AYRTON - O Herói Revelado
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AYRTON - O Herói Revelado Editora Objetiva – 2004 OS ENIGMAS DE IMOLA No horário da Itália, eram 13h27 do dia 1º de maio de 1994, quando Ayrton surgiu dos fundos do boxe da Williams, macacão amarrado à cintura, pronto para entrar no carro e seguir para o grid de largada. Como fazia em todas as corridas, o cinegrafista 1 http://degracaemaisgostoso.blogspot.com Armand Deus, da TV Globo, apertou o botão de sua câmera Betacam e começou a captar as imagens. Procedimento de rotina. Não era uma transmissão ao vivo. As imagens seriam usadas para ilustrar a reportagem sobre a corrida que o correspondente Roberto Cabrini editaria no final do dia, a tempo de ser gerada para o Rio de Janeiro e exibida no programa Fantástico. Não era um dia de sorrisos para ninguém no autódromo de Imola. Menos ainda para Ayrton, que havia anos já assombrava mecânicos, engenheiros, jornalistas e namoradas com sua capacidade de se concentrar nos momentos que antecediam à largada, tornando todos à sua volta rigorosamente invisíveis e inaudíveis. Seu olhar, naqueles momentos, parecia estar em outra dimensão. Sua seriedade formava uma muralha da qual poucos ousavam se aproximar, não importando a patente familiar ou a relação contratual. Para alguns, naqueles momentos ele antecipava curvas e movimentos dos adversários. Para outros, rezava. Outros ainda achavam que aquela era uma travessia sensorial para um mundo cheio de fúria que só cabia e existia no cockpit. Uma travessia sem volta até que a corrida, a dele, terminasse. A câmera de Armand Deus continuava gravando quando Ayrton se aproximou da parte traseira de sua Williams e pousou as mãos sobre o aerofólio. Teve uma rápida conversa sobre a suspensão traseira com o engenheiro David Brown. Depois, seu olhar passou a se alternar entre o nada e a Williams, ainda suspensa nos cavaletes, sem as rodas, recebendo os últimos ajustes dos mecânicos. Era mais do que a concentração de sempre. Havia uma contida inquietação. E também uma tristeza solene e impotente. Estavam ausentes, no seu semblante, como desde o início daquele ano, a intensidade e aquele olhar de predador dos tempos da Lotus e da McLaren. Nem mesmo o rápido comentário de Patrick Head, o diretor da Williams, pareceu diminuir a distância que ele mantinha de tudo que o rodeava. 2 http://degracaemaisgostoso.blogspot.com Algum pensamento finalmente o resgatou daquela estranha dispersão para o ritual do cockpit: balaclava, capacete, macacão fechado até o pescoço e uma espera disciplinada, de pé, com as mãos cruzadas sobre a cintura, pela ordem de entrar no carro e ajustar o cinto de segurança. As imagens gravadas por Armand Deus no boxe da Williams e, minutos depois, as que foram feitas no grid de largada, quando Ayrton mudou a rotina e tirou o capacete, se tornaram históricas. Deflagraram o sofrido exercício ao qual milhões de pessoas, especialmente os brasileiros, se entregaram nos dias seguintes: o que estava por trás daqueles últimos olhares, gestos e silêncios? Havia muitas respostas possíveis, sozinhas ou combinadas. Dentro e fora da pista. Schumacher estava ali, quase ao lado, mais do que nunca disposto a destroná-lo. Roland Ratzenberger morrera depois de uma batida centenas de metros à sua frente, no dia anterior, e o fizera, pelo menos por algumas horas, desistir de correr. Rubens Barrichello, que ele vinha tratando como uma espécie de irmão mais novo das pistas, sobrevivera a um acidente assustador, na sexta-feira. Aquela Williams que ele chamava de "cadeira elétrica", um carro arisco e difícil de guiar, estava consumindo pneus com preocupante rapidez. E, na noite anterior, ele tinha ouvido uma gravação. Uma conversa de Adriane Galisteu com um antigo namorado. A placa de um minuto foi erguida. Vinte e cinco motores de Fórmula 1 começaram a rugir. Ayrton, na hora de acelerar, costumava deixar todas as preocupações de lado. Não trocava as emoções do cockpit por nada da vida. Em mais alguns segundos, ele se entregaria de novo à aventura que tinha começado aos quatro anos de idade, ao soar de um motor de picadeira de cana, com três cavalos de potência. 3 http://degracaemaisgostoso.blogspot.com CAPÍTULO 1 PALMAS NO TREMEMBÉ Milton Guirado Theodoro da Silva sempre foi o primeiro a dizer que jamais planejou ou sonhou que o filho se tornasse um piloto de competição, mesmo quando construiu para ele, em seis meses, o kart equipado com freios a disco e o motor de picadeira de cana que permitia uma velocidade de até 60 quilômetros por hora. No início, era mesmo uma brincadeira a mais para o filho inquieto e agitado, facilitada pelo fato de Milton ser dono de uma metalúrgica. Um homem de origem simples, filho de um motorista do Horto Florestal de São Paulo, Milton começou a construir sua fortuna pessoal no ramo de compra e venda de automóveis, negociando com as lojas situadas nas proximidades do complexo penitenciário do Carandiru, no bairro de Santana, Zona Norte de São Paulo. Habilidoso e rigoroso no trato com o dinheiro, Milton não demorou a acumular um capital que lhe permitiu não só financiar os donos das lojas como ampliar os negócios e montar a metalúrgica Universal, que o transformou num próspero fornecedor da nascente indústria automobilística brasileira. Milton também entrou no ramo da construção civil e, anos depois, tornou-se proprietário de dezenas de fazendas e milhares de cabeças de gado na região Centro-Oeste e na Bahia. "Miltão", como sempre foi tratado pelos amigos e pela família, incluindo a mulher, dona Neyde, gostava de carros e de corridas. Por mais que gostasse, no entanto, é possível afirmar que nunca passou por sua cabeça que Ayrton pudesse se tornar piloto de competição. Nem no âmbito sul-americano o automobilismo brasileiro era uma força. As poucas corridas, naquele início dos anos 60, eram muito perigosas e às vezes fatais, para pilotos e espectadores, principalmente quando disputadas em circuitos de rua, como os de Piracicaba, Petrópolis e Rio de Janeiro. 4 http://degracaemaisgostoso.blogspot.com Um retrato da época: num fim de semana de outubro de 1964, no circuito da Barra da Tijuca, houve um episódio que muitos do esporte consideram um acontecimento único no automobilismo mundial: um mesmo carro, uma Alfa-Giulia, matou duas pessoas, na mesma corrida, em dois momentos diferentes, com dois pilotos diferentes ao volante. No primeiro acidente, o piloto Mário Oliveti atropelou dois guardas da Polícia Militar, um dos quais morreria dias depois. Depois, Carlos Augusto Lamego assumiu a direção da mesma Alfa-Giulia para concluir a corrida, mesmo não estando inscrito na prova. Derrapou, perdeu o controle do carro e foi em direção aos espectadores. Uma jovem morreu na hora. O kart era para ser, portanto, um brinquedo. Uma alternativa às bicicletas e carrinhos de rolimã daquele menino que nascera de parto normal no início da madrugada do dia 21 de março de 1960, na tradicional maternidade Pró Matre, na Bela Vista, região central da cidade. A casa em que Ayrton passou os primeiros quatro anos de vida pertencia a João Senna, pai de dona Neyde, e ficava na esquina da rua Aviador Gil Guilherme com avenida Santos Dumont, a menos de 100 metros do Campo de Marte, uma grande área onde funcionavam o Parque de Material da Aeronáutica e um aeroporto. INCAS VENUSIANOS Nos primeiros anos de vida, Ayrton não deu o menor sinal de que poderia se tornar o prodígio de precisão e concentração que assombraria o mundo do automobilismo. Dona Neyde e a irmã mais velha, Viviane, eram testemunhas diárias de seu jeito desastrado e de sua média preocupante de tombos, tropeções e batidas de cabeça, algumas delas fortes o suficiente para deixar grandes marcas pelo corpo e galos na cabeça. Ser canhoto, naquela época, no Brasil, era motivo de preocupação até para educadores. Dona Neyde chegou a agradecer a oferta 5 http://degracaemaisgostoso.blogspot.com curiosa de uma professora de Ayrton: ela se ofereceu para forçar Senna a trocar a mão esquerda pela direita, na hora de escrever. A preocupação de dona Neyde com o que no futuro se chamaria de hiperatividade do filho a levou a procurar até um neurologista. O resultado do exame foi tranqüilizador. Ayrton não tinha nada de errado. Na verdade, era desajeitado, soube a mãe, por ser rápido demais em tudo o que fazia. Era voraz na hora de experimentar, veloz na hora de aprender. Faltava apenas descobrir um pouco mais de precisão na ocupação dos espaços físicos. E era apenas uma questão de tempo para o problema desaparecer, levando com ele o estilo e a fama de desastrado. O neurologista não fez apenas um diagnóstico. Tateou um fenômeno. Em 1964, Milton da Silva, cada vez mais bem-sucedido nos negócios, levou a família para a região mais alta e nobre do bairro de Santana, uma área onde, graças ao aclive geográfico, os moradores tinham uma das mais belas vistas da cidade. A nova casa, situada na esquina das ruas Pero Leme e Condessa Siciliano, tinha dois pavimentos, jardim e garagem. Era a mais confortável e bonita da rua. Os pais de Senna eram admirados por serem pessoas simples, apesar da notória e crescente riqueza. Robinson Gaeta, morador da rua e amigo de Ayrton quando os dois tinham entre quatro e sete anos, era um dos que admiravam a família Senna. O pai de Robinson, Martino, não escondia dele, também, a admiração que tinha pela beleza de dona Neyde. E dizia que a avó de Ayrton era chamada na vizinhança de Maria Bonita pelos mesmos motivos. Dentro de casa, a preocupação de Senna era com a destruição do planeta pelos incas venusianos e, posteriormente, pelos seres abissais, vilões submarinos que emergiam do fundo do mar e provocavam terremotos, sempre no Japão.