Transcrição Podcast: “A de Hildegarda de Bingen”

Ilze Zirbel Matheus Colares Vinicius Arion

Introdução

Este texto foi originalmente concebido como um podcast para o projeto “Uma filósofa por mês”. Com o objetivo de torná-lo acessível à comunidade surda, ele foi transformado em texto. A parte inicial apresenta, em traços bastante gerais, a Lingua Ignota desenvolvida por Hildegarda de Bingen no século XII. Uma segunda parte apresenta, também de maneira bastante geral, algumas das reflexões da lingüista e escritora de ficção científica Sarah Higley sobre a Lingua de Hildegarda. Por fim, Matheus Colares, Vinícius Arion e Ilze Zirbel fazem alguns comentários sobre o contato que tiveram com a Lingua Ignota e o que pensaram sobre ela. Foram inseridas nesse texto algumas referências ao podcast, indicando o ponto em que podem ser encontradas as falas equivalentes ao texto.

Apresentação da Lingua Ignota

[01:28] Ilze Zirbel: No século XII, Hildegarda de Bingen produziu uma língua nova, única. Ficou conhecida como Língua Ignota (que em latim significa "idioma desconhecido").

[01:41] Matheus Colares: Aparentemente, a finalidade dessa nova língua era religiosa ou, como algumas pessoas preferem dizer: mística. Não se sabe, até o momento, se alguém, além da sua criadora, estava familiarizada/o com ela.

[01:56] Vinícius Arion: Na elaboração da Língua Ignota, Hildegarda fez uso de um alfabeto de 23 letras (denominadas litterae ignotae).

[02:04] Ilze Zirbel: Ela descreveu parcialmente sua nova a língua em uma obra intitulada Lingua Ignota per simplicem hominem Hildegardem prolata, (“Uma língua desconhecida trazida pela simples humana Hildegarde) que sobreviveu, na sua forma mais completa, em dois manuscritos, ambos datados de cerca de1200 da era cristã.

1 [02:34] Matheus Colares: O Riesencodex (também conhecido como codex de Wiesbaden, por estar guardado na cidade de Wiesbaden) e o Berlin MS (Codex Cheltenhamensis, que está na cidade de Berlim).

[02:48] Vinícius Arion: A Língua de Hildegarda é um dos idiomas mais antigos de que se tem notícias com essa característica, ou seja, um idioma deliberadamente construído por uma única pessoa.

[02:57] Ilze Zirbel: Trata-se de um glossário de 1011 palavras, com seu equivalente em latim, às vezes em alemão.

[03:06] Matheus Colares: Gramaticalmente, parece ser uma re-lexificação parcial do latim, ou seja, uma língua formada a partir (e em substituição) de uma gramática existente. Também existem elementos da língua alemã (particularmente o uso do “z”).

[03:25] Vinícius Arion: Ela renomeia, dá novos nomes, a objetos cotidianos como roupas e peças de vestuário, utensílios de cozinha, material de construção; temperos, ervas e árvores; alimentos, entre outras coisas.

[03:37] Ilze Zirbel: mas também há elementos litúrgicos; profissões e cargos eclesiásticos e militares; relações de parentesco etc.

[03:47] Matheus Colares: O glossário parece seguir uma ordem hierárquica inicial: os primeiros termos são, justamente: Deus e anjos; seguidos por termos para seres humanos e termos para relacionamentos familiares. Em seguida, são descritas as partes do corpo humano e doenças.

[04:08] Vinícius Arion: Depois são feitas as classificações religiosas e sociais: profissões, dias, meses, roupas, utensílios, plantas e alguns pássaros e insetos.

[04:18] Ilze Zirbel: Faltam termos para os mamíferos (com exceção do morcego, listado entre os pássaros, e o grifo que é uma figura fictícia, meio-mamífera, também listada entre os pássaros). Talvez isso seja um indício de que o glossário estava inacabado.

[04:37] Matheus Colares: e também nos leva a repensar a hipótese hierárquica, uma vez que as plantas aparecem antes dos mamíferos.

[04:45] Vinícius Arion: Talvez Hildegarda tenha apenas anotado aquilo com o qual ela já estava mais familiarizada, que eram as plantas. Já que atuava como médica, utilizando- se da medicina natural.

Reflexões de Sarah Higley sobre a Lingua Ignota

[04:58] Ilze Zirbel: Os outros textos de Hildegarda receberam muito mais atenção de pesquisadores, até o momento. Mas no ano de 2007, a pesquisadora Sarah Higley que é uma especialista em língua e literatura vernacular medieval, publicou um livro centrado na Lingua Ignota da Hildegarda. O livro não tem tradução para o português ainda e o título em inglês é ’s Unkown Language. Nesse livro, ela procura fazer um estudo histórico sobre a criação de linguagens imaginárias nos últimos mil e quinhentos anos. É uma espécie de contextualização da Lingua Ignota. Ela argumenta que o estudo das circunstâncias das invenções de linguagens modernas pode nos ajudar a compreender esse tipo de obra ou, em específico, essa obra medieval. O livro contém uma análise histórica dos múltiplos interesses da Hildegarda, o nascimento da Lingua Ignota, uma descrição sobre sua fonologia e estrutura, bem como dá uma visão geral sobre a história posterior das línguas inventadas. Na verdade, esse é o foco central do livro, ela [a autora] está pensando a produção de línguas no geral e usa o material da Hildegarda como base. Então, o material também apresenta extensas discussões sobre a natureza e as funções das invenções das linguagens, incluindo o papel dos valores estéticos na linguagem inventada; e discussões recorrentes sobre inventoras e sobre o significado e as consequências do fato de que a Lingua Ignota foi inventada por uma mulher. Sarah Higley comenta que há algo sobre a Lingua Ignota da Hildegarda que desafia a análise. O objetivo dessa obra [se o pensarmos como um objetivo de uma freira] parece incerto, infundado. Inclusive a sua audácia, não importa o quão divinamente concedida, é desagradável para uma virgem abadessa.

Hildegarda faz repetidas declarações sobre sua própria humildade, sobre o fato de que ela conhecia pouco o latim; isso contribuiu para criar uma imagem dela como uma pessoa muito simples muito humilde, exigindo sempre a ajuda dos seus conselheiros masculinos para registrar o que ela ouvia e via; [essa é] uma possibilidade que não pode ser ignorada, mas que pode mascarar também uma certa ambição, paixão, temperamento e a produção literária dela.

Higley acredita que nós devemos ver a Lingua Ignota da Hildegarda no contexto das suas outras obras também, que são ousadas. Por exemplo: fundar e administrar um mosteiro, escrever livros e cartas, pregar, viajar, aconselhar (inclusive figuras importantes da política e do clero), compor músicas. Essas realizações ousadas abalaram as restrições impostas sobre as mulheres medievais.

O direito de criar um texto, de nomear coisas e pessoas, sempre foi concedido a homens, a exemplo de Adão na Bíblia ou do próprio Crátilo de Platão. Imagine então criar uma língua!. Além disso, é significativo que a Hildegarda fala de si mesma como homo, [termo] que é utilizado para nomear ou significar seres humanos. No ela diz que Deus se dirige a ela dessa maneira: “Ó humana [homo]”. E ela também se refere assim [a si mesma] na rubrica do material da obra dela que foi guardado: o grande Riesencodex1, um códex que tem basicamente todas as obras dela.

Ao inventar uma língua e apresentá-la como se fosse um resumo ou uma enciclopédia de termos em latim e suas traduções, Hildegarda inscreve o gênero feminino na humanidade. Quando ela fala de si mesma como Homo no Scivias, ela navega em um território convencionalmente masculino. O uso adequado da linguagem também é algo que costuma ser estabelecido por lei, comenta Higley. Isso implica que a autoridade para fazer algo desse tipo é atribuída a um homem. Em sociedades patriarcais os homens representam tanto o divino quanto as regras públicas. Também é comum que o homem, ou os homens, é que tenham autoridade para estabelecer as regras e as leis que costumam criticar no campo da linguagem as práticas menos ordenadas dessa linguagem, no caso de um uso popular, infantil ou doméstico.

[10:10] O fato da linguagem e da realidade vivida nos leva à recepção fascinante e perturbadora da criação de uma linguagem pessoal, que é o que Hildegarda faz e, além disso, da função dessa linguagem ou do que ela representa. Higley comenta que fica impressionada com a ignorância generalizada entre os estudiosos sobre a Lingua Ignota da Hildegarda. Ela diz que muita atenção é dada para a invenção de linguagens chamadas políticas ou públicas, como é o caso do , que foi pensado e trabalhado como uma língua franca .

Higley se concentra na invenção de línguas que são consideradas privadas, desde invenções medievais e renascentistas até explorações contemporâneas de linguagens imaginárias, que estão sendo feitas, por exemplo, no universo da internet. Ela diz que a criação da linguagem foi simultaneamente demonizada e divinizada na Idade média.

1 O Riesencodex reúne, em um único material, 481 páginas manuscritas de tamanho de 30 X 45 cm, pesando 15 kg. Por isso, costuma ser apelidado de “Código gigante”. Contém praticamente toda a obra de Hildegarda, com exceção do seu tratado de medicina e ciência natural. Foi organizado pelos seus secretários Volmar de Disibodenberg e Guilbert de Gembloux. Inclui seus textos teológicos, sua correspondência, suas composições musicais, a língua ignota e sua biografia. Está conservado na Biblioteca Estatal de Hesse, na cidade de Wiesbaden, Alemanha.

Parece que esse tipo de prática foi ocultada nos séculos quinze e dezesseis. Dá para imaginar que isso pode ter sido consequência do risco que implicava para quem inventava linguagem num período de Inquisição, de perseguição de coisas consideradas fora do eixo considerado normal ou correto pela Igreja Católica.

Higley também comenta que a linguagem acabou sendo feminizada, politizada e ficcionalizada entre os séculos doze e o século vinte (dá pra imaginar uma caminhada: ela é primeiro feminizada, depois politizada, simultaneamente, e por fim, ficcionalizada) e é recuperada recentemente por um grupo de pessoas que se descobriram online. Essas pessoas têm sido ignoradas também por pesquisadores e estão produzindo linguagens que a Higley chama de artísticas. Ela aproxima essas linguagens do material da Hildegarda, de alguma maneira, exibindo exuberantemente gramáticas e glossários na Internet.

Higley também afirma que, assim como a Hildegarda, há outras mulheres inventoras de linguagem, que obtiveram alguma fama. Elas são mais recentes.

Me pergunto se as mulheres produziram [mais frequentemente] linguagens privadas e secretas. Mesmo que tenhamos de levar em conta o fator escolaridade, uma língua pode ser inventada sem escrita, basta ter memória. Eu pensei na língua Larfia, criada no estado de Santa Catarina por um grupo de meninos há muitos anos atrás na cidade de Herval d'Oeste. Há sobre esse fato um pequeno documentário. Essa língua é criada para cumprir uma função de comunicação um pouco secreta entre o grupo, só entre os meninos, mas também por brincadeira, por prazer. Isso aponta para esse outro lado da criação de uma língua [o prazer de criar].

Higley cita algumas inventoras modernas ou contemporâneas de línguas, como a suíça Helène Smith, que se identificava como médium e tendo recebido uma linguagem de marte, e a inglesa Mary Baker, uma moradora de rua que ficou famosa se fazendo passar por uma princesa, de nome Caraboo, de uma ilha do oceano Indico, e que falava uma língua estranha sem registro escrito. [descobre-se mais tarde que ela havia inventado tudo isso, incluindo a língua]. Essas duas autoras, Helène Smith e Mary Baker, são ambas do século dezenove, mas Higley também cita duas do século vinte: Ursula Kroeber Le Guin e Suzette Haden Elgin. Elas fizeram experimentos linguísticos e ficcionais no século vinte, além desses idiomas notáveis exibidos online por mulheres notáveis, atualmente.

O trabalho da Elgin é particularmente importante, porque a língua que ela inventou, o Láadan, é uma linguagem feminista e utópica criada em mil novecentos e

oitenta e dois, destinada a reparar o que ela chamava de 'essencialismos linguísticos' para determinar se o desenvolvimento de uma linguagem destinada a expressar os pontos de vistas das mulheres poderia moldar algum tipo de cultura. Elgin cria essa linguagem para uma série de ficção científica e a chamou de Native Tongue – ou, língua nativa. Essa língua possui uma gramática e um dicionário publicados em mil novecentos e oitenta e cinco. Ela acreditava na ficção científica feminista como um gênero de literatura, pelo qual seria possível explorar a possibilidade de um mundo sem dominação masculina. Essa língua nativa foi, inclusive, utilizada par um experimento social. Elgin estipulou um prazo de dez anos para terminar esse experimento e a hipótese que tinha era que se ela construísse uma linguagem projetada especificamente para fornecer um mecanismo mais adequado para expressar as percepções das mulheres, nós, mulheres, abraçaríamos essa linguagem e começaríamos a usá-la; ou abraçaríamos essa ideia. [Talvez] não justamente a linguagem dela, mas a ideia de uma linguagem própria para mulheres seria utilizada e construiríamos alguma outra linguagem feminina. Só que depois de dez anos nenhuma dessas duas coisas aconteceu. O Láaden recebeu muito pouca atenção. Como disse Elgin, nem mesmo uma revista feminina a chamou ou perguntou sobre esse idioma ou escreveu sobre ele. Em compensação, outras duas línguas muito famosas construídas por homens [receberam], por exemplo, a língua Klingon, falada pelos fictícios Klingons no universo de Star Trek, é uma língua muito masculina, [falada] em um contexto de guerra, inclusive, e ela teve um tremendo impacto na cultura popular: possui um instituto, gramática, áudios disponíveis no mercado.

A hipótese da Elgin acabou se mostrando inválida e ela concluiu que a língua disponível para nós mulheres, tanto no inglês, no francês, no alemão e no espanhol (as línguas em que ela publicou esse material), são consideradas adequadas por nós mulheres que as vivenciamos.

Essa língua nativa, da escritora de ficção científica Suzette Elgin, faz parte de uma trilogia de uma realidade distópica na qual a emenda constitucional dezenove (dos Estados Unidos) foi revogada. Essa emenda é a que concede os direitos civis às mulheres. Nesse contexto distópico, um grupo de mulheres integrantes de um grupo mundial de linguistas, que facilita a comunicação humana com raças alienígenas, cria um novo idioma, apenas para as mulheres, como um ato de resistência diante dessa nova realidade. A língua [Láden] é escrita nesse contexto.

Higley vê o trabalho de Elgin como a invenção moderna mais proeminente cujo alvo foram mulheres. Do trabalho da Hildegarda, ela comenta que há quem defenda que ela tenha desenvolvido uma espécie de teologia do feminino, fazendo uso de um simbolismo cristão, favorecendo nos seus escritos imagens femininas como a Igreja, a Criação, o Espírito – que em hebraico é feminino. Ainda assim não daria para dizer que ela teria criado uma linguagem ou uma linguística do feminino com a Lingua Ignota. Sua língua foi descoberta tarde no mundo moderno e, ainda por cima, expressa hierarquias de um patriarcado ainda mais forte do que o que nós podemos dizer que vivemos hoje. Higley também pontua que nenhuma estética ou gramática particularmente feminina pode ser verificada em qualquer idioma desses criados especificamente por mulheres e a invenção de linguagens é algo que é constantemente reinventado, seguindo várias escolas de pensamento em vários tempos e épocas.

Outra coisa que achei intrigante é que no tempo da Hildegarda ela não possuía outra inspiração para criação de uma língua, além dos textos bíblicos. Ela foi uma criança que cresceu no monastério e teve acesso a esses textos. Neles ela tem diante de si o exemplo do Gênesis.

[20:00] No Gênesis é Adão que dá nome aos animais – inclusive ele dá nome à própria companheira. Um outro exemplo que [Hildegarda teria tido] dos livros bíblicos é o falar em línguas que acontece no novo testamento no contexto dos Apóstolos.

Hildegarda corria o risco de ser considerada demoníaca ou possessa pelo diabo e não pelo divino, nesse ato criador. Isso não ocorreu. Ela conseguiu criar essa língua nova em um contexto no qual ela já tinha uma certa reputação dentro da estrutura da Igreja para que não vissem isso de uma maneira tão negativa.

Ao estudar Hildegarda e o seu trabalho, Higley comenta que nós estamos diante de um texto que antecede Tolkien em 800 anos. J.L. Tolkien ficou muito famoso com a obra O senhor dos anéis e parece que ele produziu mais do que uma língua pensando nesse mundo conhecido como Terra Media. Eu me lembro, nesse momento, apenas da língua élfica, mas parece que ele se dedicou a produzir mais línguas do que esta. E ele é muito conhecido, muito badalado. Hildegarda fez algo parecido – produziu uma língua – alguns séculos antes que ele.

Hildegarda representa para a Higley a possibilidade de estudar um projeto que é único em meio a uma longa tradição de linguagem que é racional. Para ela, a língua de

Hildegarda pode ser o caso de produção de linguagem por prazer. O prazer da produção de uma linguagem pessoal. A Lingua Ignota da Hildegarda pode representar o prazer de uma mulher diante de um imaginário de criação e renovação, assim como representa também o seu interesse vívido por belos sons, música [etc.] e mostra o seu envolvimento em um esforço intelectual e criativo exclusivamente humano. Um tipo de envolvimento humano que segue existindo ao longo dos séculos.

Higley cita a palavra viriditas usada pela Hildegarda como uma espécie de poder verde da criação de Deus e com o qual ela descreve não só o mundo natural, mas tudo o que é espiritualmente criativo e cheio de vida. Higley se refere à Hildegarda como uma “glossopoísta” (glossopoeist ), [isto é] uma criadora de linguagem.

Impressões gerais sobre a Lingua Ignota

[23:20] Na parte final desse podcast, Vinícius, Matheus e eu, Ilze, vamos procurar fazer um diálogo sobre coisas que lemos e que pensamos que poderiam nos dar pistas sobre as intenções da Hildegarda com a criação e o desenvolvimento de uma nova língua.

[23:41] Vinícius Arion: O primeiro contato que tive com a Lingua Ignota foi esse mês quando eu comecei a estudar um pouco mais sobre as obras da Hildegarda. O que eu posso dizer de imediato é que eu estou achando bastante interessante as coisas que eu estou descobrindo sobre essa língua que ela criou, até porque, como estudo um filósofo da linguagem chamado Ludwig Wittgenstein, posso dizer que a ‘linguagem’ é um assunto que me interessa bastante. Uma das primeiras coisas que eu pensei quando eu comecei a ler sobre a Lingua Ignota da Hildegarda foi a seguinte questão: seria essa Lingua Ignota criada pela Hildegarda uma linguagem privada?

Pensando nessa questão fui reler alguns parágrafos da obra Investigações Filosóficas para ver o que o Wittgenstein diz sobre a questão da linguagem privada. No parágrafo 243, Wittgenstein vai se questionar se seria possível uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, adotar e exprimir suas sensações interiores e seus sentimentos de uma maneira que as palavras dessa linguagem se referissem a coisas que apenas o inventor delas pudesse saber. Ou seja, ele vai se questionar se é possível que uma pessoa construa uma linguagem a qual nenhuma outra pessoa pudesse compreender. Já de imediato, no final desse parágrafo, ele vai responder que uma linguagem desse tipo (uma linguagem privada) não pode existir por uma série de motivos.

[25:00]. Primeiro, porque uma linguagem vai depender de algo que o Wittgenstein vai chamar de um acordo entre o modo de vida humano entre as formas de vida. Ou seja, para que exista uma linguagem é preciso que ela seja comunicável a outros seres humanos. E o que faz com que possamos compreender uma língua desconhecida é justamente esse acordo entre o modo de vida humano. Voltando um pouco no livro, no §206, Wittgenstein vai dar um exemplo, vai dizer o seguinte:

Imagine que você fosse um pesquisador em um país cuja língua lhe fosse inteiramente desconhecida. Em que circunstâncias você diria que as pessoas ali dão ordens, compreendem-nas, seguem-nas, se insurgem contra elas e assim por diante? O modo de agir comum a todos os seres humanos é sistema de referência, por meio do qual interpretamos uma linguagem completamente desconhecida. (Wittgenstein, 1999, p.93) O que é comum aos seres humanos é o modo de agir. Nesse sentido, para que haja um mínimo entendimento entre os seres humanos é preciso que haja uma regularidade entre as palavras e as ações. Porque é justamente essa regularidade que vai ser a base referencial para qualquer comunicação.

Nesse ponto, nós entramos naquilo que Wittgenstein chama “seguir regras”. Para ele, uma regra é definida por uma prática social. Para que a gente possa expressar qualquer forma de comunicação seja dar uma ordem, nomear um objeto ou qualquer coisa, é preciso que a gente siga um conjunto mínimo de regras que irão funcionar como um padrão de correção. Nesse sentido, entender uma regra implica uma espécie de capacidade prática de agir de acordo com a regra (e o aprendizado dessa capacidade se dá através de um ‘treinamento’). Então, voltando à questão: por que não é possível a criação de uma linguagem privada? A resposta é: porque em uma linguagem privada não há esse critério mínimo de correção. Wittgenstein vai dizer que o uso das palavras exige uma justificação que seja compreendida por outra pessoa. É justamente nesse ponto em que ele vai dizer que o próprio ato de nomear algo não é um ato aleatório. Para que nós possamos nomear algo é preciso que tenhamos em mente que muita coisa tem que ser preparada antes na linguagem para que esse simples ato de nomeação tenha uma significação.

Nesse ponto, quando olhamos com mais atenção para a linguagem da Hildegarda, a gente percebe que nesta linguagem, por exemplo, ela criou um alfabeto de 23 letras e que ela renomeou objetos, mas não de uma maneira aleatória, e sim de uma maneira voltada para a comunicação – inclusive, ela tem um dicionário com a tradução das

palavras, o que nos possibilita traduzir suas palavras para outras linguas. Esses critérios por si só já demonstram que a Lingua Ignota não se trata, portanto, de uma linguagem privada no sentido wittgensteiniano do termo. Então, talvez nesse ponto seria interessante a gente entrar em uma outra discussão, que é aquela, por exemplo, proposta por Ferzocco (2014, p.318-9), que é tentar descobrir se a Lingua Ignota da Hildegarda pode ser caracterizada como uma linguagem integralmente desenvolvida ou não. Nesse ponto, acredito que o Matheus possa nos ajudar a compreender melhor o que ele quis dizer com isso.

[24:23] Matheus Colares: Bom, acho que no meu caso, assim como no caso do Vinícius, [i.e.,] como estudante e pesquisador em filosofia da linguagem, a invenção da Lingua Ignota pela Hildegarda traz algumas implicações filosóficas interessantes. Como o próprio Vinícius já adianta a questão de saber se a Lingua Ignota da Hildegarda é uma linguagem “integralmente desenvolvida”, é uma questão problematizada e debatida por algumas/alguns autoras/autores. Como ele menciona, Ferzoco acredita que, pelo fato de a Lingua Ignota ter uma estrutura linguística “incipiente” – basicamente focada em substantivos – dificilmente a gente poderia reconhecer essa língua como uma linguagem integralmente desenvolvida, tomando parâmetro as linguagens naturais (portugês, espanhol, etc.). Mas eu acho que também, de um ponto de vista wittgensteiniano, isso é um ponto a se problematizar, ainda mais, porque no próprio âmbito de estudos sobre Lingua Ignota e sobre línguas inventadas, a resposta e o posicionamento com relação a essa questão determinam um certo foco de interesse por parte das/dos autoras/autores. A gente pode se perguntar, por exemplo, que propriedade ou função [30:00] uma linguagem deveria ter para ser considerada uma linguagem completamente desenvolvida e que tipos de processos mentais seriam necessários para fazer esse uso da linguagem, tal como ela é paradigmaticamente concebida. Esse é um assunto que Wittgenstein também se debruça entre §§ 68-9 das Investigações Filosóficas. Na sua argumentação, ele enfatiza sobretudo como muitos dos parâmetros de correção para o uso linguístico já são satisfeitas em um domínio pré-teórico. No caso, explicações por exemplos, [e.g.,] representam um papel importante nessa demonstração.

Ao que parece, no caso de Hildegarda, criar uma língua já demonstra uma competência pré-teórica muito bem estabelecida, o que nos leva a problematizar essa pergunta sobre o que seria uma linguagem integralmente desenvolvida e a qual referencial

ela deve corresponder, porque, como mostra o Vinícius, já que essa linguagem não pode ser uma linguagem privada, ela já pressupõe várias competências que estão inseridas no domínio de uma linguagem pública.

Em um livro muito importante sobre o tema da Lingua Ignota da Hildegarda denomidado Hildegard’s Unknown Language, Sarah Higley aponta o que me parece ser uma tendência similar em traçar essa distinção entre linguagens publicas e privadas no âmbito dos estudos sobre línguas inventadas. Segundo ela, algumas/alguns autoras/autores parecem manter um interesse um pouco mais focado em linguagens inventadas que eles consideram ser de caráter público, como no caso do Esperanto, pelo fato de que para eles o propósito essencial da linguagem é a comunicação. Eu particularmente acho que de uma maneira bastante próxima ao argumento que a gente esboçou aqui até agora, a Higley assume uma posição mais frutífera na sua investigação, pois ela não analisa as línguas inventadas a partir de uma competência teórica presente ou não em uma linguagem. Mas sim a partir dos objetivos e propósitos que estão em jogo quando a inventora ou o inventor da língua se debruçam sobre o seu próprio projeto.

No caso da Hildegarda, isso também já foi muito debatido – pelo que eu pude perceber com as leituras – de vários pontos de vista, já que basicamente está assentado que essa linguagem não tem o objetivo de substituir outras linguagens vernaculares da época, por exemplo, o latim ou o dialeto alemão que se falava. Uma primeira suposição que veio à mente ao refletir sobre os motivos da Hildegarda em inventar a Lingua Ignota foi, também num espírito wittgensteiniano, o pensamento de que talvez diferentes assuntos necessitem de diferentes modos de expressão para serem abordados e talvez no caso a Hildegarda tenha achado a língua vernacular da época insuficiente para tratar de aspectos místicos da realidade tal ela experienciava.

De todo modo, essa explicação também é um pouco problemática no âmbito dos estudos da Hildegarda, na medida em que ela falha em acomodar alguns elementos da Lingua Ignota. Essas questões serão elaboradas de maneira mais aprofundada a seguir pela Ilze, tentando dialogar com outras possíveis explicações.

[34:33] Ilze Zirbel: Há muita discussão sobre o que levou a Hildegarda a produzir esta língua. Não temos como saber se ela não deixou isso registrado, ainda assim eu vou arriscar uma interpretação própria das coisas que eu li sobre ela e do que penso a respeito. Uma das minhas suspeitas é que Hildegarda estava criando uma linguagem que seria utilizada no monastério por ela e pelas outras mulheres que ali viviam. Mas mais do que

ser uma língua com função de comunicação apenas, eu acredito que era uma língua que, inicialmente, pelo menos, deveria ter uma função para além da mera comunicação. Ela deveria ter uma função também de conexão com o que nós podemos chamar de espiritual, de místico, de divino. Deveria ser uma experiência linguística sonora de transcendência, de estar no mundo material, concreto, natural, mas de alguma maneira também estar fora dele, dentro de uma outra realidade que é essa realidade que nós costumamos chamar de mística, espiritual ou transcendental. Acredito que era um experimento a ser vivenciado por elas, se não o tempo inteiro, em momentos específicos, como uma língua divina. como um experimento de transcendência. Acredito que ala foi marcada pela experiência com o latim, com a questão litúrgica das missas, que eram pronunciadas em um outro som, em uma outra linguagem, uma linguagem típica[mente] voltada para esse momento considerado sacro, de experiência com o divino. Acredito que Hildegarda trabalhava nesse sentido de produção de uma experiência através de uma linguagem outra que não a linguagem do cotidiano. Mas eu também desconfio que, em um segundo momento – inicialmente a linguagem tinha essa intenção – ela passou a ampliar essa língua, criar mais vocábulos, vocábulos para inúmeras coisas incluindo plantas, insetos, armamento, os tipos de terra que existiam em um feudo, os utensílios de cozinha, os detalhes das roupas; ela começa a criar todo um vocabulário. Por isso, desconfio que há um segundo momento. O primeiro momento teria a intenção de produção de algo transcendental, de conexão, através de uma língua intermediária diferente da cotidiana, com o mundo considerado sobrenatural e divino. O segundo momento é dedicado a ampliar, produzir, registrar, criar novos nomes para todas as coisas. Mesmo que ela esteja ainda pensando em criar todo um universo com essa linguagem, com essa característica intermediaria entre o terreno e o celeste, consigo imaginar que esse momento de trabalho, de concentração, também era um momento prazeroso, de criatividade. E a língua foi se estendendo e adquirindo mais vocábulos com o tempo.

Higley toca [nesse assunto] quando busca compreender o que significa produzir uma nova língua contemporaneamente, produzir uma língua fictional com outras pessoas ou [com] o mesmo grupo de pessoas que se reúnem online pra criar. É uma momento criativo, humano, de prazer. Então, eu acho que uma coisa não exclui a outra, que Hildegarda experimentou inicialmente o desejo e tinha a intenção de produzir uma linguagem intermediária entre o terrestre e o divino, mas que o empreendimento a colocou num segundo momento [40:00] de produção de uma língua de uma maneira focada,

racionalmente focada, e como uma experiência de prazer que talvez ela mesma pode não ter nomeado desta maneira, não ter observado a si mesma nesse sentido; mas que é uma experiência bastante rica e interessante, a qual ela se dedicou. Penso também nessa primeira parte do experimento prazeroso, mas ou mesmo tempo criativo e de conexão com outro tipo de realidade. As obras musicais dela também fazem, para mim, essa relação. Ela tem isso na música e nos sons. A música e a linguagem talvez ocupem o mesmo lugar de abstração, de transcendência. Fazem parte de uma realidade de experimento e de experiência, que, para ela, vai ser mística e que, para muitos de nós que temos uma experiencia com o belo na nossa relação com a música, pode ser usada para imaginar ou experimentar algo semelhante. Essa experiência com o som, que Hildegarda pratica e valoriza, está na música e eu posso imaginar que também está na Língua Ignota. Ambas como como experimento de transcendência, criatividade e prazer.

Referências bibliográficas

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