A Lingua Ignota De Hildegarda De Bingen”
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Transcrição Podcast: “A Lingua Ignota de Hildegarda de Bingen” Ilze Zirbel Matheus Colares Vinicius Arion Introdução Este texto foi originalmente concebido como um podcast para o projeto “Uma filósofa por mês”. Com o objetivo de torná-lo acessível à comunidade surda, ele foi transformado em texto. A parte inicial apresenta, em traços bastante gerais, a Lingua Ignota desenvolvida por Hildegarda de Bingen no século XII. Uma segunda parte apresenta, também de maneira bastante geral, algumas das reflexões da lingüista e escritora de ficção científica Sarah Higley sobre a Lingua de Hildegarda. Por fim, Matheus Colares, Vinícius Arion e Ilze Zirbel fazem alguns comentários sobre o contato que tiveram com a Lingua Ignota e o que pensaram sobre ela. Foram inseridas nesse texto algumas referências ao podcast, indicando o ponto em que podem ser encontradas as falas equivalentes ao texto. Apresentação da Lingua Ignota [01:28] Ilze Zirbel: No século XII, Hildegarda de Bingen produziu uma língua nova, única. Ficou conhecida como Língua Ignota (que em latim significa "idioma desconhecido"). [01:41] Matheus Colares: Aparentemente, a finalidade dessa nova língua era religiosa ou, como algumas pessoas preferem dizer: mística. Não se sabe, até o momento, se alguém, além da sua criadora, estava familiarizada/o com ela. [01:56] Vinícius Arion: Na elaboração da Língua Ignota, Hildegarda fez uso de um alfabeto de 23 letras (denominadas litterae ignotae). [02:04] Ilze Zirbel: Ela descreveu parcialmente sua nova a língua em uma obra intitulada Lingua Ignota per simplicem hominem Hildegardem prolata, (“Uma língua desconhecida trazida pela simples humana Hildegarde) que sobreviveu, na sua forma mais completa, em dois manuscritos, ambos datados de cerca de1200 da era cristã. 1 [02:34] Matheus Colares: O Riesencodex (também conhecido como codex de Wiesbaden, por estar guardado na cidade de Wiesbaden) e o Berlin MS (Codex Cheltenhamensis, que está na cidade de Berlim). [02:48] Vinícius Arion: A Língua de Hildegarda é um dos idiomas mais antigos de que se tem notícias com essa característica, ou seja, um idioma deliberadamente construído por uma única pessoa. [02:57] Ilze Zirbel: Trata-se de um glossário de 1011 palavras, com seu equivalente em latim, às vezes em alemão. [03:06] Matheus Colares: Gramaticalmente, parece ser uma re-lexificação parcial do latim, ou seja, uma língua formada a partir (e em substituição) de uma gramática existente. Também existem elementos da língua alemã (particularmente o uso do “z”). [03:25] Vinícius Arion: Ela renomeia, dá novos nomes, a objetos cotidianos como roupas e peças de vestuário, utensílios de cozinha, material de construção; temperos, ervas e árvores; alimentos, entre outras coisas. [03:37] Ilze Zirbel: mas também há elementos litúrgicos; profissões e cargos eclesiásticos e militares; relações de parentesco etc. [03:47] Matheus Colares: O glossário parece seguir uma ordem hierárquica inicial: os primeiros termos são, justamente: Deus e anjos; seguidos por termos para seres humanos e termos para relacionamentos familiares. Em seguida, são descritas as partes do corpo humano e doenças. [04:08] Vinícius Arion: Depois são feitas as classificações religiosas e sociais: profissões, dias, meses, roupas, utensílios, plantas e alguns pássaros e insetos. [04:18] Ilze Zirbel: Faltam termos para os mamíferos (com exceção do morcego, listado entre os pássaros, e o grifo que é uma figura fictícia, meio-mamífera, também listada entre os pássaros). Talvez isso seja um indício de que o glossário estava inacabado. [04:37] Matheus Colares: e também nos leva a repensar a hipótese hierárquica, uma vez que as plantas aparecem antes dos mamíferos. [04:45] Vinícius Arion: Talvez Hildegarda tenha apenas anotado aquilo com o qual ela já estava mais familiarizada, que eram as plantas. Já que atuava como médica, utilizando- se da medicina natural. Reflexões de Sarah Higley sobre a Lingua Ignota [04:58] Ilze Zirbel: Os outros textos de Hildegarda receberam muito mais atenção de pesquisadores, até o momento. Mas no ano de 2007, a pesquisadora Sarah Higley que é uma especialista em língua e literatura vernacular medieval, publicou um livro centrado na Lingua Ignota da Hildegarda. O livro não tem tradução para o português ainda e o título em inglês é Hildegard of Bingen’s Unkown Language. Nesse livro, ela procura fazer um estudo histórico sobre a criação de linguagens imaginárias nos últimos mil e quinhentos anos. É uma espécie de contextualização da Lingua Ignota. Ela argumenta que o estudo das circunstâncias das invenções de linguagens modernas pode nos ajudar a compreender esse tipo de obra ou, em específico, essa obra medieval. O livro contém uma análise histórica dos múltiplos interesses da Hildegarda, o nascimento da Lingua Ignota, uma descrição sobre sua fonologia e estrutura, bem como dá uma visão geral sobre a história posterior das línguas inventadas. Na verdade, esse é o foco central do livro, ela [a autora] está pensando a produção de línguas no geral e usa o material da Hildegarda como base. Então, o material também apresenta extensas discussões sobre a natureza e as funções das invenções das linguagens, incluindo o papel dos valores estéticos na linguagem inventada; e discussões recorrentes sobre inventoras e sobre o significado e as consequências do fato de que a Lingua Ignota foi inventada por uma mulher. Sarah Higley comenta que há algo sobre a Lingua Ignota da Hildegarda que desafia a análise. O objetivo dessa obra [se o pensarmos como um objetivo de uma freira] parece incerto, infundado. Inclusive a sua audácia, não importa o quão divinamente concedida, é desagradável para uma virgem abadessa. Hildegarda faz repetidas declarações sobre sua própria humildade, sobre o fato de que ela conhecia pouco o latim; isso contribuiu para criar uma imagem dela como uma pessoa muito simples muito humilde, exigindo sempre a ajuda dos seus conselheiros masculinos para registrar o que ela ouvia e via; [essa é] uma possibilidade que não pode ser ignorada, mas que pode mascarar também uma certa ambição, paixão, temperamento e a produção literária dela. Higley acredita que nós devemos ver a Lingua Ignota da Hildegarda no contexto das suas outras obras também, que são ousadas. Por exemplo: fundar e administrar um mosteiro, escrever livros e cartas, pregar, viajar, aconselhar (inclusive figuras importantes da política e do clero), compor músicas. Essas realizações ousadas abalaram as restrições impostas sobre as mulheres medievais. O direito de criar um texto, de nomear coisas e pessoas, sempre foi concedido a homens, a exemplo de Adão na Bíblia ou do próprio Crátilo de Platão. Imagine então criar uma língua!. Além disso, é significativo que a Hildegarda fala de si mesma como homo, [termo] que é utilizado para nomear ou significar seres humanos. No Scivias ela diz que Deus se dirige a ela dessa maneira: “Ó humana [homo]”. E ela também se refere assim [a si mesma] na rubrica do material da obra dela que foi guardado: o grande Riesencodex1, um códex que tem basicamente todas as obras dela. Ao inventar uma língua e apresentá-la como se fosse um resumo ou uma enciclopédia de termos em latim e suas traduções, Hildegarda inscreve o gênero feminino na humanidade. Quando ela fala de si mesma como Homo no Scivias, ela navega em um território convencionalmente masculino. O uso adequado da linguagem também é algo que costuma ser estabelecido por lei, comenta Higley. Isso implica que a autoridade para fazer algo desse tipo é atribuída a um homem. Em sociedades patriarcais os homens representam tanto o divino quanto as regras públicas. Também é comum que o homem, ou os homens, é que tenham autoridade para estabelecer as regras e as leis que costumam criticar no campo da linguagem as práticas menos ordenadas dessa linguagem, no caso de um uso popular, infantil ou doméstico. [10:10] O fato da linguagem e da realidade vivida nos leva à recepção fascinante e perturbadora da criação de uma linguagem pessoal, que é o que Hildegarda faz e, além disso, da função dessa linguagem ou do que ela representa. Higley comenta que fica impressionada com a ignorância generalizada entre os estudiosos sobre a Lingua Ignota da Hildegarda. Ela diz que muita atenção é dada para a invenção de linguagens chamadas políticas ou públicas, como é o caso do Esperanto, que foi pensado e trabalhado como uma língua franca universal. Higley se concentra na invenção de línguas que são consideradas privadas, desde invenções medievais e renascentistas até explorações contemporâneas de linguagens imaginárias, que estão sendo feitas, por exemplo, no universo da internet. Ela diz que a criação da linguagem foi simultaneamente demonizada e divinizada na Idade média. 1 O Riesencodex reúne, em um único material, 481 páginas manuscritas de tamanho de 30 X 45 cm, pesando 15 kg. Por isso, costuma ser apelidado de “Código gigante”. Contém praticamente toda a obra de Hildegarda, com exceção do seu tratado de medicina e ciência natural. Foi organizado pelos seus secretários Volmar de Disibodenberg e Guilbert de Gembloux. Inclui seus textos teológicos, sua correspondência, suas composições musicais, a língua ignota e sua biografia. Está conservado na Biblioteca Estatal de Hesse, na cidade de Wiesbaden, Alemanha. Parece que esse tipo de prática foi ocultada nos séculos quinze e dezesseis. Dá para imaginar que isso pode ter sido consequência do risco que implicava para quem inventava linguagem num período de Inquisição, de perseguição de coisas consideradas fora do eixo considerado normal ou correto pela Igreja Católica. Higley também comenta que a linguagem acabou sendo feminizada, politizada e ficcionalizada entre os séculos doze e o século vinte (dá pra imaginar uma caminhada: ela é primeiro feminizada, depois politizada, simultaneamente, e por fim, ficcionalizada) e é recuperada recentemente por um grupo de pessoas que se descobriram online. Essas pessoas têm sido ignoradas também por pesquisadores e estão produzindo linguagens que a Higley chama de artísticas.