5. Do Ouro À Fama
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5. Do ouro à fama As apropriações de aspectos românticos estão presentes na obra de Gilberto Braga desde sua estreia na televisão em 1973. Logo em seu primeiro texto, um roteiro para o programa Caso Especial, da Rede Globo, ele adaptou o romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Quatro casos especiais depois, o autor – já alçado à condição de novelista – não deixou de recuperar traços do Romantismo em seus trabalhos. Assim, Corrida do Ouro (1974) – sua primeira novela – tinha a traição aos próprios valores em função do dinheiro como tema principal. Entretanto tudo na trama exibida às 19h era tratado de forma ajustada ao estilo leve e divertido que passou a caracterizar o horário depois da saída de Glória Magadan da emissora carioca. Escrita em parceria com Lauro César Muniz28, Corrida do Ouro era inspirada nas comédias sofisticadas do cinema americano dos anos 1930 e 1940 e contava a história de cinco mulheres que recebiam inesperadamente uma herança à qual só teriam direito se cumprissem os desejos do milionário excêntrico que as escolheu como herdeiras. Todas as cláusulas do testamento contrariavam a personalidade das moças. Uma delas, atriz, deveria abandonar a carreira, outra, que morava no exterior há 20 anos, precisava fixar residência no Brasil, uma terceira tinha que se casar com um homem ao qual não amava. Ou seja, os obstáculos que cada uma encontrava para cumprir o testamento – e, desta forma, receber o dinheiro – forneciam os ganchos da novela. Essa corrida pelo dinheiro viria a ser, num registro mais melodramático, uma recorrência nas novelas de Gilberto Braga. Em outras palavras, seja nas obras originais que ele criou para o horário das 20h, seja nas adaptações literárias com as quais ajudou a fixar o horário das 18h29 a partir de 1975, o dinheiro envolvendo 28 A trama de Corrida do Ouro é uma idéia de Daniel Filho. Gilberto Braga e Lauro César Muniz foram reunidos pelo diretor para desenvolver a novela. 29 A primeira novela do horário das 18h foi Meu Pedacinho de Chão (1971), de autoria de Benedito Ruy Barbosa. A trama ia ao encontro da intenção da Globo de que as novelas das seis seguissem uma linha pedagógica. Portanto, o tom dos textos era educativo, fosse apresentando a vida no campo ao homem urbano ou ensinando a língua portuguesa ao matuto da terra. Porém essa incursão da emissora em novelas mais educativas não obteve boa audiência. As tramas do horário foram então substituídas por desenhos animados e seriados americanos. Até que, em 1975, pelas 153 corruptores, arrivistas e românticos numa complexa teia de relações sociais, profissionais e afetivas aparece como força propulsora da ação em tramas paralelas ou centrais das histórias desenvolvidas pelo autor. Após adaptar Helena, de Machado de Assis, e reativar com sucesso o horário das 18 horas, Gilberto Braga adaptou Senhora30, romance de José de Alencar. O livro conta a história de Aurélia Camargo, uma moça pobre que, ao enriquecer, arma uma vingança contra Fernando Seixas – arrivista que a trocara no passado por uma mulher rica. Tal trama, publicada em 1875, ao deslizar do suporte impresso para a televisão cem anos depois, representou o ápice do tema romântico da conspurcação pelo dinheiro não só entre as novelas das seis da Rede Globo nos anos 1970, mas também entre as histórias que Braga escreveu para esse horário31. A adaptação mantém a mesma fórmula capital do romance oitocentista europeu que serviu de modelo à criação de José de Alencar. Ou seja, Braga transpôs para a espinha dorsal da novela o mesmo processo de educação sentimental presente no original, que transforma a jovem pura e sonhadora Aurélia Camargo (Norma Blum) em alguém mais embrutecido em virtude da engrenagem do dinheiro e do interesse racional – representado por arrivistas como Fernando Seixas (Cláudio Marzo). Como o romance, a novela também possui quatro etapas distintas: Preço, Quitação, Posse e Resgate, que correspondem ao processo de transformação em decorrência do dinheiro pelo qual passam Aurélia e Seixas. A fase Preço, que culmina com a noite de núpcias na qual Aurélia declara a Seixas que o comprou, estende-se por 66 capítulos. Nessa parte da trama, Gilberto Braga recorre a várias reuniões sociais que o livro possibilita – festas, missas e ópera – para apresentar personagens, mas, ao longo da novela, o autor usa esses mesmos eventos caracterizados pela ostentação permitida pelo dinheiro, a fim de criar peripécias que avancem a narrativa. mãos do diretor Herval Rossano, o horário das 18h foi redimensionado para as adaptações literárias. 30 O romance de José de Alencar ganhou outras versões televisivas. Menos de um ano depois da inauguração da televisão brasileira, a adaptação do livro era atração na TV Paulista em 1952. Em 1971, a história serviu como base para a novela O Preço de um Homem, escrita por Ody Fraga e exibida na TV Tupi. Em 2005, Senhora, Diva e Lucíola, também de autoria de Alencar, inspiraram as tramas de Essas Mulheres, novela de Marcílio Moraes, exibida pela TV Record. 31 A versão de Gilberto Braga inaugurou as cores no horário das 18h na Rede Globo. 154 Aurélia Camargo é mostrada, logo no início, como a grande novidade dos salões, sobre quem personagens periféricos, sobretudo, as mulheres da sociedade, fazem uma série de especulações, já que a heroína surgiu como uma nova estrela na Corte, mas ninguém sabe sobre seu passado. Sabe-se que vive com uma parenta – Dona Firmina Mascarenhas (Zilka Salaberry) – e nada mais. Essa opção do autor por apresentar uma heroína sob uma aura de mistério pode ser relacionada, adotando-se a perspectiva de Marlyse Meyer (1996), a um uso modernizado de um muito antigo matricial procedimento de narrativa escrita – o do Decameron. Nesse procedimento, não há uma exposição que, de saída, defina a situação a partir da qual vai se desenvolver o enredo, mas é apresentado um elemento de intriga essencial que, nesse caso, é o mistério do passado. Esse elemento recorrente já era parte da espinha dorsal de Sinclair das Ilhas e continuou como um dos motivos preferidos da telenovela. Mas além da aura de mistério, Aurélia atiça os comentários porque se comporta de uma forma que fere determinadas convenções às quais as moças da época deviam se submeter. Estabelece cotações para os rapazes do tipo: “Alfredo Moreira é distinto. Vale bem como noivo uns cem contos de réis. Mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de maior preço”. E, repreendida por D. Firmina, emenda: “Eu não me preocupo em absoluto com a opinião que têm a meu respeito” (Braga, 1975). Portanto, logo no início da trama, a personagem é caracterizada em seu individualismo romântico que, de acordo com Campbell, privilegiava a peculiaridade da pessoa em detrimento dos modelos de conduta. Tal comportamento de Aurélia, aliado às falas que denotam seu desencanto com a quantificação do mundo, permite alinhá-la aos personagens que, nos romances de Balzac, são os tipos radicais dos quais fala Lukács, ou seja, seres para quem os medianos olham com olhos medusados (Schwarz, 1992). Na mesma festa em que Aurélia é apresentada, o público conhece Adelaide Amaral (Fátima Freire), a noiva de Seixas. Conhece também o pai de Adelaide, o funcionário da alfândega – Manuel Tavares do Amaral (Felipe Wagner) – e sua mãe, Maria do Carmo (Cleyde Blota). Ao contrário do romance que, na análise de Roberto Schwarz (1992), exclui os pais dos personagens tratando-os apenas como 155 ornamento, na telenovela, os parentes ganham uma participação bem maior em relação às discussões centrais da história sobre a mercantilização da vida e a importância dada às aparências. O pai de Adelaide, por exemplo, aparece como um ambicioso homem remediado que deseja ver a filha casada com Seixas por se identificar com o arrivismo do futuro genro. “Não é um rapaz de posses. Mas é um batalhador. Veio do nada, como eu. E, por isso, conhece o valor de cada vintém” (idem). Tal opinião é compartilhada pela mãe de Adelaide, Maria do Carmo – personagem submissa constantemente humilhada pelo marido. Ela acredita que o genro vencerá graças a sua inteligência e ao seu garbo. Além dessa certeza de uma trajetória promissora, o interesse dos pais de Adelaide por Seixas passa também por um desejo de se apropriar da postura refinada do candidato a genro. Afinal, ao mesmo tempo em que o rapaz é um jornalista emérito, com um bom emprego público e disposto a fazer carreira política, é também um dândi no sentido de seguir e conhecer profundamente o que a aristocracia do dinheiro adotou como referência de bom gosto da aristocracia de sangue. Então, sob esse aspecto, a união de Seixas com Adelaide era também um investimento do burguês enriquecido Amaral na busca de distinção social, já que um genro elegante era um signo exterior de riqueza. Outra família que ganha mais destaque na adaptação é a de Seixas. Assim como no romance, esse núcleo é composto por Camila (Mirian Pires), Mariquinhas (Lúcia Alves) e Nicota (Elisa Fernandes), respectivamente mãe e irmãs do jornalista. Da mesma forma que acontece no livro, elas moram na Rua do Hospício e enfrentam problemas financeiros, mas as dificuldades apresentadas na telenovela são bem maiores. No livro, Camila e as filhas, além de trabalharem como costureiras auxiliadas por duas serviçais, têm como rendimentos uma caderneta de poupança e dois escravos de aluguel. Já na trama televisiva, as irmãs costuram para viver e sofrem com a penúria. Sacrificam-se para que Seixas possa levar uma vida de luxo em sociedade e, assim, consiga fazer um bom casamento. Segundo Antônio Cândido, assim como na relação entre Seixas e a família, há nos romances de Alencar um impudor muito romântico de ostentar e acentuar sentimentos óbvios.