1 A GUERRA DA CISPLATINA E O INÍCIO DA FORMAÇÃO DO ESTADO IMPERIAL BRASILEIRO

Luan Mendes de Medeiros Siqueira (PPHR/ UFRRJ) Marcello Otávio Neri de Campos Basile

Palavras- chave: Estado Nacional, Nação e Guerra da Cisplatina.

Este trabalho é parte da minha pesquisa de mestrado que por sua vez tem como tema: As relações internacionais entre o Império do Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata durante a Guerra da Cisplatina (1825- 1828). Procuramos compreender nesse presente estudo a consolidação do poder por parte deles sobre a região do Prata, já que era fundamental estruturar uma identidade na formação de tais Estados. A Guerra da Cisplatina, entretanto, pode ser considerada como o primeiro conflito em nível regional a ser resolvido pelo Brasil e em suas agendas de política externa e como um entrave também entre as suas áreas de litígio. Além disso, se quisermos nos aprofundar sobre a história da diplomacia entre tais países, elas terão suas origens majoritariamante nesse conflito. Daí, a necessidade de se pesquisar cada vez mais as relações internacionais de ambos os países nesse confronto. Neste trabalho, temos como referencial teórico o conceito de Relações Internacionais dos cientistas políticos Jean Baptiste Duroselle e Pierre Renouvin. Segundo eles, esse termo engloba uma série de elementos, dentre eles: territorialidade, condições demográficas, relevo, soberania e fronteiras políticas.1 A Guerra da Cisplatina pode-se inserir nesse campo teórico uma vez que o fator dos limites de fronteiras esteve intrinsecamente ligado à eclosão do conflito. A disputa pelo domínio da província Cisplatina, além de sua importância econômica, foi marcada também por um outro tópico componente do conceito de relações internacionais desses autores: Soberania. O que estava em jogo nesses anos da Guerra Cisplantina era a tentativa da criação de um corpo político nacional, isto é, a busca de um Estado autônomo.

1 RENOUVIN, Pierre e DUROSELLE, Jean- Baptiste. Introdução à história das Relações Internacionais. São Paulo: Difel, 1967, p. 15. 2 Neste trabalho, analisamos especificamente o documento Manifesto de declaração de Guerra do Brasil Às Províncias Unidas do Rio da Prata2, de 10 de dezembro de 1825, publicado pela imprensa do diário da Corte do na data mencionada, onde percebemos a questão territorial da Cisplatina, como estratégica e fundamental na configuração do Império. Além disso, uma série de elementos o governo imperial discorria nesse documento, dentre eles, a questão de limites entre os dois Estados, as incursões e revoltas na , dentre outras razões que levaram ao Brasil a declarar guerra às Províncias do Prata: Julga dever a sua Dignidade, e a Ordem, que occupa entre as Potencias, Expor leal, e francamente à face do Universo, qual tenha sido, e dêva ser agora o meu procedimento a respeito d`aquelle Estado limitrophe, a fim de que aos Nacionaes, e Extrangeiros de um, e outro hemispherio, e ainda a mais remota posteridade seja patente a justiça da causa, em que só a defesa da Integridade do Imperio o poderia empenhar.3

Aline Pinto Pereira, em sua tese, afirma que a soberania era vista no Brasil como um fenômeno social e comenta a ideia de que ela era um elemento de disputas entre o Imperador e a Câmara dos Deputados no Primeiro reinado.4 Além disso, Pereira também diz que havia uma disputa entre os útlimos sobre quem comandaria a construção do Estado e inclusive de algumas questões internacionais, dentre elas, a Guerra da Cisplatina5. Uma das contribuições centrais dessa historiadora foi a de problematizar a questão da soberania não somente como algo de cima, imposto pelo governo imperial mas como um assunto da agenda política do poder legislativo. Além disso, a soberania passava também pela disputa da área de fronteiras. Quando o mencionado trecho do Manifesto cita: Estados limítrofes, vimos que a fronteira é um dos elementos condicionantes para a formação e consolidação de um determinado Estado. No que diz respeito a chamada integridade do Império, citado também no trecho acima, refere-se a defesa das fronteiras do país a partir dos interesses políticos do governo estabelecidos na orientação de sua política externa na região do rio da Prata.

2 Manifesto de declaração de Guerra do Brasil às Províncias Unidas do Rio da Prata [ Diário da Corte do Rio de Janeiro]– 10 de dezembro de 1825. Arquivo Histórico Palácio do Itamaraty – Rio de Janeiro. 3 Ibidem, p. 1. 4 PEREIRA, Aline Pinto. A monarquia constitucional representativa e o locus da soberania no Primeiro Reinado: Executivo versus Legislativo no contexto da Guerra da Cisplatina e da Formação do Estado no Brasil. Niterói: Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal Fluminense, 2012, p. 52. 5 Ibidem, p. 52. 3 Por conseguinte, Pereira trabalha com a análise dos discursos dos deputados e senadores, retratando suas insatisfações frente aos posicionamentos do Imperador e do Conselho de Estado , órgão consultivo do monarca e que era o grande responsável pelas questões externas do Brasil Império. Dentre os elementos essenciais na formação do Estado imperial brasileiro, Aline Pinto Pereira afirma que são: o reconhecimento da Independência por , a manutenção de laços com a Inglaterra e a campanha pela manutenção da província Cisplatina.6 Para a historiadora Gabriela Nunes Ferreira, mesmo com fim da Questão Cisplatina, as disputas entre Brasil e Argentina não acabaram7. Ferreira comenta que tais recentes países que estavam em formação de seus respectivos estados nacionais, continuariam a brigar pelo monopólio sobre o comércio nessa região e principalmente pela hegemonia sobre a área platina8. Na concepção da autora: O importante a enfatizar é o fato de que, em meados do século, não estava ainda definido qual “projeto nacional” vingaria entre as Repúblicas vizinhas ao Império. O cerco de Montevidéu pelas forças de Oribe e Rosas durava desde 1843 e a possibilidade da anulação das independências paraguaia e uruguaia permanecia em pauta. O Império, por sua vez, era ainda vulnerável em vários aspectos; aquele conturbado contexto platino e a incerteza quanto ao futuro desenho territorial da região traziam ameaças à ordem construída na primeira metade do século XIX. A consolidação do Estado imperial dependia, em grande medida, do rumo seguido pelas repúblicas vizinhas.9

No trecho referente ao Manifesto, deparamo-nos com a seguinte palavra: Estado. Os diferentes projetos políticos em torno da construção de um Estado Imperial não deixavam a Cisplatina em segundo plano. Pelo contrário, toda a importância política, geopolítica e comercial que ela apresentava, faziam parte dos planos expansionistas do governo imperial, sendo um deles, a hegemonia sobre a região platina. Gabriela Ferreira traz como marca central em seu trabalho a análise da formação do estado Imperial brasileiro em consonância com os interesses expansionistas no estuário platino. Ferreira discute não somente o Brasil como também a formação dos outros Estados platinos a partir das disputas no Prata, dentre eles: Argentina e Uruguai.

6 Ibidem, p. 52. 7 FERREIRA, Gabriela Nunes. O rio da Prata e a consolidação do Estado imperial. São Paulo: HUCITEC, 2006, p. 64 8 Ibidem, p. 64. 9 Ibidem, p. 69. 4 O Império do Brasil aspirava uma centralização política monárquica não apenas dentro do jogo político como também na formação de seu estado territorial, implicando assim na expansão dos seus domínios. A região Cisplatina, por sua vez, estava incluída nesse projeto político. Esta mesma região, conhecida pelas Províncias do Prata como Banda Oriental, fazia parte também dos interesses da futura Argentina já que nesse período, um dos objetivos centrais era a formação de uma República das Províncias do Prata, submetida ao domínio centralista de Buenos Aires e um possível reestabelecimento do antigo vice-reinado do Rio da Prata. Há também a presença de um poder simbólico10 travado entre os dois Estados sulamericanos no conflito. A região platina não era apenas imensa em seu aspecto geográfico e territorial mas também em seu aspecto simbólico. Conquistá-la por uma das partes representava assegurar uma hegemonia sobre o Prata, não somente pela sua importância econômica ou estratégica, mas o que ela representava historicamente desde o período da colonização. Para Bordieu, o poder simbólico: Esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem […] Poder subordinado, é uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder: só se pode passar para além da alternativa dos modelos energéticos que descrevem as relações sociais como relações de força.11

A partir do trecho acima, podemos afirmar que o poder simbólico consiste em uma construção da realidade, invisível, onde dentro dessa estrutura ocorre um confronto de sistemas ideológicos mas também há uma produção simbólica e sistemas simbólicos, sendo este último, uma estrutura de dominação. A construção desse simbólico, segundo Bordieu, se dá através de um corpo de especialistas, integrantes das classes ou frações de classe dominante, no qual utilizam diversas meios para concretizar o seu padrão de estruturação sobre a sociedade, podendo ser por meio da: linguagem, religião, ideologia e a arte.12 A construção simbólica em torno da região do Rio da Prata e da Cisplatina se fez presente também nas prerrogativas dos discursos do Império do Brasil em suas orientações para a política externa. O Estado Imperial brasileiro pautava a sua soberania

10BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 15. 11 Ibidem, p. 15. 12 Ibidem, p. 12. 5 sobre o Estuário platino, conforme mencionado acima, baseada na doutrina das fronteiras naturais, o que se verá mais adiante neste presente trabalho. As disputas de fronteiras na Questão Cisplatina foi um dos principais fios condutores que levaram ao acirramento de tensões entre o governo imperial e as Províncias do Prata, tendo como início do conflito a declaração de guerrra por parte do Brasil através do bloqueio dos portos do Prata ao comércio portenho. Buenos Aires tinha como principal atividade econômica o comércio portuário na região platina, desejando ter a continuidade do monopólio sobre a referida área. Já o discurso expansionista do império englobava a Cisplatina, visando cada vez mais, uma hegemonia sobre toda a região do estuário platino. Conforme aponta Gabriela Ferreira: O que tinha esse espaço de tão especial a ponto de despertar tanto interesse por sua posse ou controle? Em primeiro lugar, sua localização estratégica, em uma das margens do estuário platino. Em segundo lugar, aquele território possuía também sua própria riqueza: a riqueza pecuária – atrairia, ao longo da história, atenção dos espanhóis, portugueses, argentinos e brasileiros.13

A questão da fronteira e das linhas de demarcação são novamentes reivindicadas no Manifesto por parte do Brasil frente ao governo de Buenos Aires, na tentativa de delimitação dos territórios próximos aos Rios e das questões comerciais na referida área: Como se não bastassem, para se conhecer o perfido procedimento do governo de Buenos Ayres, os factos que nas differentes partes desta verídica exposição se acham, bem que levemente, tocadas; como se não bastasse o haver elles decretado o estabelecimento e o reforço de uma linha militar no , sem para esta haver a menor razão, ou pretexto, e sem ter sido notificada as Nações vizinhas e civilisadas, como se não bastasse a criminosíssima ommissão, com que favorecia a pirataria dos seus Concidadãos sobre suas embarcações dos Subditos do Imperio até dentro do próprio Porto de Buenos Ayres.14

Em um outro fragmento do Manifesto, ressaltamos a Cisplatina como um elemento de interesse nacional aos planos do governo imperial, tendo, conforme aponta o fragmento, uma representação nacional brasileira: Parecerá desnecessário insistir mais sobre este ponto, à vista da

13 FERREIRA, op. cit., p. 51. 14 Manifesto de declaração de Guerra do Brasil às Províncias Unidas do Rio da Prata [ Diário da Corte do Rio de Janeiro]– 10 de dezembro de 1825. Arquivo Histórico Palácio do Itamaraty – Rio de Janeiro, p. 8 6

repetida série de factos, que comprovam a sinceridade, e legalidade da União da Província Cisplatina a este Império: nenhuma duvida se póde ventilar de boa fé sobre elle: mas, como só ainda fosse necessario mais algum argumento, viu-se se que os briosos Cisplatinos, desprezando constantemente as tenebrosas intrigas, e insinuações do governo de Buenos Ayres, nomearam por ultimo Deputados ao Corpo Legislativo no Rio de Janeiro, mostrando evidentemente fazer parte da Representação Nacional Brasileira.15

No trecho seguinte, o governo brasileiro tenta legitimar ao máximo os fundamentos da anexação da Cisplatina ao Império, citando novamente o governo de Buenos Aires como aquele que nunca reconhecia tal incorporação: Tal he a exposição veridica e resumida, das principaes causas da incorporação da Provincia Cisplatina ao Imperio do Brasil. Ninguem que se preze de imparcial e justo dirá, , que a vista de factos tão reiterados, e positivos, tão irrefagáveis da livre e sincera incorporação, e interrupta adhesão dos Cisplatinos a este império, podesse o governo de Buenos Ayres, pôr em duvida a sua espontaneidade, e, o que he ainda mais extraordinario, pertender revindicar a posse d`, como se lhe aquelle territorio fôra usurpado! Parece incrivel: mas aquelle governo, que nunca cessára de fomentar solapadamente uma insurreição contra o Brasil, acaba de depôr a mascara, com que ainda ocultava os seus perniciosos designios, por isso que julgou o momento tão oportuno para a sua execução.16

No que diz respeito à questão das fronteiras, elemento de disputa entre os dois recentes Estados, o historiador Cesar Guazzelli define alguns apontamentos sobre o conceito de fronteiras. Guazzelli estuda as áreas de fronteira especificamente na parte meridional do Brasil, não apenas como uma questão de territorialidade, mas também na relações de pertencimento entre os indivíduos que residem nessas áreas. Segundo Guazzelli: Se a fronteira é um espaço, é necessário pensar na formação deste espaço; se é o fronteiriço quem o constrói e o controla mais necessário ainda é tratar das relações entre os homens e a natureza, mais ainda aquelas dos homens entre si no processo de apropriação e exploração das paisagens. 17

De acordo com autor, as fronteiras, mais do que limites, são zonas de passagem

15 Ibidem, p. 7. 16 Ibidem. p. 7 17 GUAZZELLI. Cesar. História e Fronteira nas fronteiras da Literatura: João Simões Lopes Neto e “Lendas do Sul”. XXVII Simpósio Nacional de História (ANPUH). Rio Grande do Norte, Natal – 22 a 26 de julho de 2013, p. 2 7 ambíguas, e não divisas dadas a priori, não devendo ser “ naturalizadas”18. Conforme aponta Guazzeli, as distintas construções históricas sobre a fronteira reforça a necessidde estudarmos cada vez mais os chamados homens de fronteira19, já que são eles os verdadeiros atores sociais diante da configuração de demarcação dos territórios e principalmente na existência de conflitos em tais espaços. O conflito cisplatino, por sua vez, dada a sua magnitude no que diz respeito ao envolvimento de questões fronteiriças no sul do Brasil, fazia parte das pretensões do expansionismo brasileiro em todo o estuário platino. Guazzelli, um dos principais historiadores gaúchos, teve como grande contribuição a problematização desse estudo sobre as fronteiras já que, quando falamos de Guerra da Cisplatina, não podemos deixar de ressaltar que muitas das instabilidades políticas e interesses comerciais ocorrerram na parte meridional do Brasil Império, espaços também de pluralidades étnicas. O processo de formação do Brasil imperial como Estado esteve intrinsecamente ligado às resoluções de fronteiras na província do Rio Grande do Sul. Sua contribuição nesse presente trabalho ajuda-nos a esclarecer a dimensão do impresso do Manifesto, vendo- o não como um qualquer noticiário de declaração de guerra mas sim a partir de diversos interesses políticos que estavam em jogo, sendo um deles, o elemento da fronteira, o que marca a dimensão de territorialidade de um Estado e a marca de seu projeto político. Como nos lembra Renouvin e Duroselle, o aspecto das forças profundas que por sua vez consiste em uma série de aspectos físicos: relevo, geografia, ambiente, demografia, dentre outros, tem total interferência na geopolítica de um conflito.20 Uma importante contribuição nos estudos platinos é o trabalho do geógrafo Demétrio Magnoli, em sua tese que se tornou o livro intitulado: O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912), afirma que a Questão Cisplatina, com toda a sua evidente singularidade, deve ser inserida no quadro maior do confronto platino entre o Império e a Argentina, cujas raízes encontram-se na própria criação do Vice- Reinado do Rio da Prata, extensa região platino-pampeana e que

18 Ibidem, p. 1. 19 Ibidem, p. 2. 20 RENOUVIN; DUROSELLE, op. cit., p. 15.

8 constituiu por longo tempo um espaço colonial periférico, quase à margem na estruturação do império-hispanoamericano21. Magnoli diz que a Guerra Cisplatina teve como como uma das prerrogativas o controle da região pelo Império do Brasil e o conflito com Buenos Aires22. De acordo com Magnoli: A Questão Cisplatina ilumina a posição de cada um dos atores e esclarece as relações entre o Império e a Grã-Bretanha. A independência uruguaia – cuja legitimidade política foi atestada, desde o início, pela popularidade de Artigas – não correspondia ao interesse de nenhuma das potências platinas. A Argentina, engajada no projeto das Províncias Unidas, a encarava como mais um episódio da fragmentação do antigo Vice-reinado, manipulado do exterior pela diabólica aliança entre Grã- Bretanha e o Brasil. O Império, por seu turno, a interpretava como perda de acesso ao estuário, que passava ao controle indisputado da Argentina. Entretanto, o Uruguai independente, identificava-se plenamente com os objetivos da Grã- Bretanha, cuja política visava, simultaneamente, afastar o Brasil do Rio da Prata e evitar que as duas margens do estuário ficassem sob domínio argentino.23

O recente Estado imperial, pautava a sua soberania em toda a região platina através da doutrina das fronteiras naturais. Para Magnoli, essa doutrina sustentava a tese de que a força da ideia de fronteiras naturais emana não de considerações racionais mas de consensos imaginário24. O Brasil, na concepção desse autor, já teria formado um pré- estado nacional delimitado pelas próprias condições geográficas naturais do seu território, sendo a região do Rio da Prata, pertencente aos domínios brasileiros25. De acordo com o autor: A força da noção ilha- brasil derivaria, precisamente, da subversão do horizonte histórico e diplomático e da sua substituição por um ordenamento ancestral. No lugar dos tratados entre as coroas – e, em particular, do acerto de Tordesilhas -, ela invocava uma verdade prévia, anterior à história. Por essa via, introduzia-se a lógica da descoberta: a descoberta de uma terra preexistente, de um lugar de contornos definidos, de uma entidade indivisível. O Brasil erguia-se como realidade geográfica anterior à colonização, como herança recebida pelos portugueses. Ao invés de conquista e exploração

21 MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808- 1912). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista / Moderna, 1997. 22 Ibidem, p. 149. 23 Ibidem, p. 148. 24 Ibidem, p. 42. 25 Ibidem, p. 42.

9 colonial, dádiva e destino.26 Com isso, o Império já teria por direito natural o acesso e o domínio à região da Cisplatina. Dentre os mitos fundadores do território brasileito, Magnoli menciona o mito da ilha- brasil, enunciado por Jaime Cortesão que por sua vez defendia a ideia de que o Brasil, apresentava um território separado e delimitado por dois grandes rios que formavam um lago em comum: O Rio Amazonas e o Rio da Prata.27 Esse discurso foi utilizado pela Coroa portuguesa com a finalidade de explicar uma indentidade territorial na América Portuguesa e como forma de legitimar após a ineficácia do Tratado de Tordesillhas e dos tratados posteriores. Magnoli procura problematizar a formação do Estado brasileiro sob o viés da discussão da delimitação das fronteiras naturais, onde desde o período colonial, teria nascido uma ilha- brasil, possibilitado pela interação das próprias condições geográficas.28 Por mais que nosso foco seja analisar a formação dos estado imperial pelo viés da guerra da Cisplatina, tendo como referência neste trabalho O Manifesto, não temos como deixar de ressaltar que na região da Banda Oriental, estava desenvolvendo-se também uma gradativa identidade oriental, apontada por Pimenta, e na tentativa deles se tornarem um estado independente. A busca de um corpo político nacional pelo futuro Uruguai, Argentina e o Brasil, teve como um de seus denominadores em comum a guerra da Cisplatina. O historiador João Paulo Garrido Pimenta analisa as trajetórias políticas da Banda Oriental entre os anos 1808-1828, as rivalidades que se deram entre Montevidéu e Buenos Aires e as intervenções portuguesas na região. Mais do que essas disputas de domíno da província cisplatina entre os colonos e as metrópoles portuguesa e espanhola, João Paulo procura explicar a formação de uma identidade dentro dessa região, tendo raízes durante o período de Artigas: Acompanhar as redefinições nas identidades políticas do período permite, portanto, acompanhar este processo mais amplo. À proporção que se transformam as formas de organização política, as identidades políticas denunciam as articulações entre o novo e o velho e entre o geral e o particular, presentes nessa transformação. Com a guerra de 1825-28, essas identidades tendem a se polarizar por oposição ao

26 Ibidem, p. 47. 27 MAGNOLI, 1997 apud CORTESÃO, 1956, p. 137. 28 Ibidem, p. 42. 10 inimigo: aquilo que não se é surge antes e como um passo indispensável para a afirmação daquilo que se é de fato.29 Para Pimenta, o líder caudilho teria sido um dos primeiros líderes a surgir na região na defesa de um ideal de um Estado independente, livre dos domínios das Províncias Unidas do Rio da Prata, das intervenções portuguesas e longe dos domínios hispânicos. Essa identidade oriental, para Pimenta, não se fundamentou brasileira, nem espanhola, portuguesa e luso-brasileira mas sim nas próprias especificidades dos povos da província Cisplatina.30

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que mesmo após o fim da Guerra da Cisplatina, nunca houve uma efetiva consolidação entre as questões de fronteiras dos países contratantes, ou seja, Brasil, Províncias Unidas do Rio da Prata e Uruguai, especificamente durante a Convenção Preliminar de Paz, acordo que promoveu o desfecho da guerra. Entretanto, um dos principais legados que acreditamos que o referido conflito deixou em aberto, foi o início da construção do Estado imperial brasileiro, uma primeira tentativa de consolidar um interesse nacional. A política expansionista e centralizadora do governo imperial buscou demarcar os limites na parte meridional, área de conflitos desde o período da colonização das monarquias ibéricas. Procuramos ainda, nesse trabalho, analisar o Manifesto de Declaração de guerra do governo imperial, não apenas abordando de maneira genérica que a Cisplatina foi simplesmente uma guerra travada entre os países em função do bloqueio dos portos do Prata e devido aos interesses comerciais. Mais do que isso, tivemos como proposta central abordar como a disputa pelo domínio da fronteira na Província Cisplatina estabeleceu os limites nacionais não somente pela via jurídica mas na configuração das relações políticas e sociais realizadas nesses espaços fronteiriços.

29 PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata: 1808-1828. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2002, p. 236. 30 Ibidem, p. 53.

11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTE Manifesto de declaração de Guerra do Brasil às Províncias Unidas do Rio da Prata [Diário da Corte do Rio de Janeiro] – 10 de dezembro de 1825. Arquivo Histórico Palácio do Itamaraty – Rio de Janeiro.

BIBLIOGRAFIA BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. FERREIRA, Gabriela Nunes. O rio da Prata e a consolidação do Estado imperial. São Paulo: HUCITEC, 2006. GUAZZELLI. Cesar. História e Fronteira nas fronteiras da Literatura: João Simões Lopes Neto e “Lendas do Sul”. XXVII Simpósio Nacional de História (ANPUH). Rio Grande do Norte, Natal – 22 a 26 de julho de 2013. MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista / Moderna, 1997. PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata: 1808- 1828. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2002. RENOUVIN, Pierre e DUROSELLE, Jean -Baptiste. Introdução à história das relações I n t e r n a c i o n a i