ALBERTO BRECCIA: ENTRE O SISTEMA E OS QUADRINHOS DE AUTOR (1958-1969)

Sebastian Gago Lucas Rafael Berone

RESUMO

Em meados dos anos cinquenta do século XX, teve lugar um processo de inovação no campo das histórias em quadrinhos (HQs) da que, sem afastar-se do sistema industrial de produção cultural nem dos gêneros narrativos hegemônicos, deu o pontapé inicial de uma mudança em diversos aspectos tais como a gráfica, a narrativa e o tratamento de novas temáticas. Esse tipo de produção quadrinhística, cujo pioneiro foi o roteirista Héctor Oesterheld (, 1919- desaparecido em 1977), foi possível graças a uma situação de relativa autonomia criativa. O propósito deste artigo é o de analisar de que maneira a parceria entre Oesterheld e Alberto Breccia (Montevideu, 1919 – Buenos Aires, 1993) construiu novas formas de produção cultural e marcou pontos de referência inevitáveis com respeito a: 1) a transformação da linguagem dos quadrinhos nas suas componentes retóricas, temáticas e enunciativas (Steimberg, 2005); 2) as renovações e rupturas verificadas nos âmbitos produtivos; 3) a conformação de novos públicos (Scolari, 1998:13); 4) o surgimento de novos critérios de consagração específica no campo das HQs. Desde uma perspectiva que combina a sociologia e o estudo específico da linguagem das HQs, esta pesquisa visa analisar um corpus de quatro séries em quadrinhos criadas por Alberto Breccia e Oesterheld no período compreendido entre 1958 e 1969: Sherlock Time (1958-1959), Mort Cinder (1962-1964), La vida del Che (1968) e El Eternauta (segunda versão, 1969). Pesquisamos o corpus focando em quatro dimensões centrais: 1) O lugar que os autores mencionados ocupavam na indústria editorial das HQs durante aquele período, atravessado por uma forte crise econômica e criativa; 2) O rol de Alberto Breccia na construção do cânone dos quadrinhos; 3) a relação entre quadrinhos e público estabelecida pelos autores no período indicado; 4) a relação entre quadrinhos e mídia construída ao longo da história editorial dos mencionados títulos de HQs.

PALAVRAS-CHAVE: Breccia – cânone – quadrinhos

INTRODUÇÃO

Neste artigo propomos dar continuidade a uma linha de estudos que foca-se principalmente na reconstrução de um processo emergente de produção cultural que ocorreu no campo das histórias em quadrinhos (HQs) da Argentina entre o final dos anos cinquenta e os sessenta de século XX. Esse processo produziu o tempo daquele campo cultural, o qual tinha entrado em uma crise econômica, comercial e criativa. Aquela situação fazia parte de

uma crise geral que se expandiu para toda a sociedade argentina, inclusive no campo social, econômico e produtivo. Dentro desse contexto, um processo de renovação estética e narrativa teve lugar no campo das HQs, a partir de uma geração de criadores dentro da qual se destaca a parceria entre o desenhista Alberto Breccia e o roteirista Héctor Oesterheld. Neste artigo, visamos pesquisar a dupla criativa formada entre ambos os autores nomeados. Alberto Breccia e Oesterheld expressaram a evolução experimentada pela linguagem das HQs nos anos sessenta, sentando as bases de um novo paradigma de produção que se espalhou além das fronteiras nacionais: os quadrinhos de autor. Trata-se de um tipo de produção de HQs orientada por uma relativa autonomia criativa, que sem se afastar do esquema da indústria cultural nem dos gêneros dominantes da época, inovou em relação aos estilos gráficos, a narrativa e o tratamento de novas temáticas. A nossa estratégia expositiva é a seguinte: 1) Identificamos uma série de propriedades do contexto histórico e cultural no qual tiveram lugar processos sociais de inovação cultural no campo das HQs ; 2) Fazemos um esboço da trajetória de Alberto Breccia no campo das HQ da Argentina, e a relação do quadrinhista com a indústria editorial profissional da época; 3) Indicamos algumas hipóteses sobre o rol desempenhado pelo citado desenhista na produção do cânone mundial dos quadrinhos; 4) Pesquisamos a relação entre quadrinhos e públicos no marco de quatro experiências de parceria criativa entre Alberto Breccia e Héctor Oesterheld entre 1958 e 1969; 5) Analisamos a díspar trajetória editorial das citadas obras no momento das suas respectivas publicações originais, tendo em conta as características de cada mídia onde essas HQs foram publicadas; 6) Concluímos com um exercício de integração das dimensões analíticas trabalhadas, com o objetivo de valorar o rol que Alberto Breccia cumpriu no surgimento de uma forma inovadora de produção de HQs conhecida como cómic de autor.

1) INOVAÇÃO CULTURAL NAS HQs ARGENTINAS DOS ANOS SESSENTA

Em meados do século XX, as HQs conformavam uma importante indústria cultural na Argentina e outros países americanos e europeus. A partir daquele momento, os quadrinhos fazem parte de um poderoso sistema de entretenimento que inclui o cinema, o rádio, a imprensa e as revistas de variedades, que se mantém até hoje. Na época, a metade das vendas de revistas na Argentina correspondia à categoria de narrativas sequenciais. As HQs ainda não eram valoradas como um produto cultural digno de reconhecimento artístico e legitimidade social, em contraste com a literatura. Em consequência, os quadrinhistas não eram apreciados como artistas e os seus direitos autorais não eram reconhecidos pelos editores. As empresas editoriais tratavam os autores como meros empregados de fábrica que trabalhavam na linha de montagem sob parâmetros e gêneros dominantes. Esse estado de situação existente em meados de século XX começou a ser questionado através de dois processos distantes no tempo, mas relacionados por vários fatores: 1) O surgimento do projeto editorial de Héctor Germán Oesterheld, Editorial Frontera (1957-1961). Através da gestão dessa empresa editora, o roteirista publicou HQs sob um critério original e logrou introduzir um conjunto de inovações estéticas, temáticas e narrativas com respeito à oferta preexistente no mercado. Oesterheld criou roteiros de quadrinhos com soluções e recursos inéditos até o momento e que provinham do campo literário. A posição dupla de autor/editor que Oesterheld ocupou no período 1957-1961 garantiu-lhe uma margem de autonomia para sentar novas regras de produção e novos critérios de reconhecimento de obras e autores, além do índice de vendas. A posição dupla de autor/editor não era novidade no campo das narrativas gráficas argentina da época, pois já existiam experiências editoriais protagonizadas por humoristas gráficos tais como Dante Quinterno, Divito e o pioneiro de humor de autor, Landrú. 2) Já em meados dos anos sessenta, as HQs começaram a ingressar no campo da arte e passaram a ser objeto de reflexão crítica e teórica. Houve exposições e eventos dedicados ao universo dos quadrinhos, surgiram instituições de ensino de desenho e escritura da Nona Arte, e apareceram publicações críticas especializadas nesta linguagem estética e narrativa. Esse processo alcançou um ponto de inflexão na “1° Bienal Mundial de la Historieta”, que

teve lugar em Buenos Aires em 1968, organizada pelo Instituto Di Tella e a Escuela Panamericana de Arte. Nesse evento, precisamente, os quadrinhistas Alberto Breccia e Oesterheld ocuparam um lugar de destaque como palestrantes convidados; ao mesmo tempo em que a produção quadrinhística mais importante dos sessenta (Mort Cinder) era republicada na revista especializada L-D (nº 3, janeiro de 1969). Concorrentemente com aquele processo de legitimação cultural dos quadrinhos, a década compreendida entre 1955 e 1965 foi testemunha de uma redução do mercado das HQs na Argentina. Uma dúzia de casas editoras, algumas mais importantes do que outras, desapareceram. A crise económica do país, a má gestão dos editores e o auge da televisão como mídia fornecedora de entretenimento, são importantes fatores explicativos daquela crise. Entre essas editoras encontrava-se Abril (onde Oesterheld iniciou sua carreira de quadrinhista), e a já mencionada Editorial Frontera, criada e dirigida pelo próprio autor de El Eternauta. Só a velha Editorial Columba, em andamento desde 1928, conseguiu sobreviver e se tornou líder no mercado argentino. Columba impulsou uma renovação no campo dos quadrinhos de aventura clássicos que teria ao então jovem roteirista Robin Wood –criador da série Nippur de Lagash- como seu exponente principal. Em uma linha diferente à do relançamento da editora Columba, surgiria na época um novo tipo de HQs que tomava em consideração as transformações sociais e políticas ocorridas num contexto mundial em convulsão. Foi o próprio Oesterheld que tomou nota da necessidade de expressar através dos seus roteiros um pensamento político e considerar com seriedade às HQs como ferramenta pedagógica e política. As preocupações e interesses do autor giravam em torno da relevância de distintos processos históricos tais como a Revolução Cubana e a sua influência na América, o Maio Francês, a proliferação de movimentos sociais, políticos e armados de resistência contra as ditaduras sul-americanas, o envolvimento político, económico e militar dos Estados Unidos na região, entre outros fatos relevantes. Ao mesmo tempo, a trajetória de vida de Oesterheld experimentava uma progressiva radicalização ideológica. É possível reconhecer essa evolução do pensamento político do autor nos argumentos e estéticas de uma parte da sua obra produzida desde

meados dos sessenta, dentro da qual nos interessam as séries de HQs realizadas em parceria com Alberto Breccia.

2. BRECCIA: UM ARTISTA NO LIMITE DO SISTEMA INDUSTRIAL

Alberto Breccia foi um exponente da inovação das HQs em relação à inclusão de novas temáticas e a evolução de aspectos gráficos e narrativos. Com meio século de trajetória, o quadrinhista nascido em Montevidéu trabalhou nas editoras de HQs mais importantes da Argentina e também em empresas europeias, em particular a partir da crise no campo argentino dos anos sessenta. Vamos analisar em cinco pontos o carácter marginal da trajetória e os posicionamentos de Breccia em um período fundamental da era industrial das HQs em Argentina: a) Em primeiro lugar, para Alberto Breccia, as HQs nunca foram um fim em termos profissionais, mas um meio. Depois de ganhar a vida como empregado de um frigorífico nos tempos de juventude começou a trabalhar na indústria cultural como um meio de sobrevivência. Após uns primeiros anos em que trabalhou como desenhista humorístico, Breccia começaria a fazer “historieta seria”, passando também pelo desenho publicitário. O seu trabalho tinha uma qualidade digna das artes plásticas, embora o autor nunca tenha exibido as suas obras em exposições ou salões de artes visuais. Em síntese, Breccia nunca ganhou dinheiro como artista, mas como assalariado da indústria cultural. b) O que define a Alberto Breccia como um artista é o fato de que, mesmo sendo desenhista de quadrinhos, nunca se repetiu nem fez cópia de si mesmo, senão que procurou experimentação e novas buscas em cada um dos seus trabalhos. A tensão entre arte e ofício atravessou a trajetória deste quadrinhista. No ano 1973, em uma entrevista com a revista espanhola ¡Bang!, Breccia explicou como a partir da série Sherlock Time, escrita por Héctor Oesterheld, ele iniciou um caminho de inovação constante. Breccia definiu esse processo como uma inovação de conceito, mas não de estilo nem tratamento:

O estilo é relativo. Eu não acredito nos estilos, os estilos são estagnação. Aquilo foi uma mudança de conceito e acho que foi muito importante, porque marca uma mudança muito grande para mim. É preciso ter em conta o difícil que é mover-se no âmbito da arte, sobretudo depois de muitos anos de ofício (Breccia, 1973, p.5).1

c) Alberto Breccia afirmou, em várias oportunidades, que não gostava das histórias em quadrinhos, e que chegou a trabalhar nesse campo cultural como uma forma de ganhar a vida. Ele definia-se a si mesmo como um leitor onívoro, que lia de tudo, embora não gostava de ler quadrinhos porque achava neles repetição nos argumentos e mediocridade criativa. Lamentava que “o drama de todo desenhista é ter que ganhar a vida desenhando (…) porque o desenho acaba virando ofício, uma coisa na qual o desenho nunca deveria se transformar” (Breccia, 1973:7, traduzida do original em espanhol). Por conseguinte, para realizar adaptações literárias, Alberto Breccia buscava escritores de literatura, porque, segundo ele dizia, os literatos possuem melhores condições para construir histórias do que os próprios roteiristas de quadrinhos. Aliás, Breccia não considerava ao seu parceiro Oesterheld um roteirista de quadrinhos, senão um “um contista excepcional” (ibíd.). d) Alberto Breccia foi um autor expressionista, na medida em que suas HQs perdem narração literária e ganham em qualidade estética e expressiva. A obra madura do autor, realizada desde a sua experiência na Editorial Frontera, produz um efeito estético associado ao estranhamento da representação. Os trabalhos de Breccia foram os primeiros que lograram gerar confusão e distância entre o desenho e o objeto representado. O autor produziu uma forma artística pouco comum naquele estado histórico do campo de produção de HQs de aventuras na Argentina e no mundo inteiro, dominado pelo estilo visual realista e a pura informatividade (o estilo ilustração). O desenhista de Mort Cinder conseguiu produzir novos efeitos estéticos introduzindo novas técnicas de desenho, tais como gravura, colagem, tramas mecânicas e linhas com efeitos ópticos. Breccia foi um ator mais plástico do que gráfico, e esse rasgo experimental da sua estética torna-se notório quando comparamos a versão original de El Eternauta, marcada pelo classicismo de Francisco

1 Por rações de espaço, optamos por não transcrever a citação original em espanhol, publicada no número 10 da revista espanhola Bang!, em 1973.

Solano López, e a remake de 1969, cujo desenho se afasta das leis e convenções da figuração realista. Embora ambas as obras possuam alta qualidade artística, só a versão desenhada por Breccia quebra o pacto de representação visual. Suas composições, mesmo que tivessem referências visuais no mundo real, exigem uma maior atenção na leitura e até podem prestar-se a diferentes interpretações. É também por isto que consideramos à arte brecciana capaz de expressar-se com metáforas e formas espectrais que permitem fazer visível o invisível ou aquilo impossível de ser visibilizado por meios verbais. e) As obras da parceria entre Alberto Breccia e Héctor Oesterheld estiveram marcadas pelos critérios editoriais e as obsessões, temas e o estilo narrativo do roteirista portenho. Entre as inovações que Oesterheld introduziu no campo de produção de quadrinhos (que tiveram na experiência de Editorial Frontera sua máxima expressão), podemos distinguir: 1) a discussão filosófica sobre a tensão entre autonomia e dependência no comportamento humano; 2) a memória do passado, como um componente da identidade dos personagens e a sociedade em geral; 3) o protagonismo grupal substitui o heroísmo individual, enquanto que os personagens são caracterizados como pessoas comuns antes que heróis com poderes –ou melhor, se tornam heróis durante a própria aventura- (Sasturain, 1995); 4) uma reconsideração da dicotomia entre o bem e o mal, através de mecanismos narrativos de equivocidade ou ambiguidade moral, contrários ao maniqueísmo moral próprio do modelo hegemónico dos quadrinhos estadunidenses da época; 5) o desenvolvimento científico e tecnológico da época, expressado cabalmente na carreira espacial entre as potencias mundiais União Soviética e os Estados Unidos, a escalada armamentista e o risco da atividade atômica e de uma possível guerra nuclear, são tópicos que se tornaram assuntos de importância para a gente comum (Berone, 2014). O expressionismo e a constante experimentação plástica de Alberto Breccia, conjugado com o giro narrativo e poético que Oesterheld conferiu ao mundo das histórias em quadrinhos, configuraram os fundamentos do fenômeno que uma década depois seria chamado como quadrinhos de autor.

3. CONSTRUINDO O CÂNONE: ESTRATÉGIAS E POSICIONAMENTOS

No início dos anos 70, Alberto Breccia viajou para a Europa com a finalidade de vender os seus trabalhos. O desenhista criado em Mataderos, um bairro da cidade de Buenos Aires, não estava passando por uma boa situação económica e pessoal. Fez contatos com casas editoriais e jornalistas especializados na Espanha e na Itália, sendo entrevistado por vários meios de comunicação. O resultado dessa experiência foi de importância para Breccia, já que começou a ser valorado como um grande artista das HQs. Graças à sua intervenção no âmbito dos quadrinhos da Europa, Breccia ganhou um reconhecimento específico do qual não dispunha antes na Argentina: um tipo de reconhecimento procedente do incipiente campo da crítica especializada em quadrinhos. Aliás, o sucesso comercial e económico gerado pelas viagens de Breccia pela Europa contribuíram à melhora na sua posição dentro do campo das HQs. O autor conseguiu não só que suas criações sejam reeditadas e vendidas no mercado europeu, senão também o reconhecimento internacional da sua obra, em particular aqueles quadrinhos criados em parceria com Oesterheld. No final dos anos sessenta, os quadrinhos inseriram-se como objeto de exibição no mundo das artes visuais e como objeto de reflexão teórica e de valoração crítica. Esse ganho de capital simbólico redefiniu parcialmente os critérios de consagração de títulos e autores no meio local. De fato, já nos anos 70, esse capital simbólico autoral derivado dos veredictos da crítica especializada e dos setores intelectuais consolidou-se como novo critério de consagração. Dessa maneira, o poder simbólico estético entraria em tensão permanente com o sucesso comercial dentro dos critérios de legitimação dos quadrinhos e dos seus autores. A título de exemplo, pode-se dizer que os roteiristas e escritores argentinos e Guillermo Saccomanno (1980), desde o trabalho de historiadores e críticos de quadrinhos deram valor ao poder de consagração do especialista para aplicar veredictos favoráveis ou desfavoráveis a títulos e criadores de quadrinhos.

4. RELAÇÃO COM OS LEITORES: BRECCIA E OESTERHELD NOMOTETAS

Nas experiências de coautoria que desenvolveram no período 1958-1969, Alberto Breccia e Héctor Oesterheld inovaram na maneira de contar histórias, os temas tratados, a construção psicológica dos personagens e da figura do herói, e a estética gráfica. As HQs desta parceria criativa distinguiram-se de outras produções, especialmente devido à gravidade e a seriedade com as quais os autores tratavam alguns temas. Desde sua posição de editor durante finais dos anos cinquenta, Oesterheld contava com certa margem de autonomia na hora de planificar e executar novas propostas estéticas e narrativas. Desde um primeiro momento, o roteirista que alguma vez quis ser escritor defendeu sempre “as histórias em quadrinhos boas”, os quadrinhos de “boa qualidade” que não subestimam o público, estabelecendo una distinção a respeito da oferta da indústria editorial de histórias em quadrinhos da época. O autor expressou o seu posicionamento através de um manifesto artístico publicado na sua própria revista semanal Hora Cero, e posteriormente em numerosas entrevistas ou depoimentos públicos. Alberto Breccia avançou também nessa direção que consistia em tornar-se um nomoteta (Bourdieu, 1995: 98-101). Assim como Baudelaire propôs instituir “a anomia que é o nomos desse mundo paradoxal que será o campo literário” (ibíd.) da França do século XIX, Breccia procurou construir novas formas de fazer quadrinhos sem pensar tanto em satisfazer uma demanda preexistente e questionando os cânones do sistema da indústria cultural. Desde outra posição na estrutura do campo das HQs, Breccia (que sempre foi um desenhista de quadrinhos sem tornar-se editor como Oesterheld) empreendeu buscas de novas fórmulas apoiando-se inclusive no uso de novos materiais de trabalho, a partir do conceito de experimentação constante e não tanto de um estilo em particular. Por conseguinte, tanto Breccia quanto o seu parceiro Oesterheld podem ser considerados nomotetas ou artistas de vanguarda no seu próprio campo de produção cultural. Os mencionados quadrinhistas moldaram o corpus de obras que ocupa nossa atenção. Nossa hipótese principal é que esse conjunto de produções implicou um reposicionamento do sistema quadrinhístico no contexto da indústria cultural, e forjou as bases dos quadrinhos de autor. Séries como Sherlock Time (1958) e Mort Cinder (1964)

conformaram uma oferta cultural que diferia substancialmente da convencional, e que antecipou e depois coincidiu com um triple movimento mundial produzido no campo dos quadrinhos em meados dos anos sessenta. Aquele movimento emergente foi liderado pelo comix underground norte-americano, o modelo de publicação para adultos impulsado pelo editor francês Eric Losfeld, e o gekiga, um gênero de mangá para adultos cujo referente principal foi o autor japonês Sanpei Shirato (Pons, 2017)2. Embora que o comic adulto contasse com várias fontes de origem histórica, Alberto Breccia e Héctor Oesterheld prefiguraram as características centrais do gênero uma década antes da sua proliferação nos principais mercados mundiais do meio.

5. RELAÇÃO QUADRINHOS/MÍDIA: AS PUBLICAÇÕES

A trajetória editorial dos títulos criados pela parceria entre Alberto Breccia e Oesterheld é díspar e complexa, o que nos permite pensar no carácter marginal dessas produções. Duas das quatro HQs que temos selecionado para sua consideração neste trabalho não foram originalmente publicadas em revistas em quadrinhos. Daremos uma olhada aos casos ordenados cronologicamente. 1) Sherlock Time (1958-1959), série de ficção científica publicada no Suplemento Semanal Hora Cero, da Editorial Frontera, dirigida pelo próprio Oesterheld. A obra sentou as bases da evolução expressionista na estética gráfica de Alberto Breccia. 2) Mort Cinder (1962-1964), uma ficção científica com elementos do gênero terror, foi publicada em Misterix, revista semanal que tinha sido absorbida pela Editorial Yago. Na época, a Editorial Abril, além de outras empresas como Editorial Frontera (dirigida por Oesterheld), desapareceram por causa da crise económica e a administração errada dos editores. Em 1962, as publicações de Abril passaram para as mãos da Yago. Nesse contexto, o semanário Misterix já não era o que tinha sido em termos de massividade e popularidade nos anos cinquenta. Segundo Alberto Breccia (1973:6), Mort Cinder:

2 Entrevista inédita dos autores com Álvaro Pons, crítico e pesquisador de quadrinhos espanhol, 2017.

… não estava pensado para uma publicação concreta, saiu porque saiu, e se publicou completo, em uma revista semanal que não tinha quase tiragem, que era muito pobre, até terminar. 3

3) La Vida del Che (1968), quadrinho biográfico escrito por Oesterheld e desenhado por Alberto Breccia e seu filho, Enrique, foi publicado por Jorge Álvarez, um editor de perfil literário e intelectual que não tinha publicado narrativas sequenciais anteriormente. La Vida del Che surgiu como parte de um projeto que finalmente não prosperaria: o editor Álvarez pensava criar uma coleção de quadrinhos biográficos dedicados a personalidades históricas latino-americanas. A descontinuidade do projeto e as limitações em termos de circulação e chegada do título aos leitores tiveram como consequência que essa obra não atingisse o sucesso comercial no momento da sua publicação original. 4) El Eternauta -segunda versão- foi una série publicada no ano 1969 em Gente, uma revista argentina de variedades e atualidade. A trama reproduz o argumento da história de ficção científica original, realizada por Oesterheld e Francisco Solano López entre 1957 e 1959. Mesmo assim, El Eternauta de Breccia e Oesterheld apresenta diferenças significativas no que respeita à mensagem política mais enfática do discurso e uma atmosfera opressiva, sombria e terrífica aportada pelos desenhos de Alberto Breccia. Devido aos desacordos entre os autores e o editor da revista em relação ao estilo gráfico do remake do quadrinho clássico, a série foi interrompida apenas alguns meses depois do seu lançamento. Portanto, o relato finaliza precipitadamente, cheio de textos de apoio que tiram ritmo à narração. Não obstante, o componente político também pode ter influído na decisão do editor. Nesse sentido, o argumento da segunda versão de El Eternauta é uma expressão da mudança ideológica que Oesterheld experimentou desde finais dos anos sessenta. Os diversos contextos de publicação das obras criadas pela parceria entre Alberto Breccia e Oesterheld, podem entender-se através de um rastreio da evolução do campo político e intelectual e do estado da indústria editorial profissional dos quadrinhos na

3 Por rações de espaço, optamos por não transcrever a citação original em espanhol, publicada no número 10 da revista espanhola Bang!, em 1973.

Argentina dos sessenta, ao qual temos feito referência anteriormente. Num período histórico marcado pela conflitualidade e mobilização política e social, entre cujas características destacavam-se um processo de politização dos circuitos intelectuais, do pensamento e da cultura (Ponza, 2015), Oesterheld modelou uma nova poética para as HQs. Sem contrariar sua conceição dos quadrinhos como um meio legítimo de comunicação de ideias e valores, o roteirista portenho utilizou as HQs como ferramenta pedagógica e de ação política, um fenômeno que já ocorria na literatura, o teatro, o cinema e as artes plásticas. Nesta linha, pelo menos dois títulos do duo formado por Breccia e Oesterheld (e alguns outros desenhistas jovens, tais como Gustavo Trigo, em La guerra de los Antartes, e Leopoldo Durañona, em Latinoamérica y el imperialismo) circularam através de canais alternativos ou, em outras palavras, fora da indústria editorial tradicional de quadrinhos, sem sucesso comercial no momento da sua publicação original. Depois de muitos anos, esses quadrinhos alcançaram reconhecimento entre a massa de leitores, a partir de republicações e sobre tudo quando chegaram ao mercado europeu. As viagens de Alberto Breccia à Europa Ocidental contribuíram significativamente à revalorização dessas obras e, possivelmente sem se propor, consagraram ao próprio Oesterheld como um dos roteiristas de quadrinhos mais importantes de todos os tempos.

CONCLUSÃO

Se consideramos a trajetória traçada pelas opções estéticas, comerciais e políticas do desenhista Alberto Breccia e as características dos seus trabalhos em parceria com Héctor Oesterheld, podemos ver como esse trajeto abrangeu não apenas a marginalidade e a vanguarda com respeito ao campo das HQs argentinas no período clássico, mas também uma consagração no mercado europeu e internacional em um contexto de emergência dos quadrinhos de autor. É, pois, possível estabelecer algumas conclusões preliminares ou provisórias.

1- A recontextualização das obras comentadas, operada pelos processos do mercado global dos quadrinhos e algumas intervenções provenientes do discurso da crítica (cf. Masotta, 1970), possibilitou a redescoberta ou a reativação de certas significações políticas e estéticas que tinham passado despercebidas no momento da sua publicação original, dentro do campo específico dos quadrinhos nacionais da Argentina (este é particularmente o caso de Sherlock Time; cf. Berone, 2001). 2- A inserção das séries de quadrinhos produzidas pela parceria Breccia-Oesterheld nos circuitos diferenciados da crítica especializada, a imprensa de atualidade e as editoras acadêmicas, colocou-as em contato produtivo com os discursos que tematizavam questões e problemáticas tradicionalmente extrínsecas à linguagem e o discurso dos quadrinhos, a saber: a política, as mudanças e as lutas sociais, as formas de poder, o valor estético, a função da arte na sociedade, etc. 3- Na segunda metade dos anos sessenta, a indústria editorial profissional dos quadrinhos argentinos entrou em uma pronunciada crise comercial e criativa. Foi precisamente nessa época quando as HQs começaram a ser objeto de legitimação desde o campo acadêmico e âmbito das artes de vanguarda, ao mesmo tempo em que surgiram novas instâncias de recepção e novos públicos mais próximos à alta cultura do que ao consumo massivo. Aquele processo de legitimação das HQs foi uma condição de possibilidade da valorização das qualidades artísticas dos autores que ocupam a nossa atenção nesta pesquisa. 4- Não pode entender-se o duplo processo de legitimação cultural dos quadrinhos e, em particular, a consagração de Alberto Breccia e Oesterheld sem ter em conta o importante papel que o desenhista nascido em Montevidéu jogou na constituição de um cânone dos quadrinhos na Argentina e a nível mundial. As viagens e contatos realizados por Breccia no âmbito europeu contribuíram ao reposicionamento simbólico da sua obra e especialmente das HQs que ele fez em parceria com o roteirista portenho desaparecido. 5- Finalmente, a decisão de Breccia de inscrever inequivocamente seu trabalho e seus gestos vanguardistas dentro do campo dos quadrinhos (mesmo que seja para negá-los) incentivou e habilitou a diversificação e a experimentação de estilos gráficos dos novos

desenhistas argentinos daquela época (cf. os casos de José Muñoz, Leopoldo Durañona, Domingo Mandrafina, Gustavo Trigo, etc.), misturando e quebrando as tradicionais “barreiras” criativas impostas pela separação entre HQs “sérias” e “humorísticas” e pelas diferentes classificações de gêneros (horror, ficção científica, western, policial, etc.).

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