pacto suposto pelo narrador Brás Cubas. Trata-se de A FORMAÇÃO DO NOME. DUAS INTERROGAÇÕES livro antilivro, escrito por um morto que revive, espe­ SOBRE . cializado em vida (mas vida morta, improdutiva). De Abel Barros Baptista. [São Paulo: Editora UNICAMR 2003,276 P.] fato, o estudo de Valentim comporta três roteiros de leitura: a referencial (que dá conta do contexto históri­ AUTOBIBLIOGRAFIAS. SOLICITAÇÃO DO LIVRO NA co e social brasileiro, à época de Machado e do tempo FICÇÃO DE MACHADO DE ASSIS. da narrativa: 1805-69); a crítico-teórica (que se con­ Abel Barros Baptista. [São Paulo: Editora UNICAMP, 2003, 608 P.] centra na inovação formal aportada pelo romance) e a impressionista (dado o tom marcadamente subjetivo Com dois livros escritos sobre Machado de Assis (A que o próprio Facioli deixa transparecer na “Introdu­ formação do nome — Duas interrogações sobre Ma­ ção” e em “À guisa de fecho”). chado de Assis e Autobibliografias — Solicitação do li­ Não se trata, exclusivamente, de um mero apanhado vro na ficção de Machado de Assis, ambos publicados das contribuições mais relevantes sobre as Memórias em 2003 pela Editora da Unicamp), Abel Barros Bap­ póstumas de Brás Cubas, mesmo porque, em meio às tista constrói um lugar singular na biblioteca da crí­ didáticas explicações sobre conceitos-chave, propostos tica machadiana. Seus extensos e rigorosos trabalhos pela crítica, Valentim inclui as suas próprias impres­ criam um território crítico-geográfico próprio, que sões e juízos de leitura. proporciona a liberdade necessária para se avançar na De certo modo, o estudo responde a uma demanda de renovação da prática de leitura dos romances perten­ cunho pessoal (do próprio ensaísta), sem perder de centes à chamada segunda fase da produção ficcional vista a contribuição da chamada academia. Êxito duplo do mais célebre romancista brasileiro dos oitocentos.1 para o crítico e proveito do leitor: enfrentar outra vez Situado num contexto em que “os estudos brasilei­ os vários ângulos de leitura proporcionados pelo ro­ ros ocupam lugar modestíssimo”,2 o projeto crítico mance. Serve também como despretensioso mas seguro do professor de Literatura Brasileira da Universidade guia de leitura — não destinado apenas aos iniciantes Nova de Lisboa tira partido da não-familiaridade do no quesito “Machado”, apesar da reafirmada modéstia nome Machado de Assis no campo dos estudos lite­ com que Valentim Facioli abre e fecha seu livro. rários de seu país, condição prévia para assegurar à obra do autor brasileiro identidade especial no acer­ Jean Pierre Chauvin é doutorando em Teoria Literária vo de literatura estrangeira em Portugal. Abre-se, em e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo, decorrência deste estatuto de exílio, uma vertente de autor de : a teoria dos contrastes em Macha­ acesso ao texto machadiano que foge deliberadamente do de Assis [Reis Editorial, 2005]. dos caminhos previstos nos mapas desenhados pela tradição de estudiosos brasileiros e pela linhagem de pesquisadores estrangeiros do escritor. Trata-se de um programa de estudos de longo curso

Teresa revista de Literatura Brasileira [6]; São Paulo, p. 489-510, 2006. 497 com base teórica definida através da filiação aos es­ repetidos, fraudados. O episódio, que entrelaça “um critos de Jacques Derrida, que fornecem os conceitos episódio da vida com um distintivo do livro”, será re­ fundamentais da análise empreendida nas páginas dos tomado, anos mais tarde, como ponto de partida para dois livros em pauta. No prefácio do primeiro livro, A sucessivas leituras de livros de Machado de Assis, que formação do nome — Duas interrogações sobre Ma­ decifram a charada inicial: “Dir-se-ia que, um dia, pre­ chado de Assis, anuncia-se que as Memórias póstumas cisei escrever trezentas páginas para perceber por que de Brás Cubas “exigem uma teoria do nome e da assi­ comprei aquele livro em 1973: a confusão homonímica natura”, categoria que, na concepção derridiana, tanto não era senão o apelo do nome para se libertar da con­ aponta para a idéia de origem, paternidade e respon­ fusão homonímica”.4 sabilidade quanto para um momento de despedida, Nas trezentas páginas aludidas, põe-se em marcha uma quando autor e obra se separam irremediavelmente orientação de leitura, baseada na descrição apurada para que vingue apenas o nome, encerrando simulta­ de processos intratextuais que inscrevem o nome de neamente a morte e a sobrevivência do autor. A leitura Machado na modernidade literária, fazendo sua lite­ de Memórias póstumas, empreendida neste primeiro ratura desprender-se das determinações ou estratégias trabalho, permite ao crítico afirmar que Machado de nacionalistas. O propósito é “estudar a forma como se Assis fez do recurso ao autor suposto ou autor ficcio­ relacionou com seu nome e a sua assinatura enquan­ nal um traço distintivo de sua assinatura. A prática do to nome e assinatura de romancista”, produzindo obras suposto autor, que se estende a outros romances, apon­ cujo estatuto funda-se, primordialmente, na resistência ta para “uma rede diferencial de assinaturas siamesas, interna ao mando da lei nacional. A opção é para Abel a um tempo diferidas e simultâneas, discerníveis e in­ Barros Baptista mais que programática, política. Cria-se separáveis — Machado e Brás Cubas, Machado e Dom um corredor paralelo à tradição crítica brasileira que Casmurro, Machado e conselheiro Aires —, em que o poderia arejar a recepção da literatura machadiana no nome Machado é ao mesmo tempo o nome antes de ambiente português, onde nunca vicejou a lucidez já outros nomes e um nome entre outros: autor de auto­ prenunciada na posição do escritor quando este pre­ res e autor entre autores”.3 tende “separar a discussão e a reflexão sobre a literatura Em um dos escritos de Abel Barros Baptista, fruto de brasileira da discussão e reflexão sobre a literatura”.5 sua contínua atividade de colaboração em periódicos, No primeiro dos estudos sobre Machado de Assis, a encontramos uma deliciosa revelação sobre o encon­ análise minuciosa do ensaio “Notícia da atual litera­ tro do crítico com a obra do escritor. Assíduo passante tura brasileira — Instinto de nacionalidade” distancia da rua Brás Cubas, nas Antas, na cidade do Porto, tem o texto seminal da reflexão crítica do autor das exege­ seu olhar atraído pelas Memórias póstumas de Brás ses que preferem vê-lo como revisão do projeto na­ Cubas, expostas na vitrine da Livraria Bertrand, e re­ cionalista romântico e fazem vista cega aos negaceios solve adquiri-las. No correr da leitura, descobre-se em do discurso machadiano em comprometer a literatura meio a uma intrigante história de nomes apropriados, com a representação da nação. Longe de perceber o

498 R E S E N H A S texto como plataforma político-literária, Abel Barros concebida pelo escritor representa, segundo o crítico Baptista concentra-se em explicitar as três recusas que Abel Barros Baptista, a forma eficaz de superar este acabariam determinando a poética ficcional do ro­ paradoxo entre negativa e adesão, lançando “o nome mancista: í. recusa em transformar o projeto nacional próprio numa errância sem destino determinado”.6 em lei, ou seja, Machado não aceitaria esgotar o senti­ Confirmando-se partidário da crença teórica segundo a do da atividade literária nas exigências “autenticamen­ qual a noção moderna de autor implica suspender qual­ te brasileiras” de um tempo presente “brasileiro”; 2. re­ quer convicção de que aí se abriga a origem e a unidade cusa radical de qualquer outra busca da nacionalidade da obra, o crítico empreende mais um movimento de como razão de ser e princípio de construção da lite­ questionamento da tradição crítica machadiana. Os al­ ratura brasileira, ou seja, Machado redireciona a des- vos, neste caso, são os expoentes da geração de intelectuais tinação da literatura brasileira para fora da distinção que, nos anos 1930, foram responsáveis por leituras funda­ entre o nacional e o alheio, voltando-se em direção ao mentais na história da recepção da literatura machadiana, “pecúlio do espírito humano”, expressão de outro en­ entre eles Lúcia Miguel Pereira e Augusto Meyer. Embora saio, “A nova geração”, para o qual confluem tanto os reconheça que ali se processou uma mudança na imagem haveres dos antigos quanto os dos modernos; 3. recusa social do escritor e uma nova delimitação de sua estética de situar e entender a literatura brasileira em ruptura literária, Abel Barros Baptista credita ao biografismo uma com o passado literário europeu como condição para interdição fundamental, que impediu a possibilidade de se a fundação de uma tradição homogeneamente brasi­ pensar a experimentação invulgar da ficção de autores que leira, ou seja, Machado já tomaria a liberdade de, tal a literatura machadiana levou adiante. Quando se atribui como Borges, escolher seus precursores tomando uma ao pessimismo uma “garantia de legibilidade” das narra­ decisão crítica a partir da qual recolhe “da tradição eu­ tivas machadianas, estabelecendo-lhes um princípio de ropéia o que ela própria rejeitou ou rejeita, o que ficou “unidade e explicação”, fica encoberta a diversidade cria­ à margem ou se situou contra a corrente dominante”. tiva de Machado encenada na ficção de autores que, se­ Está preparado o caminho para se redefinir o crucial gundo o ensaísta, “produz e reproduz a distância do autor conceito machadiano de “sentimento íntimo”, deslo- de si a si mesmo”.7 De todo modo, mesmo considerando a cando-o da função de princípio de construção para ser fertilidade da vertente crítica derivada dos escritos de Au­ entendido também como princípio de interpretação, gusto Meyer, que afirmam a importuna máscara de Brás afeito, portanto, à esfera da recepção literária. Assim Cubas sobre o rosto de Machado de Assis, o pesquisador posto, o “sentimento íntimo” apresenta-se no nervo defende a necessidade de ultrapassar a necessidade de “sa­ onde se localiza a tensão na qual Machado de Assis ber que(m) falamos quando falamos de Machado de Assis, inscreve seu nome. De um lado a recusa em confinar- para se deixar conduzir pela indecisão ou incerteza” de que se ao projeto nacional e, de outro, a disponibilidade existe uma resposta satisfatória para esta pergunta. de assinar o nome Machado como “garantia de com­ As análises de Memórias póstumas de Brás Cubas e de promisso com o projeto nacional”. A ficção de autores outros romances seguirão, portanto, o pressuposto da

Teresa revista de Literatura Brasileira [6]; São Paulo, p. 489-510, 2006. ^ 499 desvinculação entre face e máscara, transitando para o por aqueles leitores que procuram avançar sobre a recu­ entendimento da fabricação da autonomia do suposto sa da narrativa romanesca em apresentar-se enquanto autor, inteiramente derivada da singularidade de expe­ totalidade unificada, preferindo o modo disperso, frag­ riência posta em cena no romance, e “responsável por mentado, dividido. Chega-se também à plena vigência transportar a figura do autor para dentro da ficção sem o do suposto autor pela desmontagem da autoridade do retirar totalmente do exterior da ficção”.8 Desatrela-se o autobiógrafo que, propositadamente, situa a narrativa suposto autor da figura do narrador para se descrever no numa faixa de indecisão entre memória e ficção. conjunto do trabalho ficcional machadiano o intricado A remissão a um projeto autobiográfico do suposto processo de atribuição de assinatura referido, inicialmen­ autor implica o recorte do episódio do emplastro e a te, nos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires. sua releitura cuidadosa, de modo a ultrapassar a visada Para Abel Barros Baptista há uma inteligência excep­ estabelecida por Roberto Schwarz no sentido de pen­ cional no ato performativo da assinatura tal como sar a sede de nomeada como motor da volubilidade do concebido por Machado de Assis, quando se percebe narrador, forma retórica que se desprende de práticas que a busca de traços de Aires-personagem em Aires- estabelecidas na sociedade brasileira. Diferentemente, autor é uma tarefa problemática, mesmo insuperável, sobressai na análise de Abel Barros Baptista a observa­ que deverá apenas ser resolvida no “exterior da ficção” ção do tópico da sobrevivência do nome e do desapa­ onde se instala o nome que já aparecera antes da fic­ recimento do portador do nome que o amor de nome­ ção, o nome de Machado de Assis. Trata-se, portanto, ada comporta. Há no romance, segundo o crítico, um de buscar a demarcação de fronteiras ficcionais e de drama do nome, desde o projeto genealógico do pai de deixar de lado o estabelecimento da verossimilhança Brás Cubas, que falsifica a origem da família, e a “im­ do discurso romanesco. O que fica, de vez, abalado no possibilidade tanto de o prosseguir quanto de o recu­ amplo jogo de autores desencadeado nos romances é sar” Desta dupla impossibilidade surgiria “o desejo de a estabilidade do autor efetivo, motivo predominante, ver o seu nome errar fora de si próprio” uma forma de como aponta o pesquisador, em ampla parcela da bi­ desviar-se do propósito previsto e sempre fracassado bliografia crítica sobre Machado de Assis que se dedica de utilizar-se o nome como alavanca na obtenção de a estudar o pessimismo como princípio de estabilida­ privilégios sociais. Segundo o pesquisador, prepara-se de e homogeneidade da obra. irremediavelmente a migração do nome para assina­ A proposta de redirecionar o interesse crítico da obra tura, porque o percurso biográfico de Brás Cubas pa­ de Machado de Assis, até então enunciada, encontra sua rece ter sido destinado para se construir no momento aplicação em modelar análise de Memórias póstumas de autobiográfico, só podendo, entretanto, pretender o Brás Cubas. Descreve-se a “política machadiana do su­ “estranho lugar em que o nome não pode permanecer posto autor”9 conformada, entre outros aspectos, pela fixo — a assinatura de um texto”. A escolha do con­ denúncia interna da vocação alegórica do romance, ceito de assinatura dirige-se, propositadamente, para considerada uma pista falsa quando é utilizada apenas o que Derrida denomina terceiro nível, em que não se

5 0 0 - R E S E N H A S trata de designar um ato puramente consciente de um aprés coup, quando já é demasiado tarde para corrigir indivíduo, mas a possibilidade da própria escrita assi- sem deixar marcas da correção e do erro”.12 nar-se, implicando a afirmação da alteridade (heterós) O impulso para selecionar e analisar “os procedimentos a partir do mesmo (autós).10 de correção de erros ou desvios, o movimento das deci­ Aqui vai-se fechando o percurso analítico sobre o ro­ sões e das revogações que afetam o livro na linearidade e mance. A leitura da metáfora da “errata pensante” ao na totalidade e tendem a localizar-se em capítulos quase privilegiar a idéia de errância, distancia o texto das exclusivamente autobibliográficos”, situa o trabalho do memórias de valores como veracidade e autenticida­ crítico num lugar de interdição violenta a qualquer es­ de, encaminhando a figuração do nome Brás Cubas forço interpretativo que signifique catar sentido e texto. ao domínio do aleatório, portanto submetido a “uma Desde as primeiras páginas deste segundo estudo dos ro­ desfiguração irrecuperável” Sem ter sua vida igualada mances de Machado de Assis, em que se privilegia Dom ao valor da experiência, tal como a comunicada pelo Casmurro, instala-se, como princípio, a recusa em perce­ narrador benjaminiano, o memorialista Brás Cubas ber no gênero romance uma forma de comunicação em confina-se no território do livro (“a obra em si mes­ que vigoram as condições básicas do diálogo: simetria e ma é tudo”), onde se instala o legado de sua condição reciprocidade. Quando o romancista declina da respon­ de homem moderno. Sem a garantia de um sentido a sabilidade da resposta, regressa-se “inevitavelmente ao recuperar ou a construir e, a seguir, transmitir, o livro próprio veículo e ao reconhecimento do território do contém, como obra de defunto autor, a morte em seu veículo, ainda que através de percursos irredutíveis”, que poder de plantar a imortalidade. indicam o terreno da autobibliografia. Ainda será a metáfora da “errata pensante” o elemento Entende-se, assim, por que Abel Barros Baptista procura nuclear da hipótese segundo a qual de Memórias pós­ delimitar seu lugar entre os admiradores de Machado de tumas a há, na ficção machadiana, um Assis através do antagonismo explícito aos críticos que movimento de rasura permanente disposto a abalar a tomam o estudo de Helen Caldwell, O Otelo brasilei­ idéia de livro, já revista por Jacques Derrida como “to­ ro, como obra inaugural da moderna interpretação de talidade natural, profundamente estranha ao sentido Dom Casmurro, e que partem do princípio de que a de escrita” e “proteção enciclopédica da teologia e do atividade principal do leitor é desmontar o logro que logocentrismo contra a disrupção da escrita, contra a lhe prega o autor fictício para, desta forma, construir sua energia aforística e [...] contra a diferença em ge­ a possibilidade de se ter acesso às supostas intenções ral”11 O subtítulo do segundo estudo crítico do pes­ de Machado de Assis. Ao cunhar a denominação “pa­ quisador, Autobibliografias, apresentado como “A soli­ radigma do pé atrás” (ou da “leitura do desmascara­ citação do livro na ficção de Machado de Assis”, faz do mento, da charada ou da armadilha”) e nela incluir no­ conceito derridiano “solicitação” o guia para descrever mes como os de Roberto Schwarz, Silviano Santiago e as inúmeras ocorrências de um tremor, a errata, que John Gledson, responsáveis por aprofundar o legado é “um suplemento do livro, castiga o livro, mas fá-lo de Caldwell, o pesquisador procura escapar não só à

Teresa revista de Literatura Brasileira [6]; São Paulo, p. 489-510, 2006. 501 “linha de leitura que realça a crítica de Machado à so­ são entre o corpo do livro e o lugar antes do livro, de ciedade brasileira sua contemporânea”, mas também tal modo que “o livro afirma o autor presente, mas não às páginas que condenam o escritor ao exercício de es­ funda nessa presença a autoridade de um programa tratégias de dissimulação desta crítica, apresentando- prévio”.14 Assim, mais importante do que o livro é a “ati­ se como vozes autorizadas a extrair dos livros “uma vidade de o ir escrevendo” Nesse estado, a assinatura verdade decidível”. passa a se configurar como impossibilidade e ganha re­ Tomando distância do paradigma intencionalista, Abel levo o título, que substitui o nome do autor. O pesquisa­ Barros Baptista, estrategicamente, revisita “momentos dor lança seu olhar sobre a ficção de Machado de Assis autobibliográficos” dos romances Esaú e Jacó, atribuin­ para indicar que, na simulação da presença permanente do novo valor à “Filosofia de um par de lunetas” Esva­ do autor, enfatiza-se a idéia de que “há um livro que se ziado da função signo da “esperança de decifração de escreve sozinho, e que a ficção do livro no processo de um segredo”, o par de lunetas, mencionado no capí­ se escrever mostra a luta do autor com o livro, do autor tulo XIII do citado romance, seria o instrumento que que escreve com o livro que se escreve”15 Pontos críticos aponta para dentro da escrita, para se “ver melhor a como a teoria da ópera, a casa como metáfora do arqui­ natureza da sentenciosidade no interior da narrativa vo, o panegírico como livro omisso e o meio do livro in- e o fenômeno da multiplicação de epígrafes dela de­ tegram-se ao exame de prefácios, prólogos, preâmbulos, corrente”, funcionando como suplemento esclarecedor, introduções, que constituem, estes sim, o ponto crítico “meio alegórico de deslocar o segredo do enigma para especialmente considerado por Abel Barros Baptista em a alegoria”,13 desviando o leitor do desafio de encontrar toda a pesquisa sobre a obra de Machado de Assis. a solução de um enigma e apresentando-lhe, em troca, Ao concluir o estudo sobre Dom Casmurro, entre pro­ uma teia de possibilidades de leitura. jeto e retrospecto, como também se move a escrita do A análise de Dom Casmurro como “paradigma da fic­ romance que analisou, o ensaísta assegura-nos que a ção do livro na ficção de Machado de Assis” é apresen­ sua posição crítica, fiel ao glossário derridiano, esteve tada nas cem páginas finais de Autobibliografias, e per­ assentada no propósito de perceber o livro como “edi­ segue a hipótese de que há no romance uma distância ficação e não como edifício” Selecionando como foco impossível de anular entre o autor suposto Dom Cas­ de análise a solicitação do livro, foi possível perceber a murro e Machado de Assis, porque há uma distância edificação em concomitância com o seu desmorona­ inicial entre Dom Casmurro e seu próprio livro, que o mento e, coerentemente, aceitar o princípio descons- impede de responder por ele. Esta distância assenta-se trucionista, várias vezes citado no estudo, segundo o sobre a impossibilidade de o primeiro livro ser veículo qual “o acesso à legibilidade de um texto pode manter de uma fábula trágica, abrindo caminho para o novo intacta a ilegibilidade do segredo” 16 livro A história dos subúrbios. Com lugar assegurado na grande biblioteca européia O estudo acompanha o processo através do qual con- do romance moderno, inaugurada por Dom Quixo- figura-se, desde o início de Dom Casmurro, uma ten­ te, de Cervantes, e onde estão, entre outros, títulos de

502 -1 R E S E N H A S Fernando Pessoa, Flaubert, Mallarmé, Musil, Borges, 11 A pu d A, p. 45. Kundera, a obra de Machado de Assis tem, através da 12 A, p. 104. ampla investigação contida nos livros de Abel Barros 13 A, p. 420. Baptista, o seu patamar de excelência ainda uma vez 14 A, p. 460. confirmado, quando, na perspectiva desenvolvida pelo 15 A, p. 468. crítico, fica liberta de qualquer aprisionamento na ori­ 16 A, p. 498. gem nacional ou biográfica de seu autor, para ofere­ cer-se como fascinante escrita do livro em dilacerado processo de autoconstrução. THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF BRÁS CUBAS. Machado de Assis. Trad. Gregory Rabassa.

Maria Helena Werneck é professora da Universidade Fede­ [Nova York: Oxford University Press, 1999,240 P]

ral do Estado do Rio de Janeiro ( u n i r i o ) . Autora do livro O homem encadernado. A escrita das biografias de Machado .

de Assis [ e d u e r j , 1996]. Machado de Assis. Trad. Gregory Rabassa.

[Nova York: Oxford University Press, 1999,316 P]

Notas

1 Os livros de Abel Barros Baptista, mencionados nesta resenha DOM CASMURRO.

pelas iniciais, são: CA — Coligação de avulsos. Ensaios de Crítica Machado de Assis.Trad. John Gledson.

Literária. Lisboa: Cotovia, 2005; AFN — A formação do nome. [Nova York: Oxford University Press, 1999, 286 P]

Duas interrogações sobre Machado de Assis. São Paulo: Editora

Unicamp, 2003; AIB — A Infelicidade pela bibliografia. Crônicas. ESAU AND JACOB.

Braga, Portugal: Angelus Novus, 2001; A — Autobibliografias. Machado de Assis.Trad. Elizabeth Lowe.

Solicitação do livro na ficção de Machado de Assis. São Paulo: [Nova York: Oxford University Press, 2000,304 P.]

Editora Unicamp, 2003.

2 CA, p. 223. A MASTER ON THE PERIPHERY OF CAPITALISM:

3 AFN, p. 14. JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS.

4 AIB, p. 20. Roberto Schwarz.Trad, e Introd. John Gledson.

5 AFN, p. 63. [Durham: Duke University Press, 2001,232 P.]

6 AFN, p. 111.

7 AFN, p. 123. MACHADO DE ASSIS: REFLECTIONS ON A BRAZILIAN

8 AFN, p. 139. MASTER WRITER.

9 AFN, p. 166. Richard Graham (Org.)

10 NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura. "Notas" de Literatura e [Austin: University ofTexas Press, 1999,144 P.]

Filosofia nos textos da desconstrução. Niterói: EdUFF, 1999, p. 306.

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