VERA MARIZA STOCCO

O CORPO-TEMPLO DE JACOBINA O QUE NOS ENSINA SOBRE A HISTERIA?

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida como pré-requisito para obtenção do título de mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Sociedade. Linha de pesquisa: Psicanálise e Arte.

ORIENTADORA: PROFa. DRa. SONIA XAVIER DE ALMEIDA BORGES

RIO DE JANEIRO 2019

UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO STRICTO SENSU Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – – RJ Tel.: (21) 2574-8834 e 2574-8871

FICHA CATALOGRÁFICA

S864 Stocco, Vera Mariza. O Corpo-templo de jacobina – o que nos ensina sobre a histeria? / por Vera Mariza Stocco. – 2019.

95 f.: il. color.; 30 cm.

Orientação: Profª. Drª. Sonia Xavier de Almeida Borges. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida. Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2019.

1. Psicanálise. 2. Maurer, Jacobina Mentz, 1841 ou 2- 1874. 3. Histeria. 4. Discurso. I. Borges, Sonia Xavier de Almeida (Orientador). II. Universidade Veiga de Almeida. Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.

CDD – 616.8917 Decs

Elaborado por Flávia Fidelis Calmon – CRB-7/5309

FOLHA DE APROVAÇÃO

VERA MARIZA STOCCO

O CORPO-TEMPLO DE JACOBINA O QUE NOS ENSINA SOBRE A HISTERIA?

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida como pré-requisito para obtenção do título de mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Sociedade. Linha de pesquisa: Psicanálise e Arte.

Aprovada em 4 de outubro de 2019.

______Prof.a Dr.a Sonia Borges (Presidente da banca) Universidade Veiga de Almeida

______Prof.a Dr.a Gloria Sadala Universidade Veiga de Almeida

______Prof.a Dr.a Elisabeth da Rocha Miranda Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Dedico este trabalho ao José Eduardo, cujo companheirismo foi essencial desde a primeira leitura, passando pela primeira palavra escrita, pelo primeiro capítulo até chegar ao ponto final. Sorte a minha de poder contar com tamanha dedicação e carinho, suportando, dividindo e aliviando as minhas urgências. Obrigada.

AGRADECIMENTOS

Todo final aponta para um misto de sensações e sentimentos, como alivio e pesar, mas é tempo de concluir e de revisitar o que aconteceu ao longo de dois anos mencionando os que participaram dessa empreitada. Por tudo isso, agradeço: À minha orientadora, Sonia Borges, por ter aceitado caminhar comigo pelos “caminhos de Jacobina”, sempre generosa, trazendo confiança e rigor teórico, sempre com valiosas contribuições em todos os momentos dessa escrita. Aos membros da banca de defesa, Gloria Sadala e Elisabeth da Rocha Miranda, pela disponibilidade e generosidade ao ler minha pesquisa e pelas valiosas contribuições em minha banca de qualificação. A todos os professores do Programa de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, pela excelência da qualidade de ensino oferecido e pelo compromisso com a transmissão do saber. Às minhas irmãs, Jussara Maria Glaser e Marie Traude Schneider, pela contribuição com a pesquisa histórica, com os diálogos e rememorações sobre fatos relevantes, e pela incansável e constante oferta de sugestões de fontes de consulta. Aos meus filhos, Vanessa, Sabrina e Eduardo pelo carinho ao me incentivarem a perseverar reafirmando que sempre é tempo para aprender, para aumentar os conhecimentos e para realizar projetos. Vocês são minha melhor produção, meu texto encarnado. À minha sobrinha Cristine, que me apresentou o senhor Arti Hugenthobler, que, com seu entusiasmo, dividiu generosamente seu conhecimento sobre os Mucker e Jacobina, presenteando-me com livros e artigos e, também, à sua filha Luciana, pela colaboração e gentileza. Aos queridos colegas do mestrado, representados por Andreia Camargo, pelas trocas e parceria durante o tempo de angústias e dúvidas próprias à produção de um trabalho acadêmico. Ao Mauricio Loures, pelo interesse genuíno por Jacobina e sua história, e pela revisão criteriosa e eficiente do trabalho.

Aos meus amigos que receberam várias recusas de encontros sociais por entender a importância dessa jornada, em especial, à Vanisa Santos, parceira de estudos e amiga de todas as horas, minha sincera gratidão. Ao professor Martin Dreher, autor do livro A Religião de Jacobina, que me recebeu em sua casa dialogando e enriquecendo esta dissertação. Aos meus netos, continuidade da vida e fonte de inspiração. À minha netinha Maria Eduarda que, tão pequenina, compreendeu o valor dessa jornada para a vovó, que me pedia para deixar uma cartinha nos dias do mestrado e que fez de Jacobina uma personagem presente em nossos diálogos. Ao João Vicente, que chegou no meio do caminho, e ao Arthur, que nascerá tendo ouvido inúmeras vezes a palavra “mestrado”. Vocês representam a renovação e a crença do valor da vida.

“Lá onde a ave busca o ninho Onde a ponte cresce em rio, desce o morro se faz caminho. De água clara sem desvio Viveu e morreu, Jacobina Jacobina, Jacobina, Jacobina

Fere a terra com o arado Joga o grão, planta o não, se faz a vida Ergue a mão para dar ao céu a preferida, Jacobina. Jacobina, Jacobina, Jacobina

É preciso calar esta voz Não ouvir mais seu canto saindo do chão Cortar se preciso sua palavra a facão Esmagar para sempre sua bravura feroz. Tiros, balas, baionetas, foices, pás, fumaça preta. Verdades mortas rolando na terra Vão separando os destroços de guerra.”

(“Jacobina”, Grupo Caverá)

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo produzir um estudo sobre Jacobina Mentz Maurer, considerada líder política e religiosa de uma seita no interior do . Os Mucker, grupo étnico muito definido de filhos de imigrantes alemães ao qual Jacobina pertencia, sofreu perseguição, tendo se envolvido no trágico episódio conhecido como “A Revolta dos Mucker”, acontecido entre os anos de 1873 e 1874. As ideias de Sigmund Freud e de Jacques Lacan sobre religião, psicologia das massas e histeria, articuladas com relatos orais, livros e filmes que nos aproximam da história de Jacobina e dos Mucker, uma história marcada por exaltações e discursos religiosos que permitem uma apreensão, tanto das características deste grupo quanto dessa mulher, que causa tanta curiosidade nos campos da literatura e da ciências sociais, e que ainda é pouco estudada pelo viés da psicanálise. Seria Jacobina louca, santa ou bruxa, como a denominaram, ou poderíamos, a partir dos fundamentos da psicanálise, pensar nela como uma histérica? Partindo dessa aposta, buscamos situar Jacobina dentro da teoria psicanalítica sobre a histeria, mas sem a pretensão de transformar esse trabalho em um estudo de caso, pois Jacobina não passou pela experiência do divã e, por conseguinte, pelo dispositivo da transferência analítica.

Palavras-chave: Jacobina; discurso religioso; histeria; psicanálise.

ABSTRACT

The objective of this work is to produce a study related to Jacobina Mentz Maurer who was considerated to be the leader of a religious sect in the interior of Rio Grande do Sul. The Muckers is the designation given to a very defined ethnic group of descendentes of German immigrants to which Jacobina belonged. They suffered a strong persecution being engaged in the tragic episode known as "The Mucker Uprising," which took place between 1873 and 1874. The ideas of Sigmund Freud and Jacques Lacan about religion, mass psychology, and hysteria, articulated with oral reports, romances and films, approches us to the history of Jacobina and the Muckers, a history marked by exaltations and religious speeches which allows us to aprehend the characteristics of this group as well as the characteristics of this woman who rises great curiosity in the fields of the literary productions and of the social sciences. Nevertheless, she is shortly studied by the psychoanalysis. Could Jacobina be considerated to be a mad woman, or a saint, or a witch, as designated by her opponents? Otherwise, could we, based on the studies of psychoaalyses think of her as a hysterical? Betting on this possibility, we will aproach Jacobina to the psychoanalytic theory of hysteria not intending to turn this work into a study case, since Jacobina did not go through the couch experienced or the device of analytical transference.

Keywords: Jacobina; religious discourses; hysteria; psychoanalysis.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Jacobina Mentz Maurer 18 Figura 2: Jacobina e João Jorge 22 Figura 3: Cena do filme Os Mucker (1978) 27 Figura 4: Esquema de “Psicologia das massas e análise do eu” 33 Figura 5: O discurso da histeria 87

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. JACOBINA MENTZ MAURER 16 1.1 A HISTÓRIA SINGULAR DE JACOBINA 16 1.2 MULHER E LÍDER DE UM MOVIMENTO INACEITÁVEL 31

2. CONTEXTUALIZACÃO 36 2.1 ALGUNS FATOS SOBRE A IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO BRASIL 36 2.2 OS MUCKER: SANTARRÕES, FANÁTICOS RELIGIOSOS 39 2.3 ANABATISTAS E PIETISTAS 43 2.4 O DISCURSO MÁGICO/RELIGIOSO 47

3 HISTERIA: ESTRUTURA E FENOMENOLOGIA 56 3.1 UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A HISTERIA 57 3.2 A HISTERIA DESDE FREUD E BREUER 65 3.3 O CASO ANNA O. 68 3.4 JACOBINA, O CRISTO MULHER E MADELEINE, O BODE 74

4. O QUE JACOBINA NOS ENSINA SOBRE A HISTERIA? 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS 89

REFERÊNCIAS 91

INTRODUCÃO

Esta dissertação é um estudo sobre Jacobina Mentz Maurer, uma descendente de imigrantes alemães que foi considerada responsável pela criação de uma seita messiânica. Considerada líder política e religiosa de um grupo de colonos, um grupo étnico muito definido de filhos de imigrantes alemães que, entre os anos de 1873 e 1874, se estabeleceu em . Por isso mesmo, Jacobina sofreu perseguição tendo se envolvido no trágico episódio conhecido historicamente como “A Revolta dos Mucker. A sua atuação como líder, junto àquela comunidade de pessoas simples e sem educação formal foi frequentemente atravessada por fenômenos que podem ser tomados como manifestações somáticas e/ou psíquicas, e que foram consideradas por seus seguidores como sinais divinos levando-os a consagrá-la como sua líder, enquanto seus detratores a interpretavam como louca e/ou bruxa. Os escritos sobre ela são unânimes em afirmar que Jacobina foi considerada uma ameaça à ordem vigente por sua conduta e pelas praticas religiosas “curativas da alma”, causando mal-estar, tanto entre os colonos quanto entre os “donos do poder.” Como referências para este trabalho tomamos relatos orais, filmes e produções no campo da literatura e dos estudos sociais que nos permitem uma aproximação entre a história de Jacobina e sua atuação no grupo, que era acompanhada de exaltações do discurso religioso e político e que foram também considerados como manifestações “histéricas” ou loucas, conforme inclusive, diagnóstico médico. Junto a estas interpretações literárias e históricas da história de Jacobina, que há muito me causavam grande interesse, nos valemos também das ideias de Freud e Lacan sobre a religião, os fenômenos de massa e as identificações, assim como de seus estudos sobre a histeria, que vieram possibilitar uma melhor apreensão, tanto das características deste grupo quanto dessa mulher, que causa tanta curiosidade mas ainda é muito pouco estudada pelo viés da psicanálise. Com este objetivo, inicialmente traremos diferentes olhares, versões e relatos presentes em algumas produções bibliográficas, nos estudos acadêmicos, no discurso popular, na literatura e no cinema sobre Jacobina e sua relação e atuação no mencionado grupo. Foram consultados trabalhos de historiadores, antropólogos, teólogos, romancistas, bem como documentos oficiais sobre os atores dessa história.

11 Apresentaremos alguns fatos históricos relativos ao tempo em que ela viveu e morreu, respeitando o lugar que ela ocupa na cultura do Rio Grande do Sul, principalmente entre os descendentes dos imigrantes alemães. Traremos alguns autores e trabalhos acadêmicos que nos servirão de referência para esta pesquisa, começando com a prosa de Luiz Antonio de Assis Brasil, através do romance histórico Videiras de Cristal (1990), que reconstrói a trágica ação ocorrida na colônia alemã do Padre Eterno, entre as forças do Exército Imperial e o grupo de colonos denominados Os Mucker, e que, segundo a descrição histórica, eram liderados por Jacobina, a quem atribuíam, entre outras denominações ser “a encarnação de Cristo”. O romance de Assis Brasil foi o material usado pelo cineasta Fábio Barreto para produzir o filme A Paixão de Jacobina (2002), que a apresenta como uma mulher sensual e, ao mesmo tempo acolhedora e maternal. Anteriormente, em 1978, outros dois cineastas, Jorge Bodanzky e o alemão Wolf Gauer, produziram o filme Os Mucker, ambientado nos arredores do Morro do Ferrabrás, local onde viveram Jacobina e seu grupo. Nesta obra, os fatos são narrados de modo original, primeiramente porque a linguagem do filme é o dialeto germânico Hunsrückisch, falado pelos imigrantes alemães e seus descendentes e, também, pela participação como atores e figurantes de alguns moradores locais e de descendentes dos Mucker. A transmissão oral de fatos relacionados à Jacobina não será ignorada nesta pesquisa, pois as histórias contadas por populares atravessam todo trabalho, trazendo elementos tanto históricos quanto frutos de uma certa mística que cerca a figura de Jacobina. No ano de 2019, tive a oportunidade de dialogar com Arti Hugenthobler, um nonagenário autodidata, morador da cidade de Sapiranga onde está localizado o Morro Ferrabrás, local em que viveram Jacobina e os Mucker. Com sua fala de forte sotaque alemão, Hugenthobler descreveu a experiência de ter atuado como figurante no filme de Bodanzky e Gauer. Ele, generosamente, me cedeu fotos, acrescentou informações e dividiu seu conhecimento sobre Jacobina. Para desenvolver este estudo, consideramos que todo relato histórico, principalmente à época de Jacobina, de tão poucos recursos, sempre pode ser questionado, sendo, portanto, da ordem da ficção/fixão, conforme expressão de Lacan (1973/2003).

12 Como foi dito anteriormente, neste Mestrado foi possível trazer a psicanálise para elucidar muitos dos aspectos para os quais a mencionada literatura já havia me chamado a atenção, particularmente a relação deles com determinantes inconscientes que explicam tanto os fenômenos de massa de um modo geral, incluindo-se aí os fenômenos religiosos e políticos, ou seja, as questões de liderança, das identificações, assim como a presença da neurose histérica nesses processos. No primeiro capítulo, traremos a narrativa sobre Jacobina, uma mulher incomum para seu tempo, cujas manifestações somáticas e psíquicas foram tomadas por seus seguidores como sinais divinos, enquanto seus detratores interpretaram como loucura e bruxaria. o que os escritos sobre ela são unânimes em afirmar é que Jacobina foi considerada uma ameaça à ordem vigente por sua conduta e pelas práticas religiosas “curativas da alma”, causando mal-estar, tanto entre os colonos quanto entre os “donos do poder”. No segundo capítulo, traremos o contexto social, político e religioso do Brasil à época do Segundo Reinado na segunda metade do século XIX, quando havia uma pletora de justificativas políticas e religiosas, que poderiam justificar a perseguição, acusação e condenação de uma mulher e de seu grupo, por ela liderado este grupo por meio de orações, de cantos e de premonições. Ainda no segundo capítulo, será colocada a ligação de Jacobina com os colonos por conta de uma prática religiosa advinda das correntes religiosas pietista e anabatista que provavelmente lhe foi ensinada na família. Sua pregação encontrou solo fértil e resultou em admiração e obediência aos ensinamentos, não apenas das coisas de Deus, mas, também, com relação ao modo de vida que deveriam adotar. Foi esse conjunto de ações, interpretações e de mal entendidos que resultou no ataque ao grupo de Jacobina por parte do exército. A história do Brasil é prolífera em movimentos políticos com lideranças de diferentes pensamentos e ideais, mas Jacobina, a meu ver, tornou-se líder por acaso. Não havia nas reuniões em sua casa fatos relevantes ou conversas documentadas que caracterizassem um plano ou um projeto com fins políticos como é próprio dos movimentos populares. Os colonos Mucker e sua líder eram muito atravessados pelo aspecto do sagrado-religioso, emanado da força de Jacobina pela mística de que ali estava – alguém com poder de comunicação com Deus.

13 A apresentação de Jacobina como um sujeito desejante demanda saber sobre sua origem, quem eram seus pais e avós, como se constituiu esse sujeito a partir do Outro da linguagem, daí a relevância em falar de sua ascendência e do contexto da imigração alemã no Brasil, apresentando alguns aspectos e intenções do Império que propiciaram a vinda desses colonos para aquela região do país. Essas informações, embora muito reduzidas, serão importantes no que tange ao entendimento das razões, tanto das autoridades quanto dos colonos, para que ocorresse a Revolta e o consequente ataque aos revoltosos. Prosseguindo, falaremos sobre os chamados “fanáticos de Jacobina”, os colonos Mucker, narrando os fatos que os levaram a se aproximarem e permanecerem ao lado de Jacobina e de suas práticas religiosas, o que teve como consequência o fato dela ter se tornado a “catalisadora de um movimento messiânico”, como nos diz o historiador Martin Dreher, em seu livro A Religião de Jacobina (2017). As palavras de Jacobina, no que se refere às leituras e interpretações da Bíblia, geraram força e bravura coletivas. Aqueles sujeitos que participavam de seu círculo defenderam sua crença, colocando a fé e a própria Jacobina à frente da chamada ordem social, não vacilando diante do enfrentamento da morte. Ao trazer a histeria no terceiro capítulo, faremos uma aposta na possibilidade de que Jacobina possa ser tida como um sujeito histérico por conta das descrições dos fenômenos somáticos e psíquicos, dos alegados efeitos produzidos pelas rezas e pelos cânticos, e de como ela se ausentava através de desmaios e transes. Freud, ao fundar a psicanálise a partir da histeria, afirma que, tanto a histeria quanto os sonhos, são regidos pelas mesmas leis, ou seja, pelas leis do inconsciente, pela outra cena, e por suas formações. Entre as contribuições de Lacan, em seu retorno a Freud, para os estudos sobre a histeria, podemos pensar que os sintomas de Jacobina talvez tenham sido também uma forma de fazer laço com o outro a partir de sua forte ligação com a religiosidade. No livro A Lição de Charcot (2005), Antonio Quinet escreve que Lacan, ao abordar a histeria, identifica o sujeito histérico com o próprio sujeito do inconsciente. O autor acrescenta:

A grande contribuição de Lacan às concepções da histeria é considerá-la uma das formas de relacionamento humano, ou seja, um tipo de laço social (“discurso”) que ele designa como fazer desejar – a ser colocado ao lado de outros tais como governar, ensinar e psicanalisar. (QUINET, 2005, p. 105)

14 No quarto capítulo, traremos a interrogação sobre o que aprendemos com Jacobina sobre a histeria, articulando o conceito de loucura histérica como uma condição partícipe da neurose histérica que se manifesta de forma bastante radical e severa, assemelhando-se a um surto psicótico. Faremos uma aproximação com a paciente de Pierre Janet, Pauline Lair Lamotte, que adotou o pseudônimo de Madeleine, Le Bouc (Madeleine, O Bode) e que apresentava uma variedade de sintomas, muitos deles próximos daqueles que foram atribuídos à Jacobina. Seu corpo-templo, seu discurso e a adesão das pessoas a sua pregação foram usados como argumentos pelas autoridades para promover o inquérito e posterior processo legal a que seria submetida, acusada de bruxaria, de prostituição e de loucura.

15 1. JACOBINA MENTZ MAURER

Benzedeiras, rezadeiras e curandeiras são reconhecidas figuras da cultura interiorana do Brasil, povoando o imaginário de homens e mulheres com suas palavras, quase sempre sussurradas, e com seus gestos misteriosos. Representam a promessa de um contato com o divino e reforçam a crença de que o mal não vencerá. Jacobina Mentz Maurer não era benzedeira, rezadeira ou curandeira, mas, como veremos a seguir, ela encarnou para o grupo que dela se aproximou, uma figura mística, bondosa e quase divina que, através da palavra da Bíblia, da oração, dos cantos e das profecias, foi se transformando em um mito. Bruxa, feiticeira, sedutora, embusteira religiosa, prostituta, louca e devassa são alguns dos adjetivos a ela atribuídos por conta do estranhamento que causava.

1.1 A HISTÓRIA SINGULAR DE JACOBINA

Em junho de 1841 ou 1842, em dia e mês não confirmados, nasceu Jacobina, na cidade de Hamburgo Velho, atual , no Rio Grande do Sul. Filha de André Mentz e de Maria Elizabeth Müller, a menina nasceu duas décadas após a chegada ao Brasil de seu avô paterno Libório Mentz, acompanhado pela família. Quando Jacobina tinha nove ou dez anos de idade, seu pai faleceu e Maria Elizabeth, sozinha, passou a criá-la e aos seus oito irmãos. É relatado que Jacobina, desde muito pequena, apresentava um comportamento considerado estranho: mostrava-se arredia, não brincava nem interagia com as outras crianças e ficava calada a maior parte do tempo, revelando- se diferente dos seus irmãos e de sua única irmã. Aos doze anos, passou a sofrer do que a literatura sobre ela denominou de “estranhos ataques”. Na infância, Jacobina frequentou a escola, mas era considerada uma aluna que apresentava dificuldades e, talvez por isso, tenha feito um ou dois anos de aulas particulares. Segundo relatos, Jacobina só teria aprendido a ler em “letra redonda” (letra cursiva), na idade adulta e depois que Deus começou a inspirá-la. Os autores consultados nesta pesquisa são unânimes em afirmar que ela não falava nem compreendia a língua portuguesa, portanto sua comunicação se dava através do dialeto alemão conhecido como Hunsrückisch.

16 Seu cotidiano se constituía em auxiliar sua mãe nos trabalhos domésticos, tendo recebido dela uma educação rígida, permeada pelos preceitos religiosos de honestidade e de obediência a Deus, igual ao modelo de educação das crianças de seu tempo e descendência. Dentre as inúmeras dificuldades que a pobreza e a viuvez acarretavam, sua mãe, Maria Elizabeth, precisou dedicar cuidados constantes à Jacobina quando ela passou a sofrer de desmaios, a falar de forma desconexa e a ficar imóvel balbuciando sons ininteligíveis. É narrativa frequente que a menina parecia entrar em transes e passava por períodos de sono letárgico. Não se sabe como Maria Elizabeth reagia a essas estranhas atitudes, tampouco sabemos se falava com Jacobina sobre seu comportamento, ou, ainda, se as palavras do Outro materno causavam algum efeito sobre a menina. Maria Elizabeth era uma mulher simples, protestante por formação, que vivia às voltas com os afazeres da casa na precariedade da colônia, onde a vida era árdua para todos e, mais ainda para ela que, sozinha, precisava garantir a sobrevivência de seus filhos e a própria. Não foram encontrados outros relatos nem maiores detalhes sobre a infância da menina. O que se verá mais adiante é que o curso da vida de Jacobina a colocou em um lugar outro e todas essas observações que foram até agora apresentadas nos fazem pensar que Jacobina poderia ter passado desapercebida como as demais “coloninhas”, meio esquisita e pouco inteligente. Entretanto, a notoriedade e o interesse que causa até os dias de hoje são consequências de sua vida ter se entrecruzado com sujeitos doentes e carentes de cuidados e o dado mais significativo é que estavam necessitados de uma liderança. Foi nesse contexto que foi criado o grupo dos Mucker.

17 Figura 1: Jacobina Mentz Maurer

Fonte: http://genealogia.tati.dickson.nom.br/showmedia.php?mediaID=35&medialinkID=166

Uma das fontes consultadas, o livro Die Mucker, de autoria do padre jesuíta Ambrosio Schupp, foi traduzido para o português com o título Os Mucker: a tragédia histórica do Ferrabrás (1993), sendo escrito e publicado na Alemanha em 1900 e tendo a primeira edição brasileira datada de 1901. O autor nasceu em Montabur de Hessen-Nassau, em 26 de maio de 1840. Frequentou o Seminário e, em 1865, foi ordenado sacerdote, ingressando na Companhia de . Ele chegou ao Brasil em 1874, no exato tempo em que a violência explodia no Ferrabrás. O jesuíta trabalhou por quarenta anos como professor em ginásios de várias cidades do Rio Grande do Sul e, além de ensinar, escrevia poemas, contos, peças teatrais, artigos de conteúdo histórico e inúmeros trabalhos em português e alemão sobre a vida das plantas e dos animais do Brasil. No prefácio do editor da 3ª edição alemã do livro de Schupp, podemos ler: “Brasil, país que foi para ele, depois de sua pátria alemã, o mais querido pedaço de terra.” (SCHUPP, 1993, p. 15). Nesse livro, Schupp descreve o episódio do Ferrabrás e faz o primeiro relato biográfico de Jacobina e de sua participação na Revolta, referindo-se à Jacobina, já no segundo capítulo, como “a profetisa”.

Jacobina Mentz mulher um tanto lerda em sua estatura mediana e de fisionomia singularmente exaltada. Descendia de uma família de

18 anabatistas. Já em seu oitavo ano de vida nela se apresentavam de tempo em tempo estados anormais, para os quais não se tinham explicações certas. Pelos doze anos sobreveio-lhe uma grave enfermidade. De certo já antes, mas ainda mais depois dela, caía a menina repetidas vezes numa situação de total inconsciência, que punha em alvoroço enorme os circunstantes. [...] A duração destes estados psíquicos aumentava de ano em ano. Nos inícios de certo ela seria de quatro, depois de seis, mais tarde de doze horas até, e no dia antes de uma festa da Ascenção do Senhor ao Céu deu-se que ela de manhã, antes das doze horas, caísse em seu estado enigmático e nele permanecesse até o cair da tarde da própria solenidade, permanecendo pois assim ao todo bem 30 horas. Como todos os membros de sua família, tinha outrossim Jacobina um pendor profundo para o religioso místico. A Bíblia vinha a ser o seu livro predileto. Com certa sofreguidão apanhava ela partes isoladas, gravava-as em sua memória e explicava-as de modo fantástico, de acordo com sua exigência religioso-doentia. Depois de casada com Maurer, ajudava a este na práxis médica. As beberagens e pomadas, preparadas por esse, ela as costumava entregar com piedosas palavras de conforto espiritual. Não muito tardou, porém, que o método de curas de João Jorge tomasse outro caráter, sendo que Jacobina começou a representar o papel mais importante. (SCHUPP, 1993, pp. 40-41)

Schupp relata que, aos doze anos, a mãe de Jacobina levou a menina para ser consultada com o doutor Daniel Hillebrand, na cidade de São Leopoldo. O médico a teria descrito como portadora de transtornos nervosos, contudo, não se tem notícias de que tenha prescrito qualquer tratamento. O autor diz que, ao longo do tempo, as pessoas da família e os vizinhos próximos se acostumaram com as estranhas manifestações de Jacobina e que ela própria parecia resignada, aceitando seu destino. Os sintomas perduraram por toda a infância de Jacobina, vindo a acentuarem- se na idade adulta, e, como lemos acima, Schupp atribuía, tanto o sonambulismo espontâneo quanto os demais sintomas, à tendência dos membros da família Mentz para o místico-religioso. Mais à frente, traremos os dados relativos ao modo da família Mentz vivenciar sua crença religiosa. Anos depois, Maria Elizabeth voltou a procurar pelo mesmo médico, que, após escutar novamente a descrição dos sintomas da doente, teria diagnosticado uma “histeria”. Podemos dizer que essa concepção de histeria era a do senso comum, ensinada pela psiquiatria, que assim a concebeu até Freud. O médico classificou as muitas “falas” do corpo de Jacobina como uma urgência sexual em suspenso e o tratamento recomendado foi que se arrumasse, rapidamente, um casamento para a

19 moça. Os costumes, a moral e a religiosidade da época condenavam e classificavam como pecado as relações sexuais fora do casamento. O que o médico ignorava era que nos transes e nos desmaios, na agitação e nos achaques, nos risos e nos choros sem aparente motivo, nas ausências e nos sonos letárgicos, e em todos os demais fenômenos atribuídos a ela, poderia estar o sintoma do “corpo-templo” de Jacobina, que se sentia uma porta-voz da palavra divina. Seu corpo falante era invisível para ciência e para o doutor que não soube escutar a fala do inconsciente nem a causalidade psíquica na origem dos sintomas. Na consulta médica, Jacobina não falava de si, era sua mãe que a apresentava e descrevia o que se passava com ela. Talvez por não saber como lidar com o que não compreendia, ou pela crença de que pagava por seus pecados cuidando dessa filha tão estranha, Maria Elizabeth, cansada de conviver com os risos mal disfarçados da vizinhança, teria aceitado a palavra da ciência, sua filha era motivo de vergonha. Os estados descritos como anormais eram inexplicáveis e causavam grande perplexidade aos colonos, pessoas simples e de poucas letras que também não compreendiam as complexidades inerentes aos fenômenos sofridos por Jacobina. Diferentemente de Schupp, cujo livro é considerado um romance histórico, Hugo Muxfeldt, descendente dos Mucker, escreveu dois livros que constituem um relato forte e realista dos fatos: A Chacina Mucker (1991) e Os Mucker 100 anos depois (1983). Seu discurso se faz a partir da própria experiência, tendo sofrido na pele a discriminação e o preconceito originários dos relatos relacionados a Jacobina e seu grupo, o que lhe rendeu grande contestação. Muxeldt afirma que Maria Elizabeth criou as filhas mulheres, Jacobina e Carolina, em uma verdadeira ditadura doméstica e religiosa, com orações e leituras da Bíblia. As regras gerais valiam para todos os filhos e nem as meninas, nem os meninos podiam, sob nenhum pretexto, comer alimentos que lhes fossem oferecidos ou que fossem encontrados, porque o correto era conseguir sobreviver pelo trabalho, um princípio de austeridade pregado pela religião. Sob esses aspectos, tanto Schupp quanto Muxfeldt concordam que a religiosidade foi um fator determinante e constante desde sempre na vida de Jacobina. Jacobina permaneceu solteira até os vinte e quatro anos – fato raro para a época –, quando conheceu João Jorge Maurer, também ele um colono teuto- brasileiro, luterano e analfabeto. Depois de prestar o serviço militar e sem ter vocação

20 para continuar na carreira nem inclinação para o trabalho na agricultura, João Jorge foi trabalhar na marcenaria de Andre Mentz, irmão de Jacobina. Jacobina e João casaram-se em 26 de abril de 1866 e, no início, o casal foi morar com Maria Elizabeth. O relacionamento familiar, que já era bastante conturbado, sofreu piora significativa com as inúmeras brigas entre o genro, pouco afeito ao trabalho, e a sogra, incansável, de temperamento austero e inflexível – o que era comum entre as mulheres daquele tempo. O nascimento do primeiro filho do casal, Jacob, não melhorou a convivência e Maria Elizabeth decidiu que Jacobina e o marido deveriam deixar sua casa. O casal mudou-se de Hamburgo Velho, para a cidade de Sapiranga, indo viver próximo ao Morro Ferrabrás, onde João Jorge adquiriu um lote de terra. Tiveram seis filhos ao longo do casamento de oito anos.

21 Figura 2: Jacobina e João Jorge

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Jacobina e João Jorge faziam parte da primeira geração de colonos nascida no Brasil e, ao chegarem ao Ferrabrás, naturalmente, juntaram-se aos demais descendentes de alemães. A região em que se estabeleceram fora povoada pelos primeiros imigrantes originários ou da Prússia ou dos principados e ducados que, à época, estavam sendo reunidos, vindo a compor a Alemanha como a conhecemos na atualidade. Antes do casal Mentz Maurer mudar-se para o Ferrabrás, lá viveram famílias imigradas formadas por sete a nove membros em situação de muita carência e de muitas necessidades. Ao virem para o Brasil, traziam apenas os utensílios domésticos indispensáveis e as roupas mais necessárias, e poucos imigrantes trouxeram algum

22 dinheiro. Esses colonos enfrentaram desafios de toda ordem: a difícil convivência com os bugres moradores nativos, as inúmeras dificuldades no cultivo da terra inóspita, o enfrentamento com os índios e a questão da posse legal de terras que se estendeu por décadas. Segundo a historiadora Dóris Rejane Fernandes Magalhães, em seu livro Sapiranga 50 anos de Município – Mais de 200 de História (2005), as condições de vida precárias eram agravadas pelo que ela descreve como um clima psicológico instável. Mesmo passados muitos anos da chegada dos imigrantes e, principalmente, por conta da posse de terras, ocorriam constantes desavenças entre vizinhos, muitas brigas em lugares públicos e discussões por quase tudo. Todo mal-entendido era imediatamente transformado em um bate-boca. As animosidades aconteciam pelas causas mais variadas e fúteis: ou era porque a colocação das cercas nos terrenos parecia avançar nas medidas, ou pela invasão ocasional da terra alheia por algum animal doméstico. Outro assunto sério dizia respeito às violações às sepulturas ou aos danos às esculturas do cemitério, que era considerado um lugar sagrado e merecedor de respeito. Esses fatos, com aparência de simples rusgas, foram tomando vulto, dificultando a convivência e se perpetuando no decorrer dos anos.

O clima psicológico da área colonial era muito instável. Os problemas de terra decididos na justiça deixaram marcas profundas. A insegurança, o medo e a desconfiança peleiam pelos campos da outrora Fazenda Padre Eterno... Esses relatos servem para descrever como era o clima que pairava por esta região colonial. Há várias hipóteses que procuram explicar a atitude brava e muitas vezes vingativa do colono, porém nenhuma foi até agora convincente. (MAGALHÃES, 2005, pp. 73-74)

Foi sob essas circunstâncias e nesse ambiente de hostilidades que o casal Maurer se instalou e iniciou a nova vida. Dois anos após o casamento, Jacobina adoeceu com os ataques de sonambulismo, que se tornaram mais frequentes. Ela passava por longos períodos de letargia, alguns chegando a durar dez horas, de modo que ela ficava ausente e insensível à dor física, balbuciando palavras e frases sem sentido para quem ouvia, como ocorria na sua infância. Contudo, causava estranhamento o fato de que, durante o “ataque”, ela não perdesse a capacidade de raciocinar, sendo capaz até de avisar quando o próximo

23 evento aconteceria, porém, passada a crise, dizia não lembrar de nada do que lhe ocorrera. Após o nascimento do segundo filho, seus sintomas se tornaram mais agudos e João Jorge a levou para uma consulta com um conhecido curandeiro da região, chamado Wilhelm Ludwig Buchhorn. Os moradores da colônia não contavam com atendimento médico nem com hospitais e, quando adoeciam, tratavam-se com os chás, pomadas e preparados de ervas do curandeiro. O casal Mentz Maurer retornou ao Ferrabrás, pois todas as tentativas do curandeiro de aliviar seus males e de curá-la resultaram em frustrações. A novidade foi que João Jorge viu uma oportunidade de, novamente, se livrar do cabo da enxada e aproximou-se do curandeiro, estreitando a amizade entre eles e observando e aprendendo a manusear as ervas e a distinguir seus usos medicinais na cura dos males físicos. Depois de um tempo, ele passou a “atender e a tratar” de doentes em sua casa. Suas “curas” ficaram conhecidas na região e ele recebeu o apelido de Wunderdoctor, Dr. Maravilhoso ou doutor milagroso.

No princípio era apenas o Doutor Maravilhoso. – Der Wunderdoktor! Como todos exclamavam, fascinados pela habilidade em curar com as plantas, embora fosse analfabeto e seus horizontes não alcançavam além dos distritos de São Leopoldo. (ASSIS BRASIL, 2000, p. 18)

Contudo, essa designação não era um elogio, ao contrário, era um apelido maldoso dado a ele por aqueles colonos que o consideravam um charlatão, pois no idioma alemão há uma conotação negativa nessa expressão, caracterizando-se em deboche. Apesar de ser tratado com descrença por alguns, outros acreditavam em seu poder de cura e vinham de várias cidades para se consultarem com João Jorge. Às vezes, esses “pacientes” ficavam hospedados na casa do casal Maurer durante o tratamento e pagavam pelos cuidados em dinheiro, mantimentos ou produtos agrícolas.

E precisamos entender que a sociedade na qual viviam estes colonos, não via com maldade a atividade de Maurer. Era uma alternativa natural, barata e que não iria representar novas preocupações, dívidas ou alterações na rotina doméstica. Os colonos, dessa forma, resolviam seus problemas como lhes convinha. No entanto, médicos e farmacêuticos não viam com bons olhos as atividades do casal Maurer. Os comentários que teceram contribuíram para que pensassem na Colônia que o

24 trabalho do casal era de curandeiros. No século XIX, curandeiro era um termo ofensivo e mal visto. (MAGALHÃES, 2005, p. 78)

Jacobina continuava com as crises de sonambulismo e com os desmaios, mas, apesar da aparente fragilidade, passou a auxiliar o marido, confortando os doentes que aguardavam atendimento na sala de sua casa. No princípio, ela apenas fazia a leitura da Bíblia, dando sua própria interpretação ao texto, com sua palavra- pensamento, sua “palavra-fé”, sua palavra-crença, até chegar à palavra-ato, ou seja, a cura pela palavra. O catolicismo e a religião luterana predominavam na região, mas a forma como Jacobina “pregava” não atendia aos ditames de nenhuma das duas religiões. As reuniões informais em sua casa foram chamadas de cultos domésticos, que embora malvistas por padres e pastores, operavam no princípio da fé – tanto de seus ouvintes quanto dela própria. A partir desse momento, talvez tenha se iniciado a construção do mito Jacobina, ora nomeada de Cristo feminino, ora proclamada como Messias e, mais tarde, quando de sua morte, foi transformada em mártir por seus admiradores. O fato dela não seguir as normas das grandes igrejas e de interpretar a palavra bíblica de modo particular, transformou a rotina da colônia, favorecendo desconfiança e discussões entre os que a seguiam e os demais. Padres e pastores eram raros por aquela região, mas sabe-se que as instituições religiosas exerciam forte influência e que, em nome da fé, praticavam atos de toda ordem. Jacobina, com suas preces, reuniões e a pretensa habilidade de ajudar e confortar os doentes, passou a despertar xingamentos e ofensas. Ora a chamavam de bruxa, ora de louca ou prostituta e acusavam-na de, junto com o marido, praticar o charlatanismo. Jacobina, tantas vezes chamada de feiticeira, de doente ou de santa, era uma mulher que transformava costumes e reformulava posturas no grupo, fazendo laço com esse outro que lhe concedia poder e que a reverenciava, acreditando nas promessas, nas profecias e nos ensinamentos que ela dizia lhe serem faladas pelo “Espírito Natural”. Uma das orientações transmitidas por ela ao seu grupo dizia respeito ao uso do dinheiro, que foi abolido em determinado momento, dando lugar ao escambo. Ela também os orientava a reservarem parte da colheita para o replantio no momento em que as chamadas “vendas” – ou armazéns, como conhecemos hoje – se negavam a

25 comercializar com os Mucker – nem comprando seus produtos, nem vendendo a eles o que necessitavam. Isso passou a se intensificar quando as notícias sobre o que se passava na casa do casal Maurer foram ganhando vulto nas redondezas, causando um repudio a tudo que viesse dos Mucker. Mortes e crimes de incêndios em casas da vila próxima foram atribuídos aos colonos Mucker, acusações que nunca foram apuradas ou confirmadas e nem conhecidos os culpados verdadeiros. Com o passar do tempo, cresciam as acusações ao grupo, o que não impediu Jacobina de continuar cumprindo com sua missão de amparar e cuidar dos doentes. Seu nome continuou sendo falado pela colônia e a perseguição de seus detratores só fazia aumentar a crença em seus poderes entre os Mucker, que começaram a ver seus “ataques” como manifestações divinas, pois ela dizia que sua dedicação a eles tinha por finalidade tratar o coração, o espírito e a mente. Seu trabalho se estendeu e ela não apenas rezava, mas, também, durante suas crises, fazia diagnósticos e receitava remédios. “João Jorge uma vez perguntou a ela por que as plantas nem sempre faziam efeito. Jacobina respondeu: – ‘Farão se você quiser me ouvir. O Espírito Natural pode te orientar. Ele fala pela minha boca’.” (ASSIS BRASIL, 2000, p. 55). Sem médicos para tratar dos males físicos e sem padres católicos ou pastores luteranos para pregar a palavra da Bíblia, as orações de Jacobina vieram a preencher o vazio dos desatendidos, tanto pela igreja quanto pelo Estado. Ao ganhar dimensões maiores na colônia, o casal Maurer e, em particular, Jacobina, chamaram a atenção tanto dos não seguidores, como, também, das autoridades que, incomodadas com os relatos sobre a eficácia das rezas, pela crença dos colonos em suas premonições e pelos estados que seu corpo produzia, decidiram levá-la presa. Utilizaram-se da justificativa de que era uma charlatã doente e praticante de curandeirismo. Ela foi conduzida em uma carreta puxada por bois, sob escolta policial, e acompanhada por um grupo de pessoas que se encontravam em sua casa. Ao chegar à Câmara Municipal, onde iria depor, Jacobina permaneceu deitada, com olhos cerrados, inerte.

26 Figura 3: Cena do filme Os Mucker (1978)

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O delegado ordenou ao Dr. Hillebrand que a acordasse, mas as tentativas do médico foram em vão. Buscando constatar se era fingimento ou doença, o médico tentou despertá-la, submetendo-a a toques considerados ofensivos e cruéis como agulhadas e estocadas de canivete pelo corpo. Ela só teria despertado quando seus acompanhantes começaram a cantar seu hino religioso preferido, ao mesmo tempo em que seguravam sua mão. Ela então teria se sentado e declarado ter tido uma revelação aos vinte e seis anos. Descreveu uma experiência com o que denominou de “Espírito Natural” que se repetia continuamente sem que lhe fosse possível controlar quando aconteceria novamente – ela própria teria descrito o ocorrido como uma forma de êxtase.

Ela caia em sono profundo, parte imprescindível do rito de transmissão da mensagem divina; seu espirito, então, abandonava o corpo e ia ter com o Espírito; este lhe comunicava sabedoria; quando seu espirito retornava, Jacobina comunicava às pressas através da leitura de passagens determinadas da Bíblia e de sua interpretação. Ela descreve o êxtase como um período em que ficava “insensível” e diz que dele nada lembrava quando voltava ao estado normal. (DICKIE, 2008, p. 354)

Esse relato do êxtase encontra-se no livro Afetos e Circunstâncias (1996), de Maria Amélia Schmidt, resultado de seu trabalho de pesquisa das questões relativas ao processo contra os Mucker e o casal Maurer. A prisão de Jacobina foi uma das consequências do inquérito que originou, futuramente, o processo.

27 Jacobina, no entanto, praticava sua crença, indo além e ensinando aquilo que acreditava saber para quem a quisesse escutar no que poderia ser considerada uma atitude messiânica. Apesar de alguns autores afirmarem que ela tenha sido uma líder religiosa, de acordo com o que sabemos sobre ela, não é difícil imaginar que ela própria não dimensionasse o alcance de si mesma. O dado da realidade era que os doentes de seu marido a procuravam para que curasse suas dores – de que ordem fossem –, e ela o fazia afirmando falar com Deus e, através dela, Ele realizava a “cura da alma”. Durante as chamadas pregações, ela narrava suas visões, contava sobre as profecias e, cada vez mais, os colonos passavam a atribuir a ela poderes sobrenaturais. Apesar disso, Jacobina não foi uma unanimidade na colônia e, para aqueles que não acompanhavam suas práticas, suas rezas continham conteúdos obscuros condizentes com bruxaria e curandeirismo. Outro dado a ser considerado é o preconceito evidente entre seus detratores, que não concordavam com o fato de que a esposa de um agricultor tornado “doutor” por suas “curas” pudesse ser, de fato, inspirada por Deus, tornando-se uma líder religiosa sem intermediários – como Tereza de Ávila que também dizia não ter intermediários entre ela e Deus. Os ataques atribuídos a ambas guardam algumas semelhanças, mas Tereza foi declarada santa pela autoridade da Igreja Católica, enquanto Jacobina era considerada uma sacrílega, produto do pensamento de Martinho Lutero que afiançava sua ousadia de interpretar a Bíblia. Schupp foi um crítico dos Mucker e de Jacobina, e, em seu livro, afirma que a ausência da verdadeira ciência, aliada à religiosidade duvidosa de Jacobina, teriam levado seus seguidores a uma fé obstinada e não fundamentada nos princípios cristãos, que desembocaram na crença em uma falsa ideologia. Ele se refere ao casal Maurer de modo irônico, como “o casal curandeiro do Ferrabrás”, e defende a hipótese de que as rudes condições de vida na região, aliadas ao pouco esclarecimento de seus moradores e à ausência de médicos e remédios nas redondezas teria colocado os colonos à mercê de João Jorge e de Jacobina. Outro autor que se debruçou sobre a história de Jacobina e de seu grupo foi Leopoldo Petry. Em seu livro O Episódio do Ferrabrás – Os Mucker (1966), Petry considera exagerada a importância dada ao episódio Mucker. Também, não concorda com o nome de seita atribuído à pregação de Jacobina pois, para ele, ela possuía “um

28 cérebro doentio”, capaz de produzir, no máximo, explicações fantásticas da Bíblia e que suas ideias se difundiram tão somente por conta da ignorância dos colonos. Além da questão religiosa, Jacobina e seu grupo sofriam acusações de serem cruéis. Petry (1966) questiona os relatos transmitidos de forma oral e de fontes incertas que acusavam Jacobina desses atos violentos, que, segundo ele, seriam apenas boatos. O autor exemplifica suas ideias citando um trecho do livro de Schupp:

Jacobina tinha mandado degolar o menor de seus filhinhos, para que a criança não traísse com sua gritaria seu esconderijo. Para além disso havia ordenado que, num certo dia, se fizesse o mesmo quanto a todas as demais crianças de menos de cinco anos. Pois, assim como os inocentes de Belém tinham dado seu sangue pelo Salvador, da mesma forma devia caber a eles (a ela) a salvação pelo sangue das crianças de tenra idade. (SCHUPP, 1993, p. 292)

Petry (1966) ressalta que se esse fato fosse verdadeiro, o infanticídio teria ocorrido na casa onde Jacobina e mais dezessete pessoas – entre homens e mulheres – foram cercados e mortos no ataque do dia dois de agosto de 1874, portanto, não haveria ninguém que presenciara o ato brutal e que pudesse ter contado esta história a posteriori. O conjunto das informações obtidas dos autores citados nos conduzem a uma reflexão em que predomina a contradição e, por conta disso, acreditamos poder construir uma narrativa sob novo olhar, livre de censura ou julgamento e sem negar que o enigma sempre estará presente quando se trata de Jacobina. Segundo Martin N. Dreher (2017), Jacobina agia sob influência dos ensinamentos religiosos de sua família paterna, advinda da tradição pietista, de quem se tem mais informações, já que pouco ou quase nada foi escrito sobre a família de sua mãe. Embora seu pai tenha morrido cedo, aparentemente ela e seus irmãos foram criados dentro dos ensinamentos religiosos de seu avô, Libório Mentz, e de sua mãe. Jacobina repetia muitas das práticas que Libório iniciara há cinquenta anos atrás, ainda na Alemanha, como, por exemplo, ordenar os pais a retirarem as crianças da escola para que fossem educadas em casa para evitar contatos que pudessem incentivar comportamentos inadequados, afirmando que o modo de ensinar deveria ser reformado de acordo com a nova doutrina. As escolas eram ligadas às religiões tradicionais as quais operavam sob o conceito de Igreja, ou seja, missas e cultos deveriam acontecer nas capelas e templos, por isso, os colonos que frequentavam as

29 reuniões na casa dos Mentz Maurer rompiam com a tradição e se colocavam à margem dos costumes. Outra ruptura – que pode ter sido a mais difícil de ser aceita à época e, talvez, ainda, na atualidade – relacionava-se ao fato de que os Mucker estavam sob a liderança de uma mulher, quando o exercício da função eclesiástica era até então exercida por padres e pastores ordenados e as mulheres ficavam reduzidas a esfera doméstica, cabendo a elas transmitir os ensinamentos religiosos aos filhos, enquanto o homem exercia a representatividade junto à igreja. Jacobina foi responsabilizada pelo afastamento dos colonos da escola e da comunidade religiosa. Este último aconteceu entre abril e maio de 1873, causando uma reação forte entre os demais colonos. Segundo Magalhães (2005), o pastor da igreja luterana Friedrich Wilhelm Boeber, influente e respeitado na região, procurou levar os ausentes de volta para a igreja, afirmando que a participação comunitária era essencial para o enfrentamento das adversidades e para a manutenção dos laços de união entre os descendentes de alemães. No entanto, essa tentativa não alcançou êxito, pois o grupo do Ferrabrás retirou as crianças da escola mesmo assim e deixou de frequentar a igreja. Boeber afirma:

Aqueles que se denominam “Jakobiner” pela seita pagã Mucker, que repudiam a Escola e a Igreja, que veneram a uma mulher como Jesus e conduzem de todos os modos à loucura e extravagância, como de fato tem desencadeado ou ainda vão desencadear, dirijam-se através dos seus próprios direitos à Igreja evangélica local e mais, como membros da organização da Comunidade Evangélica local eles acabarão sendo assumidos. (PFARR-CHRONIK, 1925, apud MAGALHÃES, 2005, p. 82)

Boeber diz no púlpito que o que se passava no Ferrabrás é coisa do demônio, é Mucker, e, segundo ele, uma possível definição para o termo Mucker seria similar a “curandeiros”. O curandeirismo representava grave acusação e, ao tornar público seu raciocínio, o pastor talvez não tenha considerado o fato de que suas palavras poderiam aprofundar as diferenças entre Mucker e não Mucker e vir a causar reações violentas de parte a parte. Ele prossegue em seu propósito e encabeça um abaixo- assinado, junto com o professor João Weiss, solicitando providências para garantir a segurança dos colonos que se sentiam ameaçados pelo casal Maurer. Esse documento foi o precursor da denúncia que resultou no inquérito policial citado acima

30 e que desencadeou o processo contra os seguidores dos Maurer e os integrantes do grupo dos Mucker, o que viria a levar Jacobina e João Jorge à prisão. Em algum momento de sua curta vida, Jacobina foi vista de um modo que talvez ela própria não tenha percebido e mesmo depois de morta ela continua sendo retratada de diferentes maneiras. Os questionamentos permanecem sem resposta e muitas dúvidas ainda perpassam o imaginário, não apenas neste estudo, mas na história do Rio Grande do Sul. Teria Jacobina alguma intenção de ser vista como a retratam as muitas histórias sobre ela? Seria possível pensar que o feminino quando toca o sagrado causa indagações, receios e descrenças? Teria ela procurado alguma espécie de poder, cultivando admiradores e ignorando seus contrários? A essas questões não podemos responder pela ausência de sua fala. Seria ela doente ou seu corpo falante, aos moldes das histéricas de Charcot, apontava para um desejo subversivo, que lhe permitia enfeitiçar a plateia? Era uma bruxa que merecia ser morta sem deixar vestígios? É sabido que Jacobina foi morta a tiros e que seu corpo já sem vida foi cortado a facão principalmente no rosto e na região dos lábios. Como podemos escutar no poema musicado do Grupo Caverá: “era preciso calar esta voz”. É preciso lembrarmos que o fato de Jacobina ser uma mulher que liderava homens e mulheres em um universo patriarcal, retirando das igrejas a intermediação com Deus através de suas alegadas revelações e abrindo a possibilidade de romper com o estabelecido sem negar ou se afastar do que transcende. Suas palavras, talvez, ressignificassem a vida e a morte no universo dos que possuíam pouco ou quase nada. É esse um tema encontrado na pluralidade das religiões, a vida e a morte, e, para variados credos, depois da morte haveria mais vida devido à promessa de eternidade.

1.2 MULHER E LÍDER DE UM MOVIMENTO INACEITÁVEL

O artigo freudiano intitulado “Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921, nos servirá para pensarmos a liderança atribuída a Jacobina no movimento social e religioso que resultou no extermínio da esmagadora maioria dos Mucker, dos muitos de seus descendentes e dela própria, pelas forças do exército Imperial. Na introdução do artigo, Freud afirma:

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A psicologia de grupo se interessa pelo indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma multidão de pessoas que se organizam em grupo, numa ocasião determinada para um intuito definido. (FREUD, 1921/1996, p. 82)

Com essa citação, levantam-se questões referentes a nossa personagem, pois não há relatos dela ou de algum membro daquela colônia de que fosse seu desejo organizar um grupo com um objetivo definido. O estudo que faço de Jacobina evidencia, até o momento, uma mulher a quem são atribuídos poderes de persuasão, de convencimento, a partir de suas crenças e de sua prática religiosa. O pensamento freudiano reitera que o homem é um animal gregário, animal da horda, que vive sob o domínio de um chefe ou de um líder, afirmativa que se presentifica já nas relações familiares. Esse líder deve agregar algumas qualidades indispensáveis, tais como ter fé para fazer surgir uma crença no grupo e ter vontade potente para animar o grupo que carece de vontade e necessita de prestígio. A identificação ao líder ocorreria pela via afetiva por amor a uma causa ou a uma ideia (FREUD, 1921/1996). Para uma melhor compreensão acerca da identificação ao líder, cabe recorrer ao texto “Introdução ao narcisismo”, publicado em 1914, mais especificamente na parte onde Freud discorre sobre a idealização. Nesse texto, Freud define a idealização como uma fixação a um objeto. Esse objeto é engrandecido, de modo que sujeito o exalta, transformando-o num ideal. É essa idealização de si mesmo que o líder promove em seus seguidores. As pessoas com as quais ele tem que contar geralmente padecem do conflito entre o eu ideal e o ideal do eu. Esse conflito resulta em impulsos narcisistas que só podem ser absorvidos e satisfeitos pela idealização enquanto transferência parcial da libido narcísica para o objeto. Isso, por sua vez, corresponde à semelhança da imagem do líder com uma ampliação do sujeito: fazendo do líder seu ideal, o sujeito ama a si mesmo, por assim dizer, mas se livra das frustrações e descontentamentos que degradam a imagem que tem de seu próprio eu. Freud (1921/1996) se refere ao grupo como sendo vários sujeitos que elegeram um mesmo objeto como seu Ideal do eu e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seus eus – tal como esquematizado abaixo.

32 Após as discussões anteriores, estamos, no entanto, em perfeita posição de fornecer a fórmula para a constituição libidinal dos grupos, ou, pelo menos, de grupos como os que até aqui consideramos, ou seja, aqueles grupos que têm um líder e não puderam, mediante uma ‘organização’ demasiada, adquirir secundariamente as características de um indivíduo. Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do Eu e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu Eu. Esta condição admite uma representação gráfica. (FREUD, 1921/1996, p. 126)

Figura 4: Esquema de “Psicologia das massas e análise do eu”

Fonte: FREUD, Sigmund. (1921). “Psicologia das Massas e a Análise do Eu”. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 126.

Ainda que busquemos motivações políticas ou religiosas, não há provas de que havia uma causa específica nas reuniões dos colonos. Os relatos atribuem a eles a luta por melhores condições de vida – que aconteceria quando se concretizassem as previsões que Jacobina anunciava. Por essa razão, seria uma tarefa trabalhosa traçar um perfil de Jacobina aos moldes do que se entende por um líder. Le Bom sugere a hipótese de um “inconsciente social”, de onde emergiria a “alma coletiva” a partir de um sentimento de potência invencível. Quanto mais anônimo for o grupo, menor é a responsabilidade individual, porque o sujeito abdica do interesse pessoal a favor do interesse coletivo, que passa a ocupar o lugar do desejo. Também, lhe é retirada a consciência sobre seus atos, abolindo-se certas faculdades e exaltando-se outras, despojando cada sujeito de sua personalidade e colocando-os sob o domínio da orientação de ideias e sentimentos por sugestão e por contágio. Vigora a tendência a transformar as ideias apenas sugeridas em atos.

33 Perdidos todos os traços pessoais, o sujeito passa a ser um autômato sem vontade (FREUD, 1921/1996). A alma coletiva, segundo Le Bom, se forma porque existem laços afetivos, relações que sustentam a hipótese freudiana de que o grupo permanece unido pelo poder de Eros, responsável por manter a coesão. Ao renunciar ao que lhe é pessoal, o sujeito acompanha os atos praticados pelo grupo e experimenta a sensação de estar em concordância aos demais por amor. Freud (1921/1996) diz que tanto Le Bon quanto Mac Dougall são pouco amistosos ao descreverem o comportamento psicológico de um grupo não organizado:

[...] excessivamente emocional, impulsivo, violento, inconstante, contraditório e extremado em sua ação, apresentando apenas as emoções rudes e sentimentos menos refinados [...] daí seu comportamento se assemelhar mais ao de uma criança indisciplinada ou de um selvagem passional e desassistido numa situação estranha [...]. (FREUD, 1921/1996, p. 96)

Os Mucker são frequentemente retratados como pessoas rudes, religiosos extremados avessos aos avanços e aos progressos da ciência, mas que, ainda assim, teriam formado um grupo com o objetivo de promover uma revolta de insubordinação às igrejas e ao Império. É corrente o relato de que eram pessoas simplórias que sequer dominavam o idioma português, fato que criava grandes dificuldades para fazer valer os seus direitos ou exigir o cumprimento das promessas de terra e trabalho que o Império lhes oferecera. Desse modo, faz sentido pensar que tenha sido fácil para eles aderir a uma liderança que lhes garantia, além de melhores condições de vida, a sensação de pertencimento a um grupo cujos valores e crenças seriam respeitados. Através do discurso e dos estranhos fenômenos presentes no corpo, Jacobina poderia estar produzindo um processo mágico-religioso, trazendo uma mensagem animadora ali onde o real se fazia presente apontando para a fragilidade de todos. De um modo muito peculiar, Jacobina produzia elementos de discurso cujos significantes provocaram uma ruptura na sociedade. As ideias sobre o feminino do final do século XIX, advindas do final da era medieval, pregavam a castidade, o jejum e a humildade, condições exigidas à mulher, tanto pela igreja católica como pela protestante luterana. Até meados do século XX,

34 as mulheres cobriam seus cabelos com um véu ao assistirem à missa e, até os dias de hoje, não é permitido a ordenação de mulheres no corpo da Igreja Católica. As produções discursivas no século XIX e o campo imaginário sobre as mulheres as descrevem como seres de natureza voltada para a família e para a igreja, um dito que, na maioria das vezes, expressa não um saber sobre a mulher, mas o suposto saber do homem sobre ela. Portanto, uma mulher na posição de líder de um movimento era inaceitável e, talvez por isso, à Jacobina restou apenas a acusação de desvario e de loucura. O Estado, a Igreja, a cultura e o momento histórico são formadores de opinião mas também produtores de censura aos comportamentos. Não foi diferente com Jacobina, talvez uma mulher à frente de seu tempo! Difamada pela igreja, chamada de prostituta, feiticeira e adúltera, foi internada como demente, mas liberada logo após, talvez porque aqueles que a acusavam não conseguissem explicá-la.

35 2. CONTEXTUALIZAÇÃO

Compreender porque falar sobre Jacobina Mentz Maurer e sobre o protagonismo a ela atribuído dentro do movimento conhecido como a “Revolta dos Mucker” demanda conhecer o momento histórico e o contexto político e social em que ela viveu e sua participação e influência na vida daquele grupo de colonos. À luz da psicanálise, com Freud e Lacan, vamos avançar para, talvez, alcançar um saber a mais ou um possível entendimento sobre ela e sua vida, sobre seus encontros e desencontros e sobre sua participação no conflito.

2.1 ALGUNS FATOS SOBRE A IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO BRASIL

Em 1808, a família real portuguesa refugiou-se no Brasil quando da invasão de Portugal pelas tropas do exército napoleônico. Durante a estadia da família real no Brasil, evidenciaram-se as carências da colônia, principalmente no atendimento às necessidades da corte. Face a essa realidade, D. Joao VI abriu os portos para o comércio com as demais nações, o que o fez reconhecer a necessidade de povoar a terra e desenvolver a agricultura e a indústria para fomentar a economia. Em 1818, ele assinou o Tratado de Nova Friburgo que permitiu a chegada dos primeiros imigrantes europeus vindos do Cantão de Friburgo, fundando, em 1819, a colônia de Nova Friburgo nas proximidades da residência de verão da família real na hoje conhecida cidade de Petrópolis. Essa iniciativa de Dom João fracassou em virtude dos altos índices de mortalidade e das condições precárias de vida, o que ocasionou o retorno dos colonos ao seu país de origem. Contudo, em 1821, Dom Joao VI e sua corte retornaram a Portugal, deixando seu filho Pedro como regente. Com a independência do Brasil, em 1822, Dom Pedro I, já como Imperador do Brasil, buscou meios de desenvolver o país e, sob a influência de sua esposa, Dona Leopoldina, arquiduquesa da Áustria, retomou a colonização estrangeira, enviando à Europa o major-médico de origem germânica, George Antonio von Schäffer como agente de imigração. O trabalho do major foi o de montar uma rede de subagentes que o auxiliavam na missão de promover a vinda de colonos para desenvolverem a agricultura familiar. Em menor escala, também era um objetivo engajar soldados mercenários para lutar pelo Brasil nas guerras ocorridas ao longo do século XIX. Segundo Vivaldo

36 Coaracy, em seu livro A Colônia de São Lourenço e seu Fundador Jacob Rheingantz: “O propósito do soberano não era atrair agricultores, mas conseguir soldados mercenários com que reforçar as tropas Imperiais como ainda era comum naquela época.” (COARACY, 1957, p. 11). Nesse momento do processo imigratório, a Coroa se voltou para o Rio Grande do Sul, muito embora a imigração de alemães, suíços e pomeranos tenha se expandido mais à frente para outros estados como Santa Catarina e Espírito Santo. No que tange a este estudo, ficaremos atidos ao Rio Grande do Sul, mais especificamente aos dados relacionáveis à figura de Jacobina. Em 23 de dezembro de 1823, vindos de diferentes regiões da Alemanha, embarcaram na cidade de Hamburgo, no navio Caroline, os primeiros cento e vinte imigrantes com destino a Porto Alegre, onde chegaram em 25 de julho de 1824. De lá, a bordo do precário veleiro “Protetor”, rumaram para seu destino, a Real Feitoria do Linho Cânhamo às margens do Rio dos Sinos, hoje a cidade de São Leopoldo. O grupo era constituído por agricultores, artesãos e, também, por alguns soldados. Segundo o historiador Martin Dreher, em seu livro 190 Anos de Imigração Alemã no Rio Grande do Sul, os motivos da vinda daqueles alemães para o Brasil teriam sido, primeiramente, pela necessidade de mão de obra para a produção de alimentos para o consumo interno, mas, também, havia o objetivo da Coroa de povoar o interior do Rio Grande com base na agricultura familiar. Posteriormente, entre 1824 e 1845, verifica-se que de acordo com a historiografia da imigração alemã, os agricultores, eram em menor número. Cerca de 60% dos imigrantes que viviam em São Leopoldo eram comerciantes, artesãos, sapateiros e marceneiros, profissionais dos quais o Brasil carecia. No exercício de suas profissões, esses colonos também eram a promessa da criação de um mercado interno com a transformação das pequenas manufaturas em indústrias de médio e grande porte, substituindo, aos poucos, a mão de obra escrava. O desenvolvimento do artesanato trazido pelos alemães fez surgir, mais à frente, grandes indústrias de modo que algumas famílias fundadoras permaneceram no cenário econômico brasileiro através de seus descendentes. São nomes como Renner, Gerdau, Oderich, Ritter, Adams, Dreher e Mentz, entre outros. Libório Mentz e Madalena Ernestina Lips, avós paternos de Jacobina, assim como seus pais, André Mentz e Maria Elisabeth Müller, chegaram ao Brasil no primeiro

37 grupo de imigrantes. Consta que foram recebidos pelo imperador Dom Pedro I e pela Imperatriz Dona Leopoldina em pessoa. Libório teria chamado a atenção da imperatriz por ser bastante idoso, o que era incomum entre imigrantes. Ele teria informado que o motivo de sua vinda para o Brasil era o fato de ter sofrido perseguição religiosa em seu país por discordar das práticas da Igreja Luterana que, segundo ele, havia se distanciado dos ensinamentos bíblicos. A imperatriz teria garantido a ele e a todos total liberdade de culto religioso. Um dado importante é que até o ano de 1808, por ocasião da abertura dos portos brasileiros ao comércio exterior, a imigração para o Brasil não era permitida a não católicos. O segundo motivo da proximidade entre o imigrante e a imperatriz teria sido o fato daquele trazer uma carta de Herr Goethe, amigo de Dona Leopoldina. Em retribuição a tal gentileza ela teria ordenado que fosse concedido o Lote 1 da colônia de Hamburgo Velho à família Mentz. Esses homens, mulheres e crianças trouxeram novos costumes, seus dialetos, sua culinária, suas festas e, também, o marco da religião evangélica luterana. A questão religiosa perpassará toda a trajetória da vida de Jacobina e de seus antepassados conhecidos. No Brasil, eles encontraram uma natureza rude e selvagem que os obrigou a abrir “picadas” (caminhos) para poder cultivar a terra e criar os animais domésticos. Desconheciam o idioma, pois muitos deles não eram letrados e se surpreenderam tanto com a população negra, com seus “olhos de gato”, quanto com os “índios bravios”. Como diz Josué Guimarães, em seu romance homônimo: “Muitos conseguiram sobreviver [...] então temos a história de homens e mulheres em solidão que plantaram as suas raízes, a ferro e fogo, nas fronteiras movediças dominadas por castelhanos, índios, tigres, caudilhos e portugueses” (GUIMARÃES, 1921/1978, p. 5). A flora exuberante, porém, inóspita e a fauna desconhecida acarretaram inúmeras dificuldades de adaptação, o que não impediu que alimentassem o desejo de progredir no novo mundo, imbuídos das promessas do governo imperial de que aqui teriam terras, ferramentas, oportunidade de trabalho e escola para suas crianças. Erico Veríssimo, no primeiro volume de O Continente, da trilogia O Tempo e o Vento, assim descreveu as mudanças ocorridas com a chegada dos colonos ao Rio Grande:

38 O ar da antiga Feitoria do Linho Cânhamo se enche do som de machados, serrotes, martelos e vozes estrangeiras. Árvores tombam, picadas se abrem, e escondidos dentro do mato bugres e bugios espiam intrigados aqueles homens louros. (VERÍSSIMO, 1981, p. 37)

A esse tempo, formaram-se dois núcleos de imigrantes bastante diferenciados: o primeiro, composto de pré-industriais do calçado e de comerciantes, constituía uma classe economicamente dominante na região. Eram ligados às igrejas históricas, a católica romana e a protestante – esta última pertencente ao que hoje vem a ser a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Os demais eram na maioria agricultores, que lavravam a terra e plantavam com as próprias mãos, utilizando parcos recursos e ferramentas rudimentares. Eles viviam precariamente, desassistidos, passando por grandes dificuldades por conta do não cumprimento das promessas oficiais. Quase não falavam português sendo seu idioma corrente o “Plattdeutsch” ou baixo alemão, dialeto da província alemã do Hunsrüch, de onde muitos eram originários – o que, para o pensamento da época, era sinônimo de “pessoas incultas”. É conhecida por todos descendentes de alemães a expressão “colona grossa” no Rio Grande do Sul, que veio a substituir outra expressão, “negro grosso”, referindo- se àqueles que realizavam o trabalho indigno do branco e livre. Libório Mentz, avô de Jacobina, e sua família faziam parte do segundo núcleo de imigrantes.

2.2 OS MUCKER: SANTARRÕES, FANÁTICOS, RELIGIOSOS

Os Mucker foram um grupo de cento e cinquenta descendentes dos primeiros imigrantes alemães, tidos como fanáticos religiosos e violentos, estabelecidos na localidade de Padre Eterno, hoje a cidade de Sapiranga, próxima ao vilarejo Fazenda Leão, em Campo Bom, entre o Ferrabrás e Hamburgerberg, no Rio Grande do Sul. Viviam em vilarejos denominados de colônias com carências de toda ordem, em consequência do descaso e da ausência do Estado. O que significa Mucker? Esse termo da língua alemã tem origem no verbo “mucken”, que significa “incomodar”, porém essa designação gerou e continua causando controvérsias entre os autores quanto ao seu significado.

39 Doutora Lúcia Serrano Pereira, autora de O Zumbido dos Rezadores – Religiosidade e Identidade Colona, encontra a informação mais interessante que obteve, mais viva, de que MUCKER, como verbo, é relativo ao zumbido que faz o enxame de abelhas. A expressão “ter um mucker” é ter um zumbido na cabeça, ter “um parafuso frouxo”. (SANT’ANA, 2001, p. 24)

De acordo com o dicionário alemão Der Grosse Brockhaus, o termo Mucker pode ser traduzido como alguém com a aparência de santo, mas em quem não se pode confiar (BROCKHAUS, s/d). O termo foi usado de forma pejorativa na Alemanha no século XVI para se referir aos luteranos ligados à corrente pietista. Tanto o jesuíta Ambrósio Schupp quanto o escritor Leopoldo Petry, traduziram o termo como santarrão ou beato. Outros significados também foram encontrados, tais como: inconformado, contestador, teimoso, vingativo, fanático, embusteiro, reclamante ou casmurro. Esses homens e mulheres, em sua maioria, professavam a religião luterana, mas estavam abandonados na colônia pelas duas grandes igrejas predominantes no Rio Grande àquela época: a Luterana e a Católica. Também, conviviam com a falta de médicos e de escolas e trabalhavam nas roças sob condições muito primitivas com poucas ferramentas em um cenário muito diverso daquele dos primeiros anos da imigração. Nesse vazio e sob a premência da necessidade inicia-se o trabalho de João Jorge como curandeiro e a atuação de Jacobina nos cultos domésticos. O grupo de colonos que buscava assistência na casa do casal Maurer passou a ser rejeitado pelo conjunto da Colônia Alemã, sendo acusados de estarem criando uma seita comandada por uma mulher “doente”. Diziam que seu modo de vida contrariava a imagem do colono ordeiro e trabalhador que os demais descendentes de alemães desejavam passar, muito embora os hábitos dos Mucker correspondessem aos ensinamentos bíblicos e às práticas religiosas mais austeras, não consumiam bebidas alcóolicas e se vestiam com sobriedade. Essa exclusão pode ter sido um dos motivos que fez crescer o número de adeptos aos cultos na casa do casal Maurer, na mesma proporção em que cresciam os conflitos com os demais colonos. Neste contexto Jacobina foi sendo cada vez mais procurada, pois algumas profecias eram entendidas como fatos o que reforçava uma fé nesta mulher que passou a ser nomeada como a reencarnação do Cristo, inclusive era dito que ela prometia a criação da Cidade de Deus.

40 A partir de 1866, acirraram-se os ânimos na colônia e alguns críticos do grupo foram mortos ou tiveram suas casas incendiadas. Jacobina e seu marido foram acusados de instigar seus seguidores contra a lei e a ordem, além de praticarem o curandeirismo. Por essa razão, foram levados pela polícia para interrogatório sobre os incidentes, mas por falta de provas o casal foi liberado. Os crimes atribuídos aos Mucker nunca foram esclarecidos. Esse período de violência entre os colonos provocou a intervenção de tropas do exército imperial no conflito regional conhecido como a Revolta dos Mucker. Em vinte e oito de junho de 1874, a polícia local enviou cem homens liderados pelo Coronel Genuíno Sampaio em um cerco à colônia onde os Mucker viviam. No entanto, estes resistiram e, mesmo possuindo meios precários, enfrentaram o que restara do Exército Imperial após a Guerra do Paraguai, impondo numerosas baixas à tropa. “Os soldados do Exército e da Guarda Nacional estavam certos de lutar contra pactuantes com o demônio” (AMADO, 1978, p. 289) Um novo ataque aconteceu em dois de agosto de 1897, após Carlos Lupp, um dissidente dos Mucker, revelar o esconderijo de Jacobina no Ferrabrás ao General Santiago Dantas, então comandante das tropas imperiais. É relatado que João Jorge e cinco filhos foram capturados e presos, mas Jacobina fugiu com seu bebê de três meses para um esconderijo “no monte” com outras dezesseis pessoas. A razão para Jacobina buscar refúgio nesse lugar estava na Bíblia, o Ferrabrás era como Jerusalém ou a Judéia. Na Bíblia Sagrada (1964), “Evangelho segundo Lucas” (capítulo 21, versículos 20-24), encontramos:

Quando, porém, virdes Jerusalém sitiada de exércitos, sabei que está próxima a sua devastação. Então, os que estiverem na Judéia fujam para os montes; os que se encontrarem dentro da cidade, retirem-se; e os que estiverem nos campos não entrem nela. Porque estes dias são de vingança, para se cumprir tudo o que está escrito. Ai das que estiverem grávidas e das que amamentarem naqueles dias! porque haverá grande aflição na terra, e ira contra este povo. Cairão ao fio da espada e serão levados cativos para todas as nações; e, até que o tempo dos gentios se completem, Jerusalém será pisada por eles.

Eles foram perseguidos e mortos a tiros ou degolados, como que cumprindo- se as Escrituras, terminando suas vidas no monte, fieis à sua fé. Jacobina recebeu um tiro na cabeça e um golpe de facão no rosto. Algum tempo depois de morta, seu corpo foi desenterrado e novamente sepultado em uma vala comum e o local foi queimado com cal.

41 João Jorge Maurer, esposo de Jacobina, foi preso, mas seu destino permaneceu desconhecido após o cumprimento da pena. Alguns dizem que ele teria se enforcado e outros afirmam que teria ido viver na cidade de Uruguaiana. Os sobreviventes do grupo foram julgados ao longo de seis anos, sendo todos absolvidos. Após sua soltura, alguns foram mortos e outros enfrentaram a perseguição dos colonos da região. Por longo tempo, seus descendentes escondiam sua origem, porque as representações imaginárias e os relatos sobre ela carregavam o estigma de serem herdeiros de um fanatismo religioso associado a um comportamento não aceito pelas “regras e bons costumes”. O paradeiro dos filhos do casal é incerto e, na atualidade, há descendentes da família vivendo em Porto Alegre, em Palmeiras das Missões e em Uruguaiana no Rio Grande do Sul. Jacobina continua sendo objeto de estudo também no campo da paranormalidade e, por essa razão, é dito que alguns descendentes teriam herdado essa condição. A atuação de Jacobina no conflito continua sendo estudada, pois algumas publicações não foram imparciais em seus relatos, o que na verdade não interfere na multiplicidade de conjecturas e no interesse na discussão entre defensores e acusadores. O livro de Ambrósio Shupp enfrenta a crítica de que seria um ataque ao luteranismo, uma vez que nele o autor, como um jesuíta católico, desaprova a permissão da leitura da Bíblia por pessoas sem preparo, por conseguinte, o movimento Mucker seria uma consequência de uma interpretação fanática dos textos. Sabemos que uma das críticas de Martinho Lutero ao catolicismo era a proibição da leitura da Bíblia pelos leigos. Depois da Reforma, os luteranos tiveram acesso irrestrito às Sagradas Escrituras. Leopoldo Petry escreveu seu livro com recursos da família Mentz. Ele é descendente de alemães e católico, mas também enfrenta críticas, acusado de relativizar o comprometimento dos Mucker enquanto seita ou grupo religioso fanático. O grande número de trabalhos acadêmicos que tratam do assunto e os muitos estudiosos que se debruçam sobre documentos recolhidos ao longo do tempo fazem com que Jacobina e os Mucker sempre reapareçam ou atestem que nunca tenham desaparecido.

42 2.3 ANABATISTAS E PIETISTAS

Não poderia deixar de trazer informações, embora bastante reduzidas, do que foram os movimentos religiosos anabatista e petista, uma vez que é citado correntemente nas fontes pesquisadas que Jacobina reproduzia os ensinamentos familiares no campo da religião e que sua família paterna era adepta ao pietismo. A origem desse movimento religioso está ligada a outro grupo, denominado de anabatismo, que se originou do protestantismo e teve início na Alemanha, se expandido para a Polônia, a Hungria e, mais tarde, para os Estados Unidos. O anabatismo foi um movimento religioso no período da Reforma Protestante no século XVI, na Europa. O tempo histórico e fático em que surgiu a Reforma Protestante foi marcado por incertezas e perturbações sociais e, de um modo mais amplo, os movimentos reformistas não foram considerados pacíficos, porque desafiaram as estruturas política, social e religiosa. Nessa divisão do cristianismo encontravam-se, de um lado, os católicos romanos e, do outro, os protestantes. A Reforma Luterana não produziu uma corrente única de pensamento, mas, pelo contrário, havia divisões estabelecidas muito claras e, pela oposição de ideias, os diferentes grupos não poderiam ficar neutros. Os anabatistas discordaram de Martinho Lutero e de Zwinglio Huldreich, reformador que criou o conceito de comunidade hermenêutica. Inconformados com a indecisão de Zwinglio e com sua falta de atitude em levar em frente suas próprias ideias, três de seus seguidores se rebelaram e tomaram para si a liderança dos autonomeados protestantes opositores, alegando que as reformas propostas não realizavam as mudanças e aprofundamentos como idealizados. Esses “rebeldes” propunham e pregavam o afastamento e o isolamento da sociedade de forma pacífica. Em algumas circunstâncias, muitos protestantes foram convocados a pegar em armas para reafirmar seu posicionamento contra a Igreja Católica e foi nesse contexto que os anabatistas puderam ser analisados, porque diferiam dos demais quando buscaram protestar sem o apoio do Estado. Por esse posicionamento, este foi o movimento protestante mais perseguido, com seus adeptos sendo acusados de subversão e de heresia, ficando à margem, tanto da ordem social quanto da religiosa. Sua reinvindicação básica era a separação entre Igreja e Estado e, por questões teológicas, pregavam a não validade do batismo

43 infantil dos católicos, decidindo rebatizar os adultos já batizados. Essa prática originou o nome anabatistas, que significa “os que rebatizavam”. Eles acreditavam que a igreja era uma comunidade voluntária e que aderir a ela era um ato pessoal e nunca fruto da vontade do Estado. Argumentavam que, se Igreja e Estado deveriam ser entendidos como uma sociedade indivisível e inseparável, então, como consequência natural, todos os homens nascidos sob um determinado Estado seriam automaticamente cristãos, o que para eles não era admissível. Eram pacifistas radicais negavam-se ao uso de armas sob qualquer motivo, fosse para defesa pessoal, da família, da Igreja ou da Pátria. Mas, naquele contexto, a Igreja e o Estado estavam interligados e, consequentemente, as autoridades civis e os movimentos religiosos não concebiam separar a vida política da vida civil e religiosa. Lutero foi apoiado pelos príncipes alemães e, por conseguinte, apoiava a estes contra os grupos que pregassem o afastamento. As disputas foram levadas ao campo de batalha e retiraram um tanto dos propósitos mais nobres da Reforma, pois resultaram em 100 mil camponeses rebeldes mortos e em perseguição e morte de muitos anabatistas. As guerras religiosas contribuíram para o arrefecimento desse movimento e, em países notoriamente católicos, os protestantes foram praticamente dizimados. Na Suíça e na Alemanha, eles foram submetidos à pena de morte de modo supliciante: ou por afogamento ou eram queimados vivos, principalmente as lideranças. Outros seguidores eram decapitados ou mortos por tortura, como por esquartejamento, e as mulheres eram enterradas vivas. Na atualidade, o grupo praticante mais ortodoxo, conhecido por praticar a vida simples, são os Amish, que vivem isolados no interior dos Estados Unidos. Não utilizam luz elétrica, telefones, carros ou outras formas de comodidade do mundo moderno. Na virada do século XVII para o século XVIII, após o período das cisões entre luteranos, protestantes e reformados, a Igreja sofreu um declínio, passando por uma apatia conhecida como “ortodoxia morta”, ou seja, a verdade bíblica está correta, não há heresia, contudo, não há vida. O Iluminismo e o Renascimento representavam ataques ao cristianismo e aos fundamentos desta chamada igreja sem vida. Foi nesse

44 momento, a partir do ramo luterano do Protestantismo, que surgiu o movimento pietista. O pietismo tem sua origem atribuída ao teólogo e pastor Philip Jacob Spener, nascido na Alsácia, no ano de 1635, e falecido em 1705. Consta que sua madrinha, uma mulher de devoção fervorosa, o teria convencido da necessidade de uma reforma no luteranismo germânico, tanto moral como religiosa. Estudou teologia em Strasbourg, primeiramente com professores inclinados ao cristianismo prático, distante das disputas teológicas, mas, também, vivenciou outras influências de rigidez eclesiástica ao longo de sua formação. Quando recebeu o primeiro cargo como pastor em Frankfurt, entendia que o zelo pela ortodoxia estava sacrificando a vida cristã. Nascia o pietismo como um movimento à parte na Igreja Alemã. Spenner passou a fazer reuniões de cunho religioso em sua casa (collegia pietatis), pregando, lendo passagens do Novo Testamento e convidando os presentes a participarem das discussões religiosas que fossem surgindo. Aos alunos na Universidade de Halle, em Frankfurt, propôs que se fizessem reuniões de pequenos grupos de estudo e oração. Em seu livro Desejos Piedosos ou Sinceros Desejos de uma Reforma da Verdadeira Igreja Evangélica, obra conhecida pela formulação latina Pia desideria (1675), Spenner postula a reforma da verdadeira igreja evangélica, dando o diagnóstico das condições corrompidas da Igreja e transformando a obra em um manifesto para a renovação da Igreja. O título do livro originou o termo pietista. No livro supracitado, Spenner oferece um programa para uma reforma da Igreja:

1) O estudo aprofundado da Bíblia em reuniões privadas. 2) A participação dos leigos no governo espiritual da Igreja, pois o cristianismo é um sacerdócio universal. 3) Alcançar pela prática o conhecimento sobre o cristianismo. 4) Dar tratamento gentil aos incrédulos. 5) Reorganizar a formação teológica nas universidades com ênfase na vida devocional. 6) Modificar o modo de pregar com vistas a implantar o cristianismo com consequentes frutos para a vida.

45 Observa-se que a doutrina pietista tinha por princípio a valorização das experiências pessoais do chamado “crente”, que, em sua condição de pecador, encontraria o caminho para a salvação através da conversão pessoal, ou melhor dizendo, da aceitação da fé de modo individual. Além disso, a doutrina fazia críticas às noções de expiação de culpa, à autoridade das escrituras e aos sacramentos. Essas ideias não foram bem aceitas, sendo vistas até mesmo como ofensivas e dividindo opiniões entre os pastores luteranos na Alemanha. A ênfase na prática e na dimensão experiencial da fé implicava, também, nos costumes referentes ao modo de vestir-se e de comportar-se, indicando quais alimentos eram permitidos e, principalmente, convocando os praticantes a aprimorarem o senso de dever para com o mundo, que se caracterizava pela caridade e por missões. O contato com Deus deveria ser direto e pessoal, nunca intermediado fosse por um leigo ou por um membro do clero. De acordo com o princípio do dever, os seguidores do pietismo assumiam o compromisso de dedicarem-se a obras assistenciais, transformando-se em missionários da caridade onde se estabelecessem e criando orfanatos e casas para o acolhimento de viúvas em estado de necessidade. As ideias pietistas se difundiram pela Europa, chegando à Escandinávia no começo do século XVIII. Foram, inicialmente, recebidas com cautela para, mais tarde, serem muito presentes na vida religiosa e social das classes mais abastadas, interessadas na proposta de simplicidade. A influência mais marcante foi na vida e obra do filósofo Sören Kierkegard que, desde menino, conviveu com as ideias do pietismo, entrelaçadas com suas noções de fé e de vida cristã. O avô de Jacobina, Libório Mentz, aderiu às ideias do pietismo e, por essa razão, foi obrigado a mudar-se do povoado em que vivia na Alemanha juntamente com outras seis ou sete famílias e, juntos, estabeleceram uma nova configuração de igreja. Eles próprios realizavam cultos domésticos, batizavam os filhos, celebravam os casamentos e sepultavam seus mortos, tudo isso sem a presença de um pastor. Uma das diretrizes adotadas pelo grupo consistia em não permitir que as crianças frequentassem a escola, pois eles próprios se incumbiam de sua educação para que houvesse a garantia de que os princípios cristãos não seriam deturpados. Depois de sua chegada a Hamburgo Velho, Libório foi responsável pela construção da primeira igreja protestante no sul do Brasil, tendo organizado um coral

46 e seguido a doutrina, sem que haja relatos de que tenha novamente se envolvido em conflitos religiosos ou de outra ordem. Cabe ressaltar que sob a influência do pietismo surgiram diferentes vertentes religiosas que permanecem e se multiplicam nos dias de hoje. Podemos citar a Igreja Metodista, o pentecostalismo, o neopentecostalíssimo e os grupos carismáticos.

2.4 O DISCURSO MÁGICO/RELIGIOSO

Em momentos de dificuldade, nota-se, nos grupos sociais, uma compreensão do ser humano enquanto ser racional e aberto a uma autonomia pela alteridade. A isso poderíamos chamar de “sedução do sagrado”, uma vez que a alteridade a que nos referimos nada mais é do que a “alteridade divina” do Outro total. Esse processo de sedução que o sagrado ou o divino exercem sobre as pessoas, tem sido alvo de análises e de elaborações seja pelas religiões históricas, seja pelas ciências humanas de um modo geral, inclusive pela psicanálise. O traço comum das experiências religiosas seria uma inclinação do sujeito a atrair-se de modo irresistível ao mistério de Deus provocando uma vontade incontrolável de se aproximar e de se unir a Ele. Esse mistério sedutor e atraente, ao mesmo tempo que provoca um sentimento de pertencimento, também se traduz em estranhamento podendo causar um distanciamento reverente, como ocorreu, por exemplo, com Moisés, quando Deus falou com ele, no segundo livro de Moisés, chamado “Êxodo” (capítulo 3, versículo 6) da Bíblia Sagrada (1969): “Eu sou o Deus de teu pai [...]. Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus” 1. Poderíamos pensar que o Eros divino se configura como o mais forte e que, ao vencer as resistências com seu toque insidioso, exerce sua força sobre o ser que o aceita movido pela crença de que nele se encontra a própria salvação. Deus é não apenas experimentado, mas “ansiado” por representar aquele que pode preencher a falta passando a ser objeto de desejo e não mais objeto de necessidade psicológica.

[...] a origem psíquica das ideias religiosas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O

1 Também, na Bíblia Sagrada (1969, cap. 8, versículo 6), a esposa do livro “Cantares de Salomão”, ferida de amor pela visão do amado exclama: “porque o amor é forte como a morte”.

47 segredo de sua força reside na força desses desejos. (FREUD, 1927/1996, p. 39)

A história de Jacobina se mescla tanto aos relatos de sua relação com Deus quanto à experiência religiosa que viveu, marcada pela crença de que não somente fora escolhida como representante e propagadora das mensagens de Deus, como, também, encarregada de cuidar e de proteger do mal os integrantes da sua comunidade. Ao mesmo tempo, as manifestações sintomáticas do seu corpo conduziram a um julgamento e no entendimento de que sendo embusteira ou doente, louca ou devassa, de todo modo, representava um mal ao grupo social, fornecendo motivos para uma violência exaltada que culminou em sua morte e no extermínio do grupo que a ela se juntara no sopé do Morro do Ferrabrás.

O auto de corpo de delito de Jacobina nos permite afinal estabelecer a verdade: Jacobina recebera um tiro frontal, com saída no occipital e apresentava ferimento por arma branca na região molar e labial, produzido aparentemente, por arma cortante (facão) [...]. (DOMINGUES, 1997, p. 365)

Observa-se no início dos escritos de Freud sobre o tema da religião uma distinção importante que diz respeito à comparação entre a ciência e a razão. Naquele momento, Freud entendia a importância da força social exercida pela religião, mas, também, percebia que ela produzia e reproduzia preconceitos sociais que eram narrados como fonte de sofrimento e, portanto, observados na sua experiência clínica. Os pecados, a evitação do prazer ou o culto da virgindade permeavam as narrativas de seus pacientes e essas imposições resultavam em uma relação empobrecida com o corpo, na pobreza neurótica, e em um recuo tanto da razão quanto do exercício do desejo. No texto “O futuro de uma ilusão”, Freud (1927/1996) nos diz que o sentimento religioso remete ao desamparo infantil e à impotência frente ao surgimento da ameaça do sofrimento e da morte. Isso obrigaria os sujeitos a “inventarem” deuses em que projetariam seus temores e o desejo de proteção.

É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer – reação que é exatamente, a formação da religião [...] aquilo em que aqui estamos interessados é o corpo acabado de ideias religiosas, tal como transmitido pela cultura ao indivíduo. (FREUD, 1927/1996, p. 33)

48 Com o surgimento das ciências humanas em meados do século XIX até o início do século XX, o homem da certeza e senhor da razão passou a ser objeto dos saberes da Sociologia, como fato social; da Antropologia, no que tange à cultura; da História, quando do estudo da evolução das sociedades; da Psicologia, quanto às funções conscientes; e da invenção freudiana da Psicanálise. Também, nesse período, Freud formula as leis de funcionamento do inconsciente a partir do sonho inaugural da injeção de Irma, datado de 1895 e publicado em 1900, em sua “Interpretação dos Sonhos”. Foi também em 1895 que Freud, juntamente com Breuer, publicou os “Estudos sobre a Histeria”, nos quais descrevem a formação dos sintomas histéricos. Ao se aprofundar nas questões relativas ao psiquismo, Freud estabelece que o principal pressuposto da psicanálise é a existência de processos mentais inconscientes e que esses processos são causa de distúrbios que não resultam daquilo que é orgânico. Através da histeria, ele descobre a atividade inconsciente e, com essa descoberta das causas psíquicas, amplia sua teoria para os campos onírico e teológico, analisando os sonhos e as ideias religiosas. Tendo em vista a pluralidade das atividades relacionadas ao inconsciente, interessa-nos aqui a questão da experiência religiosa – ou a experiência do homem religioso –, uma vez que estamos tratando de Jacobina. Sabemos que a linguagem religiosa é simbólica tal e qual a linguagem do inconsciente e quando Jacobina falava para as pessoas ao seu redor, o fazia como uma tentativa de aliviar o sofrimento do próximo. O pensamento freudiano trouxe uma visão particular sobre a religião e sobre as ideias religiosas. Para Freud (1930 [1929]/1996), as religiões não passavam de ilusões derivadas do desejo humano e seriam uma maneira de tolerar o desamparo causado ao homem pela cultura ao ser confrontado com sua finitude, com a incapacidade de lidar com as forças da natureza, com a debilidade do próprio corpo e com o mal-estar causado pelo outro. Frente a isso, o homem buscaria uma saída para a falta de proteção, valendo-se da ideia de uma providência divina e salvadora, de um pai poderoso e onipotente: “Creio em Deus pai todo poderoso”. Freud diz ainda que esse tipo de ilusão ocorre porque o sujeito pulsional, ao viver em sociedade, é habitado por desejos inconscientes “de canibalismo, do incesto e da ânsia de matar”, condenáveis “sob a pressão da coerção externa” (FREUD, 1930

49 [1929]/1996, p. 91) e que tais desejos são recalcados desde a infância. Desse modo, a existência de um Deus representa a possibilidade de aliviar o sofrimento e é transformada pelas religiões em proteção e perdão, lembrando que os ministros das igrejas convocam os fiéis a fazerem sua profissão de fé, confessando seus pecados, seja por pensamentos, palavras ou obras, para que o Deus-pai perdoe e conduza à vida eterna.

Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção – de proteção através do amor –, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se a existência de um pai, dessa vez, porém um pai mais poderoso. (FREUD, 1930 [1929]/1996, p. 107)

Em seu ensaio “O Futuro de uma Ilusão” (1927), Freud fala da religião como ilusão e menciona o artigo “Totem e Tabu” (1913-1914), em que aborda, de modo indireto, o surgimento da religião através do estudo sobre o totemismo. Freud verifica, a partir desse estudo, o surgimento das restrições morais mais primitivas como o incesto e o assassinato. Após esse percurso, observa-se que, para Freud, a religião não só se alimenta de ilusões e de desejos recalcados, mas que o aparecimento da natureza religiosa está ligado ao inconsciente que, quando recalcado, emerge na forma de neurose. Contudo, quando Freud fala de ilusão não está se referindo a um engano ou erro, mas considera que a religião proporciona alguns benefícios para a civilização, vindo a tornar-se um problema quando cria normas para regular a natureza pulsional humana, desconsiderando o desejo. A religião contribuiria ao inibir algumas ações não aceitáveis na esfera social, porém, a falha em alcançar uma repressão absoluta conduziria à frustração e ao ressentimento. Em consequência disso, Freud aproxima o homem religioso do neurótico obsessivo. Quando ambos tentam se defender do conflito entre o desejo e sua interdição, o primeiro buscará o alívio nas cerimônias e nas práticas religiosas, enquanto o segundo se valerá dos rituais obsessivos.

Não sou certamente o primeiro a notar a semelhança existente entre os chamados atos obsessivos dos que sofrem de afecções venosas e as práticas pelas quais o crente expressa sua devoção [...] as pessoas que praticam atos obsessivos ou cerimoniais pertencem à mesma

50 classe das que sofrem de pensamento obsessivo, ideias obsessivas, impulsos obsessivos e afins. (FREUD, 1907/1996, p. 109)

A partir dessa proposta de Freud, observa-se que o inconsciente se faz presente, nos dois casos, com o deslocamento do conteúdo indesejado para atos ou frases repetitivos – a Ave Maria repetida cinquenta vezes na oração do terço católico, ou ritualísticos – ajoelhar-se, levantar-se, sentar-se, novamente ajoelhar-se, e assim por diante. Entre as acusações feitas a Jacobina e sua dita religião, destaca-se o grande incômodo que causava o fato dela desobedecer aos rituais das duas grandes vertentes religiosas da época: a católica romana e a luterana. Esses atos continuam presentes nas perseguições religiosas em geral. Lacan, assim como Freud, abordou o tema da religião e, no desenvolvimento deste estudo, traremos a perspectiva desenvolvida nas conferências realizadas na Universidade Católica de Bruxelas, intituladas “Discurso aos Católicos” (1960/2005); e “O Triunfo da Religião” (1974/2005), que resultou de uma “entrevista coletiva”, realizada em Roma, no Centro Cultural Francês, por ocasião de um congresso em que Lacan foi interrogado por jornalistas italianos. Tanto Freud como Lacan se autodenominavam ateus, o primeiro era judeu e o segundo era católico, educado pelos Padres Maristas, assim com o ateísmo como dado em comum, ambos abordaram a religião de modo particular. Freud considera a religião uma ilusão, porque as ideias religiosas “são ilusões insuscetíveis de provas” (FREUD, 1927/1996, p. 44); enquanto Lacan (1966 [1965-1966]/1998, p. 879) a considera o campo onde persistem as “verdades eternas”. Partindo da epístola de Paulo aos romanos, Lacan (1960/2005) diz que a articulação da lei com o pecado representa o conflito entre a liberdade e a graça, entre a lei e o desejo, sendo, essa lei, a lei simbólica ou a castração, que, como letra morta, conduz à busca de um pai fundador. Essa procura por algo que lhe diga sobre o real de seu ser, sobre a sua verdade, norteou Freud na construção do mito do pai primevo em “Totem e tabu”. O trabalho de Freud nos conduz ao recalque, a um saber relacionado a um lugar de falta que aponta para o não saber de si mesmo, por ser marca fundadora apagada pelo recalque. Se a paternidade garante um ponto de referência simbólica, será sempre um significante que garantirá o lugar do pai, sua nomeação. Freud constrói o mito a partir

51 da impossibilidade instaurada pelo recalque primário, ou seja, que está referido a algo que não teve acesso à palavra, o que origina um campo propício para a religião que se instala como um laço de amor e de demanda interminável ao pai. A falta de um sentido absoluto para aquilo que nos dá sustentação para viver está no fundamento da estrutura do ser falante, o real. Ao ser perguntado se estava convencido do triunfo sobre a psicanálise, Lacan respondeu:

Se a psicanálise não triunfar sobre a religião, é porque a religião é inquebrantável. A psicanálise não triunfará: sobreviverá ou não. Não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas coisas. É inclusive impossível imaginar quão poderosa é a religião. (LACAN, 1974/2005, p. 65)

Quando ocorre a queda dos ideais e das utopias, que sustentavam e ofereciam a ilusão de sentido, e o desamparo se presentifica, a religião emerge para resgatar e acolher o homem com a oferta de sentidos e de conforto, encobrindo o real que é o lugar de Deus. Embora seja o Deus morto, ele salvará, porque sua vontade e poder são soberanos: “seja feita vossa vontade [...] agora e na hora da nossa morte. Amém”. Enquanto na psicanálise o operador que permite ao sujeito viver novas formas é o vazio estrutural decorrente da falta de sentido, a religião se apresenta como produtora de sentido, plena de recursos, repleta de soluções. E ainda que o sofrimento não cesse, sempre existirão as promessas do amor do pai e da existência de vida após a morte e de que aquela vida será eterna, como está expresso na Bíblia Sagrada, no “Evangelho de João” (capítulo 3, versículo 16): “porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

E, no que se refere ao sentido, eles conhecem um bocado. São capazes de dar sentido a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, por exemplo. São formados nisso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais. [...] e a religião vai dar sentido às coisas mais curiosas, aquelas pelas quais os próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia. A religião vai encontrar sentidos truculentos. (LACAN, 1974/2005, pp. 65-66)

Podemos dizer, sem temor, que a psicanálise não é contrária à religião, mas caminha em outra direção. Se a religião é inquebrantável, como diz Lacan (1974/2005), qual seria seu lugar quando se fala da estrutura do sujeito da psicanálise? Lacan apostou no triunfo da religião, especificamente no triunfo da

52 religião cristã, que é o que constatamos em nosso tempo com a força do fundamentalismo religioso. O Deus cristão, além de simbólico, também possui qualidades inerentes à divindade, Ele é onipotente, onisciente e onipresente; é também o Deus Pai, o Deus Filho e o Deus Espírito Santo. Esse atributo de ser trino nos remete ao fundamento da estrutura do sujeito (R.S.I.). Desse modo é possível afirmar que a psicanálise e a religião não estão inscritas no mesmo registro e acrescentar, nesse momento, o campo da ciência, cuja relação com a religião historicamente se deu aos tropeços. No texto “A ciência e a verdade” (1965/1998), Lacan realiza uma virada de posição nas relações entre a psicanálise e ciência. Embora o sujeito da psicanálise seja o mesmo sujeito da ciência e ambas partilhem a certeza como fundamento, a abordagem de cada difere quanto aos ângulos. Ao falar de Ciência, Lacan está falando da Ciência Moderna, iniciada com Descartes, sendo impossível pensar a descoberta freudiana antes do pensamento científico moderno. Ao separar o campo da ciência do campo da religião (meditações), Descartes cria o método da dúvida hiperbólica, quando os sentidos são postos em dúvida, colocando em xeque todas as evidências para se chegar a uma garantia final. Ao suspender as certezas do sentido, ao duvidar de tudo, até da própria existência, algo se impõe que não da ordem da refutação, ou seja, não é possível duvidar que o ser pensa: cogito ergo sum. Descartes buscou chegar àquela última certeza que não pode ser suspensa, porque é Deus a perfeição divina. Se fosse possível pensar a ideia de perfeição, isso significaria dizer que existiria um ser perfeito que garantiria o pensamento e a quem pertenceriam as verdades eternas, restando aos homens debruçarem-se sobre as pequenas e imperfeitas verdades. A ciência, afastada da religião, se encarregaria dessa função e a cada homem caberia buscar sua relação com a verdade e descobri- la através do seu desejo. A Ciência Moderna traz em si uma ruptura entre a verdade e o saber ao interrogar-se sobre a questão da verdade entre Deus e o homem. Lacan avança para além do discurso da psicanálise para falar da verdade – “nas luzes refletidas dessa abordagem [...] o que quer dizer que as transporemos para outros campos além do psicanalítico, que invocam a verdade” (LACAN, 1966 [1965-

53 1966]/1998, p. 885) – o que nos permite pensar que também a magia é um saber que opera através do significante e que o sagrado é a palavra.

Sobre a magia, parto da visão que não deixa nada vago a respeito de minha obediência cientifica, mas que se contenta com uma visão estruturalista. Ela supõe o significante respondendo como tal ao significante. O significante na natureza é invocado pelo significante do encantamento. É metaforicamente mobilizado. (LACAN, 1966 [1965- 1966]/1998, p. 885)

Lacan, nesse enunciado, convida os analistas a se interessarem pelo estudo da magia, considerando os pontos de aproximação com a psicanálise. Nesta pesquisa sobre Jacobina, também busco pensar a questão da magia que “cura” através da articulação da simbologia com a linguagem, ou seja, através de um discurso religioso com efeitos mágicos. Tomaremos para estudo o livro de Claude Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural, em especial os textos “O Feiticeiro e sua Magia” e “A Eficácia Simbólica”. Lévi-Strauss assinala que a eficácia da magia depende da crença na magia em si, em que se estabeleceria uma relação de confiança entre aquele que busca a cura, “o doente”; aquele que realiza a cura, “o curandeiro”; e o grupo a que ambos pertencem.

Não há por que duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. Porém, ao mesmo tempo percebe-se que a eficácia da magia implica a crença na magia, que se apresenta sobre três aspectos complementares: primeiro a crença no feiticeiro na eficácia de suas técnicas, depois a do doente de que ele trata ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro e, por fim, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam continuamente uma espécie de campo de gravitação no interior do qual se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça. (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 182)

No que se refere ao estudo de Lévi Strauss quanto à magia referido por Lacan (1966 [1965-1966]/1998), este sugere aos psicanalistas que façam uma diferenciação entre o sujeito da ciência e o sujeito encarnado na magia. É inegável que há um saber próprio da magia que conduz o sujeito a procurar nela o alívio para as dores e sofrimentos do corpo e da alma. Ao fazer a conexão entre a psicanálise e a magia, demonstrando que esta última opera pela eficácia do significante, Lacan (1966 [1965-1966]/1998) toma como exemplo a narrativa de Lévi-Strauss sobre a experiência de uma índia em um trabalho de parto difícil porque o bebê estava atravessado. O Xamã da tribo inicia o encantamento entoando uma canção e, ao término dessa cantoria, o bebê fica

54 encaixado na posição perfeita, nascendo e salvando a si e à mãe sob a ação do significante como operador na magia. Lacan nos diz que devemos diferenciar o homem da ciência do sujeito da ciência, ou seja, “não há ciência do homem porque o homem da ciência não existe, mas apenas o sujeito” (LACAN, 1966 [1965-1966]/1998, p. 873). É, portanto, importante que os analistas estudem a magia como propôs Lacan, no que tange à diferenciação entre o sujeito da ciência e o sujeito encarnado da magia que é dono de um saber próprio. Seja falar, orar ou cantar, é a palavra que promove a cura no campo da magia, é o significante operando no real, do mesmo modo que a sugestão opera como ponto de partida na psicanálise. A crença no suposto saber do analista poderia ser pensada como análoga à crença no suposto saber daquele que tem o poder de curar, seja esse sujeito o xamã, com seu canto; a benzedeira, com um galho de arruda rezando o quebranto; o pastor que, em nome de Jesus, expulsa os demônios; ou, ainda, o pajé, exalando fumaça ou colocando unguentos sobre a ferida. Lacan se vale das quatro causas de Aristóteles para falar sobre como a verdade atua nos distintos campos da psicanálise, da ciência e da magia, sendo nessa última que se concentra nosso interesse. No campo da magia, a verdade é causa eficiente, representada pela eficácia do significante quando o saber em si é recalcado e colocado em segundo plano, pois o que de fato opera é o significante. A magia prescinde da lógica da ciência e seu funcionamento se dá no campo da crença no poder do Outro da linguagem, daquele que tem a palavra salvadora e que, em última instância, é capaz de afastar a morte. Jacobina padecia de seu corpo que parece ter sido tomado pela força da própria palavra. Enquanto os mais próximos a ela consideravam seus ataques como uma manifestação do divino, seus detratores a acusavam de possuir um poder demoníaco. A busca por uma articulação possível dos discursos próprios da psicanálise, da religião e da magia nos remete ao inconsciente estruturado como linguagem. É a linguagem e a pulsão que determinam o inconsciente no ser falante.

55 3. HISTERIA: ESTRUTURA E FENOMENOLOGIA

“O caminho do inconsciente propriamente freudiano, foram as histéricas que o ensinaram a Freud. É aí que faço entrar o desejo da histérica, ao mesmo tempo que indico que Freud não ficou nisto.”

(Jacques Lacan)

Como já foi dito anteriormente, quando Jacobina foi levada, pela segunda vez, para consultar-se com o Dr. Hillebrand, este, alinhado ao saber da psiquiatria de seu tempo e a partir dos sintomas descritos, diagnosticou sua doença como uma histeria. Recomendou que sua mãe arrumasse um casamento para a moça, “tratamento” também em consonância ao que era indicado para as jovens que apresentassem essa “doença”. O relato desse dito do médico sobre Jacobina, a descrição das manifestações no seu corpo, os ataques e as falas a ela atribuídas elidiram a pergunta que atravessa este estudo: seria Jacobina louca, santa ou bruxa como a denominaram, ou poderíamos pensar nela como uma histérica? A partir dessa aposta, buscaremos situar Jacobina dentro dos escritos freudianos e das contribuições de Lacan sobre a histeria, sem a pretensão de transformar esse trabalho em um estudo de caso, pois Jacobina não passou pela experiência do divã e, por conseguinte, pelo dispositivo da transferência analítica. A doutrina freudiana da histeria iniciou-se com os “Estudos sobre a histeria” (1893-1885), escrito a quatro mãos com Joseph Breuer. A esse trabalho seguiram-se: “A Psicoterapia da Histeria” (1895); “Fragmentos de uma análise de um caso de histeria” (1905 [1901]); “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade;” “Algumas Observações Gerais Sobre os Ataques Histéricos” (1909 [1908]); e “Neuroses de transferência: uma síntese” (1915). Também, no artigo “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), Freud dedicou um capítulo ao estudo do fenômeno da identificação no qual faz referência à estrutura do sintoma histérico. Neste trabalho, traremos recortes teóricos que possibilitem sustentar a aposta de que Jacobina poderia ser identificada como um sujeito histérico. Observamos que em termos gerais, essa série de estudos se refere à importância da sexualidade infantil traumática, da bissexualidade fantasmática e das identificações do complexo de Édipo como determinantes na tipificação dos sintomas histéricos.

56 A partir do texto “A etiologia da histeria”, (Freud, 1886) faremos uso das informações e ditos atribuídos a Jacobina por seus biógrafos, pelos pesquisadores de sua história e pelos escritores e cineastas que encontram nela material para produção de suas obras endossando o investimento que fazemos no estatuto de aposta da histeria apesar da ausência de registros da fala de Jacobina.

Quando nos dispomos a formar uma opinião sobre a causação de um estado patológico como a histeria, começamos por adotar o método de investigação anamnésica; interrogamos o paciente ou aqueles que o cercam, a fim de descobrir a que influências danosas eles próprios atribuem seu adoecimento e o desenvolvimento desses sintomas neuróticos. (FREUD, 1886/1996, p. 189)

Conforme já citado anteriormente, Lacan (1973/2003) diz que a verdade só pode ser dita nas malhas da ficção/fixão, o que também nos autoriza a aproximar a narrativa sobre Jacobina à história de duas outras histéricas exemplares, que trouxeram contribuições importante para a psicanálise, Anna O. e Madeleine, O Bode. O caso clínico de Anna O, pela aproximação tanto dos sintomas conversivos quanto da divisão psíquica; e de Madeleine, pelas manifestações dissociativas, crises frequentes e pelo discurso religioso.

3.1. UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A HISTERIA

A histeria é objeto de estudo desde os primórdios da medicina. Podemos afirmar que foi por meio dos atendimentos às histéricas que, no final do século XIX, Freud descobriu o inconsciente, elaborando um método de tratamento, a psicanálise. Contudo, a história da histeria antecede a pré-história da psicanálise. O termo originário da palavra grega hystera significa matriz. De acordo com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, matriz é o “lugar onde algo se gera ou cria: órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; útero” (FERREIRA, 1988, p. 422).

A histeria, em sua origem, é uma questão de mulheres, ou melhor, de parteiras. Pertence a este domínio reservado, recortado pelas matronas um pouco à distância dos homens, e no qual elas acumulam todo um saber, não somente sobre a arte de por crianças no mundo, mas sobre os mistérios da infância, sobre o sexo da mulher e as doenças que o acometem. Entre estas, há uma particularmente impressionante que se traduz pela sufocação. (TRILLAT, 1991, p. 17)

57 A partir da constituição da medicina no século IV a.C. em torno de Hipócrates, a histeria passou a ser descrita em termos médicos, reiterando a hipótese do útero como causa dos sintomas das doenças da mulher. Era atribuid ao útero a propriedade de ser como um animal, peregrinando de um órgão ao outro e se constituindo em um corpo estranho dentro do corpo. Assim, o útero seria o gestor e o corpo o campo onde se apresentariam os sintomas de forma quase sempre teatral. Hipócrates referia-se à doença da mulher como uma “sufocação da matriz”. Apenas em 1830, Emile Littré, ao verter os escritos hipocráticos para o francês, substituiu a expressão por histeria. Hipócrates descreveu nos seguintes termos a sufocação da matriz, em Da natureza da mulher:

Esta afecção sobrevém sobretudo às mulheres que não têm relações sexuais e às mulheres de certa idade, mais do que às jovens; com efeito, sua matriz é mais leve. Eis como ocorre: a mulher, tendo os vasos mais vazios que de costume e estando mais cansada, a matriz ressecada pela fadiga se desloca, visto que ela está vazia; a vacuidade do ventre faz com que haja lugar para que ela se desloque. (HIPÓCRATES apud TRILLAT, 1991, p. 19)

Segundo Quinet (2005), Esse deslocamento explicaria todas as manifestações histéricas. Quando a matriz se dirige para o fígado, a mulher perde a voz imediatamente, os dentes se cerram, a coloração se torna lívida. Ela experimenta esses acidentes em plena saúde (TRILLAT, 1991, p. 20). O tratamento recomendado é simples: o casamento para as jovens, o coito para as casadas e a gravidez para as viúvas. O Doutor Hillebrand seguiu as orientações hipocráticas ao determinar a terapêutica para a “doença” de Jacobina. Platão (428-347 a.C.) também chama o útero de matriz, fazendo crer que a mulher carrega em si um animal desprovido de alma:

Na mulher, o que se chama de matriz ou útero é como um ser vivo, possuído do desejo de fazer crianças. Quando durante muito tempo e apesar da estação favorável a matriz permanece estéril, ela se irrita perigosamente; ela se agita em todos os sentidos pelo corpo, obstrui as passagens do ar, impede a inspiração, mete o corpo, assim, nas piores angústias e lhe ocasiona outras doenças de todas as espécies. (TRILLAT, 1991, p. 23)

Areteu da Capadócia (120-180) foi médico em Roma e contribuiu para a história da histeria no início do século I ao fazer uma distinção entre doenças agudas e doenças crônicas, classificando a “sufocação da matriz” entre as doenças agudas e

58 retomando a descrição de Hipócrates. A sugestão terapêutica da crise seria a aplicação de perfumes na vulva e odores fétidos nas narinas para fazer descer a matriz.

No meio da bacia da mulher encontra-se a matriz, órgão sexual, que se diria quase dotado de uma vida que lhe é própria, que [...] tem gostos particulares: gosta de odores agradáveis e deles se aproxima; detesta e evita os desagradáveis. Em geral, sempre procura subir para as partes superiores, de modo que a matriz é inteiramente para a mulher como um animal dentro de um animal. (TRILLAT, 1991, p. 26)

Soranos de Éfesos, ginecologista, obstetra e pediatra em Roma, escreveu o Tratado das Doenças da Mulher, onde considerava a matriz um animal por ser sensível ao tato contraindo-se e relaxando como as outras partes do corpo. Também acreditava que a mulher engravidava porque assim o desejava, “pois do mesmo modo como não pode haver ejaculação por parte do homem sem excitação venérea, também não pode ocorrer que a mulher conceba sem desejo.” (TRILLAT, 1991, p. 29). A causa da sufocação é atribuída à constrição do órgão. Depois da crise muitas mulheres falam de forma delirante e, mais tarde, se dão conta daquilo que se passou. Abortos repetidos, partos prematuros e viuvez prolongada seriam os causadores da doença cuja terapêutica seria o descanso, o aquecimento dos membros com cataplasmas, frequentar as águas termais, fazer passeios, leituras e viagens. Sorano reitera que o coito deve ser evitado uma vez que a sexualidade feminina não é dominada por um animal estranho, pois a mulher tem desejos e, em especial, o desejo de ter filhos. No tratado Dos lugares afetados (131-201) Galeno que foi médico dos imperadores romanos, escreveu sobre a sufocação da matriz, fazendo uma identificação com a histeria que, à época, era um termo vulgar utilizado pelas parteiras. Ele inovou ao descrever as causas da histeria, abandonando a ideia do útero viajante se deslocando pelo corpo e propõe que a doença seria causada pela retenção da semente feminina, análoga ao esperma masculino, e provocada pela privação repentina de sexo, como no caso da viuvez. Tanto na mulher como no homem, a retenção da semente/esperma provocaria adoecimento acenando para a hipótese da histeria masculina que diferiria da feminina quanto aos sintomas. No homem, apareciam sintomas e distúrbios que mais à frente serão encontrados na chamada hipocondria.

59 No período compreendido entre o século V e até o final da Idade Média, a histeria deixou de ser abordada pela medicina e seu conhecimento foi substituído/misturado ao saber religioso do cristianismo. Jesus passou a ser o médico dos corpos e das almas e o ato de curar deixou de ser oficio dos médicos. Houve o favorecimento da prática das receitas populares, reconhecidas como eficazes por conta do misticismo, da magia e dos santos curandeiros. O que na Antiguidade era atribuído a causas físicas, ao útero e seus efeitos no corpo foram, naquele momento, interpretados como efeitos de possessão demoníaca ou de punição divina. Assim, a histeria se tornou uma espécie de “mal sagrado”, como a epilepsia no período que antecedeu a medicina. As concepções religiosas da época pregavam que o homem, dotado de uma alma imortal, estaria sujeito a tentações pelo não cumprimento de suas obrigações religiosas como, também, por não levar uma vida coerente com os ensinamentos e o espírito cristãos. As sufocações da matriz e as convulsões eram consideradas manifestações do prazer sexual e, por conseguinte, um pecado. A mulher era vista como possuída pelo diabo que a induziria a simular doenças. No período renascentista há um interesse pelos estudos sobre o sofrimento causado pelas doenças da alma, principalmente pela melancolia, a partir dos saberes da Antiguidade. A figura do diabo de quem, segundo se dizia, todo mal emanava, teria como principal característica a de ser enganador, habitando os corpos dos melancólicos que a ela pertenciam. Diferentemente dos melancólicos, as bruxas teriam feito um pacto com o demônio, traindo a Deus e, por isso, seu destino não podia ser outro senão a fogueira da Santa Inquisição na caça às bruxas. O Malleus maleficarum (Martelo das Feiticeiras), publicado em 1487, tornou-se o manual da Inquisição tornando-se um tratado de “psicopatologia sexual, senão de pornografia” como escreve Trillat (1991, p. 47), e que serviu de guia para que se identificassem as bruxas. Os inquisidores ligaram a transgressão relativa à fé, à transgressão sexual. Entre as teses centrais do manual estava a afirmação de que o diabo poderia apropriar-se do corpo e da alma através da sexualidade, haja vista o pecado original. Desse modo, as mulhere, por serem ligadas à sexualidade, tornariam- se agentes do diabo (feiticeiras), porque a primeira mulher, Eva, teria nascido de uma costela torta de Adão, e por isso, mulher alguma poderia ser reta. As feiticeiras

60 copulariam com o diabo, o que lhes conferia todo poder e depois de íntimas dele, poderiam desencadear todos os males. Tomado e possuído pela religião, o corpo histérico mantém um lugar privilegiado, disputado entre a teologia e a medicina. Será no corpo queimado na fogueira que as marcas do diabo serão perscrutadas pela Inquisição. Enquanto a Igreja acusava as bruxas de possessão demoníaca, os médicos começam a questionar se elas estariam possuídas ou doentes. O primeiro a se posicionar contra o clero foi Jean Wier, médico interessado em mágicos e bruxos. O material que recolheu em cidades em que havia relatos da ocorrência de casos de bruxaria resultou na produção da obra Da impostura dos diabos, em que o autor concorda com a existência do diabo e postula que o que ele fazia era aproveitar-se da doença para se manifestar. Portanto, as bruxas deveriam ser tratadas ao invés de serem queimadas. A obra de Wier despertou em muitos médicos uma tomada de posição, mas também provocou reações que lhe negaram competência para tratar de fenômenos chamados de sobrenaturais. Mais adiante, no período clássico (século XVII até parte do século XVIII), R. Lange em seu Tratado dos vapores dirá que existem elementos no corpo que fermentam e que esse vapor se espalha pelo corpo causando sintomas. Lange explica que o vapor caminha pelos nervos e vai do útero ao cérebro em uma tentativa de fazer uma amarração entre ambos. Na falta de exercício da sexualidade, os vapores provocam a convulsão histérica, o delírio, a confusão, o inchaço do ventre, a mania e a possessão. Notadamente os vapores histéricos não eram observados em mulheres casadas. Lange, condenava a abstinência sexual e recomendava àquelas mulheres submetidas a essa condição a prática de atividades físicas, pois a histeria é uma doença da sexualidade com sede no útero e esse calor interno seria representante da paixão. No final do século XVII, a histeria foi retirada da obscuridade nosográfica por Thomas Sydenham, defensor da sede cerebral da histeria em detrimento da teoria uterina, convocando a uma interrogação: seria a histeria uma doença como as demais doenças conhecidas obedecendo às mesmas leis naturais? Sydenham dirá que os sintomas histéricos são fruto das emoções e o que que os diferencia das outras doenças é sua capacidade de imitar. O corpo na histeria é como um palco, onde o sujeito atua, imita e faz mostração dos sintomas resultantes daquilo que o afeta.

61 Por ser entendida como doença enigmática, doença de mulheres, com um conjunto grande e complexo de sintomas e sem regras, a histeria caiu em descrédito no meio médico. As histéricas seriam imitadoras e simuladoras, como as atrizes que atuavam e acreditavam na realidade de seus papéis, sofrendo de uma doença enganadora:

Ela imita quase todas as doenças que ocorrem no gênero humano, pois em qualquer parte do corpo em que ela se encontre, ela produz, imediatamente os sintomas que são próprios dessa parte; e se o médico não tem muita sagacidade e experiência, ele se enganará facilmente e atribuirá a uma doença essencial e própria a tal ou qual parte sintomas que dependem unicamente da afecção histérica. (TRILLAT, 1991, p. 74)

Phillipe Pinel (1745-1826) não considerou a teoria da “sede cerebral” e retrocedeu aos que trataram a histeria como uma “continência austera” e, logo, a terapêutica indicada seria o casamento. Distinguindo a histeria do chamado furor uterino ou ninfomania, ele classificou a histeria como uma neurose. Para Wilhelm Griesinger (1817-1968), a quem é atribuído o dizer de que a histeria é uma “doença detestável”, há nessa enfermidade um grave comprometimento, os doentes “são de uma extrema sensibilidade, apresentam uma suscetibilidade exagerada, a menor crítica os afeta, são facilmente irritáveis, trocam de humor pelo mínimo motivo ou mesmo sem motivo algum [...] alguns são mentirosos, ciumentos, desordenados, adoram fazer maldades.” (QUINET, 2005, p. 96). Segundo Benndict-Augustin Morel (1809-1873):

[As histéricas] se afogam nas mais bizarras suposições, as mais falsas, as mais ridículas e as mais injustas. Como o amor pela verdade não é uma virtude predominante de seu caráter, elas jamais expõem os fatos dentro da realidade deles e enganam seus maridos, seus pais, seus amigos assim como seus padres confessores e seus médicos. (QUINET, 2005, p. 97)

Para o médico francês Paul Briquet (1796-1881) a histeria é uma doença importante caracterizada pela repetição das paixões vivenciadas.

Todo fenômeno histérico possui seu tipo próprio nas diversas ações vitais pelas quais as sensações afetivas e as paixões se manifestam no exterior [...] as perturbações histéricas não são senão a repetição pura e simples desses atos, aumentados, enfraquecidos ou pervertidos. (TRILLAT, 1991. p. 121)

62

Podemos observar que destarte as múltiplas definições, as buscas por explicações, as punições e condenações, bem como os descréditos, permaneceu o caráter enigmático e insolúvel de que a histeria é uma questão de mulheres simuladoras e fingidas. O descrédito das doentes e dos médicos que buscavam a decifração desse enigma perdurou até que Jean-Martin Charcot (1825-1893) , psiquiatra parisiense, chefe de setor no hospital Salpêtrière, distinguiu a epilepsia da histeria. “Desagrade ou não aos céticos e aos histerofóbicos, isso não é romance: a histeria tem suas leis, seu determinismo, exatamente como uma afecção nervosa com lesão material.” (CHARCOT, 2003, p.10). A princípio, Charcot retorna à teoria uterina afirmando a importância dos ovários em um tipo de histeria que ele denominou de ovariana ou ovárica. Essa fala foi interpretada erroneamente e cirurgiões americanos começaram a retirar os ovários de pacientes como forma de acabar com o mal. Dez anos depois, Charcot teria declarado nunca ter dito semelhante tolice. Charcot fez da histeria um tipo clínico completo e, em 1870, reproduziu as quatro fases do ataque da “Grande Histeria”. Ele acreditava que os transtornos neurológicos possuíam uma localização no cérebro, portanto, insistia na hipótese de que havia uma lesão na histeria e a definia como “lesão dinâmica”. Debruçando-se sobre a histeria, ele a diferenciava da catalepsia e a investigava através da hipnose, insistindo na defesa de um trabalho clínico, pois para ele o corpo é palco dos sintomas e, no caso da histeria, haveria um componente afetivo, embora reconheça nas falas das histéricas alguns conteúdos traumáticos menos importantes funcionando como mecanismo provocador – agent provocateur. Segundo Quinet: “A histeria é assim vinculada à noção de ideias que podem ser despertadas. Charcot descreve e nomeia s histeria traumática, provocada a partir da autossugestão derivada de um evento traumático, como os acidentes de trem.” (QUINET, 2005, p. 99). Em 1885, Freud chega à Salpêtrière e se reúne ao grupo de Charcot, atraído pela genialidade e pelo método do mestre. No decorrer das lições, Freud interroga-se sobre o fato de que a histeria, embora não demonstrasse perturbação neurológica orgânica, não se caracterizava como fingimento ou simulação.

63 O que mais me impressionou enquanto estive com Charcot foram suas últimas investigações acerca da histeria, algumas delas levadas a afeito sob meus olhos. Ele provara, por exemplo, a autenticidade das manifestações histéricas e de sua obediência às leis [...] a ocorrência frequente da histeria em homens, a produção de paralisias e contraturas histéricas por sugestão hipnótica e o fato de que tais produtos artificiais revelavam, até em seus menores detalhes, as mesmas características que ao acessos espontâneos, que eram muitas vezes provocados traumaticamente. (FREUD, 1925 [1924]/1996, p. 24)

Opondo-se a Charcot, Hippolite Bernheim (1837-2919), da Escola de Nancy, afirmou que as manifestações da histéricas eram produto da sugestão e que a histeria era fabricada artificialmente na Salpêtrière. Joseph Babinsky (1857-1933), aluno de Charcot, cunhou o termo “pitiatismo” em substituição à histeria, dizendo que esta não era uma doença pois era produzida pela sugestão e curada pela persuasão, demonstrando, assim, um alinhamento com o pensamento de que a histeria seria uma simulação: “Para mim não existe nenhum critério que permita distinguir os fenômenos sugeridos dos fenômenos simulados.” (QUINET, 2005, p. 99). O conceito de dissociação histérica proposto por Pierre Janet (1859-1947) juntamente com Alfred Binet (1857-1911), propõe que na histeria há um “estreitamento da consciência” e que os fenômenos aí encontrados se relacionam a ideias contidas no “subconsciente”. Ou seja, Pierre Janet concebia a histeria como uma diminuição da tensão psíquica provocada por recordações traumáticas e choques emocionais que permaneciam atrelados à consciência, e atribuiu à histeria a noção de fraqueza. É nesse contexto, e sob a luz de múltiplas e dispares investigações e conceituações sobre a histeria, que a psicanálise nasce em meio às perguntas sobre conflito, sexo e, porque não dizer, sobre poder. Freud volta seu olhar para as mulheres que no século XIX sacudiram a sociedade europeia ao apresentaram os males da “alma” através da doença do momento, que fazia daquelas damas verdadeiras atrizes arfantes e afogueadas. A repressão ao feminino, seja da ordem do comportamento ou do lugar a ele destinado, fez irromper a sexualidade tantas vezes sufocada. Esta estava presente nas espetaculares apresentações das pacientes de Jean-Martin Charcot, e também, nos salões da Viena barroca, onde reinava Sissi, a Imperatriz da Áustria, e onde Freud iniciava sua investigação sobre a doença partir de suas pacientes histéricas.

64 Observando-se os sintomas somáticos e psíquicos atribuídos à Jacobina buscaremos fundamentar com Freud e seus postulados teóricos, nossa aposta de neurose histérica.

3.2 A HISTERIA DESDE FREUD E BREUER

Em 1951, Lacan aborda o tema da histeria pela primeira vez em sua “Intervenção sobre a transferência”, proferida no Congresso de Línguas Românicas, sustentando que é preciso mais escutar o paciente e propondo o retorno aos textos freudianos. “Freud incumbe-se de nos mostrar que há doenças que falam e de nos fazer ouvir o que elas dizem” (LACAN, 1951/1998, p. 216). A partir de 1893, Freud apresenta o conceito de neurose como uma doença nervosa, cujos sintomas remontam a um conflito psíquico recalcado de origem infantil. Com o avanço da psicanálise, o conceito freudiano de neurose encontra seu lugar dentro de uma estrutura tripartite ao lado da psicose e da perversão e a histeria, junto com a neurose obsessiva, surge como tipo clínico da neurose. O encontro entre Freud e a histeria está na origem da psicanálise, quando, na sociedade patriarcal em que vivia, ele ousou escutar a histérica, intuindo que havia ali uma manifestação psíquica, percebendo o valor do sintoma e se propondo a estudar a histeria a partir de novas formulações. O livro Estudos sobre a Histeria, escrito por Sigmund Freud e Joseph Breuer, lançado em 1895, é considerado, por muitos, como a obra que inaugura a psicanálise juntamente com a Interpretação dos Sonhos, que foi publicado mais tarde, em 1900. A linha mestra dos Estudos sobre a Histeria concentra-se na experiência colhida nos casos clínicos descritos e nas reflexões teóricas que os acompanham. Coube a Freud o relato de quase todos os casos, exceto o caso Anna O., que era paciente de Breuer. A “Comunicação Preliminar”, texto inicial dos Estudos sobre a Histeria, foi publicada em 1893 e versava sobre o novo método para exame e tratamento dos chamados fenômenos histéricos.

Uma observação causal levou-nos, durante anos, a pesquisar uma grande variedade de diferentes formas e sintomas da histeria, com vistas a descobrir sua causa precipitante – o fato que teria provocado a primeira ocorrência, muitos anos antes com frequência, do fenômeno em questão. (FREUD, 1893/1996, p. 39)

65 Trata-se de um texto introdutório ou preliminar conforme as traduções mais frequentes, pois algumas das ideias apresentadas serão abandonadas como a que se refere aos estados hipnóides defendida por Breuer. O artigo também antecipa os pilares da técnica psicanalítica, trazendo uma apresentação resumida do que viria a ser conhecido como método catártico. Freud e Breuer defendem que os fenômenos histéricos se constituem a partir de um processo de dissociação da consciência desencadeado por um trauma, efeito da ação de afetos reprimidos. Dirão ainda que o sintoma histérico decorreria de um trauma ocorrido no passado, que, em geral, está ligado à infância, que sua lembrança se manifestaria através dos sintomas e que esta ligação entre trauma e sintoma não seria meramente de causa e efeito. Os autores se interrogavam sobre o modo como um trauma se tornava um sintoma, ou seja, como algo aparentemente banal, embora desagradável, poderia vir a gerar um sintoma. Eles propõem que isso aconteceria quando no momento da ocorrência do trauma, o sujeito fosse incapaz de reagir e recalcasse a lembrança traumática. Por essa razão é dito que “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.” (FREUD, 1893/1996, p. 43). Ao formular o conceito de conversão como sendo a transformação do afeto em sintoma no corpo, Freud postula que essa transformação não seria unicamente originada nas reações biológicas e físicas, pressupondo a ocorrência da intervenção de cadeias associativas. Nos sintomas conversivos não era encontrada uma lesão que justificasse os sofrimentos relatados pelas pacientes, assim sendo, com a finalidade de aliviar a angústia, os sintomas corporais conversivos deveriam ser entendidos como uma resposta a um processo gerador de uma excessiva energia psíquica. Seguindo a trilha a partir dos sintomas histéricos e prosseguindo na investigação das lembranças investidas de afeto, Freud e Breuer concordam quanto a importância da sexualidade como uma das fontes de energia para o psiquismo, porém Breuer discordará da afirmativa de Freud quando este atribui à sexualidade um papel fundamental na etiologia da histeria. Seguindo as afirmativas de Charcot, J. Breuer justificava suas ideias ao propor que, “mesmo uma experiência inócua pode ser elevada à categoria de um trauma [...]

66 se acontecer com o sujeito num momento em que ele se achar num estado psíquico especial – no que se descreve como estado hipnoide.” (FREUD,1896/1996, p. 192). Ao longo dos Estudos sobre a Histeria, no que se refere à etiologia da histeria, Freud prossegue na ênfase do trauma e da sexualidade enquanto Breuer, sustenta a primazia dos estados hipnoides estando ambas as hipóteses confrontadas nas descrições dos casos clínicos descritos. As considerações sobre o método de tratamento denominado de método catártico revelaram que a fala das histéricas sob hipnose possibilitava o esvaziamento da carga afetiva das reminiscências com o objetivo de atenuar ou mesmo eliminar o sintoma. Este passa a ter o estatuto de mensagem cifrada inscrita no corpo, evidenciando que a história falada está imbricada com as representações relacionadas a essa outra realidade. Freud se apercebe da importância da fala e formula os rudimentos de uma teoria sobre a linguagem em conjunção com o corpo e o pensamento, apontando para os efeitos de uma realidade até então nunca levada em consideração. Pelo ato da fala os sujeitos diriam mais do que imaginavam estar dizendo e essa percepção possibilitou que, ao avançar em seus estudos, Freud apresentasse o conceito de inconsciente, postulando que este obedeceria a uma lógica própria. Em seguida, ele concebe a noção de recalque. Podemos retirar três pontos fundamentais apresentados por Freud e Breuer nos Estudos sobre a Histeria: que os sintomas histéricos faziam sentido; que havia um trauma como causa da doença ligado à sexualidade que fora reprimido; e que a lembrança desse trauma e sua catarse era o caminho para a cura. Com a lembrança das histórias que causaram os sintomas estes poderiam ser eliminados através da sugestão. Ao final dos Estudos sobre a Histeria, a partir do caso de Elizabeth von R., Freud apresenta a noção de que há um conflito entre duas forças contrárias que resulta nos sintomas histéricos, trazendo junto a noção de recalque, uma vez que tais ideias não são lembradas. Após a publicação dos Estudos sobre a Histeria, a histeria no sentido freudiano, tornou-se o protótipo do discurso psicanalítico da neurose dando origem a psicanálise. Entretanto, em 21 de setembro de 1897, Freud escreve a Fliess: “Não acredito mais na minha neurótica”, abandonando a ideia de que a origem traumática da histeria

67 estivesse na sedução precoce e real, apresentando a teoria da fantasia e a noção da natureza infantil da sexualidade. Essa “natureza infantil decorre do fato de que a sexualidade é traumática em si mesma e não por acidente. A partir de então, não se considera que as histéricas sofram de reminiscências, mas de fantasias.” (BORGES, 2010, p. 202). Observamos que, desde os Estudos quando Breuer refere-se ao caso Anna O., tanto ele quanto Freud já privilegiavam os registros relativos às manifestações fantasísticas da paciente em detrimento de suas vivências. A partir de então, a histeria passa a ser entendida como uma afecção ligada a um conflito psíquico inconsciente, de origem infantil e dotado de uma causa sexual. Ela resultaria de um mecanismo de defesa contra angústia e de uma formação de compromisso entre essa defesa e a possível realização de um desejo. A diversidade e a variação de quadros clínicos, ou seja, os conflitos psíquicos inconscientes na histeria se apresentam de maneira teatral e sob a forma de simbolizações através de sintomas no corpo. As duas formas principais teorizadas por Freud foram a histeria de angústia, cujo sintoma central é a fobia, e a histeria de conversão, em que um excesso de carga (problema econômico) faz com que as representações sexuais recalcadas se expressem no corpo. Dito de outro modo, a histeria é o inconsciente em exercício e o sintoma histérico revela a vida sexual do sujeito.

3.3 O CASO ANNA O.

Trazemos um recorte do caso Anna O. como referência quanto aos fenômenos relatados em relação a Jacobina. O que podemos encontrar como aproximações entre ela e Jacobina são as descrições dos fenômenos que apontam para a divisão subjetiva bem como a variedade de manifestações somáticas presentes em ambas. A história de Anna O. foi descrita por Breuer nos Estudos sobre a Histeria. Bertha Pappenheim era o nome verdadeiro da paciente e sua doença chamou a atenção de Breuer e de Freud pelo fato de que a jovem manifestava dois estados de consciência distintos. Em um deles apresentava-se como uma jovem aparentemente como todas as demais, no outro, mostrava-se completamente diferente caracterizando o que conhecemos por divisão psíquica. Podemos inferir que algo dessa ordem também ocorresse com Jacobina no seu fazer cotidiano, ora se apresentando como

68 mãe e esposa cumpridora de suas tarefas, ora protagonizando uma doente que dormia dias e dias. “Saxa loquuntur!” [As pedras falam]. Esta citação que se encontra no início do texto “A etiologia da histeria” (1896), é uma analogia ao trabalho do analista, propondo que este poderia desvendar a história da paciente histérica a partir dos seus sintomas, muitos deles paralisantes sendo o caso Anna O. essencial para as descobertas de Freud e Breuer acerca dos sintomas histéricos. Anna O foi uma jovem aristocrata de Viena, paciente de Breuer entre 1880 e 1882, e seu caso é considerado paradigmático para o surgimento da psicanálise. O tratamento à que foi submetida por Breuer delineou as diretrizes técnicas do método catártico tendo sido possível pensar na existência de uma vida psíquica inconsciente predominando sobre a vida consciente. Era muito criativa, inteligente e culta, porém muito contida. Seus pais exerciam um controle extremo sobre ela não permitindo que saísse de casa, impondo-lhe inúmeras restrições, sequer permitindo que praticasse a escrita de que tanto gostava. Aos 21 anos, juntamente com sua mãe, Anna O passou a cuidar de seu pai que adoecera. Em junho de 1880, ela teve a primeira crise, enquanto esperava a chegada do médico que viria tratar de seu pai. Ela disse ter visto uma serpente negra se dirigindo à cama de seu pai, e que, ao tentar impedir o ataque da víbora, seu braço parecia estar paralisado, e nesse momento, ela conseguira rezar apenas em inglês. Durante o período da doença, ela apresentou um conjunto de sintomas como sérias perturbações físicas e psíquicas, paralisias, repugnância por alimentos, estados de ausência, confusão mental, delírios e alterações de personalidade. A primeira consulta com Breuer aconteceu por conta de uma tosse nervosa após as férias da família. Entre dezembro de 1880 e abril do ano seguinte, ela estava acamada apresentando contrações, afasias e desmaios e o médico observou muitos outros sintomas extraordinários como a impossibilidade de beber qualquer líquido que não fossem sucos, o aparecimento de um estrabismo convergente e uma paralisia dos músculos do pescoço, ao ponto de apenas conseguir mover a cabeça com a ajuda das mãos. Ao mesmo tempo, passou a apresentar mudanças bruscas de humor, batendo com a cabeça na parede, emudecendo quase completamente ou falando de forma incompreensível – também não conseguia mais falar em alemão, restringindo- se a falar em inglês. Aparentava uma duplicidade da personalidade oscilando entre

69 um eu deprimido e uma outra condição em que se comportava de modo mais fútil, sem, contudo, recordar-se de nada a posteriori. Ela chama este estado de clouds (nuvem) e ele acontecia regularmente no final das tardes de modo espontâneo. O primeiro ato terapêutico foi convocá-la a falar de seu pai, o que significou a inauguração do método catártico. Breuer repete algumas das palavras que ela pronunciara em estado normal e estas palavras passam a fazer parte do discurso de Anna O que conta ao médico uma história inspirada nos contos de Andersen. Desde então, a jovem passou a aparentar tranquilidade e serenidade, alcançando uma melhora e deixando o leito. Entretanto, cinco dias depois, seu pai faleceu e ela se enclausurou novamente, reconhecendo apenas seu médico que, temendo o suicídio, internou-a na Clínica Inzersdorf, onde continuou a acompanhá-la. Ela relata sentir-se bem nos dias em que recebe a visita do médico até que ele sai de férias. Ao retornar, Breuer a encontrou novamente mergulhada na doença. Ela passou a falar sobre as alucinações e sobre o que a aborreceu durante esses dias e Breuer surpreendeu-se ao verificar que após uma dessas verbalizações espontâneas sob hipnose, um dos sintomas teria desaparecido, o que o fez pensar que a lembrança das circunstâncias que elidiam os sintomas ocasionava seu desaparecimento. Esses diálogos dão início ao que Anna O chamou de talking cure (cura pela palavra) ou de chimney sweeping (limpeza da chaminé). Breuer referiu-se a isso como catarse, em referência ao antigo rito de “purgação da alma”. Assim, nascia para Breuer e depois para Freud a ideia de que a histérica sofre, sobretudo, de reminiscências e que ao falar das lembranças traumáticas sob hipnose produziria-se a cura da doença. Breuer demorou treze anos para escrever o texto sobre sua paciente, embora Freud insistisse que essa história exemplar deveria ser conhecida e que o sucesso do método catártico deveria ser apresentado para a comunidade médica. Breuer relutou em publicar o caso, só o fazendo em 1892, porque, de fato, sua paciente não estava curada. Anna O foi internada outras vezes, pois os sintomas histéricos persistiam. Sua recuperação foi lenta, mas, tempos depois, ocorreu o desaparecimento gradual dos sintomas. Devido à rememoração das lembranças traumáticas, ela tornou a falar em alemão e se curou da paralisia. Tornou-se uma filantropa – o que aponta para uma característica da histeria, ou seja, o exercício da caridade como forma de tentar suprir a falta do Outro. Por essa prática, ela se tornou uma das primeiras assistentes sociais

70 da Alemanha. Foi também uma pioneira do feminismo pesquisando sobre o tráfico de mulheres brancas. Muito ligada ao judaísmo, desenvolveu estudos sobre a condição das mulheres judias e dos criminosos judeus. Nas discussões com Breuer, Freud se refere aos motivos que o levaram a utilizar a hipnose como terapêutica com suas pacientes. Discordava da medicina vigente no século XIX que, sob a influência das ciências naturais, privilegiava as intervenções físicas e químicas em busca da cura. Argumentava que, muitas vezes, não encontrava lesões que caracterizassem muitas das queixas dos chamados “doentes dos nervos”, fortalecendo a tese de que a vida psíquica agiria sobre o corpo e que este padeceria dos efeitos da palavra. O tratamento de Anna O. aumentou seu interesse pelo enigma surgido a partir da investigação sobre os efeitos da palavra como, também, de sua percepção sobre a questão da sexualidade infantil. Após seu encontro com Jean–Martin Charcot, na Salpetrière, em Paris, Freud avançou na busca de um saber para além do já conhecido sobre a histeria, e em seu artigo “História do Movimento Psicanalítico”, de 1914, relata ter ouvido de Charcot, “o mestre visual”, assim autointitulado, que a histeria cést tout-jours la chose génitale (esta é a coisa genital). Freud irá comprovar essa fala ao teorizar sobre a etiologia sexual da histeria e suas raízes no inconsciente, afastando de vez a causalidade orgânica. Freud percebeu que o saber sobre a histeria não seria encontrado no corpo físico, mas que a produção dos fenômenos eram manifestações do inconsciente, a Outra cena, com sua linguagem a ser decifrada, considerando-a não uma doença qualquer, mas um modo de subjetivação. Ao descobrir o amor transferencial e, apostando nessa verdade, Freud abandona tanto a hipnose quanto o método catártico, fundando a psicanálise. Apostaremos na possibilidade de tomar a história da construção freudiana do conceito de histeria como referência para o estudo sobre Jacobina, permitindo pensarmos nela como um sujeito com sintomas que podem ser considerados sintomas histéricos. Pouco sabemos de sua infância, mas os raros relatos sobre a menina sempre a descrevem como muito calada e arredia, apresentando dificuldades nos relacionamentos e se referindo a ela como “estranha”. Na idade adulta e durante o processo legal a que responderam o casal e seus seguidores, foram atribuídos e relatados três dons à Jacobina: as manifestações sob a inspiração do “Espírito”, o dom

71 da cura e o dom da profecia. Nos depoimentos, seus “ataques” eram descritos como êxtases que evidenciavam a presença divina do “Espírito”. A “recorrência do ‘sono’ seguido de mensagem bíblica era o sinal reconhecível da ação divina sobre o corpo e a consciência da mulher de Maurer” (DICKIE, 2008, p. 325). Havia uma associação muito estreita entre a pregação de Jacobina e as curas de João Jorge Maurer. Essas descrições de Jacobina remetem ao seu discurso, de forte influência religiosa. Ao dirigir-se aos seus seguidores, ela poderia estar encenando com seu corpo falante, a fantasia de ser objeto do Outro. Pode-se pensar que Jacobina manifestava a clivagem, ou divisão do eu, com seus risos e choros alternados, com pregações veementes, para, em seguida, cair em um sono letárgico, apontando para o que sabemos sobre a fragilidade do recalque encontrado na histeria e para uma atitude infantilizada que pode produzir efeitos no outro. Com Freud, aprendemos que a histeria de conversão se constituí em um excesso que faz aparecer o sintoma no corpo do sujeito, conciliando o que é da ordem da pulsão e o que não foi recalcado, os chamados restos. Dizendo de outro modo, os conflitos psíquicos inconscientes na histeria apresentam-se de formas variadas e de maneira teatral, sob a forma de simbolizações e através dos sintomas no corpo. Em seu Seminário, livro 20: mais ainda, Lacan afirma: “falo com meu corpo” (LACAN, 1972-1973/1998, p.161).

Todas as mulheres da família Mentz eram mais ou menos levadas ao excesso e propensas ao entusiasmo religioso; pois sua fantasia fora abarrotada desde a juventude com leitura da Bíblia, e exercícios religiosos permanentes – uma espécie de epidemia de reza – as forçavam a permanecer, por horas, ajoelhadas. Às consequências dessa educação pode ter sido pode ter sido acrescida em Jacobina Maurer por pré-disposição física a casos de histeria, que, mais tarde, degenerou em sobre-excitação nervosa ligada a sintomas de sonambulismo [...]. (VON KOSERITZ, 1875/2017, p. 189)

As interpretações bíblicas que Jacobina fazia livremente nos cultos domésticos poderiam ser compreendidas como o inconsciente em exercício. Para quem a ouvia, suas palavras possuíam o valor de um saber, mas, para ela própria, talvez a palavra fosse um modo de dar conta de um sofrimento causado por um ou mais fragmentos dolorosos do discurso de algum Outro que a convocava à obediência e ao temor à lei do Deus Pai. Jacobina parece ter sido capaz de liderar as pessoas que dela se aproximaram e que acreditaram que suas palavras eram mensagens divinas. Contudo, não

72 sabemos quais os efeitos produzidos nela própria da crença dedicada às suas palavras por seus seguidores. Foi nomeada como o Cristo Mulher e, talvez concordando com tal afirmativa, agia como se de fato o fosse, o que aponta para uma outra característica da histeria frequentemente encontrada nos líderes religiosos: a crença de possuir não um falo qualquer, mas “o falo”. Alguns relatos da fala de muitos Mucker revelam que ela sustentava encontrar-se com o Espírito e que ele lhe transferia o poder de curar. Como ilustração, trago um recorte do discurso de uma paciente histérica. Laura tinha trinta e três anos quando buscou uma análise. “Sou médica, solteira e evangélica”, assim iniciou sua fala na primeira sessão. Trazia a queixa de uma angústia muito grande porque, apesar de ser médica, precisou suportar o fato de que sua mãe, após receber o diagnóstico de um tumor maligno de mama, escolheu não fazer quimioterapia e veio a falecer em consequência disso. No curso da análise, Laura discorria sobre as possibilidades de cura desperdiçadas; sobre ter sido desacreditada como doutora; sobre a ignorância do pai, que permitiu que sua mãe morresse aos poucos diante da família; e sobre como face à própria incapacidade, entendeu que o melhor era, “entregar tudo a Deus”. Nesse ponto, ela começou a falar a respeito de sua religião e de como encontrava consolo nos cultos. Afirmou que era muito agradecida à análise, pois esta tinha proporcionado a ela “abrir a mente” e, com isso, ser iluminada e escolhida para receber a “graça” de poder falar a língua dos anjos. Perguntada sobre como seria tal língua, ela respondeu: “você não entenderia a língua dos anjos, mas se você duvida de sua existência procure na Bíblia a passagem que confirma que existe uma língua dos anjos. Sou a única cristã que sabe interpretar a mensagem dos anjos, e recebi esse poder diretamente do Pai”. Laura não se via como uma “cristã” qualquer, pois se sentia escolhida pelo Pai. Por possuir um dom vindo diretamente do poder divino, ela sabia o que ninguém mais sabia. Essa crença de que há na mulher um saber que se manifesta através de dons, de intuições infalíveis ou de um sexto sentido, são crenças muitas vezes atribuídas ao feminino. Considerando-se ser este um caso de histeria, poderíamos pensar que seu discurso poderia ser considerado um delírio histérico?

73 3.4 JACOBINA, O CRISTO MULHER E MADELEINE, O BODE

Como a psicanálise apresenta o fenômeno das formações delirantes nos quadros patológicos na neurose e na psicose? Essa questão surgiu, como foi explicitado anteriormente, pelo fato de considerarmos que Jacobina apresentava delírios. A psicanálise entende a neurose como uma das três possibilidades de constituição do sujeito a partir da sua relação com a castração. É justamente a referência ao Édipo o divisor de águas entre o campo da neurose e o da psicose. A proposta conceitual de Lacan é considerar a foraclusão do Nome-do-Pai como o mecanismo específico da psicose. Também é importante salientar que Freud mantém intercambiáveis e distintos os campos da neurose e da psicose. O que pensar então das formações delirantes de Jacobina? Lanço mão inicialmente do que Freud afirma nos textos “Neurose e psicose” e “ A perda da realidade na neurose e da psicose”, ambos publicados em 1924. Segundo Freud, tanto na neurose quanto na psicose, pode haver uma perda da realidade. A diferença está na forma como cada estrutura se relaciona com essa perda. No sujeito neurótico essa operação ocorre pela fantasia, enquanto que o psicótico o faz pela formação delirante. Para favorecer essa reflexão, propomos pensar, inicialmente, também a partir do quadro clínico da “loucura histérica” assim designado no século XIX, e que tem como caso exemplar, Madeleine Le Bouc, nascida Pauline Lair Lamotte (1854-1918), internada no hospital Salpêtriere, em 1896, aos 42 anos. Ao ser interrogada sobre seu nome dizia chamar-se “O Bode”, “para expiar os pecados do mundo”. Madalena, a amante de Cristo, é o bode que expia os pecados do mundo (MIRANDA, 2011).

Ela foi uma pobre louca, tratada durante vinte e dois anos pelo ilustre médico Pierre Janet, ao ser internada depois de longa vagância e de um carregado passado policial. A mulher que pretendia se chamar “O Bode” via Deus, vivia com Deus e dormia com Deus. Ela atingia esse estado somente por períodos, depois de um encaminhamento metódico e doloroso que a conduzia ao êxtase. Ela gostava de falar e escrevia muito; pintava também com frequência inocentes quadrinhos religiosos. O psiquiatra que cuidava dela e que a interrogava constantemente anotou tudo, guardou tudo, analisou tudo, dividido entre o desejo de saber e um carinho confesso por essa louca sob custódia [...] Moldada em dores fulgurantes, atravessada por uma profusão de sintomas que explodem de hora em hora – num carrossel para psicanalistas -,

74 cercada de anjos e de fogo e de luz, a mulher que penetrava Deus não pode deixar ninguém indiferente. Há em Madeleine ópera e circo, brilho e sordidez, espumas na boca e mucos de linguagem; obscenidades líricas e metafisicas; viagens, voos, fúrias, tamancos de bruxa e choros de menininha ... Sim, como não se ligar à louca quando se sabe claramente, como pensava Janet, que em outros tempos, ela teria sido venerada pelas massas em pranto. (CLÉMENT; KAKAR, 1997, pp. 25-26)

Madeleine foi hospitalizada de acordo com as normas da época: com a etiqueta do delírio e fichada como “doente”. No hospital era considerada uma louca que entrava em êxtase e tinha feridas pelo corpo. Tais manifestações eram e são ainda encontradas em muitos místicos, mas o caráter de excepcionalidade referente ao caso é o fato dela ter ficado hospitalizada por período tão longo, vinte e dois anos, sob os cuidados de Pierre Janet, um médico professor de psicologia no Collège de France, católico não praticante e cuja observação minuciosa era baseada nos conceitos da ciência moderna, distanciado, portanto, de critérios relacionados à religião.

[...] o homem é bastante honesto para nos entregar esse material bruto e fresco para análises futuras, exatamente pelas mesmas razões, Madeleine e Janet se entregam a um combate sem tréguas; ela encarniçada em provar a autenticidade dos seus êxtases; ele, obcecado em demonstrar que eles eram patológicos ... prisioneiros dessa longa luta que se dá a portas fechadas, no mesmo local onde Charcot havia hipnotizado tantos histéricos, lá onde Sigmund Freud, teve um dia a primeiríssima intuição dos fundamentos da psicanálise. (CLÉMENT; KAKAR, 1997, p. 26)

Uma aproximação entre Madeleine, O Bode e Jacobina, O Cristo mulher, relaciona-se, em nosso entendimento, ao fato de ambas se colocarem a serviço de uma designação missionária, de um mandato divino, com a diferença de que “O Bode” foi uma autodenominação e “O Cristo mulher” foi uma nomeação feita por outros. Também, a infância e a adolescência de ambas apontam tanto para marcas distintas quanto para algumas aproximações. Madeleine procedia de uma família abastada do norte da França. Seu pai sofria de uma doença cardíaca e sua mãe, segundo ela dizia, era nervosa e severa, morrendo ainda jovem, antes do marido, por conta de uma hemorragia cerebral. Eram católicos não devotos e tiveram quatro filhos, todos com algum tipo de perturbação de saúde como enxaquecas e crises de nervos que Janet deduziu como sendo “de forma histérica”.

75 Madeleine padecia de fraqueza nas pernas, sofrendo constantes quedas sem que tivesse sido observada qualquer anomalia de ordem neurológica ou muscular. Outros sintomas são relatados como tosse, vômitos, diarreias alternadas com constipações, falta de ar frequente, eczemas, abcessos e uma intolerância a ruídos. Sons como trovões ou o barulho de um trem a acometiam de catalepsia, o que, segundo a psiquiatria de seu tempo, eram compatíveis com sintomas histéricos. Madeleine não apresentava o clássico “grande arco histérico”, mas não menos impressionante era sua figura acrobática histérica: andar nas pontas dos pés. Todas essas perturbações impediam Madeleine de interagir com outras crianças, pois ela se sentia alegre ao se isolar e, desde os cinco anos, demonstrava maneiras místicas: era presa de tristezas, almejava a solidão e se dizia destinada a sofrer. Em família, mostrava-se uma boa menina e na escola tinha uma receptividade marcante, pois, apesar das dificuldades, alcançava um aproveitamento razoável, conseguindo licenciar-se como professora com bom nível de cultura geral. Ela conheceu a Bíblia, tanto o Novo quanto o Velho Testamento, mas, segundo Janet, ela não leu nenhum texto místico. Prudente por um longo período, vem à Madeleine a primeira comunicação – ela se entrega a Deus sem surpresa. Chega a primeira menstruação, substituída, às vezes, por vômitos de sangue e surgem os estados de sonolência e de semiconsciência que, segundo ela, não são a mesma coisa que a “imobilidade feliz” anterior. Aos quinze anos, ela se apaixonou e aguardou ansiosa pela volta das férias para rever o rapaz, mas, ao retornar, ela dele se desinteressou pois ele havia crescido. “Compreendi que não poderia jamais encontrar sobre a terra o meu ideal, uma afeição reciproca; entendi que o prazer sentia perto desse rapaz era mau, e que todos os prazeres e afetos eram perigosos, eu deveria ter desconfiado quando senti prazer [...] Eu pressenti algo da afeição dos esposos.” (JANET, 1926, p. 415 apud CLÉMENT; KAKAR, 1997, p. 32). Madeleine admite para Janet possuir uma sensualidade transbordante, ser glutona e amar a música, mas como intuía que o prazer era perigoso, se privara do álcool, da música, das guloseimas e beberá apenas água: “esses prazeres, para mim, o senhor sabe” (JANET, 1926, p. 411 apud MIRANDA, 2011, p. 317).

76 Aos dezesseis anos, ela passa a temer a gravidez, mas a família não presta atenção a esse fato, pois ela sempre fora uma criança sensível. O sofrimento pelos ruídos mais fortes vem acompanhado por horrores ao contato. As noites trazem tentações precisas e Madeleine decide que se suprimam os carinhos e os beijos de seus pais. De repente, Madeleine decide deixar a família, pois, segundo ela, com seu diploma de professora poderá manter-se e diminuir as despesas da casa, já que seu pai enfrentava problemas financeiros. Promete retornar em breve, mas os poucos meses durarão vinte e quatro anos. Ela não informou a seus pais que estava partindo para consagrar a vida à miséria. Vai para a Alemanha onde sucedem-se situações inusitadas: trabalha como doméstica, mas por ser muito bem acolhida pelos patrões acaba por deixar o emprego. Depois, refugia-se em um convento, mas considera a disciplina frouxa e vai embora. Muda-se para a França, onde trabalha como doméstica, enfermeira, operária, cuida dos pobres, dá assistência a uma doente de câncer e acompanha outra doente de câncer que, segundo Janet, tinha depressões graves e obrigava Madeleine a dissimular os êxtases e lutar contra suas “imobilidades felizes”. Depois da morte dessa mulher, Madeleine vive a pão e água, possui apenas um crucifixo, uma meia manta, uma moringa e uma bacia, e seu travesseiro era uma caixa de madeira. “Este foi o período mais feliz, diz ela, durante o qual experimentei sem cessar uma alegria intima que não consigo exprimir” (CLÉMENT; KAKAR, 1997, p. 33). Em uma carta para uma irmã, Madeleine escreve que quer se sentir como uma morta para toda a família e pede à irmã que guarde absoluto silêncio sobre ela. Nem a debilidade física de sua mãe ou a doença de seu pai a fazem flexibilizar sua conduta, pois a pobreza demanda seus cuidados. Essa dedicação poderia ter continuado se Madeleine não tivesse se colocado à margem da lei. Foi condenada e encarcerada por vadiagem, prostituição, fraude e mendicância, mas nenhum desses crimes eram passiveis de conduzi-la à guilhotina. Ao deixar a carceragem, ela passou a assombrar as igrejas e, em uma delas, é notada por um padre que se encarrega, sem sucesso, de ser seu mentor espiritual. Após diversas ocorrências provocadas por ela, Madeleine foi proibida de frequentar os ofícios religiosos. Quando esse padre morre, iniciam-se as manifestações da loucura.

77 Madeleine profetizou complôs e, por conta dessas ideias, escreveu para deputados para alerta-los sobre traidores da França. Ao mesmo tempo, retornam seus problemas de saúde, entre eles o fato de que, em uma manhã, seus pés começaram a doer e “por si” se erguerem do chão, fazendo com que ela passasse a andar na ponta dos pés. Inicia-se uma peregrinação por hospitais e a proliferação de diagnósticos: nevrite ocasionada por um aborto, nevrite tóxica de origem alcoólica e, por fim, contraturas histéricas pela possibilidade de ter atuado como dançarina de cabaré acusada de não querer admitir ser essa a sua profissão. Foi depois disso que a enviam a Salpêtriere, meca dos cuidados aos histéricos onde permanece sob a responsabilidade de Pierre Janet. Segundo Janet, Madeleine se “cura” após a menopausa e retorna para uma vida normal – ele, no entanto, continua a descrevê-la, concluindo que “Madeleine, será somente uma pseudo-extática, pois lhe faltará sempre uma certa estampilha oficial. Estas discussões que poderiam ser interessantes na Idade Média, não são exatamente importantes hoje.” (JANET, 1926, p. 508 apud CLÉMENT; KAKAR, 1997, p. 27). As manifestações da histeria na atualidade nos fazem achar que Janet estava enganado. Esse tipo clínico está muito presente em nossos hospitais psiquiátricos e é muitas vezes diagnosticado como psicose. A história contada de Jacobina e a narrativa sobre Madeleine aproximam -se, tanto pelos fenômenos ligados ao corpo quanto pelo discurso religioso. Além disso, algumas situações na infância de ambas convergem: o relato de terem tido uma mãe severa e de terem vivenciado a orfandade precocemente, o pai de Jacobina e a mãe de Madeleine faleceram ainda jovens. No entanto com relação ao modo de vida das famílias, encontramos grandes diferenças, pois Jacobina era semianalfabeta e nascida de pais pobres, filhos de imigrantes, colonos lavradores sem grandes letras e protestantes pietistas que viviam na rudeza do interior do Brasil, enquanto Madeleine, de família católica não praticante, desconheceu dificuldades, tendo acesso a uma boa formação escolar. Nos relatos das duas histórias encontramos as manifestações sintomáticas bastante evidentes que poderiam levar a se pensar em histeria ou psicose. Em ambas aparece uma alegada intimidade com Deus. As duas foram internadas em hospícios, Madeleine por muitos anos e Jacobina por pouco tempo e não nos escapa perceber que a motivação das internações as descreve como duas loucas, reféns de seu tempo,

78 já que viviam em uma época em que se tratava de questões dessa ordem sem o domínio do saber psiquiátrico.

79 4. O QUE JACOBINA NOS ENSINA SOBRE A HISTERIA

“Dizem que a mulher é o sexo frágil Mas que mentira absurda! Eu que faço parte da rotina de uma delas Sei que a força está com elas Vejam como é forte a que eu conheço Sua sapiência não tem preço Satisfaz meu ego, se fingindo submissa Mas no fundo me enfeitiça.” (Erasmo Carlos)

Com a psicanálise, a partir de Freud, diríamos que as manifestações do inconsciente nos discursos e fenômenos tanto de Madeleine quanto de Jacobina, evidenciavam a singularidade irredutível de cada sujeito percebida na relação com o outro quando mediada por um sistema simbólico. Mas o saber que era aplicado a casos como esses não considerava tal possibilidade de escuta, desembocando em uma produção de rótulos e nomeações: louca, santa, prostituta, vadia ou bruxa. Esses rótulos foram fartamente distribuídos entre elas, acrescentando-se, também, a pecha de criminosas, uma vez que ambas foram encarceradas. Podemos pensar que se Jacobina tivesse vivido na França, possivelmente teria permanecido longamente internada na Salpètriere. Outra característica comum entre elas foi um certo isolamento na infância, causando desconforto para as famílias e estranhamento para a sociedade. É certo que as condições gerais de vida eram diferentes, o acesso a médicos e tratamentos era infinitamente mais escasso para Jacobina, pois, como vimos, ela só teria sido levada ao médico duas vezes, quando criança, e bem mais tarde, já por volta dos vinte anos. Jacobina casou-se e teve seis filhos, trabalhou na terra e “pregou” para os “pacientes” de João Jorge de acordo com o próprio entendimento da Bíblia, era semianalfabeta, relatava um encontro com o Espirito e era reconhecida pelo outro como a encarnação de Cristo, mas não apresentava sinais de estigmas na forma de feridas como Madeleine. Esta, por sua vez, não se casou nem teve filhos, tendo recebido uma educação mais aprimorada e, segundo ela própria, teria dado à luz ao Cristo.

80 Postas essas singularidades que permitem um certo alinhamento entre ambas, vamos pensar sobre o caso dessas mulheres com ênfase em Jacobina, nosso objeto de estudo, a partir da diferença entre o delírio neurótico e o delírio psicótico, sempre considerando que somente Madeleine é um caso clínico. Madeleine teve seus êxtases e seu delírio descritos em detalhes por Pierre Janet, enquanto sobre Jacobina temos somente relatos de suas falas, o que não poderia deixar de nos trazer muitas interrogações sobre seus sintomas e seu delírio histérico ou, ainda, se seus alegados transes poderiam ser interpretados como êxtases. Jean-Claude Maleval, no livro Locuras y Psicosis Disociativas, utiliza o termo delírio e faz uma diferenciação entre o delírio histérico e o delírio psicótico, estabelecendo que o primeiro não seria regido pelos mesmos mecanismos que operam no delírio psicótico. Segundo o autor, não se trataria de uma foraclusão do Nome-do-Pai, incidência que determina uma estrutura psicótica, mas o que se encontra no delírio histérico é uma função paterna diluída, enfraquecida, porém inscrita. O autor nos diz que há na histeria uma insatisfação essencial do desejo, mas, contudo, apresentam-se os sonhos edípicos, a erotização das declarações, a culpabilidade sexual e a falicização do próprio corpo, elementos bem conhecidos do discurso histérico. Sabemos que na neurose a tentativa de elaboração de questões edípicas se dá por meio da fantasia, enquanto que na psicose essa tentativa ocorre através da formação delirante. Maleval continua sua exposição afirmando que o delírio histérico é constituído pela projeção na realidade de conteúdos reprimidos e não de conteúdos foracluídos, tratando-se do retorno do que foi recalcado, ou seja, são conteúdos que foram afastados da consciência de um modo particular, e que se relacionam a um acontecimento traumático que suscita a emergência de uma significação. A visada clínica da psicose é marcada principalmente por estabelecer uma relação com a realidade e uma forma de organização a partir do delírio, ou seja, é desse modo que o sujeito vivencia a realidade, com o inconsciente presentificando no Real o que é recusado na ordem simbólica. Com as descobertas de Freud e a invenção do inconsciente, a divisão psíquica passou a ser questionada, e, ao longo de sua obra, Freud fez poucas referências à

81 consciência dividida. Sabemos que etiologia da neurose se originou a partir da interrogação de Freud sobre os sintomas histéricos, levando-o a postular uma causalidade psíquica e a indicar o papel da representação mental no inconsciente atuando sobre o corpo. Desse modo, a diferença estrutural entre a neurose e a psicose é assim descrita por Freud em 1924: “a neurose é o resultado de um conflito entre o eu e o isso, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o eu e o mundo externo.” (FREUD, 1924/1996, p. 167). Essa postulação é feita a partir da ideia de conflito e de defesa, o conflito ocorreria entre duas instâncias, sendo que a defesa seria investida contra as representações intoleráveis pelo recalque (Verdrängung) na neurose e pela rejeição (Verwerfung) na psicose. Para compreender o fenômeno do delírio na neurose é essencial revisitar o conceito de recalque, mais especificamente a noção de retorno do recalcado. Podemos dizer que o recalque seria o resultado da repressão exercida pelo eu sobre o conteúdo a ser confinado no isso, o que consistiria no material recalcado tendo sido realizada a operação do recalque. Onde se encontra a relação entre o delírio e o recalque ou com o retorno deste? Podemos dizer que, quando o objetivo do recalcamento não é alcançado, ocorre um retorno parcial do recalcado na forma de sintoma, acompanhado da angústia causada pela tentativa frustrada em alcançar alguma satisfação de algo que é necessário reprimir. O sujeito neurótico tentará de todo modo afastar-se desse campo de conflito com uma fuga da realidade, diferentemente do sujeito psicótico, que opera visando negar a realidade. Ao se afastar da realidade, o neurótico reconhece sua impossibilidade de lidar com as imposições desta. No caso da psicose, há o desconhecimento ou a foraclusão da realidade. O delírio na psicose pode ser entendido como uma forma de responder ao enigma ou como disse Freud: “é uma tentativa de cura, de reconstrução, permitindo ao sujeito reconstruir o universo, não à verdade mais esplêndida, mas pelo menos tal que ele possa lá viver de novo. Ele o reconstrói mediante seu trabalho delirante.” (FREUD, 1911/1996, p. 78). Ao pensar sobre o discurso atribuído a Jacobina, embora apontando para excessos religiosos e um quantum de pensamentos grandiosos ao se dizer emissária do ”Espírito”, observa-se que ela muito se aproxima das características da grande

82 histeria, não apenas pelos fenômenos sintomáticos, mas, também, quando pensamos em uma especificidade do delírio histérico, aquilo que Janet denominou de “ideia fixa subjacente”, pois, segundo é dito, ela acreditava que recebia o poder de curar enfermos. Sabemos que os elementos constitutivos do delírio histérico parecem proceder das significações essenciais da história do sujeito. Novamente, retornamos aos relatos de que, durante sua infância, Jacobina viveu sob normas e regulações religiosas bastante rígidas e essa influência teria se acentuado na idade adulta no cenário em que vivia com seu marido curandeiro. Nos Estudos sobre a histeria, Freud (1893-1895/1996, p. 190) escreveu que “parte das antigas recordações traumáticas constituíam o fundamento do delírio” e Janet, em 1892, estabeleceu que as manifestações sob hipnose da “ideia fixa subjacente” permitiam o desaparecimento do delírio histérico. Ao mesmo tempo, Freud e Breuer afirmavam que a revelação dessas lembranças traumáticas presentificavam-se nos sintomas, fossem na forma de conversões, de alucinações ou os delírios. O que seria para a psicanálise a chamada “inspiração” ou “iluminação trazida pelo Espírito, instaurador da Verdade?”

Quando respondeu ao chefe de polícia que Maurer curava por “dom divino”, Jacobina acrescentou que Maurer ainda não curava cegos, mas tinha conseguido melhoras. O ainda é revelador da confiança de que o futuro próximo seria um futuro em que cegos poderiam ver porque teriam sido curados pelo poder do Espírito presente em Jacobina... ela era o agente deste Espírito, e os receituários (de ervas e de comportamentos) que ela e seu marido manipulavam iluminavam o percurso para o mundo da visão, anunciando-o com as curas... Um outro sinal da presença do Espírito em Jacobina era o dom da profecia. (DICKIE, 2008, p. 330)

Poderíamos encontrar em Jacobina elementos que apontem para um quadro clínico de loucura histérica? A mais consistente ilustração dessa condição é o caso de Madeleine, O Bode, que nos tem servido como fonte para fundamentar a hipótese da histeria que este estudo sobre Jacobina vem apresentando. Há entre as duas personagens uma aproximação significativa, não apenas pelos fenômenos somáticos e psíquicos como, também, pela relação com a questão religiosa.

83 A ideia de loucura ou de psicose histérica foi objeto de estudo de autores alemães no contexto da psiquiatria de guerra no começo do século XIX. Esse período se caracterizou por ser um momento de ruptura e de acirramento das questões relativas aos laços sociais. O desencadeamento de atos violentos e o aumento de crimes repentinos e sem explicação, muitos deles incompatíveis com o que se conhecia de seus autores, foram discutidos à luz da loucura histérica. Jean-Pierre Falret, em 1866, ao confundir a loucura histérica com a “loucura moral”, por conta do moralismo psiquiátrico francês, descreveu-a pela ciclotimia, espírito de contradição, tendência à mitomania, gosto pelo devaneio e propensões eróticas entre outras formas de versatilidade emotiva. Legrand du Saule, em 1883, acompanhou o pensamento de Falret quanto a loucura moral, e assim, “a histeria fica então com a carga de todos pecados.” (TRILLAT, 1991, p. 272). Moreau de Tours, em 1869, separa um determinado tipo de delírio que se constituirá no cerne da loucura histérica sob a denominação de “loucura neuropática”. E, em 1908, Laruelle destacou as características clínicas mais marcantes da loucura histérica, que podemos constatar, em maior ou menor grau, em Jacobina:

[...] início repentino. Revivescência onírica do traumatismo. O delírio com carga emocional, acompanha-se de uma dramatização excessiva de caráter espetacular [...] Os temas delirantes são frequentemente místicos-religiosos, mas esses temas podem ser facilmente sugeridos. O delírio pode durar de algumas horas a alguns dias. (TRILLAT, 1991. p. 272)

É importante observar que os êxtases e o desvio que aqui nos interessam, e mesmo os crimes descritos nos quadros de loucura histérica, não são compatíveis com os quadros das histerias convencionais como a histeria de defesa, a histeria de angústia e a histeria de retenção. Há na loucura histérica um caráter claramente antissocial que conduz ao diagnóstico de psicose, com grande frequência levando à internação e consequente medicalização do sujeito. Podemos destacar dois aspectos que marcam a loucura histérica: a presença de atos de ruptura do laço social e o impacto subjetivo que a observação desses atos causa no médico. Sabemos que Pierre Janet, filósofo e psicólogo, dedicou grande interesse, quase um fascínio, pela paciente Madeleine, fazendo relatos minuciosos dos sintomas e de seus atos durante a internação. “Madeleine é um caso paradigmático da loucura

84 histérica como descrita no início do século XX, ou seja, da histeria que se revela em atos loucos” (MIRANDA, 2011, p. 314). Com essa visada, buscamos demonstrar que, tanto pelo conjunto de sintomas quanto pelo modo de se inscrever no laço social, a loucura histérica seria uma condição e, novamente pensando com a psiquiatria – que primeiro descreveu a loucura histérica –, ela seria uma quadro caracterizado, talvez, por uma extravagância e mobilidade dos sintomas apresentados. Maleval (1987), em seu estudo sobre a loucura histérica na psicanálise, assinalou que o delírio na histeria visa tornar habitável o corpo sexuado e que sobre ele há a incidência do Nome-do-Pai. Os casos identificados como loucura histérica por suas manifestações espetaculares não devem ser confundidos com um transtorno orgânico. Cada cultura possui modelos de condutas consideradas loucas e, desse modo, “em todos os lugares há uma maneira correta de estar louco, portanto, trata-se de um processo alienante que escapa da consciência do sujeito” (MALEVAL, 1987, p. 66, tradução minha). Jacobina viveu em um contexto cultural regido por princípios e por regras onde um comportamento como o dela não era considerado “normal”. A medicina de seu tempo era orientada pelo aparato conceitual da psiquiatria. Ela não teve um médico que se dedicasse a tratá-la, muito menos que lhe dedicasse atenção. Em contrapartida, ela teve sobre si um olhar politicamente interessado que não tolerava a subversão de suas ideias. Foi acusada de liderar uma seita que, além de praticar cultos domésticos proibidos pela Igreja, acolhia criminosos violentos, incendiários, assassinos e fanáticos religiosos. As autoridades ouviram de seus seguidores que, ao dar a Jacobina o conhecimento para interpretar a Bíblia, Deus tinha feito a escolha de se fazer presente entre os que tinham fé, sendo esse o critério que definia a identidade dela e dos adeptos ao grupo. O que afirmava essa identidade era o privilégio de poder testemunhar pelo menos três sinais da presença de Deus, entre eles: o êxtase de Jacobina, as profecias e as curas atribuídas a ela, ou ao casal Maurer. No decorrer do inquérito policial, os interrogatórios buscavam definir a natureza dessa identidade, sugerindo que ela se dava em função de uma doença – fosse histeria, ataques nervosos ou epilepsia –, mas Jacobina e seu grupo rebateram essa

85 hipótese, dizendo que estavam unidos pela experiência religiosa da revelação divina de que Jacobina era inspirada por Deus.

Ao depor Jacobina reforçou esta dicotomia: disse que estivera doente aos 12 anos, a inspiração só chegara aos 26. Nem Jacobina nem seu marido sabiam explicar como esta inspiração acontecera, mas sabiam que era responsável por significativas mudanças em Jacobina, uma das quais era a capacidade de ela ler ... ler e interpretar a Bíblia ... nos depoimentos de seus seguidores Jacobina ler sempre significou Jacobina ler e interpretar a Bíblia. A inspiração capacitou-a especificamente para a interpretação da Bíblia. Os “ataques” eram a evidencia repetida da inspiração. (DICKIE, 2008, pp. 322-323)

A autora da citação acima debruçou-se sobre o processo onde aparecem as alegadas respostas dadas por Jacobina quando interrogada por conta das atividades no Morro do Ferrabrás. De alguma forma, Jacobina representava para os Mucker uma possibilidade de fazer laço e de pertencer a um grupo, mas aos olhos dos interesses políticos e religiosos, seus atos eram reprováveis, entendidos como um incentivo tanto à desobediência aos padrões instituídos quanto à recusa às normas e convenções da vida na colônia. Alinhados ao pensamento popular de que a loucura era depositária da marginalidade, consideraram Jacobina como louca e interpretaram sua posição de forma equivocada, como sendo facilitadora da quebra do pacto de convivência, sem perceber o papel que ela desempenhava para o grupo. Remetendo-se a “Análise terminável, interminável”, artigo publicado por Freud em 1937, Lacan formalizou a teoria dos discursos e acrescentou o que aprendeu com as histéricas, que é o fazer desejar. A posição de Jacobina não seria equiparável à do agente no discurso da histeria? A teoria dos discursos é introduzida no final da década de sessenta, indicando que o laço social entre os seres humanos se estabelece porque são seres de linguagem e de libido. São quatro os discursos apresentados: o discurso do mestre, o discurso do universitário, o discurso do analista e o discurso da histérica, no qual o sintoma convoca o Outro à produção de um saber sobre o que falta, sobre o não sabido. Em 1974, Lacan acrescenta mais um, o discurso do capitalista, uma derivação do discurso do mestre. E propõe os quatro discursos da seguinte maneira:

• Governar – discurso do mestre – agente senhor – outro do laço social é o escravo – a produção é o objeto.

86 • Ensinar – discurso do universitário – agente professor – outro do laço social é o objeto – a produção é o sujeito.

O avesso da dominação: • Psicanalisar – discurso do analista – agente analista - outro do laço social é o sujeito do inconsciente – a produção é o significante primordial S1. • Fazer desejar – discurso da histérica – agente sujeito do inconsciente – outro do laço social é o senhor – a produção é o saber.

Pensamos que na posição de Jacobina naquele pequeno povoado. A transferência que provocou ao ocupar o lugar de suposto saber poderia ser referida ao discurso histérico, assim representado por Lacan:

Figura 5: O discurso da histeria

Fonte: LACAN, Jacques. (1969-1970). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1992, p. 27.

O discurso da histérica tem grande importância para a psicanálise, por seu caráter transformador. Sabemos que foi através do estudo sobre a histeria que Freud criou a psicanálise e apresentou como produto o inconsciente. Lacan colocou a histeria como discurso porque esta produz um laço social com o outro que leva ao saber. É importante salientar que o discurso da histérica não diz respeito à neurose histérica, mas ao fazer desejar. Quando um sujeito dividido ($) dirige uma questão ao significante-mestre S1, produz um desejo nesse outro, que o incita à transformação. O discurso da histérica parte de uma insatisfação intrínseca da condição de sujeito faltante, que, ao se endereçar ao outro em busca de resposta, provoca o desejo de saber, desembocando, por fim, em S2, saber no lugar da produção. Para Lacan, o discurso da histérica revela a relação do discurso do mestre com o gozo, uma vez que o saber vem no lugar do gozo. Ou seja, “O próprio sujeito, histérico, se aliena do significante mestre como aquele que esse significante divide. Seguindo o efeito do significante-mestre, a histérica não é escrava” (LACAN, 1969- 1970/1992, p. 88).

87 Não seria esta, a possibilidade de se escapar da posição de dominação promovida pelo discurso da ciência e do universitário, da posição de dominação que elimina o desejo de saber, substituído pelo acúmulo de conhecimentos supostamente científicos? Os estudos de Freud sobre a histeria também foram fundamentais para a construção do argumento de Lacan (1969-1970/1992) no Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, ainda que o discurso da histérica, como já apontamos, não se refira à neurose, à histeria e a seus sintomas. Mas, refere-se, sim, a uma forma de relacionamento humano próprio da histeria, em que provoca no outro o desejo e a criação de um saber, uma relação em que se faz desejar, “tal como as histéricas fizeram com Freud” (QUINET, 2005, p. 19). Jacobina passou da situação de auxiliar de seu marido à líder, não apenas religiosa, mas, também, política, apoiada justamente na posição de S1, sendo capaz de movimentar aquela gente absolutamente desamparada e perseguida em seus valores e crenças. Ela mirava fazer valer uma verdade para si, a de que era autêntica a manifestação de Deus em si. Quando intimada a depor no inquérito, foi pedido a Jacobina que descrevesse o que sentia e fazia durante os períodos dos “ataques”, e ela deu uma resposta direta e precisa: “não sabia.”

Descreveu seu estado como “insensível”. Era seu marido que relatava, posteriormente, o que tinha acontecido. Ao não sentir, Jacobina dava o espaço das sensações e da consciência a algo que ela sabia ser a manifestação de Deus. A natureza do seu “estado insensível” lhe era clara: entre ela e a divindade não (havia) pessoa humana que lhe (servisse) de intermediário (J. Maurer, in AIP). (DICKIE, 2008, p. 323)

Lacan faz referência à loucura em muitos de seus escritos. Pensando em Jacobina, cito uma mesma referência encontrada no texto “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946/1998, p. 177) e também no final do artigo “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses” (1957-1958/1998, p. 581): “O ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não se trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade”.

88 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho iniciou-se a partir do desejo de saber sobre Jacobina Mentz Maurer. Chegado o momento de concluir, muitas perguntas continuam esperando por respostas. Jacobina, como buscamos apresentar, é uma personagem rica em probabilidades de estudo, tanto que eu poderia ter tomado a questão religiosa como uma das direções deste estudo, haja vista a atualidade do tema, pois é possível verificar-se o crescimento de seitas e do fundamentalismo religioso correlatos a uma proximidade entre alguns líderes políticos e algumas religiões, anunciando, talvez, o retorno da união entre Estado e Igreja. Entretanto, o que de fato materializou-se como possibilidade de aproximação entre o saber da psicanálise e os estudos outros sobre Jacobina, foi a busca de deciframento sobre o que está narrado nas fontes como sendo sua característica enigmática. O que significavam as manifestações psíquicas e somáticas que a acometeram ao longo da vida e que acompanharam sua liderança religiosa e política junto ao sofrido grupo que foi perseguido por políticos e religiosos rígidos e preconceituosos em suas ideias e interesses. Embora ela tenha sido nomeada como bruxa, embusteira, prostituta e louca, entre outros adjetivos não menos grosseiros, procurei não dar relevância a nenhum deles e apostar que Jacobina e seu corpo falante estivesse inserida na norma fálica e que sua “loucura” possa ter sido uma condição que a psicanálise compreende como uma forma severa de adoecimento e que se relaciona ao tipo clínico da histeria, evidenciando a loucura histérica. Ao mesmo tempo, podemos pensar que de forma inconsciente foi este o recurso possível que ela encontrou para se proteger e alimentar de esperança aquele grupo perseguido e abandonado. Ou seja, recurso que revela a sua posição de sujeito desejante, de escolha contra tudo e todos que perseguiam os seus. Não pretendi diagnosticar tampouco nomear esses estranhos fenômenos que habitavam o que chamei de “corpo-templo” de Jacobina, mas busquei trazer algumas articulações teóricas sobre a loucura histérica e uma diferenciação entre a histeria e um estado de enlouquecimento, apontando e sinalizando para as respostas possíveis vividas por ela frente à angustia.

89 Considerei relevante pensar no que ocorria com essa mulher cujos sintomas não tinham uma aparente origem fisiológica ou algum dado indicativo de que poderia sofrer da chamada “doença dos nervos”. Também o doutor Hillebrand, ao consultar Jacobina, viu-se frente a esse enigma, a doença da jovem não tinha um remédio a ser receitado, como diz o Xote das Meninas, de Luiz Gonzaga (1953):

O pai leva ao doutor a filha adoentada, não come, não estuda, não dorme nem quer nada [...] mas o doutor nem examina chamando o pai de lado lhe diz logo em surdina que o mal é da idade e que pra tal menina não tem um só remédio em toda medicina.

Nos derradeiros parágrafos dessas considerações percebo que ao escrever sobre Jacobina apostando ser ela uma histérica, fui provocada a produzir um texto em que se evidenciou não apenas meu interesse na história, mas que Jacobina Mentz Maurer está apresentada. Lembrando a interrogação de Lacan: “agiste conforme o desejo que te habita?” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 367); posso dizer que sim. Do mesmo modo que se evidenciou o desejo de estudar, de observar e de buscar caminhos no exercício da clínica, foi possível atentar para o fato de que ao ocupar o lugar de psicanalista, é preciso estar vigilante, evitando cair na tentação ou no desejo onipotente de curar. Ao longo de todo tratamento, haverá questionamentos e construções sobre o limite que há no que se pode construir com o paciente. Pensar e escrever sobre Jacobina mostrou o tanto de verdade que há no dizer de que a histérica faz o mundo andar. A dimensão dada à sua história produzida nas falas a meia voz e nos relatos atravessados pelo temor e pelas acusações, me lembram, com a nitidez envolta pela neblina da distância, que Jacobina foi uma mulher brasileira que nasceu, viveu e morreu talvez encenado seu desejo, “sempre sedento de significantes, sempre de tocaia na língua”. (QUINET, 2000, p. 79.)

90 REFERÊNCIAS

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