FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA MESTRADO EM FINANÇAS E ECONOMIA EMPRESARIAL
Eduardo Santos da Costa
Regulação do Preço do Acesso no Setor Ferroviário
RIO DE JANEIRO 2019
Regulação do Preço do Acesso no Setor Ferroviário
Dissertação apresentada na Escola de Pós- Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Finanças e Economia Empresarial. Orientador: Fernando Tavares Camacho
RIO DE JANEIRO 2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV
Costa, Eduardo Santos da Regulação do preço do acesso no setor ferroviário / Eduardo Santos da Costa. – 2019. 101 f.
Dissertação (mestrado) - Fundação Getulio Vargas, Escola de Pós-Graduação em Economia. Orientador: Fernando Tavares Camacho. Inclui bibliografia.
1. Transporte ferroviário - Regulação- Brasil. 2. Agências reguladoras de atividades privadas. 3. Ferrovias – Brasil. 4. Concorrêncial. I. Camacho, Fernando Tavares. II. Fundação Getulio Vargas. Escola de Pós-Graduação em Economia. III. Título.
CDD – 385.0981
Elaborada por Márcia Nunes Bacha – CRB-7/4403
AGRADECIMENTOS
Ao Mauricio Neves pelo incentivo no início da jornada, ao Fernando Camacho pelo apoio para concluí-la, e à Jacqueline Lacerda por cumprí-la ao meu lado.
RESUMO
Indústrias baseadas em rede são frequentemente objeto de ocupação dos reguladores e de economistas. Dentre estas, a indústria de transporte ferroviário de cargas combina elementos de competição e de monopólio na oferta dos serviços. Partindo do pressuposto geral de que o regulador busca eficiência produtiva e alocativa na provisão do serviço de transporte ferroviário, o presente trabalho buscou avaliar os critérios e metodologias para definição do preço do acesso de terceiros à rede no setor ferroviário, que se encontre sob regulação discricionária ou desregulamentada, bem como e seus impactos na eficiência econômica, na competição e na realização de investimentos. Partindo do referencial teórico e da experiência internacional, buscou-se elaborar um quadro referencial e analítico das opções disponíveis para a definição da tarifa de acesso e compartilhamento da infraestrutura ferroviária, que possa auxiliar na identificação de melhorias ao marco regulatório brasileiro, considerando aspectos relevantes como a promoção da competição, a eficiência produtiva e alocativa, a viabilidade financeira das firmas e os incentivos à realização de investimentos.
ABSTRACT
Network-based industries are often object of attention by regulators and economists, and rail freight industry is one that combines elements of competition and monopoly. Based on the general assumption that regulators seek productive and allocative efficiency in the provision of rail services, the present work sought to evaluate the criteria and methodologies used for setting third party access prices when sharing network infrastructure in the railway sector, which might be under discretionary regulation or even deregulated. Based on access pricing literature and international experience reviews, this work sought to construct an analytical framework of available options for third party access tariffs regulation in Brazil. This framework may help to identify improvements for brazilian regulatory framework, regarding relevant aspects such as incentives on competition, productive and allocative efficiency, as well as the financial viability of firms and investments incentives.
SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...... 7
1.1 TEMA E PROBLEMA ...... 7
1.2 DELIMITAÇÃO DO ESTUDO ...... 11
1.3 OBJETIVOS ...... 11
1.4 JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA ...... 12
1.5 METODOLOGIA E ESTRUTURA ...... 13
2. ESTRUTURAS TARIFÁRIAS ...... 15
2.1 ESTRUTURAS DE MERCADO ...... 15
2.2 MODELO TARIFÁRIO ...... 19 2.2.1 Nível da Tarifa de Acesso e Regulação Ótima ...... 20 2.2.2 Tarifa de Acesso, Entrada e Estruturas de Mercado ...... 24 2.2.3 Tarifa de Acesso e Incentivos ao Investimento ...... 30 2.2.4 Tarifas de Acesso na Prática ...... 34
3. EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL ...... 48
3.1 AUSTRÁLIA ...... 48
3.2 ESTADOS UNIDOS ...... 59
3.3 REINO UNIDO ...... 68
4. APLICAÇÕES AO MERCADO BRASILEIRO ...... 72
4.1 REVISÃO TARIFÁRIA E ALTERAÇÕES DE 2011 ...... 76
4.2 TARIFAS DE ACESSO NA TENTATIVA DE REFORMA DE 2012 ...... 80
4.3 SITUAÇÃO ATUAL ...... 86 4.3.1 Inovações Regulatórias ...... 87 4.3.2 Nível Tarifário ...... 88 4.3.3 Estrutura Tarifária e Entrada ...... 90 4.3.4 Discriminação de Preços ...... 90
5. CONCLUSÕES ...... 92
6 .R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 99
7
1. INTRODUÇÃO
1.1 TEMA E PROBLEMA
Indústrias baseadas em rede são frequentemente objeto de ocupação dos reguladores e de economistas, que buscam compreender as características próprias que as impediriam de funcionar como preconizado em modelos econômicos tradicionais. São diversos os exemplos de indústrias dessa natureza que exigem ao menos algum grau de regulação de agências especializadas ou constante supervisão de órgãos de defesa da concorrência: telecomunicações, transporte de gás (gasodutos), transmissão e distribuição de energia elétrica, e ferrovias são alguns dos exemplos mais notáveis. Conforme destacam Willig e Kessides (1995), durante um longo período, o paradigma de utilidade pública com regulação governamental foi aplicado ao setor ferroviário sob a premissa de que as características de mercado impossibilitavam a competição ou a sua capacidade de resposta a demanda. Segundo os autores, os exemplos ao longo do tempo demonstraram, contudo, que o mercado relevante das ferrovias pode sofrer competição efetiva, principalmente o mercado de transporte de cargas, objeto central da presente análise. O desenvolvimento do transporte rodoviário a partir da segunda metade do século XX intensificou a competição intermodal para parte relevante do transporte de cargas, evidenciando com maior força o que já ocorria com outros modais, como o transporte marítimo e hidroviário. Na análise de Willig e Kessides, os sistemas de regulação historicamente falharam em lidar com os problemas inerentes ao setor ferroviário: a mistura de elementos de competição e de monopólio na oferta. Em sua visão, ao tentar proteger o público da exploração de eventual poder de mercado das empresas ferroviárias, muitas vezes a regulação atuou no sentido de limitar a competição, restringindo benefícios das economias de escopo, atrasando a introdução de inovações, e promovendo serviços ineficientes. Os autores concluem que, em mercados de transporte contestáveis por modais alternativos, a precificação deveria ser livre, ressalvadas as circunstâncias em que esta pressão competitiva, seja ela intermodal, intramodal ou geográfica, não está suficientemente presente. Isso significa que caso a competição entre os diferentes ativos de uma indústria ( facility based competition ) não seja forte o suficiente, o regulador deve introduzir a competição baseada em serviços ( service based competition ). Tendo em vista a atual conformação do mercado ferroviário brasileiro, a presente análise está centrada na competição baseada em serviços. 8
De fato, nos mercados com maior grau de maturidade regulatória, os objetivos da política pública têm se voltado com maior frequência à introdução de forças competitivas, prevenindo a obstrução das redes ( foreclosure 1) e o abuso de poder de mercado. Em uma indústria sujeita a entrada de competidores, a regulação por forças de mercado é eficiente, ainda que existam poucas firmas atuando, como demonstra Baumol (1983) em sua teoria de mercados contestáveis. Essa forma de regular importa em liberdade na fixação dos preços quando os serviços enfrentam competição efetiva em seu mercado relevante. O foco dos reguladores passa a ser então a identificação de barreiras à entrada, práticas anticompetitivas, e abuso de poder de mercado. Nesse aspecto, a possibilidade de acesso a infraestrutura por terceiros passa a ser essencial para a contestabilidade das firmas verticalmente integradas. A questão regulatória inicial que se apresenta no setor ferroviário é a escolha entre diferentes modelos de regulação e seus efeitos sobre a estrutura de mercado resultante. Os modelos adotados usualmente podem permitir a existência de firmas verticalmente integradas, detentoras da infraestrutura e prestadoras dos serviços de transporte, competindo entre si, atuando com ou sem acesso mandatório para permitir a prestação dos serviços também por terceiros ou, ainda, exigir a separação entre as atividades de serviços de infraestrutura e serviços de transporte ( unbundling ), com a possibilidade da venda da capacidade em atacado pela firma de infraestrutura. Alternativamente, o setor ferroviário pode ser objeto apenas de supervisão de órgãos de defesa da concorrência, baseada em princípios gerais, em uma espécie de livre mercado com regulação ex post cujo objetivo é, geralmente, evitar o abuso de poder de mercado. Com as devidas adaptações, o escopo exploratório do presente trabalho pode ser aplicado a todos os modelos supracitados, desde que exista a possibilidade ou vontade de que um terceiro compartilhe a infraestrutura de rede. O pressuposto geral é de que o regulador busca a eficiência produtiva e alocativa na provisão do serviço de transporte ferroviário. O mercado final, no caso do presente trabalho, deve ser entendido como o serviço isolado de transporte ferroviário de cargas, ofertado sobre uma infraestrutura em rede existente. A eficiência produtiva é perseguida no sentido de que as firmas venham a adotar os métodos de produção mais eficientes, isto é, que minimizem os custos. Já a eficiência alocativa significa que os recursos disponíveis são empregados para serviços que maximizam os benefícios à sociedade, isto é, o custo marginal de prestação dos serviços é igual à
1 De acordo com Tirole e Rey (2003), a prática de foreclosure consiste em uma negativa de acesso a um bem essencial produzido por uma firma detentora de poder de mercado, com a intenção de estender seu poder de monopólio deste segmento de mercado (segmento em que produz o bem essencial) para um segmento adjacente e potencialmente competitivo. A prática surge quando o bem essencial é usado como insumo por uma indústria a jusante que é potencialmente competitiva ou quando os bens são vendidos a consumidores finais para uso com bens complementares. No primeiro caso, considera-se que as firmas que atuam no mercado competitivo a jusante e que têm o acesso negado encontram-se espremidas ou squeezed out . 9
disposição dos consumidores a pagar por eles, na ausência de custos de transação. Os dois objetivos relacionados à eficiência econômica estão circunscritos pela restrição de que a ferrovia deve obter receitas adequadas para manter sua viabilidade financeira no longo prazo ou receber algum subsídio governamental. Exceto no modelo norte-americano de desregulamentação do setor ferroviário, em que a existência de concorrência intra ou intermodal é uma premissa, na maioria dos modelos adotados nos demais países os objetivos de eficiência econômica são perseguidos por meio da ação do regulador visando introduzir algum grau de concorrência no mercado final. Essa abordagem é compatível com o paradigma mais contemporâneo, que recomenda o incentivo a competição como instrumento de regulação, e que está baseado na teoria de mercados contestáveis. Em seu modelo de mercados contestáveis, Baumol propõe uma generalização do conceito de mercados perfeitamente competitivos, demonstrando que um monopólio contestável poderá apresentar comportamento consistente com a precificação prevista por Ramsey. Em mercados perfeitamente contestáveis, o equilíbrio ocorreria com a firma obtendo lucro econômico zero, mesmo em situações de oligopólio ou monopólio 2. Como destacado por Dewenter e Haucaup (2007), a ideia básica é que, enquanto algumas infraestruturas de rede podem configurar uma situação de monopólio natural, os mercados a montante e a jusante são potencialmente competitivos bastando, portanto, que os competidores tenham garantia de acesso às infraestruturas essenciais a prestação dos serviços. Mesmo em mercados considerados desregulamentados como o norte-americano, o poder público reserva-se o direito de demandar o acesso a infraestruturas consideradas essenciais e estabelecer as tarifas de acesso em caso de identificação de exercício de poder de mercado 3. Dewenter e Haucap sugerem que o acesso mandatório a uma determinada infraestrutura considerada essencial dever ser exigido observando-se quatro critérios essenciais: (a) se a infraestrutura é controlada por uma firma com poder de mercado significativo; (b) se não é factível que os potenciais competidores venham a reproduzir a infraestrutura; (c) se o acesso à infraestrutura é necessário para competir em um mercado a jusante ou a montante; e, (d) se é tecnicamente factível conceder o acesso a infraestrutura.
2 Deve-se notar que em um mercado perfeitamente contestável, o incumbente está vulnerável à prática de hit and run por parte de novos entrantes. Essa possibilidade está baseada em premissa relevante do modelo de Baumol, qual seja, a livre entrada e saída sem custos de um mercado, características que não estão presentes no mercado de ferrovias. 3 Os Estados Unidos possuem extenso histórico de aplicações da legislação anti-trust no mercado ferroviário, como no famoso caso United States v. Terminal Railroad Association – 224 U.S. 383 (1912) , no qual o consórcio detentor da ponte sobre o Rio Mississipi foi condenado e obrigado a compartilhar esta infraestrutura, considerada essencial a movimentação de cargas interestaduais, com as demais ferrovias. 10
Na prática, os quatro fatores apontados não são facilmente observáveis pelos reguladores. Os critérios utilizados para definir poder de mercado, por exemplo, podem diferir entre reguladores de diferentes mercados. Da mesma forma, o julgamento sobre a possibilidade de reproduzir determinada infraestrutura pode perpassar critérios técnicos, legais, econômicos e ambientais. Também o julgamento do item (c) dependerá de critérios adotados pelos reguladores e alguns exemplos estão presentes neste trabalho, como na análise realizada pelo National Competition Council (NCC), órgão australiano cuja função é assessorar os ministérios nos assuntos vinculados ao acesso de terceiros às infraestruturas consideradas monopolísticas, emitindo recomendações de adoção de políticas. Em sua resposta ao pedido de acesso formulado por The Pilbara Infrastructure (2007) às redes ferroviárias detidas e operadas pela BHP Billiton 4 para transporte de minério de ferro, o NCC apresenta os critérios utilizados para suas recomendações de que o acesso viesse a ser concedido. O primeiro critério a ser avaliado pelo NCC é exatamente se o acesso promove aumento material na competição de ao menos um mercado além daquele do serviço em si, ou seja, deve-se identificar se existe um ou mais mercados a jusante ou a montante, e se este mercado pode ser separado ou não do mercado do serviço de transporte. No seu encaminhamento favorável ao acesso à infraestrutura ferroviária, o NCC entendeu que o mercado de compra, venda e prospecção de minas da região de Pilbara por investidores independentes pode ser claramente separado do mercado de transporte ferroviário, e que os atuais detentores e operadores das ferrovias, que atuam também no mercado de mineração, poderiam usar o monopólio da rede ferroviária para distorcer o funcionamento do mercado de prospecção de novas minas, além de praticar foreclosure , visando aumentar seu poder de barganha na aquisição das novas minas. Portanto, uma vez que o modelo de regulação foi escolhido e o mercado encontra-se estabelecido, a segunda questão regulatória relevante seria como avaliar, diante das economias de escala e de escopo presentes em investimentos ferroviários, da indivisibilidade da infraestrutura, dos enormes custos de entrada e custos afundados, todas estas características que apontam para uma situação de monopólio natural, se um determinado serviço de transporte ferroviário (ou de serviço de infraestrutura) possui ou não a discricionariedade para fixar preços, que caracterizaria o monopolista típico. Independente do modelo adotado para formação do mercado, os reguladores frequentemente se deparam com a tarefa de avaliar solicitações de terceiros visando acesso e fixação do preço para compartilhamento de determinada infraestrutura em rede. Como frisado anteriormente, tal fato ocorre mesmo em mercados operados integralmente por companhias privadas e considerados
4 Pilbara vs Mt Goldsworthy, Hamersley Iron e Robe River Iron Associates , National Competition Council Final Recommendation, Austrália, 2008. 11
desregulamentados, como o norte-americano. Como será visto adiante, o regulador norte-americano pode e, de fato, tem intervindo quando provocado em processos sobre abuso de poder de mercado no setor ferroviário. Decisão semelhante será exigida do regulador discricionário, modelo adotado no Brasil, na Europa e na Austrália. Chega-se, portanto, a questão regulatória da qual se ocupa o presente trabalho, qual seja, a determinação do preço do acesso de um terceiro a rede ferroviária que se encontra sob regulação discricionária ou desregulamentada, e seus impactos na eficiência econômica, na competição e na realização de investimentos.
1.2 DELIMITAÇÃO DO ESTUDO
O estudo ora apresentado limita-se a analisar os critérios e metodologias para definição do preço do acesso de terceiros à rede no setor ferroviário. A aplicação das diferentes metodologias para determinação do preço de acesso pode ensejar a necessidade de aprofundar questões subsidiárias, como as metodologias para estimação e apropriação dos custos no setor ou dos métodos para calcular os custos de capital dos participantes do mercado. O presente trabalho não tem como objetivo analisar as metodologias subsidiárias, mas apenas as ferramentas diretamente ligadas à determinação do preço, sob a ótica da viabilidade financeira, da eficiência econômica e dos incentivos aos participantes do mercado.
1.3 OBJETIVOS O principal objetivo é a elaboração de um quadro referencial e analítico das opções disponíveis para a definição da tarifa de acesso e compartilhamento da infraestrutura ferroviária, que possa auxiliar na identificação de melhorias ao marco regulatório brasileiro, considerando aspectos relevantes como a promoção da competição, a eficiência produtiva e alocativa, a viabilidade financeira das firmas e os incentivos à realização de investimentos. Alguns objetivos específicos da análise são: - analisar os impactos da definição da tarifa de acesso em aspectos considerados relevantes como a eficiência das firmas, as estruturas de mercado, os incentivos a práticas anticompetitivas e a realização de investimentos; - avaliar os modelos usualmente adotados, suas vantagens e desvantagens em relação a cada aspecto relevante; - estudar a experiência internacional e os resultados obtidos a partir das escolhas dos reguladores em relação a tarifa de acesso; - identificar as particularidades do mercado brasileiro, sua atual configuração e a aplicabilidade das soluções existentes às mudanças em curso; e, - propor aperfeiçoamentos para o caso brasileiro. 12
1.4 JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA
Conforme destacado, a regulação de infraestruturas baseadas em rede e, em especial do setor ferroviário, tem avançado no sentido de buscar a introdução de competição, tornando mercados anteriormente considerados monopólios naturais em mercados contestáveis. Seja por meio de separação vertical, do acesso mandatório ( open access ) ou de regulação ex-post , os reguladores devem estar atentos a práticas anti-competitivas por parte das firmas detentoras das infraestruturas ferroviárias essenciais. Concomitantemente, a intervenção do regulador não deve ser tal que comprometa a viabilidade das firmas que ofertam e investem na infraestrutura ferroviária, devendo cuidar-se que os usuários contribuam adequadamente para a manutenção da infraestrutura. Como será visto ao longo do trabalho, enquanto essa dualidade está fortemente presente no referencial teórico, por vezes uma das faces da questão passa ao largo do olhar do regulador. A partir de 1996, a malha da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), até então detentora da infraestrutura e operadora monolítica de serviços de transporte, foi concedida ao setor privado, em um modelo de concessão de serviço público por período determinado com arrendamento dos bens da União pelo período da concessão. As firmas operam no setor por sua conta e risco, conforme determinado na Lei das Concessões (Lei n o 8.987, de 13/02/1995). Do ponto de vista da estrutura de mercado, o modelo adotado consistiu na divisão da malha da RFFSA em malhas regionais verticalizadas, formando corredores de escoamento e de retorno em direção aos portos. Seguiram-se à concessão, períodos de forte investimento das firmas em melhorias operacionais e aumento da capacidade de transporte da rede existente, principalmente por meio de ganhos de produtividade. A pequena expansão da malha verificada desde então, contudo, permaneceu sendo realizada com investimentos públicos e a inserção do modal ferroviário na matriz de transportes brasileira permaneceu baixa. O sistema ferroviário está apoiado no formato de corredores de exportação de commodities minerais e agrícolas (77% e 15% da produção, respectivamente), com baixa interconectividade e integração das malhas. O transporte de carga geral de produtos industrializados, normalmente voltado ao atendimento do mercado interno, tem baixa inserção, representando apenas 6% do volume transportado. Embora o modelo regulatório brasileiro preveja a figura do direito de passagem e do tráfego mútuo, inexiste, na prática, competição intramodal, predominando a prestação de serviços pelas incumbentes das redes, com ausência de compartilhamento da infraestrutura e de operadores independentes. 13
Nesse contexto, o Governo Federal vem buscando, desde 2011, introduzir reformas no setor ferroviário com intenção de aumentar o compartilhamento de infraestrutura e aumentar a competição intramodal. Esse esforço culminou com a publicação do Decreto n o 8.129/2013 por meio do qual a VALEC estaria autorizada a adquirir a capacidade das concessionárias de infraestrutura de rede que vencessem os processos licitatórios para outorga dos direitos de concessão, operação e manutenção dos novos trechos ferroviários. O objetivo dessa tentativa de reforma era promover a competição entre operadores ferroviários, introduzindo na regulação brasileira o conceito da separação vertical e do livre acesso ( open access ). No entanto, esta tentativa de reforma foi abandonada a partir de 2015 e o Decreto n o 8.875/2013 foi revogado na íntegra em 2016. O Governo Federal retornou então para o modelo inicial de concessões verticalizadas, procurando, contudo, aprimorar os mecanismos de competição, incluindo a garantia de direito de passagem em novos contratos com os concessionários. Em novembro de 2016, o Governo Federal editou a Medida Provisória n o 752, convertida na Lei n o 13.448 em junho de 2017. Esta lei estabelece diretrizes para prorrogação antecipada de contratos de concessão rodoviárias e ferroviárias. Dentre os principais objetivos da legislação está a viabilização de investimentos imediatos no setor. Nos termos da Lei 13.448/2017, a prorrogação antecipada tem por orientação a adoção de garantias ao direito de passagem e de tráfego mútuo, incluindo a exploração de sua rede por operadores independentes. Nota-se, portanto, o retorno a discussão sobre o acesso de terceiros a infraestrutura concedida, tendo como janela de oportunidade regulatória a repactuação dos contratos vigentes. Em março de 2017, foi aberta a consulta pública acerca da prorrogação do prazo de vigência contratual da concessionária América Latina Logística Malha Paulista S.A. (Rumo). Entre agosto e setembro de 2018 ocorreram as audiências públicas acerca da prorrogação das concessões detidas pela Vale S.A. (Estrada de Ferro de Carajás e Estrada de Ferro Vitória a Minas). Os instrumentos contratuais propostos pela ANTT incorporam diversas inovações na regulação do direito de passagem, incluindo a obrigatoriedade da concessão do acesso e regras para sua precificação. Nesse contexto, o presente tem por objetivo analisar o histórico recente e as propostas atuais para reforma da regulação do acesso a rede ferroviária, a luz do referencial teórico no tema e da experiência internacional.
1.5 METODOLOGIA E ESTRUTURA
A presente pesquisa pode ser classificada como aplicada, tendo em vista seu objetivo de gerar conhecimento aplicável a questão específica da regulação do mercado ferroviário. Tendo como finalidade investigar a regulação do preço eficiente do acesso a partir da teoria aplicável ao problema e das práticas adotadas por reguladores internacionais, a pesquisa tem objetivo exploratório, visando contribuir com maiores informações sobre o tema e problema estudados. 14
Os procedimentos de pesquisa adotados foram bibliográficos e documentais, com informações e dados obtidos em fontes secundárias. Foram consultados livros, trabalhos acadêmicos e dissertações, relatórios produzidos por agências governamentais e multilaterais, legislação aplicável ao setor ferroviário no Brasil e no exterior, decisões dos reguladores relativas a disputas e arbitragens, dentre outros. Destaca-se que há grande disponibilidade de informações e publicações sobre o tema, com farta produção a partir da década de 1990, quando a temática do livre acesso a redes essenciais ganhou maior relevância mundialmente, na esteira de privatizações e concessões de infraestruturas anteriormente detidas pelos governos nacionais e locais. O mérito do presente trabalho é reunir e agregar informações sobre práticas regulatórias, cotejando- as com o referencial teórico produzido recentemente e analisando sua aplicabilidade ao caso particular da precificação do acesso de terceiros às redes ferroviárias brasileiras. O trabalho está organizado em cinco capítulos. O Capítulo 1 apresenta o tema e problema a ser estudado, incluindo os objetivos e metodologia, com destaque para a relevância da questão no corrente debate sobre o setor brasileiro. ` No capítulo 2, recorre-se à teoria econômica moderna para avaliar as tarifas de acesso por três óticas principais. A primeira, baseada em Tirole e Laffont, refere-se ao nível da tarifa e respectivos impactos na eficiência alocativa e produtiva do mercado ferroviário. Em segundo lugar, tendo como referência Gautier, analisa-se a estrutura da cobrança da tarifa e os impactos na formação do mercado, em especial nos incentivos à entrada de novos competidores. A terceira ótica está relacionada aos incentivos ao investimento quando o acesso à infraestrutura é regulado, cuja análise está baseada em modelo proposto por Gans. Ao final do capítulo, apresenta-se os principais métodos adotados pelos reguladores, bem como suas principais vantagens e desvantagens. No capítulo 3, faz-se uma análise do setor ferroviário e da regulação do preço do serviço ou do acesso nos Estados Unidos, Austrália e Reino Unido. A análise é descritiva, e buscou identificar práticas de referência nesses mercados, bem como conhecer as dificuldades e visão das agências reguladoras e antitruste sobre a temática. No capítulo 4, com fundamentos nos teóricos e experiências internacionais, é feita uma análise das recentes tentativas de reforma do setor ferroviário brasileiro, com foco na regulação do acesso e de seu respectivo preço, avançando até o momento presente, quando inovações regulatórias estão sendo propostas no âmbito de renegociações de antigos contratos de concessão. Por fim, a última seção apresenta as conclusões do estudo realizado.
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2. ESTRUTURAS TARIFÁRIAS
2.1 ESTRUTURAS DE MERCADO A preocupação com as condições de acesso às infraestruturas essenciais encontra-se presente em mercados com as mais variadas configurações. No entanto, cabe ocupar-nos de apresentar os diferentes modelos existentes no setor ferroviário, tendo em vista que a adequação dos modelos tarifários e as conclusões apresentadas nas próximas seções também poderão diferir conforme a conformação do mercado em questão. Gómes-Ibañez e de Rus (2006) apresentam três opções de modelos que permitem a ocorrência de competição no setor ferroviário: a separação vertical, a desregulamentação e a privatização ou concessão da infraestrutura a uma firma verticalmente integrada. Segundo os autores, a partir de 1980, diversos países, notadamente na Europa e a Austrália, iniciaram a separação vertical das empresas ferroviárias. Inspirada nas experiências prévias nos setores de telecomunicações e elétrico, a aplicação do unbundling no setor ferroviário consistiu em separar as atividades de operação e manutenção da rede das atividades de transporte de cargas. Em alguns casos, a separação foi instituída apenas gerencial e contabilmente, em combinação com a exigência de livre acesso a operadores independentes 5. Em outros modelos, as companhias verticalmente integradas foram desmembradas, isolando as duas atividades em firmas distintas 6. Nestes casos, para cumprir com o objetivo de separação das atividades, o detentor da infraestrutura não está autorizado a prestar serviços de transporte, reduzindo riscos de subsídios cruzados 7 e práticas de foreclosure . A separação vertical isola as estruturas que respondem pelos significativos custos afundados no mercado ferroviário, especificamente a superestrutura e a via permanente. Deixa-se, assim, o serviço de transporte em uma operação competitiva com flexibilidade na fixação de preços e nas condições contratuais, simplificando, nesse aspecto, as exigências regulatórias. Nash (2005) apresenta uma avaliação sobre o modelo de separação vertical adotado nos países europeus. O autor relembra que a necessidade de reformas foi identificada pela Comissão Europeia na década de 1980, tendo em vista que ferrovias do continente não apresentavam bom desempenho, mesmo em um crescente mercado de fretes internacionais de longa distância. O contexto, na visão da Comissão, era de pouca coordenação, com diversos operadores necessários à
5 Como adotado inicialmente na França e na Espanha. 6 Como na Grã-Bretanha e Suécia. 7 A prática de subsídio cruzado ocorre quando um operador transfere custos de um segmento no qual aufere a maior parte de seus lucros para outro segmento no qual consegue maiores “reembolsos” regulatórios destes custos. 16
conclusão de um frete ponta a ponta, fazendo com que a qualidade do serviço de transporte fosse limitada pelos operadores menos eficientes da cadeia. De fato, a legislação supranacional europeia inclui um leque de opções para a reforma do setor ferroviário, permitindo diferenças na forma como os países vêm implementando as resoluções da Comissão. Em primeiro lugar, as diretrizes não requerem necessariamente a privatização de qualquer das partes da indústria ou mesmo, em um primeiro momento, a separação vertical em firmas distintas. As resoluções exigem que atribuições como alocação de trechos e definição de tarifas de acesso sejam fixadas por estruturas gerenciais separadas dentro das firmas, inclusive com a contabilidade segregada. Embora alguns países europeus tenham optado pela separação vertical, o livre acesso, por exemplo, foi requerido oficialmente apenas a partir de 2007, e inicialmente aplicado apenas para o mercado de fretes internacionais e nacionais. Os modelos predominantes seguiram ou a linha daquele adotado na Suécia – com separação das atividades, ficando o setor público responsável pela infraestrutura de rede – ou o modelo alemão, no qual a empresa pública é verticalmente integrada, sendo as suas subsidiárias responsáveis, separadamente, pela manutenção e operação da rede, e pelo atendimento dos mercados finais de fretes e passageiros. Enquanto a principal vantagem da separação vertical é a introdução de competição no mercado a jusante, a literatura apresenta diversas desvantagens da aplicação da separação vertical no setor ferroviário, que são resumidas a seguir:
• Dificuldade de alinhamento das decisões de investimento na rede para que sejam orientadas às necessidades do mercado. • Altos custos de coordenação para uso eficiente da infraestrutura, especialmente se houver congestionamento na via. • Custos associados à não otimização da interface roda-trilho, isto é, de a manutenção inadequada na via vir a elevar os custos de manutenção do material rodante, e vice-versa. • Dificuldades em identificar corretamente os custos associados a prestação isolada de cada serviço.
A separação vertical está parcialmente presente no modelo australiano e foi adotada na Inglaterra, casos analisados no capítulo 3 do presente trabalho. A concessão da infraestrutura ferroviária a firmas verticalmente integradas é o principal modelo adotado por países da América Latina, inclusive pelo Brasil. Nesse modelo, a propriedade da infraestrutura permanece detida pelo governo que concede a sua exploração por um período de tempo a firmas privadas, mantendo algum grau de regulação sobre as tarifas, embora na maioria dos casos a intervenção sobre a definição de preços seja considerada branda. Gomes-Ibanez e de Rus 17
destacam que, em países como o Brasil e Argentina, a concessão das malhas ferroviárias não obteve sucesso em incentivar a competição, em parte pela própria distribuição geográfica das ferrovias, e em parte porque a competição não constou dentre os objetivos da reestruturação do setor, com aplicação limitada do acesso mandatório na região. Deve-se notar, contudo, que o direito de acesso (direito de passagem) não é incompatível com o modelo de concessão, cabendo ao poder concedente estabelecer tais obrigações nos contratos de concessão. Daychoum e Sampaio notam, contudo, que no Brasil os contratos de concessão previram a obrigação do tráfego mútuo como regra geral e o direito de passagem apenas no caso de impossibilidade deste primeiro, revelando-se, assim, uma preferência pela verticalização das operações em detrimento do compartilhamento da infraestrutura. A opção de conceder a infraestrutura ferroviária incluindo a obrigação de direito de acesso distingue- se, portanto, da opção de separação vertical. Trata-se de um modelo em que há uma exigência de que o operador verticalizado disponibilize sua rede a terceiros de forma justa e equânime, sendo central que essa opção avalie os incentivos existentes para que o operador integrado aceite os demais participantes que então participariam de forma eficiente na produção. Uma outra vertente é a busca de competição por meio da menor interferência governamental sobre os preços e sobre os serviços ofertados pelas firmas. A premissa subjacente nesse caso é de que as ferrovias sofrem intensa competição tanto de outros modais, quanto de outras localidades geográficas e produtos. Isso significa que, ao avaliar o poder de mercado de uma determinada ferrovia sobre um usuário final como, por exemplo, um produtor de grãos, o regulador deve não somente considerar as opções alternativas disponíveis ao produtor em questão, mas também incorporar a competição com produtores de grãos em outras localidades. Assim, a firma verticalmente integrada estaria limitada em suas tarifas também pela competição que seus clientes finais enfrentam. Com base nessa premissa, pode-se compreender o modelo norte-americano de desregulação. Adotada a partir da década de 1980, a desregulação do mercado ferroviário norte- americano, composto majoritariamente por firmas privadas e verticalmente integradas, relaxou diversas imposições regulatórias vigentes anteriormente e que, na visão dos legisladores, vinham impedindo as firmas de obterem retornos adequados em um ambiente de crescente competição com o modal rodoviário. De fato, até a aprovação do Staggers Act (1980) , a agência reguladora de ferrovias nos Estados Unidos (anteriormente ICC e, atualmente, Surface Transportation Board - STB) tinha permissão para especificar as tarifas, autorizar fusões entre ferrovias e decidir até mesmo sobre o abandono de trechos. As firmas que atuavam no setor, por sua vez, enfrentavam sérias dificuldades financeiras, especialmente com o aumento da competição intermodal com o transporte rodoviário a partir da década de 1950. Por esse motivo, a desregulação por meio do Staggers Act baseou-se em um modelo de mercado competitivo tendo como princípio fundamental que os 18
mecanismos regulatórios não devam impedir as firmas de obterem as receitas consideradas adequadas. Com a desregulação do setor, a agência passou a atuar na supervisão do mercado, em uma regulação por ameaça, garantindo liberdade de fixação e discriminação de preços em operações e serviços que enfrentam competição efetiva no mercado relevante. Ainda, ao contrário da regulação vigente antes de 1980, não existem restrições a novos investimentos ou ao abandono de trechos e encerramento de atividades. O regulador supervisiona os preços praticados a clientes cativos sobre os quais a firma integrada possui poder de monopólio, podendo ser acionado em casos de disputas e arbitragens 8. Deve-se ressaltar que a opção de desregulamentar o setor por meio do Staggers Act deve ser compreendida não apenas no contexto das dificuldades financeiras enfrentadas pelas ferrovias norte-americanas nos anos que precederam as mudanças, mas também no contexto de uma rede de alta capilaridade e madura, cuja expansão havia iniciado no início do século XIX. Como destacado no relatório da consultoria Laurits R. Christensen Associates (2010) elaborado a pedido da Surface Transportation Board (STB), o total de milhas operadas pelas ferrovias norte-americanas declinou no período compreendido entre 1987 e 2006, embora a produção e o market share no período tenha aumentado significativamente, evidenciando que à desregulamentação seguiu-se uma racionalização da indústria. Goméz-Ibañez e de Rus destacam que a separação vertical é incompatível com a desregulamentação do mercado. Ao reconhecer que a competição ocorre somente no âmbito das operações de transporte e que a infraestrutura permanece operando como um monopólio, a regulação torna-se imprescindível para o funcionamento do mercado desverticalizado.
8 Segundo Hausman e Myers (2002), o Staggers Act permitiu a realização de contratos privados entre os clientes e as ferrovias, permitiu que as ferrovias encerrassem a prestação de serviços em determinadas situações, e mais importante, permitiu que as ferrovias fixassem suas próprias tarifas exceto quando fossem provedores dominantes para determinada rota origem-destino (OD). A definição de dominância foi deixada para regulação futura, mas uma salvaguarda foi criada utilizando como regra que, quando a razão (arbitrária) de Tarifa/Custo Variável<1,8, a dominância é considerada inexistente. 19
Tabela 1 – Estruturas de mercado, propriedade, regulação e regime de acesso
Propriedade, regulação e regime de acesso
Público Concessão Privado Separação Vertical Austrália, Inglaterra e
Suécia Verticalizado com Open Austrália, Alemanha, Austrália Austrália Access Itália, Áustria e França Verticalizado com Direito Brasil, Argentina e Estados Unidos,
de Passagem México Canadá e Japão
Verticalizado sem Espanha Nova Zelândia regulamentação de acesso Monolítico China e Índia Fonte: Adaptado de Rail Infrastructure Pricing: Principles and Practice, Bureau of Transport and Regional Economics [BTRE] Australia, 2003 A compreensão dos modelos adotados deve passar ainda por questões relacionadas aos mercados atendidos pelas companhias, pelo grau de maturidade da indústria e necessidades de investimento em expansão. Enquanto nos países europeus tem-se uma rede madura com participação relevante na movimentação de cargas e passageiros, países como Austrália e Brasil ainda possuem grande potencial de expansão com foco na movimentação de cargas. Nos Estados Unidos, por outro lado, tem-se uma rede madura e de alta capilaridade, que atende principalmente a movimentação de cargas.
2.2 MODELO TARIFÁRIO
A estrutura do setor ferroviário tem como característica o monopólio da infraestrutura, resultado das economias de escala e de densidade subjacentes a sua tecnologia, bem como a presença de vultosos custos afundados e não recuperáveis. Em linhas gerais, as funções de custo no setor são subaditivas 9 para o trecho relevante da demanda por serviços ferroviários, isto é, os custos médios da firma incumbente declinam constantemente ao alocarmos maiores volumes de tráfego na rede previamente instalada. Segundo Baumol e Willig (1998), as características presentes no setor ferroviário implicam que medidas de custo tradicionais não devem ser diretamente usadas para formação dos preços dos
9 Baumol (1982) destaca que a subaditividade é um conceito geral aplicável às funções custo que significa que é menos custoso produzir uma quantidade de um bem em uma firma do que dividir esta mesma produção em diversas firmas. Os autores definem subaditividade estrita se:
1 k j para qualquer quantidade da produção de um bem y ,…,y , y ≠y,j=1,…,k, tais que , tem-se ∑ = < 20
serviços de transporte, uma vez que, na presença de economias de escala, a precificação pelo custo marginal de curto prazo significa que a firma não obterá os retornos adequados para sua sustentabilidade no longo prazo. Como destacado por Tirole e Laffont (2000), as tarifas de acesso devem endereçar as questões principais das quais se ocupam os reguladores, tais como o uso eficiente das redes, os incentivos corretos à realização de investimentos, a entrada eficiente de competidores, tudo isso obtido a um custo regulatório razoável. Neste capítulo faz-se uma revisão de modelos que avaliam: (i) o nível da tarifa e seu impacto no bem- estar, (ii) a estrutura tarifária, seu impacto no bem-estar e na estrutura de mercado, e (iii) os impactos da tarifa de acesso nos investimentos. Por fim, apresenta-se uma revisão das metodologias comumente utilizadas para fixação da tarifa de acesso na prática.
2.2.1 NÍVEL DA TARIFA DE ACESSO E REGULAÇÃO ÓTIMA
Como ponto de partida da análise da precificação do acesso à infraestrutura ferroviária, recorre-se ao modelo proposto por Tirole e Laffont (1994), que o exemplificaram para os mercados de redes de telecomunicações, utilizadas tanto para serviços de ligações locais, originadas e concluídas dentro da rede de uma mesma firma e, portanto, monopolísticos e com clientes cativos, quanto para serviços de ligações de longa distância, originadas (concluídas) na rede de uma firma mas concluídas (originadas) em rede de um terceiro sendo, portanto, um serviço sujeito a concorrência. Embora uma revisão mais ampla do modelo esteja além do escopo do presente trabalho, algumas das premissas adotadas e conclusões são úteis para a análise que ora se propõe, especialmente quando confrontadas com as regras usualmente adotadas pelos reguladores do setor ferroviário. O modelo é inicialmente derivado para a situação de informação completa, no qual a firma verticalmente integrada e monopolista tem uma função custo relativa a operação da sua rede dada por , com . = , , , > 0, < 0, , > 0 Q é a quantidade total de uso da rede, é um parâmetro de produtividade e e0 o nível de esforço para operar a rede. é o parâmetro de seleção adversa distribuído no intervalo [ , ], conforme ̅ função de distribuição de probabilidade acumulada F(.).
A firma verticalmente integrada oferta uma determinada quantidade do serviço intra-rede (q 0), que gera utilidade S(q 0) aos consumidores. Além deste serviço, a firma oferta o serviço extra-rede, que está sujeito a competição e tem, além do custo de uso da rede, um custo adicional dado por
A desutilidade da firma pelo esforço exercido é dada por ψ(e0+e 1) com ψ’>0, ψ’’>0 = , , . e ψ’’’≥0. 21
O entrante, que acessa a rede da firma verticalmente integrada para prover o serviço sujeito a competição, oferta a quantidade q2 e, portanto, o total de serviços finais produzidos na rede da firma verticalizada é = + + . A firma entrante paga a tarifa “ a” para acessar a rede e incorre no custo individual c para prover o seu serviço. O lucro da entrante será, portanto, Π = − − . Inicialmente, presume-se que o regulador observa todas as variáveis, tendo informação completa sobre os custos, utilidades e tipos de ambas as firmas. Por simplificação, o regulador reembolsa os custos da firma verticalmente integrada, ficando responsável por arrecadar a receita de venda dos serviços e os impostos, realizando uma transferência no valor de t para cobrir os custos fixos da firma. Esta última, por sua vez, recebe diretamente a tarifa de acesso. A utilidade da firma verticalmente integrada é dada por . = − + + Afim de reembolsar os custos fixos da firma, o regulador deverá arrecadar montante equivalente à transferência . Considera-se que os impostos são distorcivos e têm preço + + − − sombra dado por (1+ λ). A utilidade do consumidor (contribuinte) será função do seu excedente em relação a produção total, deduzido do preço e do custo social da transferência:
[1] + , − − − − 1 + + + − − Com informação completa, o regulador incorpora ainda as restrições para participação da firma e maximiza a função de bem-estar social que tem a forma final 10 dada por: