Alberto Breccia: Entre O Sistema E Os Quadrinhos De Autor (1958-1969)
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ALBERTO BRECCIA: ENTRE O SISTEMA E OS QUADRINHOS DE AUTOR (1958-1969) Sebastian Gago Lucas Rafael Berone RESUMO Em meados dos anos cinquenta do século XX, teve lugar um processo de inovação no campo das histórias em quadrinhos (HQs) da Argentina que, sem afastar-se do sistema industrial de produção cultural nem dos gêneros narrativos hegemônicos, deu o pontapé inicial de uma mudança em diversos aspectos tais como a gráfica, a narrativa e o tratamento de novas temáticas. Esse tipo de produção quadrinhística, cujo pioneiro foi o roteirista Héctor Oesterheld (Buenos Aires, 1919- desaparecido em 1977), foi possível graças a uma situação de relativa autonomia criativa. O propósito deste artigo é o de analisar de que maneira a parceria entre Oesterheld e Alberto Breccia (Montevideu, 1919 – Buenos Aires, 1993) construiu novas formas de produção cultural e marcou pontos de referência inevitáveis com respeito a: 1) a transformação da linguagem dos quadrinhos nas suas componentes retóricas, temáticas e enunciativas (Steimberg, 2005); 2) as renovações e rupturas verificadas nos âmbitos produtivos; 3) a conformação de novos públicos (Scolari, 1998:13); 4) o surgimento de novos critérios de consagração específica no campo das HQs. Desde uma perspectiva que combina a sociologia e o estudo específico da linguagem das HQs, esta pesquisa visa analisar um corpus de quatro séries em quadrinhos criadas por Alberto Breccia e Oesterheld no período compreendido entre 1958 e 1969: Sherlock Time (1958-1959), Mort Cinder (1962-1964), La vida del Che (1968) e El Eternauta (segunda versão, 1969). Pesquisamos o corpus focando em quatro dimensões centrais: 1) O lugar que os autores mencionados ocupavam na indústria editorial das HQs durante aquele período, atravessado por uma forte crise econômica e criativa; 2) O rol de Alberto Breccia na construção do cânone dos quadrinhos; 3) a relação entre quadrinhos e público estabelecida pelos autores no período indicado; 4) a relação entre quadrinhos e mídia construída ao longo da história editorial dos mencionados títulos de HQs. PALAVRAS-CHAVE: Breccia – cânone – quadrinhos INTRODUÇÃO Neste artigo propomos dar continuidade a uma linha de estudos que foca-se principalmente na reconstrução de um processo emergente de produção cultural que ocorreu no campo das histórias em quadrinhos (HQs) da Argentina entre o final dos anos cinquenta e os sessenta de século XX. Esse processo produziu o tempo daquele campo cultural, o qual tinha entrado em uma crise econômica, comercial e criativa. Aquela situação fazia parte de uma crise geral que se expandiu para toda a sociedade argentina, inclusive no campo social, econômico e produtivo. Dentro desse contexto, um processo de renovação estética e narrativa teve lugar no campo das HQs, a partir de uma geração de criadores dentro da qual se destaca a parceria entre o desenhista Alberto Breccia e o roteirista Héctor Oesterheld. Neste artigo, visamos pesquisar a dupla criativa formada entre ambos os autores nomeados. Alberto Breccia e Oesterheld expressaram a evolução experimentada pela linguagem das HQs nos anos sessenta, sentando as bases de um novo paradigma de produção que se espalhou além das fronteiras nacionais: os quadrinhos de autor. Trata-se de um tipo de produção de HQs orientada por uma relativa autonomia criativa, que sem se afastar do esquema da indústria cultural nem dos gêneros dominantes da época, inovou em relação aos estilos gráficos, a narrativa e o tratamento de novas temáticas. A nossa estratégia expositiva é a seguinte: 1) Identificamos uma série de propriedades do contexto histórico e cultural no qual tiveram lugar processos sociais de inovação cultural no campo das HQs argentinas; 2) Fazemos um esboço da trajetória de Alberto Breccia no campo das HQ da Argentina, e a relação do quadrinhista com a indústria editorial profissional da época; 3) Indicamos algumas hipóteses sobre o rol desempenhado pelo citado desenhista na produção do cânone mundial dos quadrinhos; 4) Pesquisamos a relação entre quadrinhos e públicos no marco de quatro experiências de parceria criativa entre Alberto Breccia e Héctor Oesterheld entre 1958 e 1969; 5) Analisamos a díspar trajetória editorial das citadas obras no momento das suas respectivas publicações originais, tendo em conta as características de cada mídia onde essas HQs foram publicadas; 6) Concluímos com um exercício de integração das dimensões analíticas trabalhadas, com o objetivo de valorar o rol que Alberto Breccia cumpriu no surgimento de uma forma inovadora de produção de HQs conhecida como cómic de autor. 1) INOVAÇÃO CULTURAL NAS HQs ARGENTINAS DOS ANOS SESSENTA Em meados do século XX, as HQs conformavam uma importante indústria cultural na Argentina e outros países americanos e europeus. A partir daquele momento, os quadrinhos fazem parte de um poderoso sistema de entretenimento que inclui o cinema, o rádio, a imprensa e as revistas de variedades, que se mantém até hoje. Na época, a metade das vendas de revistas na Argentina correspondia à categoria de narrativas sequenciais. As HQs ainda não eram valoradas como um produto cultural digno de reconhecimento artístico e legitimidade social, em contraste com a literatura. Em consequência, os quadrinhistas não eram apreciados como artistas e os seus direitos autorais não eram reconhecidos pelos editores. As empresas editoriais tratavam os autores como meros empregados de fábrica que trabalhavam na linha de montagem sob parâmetros e gêneros dominantes. Esse estado de situação existente em meados de século XX começou a ser questionado através de dois processos distantes no tempo, mas relacionados por vários fatores: 1) O surgimento do projeto editorial de Héctor Germán Oesterheld, Editorial Frontera (1957-1961). Através da gestão dessa empresa editora, o roteirista publicou HQs sob um critério original e logrou introduzir um conjunto de inovações estéticas, temáticas e narrativas com respeito à oferta preexistente no mercado. Oesterheld criou roteiros de quadrinhos com soluções e recursos inéditos até o momento e que provinham do campo literário. A posição dupla de autor/editor que Oesterheld ocupou no período 1957-1961 garantiu-lhe uma margem de autonomia para sentar novas regras de produção e novos critérios de reconhecimento de obras e autores, além do índice de vendas. A posição dupla de autor/editor não era novidade no campo das narrativas gráficas argentina da época, pois já existiam experiências editoriais protagonizadas por humoristas gráficos tais como Dante Quinterno, Divito e o pioneiro de humor de autor, Landrú. 2) Já em meados dos anos sessenta, as HQs começaram a ingressar no campo da arte e passaram a ser objeto de reflexão crítica e teórica. Houve exposições e eventos dedicados ao universo dos quadrinhos, surgiram instituições de ensino de desenho e escritura da Nona Arte, e apareceram publicações críticas especializadas nesta linguagem estética e narrativa. Esse processo alcançou um ponto de inflexão na “1° Bienal Mundial de la Historieta”, que teve lugar em Buenos Aires em 1968, organizada pelo Instituto Di Tella e a Escuela Panamericana de Arte. Nesse evento, precisamente, os quadrinhistas Alberto Breccia e Oesterheld ocuparam um lugar de destaque como palestrantes convidados; ao mesmo tempo em que a produção quadrinhística mais importante dos sessenta (Mort Cinder) era republicada na revista especializada L-D (nº 3, janeiro de 1969). Concorrentemente com aquele processo de legitimação cultural dos quadrinhos, a década compreendida entre 1955 e 1965 foi testemunha de uma redução do mercado das HQs na Argentina. Uma dúzia de casas editoras, algumas mais importantes do que outras, desapareceram. A crise económica do país, a má gestão dos editores e o auge da televisão como mídia fornecedora de entretenimento, são importantes fatores explicativos daquela crise. Entre essas editoras encontrava-se Abril (onde Oesterheld iniciou sua carreira de quadrinhista), e a já mencionada Editorial Frontera, criada e dirigida pelo próprio autor de El Eternauta. Só a velha Editorial Columba, em andamento desde 1928, conseguiu sobreviver e se tornou líder no mercado argentino. Columba impulsou uma renovação no campo dos quadrinhos de aventura clássicos que teria ao então jovem roteirista Robin Wood –criador da série Nippur de Lagash- como seu exponente principal. Em uma linha diferente à do relançamento da editora Columba, surgiria na época um novo tipo de HQs que tomava em consideração as transformações sociais e políticas ocorridas num contexto mundial em convulsão. Foi o próprio Oesterheld que tomou nota da necessidade de expressar através dos seus roteiros um pensamento político e considerar com seriedade às HQs como ferramenta pedagógica e política. As preocupações e interesses do autor giravam em torno da relevância de distintos processos históricos tais como a Revolução Cubana e a sua influência na América, o Maio Francês, a proliferação de movimentos sociais, políticos e armados de resistência contra as ditaduras sul-americanas, o envolvimento político, económico e militar dos Estados Unidos na região, entre outros fatos relevantes. Ao mesmo tempo, a trajetória de vida de Oesterheld experimentava uma progressiva radicalização ideológica. É possível reconhecer essa evolução do pensamento político do autor nos argumentos e estéticas de uma parte da sua obra produzida desde meados dos sessenta, dentro da qual nos interessam as séries de HQs realizadas em parceria com Alberto Breccia. 2. BRECCIA: UM ARTISTA NO LIMITE DO SISTEMA INDUSTRIAL Alberto Breccia foi um exponente