faz referência, precisamente, à dualidade de Tereza. Dorival criou, para isso, dois pares de símbolos: “flor no cabelo, / flor no xibiu → mar e rio”. Eles são capazes de sintetizar, em sua concretude, a beleza que se encontra em duas partes do corpo da protagonista, uma privada e a outra pública, e as águas diferentes, uma doce e outra salgada, que se misturam na sua personalidade complexa. Mas a ambiguidade que caracteriza a heroína não se expressa apenas aí. Esses pares icônicos são, por sua vez, embasados na estrutura musical da canção. A melodia da Modinha de Tereza Batista também possui um dualismo marcante. Não é preciso ter um ouvido muito bom, afinal, para perceber logo que os arpejos dessa valsa de realejo476 são parecidos, mas não são iguais. Caymmi empregou alternadamente acordes maiores e menores, o que parecer

476 O trecho principal dessa canção é assim denominado na partitura das últimas edições do Cancioneiro da Bahia. Cf. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, s/d, c.1984, pp. 146-7.

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produzir um estranho efeito de duplicidade. A filha de Iansã que canta me chamo siá Tereza, numa escala maior, parece mudar de ânimo ou de intenção de repente. Ela diz que é ou está perfumada de alecrim em modo menor – uma disposição escalar que, para os ouvidos acostumados com o sistema tonal, tende a soar essencialmente triste e introspectiva. O orixá Omolu, discreto como ele é, parece querer fazer parte da canção agora. As trocas de modos dos arpejos continuam até o final da quadrinha de Jorge Amado. Nos três versos finais da canção as oposições cabelo / xibiu que têm a flor como um denominador comum e mar / rio são, porém, acentuadas por uma súbita alteração de velocidade no andamento melódico e prosódico. Essas palavras-chaves levam muito mais tempo para serem cantadas, ocupando alguns compassos inteiros. A relação pari passu entre as sílabas e as semínimas é obviamente anulada e, quando chega esse momento semanticamente importante, a música toda já parece ter desaguado, atingindo o seu ponto conclusivo. Essa referencialidade técnica e emblemática comum à obra de Carybé e de Caymmi será apresentada, a seguir, de uma outra maneira. Além dos conteúdos representados e da coerência estrutural dos trabalhos desses compadres a estética deles dramatizava, em larga medida, a interação entre criadores e criaturas, entre pessoas, personagens e personas no interior de cada aquarela e de cada canção. Esta característica específica da produção de Caymmi e da sua confraria de amigos será enfocada a partir de agora, através de uma análise das técnicas composicionais do “cantor das graças da Bahia”. A caracterização do candomblé, o trabalho com os sons e o jogo das personas serão investigados, então, em dois temas caymmianos bastante distintos: “Sargaço- Mar” e “Promessa de Pescador”. Entre a criação de cada uma dessas canções praieiras existe um hiato de mais de 30 anos.

6. BUDA NAGÔ

Dorival Caymmi, conforme indicado no capítulo anterior, já foi comparado a muitas figuras concretas, personas e até coisas. Gilberto Gil em seu álbum “Parabolicamará” de 1994477, descreveu-o, por exemplo, através de uma série de associações livres, relacionando poeticamente “o gênio da raça” com algumas entidades concretas e imaginárias, tais como o Buda e os povos nagô.

477 cf. a nota n.6 acima.

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Eu tentarei produzir um outro tipo de comparação a partir de agora, estabelecendo um diálogo entre duas canções praieiras de Caymmi: “Promessa de Pescador”, da década de 1930, e “Sargaço-Mar”, dos anos 70. “Sargaço-Mar” é uma música bonita e estranha, segundo um de seus próprios versos, ela é “doida”. Ao longo dos anos, inclusive, esta canção acabou ocupando uma posição dúbia, sendo considerada pelos críticos e discípulos do compositor baiano ora uma obra-prima do cancioneiro caymmiano478 ora uma espécie de testamento sinistro. Sua música e sua letra compreendem, afinal, uma espécie de dissolução do eu, do sujeito enunciador do tema, que ocorre de muitas maneiras e sob diversas perspectivas, através, inclusive, de uma poética místico-religiosa. Para chegar até essa dissolução e poder comparar a estética estranha de “Sargaço- Mar” com a melodia e com os versos mais comuns de “Promessa de Pescador” a maneira mais rápida talvez seja, por incrível que pareça, andar para os lados como um caranguejo – que, de acordo com o próprio Caymmi, só é peixe na vazante da maré!479– fazendo algumas reflexões a partir da canção de Gilberto Gil. A letra de “Buda Nagô” foi concebida, segundo o próprio autor, como uma “enumeração pedagógica”, “como se numa sala de aula se fizesse com as crianças um jogo de elucidação”480:

“Dorival é ímpar Dorival é par Dorival é terra Dorival é mar

Dorival tá no pé Dorival tá na mão Dorival tá no céu Dorival tá no chão

Dorival é belo Dorival é bom Dorival é tudo Que estiver no tom

478 Esse é o caso, e.g., da biografia de Dorival escrita por Stella Caymmi. A composição é chamada de “a canção definitiva” neste trabalho. Cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, pp 452-60. 479 Versos retirados da canção “Vou Ver Juliana”. Cf., a respeito, a nota n. 173 acima. 480 Esses dois comentários, feitos por Gil apenas dois anos após o lançamento da música, e a letra transcrita abaixo foram retirados de MOREIRA e RENNÓ, Gilberto Gil. 1996, pp. 338-9.

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Dorival vai cantar Dorival em CD Dorival vai sambar Dorival na TV

Dorival é um Buda nagô Filho da casa real da inspiração Como príncipe, principiou A nova idade do ouro da canção Mas um dia Xangô Deu-lhe a iluminação Lá na beira do mar (foi?) Na praia de Armação (foi não) Lá no Jardim de Alá (foi?) Lá no alto sertão (foi não) Lá na mesa de um bar (foi?) Dentro do coração

Dorival é Eva Dorival Adão Dorival é lima Dorival limão

Dorival é a mãe Dorival é o pai Dorival é o peão Balança, mas não cai

Dorival é um monge chinês Nascido na Roma Negra, Salvador Se é que ele fez fortuna, ele a fez Apostando tudo na carta do amor Ases, damas e reis Ele teve e passou (iaiá) Teve o mundo a seus pés (ioiô) Ele viu, nem ligou (iaiá) Seguidores fiéis (ioiô) E ele se adiantou (iaiá) Só levou seus pincéis (ioiô) A viola e uma flor

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Dorival é índio Desse que anda nu Que bebe garapa Que come beiju

Dorival no Japão Dorival samurai Dorival é a nação Balança, mas não cai”

É interessante chamar atenção, logo de início, para a metáfora que está no título da canção: a ligação que esse músico fez entre Dorival e um inusitado Sidarta Gautama de origem africana. É claro que toda correlação, por mais estranha que seja, ilumina ou pelo menos levanta alguns aspectos dos dois ou mais objetos colocados em evidência. Eu gostaria, apesar disso, de levantar aqui uma dúvida ingênua, meramente heurística. A comparação do título de Gil estava correta? A resposta à essa pergunta retórica é forçosamente dupla e relativista: sim e não. A comparação fazia sentido, obviamente, para Gilberto Gil. Para o próprio Dorival nem tanto. O homenageado – de acordo com as entrevistas que eu fiz com dois de seus filhos, Dori e Danilo – parece não ter entendido muito bem qual era o sentido da música. É uma opção. Ou, talvez, ele não tenha gostado de alguns trechos da letra de “Buda Nagô”. Esta é uma outra explicação para o suposto incômodo do artista veterano. Não deve ser fácil, de qualquer forma, ver seu nome substantivado e adjetivado incessantemente por 3 minutos e meio, ainda que tudo seja embalado por um samba-de-roda contido e sacudido ao mesmo tempo – era mais ou menos nesse estilo que Dorival gostava de compor muitos de seus sambas. A faixa conta também com a voz da própria filha de Dorival, Nana Caymmi, que canta durante quase toda a música. Com tudo isso, algumas metáforas e pares de oposições podem ter parecido pouco lisonjeiros para aquele artista octogenário. Na abertura da canção, por exemplo, o compositor sugere afinal que o nosso Buda Nagô já estaria no céu e, ao mesmo tempo, continuaria no chão. Nas outras estrofes ele é tão feminino quanto masculino, representando uma integração total. Ele é a mãe e o pai, Eva e Adão, simultaneamente. Esse Dorival mitificado de Gil é, também, muito doce e muito azedo. Num dos versos da música ele é, enfim, a lima e o limão. Na última estrofe da música, entretanto, esse jogo de associações fica um pouco mais sério e parece ganhar, inclusive, uma ligeira conotação política. Logo depois de se despir e

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virar um índio / desse que anda nu / que toma garapa / que come beiju Dorival é comparado à nação do final do governo Collor que balança mas não cai. Esse desconforto, contudo, não passa de uma inferência. A música é claramente um elogio e Caymmi não falou nada contra o “Buda Nagô” do seu discípulo – o que, aliás, era uma prática comum deste monge chinês / nascido na Roma Negra. Gostando ou não de qualquer notícia ou produto artístico associados ao seu nome, raramente Dorival desgastava a sua imagem em polêmicas públicas. Por outro lado, o velho compositor nunca usou a figura do Buda de Gilberto Gil, nem nada parecido, nem antes nem depois de 1994, para referir-se a si mesmo. Ele preferiu continuar empregando, para fazer suas músicas e para falar, simultaneamente, da sua própria pessoa e de suas personagens, algumas metáforas, símbolos ou emblemas já antigos. São eles: 1 e 2 – a do baiano típico e a do pescador, que remontam às suas primeiras aparições no rádio, nos palcos e no cinema entre as décadas de 30 e 50481, mas que continuaram acompanhando-o por toda sua vida; 3 – a dos homens (ou mulheres) do povo ou comuns, que frequentam a totalidade de suas letras em seus momentos de trabalho, geralmente manual, e de lazer 482; e finalmente, 4 e 5 – as do negromestiço e do seguidor do candomblé. Essas duas últimas metáforas, embora estivessem presentes no seu discurso e na sua obra desde o início de sua carreira, adquiriram uma importância muito maior a partir do final dos anos de 1960, quando ele dividiu o palco com Vinícius de Moraes no Rio de Janeiro, entre 1964 e 1966483, fez o show de inauguração do teatro Castro Alves em Salvador, em 1967484, e depois voltou a morar, por um tempo curto, na Bahia. Antes de prosseguir com esta argumentação é preciso fazer algumas ressalvas. Em primeiro lugar, as cinco imagens simbólicas elencadas acima foram identificadas e isoladas por mim, ao longo da pesquisa. Elas não correspondem a uma autoclassificação feita pelo próprio compositor e também não aparecem na bibliografia específica. Em segundo, é claro que esses ícones nunca aparecem isoladamente, uma metáfora acaba sempre ligando-se à

481 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001; O Que é Que a Baiana tem?, 2013; DOMINGUES, Caymmi sem folclore, 2009 e BARBOSA e ALENCAR, Caymmi, 1985. 482 cf. acima a discussão feita no item n.3 deste capítulo. 483 Este show, mais tarde gravado em estúdio, ficou dois anos em cartaz na boate Zum Zum, em Copacabana, Rio de Janeiro. O espetáculo foi concebido pelo diretor artístico da Odeon – multinacional que mantinha, naquela época, Vinícius e Caymmi como artistas exclusivos – Aloysio de Oliveira, teve uma enorme repercussão e foi levado para outras cidades do Brasil e para Buenos Aires. Cf., a respeito, CAYMMI e MORAES, Vinícius / Caymmi no Zum Zum, 1967, S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, pp. 402-5 e o sétimo item do primeiro capítulo, acima. 484 Para maiores informações cf. a p. 362 acima.

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outras, como bem sabe Gilberto Gil. E, finalmente, é preciso lembrar que fazer as separações normais entre autor e obra, criador, criação e criatura, personagem e pessoa, nem sempre é fácil quando lidamos com Dorival. Por isso escolho, sempre que posso, a expressão intermediária persona para falar desses chavões caymmianos sem precisar decidir a cada frase de quem ou do que estamos falando exatamente.

7. SARGAÇO-MAR

A inspiração de Gil para comparar Dorival com um Buda que tem alguma relação com os candomblés de Ketu – ou, como diria Roger Bastide, de rito nagô485 – provavelmente não veio só da sabedoria folclórica ou da calma de seu homenageado. “Sargaço-Mar” talvez tenha tido uma influência decisiva no título e, consequentemente, no conteúdo daquele samba de 1994. Esta canção praieira de Caymmi teria, pelo menos, impactado bastante seu parceiro musical Caetano Veloso quando ela foi lançada ao vivo, em 1976. É o que Caetano revelou à Stella, neta do compositor, no contexto da biografia escrita por ela. O músico santo-amarense teria visto todas as apresentações daquele show486. Gilberto Gil deve ter assistido ao mesmo espetáculo, uma vez que Caymmi dividia o palco com Gal Costa, amiga e colega dos dois.487

485 cf. BASTIDE, O Candomblé da Bahia. 2001. 486 cf. S. CAYMMI, Dorival Caymmi. 2001, p.457. 487 Imagem de autoria da fotógrafa Lita Cerqueira retirada do ADC.

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É no próprio conteúdo de “Sargaço-Mar”, entretanto, que estão as pistas mais importantes para levantar essa suspeita. O samba de Gil parece levar em conta aquela que é considerada a obra-prima de seu mestre. Na letra de “Sargaço-Mar” aparecem com muita nitidez, afinal, os dois elementos- chave levantados pelas páginas anteriores: o budismo nagô atribuído por Gilberto Gil à Caymmi, ou pelo menos uma de suas prováveis fontes de inspiração, e as personas que Dorival mais gostava – aquelas com as quais ele convivia na lida da vida488 e, especialmente, no seu trabalho composicional:

“Quando se for esse fim de som Doida canção Que não fui eu que fiz

Verde luz, verde cor de arrebentação Sargaço mar, sargaço ar

488 Expressão retirada da letra de “João Valentão”. A respeito desse tema cf., a nota n.269 acima.

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Deusa do amor, deusa do mar

Vou me atirar, beber o mar Alucinado, desesperar Querer morrer para viver com Yemanjá

Yemanjá, odoiá! Yemanjá, odoiá! Yemanjá, odoiá!”489

O eu, a voz que canta “Sargaço-Mar”, atinge, como um verdadeiro Buda, uma espécie de nirvana, diluindo-se. Em outras palavras, várias das personas de Caymmi são anuladas numa única canção, relativamente simples e curta. Na verdade, para ser mais preciso, todo esse nirvana ocorre na primeira parte do tema. E essa já é uma outra dissolução interna da música em questão. “Sargaço-Mar” é dividida em duas partes de tamanho desiguais e estrutura musical contrastante.490 Ambas estão na tonalidade de si menor, mas essa é a única semelhança entre elas. A primeira seção da música é inteiramente baseada em amplas progressões harmônicas – ou seja, a harmonia, os acordes do violão, são dotados de grande mobilidade. Esses acordes estão limitados por uma fórmula harmônica simples: um acorde com função tônica, o próprio si menor, e sua dominante, ambos com extensões que tornam tudo meio torto, dissonante. Essa fórmula equivale à abertura da canção e à sua ponte, uma vez que, a primeira parte de “Sargaço-Mar” é cantada duas vezes nas gravações disponíveis491. A música segue, a partir daí, até o seu ponto de maior tensão harmônica que corresponde, na letra, à palavra “arrebentação”. Os acordes progridem durante todo este percurso procurando evidentemente conduzir a atenção do ouvinte, num jogo de expectativas e de resoluções. A harmonia do início de “Sargaço-Mar” é muito esquisita. Ela não é fácil de escutar num primeiro contato com a obra. No entanto, ao invés de trabalhar com dissonâncias reais, Caymmi joga com efeitos harmônicos dissonantes. Os acordes empregados são comuns numa música de tonalidade menor. O compositor, no entanto, acrescenta ou suprime extensões harmônicas de uma forma surpreendente e, principalmente, posiciona os acordes de um jeito muito particular.

489 A transcrição da letra de “Sargaço-Mar” foi retirada do songbook CHEDIAK, Dorival Caymmi. 1994, vol. 2, pp.114-5. 490 A partir este parágrafo não será possível contornar uma linguagem excessivamente técnico-musical. Eu tentarei explicar, contudo, e na medida do possível, o significado dos termos desse vocabulário específico. 491 cf., e.g., a primeira gravação da canção em CAYMMI, Caymmi. 1985, disco 2, lado 1, faixa 4.

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Antes mesmo de chegar à segunda parte de “Sargaço-Mar” – um trecho conclusivo que representa a própria dissolução da música – Dorival Caymmi já havia dissolvido, então, toda a harmonia da obra. As notas das frases melódicas, daquilo que Caymmi canta, também servem como extensões dos acordes e confundem, nesse processo, a percepção harmônica do ouvinte. Cada frase, aliás, vale por si mesma. Elas parecem encerrar um sentido musical completo, é como se a música acabasse e recomeçasse ininterruptamente. A maioria dessas frases termina de um jeito inesperado. Com a repetição, porém, esses finais imprevisíveis param de soar estranhos em algum momento. A música começa empregando parcialmente a estrutura harmônica e melódica do sistema tonal e vai se tornando, na sua primeira parte, cada vez mais modalizada. Ela não chega a ser nem uma coisa nem outra, parece seguir um caminho do meio entre os dois sistemas. A nota mais aguda da melodia é um dó sustenido que coincide, novamente, com o final da palavra “arrebentação”. A primeira parte de “Sargaço-Mar” forma, na verdade, uma espécie de triângulo melódico. Ela sai da nota si no registro grave da voz e vai até esse dó sustenido, uma nona acima. Depois a melodia volta para a nota si, fechando o triângulo e concluindo esse primeiro trecho da canção492. E tudo – a condução harmônica, o desenho escalar e o aumento do volume sonoro – reforça a elevação melódica que acompanha essa palavra-chave, “arrebentação”. Esse trecho pode ser encarado, então, como o núcleo sonoro de sentido. São os compassos mais importantes desse primeiro trecho da música. Na segunda parte há uma simplificação harmônica e melódica, que pode ser encarada ao mesmo tempo como uma dissolução e como uma concentração expressiva. Ao invés de seguir com a harmonia tonal o compositor decide alternar dois acordes de si menor com extensões diferentes. São acordes muito parecidos e ambos teriam função tônica se a harmonia saísse do lugar, mas ela não sai. O caminho harmônico não leva mais a lugar nenhum. A melodia, por sua vez, perde amplitude e variedade e reitera, como um mantra, pouquíssimas notas. Caymmi praticamente zera tanto a harmonia quanto a curva melódica. Ele conduz as duas coisas a um mínimo expressivo.

8. QUERER MORRER PARA VIVER COM YEMANJÁ

492Esse elemento melódico estruturante é extremamente sofisticado do ponto de vista da composição musico-poética. Evidentemente trata-se de um dos preciosismos caymmianos discutidos acima no segundo item deste capítulo.

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É noite agora, ela já se foi, nada disse, somente me olhou e sei que voltará. Alfabetizou-me ela o olhar. Fico-me nesses anonimatos, florestas sem nome, tornei-me bússola que aponta para o centro. Meu único caminho é não ir. Esperar.

Reginaldo Pujol Filho493

K´a máà ro ni ṅgbà Òrìṣà rè lodo e K´a máà ro ni rù ṅgbà Òrìṣà rè lodo e

Que nunca, jamais, a dona das águas decida nos magoar

Que ela carregue pro fundo das águas toda a nossa mágoa

Orin Orixá da nação Ketu494

Esse trecho curto e contrastante que encerra Sargaço Mar pode ser visto como a dissolução da dissolução. O compositor, afinal, já havia começado na primeira parte, o processo gradual de desconstrução da harmonia e da melodia através da simplificação. Nessa segunda parte o processo minimalista é subitamente acelerado. Além da música, a letra também traz esse mesmo movimento de anulação radical. Desde as primeiras palavras de Sargaço Mar, ou seja, desde antes do mínimo expressivo sonoro, da harmonização modal ou da segunda parte, o compositor começa a dar alguns pistas do que acontecerá com a canção. Caymmi, afinal, começa dizendo que a música todo é um “fim de som” e coloca em seguida a autoria em suspenso com o verso “que não fui eu que fiz”. A música de Dorival, como sempre, espelha a sua letra e vice-versa. O verso “que não fui eu que fiz”, em especial, complexifica e simultaneamente dilui, muito antes da dissolução musical, o jogo das personas de Caymmi. A letra insinua que a música talvez não tenha sido feita pelo compositor e intérprete que é quem efetivamente canta o verso. A canção teria sido, então, uma criação de uma de alguma daquelas imagens icônicas usadas por Dorival?

493 Reginaldo PUJOL FILHO, Quero ser Reginaldo Pujol Filho. Porto Alegre: Não Editora, 2010, p. 124. 494 Esse orin (cantiga) para o orixá Yẹmonja utiliza o èdè Yorùbá, a língua litúrgica dos candomblés de nação Ketu. A tradução que eu fiz dos versos originais não é literal. O texto da cantiga, palavra por palavra, é mais ou menos assim: “que não magoe nós Orixá do rio, ê / que não fique mágoa [de] nós Orixá do rio, ê”. Yẹmonja, na antiga Costa dos Escravos, é o orixá do rio homônimo. No Brasil ela acabou assumindo o papel de Olóòkun, uma velha entidade ligada ao Oceano. Cf., a respeito das características diferentes que o orixá Yẹmonja assume dos dois lados do Atlântico, VERGER, Notas sobre o Culto dos Orixás e Voduns. 2000.

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A letra da obra, de qualquer forma, não chega a indicar claramente a presença da maioria desses ícones caymmianos. Apenas um deles, o seguidor do candomblé, é explicitado. Afinal, a música é uma descrição, em paralelo, do mar e do orixá Iemanjá que, inclusive, afirma o desejo de “morrer para viver” neste lugar e com essa deusa. Os versos da canção vão se tornando cada vez mais intensos e intimamente religiosos ao longo da sua primeira parte. Na final da música eles se resumem à saudação usual que é dedicada, nos candomblés de Ketu, à essa mesma entidade mitológica. Todas as outras personas estão diluídas, sobrepostas, ou são apenas ecos no discurso da estranha primeira pessoa que protagoniza “Sargaço-Mar”. O gênero praieiro da música pode sugerir as imagens de um pescador e de um homem do povo e a temática do candomblé talvez envolva a figura de um negromestiço, mas nada disso é dito pela canção. Essa primeira pessoa religiosa, que, num jogo de espelhos também recusa a autoria com o mesmo verso “que não fui eu que fiz” dissolve todas as personas nela mesma, aliás, com essa afirmação e com o desejo de anular-se, de morrer nos braços de Iemanjá.495 Esse cancelamento de todos os ícones caymmianos, entretanto, não chega a se completar na letra da canção. É o protagonista de “Sargaço-Mar”, afinal, que anuncia e, de certa forma, encena, a anulação de si. O eu da canção – ele mesmo, em outras palavras – permanece texto adentro, através do uso ininterrupto da primeira pessoa, ainda que expresse o desejo de atingir “esse fim de som” e, mais tarde, de “se atirar / beber o mar”. Os contornos sonoros da música seguem em paralelo esse silenciamento paradoxal de sua letra, uma vez que eles também continuam soando, apesar de parecerem indicar o contrário, em sua simplificação progressiva. A letra de “Sargaço-Mar” deixa em suspenso, então, o seu tema central. A canção fala do que, no final das contas? Além desse curto-circuito lógico representado por um “fim de som” que não acaba e por um eu que quer sumir, mas não some, o que descreveria a música? Um processo de desaparição, de transcendência, de conjunção mística com o mar e com sua deusa ou, simplesmente, uma morte suicida? Caymmi constrói a canção de um jeito tão hábil que esse enigma torna-se insolúvel. Os versos e as sonoridades do primeiro trecho de “Sargaço-Mar” indicam todos esses elementos, mas nunca estabilizam o sentido numa única opção. A música parece justificar, de fato, o budismo nagô que Gilberto Gil encontrou em Dorival. Ela poderia ser descrita como a

495 Essa atração ambivalente – que parece misturar o amor e a morte numa mesma emoção arrebatadora – pelo orixá Iemanjá não é foi inventada pelo compositor de Sargaço-Mar. Décadas antes, por exemplo, o seu amigo Jorge Amado já tematizava algo parecido no romance Mar Morto. Na música em questão, no entanto, Caymmi parece levar essa tópica ao seu limite lógico e expressivo. cf. também AMADO, Mar Morto. 2008.

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representação complexa de um nirvana, da anulação do eu, visto por diversos ângulos complementares. Porém o seu autor apresenta outra afinidade religiosa. E esse afinidade não parece trivial: de certa forma a crença no candomblé é a única certeza dessa doida canção. Essa fé específica é, enfim, um elemento semântico onipresente que permanece até o final da música, depois que todo o resto é silenciado.

Coda O GÊNIO DA RAÇA

Existe, e assim fechamos a argumentação desse capítulo, uma espécie de rebatimento ou homologia entre as técnicas composicionais de Dorival – especialmente as de suas músicas cada vez mais silenciosas do final de sua carreira – e a atitude adotada por ele em relação à afirmação ou ao encobrimento dos estigmas raciais. “Sargaço-Mar”, com a sua construção em abismo, talvez seja o melhor exemplo de toda sua produção para a visualização disso. Os conteúdos e as percepções da raça – ou melhor, das variadas experiências raciais dos negromestiços da Bahia e, por uma curiosa extensão metonímica, do Brasil – muitas vezes foram expressos na atuação do compositor e de sua confraria de amigos pelo silêncio, pela absorção e pela contemplação de caráter místico ou estético. A letra e a música desta estranha valsa praieira constituem-se, de forma análoga, no plano musical, utilizando para isso diversos dispositivos estilísticos típicos das composições caymmianas. A canção tem o mesmo caráter pictórico de outras criações de Caymmi. Os versos de “Sargaço-Mar” têm um forte apelo visual – a própria imagem do sargaço, a luz e a cor verdes, o mar e a sua linha da arrebentação –, construindo uma espécie de paisagem imaginária. Seguindo a vocação dramática do compositor e a sua tendência a escolher um momento privilegiado de determinada cena para descrever toda uma ambiência e o caráter psicológico de suas personagens, este cenário abriga também uma ação específica. Neste caso, a pintura deste espaço limítrofe (entre o ar e o mar, entre a praia e o oceano) funciona como metáfora ou um símbolo que encontra a sua coerência na atitude do enunciador que se dirige, entre a vida e a morte, ao orixá Iemanjá. O emprego dessas duas técnicas interage com a própria forma da canção, produzindo efeitos de contemplação, de silêncio e de ambiguidade. Estes resultam das sobreposições entre a presença e a ausência das diversas entidades subjetivas que emergem da obra: o compositor e o cantor, o público, Iemanjá, o protagonista e o próprio som personificado. Os aspectos formais desta música e sua construção lacunar levam o seu ouvinte a assumir diversas

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posições simultâneas e instáveis. Assim como a experiência racial particular de Caymmi foi expressa em sua trajetória – junto com uma determinada visão coletiva e idealizada sobre a África mítica dos orixás e das batas coloridas496– como uma possibilidade e um fascínio carregado de perigos intrínsecos, nesta composições a sedução da deusa dos mares confina com a dissolução, o perigo e a beleza. O compositor e o interprete desta valsa escrita em primeira pessoa abrem mão de dizer, de afirmar coisas, dizendo-as e afirmando-as no entanto. O paradoxo lógico que abre “Sargaço-Mar” – “quando se for esse fim de som / doida canção / que não fui eu que fiz...” –, no qual o compositor dramatiza a sua ausência através de sua inegável presença autoral, e vice-versa, é análogo à adesão de Caymmi ao candomblé e a outros sinais racializados, sem que houvesse jamais uma problematização especificamente racial destes signos e destas condutas por parte dele. É possível, extrapolando os limites dessa composição, estabelecer inclusive um paralelo entre esse dizer silencioso e a produção artística dos amigos de Dorival: Jorge, Caribé e Verger.

9. PROMESSA DE PESCADOR

Na canção praieira “Promessa de Pescador”, no entanto, a mesma cena de “Sargaço- Mar” perde boa parte de sua ambiguidade. É sintomático, por sinal, que o lançamento desta canção em 1939497 não tenha causado nenhum escândalo ou nenhuma consequência negativa para o seu autor. “Promessa de Pescador” tematiza afinal, numa época em que os candomblés ainda eram perseguidos pela polícia no Rio de Janeiro e, especialmente, na Bahia, o pedido de um pescador ao orixá Iemanjá. Esta oração assume o caráter bastante respeitoso – e, em certo sentido, heroico – que também pode ser encontrado nas outras criações do gênero praieiro de Caymmi:

“Ê ... ê ... ê ... ê ... A Alodê Yemanjá Oê Iá Yemanjá Oê Iá

Senhora que é das águas Tome conta de meu filho Que eu também já fui do mar

496 cf., D. CAYMMI, Bilhete de Dorival Caymmi a seu irmão, quando este se encontrava em Londres in AMADO, Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1991 (1944). 497 cf. a nota n. 77 acima.

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Hoje tou véio acabado Nem no remo sei pegá Tome conta de meu filho Que eu também já fui do mar

Ê ... ê ... ê ... ê ... etc.

Quando chegar seu dia Pescador véio promete Pescador vai lhe levá Um presente bem bonito Para dona Yemanjá Filho dêle é quem carrega Desde terra até o mar

Ê ... ê ... ê ... ê ... etc.”498

Além do tema expresso na letra, a musicalidade da canção traz também fortes elementos percussivos que evocam os cultos afro-brasileiros. Embora “Promessa de Pescador” não esteja, consequentemente, isenta de ambiguidades, boa parte da estranheza e do incomodo auditivo de “Sargaço-Mar” estão ausentes de sua estrutura composicional. Nesta música Caymmi propõe sons e temáticas controversos, assim como na maioria das canções praieiras, mas resguarda-se empregando uma série de soluções de compromisso. No plano da letra a canção é muito bem delimitada valendo-se largamente dos recursos da cena, da pintura e da utilização de uma personagem. Quem fala através do disco ou das ondas de rádio é, sem dúvida alguma, um pescador fictício e não uma espécie de alter ego do compositor, do cantor ou dos ouvintes. O próprio cenário e a ação descrita funcionam, neste caso, como demarcadores muito claros das fronteiras entre esta obra de arte a vida prática. Embora o texto seja recitado em primeira pessoa ele tem algumas estruturas de diferenciação claras. Depois de uma saudação, aparentemente em iorubá, ao orixá Iemanjá a canção começa, por exemplo, com um vocativo – “Senhora que é das águas” –, indicando muito bem com quem este pescador fala. No final da canção, por outro lado, o foco da cena é ampliado de repente através de um verso que fala do caminho que vai “desde terra até o mar”.

498 A transcrição da letra de “Promessa de Pescador” foi retirada de CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. 1947, p.53.

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Dorival emprega um efeito de afastamento aqui. Para utilizar uma linguagem cinematográfica, ele emprega uma espécie de zoom out, que conduz a um plano geral da praia e que nos permite – em meio a uma generosa tomada panorâmica – visualizar, de longe, o pescador envelhecido e o filho que ele quer consagrar às águas. A utilização do iorubá nas letras de “Promessa de Pescador” e de “Sargaço-Mar” é sensivelmente diferente. Caymmi reproduz, na primeira música, apenas a sonoridade dessa língua “primitiva”. O léxico nagô da obra é espúrio e deve ter sido aprendido de ouvido. A saudação que abre o tema e que serve como ponte do mesmo compõe-se, enfim, de um amontoado de expressões sem um valor semântico muito preciso. Elas foram mobilizadas, aparentemente, para criar uma ambiência genérica e nada mais. O edé iorubá não devia ter, é claro, grandes significados místicos para Dorival naquele momento. A sua conversão ao candomblé se daria trinta anos depois. Estes recursos de afastamento entre o ouvinte e a temática expressa, que podia ser apreciada então segundo valores estéticos e/ou exotizantes da época499 – afinal, a canção mostrava, para os ouvintes das rádios cariocas de então, um pescador idealizado do distante litoral baiano e não um macumbeiro verdadeiramente ameaçador da Zona do Mangue do Rio de Janeiro500 –, talvez tenham sido responsáveis pelo êxito de uma música que continha elementos potencialmente polêmicos. “Promessa de Pescador” divide-se em duas partes distintas. A primeira delas, numa inversão formal bastante inusitada, corresponde à seção principal da canção e, no entanto, é utilizada respectivamente como introdução, ponte e coda. A segunda ocupa uma posição

499 Desde a implantação da indústria fonográfica no Rio de Janeiro na primeira década do século XX criou-se um nicho de produção muito específico com gravações de batuques, macumbas ou raridades africanas. Essas gravações estavam ligadas à documentação de cunho folclórico e ao teatro popular, de caráter quase sempre humorístico, brejeiro e exotizante. Cf., a respeito, Tiago de Melo GOMES, Um Espelho no Palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004 e SEVERIANO. Uma História da Música Popular Brasileira. 2008. A recepção ambivalente desses fonogramas pode ser exemplificada através de um único documento. A edição do dia 07/02/1932 do jornal Correio da Manhã, por exemplo, diz o seguinte a respeito do lançamento de um desses discos: “Ererê e Rei de Umbanda (pontos de Macumba) – Antonio Moreira (Mulatinho) com Gente do Amor. N. 10.878. Cada vez mais attrae a attenção a arte estranha e impressionante da Macumba pela riqueza que possue de aspectos, sempre fertil em invenções suggestionadoras que traduzem inúmeros fenômenos de ordem psychologica. (...) Está bem feito o disco 10878 da Odeon, que ora nos ocuppa. A gravação foi caprichada e o pessoal da Macumba soube construir com habilidade um quadro que perturba.” A citação foi retirada de Alexandre AUGUSTO, Moreira da Silva: o último dos malandros. Rio de janeiro: Sonora, 2013 (1996). 500 A respeito da presença de pagodes, macumbas e zungus nesta zona da antiga capital federal – que compreende atualmente os bairros de Santo Cristo e da Cidade Nova, assim como a Praça da Bandeira– e, especialmente, das tensões sociais produzidas a partir daquela região e de suas celebrações cf. Roberto MOURA, Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995; Carlos SANDRONI, Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2012 (2001) e, através de uma densa reelaboração artística, o capítulo “Macumba” in Mário de ANDRADE, Macunaíma o Herói sem Nenhum Caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015 (1928).

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intermediária no tema e abriga quase toda a sua letra. É um recitativo cantado pelo compositor em rubato501. A tonalidade da música não contem nenhuma flutuação interna: “Promessa de Pescador” apresenta um acorde de ré maior como o centro tonal502. A dominante deste acorde transforma-se, durante a seção inicial, numa nova tônica, perdendo a sétima dissonante e assumindo a forma de A6. Esta primeira parte da canção tem um caráter eminentemente percussivo, mimetizando os atabaques de um candomblé. Os elementos constitutivos de “Promessa de Pescador” parecem estar, porém, outra vez em negociação, amparando-se em algumas adequações perfeitas. Em primeiro lugar, o baticum inicial é inteiramente delimitado e auto coerente. O acompanhamento que evoca aos tambores dos terreiros sublinha – numa espécie de circuito fechado – a saudação em pseudo-iorubá, sendo substituído então por um recitativo de linguagem bastante erudita e europeizada503 logo que o texto principal aparece. Esses recursos formais seriam retrabalhados por Dorival Caymmi ao longo dos anos em novas composições muito mais esquisitas e cheias de espelhamentos diversos tais como “Sargaço-Mar”. O emprego prudente dos materiais poéticos e musicais em Promessa de Pescador” é um retrato, no entanto, é uma tradução técnica fiel da relativa distância que Caymmi manteve, nas primeiras décadas da sua longa carreira, dos seus objetos preferenciais de representação: os pescadores, o candomblé e os negros de Salvador. Embora seja evidente o respeito e o apreço que o artista tinha por esses temas e por essas pessoas é também patente a necessidade de negociar a pintura de cada um deles com a sociedade carioca que o abrigava e o desejo deste jovem músico em início de carreira de diferenciar-se dos seus retratados. Em 1975, trinta anos depois, a situação era outra. Embora Caymmi ainda utiliza-se os mesmos dispositivos dos personagens e das personas para manter a sua posição, no limite, silenciosa, ele se sentia à vontade do que nunca para problematizar artística e programaticamente as tensões entre os elementos dizíveis e os indizíveis contidos em seus trabalhos. É a partir disso – de músicas como “Sargaço-Mar”, de sua atuação pública, de sua própria aparência nos últimos quarenta anos de sua longa vida e das diversas reapropriações de sua figura icônica ou de sua obra que foram efetuadas por muitos outros artistas – que uma

501 cf. a nota n. 420 acima. 502 A harmonia das músicas compostas através do sistema tonal gravita em torno de um ou mais acordes chamados justamente de centros tonais. Estes centros dão ao ouvinte a sensação máxima de estabilidade e de resolução no interior de uma determinada cadência harmônica. Forçosamente os outros acordes empregados na obra se afastarão mais ou menos do centro tonal, assumindo um caráter maior ou menor de tensão, dissonância e instabilidade. Em “Promessa de Pescador” Caymmi neutraliza o potencial dinâmico de um desses acordes distantes da tônica principal transformando-o num centro tonal secundário. Esse procedimento é muito frequente em tal linguagem harmônica. 503 cf. a discussão feita a partir da p. 134 acima.

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gramática, possível e coletiva, de diversas experiências raciais se constituiria em e através do “gênio da raça”.

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ADALGISA

Adalgisa mandou dizê que a Bahia tá viva ainda lá

Com a graça de Deus inda lá que a Bahia tá viva ainda lá

Que nada mudou inda lá que a Bahia tá viva ainda lá

O meu candomblé inda lá que a Bahia tá viva ainda lá

O meu afoxé inda lá que a Bahia tá viva ainda lá

Dorival Caymmi504

504 O samba-de-roda Adalgisa foi lançado por Dorival CAYMMI e pelo Quarteto em Cy num LP da gravadora Elenco, em 1967. Informação obtida em Jairo SEVERIANO, Rodrigo FAOUR, Sílvio Júlio RIBEIRO e Stella CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi in S. CAYMMI, Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 579.

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Conclusão

A pedra que ronca no meio do mar

Dá-nos lucidez para encontrar / a beleza nas pequenas / odes cotidianas, / e não permita que sejamos / engolidos pela / roda viva do dia-a-dia. / Abençoa-nos na calma da / tua sabedoria serena. / Amém!505

Mas a abordagem antropológica, sabidamente comparativa, nos leva a considerar ou a referir a religião e suas íntimas associações com a morte nas diferentes culturas. Mas, particularmente, nos devem interessar as variáveis de nossa própria cultura que ocupam um espaço considerável na sociedade brasileira, com os chamados cultos afro-brasileiros. As religiões de possessão e da morte. Pois isto é o que elas são. O que o candomblé é. Religiões que equacionam a vida com a morte e cuja participação implica, forçadamente, a identificação do nascimento com a morte. E em que os mortos – os antepassados da linhagem – são considerados e louvados como se fossem vivos. E os vivos são simplesmente mortos a ser.

Vivaldo da Costa Lima506

Talvez Stella saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês. Quando

505 Trecho da oração de “São Dorival”, de autoria desconhecida. De acordo com a sua neta Stella CAYMMI – que conta o caso em seu livro O Que é Que a Baiana Tem?, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013 – o “santinho” do compositor foi encontrado pela atriz , em São Paulo. Ao lado de uma reprodução fotográfica, na qual o santo aparece jovem e muito bem vestido, contrastando com um fundo magenta, está escrito “São Dorival / Protetor dos compositores” e, no verso, lê-se: “Dorival Caymmi / Protetor dos compositores // ✩30/04/1914 † 16/08/2008 // Tu que soubeste aliar o ócio / e a criatividade e que, / preguiçosamente, / construíste uma obra urgente. / Ensina-nos a desfrutar da frágil / existência atentando ao que é / realmente importante, / a estrela mais linda, / sossegadamente. / Dá-nos lucidez para encontrar / a beleza nas pequenas / odes cotidianas, / e não permita que sejamos / engolidos pela / roda viva do dia-a-dia. / Abençoa-nos na calma da / tua sabedoria serena. / Amém!” 506 Vivaldo da Costa LIMA, A Morte e o Morrer: uma abordagem antropológica (1999) in LIMA, Lesse Orixá: nos pés do santo. Salvador: Corrupio, 2010, p 287.

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vierem, me tragam um pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.

Dorival Caymmi507

1. RIO DE JANEIRO, 17 DE AGOSTO DE 2008

Dorival Caymmi não morreu. O corpo físico ou biológico do compositor – aquele corpo que foi velado na Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro entre os dias 16 e 17 de agosto de 2008 sendo, logo em seguida, enterrado no cemitério de São João Batista, na Zona Sul da capital fluminense508 – parece ter sido, afinal, um dos inúmeros suportes da persona do “cantor das graças da Bahia”509. Até mesmo as reportagens e, especialmente, as fotografias do próprio enterro de Caymmi, mostram, de certa forma, alguns dos outros corpos que construíram, sustentaram e propagaram a imagem e a mitologia pessoal relacionada a esse artista. As fotografias profissionais e amadoras referentes àquele dia de domingo e que podem ser acessadas facilmente através de qualquer site de busca da internet510 registram, afinal, pelo menos dois aspectos da expansão dos muitos corpos de Dorival ao longo do tempo.

507 Trecho do “Bilhete de Dorival Caymmi a seu irmão, quando este se encontrava em Londres”, que talvez seja, na verdade, um palimpsesto textual datilografado e corrigido por Jorge Amado a partir de uma cartinha escrita originalmente por Dorival Caymmi. O bilhete é um dos raros itens disponíveis da correspondência do compositor e encontra-se, curiosamente, reproduzido em diversos lugares, a saber: a) no livro de Jorge AMADO, Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1991 (1944); b) exposto numa vitrine da Casa do Rio Vermelho, a antiga residência de Jorge e de sua esposa, Zélia Gattai, em Salvador; c) conforme indicado acima, na 76ª nota da minha introdução, no blog da jornalista Tatiane MENDONÇA. 508 Todas os dados, impressões e fotografias relativas ao velório e ao enterro de Caymmi foram retiradas das diversas reportagens sobre o tema que encontram-se disponíveis na internet. Alguns deles, selecionados aleatoriamente dentre muitos outros exemplos, podem ser cf. em Dorival Caymmi será enterrado na tarde de hoje no Rio in http://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,dorival-caymmi-sera-enterrado-na-tarde-de-hoje-no- rio,225587 (Estadão Cultura, 17/08/2008); Dorival Caymmi é enterrado no Rio in http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL726912-7085,00-DORIVAL+CAYMMI+E+ENTER RADO+NO+RIO.html (G1, idem) e Luto sereno no enterro de Dorival Caymmi in http://www.jb.com.br/ cultura/noticias/2008/08/17/luto-sereno-em-enterro-de-dorival-caymmi/ (Jornal do Brasil, idem). Última visita feita em 09/01/2017. 509 cf. AMADO, O Moço Caymmi e a Bahia in Dorival CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. São Paulo: Martins, c.1967 (1947), p.7. 510 cf., a respeito, a nota n. 509 imediatamente acima. As fotografias que serão mencionadas nos parágrafos (e nas páginas) seguintes não foram reproduzidas aqui por duas razões. Eu não quis, em primeiro lugar, reforçar a superexposição do luto ou da intimidade da família e dos amigos de Caymmi, considerando, inclusive, que boa parte das imagens exibem o corpo morto do artista. Além disso, o acesso virtual a estas imagens é muito fácil, como está indicado no próprio texto, bastando digitar “velório Dorival Caymmi”, “enterro Dorival Caymmi” ou “morte Dorival Caymmi” em algum site de busca da internet, como por exemplo o google.com.

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De um lado, a superposição de pertencimentos múltiplos do compositor baiano expressa-se dum jeito bastante direto e singelo nas diversas bandeiras que, durante o velório, foram cobrindo seu caixão. As bandeiras do Brasil, dos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e do time de futebol Clube de Regatas do Flamengo, cruzadas por faixas de várias instituições públicas e privadas, resumiam parte da biografia de Caymmi. Ali estavam, reunidos, o jovem músico inexperiente nascido na “velha São Salvador”511 e o velho “patriarca da música popular”512 que, depois de viver por umas cinco décadas o cotidiano carioca, havia sido homenageado pela Mangueira, protagonizando o enredo campeão do carnaval de 1986513. Estes emblemas encontravam-se, é claro, exatamente no meio de um contexto, de um cenário maior que abrigou as cerimônias fúnebres – o saguão de entrada da Câmara de Vereadores do Rio, os arredores do mausoléu da cantora Carmen Miranda, que fica a menos de 50 metros do túmulo de Dorival e o próprio cemitério de São João Batista, conhecido popularmente como “o cemitério das estrelas”, onde estão sepultados, por exemplo, todos os imortais da Academia Brasileira de Letras, diversos presidentes do Brasil republicano, incluindo Getúlio Vargas, junto com os ministros do Império e personalidades diversas tais como Heitor Villa-Lobos, Santos Dumont, José Pancetti, Di Cavalcanti, ou Antônio Carlos Jobim514. Este entorno formava, evidentemente, um palco superpovoado, cheio de relações presentes e de enredos passados, com o qual as flâmulas sobrepostas estabeleciam uma espécie de diálogo tácito. Tanto a figura, formada pelo poliéster das bandeiras e das faixas, quanto esse pano de fundo expressivo, indicavam o enorme reconhecimento que Dorival havia obtido em sua longa trajetória artística e biográfica. De certa forma, aquela era apenas mais uma das incontáveis homenagens públicas, dos verdadeiros rituais de entronização e de assentamento coletivo, que ajudaram a moldar a figura desse “Buda nagô”515, repartindo também – entre

511 cf. “Você Já Foi à Bahia”, samba de D. CAYMMI gravado – de acordo com SEVERIANO, FAOUR, RIBEIRO e S. CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi in S. CAYMMI, Dorival Caymmi, 2001, p. 604 – pelo conjunto musical Anjos do Inferno em 1941, num 78 rpm da Columbia. 512 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto...” (contracapa) in D. CAYMMI, Caymmi (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1972. 513 Os dados técnicos desse desfile, incluindo o samba-de-enredo, o número de componentes e a pontuação final, podem ser cf. em Galeria do Samba – G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, Carnaval de 1986, “Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia tem e a Mangueira também” in http:// www.webcitation.org/6O84NXQyO. Última visita feita em 11/01/2017. 514 cf., a respeito, o site oficial do cemitério de São João Batista, que dispõe ainda de mapas, localizando diversos túmulos famosos, pequenas biografias, fotografias das esculturas tumulares mais vistosas e etc. in http://cemiteriosjb.com.br/. Última visita feitas em 12/01/2017. 515 Gilberto Passos Gil MOREIRA (Gilberto GIL) e Dinahir Tostes CAYMMI (Nana CAYMMI), Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará (LP). WEA, 1991, lado A, faixa 4.

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colegas, intelectuais, familiares e políticos – “as pratas e os ouros”516 simbólicos acumulados por este artista. A reinauguração da pracinha de Itapuã nos idos de 1953, aquela que foi descrita no segundo capítulo dessa tese, marcou, aliás, o início desse longo ciclo de honrarias e de louvores oficiais a Dorival. A ele se juntaria, ao longo das décadas seguintes, quatro estátuas de bronze em Salvador e no Rio517, a renomeação de alguns logradouros no pequeno distrito de São Sebastião do Passé que se tornou famoso por causa de um dos sambas e em muitas cidades do país518, cerimônias de abertura e de encerramento de eventos esportivos importantes519 e ainda, no âmbitos das instituições privadas, o mencionado samba-enredo da Mangueira, diversas publicações comemorativas, exposições, festivais520, a plaquinha de bronze citada na introdução do presente trabalho e etc. Todos esses tributos, ícones e inscrições podem ser encarados como materializações e extensões do corpo de Dorival Caymmi. Evidentemente, eles não foram produzidos per se, como mero epifenômenos de determinadas relações sociais, mas também não poderiam ter retirado a sua eficácia imensa – embora relativa, uma vez que o bronze dos monumentos, as

516 “Ai, as pratas e os ouros de Iemanjá!” é o último verso de “Morena do Mar”, canção de Dorival CAYMMI lançada num LP de 1965 por Nara Leão. Informação obtida em SEVERIANO, FAOUR, RIBEIRO e S. CAYMMI, Discografia Essencial da Obra de Dorival Caymmi, p. 591. 517 Caymmi foi homenageado, num shopping center em Salvador, com um busto de bronze por ocasião do seu aniversário de setenta anos, em 1984. Suas outras três estátuas são póstumas. Uma delas, de 2008, está na praia de Copacabana, Rio de Janeiro. As outras duas –um busto e uma estátua de corpo inteiro em tamanho natural, de 2008 e 2015, respectivamente – encontram-se em Itapoã. As informações contidas nesta e nas cinco notas seguintes podem ser cf. nas duas biografias de Caymmi – Marília BARBOSA e Vera de ALENCAR, Caymmi: som, imagem e magia. Rio de Janeiro/Salvador: Fundação Emílio Odebrecht/Sargaço Produções Artísticas, 1985 e S. CAYMMI, 2001 – e no site do Acervo Dorival Caymmi/Instituto Antônio Carlos Jobim in www.dorivalcaymmi.com.br. Último acesso em 14/01/2017. 518 Além da Praça Dorival Caymmi – aquela cuja inauguração foi tematizada no segundo capítulo desta tese –, de 1953, o compositor nomeia, desde 1985, a avenida principal de Itapuã, a sua antiga praia de veraneio. O bairro suburbano de Cajazeiras, ainda em Salvador, tem uma rua Dorival Caymmi. O bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, desde 2008 também tem uma rua com o mesmo nome. Além disso várias outras cidades brasileiras possuem uma rua, praça ou avenida Dorival Caymmi, são elas: São Sebastião do Passé, Vitória da Conquista, Eunápolis e Teixeira de Freitas (BA), Petrolina e Camaragibe (PE), Rio das Ostras (RJ), Araraquara, Cotia, Paulínia, Praia Grande, Santo André e São José dos Campos (SP), Cariacica (ES), Várzea Grande e Sinop (MT), Cascavel e Fazenda Rio Grande (PR) e Florianópolis (SC). A listagem completa desses logradouros todos pode ser cf. no site oficial dos Correios in http:// www.buscacep.correios.com.br/sistemas/buscacep/resultadoBuscaCepEndereco.cfm?t. Último acesso em 14/01/2017. 519 A música de Caymmi foi utilizada, por exemplo, nas cerimônias do início e do final dos XV Jogos Pan-Americanos (2007), no Rio de Janeiro. 520 cf., respectivamente: 1. a primeira biografia de Dorival Caymmi – BARBOSA e ALENCAR, Caymmi, 1985 – que integrava, junto com o álbum homônimo D. CAYMMI, Caymmi: som, imagem e magia (LP duplo). Rio de Janeiro/Salvador: Fundação Emílio Odebrecht/Sargaço Produções Artísticas, 1985, uma caixa comemorativa da construtora Odebrecht; 2. Aprendendo com Dorival Caymmi, civilização praieira, a exposição mais recente sobrea obra do compositor, realizada no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2016 – v. a respeito, http://www.institutotomieohtake.org.br/exposicoes/interna/ aprendendo-com-dorival-daymmi-1, última visita feita em 15/01/2017 e; 3. o prêmio Troféu Caymmi que existiu de 1986 a 2007, em Salvador, e que foi relançado recentemente, em 2013, como Prêmio Caymmi de Música – v. http://opremiocaymmi.com.br/, última visita feita em 15/01/2017.

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antigas manchetes e os nomes das ruas estão fadados à ressignificação constante e, no limite, ao esquecimento do seu referente original – somente do “vento que faz cantigas nas folhas do alto do coqueiral”521.

2. O CORPO DO PATRIARCA

Foi Dorival Caymmi quem nos deu a noção da canção como liceu. A cada cem anos um verdadeiro mestre aparece entre nós e entre nós alguns que o seguirão, ampliando-lhe a voz e o violão.

Gilberto Gil522

O segundo aspecto da multiplicação dos corpos de Dorival, portanto e voltando às fotografias de seu enterro, é a presença de muitas outras personalidades públicas, ao lado de familiares pouco conhecidos, vizinhos e etc. Cada uma destas pessoas ilustres e anônimas foi, afinal, corresponsável pela expansão da figura de Caymmi, pela manutenção de seu êxito e, em última análise, pela onipresença do longevo compositor. Foram elas que, em parceria com o próprio artista, souberam propor, sustentar e orientar o sentido de todas as honrarias descritas no item anterior. As imagens da internet mostram-nos, por exemplo, o obá de Xangô523 Gilberto Gil consolando a sua ex-mulher, Nana Caymmi, filha mais velha de Dorival. Além do criador de “Buda Nagô”, uma série de músicos das mais diversas idades e tendências aparecem nas fotografias, entre eles Caetano Veloso, o mineiro Wagner Tiso, o sambista carioca e a cantora de axé music . Em outro site os dois filhos mais moços do “enternecido poeta dos pescadores”524, Dori e Danilo, podem ser vistos segurando o caixão do pai à frente de uma pequena multidão. Gilberto Braga, Glória Perez, Antônio Pitanga, Patrícia França, Othon Bastos e Milton Gonçalves, atores e teledramaturgos ligados à Rede

521 cf. “Saudade de Itapoan”, canção praieira de D. CAYMMI gravada – de acordo com a Discografia Essencial, p. 600 – pelo próprio compositor em 1948, num 78 rpm da RCA-Victor. 522 cf. MOREIRA, Gilbertos in MOREIRA, Gilbertos Samba (CD), Rio de Janeiro: Geléia Geral/Sony Music, 2014, último disco solo de Gilberto GIL, faixa 12. 523 Para saber mais sobre a instituição do corpo dos obás de Xangô por Mãe Aninha, no terreiro do Opô Afonjá, em Salvador, e, mais especificamente, sobre o cargo litúrgico de obá onikoyi ocupado por Dorival Caymmi e, em seguida, por Gilberto Gil cf. LIMA, Os Obás de Xangô (1966), pp.59-88; A Direita e a Esquerda no Candomblé da Bahia (1985), pp. 139-82; Aninha e os Obás de Xangô (2003), pp. 293-306 e A Roma Negra: breve história de uma metáfora (2003), pp. 307-214 in LIMA, Lesse Orixá, 2010 e o intermezzo Um Intelectual Baiano da introdução desta tese. 524 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c.1967, p.9.

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Globo, também compareceram ao velório. João Ubaldo Ribeiro, a neta e biógrafa Stella, o então secretário de cultura do Estado da Bahia, Márcio Meirelles, e o prefeito do Rio, César Maia, dentre muitos outros, tocam as mãos ou o caixão do falecido, choram, abraçam-se e conversam durante toda a cerimônia fúnebre. Por intermédio de figuras como essas, Dorival Caymmi conseguiu propagar e intensificar as suas atividades pessoas e, sobretudo, artísticas a ponto de converter-se numa verdadeira entidade, num santo ou numa instituição consagradora permanecendo, entretanto, a maior parte de seu tempo em casa. As personalidades vinculadas à Rede Globo – a emissora de televisão mais assistida no país desde pelo menos os anos de 1970 – e que foram ao enterro representam uma parte da divulgação e da distribuição do trabalho do compositor baiano. Foram, afinal, os teledramaturgos desta empresa que adaptaram, dos anos 70 até o presente, uma grande variedade de novelas e romances do escritor Jorge Amado525, fazendo-os chegar, junto com a música do seu querido compadre, à imensa maioria dos aparelhos televisivos do Brasil. A presença da atriz Patrícia França – a protagonista da minissérie “Tereza Batista”, de 1992, que era anunciada pela “Modinha de Tereza Batista”, num programa cujo tema de abertura era, também, a canção “Vamos Falar de Tereza” interpretada por Dorival e por Danilo Caymmi526 – no enterro do velho artista é um índice personificado e singularmente despretensioso da parceria que envolveu a Globo, a dupla inseparável de compadres baianos, a atuação de diversos profissionais da televisão e o imaginário nacional e internacional a respeito da “boa terra”527. Porém, o mass media principal, aquele que asseguraria de fato a expansão dos corpos de Caymmi, foi a indústria fonográfica brasileira, associada, é claro, a todos os outros ramos do show business – o que inclui, aliás, própria televisão. Foram os músicos populares, de estilos e de épocas diferentes, que incorporaram as canções de Dorival, estabelecendo, progressivamente, uma relação no mínimo duplicada com o nosso compositor.

525 As adaptações televisivas que a Rede Globo fez da obra de Jorge AMADO – e que contaram com a música de D. CAYMMI – foram Gabriela (1975), Tenda dos Milagres (1985), Tereza Batista (1992), Dona Flor e Seus 2 Maridos (1998) e Porto dos Milagres (2001). A novela Renascer (1993), cuja trama também foi livremente inspirada nos romances cacaueiros de J. AMADO, não utilizou o cancioneiro caymmiano. Para maiores informações cf., o início do terceiro capítulo deste trabalho. 526 cf., respectivamente, AMADO e D. CAYMMI, Modinha de Tereza Batista (faixa 2) e Danilo Tostes CAYMMI e D. CAYMMI, Vamos Falar de Tereza (faixa 8) in Mário ROCHA e Roger HENRI (prods.), Tereza Batista (CD). Som Livre, 1992. 527 Esta expressão, bastante utilizada na primeira metade do século XX, fazia referência à Bahia e, mais especificamente, à cidade do Salvador. Cf., por exemplo, Manuel BANDEIRA, Impressões da Bahia (pp.33-45) in BANDEIRA, Crônicas da Província do Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2006 (1937).

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As regravações da obra do “patriarca da música popular”528 por outros músicos fornecem informações interessantes respeito da sua persona pública. Em primeiro lugar, como já foi indicado no segundo capítulo deste trabalho, o sucesso do cantor e, principalmente, do compositor Dorival Caymmi nas décadas de 1930 a 1950 permitiu que suas canções fossem interpretadas logo por outros artistas. Assim, desde os primeiros anos de sua longa carreira, ele veria a sua obra propagada por diversos outros músicos. Evidentemente, no caso dos compositores de música popular, isto não é nada excepcional. Muito mais relevante do que o número considerável dessas primeiras regravações é a transformação precoce de Dorival numa espécie de patriarca e de antepassado que se deu ainda nos anos 50. A partir do lançamento do primeiro álbum de João Gilberto – o LP “Chega de Saudade”, de 1959529, que talvez seja o disco mais influente da chamada MPB e que teria contado, ainda, com o incentivo paternal de Caymmi antes mesmo de sua gravação, nos corredores da Odeon – o “gênio da raça”530 se converteria numa autoridade musical incontestável, numa entidade que poderia emprestar sua força, seu axé531, para os jovens talentosos das novas gerações. Dorival, aos quarenta e cinco anos de idade, já podia ver os primeiros sinais inequívocos do seu interminável processo de envelhecimento social, conforme foi indicado acima, no primeiro capitulo dessa tese. As gerações de cantores e de compositores que se formaram por conta de “uma admiração pela Bossa Nova”532 trataram de seguir, desde então, o exemplo de João Gilberto, o “mestre imediato” de todos eles. Ainda que tivessem propostas musicais contrastantes e participassem de movimentos artísticos diferentes, os jovens tropicalistas baianos – de Tom Zé a Gilberto Gil, Gal Costa e Caetano Veloso –, de um lado, e, de outro, os próprios filhos de Dorival – Nana, Dori e Danilo Caymmi, sempre acompanhados pelo veterano Tom Jobim –

528 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D. CAYMMI, 1972. 529 João Gilberto P. P. de OLIVEIRA (João Gilberto),Chega de Saudade (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1959 530 cf. OLIVEIRA apud Caetano Emanuel V. Teles VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi: Som, Imagem e Magia, 1985, disco 1, faixa 8. 531 Ainda que a palavra axé seja de uso mais ou menos corrente, vale a pena lembrar aqui o significado mais restrito que ela possui nos candomblés e que foi empregado, por extensão, no texto acima. Axé (àṣẹ), em èdè Yorùbá, língua litúrgica dos candomblés de nação Ketu, significa grosso modo poder/força. O axé denomina, de acordo com a cosmovisão yorubá, a energia – ativa, em movimento e/ou retida, em potência – que está presente em (ou mais exatamente, que mantem/sustenta) todas as coisas, animadas e inanimadas, que compõem a totalidade do universo. O axé é, por definição, uma força extremamente instável. Ela não está sujeita à perda ou à entropia, porém. Pelo contrário, o axé pode e deve circular, se dispersar e se concentrar indefinidamente através de processos naturais (nascimentos, tempestades, apodrecimentos, etc.) ou da intervenção dos animais (predação, sacrifício, culto religioso, etc.). José BENISTE, Dicionário Yorubá – Português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011 e Òrun /Áiyé, o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 532 cf. VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi, 1985.

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vincularam-se conscientemente à linhagem estética, à “casa real”533 encabeçada pelo venerável compositor. De acordo com Caetano, João dizia “a gente deve estar sempre aprendendo com Caymmi. Aprenda tudo com ele.” Esses intérpretes, enfim, duplicariam a imagem musical de Dorival Caymmi na segunda metade do século XX, desdobrando as duas tendências que estavam reunidas, de modo latente, na reapropriação do compositor feita por João Gilberto a partir dos anos 50. A família Caymmi, , Rosa Passos, Mônica Salmaso e Olívia Hime534 insistiriam numa versão sofisticada, jazzística e jobiniana do “patriarca da música popular”535. Os tropicalistas, a rede Globo e o próprio Dorival536, por outro lado, apostariam na identificação atávica das canções do “enternecido poeta dos pescadores”537 com o povo e a paisagem da velha Bahia. Todos esses regravadores mais jovens da obra de Caymmi desenvolveriam, no final das contas, uma espécie de “uma paixão total”538 pelo patriarca de suas diversas linhagens. Dorival tronou-se “uma coisa assim de uma beleza ilimitada, né? E ao mesmo tempo é uma coisa muito simples”, dotado ainda de “uma sabedoria muito profunda, né?, que ele parece ter tido desde sempre.” Esse progressivo endeusamento do compositor chegou a ponto dele acabar seguindo o destino dos antigos reis divinizados dos yorubás539, os orixás do candomblé: seus discípulos e seus filhos passaram a incorporá-lo, reduplicando seu corpo, sua pessoa e sua imagem nos discos ou nos palcos.

3. INTIMIDADE

533 cf. MOREIRA e Dinahir CAYMMI, Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará , 1991. 534 cf., respectivamente, , Dorival T. C AYMMI (Dori CAYMMI); Dinahir T. CAYMMI (Nana CAYMMI) e Danilo CAYMMI. Nana, Dori e Danilo: Caymmi (CD). Som Livre, 2013; Paulo MOURA e sexteto Ociladocê (Alex MEIRELLES; Paulo MUYLAERT; Ricardo FEIJÃO; Marcos SUZANO; Carlos NEGREIRO e JOVI), O Som de Dorival Caymmi (CD). Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2007 (1991); Rosa Maria F. PASSOS, Rosa Passos Canta Caymmi (CD). Rio de Janeiro: Lumiar Discos, 2000; Mônica SALMASO, Voadeira (CD). São Paulo: Eldorado, 2004 e Maria Olívia Leuenroth HIME (Olívia HIME), Mar de Algodão: as marinhas de Caymmi (CD). Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2003. 535 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D. CAYMMI, 1972. 536 cf., respectivamente, e.g., MOREIRA, Cidade do Salvador (CD). Rio de Janeiro: Universal, 1999 (1973); VELOSO, Transa (LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1972; Augusto C. Graça MELLO (prod.). Tenda dos Milagres (LP). Som Livre, 1985 e D. CAYMMI, Caymmi, 1972. 537 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia. c.1967, p.9. 538 cf. VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi, 1985. 539 Esta hipótese dos “reis divinizados” corresponde, porém, apenas a uma das teorias que os especialistas no assunto utilizam para explicar a gênese do panteão Yorubá. Para uma discussão fundamental sobre esse tema cf. as primeiras páginas do enciclopédico Pierre VERGER., Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: EDUSP, 1999 (1957).

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Dentre as inúmeras fotografias do velório de Dorival, uma das mais tocantes – pelo menos para mim – é aquela que nos mostra um menino desconhecido, que deve ter entre dez e doze anos de idade. Talvez ele seja um dos Caymmi mais jovens, um dos bisnetos do compositor. De todo modo, Nana apoia a mão em suas costas enquanto ele segura beija a testa do velho patriarca, de olhos fechados e com um respeito evidente. Essa imagem provavelmente traz consigo – ainda que o nome e o parentesco da criança fotografada sejam ignorados – uma espécie de olho mágico que nos deixa entrever, sempre através de ângulo estreito e com um grande coeficiente de distorção, uma parcela da vida privada do “cantor e intérprete do seu povo”540. A vida íntima do ilustre compositor, que revelou-se muito pouco acessível ao longo da pesquisa que realizei, parece ter sido rodeada e protegida por um silêncio, no mínimo, compreensível. Tirando alguns recortes de jornal, eu só pude vislumbrar a privacidade do velho artista na arrumação permanente daquele apartamento descrito na minha introdução, aonde entrevistei Dori e sua mulher Helena, nas breves anotações manuscritas que encontrei por ali, no ateliê de Carybé, no bilhete datilografado por Jorge Amado (e que foi citado acima, numa das epígrafes desta conclusão) e, finalmente, nas lembranças afetuosas de seus parentes e amigos. As matérias jornalísticas expuseram, ao longo dos anos, o cotidiano da família Caymmi em situações excepcionais, seja em momentos de crise, como aquele episódio do possível racismo acadêmico mencionado no primeiro capítulo dessa tese, ou, pelo contrário, em entrevistas previamente combinadas, cujos cenários fotográficos são feitos de objetos, móveis e enquadramentos evidentemente bem selecionados. Eu pude utilizá-las em diversos momentos do presente trabalho. Na maioria dos casos elas funcionaram, porém, como documentos de apoio, servindo para reforçar meus argumentos, ilustrar algum pormenor ou levantar uma discussão. Todos os outros acessos à privacidade de Dorival mostraram-se ainda mais limitados. A terceira e última epígrafe desta seção conclusiva foi escolhida, precisamente, como um lembrete de que, por baixo ou por detrás do acúmulo de canções, entrevistas, shows e homenagens, o compositor baiano levou uma vida íntima obviamente destacada e de sua imagem pública. Ele conseguiu manter uma reserva admirável a respeito dessa existência doméstica, inclusive – considerando, ainda por cima, o fato de que seus três filhos, dentre

540 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D. CAYMMI, 1972.

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outros membros da numerosa família Caymmi, resolveram investir, profissionalmente, em suas próprias carreiras musicais. O bilhete da minha epígrafe trata-se de uma fonte valiosa, neste sentido. Ali encontram-se resumidos e representados, simultaneamente, alguns elementos do cotidiano do “cantor das graças da Bahia”541, o estilo de escrita bastante peculiar – lírico, brincalhão e levemente arcaizante – que ele possuía, determinadas manias suas e a profunda relação de amizade que ligava-o a Jorge Amado.

“Talvez Stella saiba, ela sabe de tudo.” Essa frase se referia, em seu contexto original, à uma pergunta de ocasião: “quantas canções compus pra Janaína?” Ambas se encontram, na verdade, bem no início desse bilhete que Dorival escreveu para “seu irmão” Jorge Amado. Caymmi estava em Salvador, naquela época, e vivia ainda na Pedra da Sereia, no Rio Vermelho, no mesmo lugar em que o avistamos no começo dessa tese. O bilhete não está datado, mas, de acordo com o seu próprio conteúdo, ele deve ter sido escrito entre 1969 e 1971. Este talvez seja o único item de fácil acesso do conjunto – presumivelmente amplo – de correspondências trocadas, ao longo dos anos, por esses dois irmãos. Embora seja impossível ignorar o fato de que as palavras do remetente, neste caso, tenham sofrido algumas interferências e edições por parte do destinatário, dá para entrever, através dela, algo da vida doméstica e da sensibilidade do “enternecido poeta dos pescadores”542. Ainda que as alterações mencionadas, assim como todas as outras que se encontram nas duas páginas datilografadas por Jorge, sejam muito pontuais e não mudem, de forma alguma, o sentido do texto caymmiano, elas não deixam de ser intrigantes e significativas. O caráter no mínimo dúbio dessa escrita, na qual um dos interlocutores não hesita em substituir determinadas expressões do outro sem nenhum critério aparente, sempre existiu, aliás, na relação desses dois compadres. Essa peculiaridade, que reforça parte dos argumentos do capítulo imediatamente precedente, foi compartilhada, inclusive, por todos aqueles que eu chamei de “patriarcas da

541 cf. AMADO, O Moço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, c.1967, p.7. 542 Idem, p.9.

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baianidade” (Jorge Amado, Carybé, Pierre Verger e Dorival Caymmi)543. É importante lembrar que a quantidade de opiniões compartilhadas, de sugestões trocadas e de influências mútuas no ofício desses quatro artistas havia sido extraordinária, conforme apresentado acima. A atuação deles, portanto – somada, no caso específico de Caymmi, às diversas incorporações de sua persona pelas gerações de músicos mais jovens –havia, no mínimo, problematizado as noções tradicionais de “obra original”, de “autoria” ou mesmo de “criatividade individual” ao longo da maior parte do século XX. Com tudo isso, não acredito que a verve particular, as percepções e os interesses mais comezinhos de Dorival estejam totalmente excluídos do bilhete em questão. A pergunta retórica destacada na página anterior, por exemplo – “quantas canções compus pra Janaína?” – parece, numa primeira leitura, chamar a atenção de Jorge somente para o conjunto das canções praieiras. Porém, torna-se logo perceptível que ela serve, na verdade, como um hábil pretexto discursivo. Ela é a deixa que o compositor utiliza para poder falar longamente de sua amada Stella Maris e narrar alguns detalhes do seu dia-a-dia em Salvador. Em seguida Caymmi encomenda um dos vistosos panos africanos que ele e Jorge passaram a usar nos anos 70544 – e que deviam ser fáceis de achar em Londres –, mas também passa a provocar indiretamente o compadre escritor ao falar de suas atividades como pintor amador. Como foi indicado no segundo capítulo dessa tese e, antes disso, num texto do historiador André Domingues545, a pintura deve ter funcionado, exatamente, como o pivô de uma das raras controvérsias que se interpuseram entre os dois compadres:

“Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar, compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, se aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar? Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte anos quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia está

543 cf. os itens 3, 4 e 5 do capítulo precedente, junto com o Intermezzo que os acompanha e que é intitulado, justamente, Os Patriarcas da Baianidade. 544 v. por exemplo, a oitava fotografia do Caderno de Imagens que acompanha essa tese, acima. 545 cf. André DOMINGUES, Bahia a Dois: consonâncias e dissonâncias na aliança entre Dorival Caymmi e Jorge Amado in Marilda SANTANNA e Carlos LEAL (orgs.), Cem Anos de Dorival Caymmi: panoramas diversos. Salvador: EDUFBA, 2015.

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viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar tão verde e o povaréu.”546

Parte da graça e do fascínio individual que Caymmi exercia sobre todos sobressai dessas poucas linhas. Porém, se “o jeito e o modo”547 do compositor escrever lança alguma luz sobre a sua sensibilidade particular, ele termina por trazer-nos uma série infinita de perguntas novas e de incertezas. Ao invés de estabilizar uma imagem familiar de Dorival ou de atrair o seu espectro com as promessas de uma intimidade póstuma, as duas páginas do bilhete em questão deixam, de fato, muitas coisas em aberto. Não é possível saber, por exemplo, qual era o limite que “o cantor das graças da Bahia”548 estabelecia entre a esfera pública e o mundo privado – uma vez que todas as pessoas citadas no pequeno texto, e que correspondem grosso modo as suas relações de amizade nos anos 70, são também personalidades religiosas, artísticas ou políticas importantíssimas naquele contexto – , entre sua casa e as ruas de Salvador, mas, acima de tudo, entre o seu encantamento por uma África e por Bahia idílicas, materializadas em panos e mares coloridos, e aquilo que foi chamado, ao longo dessa tese, de sua experiência racial específica.

4. AUÔ549

Os palimpsestos textuais de Jorge Amado, a vida privada do compositor e os tais panos africanos e revelam, porém, somente algumas das inúmeras ambivalências que envolveram, ao longo do tempo, a figura de Caymmi. Apesar de Dorival haver construído, ao longo de setenta anos, uma obra cada vez mais silenciosa – pelo menos este é um dos argumentos principais desta tese – e ter conseguido manter uma discrição admirável sobre a sua intimidade, o relativo silêncio, no “último ato

546 cf., acima, a terceira epígrafe desta Conclusão e sua nota correspondente. 547 “E o jeito? / E o modo dela mercar?” são versos de Acaçá, canção de D. CAYMMI gravada pelo próprio compositor – de acordo com a Discografia Essencial, p. 602 – em 1979, no Teatro castro Alves, e lançada, por ele mesmo, num LP de 1984. 548 cf. AMADO, O Moço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, c.1967, p.7. 549 Ao contrário de um dos itens da minha Introdução acima (mas mantendo uma relação de complementariedade com ele) a palavra auô (áwo) – vinda do èdè Yorùbá – significa, neste caso, fundamento/esteio. Os áwo de um egbé (linhagem de santo, comunidade ritual) correspondem grosso modo à determinados objetos enterrados por todo o espaço do seu terreiro, mas especialmente debaixo de seus pegi (altares ou casinhas dedicadas à uma única divindade) e de seu opô (poste central). Os áwo também podem ser, por extensão, os conhecimentos secretos (como o repertório preciso de gestos, de folhas, de fórmulas e de prescrições adequadas às mais diversas situações) que alicerçam a vida religiosa. Cf., a respeito, BENISTE, Dicionário Yorubá – Português, 2011.

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individual, civil, social da [sua] vida”550, sobre determinadas categorias decisivas em sua trajetória biográfica e profissional sua não deixa de ser espantoso. A cobertura do enterro de Caymmi – em outras palavras, todas as fotos e textos disponíveis na internet sobre este evento – não ressalta, em momento algum, a cor do velho artista, suas experiências e constrangimentos raciais, a situação modesta de sua família e etc. Daquele conjunto de estereótipos que eu chamei de temas transversais na minha introdução apenas a velhice e a baianidade foram, em resumo, aparentemente destacadas durante aquele ritual final. O artista parece haver transcendido uma parte importantíssima de sua humanidade e de sua vivência pessoal, aos olhos de seus admiradores e, curiosamente, de seus próprios amigos e familiares. “São Dorival”, o “protetor dos compositores”551, passou a existir, segundo as palavras de Gilberto Gil que já foram citadas anteriormente, no início dessa tese552, “num plano, é, mítico, mitológico”. E, o músico continua, “de uma certa forma, [ele teve] suas qualidades humanas, pessoais e etc. diluídas, quer dizer, para dar lugar a uma, uma, uma configuração de entidade num plano, num plano outro.” É no mínimo curioso, entretanto, que essa progressiva, mas inexorável alterização de Dorival, essa lenta transformação do “môço Caymmi”553 numa entidade religiosa, no “Buda nagô”554 – e, ademais, num velho sábio, num dos grandes epígonos de certa brasilidade mestiça e cordial, que teria vindo “do tempo do imperador”555 e, simultaneamente, num dos mestres percursores da canção brasileira contemporânea, no patriarca que inaugurou toda linhagem estética, no representante legítimo do povo baiano, num gênio primitivo e autóctone, numa paisagem natural e etc. – tenha sido fundamentada, ao que tudo indica, precisamente por essas categorias sócio-simbólicas relativamente ocultas. A própria enumeração dessas imagens caleidoscópicas que passaram, aos poucos, a constituir uma verdadeira mitologia caymmiana já indica que talvez o sucesso de Dorival tenha sido proporcional à centralidade de determinados pares dicotômicos, extremamente instáveis e polêmicos, que atravessaram a realidade brasileira dos últimos cento e poucos anos.

550 Citação de Anthropologie de la Morte de Louis Vincent THOMAS (1975) apud LIMA, Lesse Orixá, 2010, p. 285. 551 cf., acima, a primeira epígrafe desta Conclusão e sua nota correspondente. 552 cf. as citações textuais transcritas no quinto item da Introdução desta tese acima. 553 cf. AMADO, O Moço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, Cancioneiro da Bahia, c.1967. 554 MOREIRA e Dinahir CAYMMI, Buda Nagô in MOREIRA, Parabolicamará , 1991. 555 cf. o samba “Você Já Foi à Bahia” de D. CAYMMI, para maiores informações v. a nota n. 512 acima.

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Caymmi utilizou afinal, como vimos no capítulo precedente, um tremendo jogo de cena, uma rede de alianças estratégicas pacientemente construída sobre relações sociais privilegiadas, os seus dotes artísticos (conjugados às suas variadas referências musicais populares e eruditas) e toda uma aura de sofisticação para tematizar, da forma mais prudente possível, sua experiência racial, sua terra de origem, o lazer dos meninos de rua e dos vagabundos, o dia-a-dia dos ambulantes e dos trabalhadores braçais, o heroísmo estoico dos pescadores e os deuses do candomblé baiano. É provável que o acúmulo de ambivalências – encontráveis, aliás, tanto no fazer artístico de Caymmi quanto no próprio seu percurso biográfico – tenha sustentado, fundamentado em grande medida o interesse inicial e, depois, o sucesso duradouro do “cantor e intérprete do seu povo”556. Ele sempre esteve, afinal de contas, numa espécie de “utopia de lugar”557, e habitou, no imaginário coletivo do seu público, dos seus colegas e dos críticos, um limiar, uma zona fronteiriça558 constituída, em última análise, pela justaposição de categorias socialmente opostas e conflitantes. Dorival não era apenas par e ímpar, mãe e pai, céu e chão, como afirmava o samba de Gilberto Gil. Ele era culto e pouco escolarizado, foi velho desde cedo, sabia virar os olhos, incorporando os trejeitos de suas morenas no palco e, no entanto, era um sedutor notório, perigosíssimo, de mulheres solteiras e casadas, era baiano e carioca, tinha uma origem humilde e conseguiu congregar ao seu redor a nata da política, das artes, das finanças, etc. só andava muito bem-vestido e sabia tirar a casaca da civilização para se converter num indígena folclórico, num primitivo, trabalhava obsessivamente enquanto cultivava sua preguiça lendária, mas, acima de tudo, era simultaneamente preto e branco. Acontece que, às vezes, a dificuldade de estabilizar, de se proteger, de interpretar ou de neutralizar a tensão gerada por pessoas como Dorival Caymmi acaba empurrando-as ou para o centro do palco – debaixo de tanta luz e cobertas de tanta parafernália cênica que o

556 cf. AMADO, “Com tempo ainda curto do regresso...” in D. CAYMMI, 1972. 557 cf. RISÉRIO, Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo/Salvador: Perspectiva/COPENE, 1993. 558 Para uma reflexão estimulante a respeito desta zona – que, segundo a obra tardia de Victor TURNER, poderia ser chamada de “liminóide” (e que abarcaria as artes e as atividades de lazer nas ditas sociedades complexas) – cf. Rose Satiko Gitirana HIKIJI, Música Para Matar o Tempo: intervalo, suspensão e imersão in Revista Mana, vol. 12, n.1, 2006. À capacidade “de entrar em (e gerar) novos mundos simbólicos” (idem, p.157) somar-se-iam, também no caso de Caymmi, os elementos fronteiriços, relacionais e transformadores que, de acordo com Richard SCHECHNER (outro teórico recuperado por esta autora), integrariam normalmente as situações performáticas. Mesmo longe dos palcos (e, portanto, fora de uma definição estrita de “performance”) Dorival pôde utilizar todo esse acúmulo de ambivalências e de seguidores fiéis para tornar-se – junto com as personagens amadianas, os santos e os orixás – uma entidade “more ´truthful´, more ´real´” (SCHECHNER apud HIKIJI, Etnografia da Performance Musical: identidade, alteridade e transformação in Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, 2005, p.158) do que as pessoas comuns, habitando um lugar simbólico híbrido, situado entre a identidade coletiva e a autoimagem individual (idem, p.166) e podendo tornar-se outro sem “deixa[r] de ser ele próprio” (id., p.169).

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caráter humano delas dá lugar à corporificação das alteridades radicais do gênio a-histórico, do deus superpotente, da natureza misteriosa, etc. – ou para fora da cena. Evidentemente, esses dois lugares são, além de contrastantes, extremos e muito, muito difíceis de ocupar. Talvez este seja o caso, inclusive, de outros inúmeros atores sociais (que vão do venerável Morgan Freeman aos atletas olímpicos africanos, passando por , por Michael Jackson e por alguns dos povos indígenas que vivem no Brasil) que obviamente não fizeram parte da minha pesquisa, mas que, pelo comportamento, pela aparência, por tudo aquilo que expressam e, sobretudo, pela quantidade de marcadores, de estereótipos, de imagens simbolicamente estratificadas que eles conseguem empilhar e embaralhar constantemente, terminaram atingindo também essa glória ambígua de ver seus antigos estigmas de raça, de gênero, de sexo, de etnia e de classe, suas cicatrizes familiares transformadas em verdadeiros objetos de um culto moderno, de massas, ou em sinais inequívocos de poder, de prestígio e de reconhecimento social.

Acontece, também, que esses fenômenos impressionantes de transformação, ou melhor, de transfiguração simbólica muitas vezes convivem com o silêncio e podem, em alguns casos, até mesmo desdobram-se pelo silêncio. As estratégias de ocultamento ou de relativa invisibilização social de categorias potencialmente problemáticas num determinado contexto, são práticas absolutamente comuns559. Dorival imitou, neste sentido, uma parte da astúcia e da sedução de seu pai, Durval Caymmi, que sabia disfarçar suas embaraçosas marcas de origem com uma aparência impecável, mas não perdia “um baticum de samba, batuque, capoeira e também candomblé”560.

559 A bibliografia sobre as estratégias (individuais/coletivas, convencionais/inovadoras ou, ainda, compulsórias/eletivas) de invisibilização e, inversamente, de explicitação de determinados traços distintivos, sinais diacríticos, marcas corporais, etc. é, previsivelmente, imensa. O tema – que pode ser considerado, na verdade, um dos grandes tópicos da própria disciplina antropológica e das outras ciências humanas – foi levantado, no contexto do presente trabalho, especialmente no seu primeiro capítulo. As referências bibliográficas sobre o assunto vão, pelo menos, desde as monografias estrutural-funcionalistas clássicas (e.g. Edmund LEACH, Sistemas Políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Edusp, 1996 (1954)) até a produção dos meus orientadores (e.g. Heloísa PONTES, Intérpretes da Metrópole: história social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual, 1940-1968. São Paulo: EDUSP / FAPESP, 2010 e Luís Gustavo Freitas ROSSI, O Intelectual Feiticeiro: Édison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2016 (2011)) e, na literatura euramericana, de Jane AUSTEN a Eugene O´NEILL e João Gilberto NOLL (cf., respectivamente, AUSTEN, Pride and Prejudice. Nova York: Barnes & Noble, 2005 (1797); O´NEILL, Mourning Becomes Electra. Londres: Penguin, 1966 (1931) e NOLL, Acenos e Afagos. Rio de Janeiro: Record, 2008). Fazer qualquer espécie de seleção ou discussão bibliográfica sobre um assunto desses foge, obviamente, do escopo desta tese. 560 cf. D. CAYMMI Festa de Rua, lançada pelo compositor – segundo a Discografia Essencial, p. 585 – em 1949, num 78 rpm da RCA-Victor.

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Porém, a limitada ascensão social do velho Ioiô – um dos temas do primeiro capítulo dessa tese – contrasta absolutamente com o êxito inabalável do seu filho Dorival, que em 1938 foi “pro Rio morar”561. O “gênio da raça”562, muito mais discreto que o pai, conseguiu mostrar e esconder simultaneamente seus interesses através de sua obra musical, decidiu apostar progressivamente na ausência, saindo da cena precocemente e deixou sua imensa rede de filhos, devotos e seguidores agir por ele. Mas, em última análise, a excepcionalidade de Caymmi é parcialmente diluída na água doce deste mar de silêncio. O artista foi – e ainda é, uma vez que começo o texto desta conclusão dizendo que ele ainda não morreu – um homem do seu tempo, um ator que conhecia muito bem o cenário de seu drama. Talvez essa expressão silenciosa, essa busca incessante de amigos e de aliados socialmente poderosos, essa benevolência inabalável, e essa percepção fina do que é possível fazer num dado momento – materializada de modo exemplar, no caso de Dorival, no uso daquelas túnicas irresistíveis, feitas de panos africanos, a partir dos anos 70, na sua mudança de postura em relação ao candomblé, na gravação do álbum Caymmi de 1972563 e na própria intensificação de seus traços composicionais peculiares nas suas últimas décadas de vida – tenha sido compartilhada, pelo menos no Brasil atlântico do século XX, por muitas mulheres e muitos homens de côr564, quer eles tenham sido pessoas ilustres ou cidadãos desconhecidos.

Coda OS OTÁS DE XANGÔ

odò ọba ló òjòó àrá yá O rio, o rei que pode incendiar a chuva com o raio

Oriki Orixá da nação Ketu565

561 “Peguei um Ita no norte / pra vim pro Rio morar” são os primeiros versos da toada Peguei um Ita no Norte de D. CAYMMI, lançada – de acordo com a Discografia Essencial, p. 594 – pelo próprio compositor em 1945 num 78 rpm da Odeon. 562 cf. João de OLIVEIRA apud Caetano VELOSO, Depoimento de Caetano Veloso in D. CAYMMI, Caymmi, 1985, disco 1, faixa 8. 563 cf. D. CAYMMI, Caymmi (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1972. 564 A expressão “homem de côr”, hoje em relativo desuso, trata-se de uma categorização êmica (e normalmente eufemística) que vigorava, por exemplo, na Bahia dos tempos de Ioiô e da juventude Dorival de Caymmi., v., a respeito, o primeiro capítulo do presente trabalho. 565 Esse oriki de Xangô – o orixá de Dorival Caymmi – está em èdè Yorùbá. Os oriki são saudações ritualísticas e cerimoniais que se destinam a engrandecer os reis ou os deuses dos povos oeste-africanos (e, consequentemente, de seus descendentes na diáspora). Eles são formados por epítetos, interjeições e fórmulas poéticas encadeadas. De um modo geral, os oriki são tão sintéticos e elípticos que se tornam difíceis de entender (e de traduzir). Cf., a respeito deste gênero poético específico, Antônio RISÉRIO, Oriki Orixá. São Paulo; Perspectiva, 1996; Altair B. OLIVEIRA, Cantando para os Orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 1993 e VERGER., Notas Sobre o Culto, 1999.

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Adalgisa tem razão, “a Bahia tá viva ainda lá”566. A velha cidade de Quincas Berro D´Água, de Mãe Aninha e de Severo do Pão567 ainda existe, inclusive. É certo que a capital baiana inchou, que ela cresceu vertiginosamente, desde pelo menos a década de 1970, mudando de problemas, de lazeres e de feições568. Porém, a antiga “terra de mistérios e de igrejas”569 da prosa amadiana teima em sobreviver até hoje – em diversos lugares do mundo, aliás, no Rio de Janeiro, em Nova York, em São Paulo, etc. – através das artes de Carybé, das fotografias de Pierre Verger, das estratégias de promoção turística do governo local, dos livros de Edison Carneiro, de Ruth Landes, de Donald Pierson, do “menino grapiúna”570 ou de Antônio Risério, das lembranças dos velhos ogãs571 e da canções de Dorival Caymmi. E não foi nem Adalgisa que mandou dizer que ele, que o seu criador também tá vivo ainda lá. O corpo de Dorival Caymmi ainda vive concretamente. Ele ainda tem o seu lugar no mundo. Curiosamente este lugar não tem exatamente a ver com todas aquelas extensões de seu corpo envelhecido ou da sua persona incorporada em artistas mais jovens. Ele pertence, decididamente, a “um plano outro”.

O terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá – uma comunidade religiosa que desde a sua fundação por Mãe Aninha, em 1910, é especialmente dedicada ao culto dos auô do deus Xangô572 – tem um costume funerário único e interessantíssimo.

566 cf., D. CAYMMI, Adalgisa in D. CAYMMI e Cybele S. LEITE, Cyva S. LEITE, Cynara S. LEITE e Cylene S. LEITE (Quarteto em Cy) e Marcus Vinícius de MORAES, Vinícius/Caymmi no Zum Zum (LP). Rio de Janeiro: Elenco, 1967, lado B, faixa 8. 567 cf., respectivamente, AMADO, Quincas Berro d´Água. São Paulo: Cia. das Letras, 2008 (1961); LIMA, O Candomblé da Bahia na Década de Trinta (1987), pp.183-209 e Aninha e os Obás de Xangô (2003), pp. 293-306 in LIMA, Lesse Orixá, 2010 junto com o primeiro capítulo do presente trabalho e D. CAYMMI, Severo do Pão, samba gravado pelo próprio compositor num LP da EMI de 1987, segundo a Discografia Essencial, p. 601. 568 Para uma visão panorâmica dessas transformações cf., Pedro de A. VASCONCELOS, Salvador: transformações e permanências (1549-1999). Ilhéus: Editus, 2002 e RISÉRIO, Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004 (2000). 569 cf. AMADO, O Môço Caymmi e a Bahia in D. CAYMMI e AMADO, c.1967, p.7. 570 AMADO, O Menino Grapiúna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1981). 571 Os ogãs (chefes) são, grosso modo, os dignitários do sexo masculino que detém cargos nos candomblés e que organizam o culto dos orixás sem, no entanto, incorporá-los. As mulheres que exercem as mesmas atividades são chamadas de ekédis. Para maiores informações, cf. a sétima imagem do Caderno de Imagens acima. 572 Pelo menos essa é a tradução literal do nome desse terreiro, em èdè Yorùbá, Ilê (casa) Axé ([da] força) Opô ([do] poste central/esteio) [de] Afonjá. O termo “Afonjá” corresponde, normalmente, a uma das qualidades, uma das variações mitológicas/rituais da personalidade e, consequentemente, do culto do orixá Xangô. Cf., a respeito das qualidades de Xangô, VERGER., Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns, 1999.

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O candomblé é, de acordo com as palavras de Vivaldo da Costa Lima citadas numa das epígrafes desta conclusão573, uma religião da morte e, de fato, todas as honrarias possíveis são dedicadas ao enaltecimento das linhagens de sangue ou de culto, à continuidade do axé, da força dos terreiros, e aos ancestrais (incluindo entre estes os próprios deuses que são, muito provavelmente, reelaborações místicas das figuras de antigos monarcas ou de sacerdotes divinizados). Porém, os santos, orixás, caboclos, voduns ou minquice574 não são cultuados através do luto e da tristeza. Muito pelo contrário, os deuses e os mortos continuam a viver alegremente as suas vidas no corpo de seus fiéis e se extasiam diante de banquetes reais, de gritos, do estouro dos fogos-de-artifício seguidos do latido dos cachorros da vizinhança, de bandeirolas, de flores, de frutas e de panos coloridos. Talvez seja por isso que as cerimônias fúnebres dos candomblés tendem a ser extremamente tensas e que a comunidade queria se livrar logo de todos os objetos rituais de um indivíduo morto575. Dizem que Xangô, o orixá de Caymmi, tem um pavor particularmente terrível em relação à morte576. O terreiro do Opô Afonjá – uma das casas-de-santo do deus dos trovões, da justiça e do poder político – resolveu preservar, portanto, mediante uma consulta oracular, os assentamentos de alguns de seus filhos. Este é o caso de Dorival Caymmi. O seu otá577 – uma pedra que centraliza, nos candomblés, a construção do corpo ritual de um fiel, recebendo ao longo dos anos uma série de sacrifícios, de graus e de alimentos – tá

573 LIMA, A Morte e o Morrer (1999) in LIMA, Lesse Orixá, 2010, p 287. 574 Estas denominações são oriundas, respectivamente, do português e das seguintes línguas rituais de raiz africana: o édè yorùbá, o fonbge e o kimbundo/kikongo. Todas elas referem-se à entidades sobrenaturais e/ou ancestrais divinizados dos mais diversos cultos afro-brasileiros. Cf., entre outros, VERGER, Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns, 1999; Roger BASTIDE, As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma Sociologia das interpenetrações de civilizações. Rio de Janeiro: Livraria Pioneira, 1989 (1958); 2010; Renato ORTIZ, A Morte Branca do Feiticeiro Negro: umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991 (1978); Jocélio T. dos SANTOS, O Dono da Terra: o caboclo nos candomblés da Bahia. Salvador: SarahLetras, 1995; Vagner Gonçalves da SILVA, Orixás da Metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995 e Luis Nicolau PARÉS, A Formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. 575 cf. Juana ELBEIN DOS SANTOS, O Nàgô e a Morte: pàde, àsèsè e o culto ègun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1976 (1972), passim. 576 O pavor desse orixá em relação a tudo o que diz respeito à morte pode ser cf. em muitos de seus mitos, v., a respeito, as sessões dedicadas a ele in VERGER., Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns, 1999 e Reginaldo PRANDI, Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. 577 Okutás (òkúta) – comumente chamados de otás, por elisão, ou de itás (itá = louça, gamela, tigela), por extensão – são pedras que servem de suporte para os auô (áwo) que mantêm vivo/em circulação o axé de um fiel ou mesmo de uma determinada divindade. Os otás, entes dotados de vida e de agência, devem ser encontrados na natureza (“no tempo”, de acordo com o jargão do candomblé) e, após um ritual simples de consagração, transformam-se em verdadeiros corpos externos, capazes de personificar seres humanos e não- humanos específicos. Os otás são também sujeitos/objetos inerentemente históricos – junto com toda a

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vivo ainda lá. Ele não pode mais ser particularizado, certamente, por que vive dentro de um cesto, junto com todos os outros otás que Xangô Afonjá decidiu manter por aqui. O corpo de Dorival, materializado naquela pedra, recebe, porém, oferendas de água e comida regularmente. Em outras palavras – além de continuar agindo, contando piada e cantando, em outros contextos, pela voz de terceiros – Caymmi também serve de monumento, de esteio permanente, para aquela família-de-santo.

parafernália estética/material dos terreiros, segundo o viés analítico adotado pelo antropólogo Roger SANSI- ROCA, aliás. Eles devem ser ritualmente construídos ao longo dos anos recebendo, progressivamente, uma série de oferendas dentro de seus altares (pegis) e itás. Os otás associam-se normalmente a outros elementos que dizem respeito à biografia, à gradação hierárquica e aos atributos (daí a sua historicidade) da pessoa à qual vinculam-se. Seria incorreto dizer, porém, que os otás representam, simbolizam, duplicam ou substituem os seres humanos e os deuses. Pelo contrário, eles são criados, cuidados e alimentados enquanto manifestações concretas que presentificam / corporificam, no âmbito religioso, cada membro de um dado terreiro. Cf., a respeito, Roger SANSI-ROCA, The Hidden Life of Stones: historicity, materiality and value of candomblé objects in Bahia in Journal of Material Culture, vol. 10(2), 2005 e Fazer o Santo: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro- brasileiras in Análise Social, vol. XLIV, n.1, 2009.

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Referências

Bibliografia

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b. Entrevistas

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DA SILVA, Valdete Ribeiro (Mãe Detinha de Xangô). 27/10/2012. Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opô Afonjá, terreiro de Dorival Caymmi. São Gonçalo do Retiro, Salvador. Entrevista não gravada. BERNABÓ, Solange. 14/01/2013. Galeria de Arte Oxum. Barra, Salvador. 21 min. FRY, Peter Henry. 01/05/2013. Rua Voluntários da Pátria, residência de Peter Fry. Botafogo, Rio de Janeiro. 1h e 16min. RISÉRIO, Antônio e VICTÓRIA, Sara. 25/05/2013. Rua Coronel Messias, residência de Antônio Risério. Caji, Lauro de Freitas. 1h e 21min. BERNABÓ, Nancy e BERNABÓ, Solange. 31/05/2013. Galeria de Arte Oxum. Barra, Salvador, 29 min. SLENES, Robert Wayne Andrew. 22/05/2014. Sala de Robert Slenes no CECULT. IFCH/UNICAMP, Campinas. 2h e 10min.

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Discografia

a. Discografia de Dorival Caymmi:

CAYMMI, Dorival. Canções Praieiras (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1954. ______. Sambas de Caymmi (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1955. ______. Caymmi e o Mar (LP). Rio de Janeiro: Odeon,1957. ______. Eu Não Tenho Onde Morar (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1960. ______. Caymmi (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1972. ______. Caymmi Também É de Rancho (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1973. ______. Setenta Anos (LP). Rio de Janeiro: Funarte/MEC ,1984. ______. Caymmi: Som, Imagem e Magia (LP duplo). Rio de Janeiro: Fundação Emílio Odebrecht, 1985. ______e AMADO, Jorge. Canto de Amor à Bahia e Quatro Acalantos de “Gabriela, Cravo e Canela” (LP). Rio de Janeiro: Festa, c. 1958. ______e BARROSO, Ary de Resende. Ary Caymmi, Dorival Barroso: um interpreta o outro. Rio de Janeiro: Odeon, 1958. ______; CAYMMI, Dorival Tostes (Dori Caymmi); CAYMMI, Dinahir Tostes (Nana Caymmi); CAYMMI, Danilo e JOBIM, Antônio Carlos de Almeida (Tom Jobim). Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos Nana, Dori e Danilo (LP). Rio de Janeiro: Elenco, 1964. ______; LEITE, Cybele S.; LEITE, Cyva S.; LEITE, Cynara S. e LEITE, Cylene S. (Quarteto em Cy). Caymmi (Kai-ee-me) and the Girls from Bahia (LP). Los Angeles: Warner, 1965. ______e MORAES, Marcus Vinícius de. Vinícius/Caymmi no Zum Zum (LP). Rio de Janeiro: Elenco, 1967. ______; CAYMMI, Dorival T.; CAYMMI, Dinahir T. e CAYMMI, Danilo. Caymmi´s Grandes Amigos (LP). EMI, 1986. ______; CAYMMI, Dorival T.; CAYMMI, Dinahir T. e CAYMMI, Danilo. Dori, Nana, Danilo e Dorival Caymmi (LP). EMI, 1987.

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______; CAYMMI, Dorival T.; CAYMMI, Dinahir T. e CAYMMI, Danilo. Família Caymmi em Montreux (CD). PolyGram, 1991.

b. Discos de outros intérpretes dedicados exclusivamente à obra de Dorival Caymmi:

BURGOS, Maria da Graça Costa Penna (Gal Costa). Gal Canta Caymmi. Som Livre, 1976. CAYMMI, Dorival T.; CAYMMI, Dinahir T. e CAYMMI, Danilo. Nana, Dori e Danilo: Caymmi (CD). Som Livre, 2013. HIME, Maria Olívia Leuenroth (Olívia HIME). Mar de Algodão: as marinhas de Caymmi (CD). Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2003. MOURA, Paulo e sexteto Ociladocê (MEIRELLES, Alex; MUYLAERT, Paulo; FEIJÃO, Ricardo; SUZANO, Marcos; NEGREIRO, Carlos e JOVI), O Som de Dorival Caymmi (CD). Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2007 (1991). PASSOS, Rosa Maria F. Rosa Passos Canta Caymmi (CD). Rio de Janeiro: Lumiar Discos, 2000. SION, Carlos Alberto (prod.). Cantando Caymmi (CD). EMI, 2000.

c. Referências discográficas gerais:

BAHIA, Luciano Salvador. #1 (CD). Tratore, 2010. CAYMMI, Dorival Tostes (Dori Caymmi), Poesia Musicada (CD). Rio de Janeiro: Acari, 2011. JOBIM, Antônio Carlos de A. Antônio Brasileiro (CD). Columbia, 1994 MORAIS, Leandro. Preta (CD). Brasília / Rio de Janeiro: Coletivo Palavra, 2014. MELLO, Augusto C. Graça (prod.). Tenda dos Milagres (LP). Som Livre, 1985. ______. Gabriela: trilha sonora original (LP). Som Livre, 1975. MOREIRA, Gilberto Passos Gil (Gilberto Gil), Parabolicamará (LP). WEA, 1991. ______. Cidade do Salvador (CD duplo). Rio de Janeiro: Universal, 1999. ______. Gilbertos Samba (CD), Rio de Janeiro: Geléia Geral/Sony Music, 2014. OLIVEIRA, João Gilberto P. Pereira de (João Gilberto). Chega de Saudade (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1959. ______. O Amor, o Sorriso e a Flor (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1960. ______. João Gilberto (LP). Rio de Janeiro: Odeon, 1961. ______. Getz/Gilberto (LP). Verve, 1964.

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PAULO, Marcos (dir.). Porto dos Milagres (CD duplo). Som Livre, 2001. ROCHA, Mário e HENRI, Roger (prods.). Tereza Batista (CD). Som Livre, 1992. ROSSANO, Herval (dir.). Escrava Isaura: trilha sonora original da novela. Som Livre, 1976. SALMASO, Mônica. Voadeira (CD). São Paulo: Eldorado, 2004. VELOSO, Caetano Emanuel V. Teles. Transa (LP). Rio de Janeiro: Polygram, 1972.

Filmografia

CAYMMI, Dorival e SOARES, José Eugênio (Jô Soares). Entrevista: Caymmi no sofá do Jô (vídeo). São Paulo: Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), 1997 in http://conversadebalcao.com.br/entrev ista-caymmi-no-sofa-do-jo/. Última visita feita em 23/10/2016. ______e FARO, Fernando. Dorival Caymmi – Programa Ensaio, 1972 (DVD). TV Cultura, 2009 (1972). ______e MÁXIMO, João (apresentação de ALVES, Madeleine). Caymmi por Ele Mesmo. Rádio Cultura AM, 1994 (retransmitido em 31/05/2014 às 10h) in http: //culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi -por-ele-mesmo, última visita feita em 23/10/2016. DIDIER, Aluísio. Um Certo Dorival Caymmi (DVD). Rio de Janeiro: Rio Filmes, 1999. HOLANDA FILHO, Luiz Buarque de (Lula Buarque de Holanda). Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos (DVD). Europa Filmes (Brasil), 1998. VELOSO, Caetano Emanuel V. Teles. O Cinema Falado (DVD). s/prod., 2003 (1986).