5. Do ouro à fama

As apropriações de aspectos românticos estão presentes na obra de desde sua estreia na televisão em 1973. Logo em seu primeiro texto, um roteiro para o programa Caso Especial, da Rede Globo, ele adaptou o romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Quatro casos especiais depois, o autor – já alçado à condição de novelista – não deixou de recuperar traços do Romantismo em seus trabalhos. Assim, (1974) – sua primeira novela – tinha a traição aos próprios valores em função do dinheiro como tema principal. Entretanto tudo na trama exibida às 19h era tratado de forma ajustada ao estilo leve e divertido que passou a caracterizar o horário depois da saída de Glória Magadan da emissora carioca.

Escrita em parceria com Lauro César Muniz28, Corrida do Ouro era inspirada nas comédias sofisticadas do cinema americano dos anos 1930 e 1940 e contava a história de cinco mulheres que recebiam inesperadamente uma herança à qual só teriam direito se cumprissem os desejos do milionário excêntrico que as escolheu como herdeiras. Todas as cláusulas do testamento contrariavam a personalidade das moças. Uma delas, atriz, deveria abandonar a carreira, outra, que morava no exterior há 20 anos, precisava fixar residência no Brasil, uma terceira tinha que se casar com um homem ao qual não amava. Ou seja, os obstáculos que cada uma encontrava para cumprir o testamento – e, desta forma, receber o dinheiro – forneciam os ganchos da novela.

Essa corrida pelo dinheiro viria a ser, num registro mais melodramático, uma recorrência nas novelas de Gilberto Braga. Em outras palavras, seja nas obras originais que ele criou para o horário das 20h, seja nas adaptações literárias com as quais ajudou a fixar o horário das 18h29 a partir de 1975, o dinheiro envolvendo

28 A trama de Corrida do Ouro é uma idéia de Daniel Filho. Gilberto Braga e Lauro César Muniz foram reunidos pelo diretor para desenvolver a novela. 29 A primeira novela do horário das 18h foi Meu Pedacinho de Chão (1971), de autoria de Benedito Ruy Barbosa. A trama ia ao encontro da intenção da Globo de que as novelas das seis seguissem uma linha pedagógica. Portanto, o tom dos textos era educativo, fosse apresentando a vida no campo ao homem urbano ou ensinando a língua portuguesa ao matuto da terra. Porém essa incursão da emissora em novelas mais educativas não obteve boa audiência. As tramas do horário foram então substituídas por desenhos animados e seriados americanos. Até que, em 1975, pelas 153 corruptores, arrivistas e românticos numa complexa teia de relações sociais, profissionais e afetivas aparece como força propulsora da ação em tramas paralelas ou centrais das histórias desenvolvidas pelo autor.

Após adaptar Helena, de , e reativar com sucesso o horário das 18 horas, Gilberto Braga adaptou Senhora30, romance de José de Alencar. O livro conta a história de Aurélia Camargo, uma moça pobre que, ao enriquecer, arma uma vingança contra Fernando Seixas – arrivista que a trocara no passado por uma mulher rica. Tal trama, publicada em 1875, ao deslizar do suporte impresso para a televisão cem anos depois, representou o ápice do tema romântico da conspurcação pelo dinheiro não só entre as novelas das seis da Rede Globo nos anos 1970, mas também entre as histórias que Braga escreveu para esse horário31.

A adaptação mantém a mesma fórmula capital do romance oitocentista europeu que serviu de modelo à criação de José de Alencar. Ou seja, Braga transpôs para a espinha dorsal da novela o mesmo processo de educação sentimental presente no original, que transforma a jovem pura e sonhadora Aurélia Camargo (Norma Blum) em alguém mais embrutecido em virtude da engrenagem do dinheiro e do interesse racional – representado por arrivistas como Fernando Seixas (Cláudio Marzo).

Como o romance, a novela também possui quatro etapas distintas: Preço, Quitação, Posse e Resgate, que correspondem ao processo de transformação em decorrência do dinheiro pelo qual passam Aurélia e Seixas. A fase Preço, que culmina com a noite de núpcias na qual Aurélia declara a Seixas que o comprou, estende-se por 66 capítulos. Nessa parte da trama, Gilberto Braga recorre a várias reuniões sociais que o livro possibilita – festas, missas e ópera – para apresentar personagens, mas, ao longo da novela, o autor usa esses mesmos eventos caracterizados pela ostentação permitida pelo dinheiro, a fim de criar peripécias que avancem a narrativa. mãos do diretor Herval Rossano, o horário das 18h foi redimensionado para as adaptações literárias. 30 O romance de José de Alencar ganhou outras versões televisivas. Menos de um ano depois da inauguração da televisão brasileira, a adaptação do livro era atração na TV Paulista em 1952. Em 1971, a história serviu como base para a novela O Preço de um Homem, escrita por Ody Fraga e exibida na TV Tupi. Em 2005, Senhora, Diva e Lucíola, também de autoria de Alencar, inspiraram as tramas de Essas Mulheres, novela de Marcílio Moraes, exibida pela TV Record. 31 A versão de Gilberto Braga inaugurou as cores no horário das 18h na Rede Globo.

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Aurélia Camargo é mostrada, logo no início, como a grande novidade dos salões, sobre quem personagens periféricos, sobretudo, as mulheres da sociedade, fazem uma série de especulações, já que a heroína surgiu como uma nova estrela na Corte, mas ninguém sabe sobre seu passado. Sabe-se que vive com uma parenta – Dona Firmina Mascarenhas (Zilka Salaberry) – e nada mais. Essa opção do autor por apresentar uma heroína sob uma aura de mistério pode ser relacionada, adotando-se a perspectiva de Marlyse Meyer (1996), a um uso modernizado de um muito antigo matricial procedimento de narrativa escrita – o do Decameron.

Nesse procedimento, não há uma exposição que, de saída, defina a situação a partir da qual vai se desenvolver o enredo, mas é apresentado um elemento de intriga essencial que, nesse caso, é o mistério do passado. Esse elemento recorrente já era parte da espinha dorsal de Sinclair das Ilhas e continuou como um dos motivos preferidos da .

Mas além da aura de mistério, Aurélia atiça os comentários porque se comporta de uma forma que fere determinadas convenções às quais as moças da época deviam se submeter. Estabelece cotações para os rapazes do tipo: “Alfredo Moreira é distinto. Vale bem como noivo uns cem contos de réis. Mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de maior preço”. E, repreendida por D. Firmina, emenda: “Eu não me preocupo em absoluto com a opinião que têm a meu respeito” (Braga, 1975).

Portanto, logo no início da trama, a personagem é caracterizada em seu individualismo romântico que, de acordo com Campbell, privilegiava a peculiaridade da pessoa em detrimento dos modelos de conduta. Tal comportamento de Aurélia, aliado às falas que denotam seu desencanto com a quantificação do mundo, permite alinhá-la aos personagens que, nos romances de Balzac, são os tipos radicais dos quais fala Lukács, ou seja, seres para quem os medianos olham com olhos medusados (Schwarz, 1992).

Na mesma festa em que Aurélia é apresentada, o público conhece Adelaide Amaral (Fátima Freire), a noiva de Seixas. Conhece também o pai de Adelaide, o funcionário da alfândega – Manuel Tavares do Amaral (Felipe Wagner) – e sua mãe, Maria do Carmo (Cleyde Blota). Ao contrário do romance que, na análise de Roberto Schwarz (1992), exclui os pais dos personagens tratando-os apenas como

155 ornamento, na telenovela, os parentes ganham uma participação bem maior em relação às discussões centrais da história sobre a mercantilização da vida e a importância dada às aparências.

O pai de Adelaide, por exemplo, aparece como um ambicioso homem remediado que deseja ver a filha casada com Seixas por se identificar com o arrivismo do futuro genro. “Não é um rapaz de posses. Mas é um batalhador. Veio do nada, como eu. E, por isso, conhece o valor de cada vintém” (idem). Tal opinião é compartilhada pela mãe de Adelaide, Maria do Carmo – personagem submissa constantemente humilhada pelo marido. Ela acredita que o genro vencerá graças a sua inteligência e ao seu garbo.

Além dessa certeza de uma trajetória promissora, o interesse dos pais de Adelaide por Seixas passa também por um desejo de se apropriar da postura refinada do candidato a genro. Afinal, ao mesmo tempo em que o rapaz é um jornalista emérito, com um bom emprego público e disposto a fazer carreira política, é também um dândi no sentido de seguir e conhecer profundamente o que a aristocracia do dinheiro adotou como referência de bom gosto da aristocracia de sangue. Então, sob esse aspecto, a união de Seixas com Adelaide era também um investimento do burguês enriquecido Amaral na busca de distinção social, já que um genro elegante era um signo exterior de riqueza.

Outra família que ganha mais destaque na adaptação é a de Seixas. Assim como no romance, esse núcleo é composto por Camila (Mirian Pires), Mariquinhas (Lúcia Alves) e Nicota (Elisa Fernandes), respectivamente mãe e irmãs do jornalista. Da mesma forma que acontece no livro, elas moram na Rua do Hospício e enfrentam problemas financeiros, mas as dificuldades apresentadas na telenovela são bem maiores. No livro, Camila e as filhas, além de trabalharem como costureiras auxiliadas por duas serviçais, têm como rendimentos uma caderneta de poupança e dois escravos de aluguel. Já na trama televisiva, as irmãs costuram para viver e sofrem com a penúria. Sacrificam-se para que Seixas possa levar uma vida de luxo em sociedade e, assim, consiga fazer um bom casamento.

Segundo Antônio Cândido, assim como na relação entre Seixas e a família, há nos romances de Alencar um impudor muito romântico de ostentar e acentuar sentimentos óbvios. Desta forma, mães, pais, irmãos, são amados com uma veemência que anula as penumbras da afetividade, como se o romancista quisesse

156 pagar tributo à instituição da família pela hipertrofia de suas relações básicas (Cândido, 1993). Entretanto Braga não só mantém como amplia a veemência desse amor da família por Seixas. Pode-se identificar nessa veemência – tanto de Alencar, quanto de Braga – traços daquele exagero que, já convertido numa “categoria” do melodrama teatral, tornou-se uma marca na novela de folhetim (Oroz, op.cit.).

Tal exagero pode ser relacionado ainda ao amor-sacrifício que, ao lado do amor homem-mulher, são os dois tipos de amor, na perspectiva da mitologia judaico-cristã, sobre os quais o melodrama está estruturado. De acordo com Sílvia Oroz, na cultura ocidental, o amor permite alcançar o perdão divino e produz uma purificação celestial na Terra. Convertido então num valor universal que pressupõe a bondade em quem ama, para além das diferenças culturais e de classe, esse sentimento dá ao pobre a chance de ser “rico”, uma vez que qualquer pessoa passa a valer mais por amar.

O amor-sacrifício é então importantíssimo para a conquista do céu. Na novela, o sentimento erige a família de Seixas como síntese de que qualquer sacrifício é justificável em prol do bem-estar de um filho ou irmão, entendendo-se esse bem-estar como ascensão social. Por isso, mesmo Camila e as filhas tendo um discurso que valoriza o casamento por amor, elas se sacrificam para que Seixas siga em frente com seus planos de fazer boa figura em sociedade e, assim, suba na vida.

Esse amor incondicional das três é bem marcado no início da novela, quando Seixas está fora do há um ano. Braga ressalta que o jornalista envia dinheiro por ser um bom filho e um bom irmão. Entretanto elas não gastam essa quantia, sendo inclusive obrigadas a colocar as joias da família no prego para poderem sobreviver.

Ao voltar de Recife, Seixas pede que a mãe e as irmãs usem os adornos numa ocasião social. Tem-se nesse entrecho uma atualização das relações das classes médias do século XVIII com a aristocracia, pois temendo que sua família seja rechaçada pelos aristocratas do dinheiro, Seixas sucumbe ao padrão de aceitabilidade social assim como faziam os burgueses da Era da Sensibilidade ao adotarem os procedimentos de conduta determinados pela nobreza. Mas de nada adiantam as joias que o jornalista pede para as mulheres de sua família usar, já

157 que, tanto sua mãe, como suas irmãs são motivo de chacota por usarem vestidos visivelmente reaproveitados e por não saberem se portar numa ópera em razão de não estarem acostumadas a circular em eventos sociais.

Além de serem motivo de chacota, essa ida à ópera gera outro problema para a família de Seixas. Sem querer preocupar o rapaz contando-lhe a verdade – em outra demonstração do amor-sacrifício de que fala Oroz, análogo à benevolência, cujo culto, segundo Campbell, levava a um hedonismo altruísta marcado pela alegria, mas também pelo compadecimento com os problemas alheios – a família, através de Mariquinhas, acaba por recorrer ao agiota Lemos (Alberto Perez). Este, ao perceber que se trata de uma boa e inocente moça, cobra 20% de juros ao mês pelos 10 contos de réis que a ela empresta, sendo que habitualmente ele costuma cobrar 10%.

A partir do capítulo 16, a fase Preço passa a ser intercalada por flashbacks que, no livro, equivalem à segunda fase chamada de Quitação. Desta forma, são explicadas ao público as razões do rancor de Aurélia por Seixas e também como ela enriqueceu graças à herança que lhe é deixada por seu avô paterno, Lourenço Camargo. Trata-se de uma sequência de reconhecimento típica do melodrama que aparece na novela Senhora com a mesma função que tinha no gênero teatral, ou seja, ocorre para que os enganos sejam corrigidos e as famílias, restabelecidas.

No caso da novela, o reconhecimento de Aurélia como neta por Lourenço vem coroar o processo de correção dos erros do avô paterno da heroína no que diz respeito a sua avaliação sobre a legitimidade da união dos pais da moça, Emília (Ida Gomes) e Pedro (Roberto Murtinho). No passado, ele – valendo-se do poder econômico – havia separado o casal. Ou seja, antes mesmo de sua decepção com Seixas, Aurélia já havia tido uma mostra da força do dinheiro como elemento transformador das pessoas, já que – ao recontar sua história para o amigo Torquato Ribeiro (Osmar Prado) – ela descreve o avô como sendo “dessas pessoas que se sentem donas do mundo por terem muito dinheiro” (Braga, 1975).

Essas pessoas que, por serem ricas, acham-se no direito de humilhar e de dispor da vida dos outros de forma desumana são figuras recorrentes na obra de Gilberto Braga. Um deles, Felipe Barreto (Antônio Fagundes), chegou inclusive a protagonizar a novela, não sem razão, batizada de (1991). Entretanto, embora Lourenço, assim como Felipe, use o dinheiro para fazer da

158 vida das pessoas o que bem entende, em relação a essa novela das oito da década de 1990, o avô de Aurélia está mais próximo do personagem Herculano Maciel (Stênio Garcia) – o sogro de Felipe. Isso porque, da mesma forma que Herculano, embora este tenha um comportamento mais benevolente, Lourenço é o grande dono do dinheiro, cujo patrimônio funda ou amarra as principais intrigas das novelas do autor.

Em comum, esses personagens poderosos têm o fato de personificarem a ambiguidade inerente ao dinheiro. Assim, ao mesmo tempo em que agem com arrogância por acreditarem que o poder econômico tudo permite, também são capazes de verdadeiramente ajudar os outros. Há também situações nas quais esses tipos justificam o uso do dinheiro em nome do amor.

Isso acontece, sobretudo, quando, munidos do que creem ser uma boa intenção, interferem sem pedir licença na vida das pessoas, sobretudo, dos filhos, mas tal “ajuda” é sempre um grande equívoco. Um dos exemplos disso na obra de Braga está na novela Brilhante (1981), na qual a personagem Chica Newman () – antes de se modificar graças ao seu romance com o chofer vivido por Cláudio Marzo – é a riquíssima e equivocada mãe que resolve comprar uma esposa para o filho homossexual. Já em Senhora, o equívoco de Lourenço é afastar Pedro da mãe de Aurélia por acreditar que ela é uma perdida e, portanto, responsável pelo desvio de seu filho do bom caminho.

Esse entrecho da novela no qual Lourenço aparece é bem semelhante ao que acontece no livro. Mas, sem o mesmo grau de exagero amplificador que caracteriza, por exemplo, a narrativa de Terrail – autor que se valia da redundância à pilhagem para esticar ao máximo as aventuras de Rocambole e, assim, saciar os anseios do público e atender ao mercado –, Gilberto Braga, a fim de que a adaptação de Senhora para a televisão tivesse os 79 capítulos estabelecidos pela emissora, acrescentou à trama principal do romance novos entrechos também atravessados pela oposição entre o amor e o dinheiro. Nesses dois campos antagônicos, Braga distribuiu os personagens segundo a pedagogia moral que o folhetim herdou do drama burguês e do melodrama clássico.

Por isso, com o objetivo de mostrar que o amor é mais importante do que o cálculo racional, o autor apresentou os personagens do bem como sendo aqueles identificados à sensibilidade romântica, tal qual definida por Löwy e Sayre, ou

159 seja, são tipos desencantados com a quantificação do mundo, partidários da ideia de que o que deve reger a vida são os bons sentimentos e não o dinheiro. Em contrapartida, os personagens do mal são os preocupados com aparências, pragmáticos, ambiciosos e arrivistas, guiados pelo desejo de ascensão social nem que para isso seja necessário um casamento de conveniência.

Dois tipos exemplares dessa divisão maniqueísta são os personagens Lemos e Mariquinhas. O tio de Aurélia conserva na novela o traço anedótico que tem no livro por meio de características como, por exemplo, trocar uma palavra por outra e também através do cinismo e da dissimulação com os quais reage às humilhações que lhe são impingidas por Aurélia. O tutor suporta tudo porque, além do trabalho com a sobrinha ser uma fonte de renda, administrando os bens da moça, ele aproveita sempre para roubá-la um pouco.

Entre as razões que a sobrinha tem para castigá-lo com pequenas crueldades como, por exemplo, servir-lhe um chá com sal, está o fato de que Aurélia tem em seu poder uma carta dos tempos em que era pobre, na qual Lemos se oferece para cafetiná-la ou, em suas palavras eufêmicas, transformá-la de modo que ela pudesse ser transportada para o seio do luxo, já que, no entendimento do tio, uma moça com os atributos físicos da heroína é uma mercadoria que poderia render muitos dividendos. Assim, ao se dirigir por escrito à sobrinha, ele pede: “Deixe-me ser o empresário desta metamorfose lucrativa para ambos” (idem).

Esse entrecho da carta também está presente no romance de modo a assegurar a Aurélia o controle sobre o tio. Entretanto, na novela, o mau-caratismo de Lemos é ampliado, já que – além de candidato a cafetão – Gilberto Braga transforma-o em agiota, ou seja, no signo máximo da corrupção dos valores pelo dinheiro. Por meio dessa opção, de conferir ao personagem do tio a prática da agiotagem, o novelista resgata o aspecto tenebroso presente, segundo Marlise Meyer, no folhetim oitocentista, cujas criaturas do tecido ficcional circulam por um mundo que:

[...] oferece a imagem de uma luta agônica pela vida, opondo os fracos, os virtuosos, as vítimas da sociedade, os perseguidos, as mulheres abandonadas, estupradas, viúvas, esposas-mártires, as crianças espancadas, seviciadas, os pobres, todos os injustiçados, enfim, aos poderosos, aos fortes, aos hábeis, aos luxuriosos, aos ricos, aos perversos, aos patrões, aos contramestres, aos agiotas, ao destino adverso, aos maus, em suma. (MEYER, 1996, p. 415).

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Como praticante da usura, o tio da heroína assume na novela um caráter ainda mais central do que possuía no livro porque, ao emprestar dinheiro a juros para Mariquinhas, ele deixa de ser apenas o mediador da negociação do casamento às escuras para gerar o endividamento que piora as condições da família do jornalista, ou seja, Lemos dá o tiro de misericórdia para que Seixas capitule ao plano secreto de Aurélia.

No plano diametralmente oposto à ambição de Lemos, Mariquinhas representa o amor abnegado que o Romantismo herdou da ética da sensibilidade, isto é, ela personifica o sentimento que eleva as coisas do espírito em detrimento da matéria. Apresentada como uma ávida leitora de romances, a irmã mais velha de Seixas acaba sendo a principal porta-voz do discurso romântico, no qual o amor aparece como a única garantia de .

Tal pensamento é reiterado em grande parte das cenas da personagem, sobretudo, em seus diálogos tentando convencer o jornalista a desistir do casamento arranjado. Por meio de seu insistente discurso com frases como, por exemplo, “Veja bem, meu irmão, porque o que rege este mundo não é o dinheiro. São os sentimentos” (ibidem), Mariquinhas torna-se uma importante influência para que Seixas opte pelo amor.

Essa rigidez maniqueísta que demarca em campos opostos Lemos e Mariquinhas não se estende a todos os personagens da novela, pois, assim como no romance de José de Alencar, a sensibilidade romântica na adaptação de Gilberto Braga assume uma feição complexa, não se apresentando de forma homogênea. Desta forma, a heroína Aurélia Camargo, ao mesmo tempo em que é vítima do dinheiro, compreende o império da fortuna e o carreirismo a ponto de manobrá-los em proveito próprio. Ou seja, ela se beneficia da engrenagem social, confiando aos mesmos mecanismos do dinheiro que considera odiosos a obtenção de sua felicidade, esta traduzida na realização de sua vingança contra Fernando Seixas.

Por isso, a fim de levar adiante seus planos, Aurélia é capaz tanto de dar condições econômicas ao advogado Torquato Ribeiro (Osmar Prado) de desposar Adelaide Amaral (Fátima Freire) no lugar de Seixas, quanto de permitir que seu tio Lemos explore Mariquinhas (Lúcia Alves), a irmã de Seixas, de modo que

161 este, sabendo das dívidas de sua família, fique vulnerável a ponto de ser obrigado a aceitar o dote de 100 contos de réis a ele oferecido. Ou seja, para a versão eletrônica da heroína de Alencar também cabe a análise de Antônio Cândido (1993), segundo a qual Aurélia seria um personagem capaz de fazer com que as noções de bem e mal percam a conotação simples, cedendo lugar à complexidade humana.

A Aurélia de Gilberto Braga tem em comum com a de Alencar essa mesma complexidade de que fala Cândido e, exceto pelo fato de deixar Mariquinhas ser enredada por Lemos – atitude pela qual, como boa heroína, pede perdão –, a personagem em sua versão televisiva é tão romântica quanto a do livro no sentido de que falam Löwy e Sayre, ou seja, naquilo que o Romantismo tem de reabilitação do amor de modo a confrontar o cálculo racional. Assim, embora Meyer (1996) aponte que nos folhetins o dinheiro permitia à mulher exercer um forte papel que geralmente cabia ao homem na sociedade, o grande objetivo de Aurélia após receber a herança do avô passa a ser vingar o amor, como diz a Dona Firmina na cena 17 do capítulo 45: “Deus me enviou esta arma para dar combate a esta sociedade corrompida e vingar o sentimentos nobres escarnecidos pela turba de oportunistas” (Braga, op.cit.).

Mas mesmo no papel de vingadora ferida, Aurélia é bem menos embrutecida pelo dinheiro do que outras heroínas folhetinescas. Por isso, ao compará-la com Cora, uma das Mulheres de Bronze32 da história escrita por Xavier de Montepin, ou seja, com a heroína filha de escrava e de um rico plantador das Antilhas, cuja herança lhe permite se fazer de justiceira e vingar humilhações antigas, Meyer diz: “É também o caso de Aurélia, com a diferença de que a heroína de Montepin não cede sentimentalmente. Ela é mais dura, não se dobra, como o fará finalmente Aurélia diante de Seixas. Mais romântico, Alencar” (1996, p. 312).

Esse traço sentimental de Aurélia é mantido na novela. Assim, na fase do Resgate, quando Seixas consegue resgatar sua liberdade graças a negócios com

32 Em 1966, Ivani Ribeiro se baseou nesse romance para escrever a novela Almas de Pedra exibida pela TV Excelsior. Na trama, Cristina (Glória Menezes) passa-se por homem para vingar a morte do pai. Mas, em meio a tanto ódio, havia lugar para o amor. Cristina, transformada em Cristiano, acaba se apaixonado por Danilo (Tarcísio Meira), seu professor de masculinidade (Fernandes, 1994).

162 carruagens de aluguel e ao investimento em libras esterlinas, a heroína revela ao jornalista que havia feito um testamento consagrando o rapaz seu herdeiro universal. Ou seja, ela nunca deixou de amá-lo mesmo quando mais cruelmente o ofendia.

No lado oposto a esse sentimentalismo de Aurélia, Fernando Seixas, tanto no romance, quanto na novela, aparece pragmático na etapa Quitação, ou seja, no tempo passado, quando troca o amor da heroína pelo dote de 50 contos de réis oferecido por Amaral. Nessa fase, ele é o intelectual elegante e pobre que, incapaz da ascese comercial, resolve o problema da posição social trocando o amor da pobre Aurélia pelo dote de Adelaide.

Seixas justifica sua atitude dizendo à irmã Mariquinhas que, além de amar mais a si próprio, não deixará de frequentar a sociedade, de fazer figura entre a gente do tom, de ter por alfaiate o Raunter, por sapateiro o Campos, por camiseria a Cretten, por perfumista o Bernardo. Ou seja, por meio desse apreço de Seixas pelos luxos, exposto na fase Quitação, Alencar e Braga mostram como homens de sensibilidade tal qual o jornalista eram obrigados a agir no limiar da competição burguesa, quando o gosto estético e o senso de beleza expressos nos padrões de consumo, além de denotarem uma posição moral, faziam parte do mecanismo de ascensão, já que abriam portas para ambições maiores como, por exemplo, a carreira política que Seixas almejava seguir.

Um visual adequado também era fundamental para que uma mulher fizesse um bom casamento. Esse é outro argumento que Seixas usa para justificar sua decisão de abandonar Aurélia, já que só ascendendo socialmente ele poderia dar às irmãs não apenas condições de oferecer um dote, mas também de se apresentarem de forma decente em sociedade, de modo a conseguirem um bom partido.

Conhecedor das exigências da vida em sociedade, o rapaz sabe – como afirma Gilberto Braga por meio da fala da personagem Lísia Soares (Maria do Rocio), uma das espirituosas anfitriãs do folhetim – que tais eventos são um verdadeiro terreno de batalha no qual o que importa é ver e ser visto. Logo, melhorando o visual das irmãs na medida do possível, Seixas tem a intenção de conseguir um marido pelo menos para a irmã mais nova, pois a mais velha já está

163 com 28 anos e essa idade “avançada” – mais a falta de dote – diminui consideravelmente as chances que a moça tem de se casar.

Do modo semelhante ao que ocorria nos folhetins da terceira fase, o casamento reaparece nesse entrecho como uma forma de transformação da condição social feminina. Por isso, da mesma maneira, o dote como requisito ao enlace matrimonial assume importância igual à que tinha nos romances de vítima, nos quais as mulheres se casavam por dinheiro, motivadas por uma ambição própria ou familiar.

A equivalência da personalidade entre o Seixas da novela e o do romance detectada na etapa da obra que corresponde ao passado não permanece nas demais etapas relacionadas ao tempo presente, pois Braga atenua a ambiguidade do jornalista, heroicizando-o na perspectiva maniqueísta do melodrama. Assim, em sua versão televisiva, o personagem – ao contrário do que ocorre no livro – começa a se modificar antes mesmo de ser enredado pela vingança engendrada graças ao poder do dinheiro.

Além disso, enquanto no romance é o gosto pelos luxos e o pânico da pobreza que levam Seixas a romper o compromisso com Adelaide para se meter num casamento às escuras em troca de 100 contos de réis, na novela, ele termina com a filha de Amaral ao re-encontrar Aurélia e perceber que ainda a ama. Ele só capitula ao acordo para o casamento com a noiva misteriosa porque descobre que a irmã está endividada com um agiota. Ou seja, na trama televisiva, sua motivação para aceitar o dote é menos a ambição do que o amor-sacrifício.

Às vésperas de assinar o acordo, Seixas ainda tenta procurar Aurélia para confessar o seu amor e pedir perdão. Porém Gilberto Braga faz o personagem literalmente cair do cavalo no final do capítulo 24, isto é, o autor recorre a um coup de théâtre típico dos dramas românticos de Alexandre Dumas e, desta forma, além de criar um gancho no final do capítulo, adia as negociações por uma semana no tempo diegético.

Com o acordo já assinado, ao saber que a noiva secreta é Aurélia, o jornalista tenta abrir mão do dote de 100 contos de réis, mas Lemos – além de não permitir – como vingança à sobrinha pelas humilhações às quais ela lhe submete, esconde dela o gesto do rapaz. A atitude de Seixas – que não existe no livro – de

164 tentar descartar o dote –, além da motivação fraternal para aceitá-lo e da tentativa de pedir perdão interrompida pela queda – entrechos que também não existiam no romance –, corroboram para o argumento de que, na ficção televisiva, o personagem torna-se menos pragmático para assumir uma coloração romântica mais próxima do entendimento de Lowy e Sayre, uma vez que o jornalista se modifica pela força transformadora do amor.

Ou seja, na novela, a noite de núpcias na qual Aurélia humilha Seixas, revelando-lhe o seu plano de vingança para puni-lo da degradação moral em função do dinheiro – atitude que ela classifica como um crime – é o golpe fatal no pragmatismo do jornalista, pois este, antes mesmo da vingança, já passava por um processo de transformação. A partir desse ponto desenrolam-se os 13 capítulos finais da trama televisiva que, no romance, correspondem às etapas Posse e Resgate.

Humilhado, mas disposto a reaver o apreço de sua amada, Seixas aceita com rigor o papel de mercadoria que lhe é imposto, mas romanticamente rejeita os luxos que o cercam: vai a pé para o trabalho, usa as roupas que trouxe de casa, dispensa o valet de chambre que Aurélia contratou e, por fim, deixa transparecer fisicamente seu sofrimento romântico, emagrecendo e deixando a barba por fazer. Tais atitudes passam a incomodar a heroína, acabando por revelar assim mais um traço de ambiguidade da personagem, pois aquela que, antes tripudiava das convenções sociais, cobra de Seixas outra postura com medo de ser a chacota da Corte.

Outra atitude de Seixas que causa estranhamento em Aurélia nessa fase é que o rapaz se transforma num funcionário exemplar. Em ambos os suportes, o jornalista – antes de se modificar por amor à heroína – é um péssimo servidor público. Mas, na adaptação, em consonância com a pedagogia do drama burguês e do melodrama clássico, Seixas ganha um contraponto na figura de Torquato Ribeiro (Osmar Prado) que, na trama, passa a ser seu colega de repartição graças à influência de Aurélia. Enquanto Seixas tem uma atitude debochada em relação ao serviço público, Torquato é um funcionário exemplar. A certa altura da trama, já noivo de Adelaide, ele vive o dilema ético de ter de entregar o pai de sua amada à Justiça. Amaral, ao lado de Gabriel Abranches, é acusado de ter facilitado a entrada ilegal de uma grande quantidade de casimira inglesa no país.

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Com o apoio da noiva, Torquato acaba agindo de acordo com a lei. Esse desafio de Adelaide à autoridade paterna é um elemento que a aproxima das heroínas dos romances sentimentais do século XVIII, ou seja, de personagens que também costumavam firmar sua integridade desafiando o pai. Mas Adelaide também guarda semelhanças com as leitoras daquele tipo de romance acusado de gerar sentimentos contra as convenções. A personagem de Fátima Freire é apresentada como uma amante da literatura romântica e, ao longo da trama, vai progressivamente opondo-se aos tradicionalismos. E, assim, de inicialmente apenas questionar por que não pode ir sozinha ao baile, ela acaba fugindo para se casar secretamente com seu grande amor, já que, quando dele é afastada, sofre prostrada no melhor estilo do período do Romantismo classificado como “mal do século”.

Já no personagem de Torquato, tem-se um desenho mais definido de como as ideias burguesas encontram-se deslocadas em relação ao modelo do romance europeu. Embora seja apresentado como um rapaz honesto, republicano, abolicionista, com fortes convicções liberais, Torquato não questiona o favorecimento que obteve de Aurélia. Em outras palavras, os valores burgueses de Torquato, nesse caso – ao contrário do que acontece em relação ao suposto crime cometido por seu futuro sogro – não entram em choque com a prática do favor, que aparece em vários entrechos da novela como, por exemplo, quando Seixas esconde um processo contra Amaral por ele ser o pai de sua noiva Adelaide, quando o mesmo Amaral pede a um deputado para conseguir a demissão de Seixas do jornal, a fim de se vingar do rapaz por ele ter desistido de se casar, quando Aurélia usa de sua influência para que Seixas seja readmitido etc.

O liberalismo de Torquato entra mais fortemente em choque com a escravidão. Outro ponto de tensão em sua relação com o pai de Adelaide é que o futuro sogro é contra a abolição. Desta forma, de acordo com a perspectiva pedagógica, os valores abolicionistas são encarnados nos personagens de boa índole, enquanto os valores escravocratas a serem rejeitados estão ligados a personagens de natureza perversa ou conservadora.

Aurélia é proprietária de escravos, mas, ao contrário do romance, no qual isso não é uma questão, a novela atualiza esse ponto dando à heroína ideias abolicionistas. Esse aspecto da personagem é também uma forma de aproximá-la

166 de Seixas – um abolicionista na trama – e contrapô-la a Adelaide quando esta é sua “rival”, já que a filha de Amaral é caracterizada como alguém que não discute política.

A única escrava que tem fala na novela chama-se Anastácia. Apesar de não ser livre, essa personagem age como se assim o fosse, o que a torna mais próxima da figura de uma empregada doméstica – personagem de apoio muito comum desde as radionovelas, nas quais costumava ser identificada por uma forma de falar gramaticalmente considerada incorreta. Tal estratégia de distinção comumente utilizada pelos autores de rádio para melhor separar o mundo dos patrões e o dos empregados era um recurso já bastante utilizado no teatro do século XIX por Martins Pena. Gilberto Braga repete esse procedimento nos diálogos de Anastácia e a personagem acaba funcionando como um contraponto cômico ao refinamento de Aurélia que, permanentemente, corrige o linguajar e os modos da escrava. Mas, como boa heroína, nunca a castiga.

Anastácia (Cléa Simões), que não existe no livro, tem na novela a mesma função de determinados tipos presentes no romance, a de conferir à obra o que Roberto Schwarz classifica, em sua análise da Senhora de Alencar, como o tom mais desafogado, ou seja, é um personagem engraçado que representa um respiro em relação ao drama central. A utilização desse tipo de personagem também por Gilberto Braga vem ao encontro do receituário corrente na teledramaturgia expresso por Daniel Filho (2001) em seu livro O Circo Eletrônico – Fazendo TV no Brasil.

Para o diretor, uma novela é centrada em poucos personagens sobre os quais o público se interessa e esses tipos principais devem ser mostrados durante pelo menos 60% do capítulo, mesmo que eles estejam separados. Em segundo plano, ainda de acordo com a visão de Filho, aparecem as tramas paralelas vividas por personagens secundários com histórias próprias, mas menos expressivas. São essas criaturas que, em geral, ficam responsáveis por trazer um pouco de comédia, para aliviar a trama dramática. Em outras palavras, os personagens periféricos entram na novela como o comic relief, aliviando a tensão e suavizando a história ao trazerem um pouco de riso, pois, caso contrário, segundo o diretor, seria impossível para o público aguentar apenas a emoção dramática.

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Assim como Anastácia, aparece na novela com a mesma função de respiro, a informante de Aurélia e mendiga por opção Bernardina (Darcy de Souza). Depois de verificar que pedindo esmolas ganhava mais do que trabalhando, essa personagem decidiu nunca mais parar de mendigar. Presente no romance apenas como informante, mas sem o lado de atualização do Rocambole em tom de comicidade que possui na novela, Bernardina – permite na trama televisiva uma leitura crítica por apontar como o trabalhador é mal remunerado, mas também dá margem à visão conservadora de que muitos mendigos são pessoas avessas ao trabalho.

Na novela, além de Anastácia e Bernardina, outros personagens secundários comentam ou dialogam de forma direta ou indireta com a trama principal, conferindo à adaptação seu caráter pitoresco. Nesse aspecto, a trama televisiva guarda semelhanças com o romance, pois era por meio desses tipos e de suas anedotas cotidianas que, além de conferir o respiro necessário à trama, Alencar imprimia a cor local. Em outras palavras, era desta forma que o autor fazia, segundo Schwarz (op.cit.), as modificações necessárias para que o modelo do romance europeu pudesse ser ajustado à realidade brasileira, isto é, tais criaturas é que tornavam povoado o romance ao comporem o traçado social fluminense em que circulam as figuras centrais, de cuja importância são a medida. Se esses tipos fossem eliminados, restaria apenas um romance francês.

Entretanto, esses seres que circundam o casal principal não apresentam, no livro, discussões acerca da quantificação da vida ou da importância dada às aparências em sociedade. Na novela, ao contrário, isso acontece, por exemplo, no registro cômico de Bernardina, mas também no discurso de Mariquinhas que, assim como Aurélia, entende a divinização do dinheiro como um estado de coisas a recusar.

Outra diferença da novela em relação ao romance é que o tom mais leve não fica restrito aos personagens periféricos que circundam a mocidade casadoira, a novela – por sua própria extensão – exigiu que Gilberto Braga criasse entrechos engraçados também no círculo mundano representado pelos jovens à procura de suas almas gêmeas em festas, óperas e saraus. Assim, há o divertido triângulo formado por Nicota – a bela irmã caçula de Seixas – apaixonada pelo bronco Afonso (Ivan Setta) – filho de Fagundes (Nestor de Montemar), o dono do

168 armarinho –, mas encantada com o refinamento representado pelo galanteador rapaz de sociedade Alfredo Moreira (Fausto Rocha Jr.). Nicota, assim como Adelaide e Mariquinhas, tem traços que remetem às jovens da Era da Sensibilidade. Entretanto, ao contrário das outras duas, Nicota é uma leitora de revistas cujo material a conduz a devaneios mais ajustados às convenções sociais. Por isso, embora ame Afonso, Nicota deseja frequentar saraus para aprender hábitos finos e repassá-los ao namorado.

A fim de ajudar o filho a ser o par ideal que Nicota deseja, Fagundes decide transformar Afonso num gentilhomme. Entretanto o professor contratado para o filho acaba por se demitir, pois pai e aluno não conseguem entender o que lições de literatura possam ter a ver com refinamento. A transformação do personagem fica restrita à nova aparência de Afonso proporcionada pelo dinheiro que o dono do armarinho revela ter quando vê o filho perdendo a briga por Nicota.

Nessa brincadeira, por meio da qual Gilberto Braga retoma num registro cômico a importância às normas e às convenções que está no centro de outras tramas da novela, há ecos do burguês de Moliére que contrata professores almejando a fidalguia. Mas esse novo entrecho acrescido à trama original de Senhora também remete ao processo de ilustração dos burgueses ricos e sem cultura que se dava pela mediação dos profissionais liberais, técnicos e cientistas também burgueses, mas sem tanto dinheiro.

Na outra ponta do triângulo, aparece Alfredo Moreira, um eterno apaixonado por todas as raparigas da Corte. As demonstrações exageradas de sentimento desse personagem permitem uma relação com o pensamento de Campbell sobre quanto determinadas expressões românticas guardam do sentimentalismo que caiu em desuso, entre outras razões, justamente porque começaram a surgir dúvidas quanto à sinceridade de emoções tão visivelmente demonstradas.

Além disso, por meio do comportamento excessivamente romântico de Alfredo, Braga, na linha de Ponson du Terrail, utiliza a paródia como forma de atualização. Para isso, ele se vale, por vezes, de uma metalinguagem distanciadora que expõe os clichês associados ao Romantismo. Um exemplo disso está num diálogo entre Alfredo e Nicota que acontece no capítulo 67:

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Nicota: – Não sei por que tanto entusiasmo em minha companhia se é o senhor que fala o tempo todo. Alfredo: – Falo porque tenho de tentar ao menos exprimir o que eu estou sentindo... Nicota (gozadora): – Ah, tentar eu não tenho dúvida de que o senhor está tentando... Alfredo: – Sinta o bater de meu coração. Como bate forte por estar ao seu lado! Batidas à porta. Alfredo (ouve as batidas): – Mesmo eu não sabia que estava batendo tão forte. Nicota (gozadora): – Não é o seu coração que estamos ouvindo, senhor Moreira. Estão batendo à porta (BRAGA, 1975).

O contraponto de Moreira é o personagem de Eduardo Abreu, que encarna aspectos profundamente identificados com o Romantismo como “mal do século” e a “boemia”. Trata-se do rapaz rico que sofre por ter seu amor rejeitado por Aurélia e dilapida o patrimônio num processo autodestrutivo. Vale-se do dinheiro e das influências também, tanto para ajudar as pessoas, como para tentar afastar Seixas. No romance, é insinuado que a degradação o levaria ao suicídio. Na novela, isso sequer é mencionado, mas a degradação é mantida.

Além dessa atenuação em relação à questão do suicídio, a novela tem outras soluções consoladoras de forma que nada aconteça a ponto de preocupar alguém. Assim, por exemplo, Torquato descobre que o pai de Adelaide é inocente e que o verdadeiro culpado é Gabriel Abranches, ou seja, seu rival na disputa do amor pela moça.

Essa estrutura de consolação fica mais evidente na manutenção do happy end que, já no romance, segundo Antônio Cândido, significa uma atenuação das consequências do forte conflito entre a condição econômica e social e a virtude que a história traz. A novela termina com todos os casais devidamente formados e até a irmã mais velha de Seixas consegue se casar. Aurélia usa o dinheiro para presentear todos os amigos e perdoa até o agiota Lemos. Entretanto – sentimental sim, ma non troppo – a heroína tem o cuidado de retirar o tio da administração de seus bens.

Após Senhora, Gilberto Braga, ainda no horário das 18h, adaptou A Escrava Isaura (1976), romance de Bernardo Guimarães, e a peça Dona Xepa

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(1977), de Pedro Bloch. A luta da escrava branca (Lucélia Santos) para se libertar do cruel senhor Leôncio () tornou-se um sucesso mundial. Já a história da feirante interpretada por obteve a maior audiência entre as novelas das seis da emissora até então. Esse bom resultado credenciou o autor para o horário nobre, no qual estreou com Dancin’ Days.

Essa trama, que tinha a onda disco como pano de fundo e trazia Sônia Braga no papel de uma ex-presidiária, lutando para conquistar o amor da filha adolescente, virou uma febre nacional em 1978. Já na década de 1980, Braga continuou a escrever novelas das oito que também tiveram excelente repercussão, mas o ponto alto na carreira do autor nesse período foi Vale Tudo, em cuja trama o dinheiro, assim como na adaptação de Senhora, ocupa o lugar central.

Vale a pena ser honesto no Brasil? Esse questionamento era a premissa da novela, que estreou em 16 de maio de 1988, quando no país, há três anos sob a Nova República, ou seja, recém-saído da ditadura – repercutiam na imprensa escândalos sobre corrupção em todos os níveis e instâncias. Ao se apropriar melodramaticamente desse quadro, que pôde vir à baila graças ao afrouxamento da censura que havia no regime militar, Gilberto Braga encontrou um terreno fértil para uma atualização do tema romântico da força dissolvente do dinheiro, já que este é o elemento catalisador da trama central, na qual mãe e filha são colocadas didaticamente em campos opostos de modo a responder o dilema ético contido na pergunta inicial.

Então, assim como em Senhora, temos em Vale Tudo o maniqueísmo de caráter pedagógico, cujos polos em oposição se dividem entre os que valorizam o amor e aqueles que divinizam o dinheiro. Contudo, em razão do tema central da novela da década de 1980 ser uma discussão sobre honestidade, Gilberto Braga enfatiza nos marcadores de romantismo e de arrivismo herdados do romance folhetim europeu a ideia de que os bons são os honestos e de que os maus são os corruptos.

Além disso, se na adaptação do romance de Alencar, Braga já trabalhara com personagens ambíguos, que davam às noções de bem e mal contornos flexíveis, em Vale Tudo, a rigidez do posicionamento dos tipos na demarcação dos campos antagônicos é ainda menor. Desta forma, nem os corruptos deixam de ter

171 momentos sentimentais e nem todos os bondosos abrem mão do “jeitinho brasileiro”.

Em meio a essa maleabilidade de caráter, a grande exceção é a heroína Raquel Acioly (), cuja honestidade é um valor que ela aprendeu a cultuar com o pai Salvador (Sebastião Vasconcelos), funcionário incorruptível da Receita Federal, a quem a neta Maria de Fátima (Glória Pires) pede que deixe passar – em troca de dinheiro sem cobrar imposto – meia dúzia de videocassetes do modelo César (Carlos Alberto Riccelli), em quem estava interessada. Ou seja, Gilberto Braga volta a abordar a questão do bom e do mau funcionário público como havia feito em Senhora, mas de modo diferente.

Na adaptação, o dinheiro dá lugar à felicidade amorosa no entrecho do favorecimento que gera o dilema ético de Torquato Ribeiro, pois o processo em suas mãos é contra o pai de sua noiva. Já em Vale Tudo, o sentimentalismo não está em cena nessa questão e o suborno proposto para a entrada ilegal de mercadorias no país serve a uma discussão33 entre Salvador, Raquel e Fátima que sintetiza o embate moral que permeia toda a novela:

Fátima: – Ah! Será que se o meu avô livrar a cara de um amigo meu pra pagar a micharia de um imposto vai levar o país à falência, poxa?! Salvador: – O país já foi a falência econômica, moral [...] Fátima: – Ótimo, vovô! O último homem honesto do Brasil. Isso dava até reportagem pro Fantástico. Agora, vai conseguir o que com isso, vovô? Chegar na sua idade com uma mão na frente e outra atrás e uma porcaria de casa no fim do mundo! [...] Fátima: – Isso aqui é um país de trambiqueiro, gente! Vocês tão pensando que eu não leio jornal. Vai conseguir o que com sua honestidade, vovô? [...] Vai conseguir acabar com os assaltantes, com os pivetes, com os marajás, com político ladrão, com os colarinhos brancos que tão aí dando golpes de milhões e milhões de dólares? Raquel: – Nem todo mundo é ladrão nessa terra não, dona Fátima. Tem muita gente nessa terra aqui que trabalha e que é honesta!

33Essa cena de Vale Tudo reproduz uma discussão familiar que, segundo Gilberto Braga, inspirou a criação da novela: “Eu estava jantando com meus parentes mais próximos e alguém chamou meu padrinho de medíocre e babaca. Disseram: – Ah, ele foi delegado em Foz do Iguaçu e Belém e poderia estar rico. Todo mundo que foi delegado nesses lugares tem apartamento na Vieira Souto e ele não tem nada, é pobre. Eu questionei: – Mas que critério é esse? Isso não é ser babaca. Ele tem uma vida digna. Tenho muito orgulho de ele não ter se corrompido. Vale Tudo nasceu dessa discussão, da figura do meu padrinho e da distorção – presente em praticamente todo o país – dos que acham que quem não é corrupto é babaca” (BRAGA, 2008, p. 388).

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Fátima: – Ninguém presta, ninguém vale nada, ninguém cumpre lei nenhuma, tá! De uma maneira ou de outra, todo mundo aqui nessa terra é corrupto. Salvador: – De uma maneira ou de outra, todo mundo aqui nessa terra é corrupto, porque você aceita isso de forma natural. A corrupção é uma bola de neve. Raquel: – Quem não tem moral, hoje rouba, amanhã mata. [...] Salvador: – Quem é conivente também é responsável, Fátima! (BRAGA, 1988).

Como se vê, por meio da argumentação de Salvador e Raquel, baseada em valores como dignidade e honra, que para Fátima não passam de conceitos abstratos, Gilberto Braga dá vazão ao Romantismo no registro reformador de que falam Lowy e Sayre, porque os personagens apontam a não conivência à corrupção como uma forma de aperfeiçoamento da realidade. Dito de outra forma, a valorização da honestidade é uma solução moral sem, contudo, propor uma alternativa ao capitalismo que está na base das desigualdades sociais que conduzem ao querer levar vantagem em tudo.

Em contrapartida, a fala de Fátima revela outro tipo de ajuste ao sistema que remete ao circuito de ódio identificado por Meyer no universo de Rocambole. Isso porque, assim como a personagem criada por Ponson du Terrail, a filha de Raquel justifica – não só seu pedido ao avô – mas também suas ações futuras para se dar bem no fato de que todos estão inseridos numa sociedade competitiva e corrompida, na qual a trapaça é a lei.

Movida por tais convicções, Fátima, após a morte do avô, vende “a porcaria de casa no fim do mundo” que este lhe deixou por meio de uma negociação que faz escondida da mãe. A personagem tem então nesse entrecho a primeira de uma série de ações rocambolescas no que essa adjetivação carrega do sentido apontado por Meyer como sendo algo planejado friamente com o objetivo de conseguir dinheiro.

Com o valor que consegue obter pela casa, Fátima deixa Foz do Iguaçu e parte para o Rio de Janeiro almejando para si a vida que vê em revistas caras e novelas de TV. Esse material de sonho que a personagem cresceu consumindo num processo de hedonismo autoilusivo contribuiu para seu descontentamento com sua posição social originado quando ela, ainda criança – como é mostrado na primeira cena da novela – presenciava discussões violentas dos pais motivadas

173 pelas dificuldades financeiras do casal. A partir de então, a personagem passa a nutrir o firme propósito de fazer o que for preciso para subir na vida, dando início a um movimento no sentido de romper com a figura materna oposta ao que ela deseja para si mesma, pois Raquel é uma mulher modesta, sem grandes ambições, que trabalha como guia turístico para sobreviver.

Raquel acredita que esse gosto de Fátima por coisas sofisticadas tenha sido herdado do pai da moça – Rubens (Daniel Filho), um pianista boêmio, sonhador, que vive além de suas possibilidades e que, por não vencer como artista, tenta conseguir dinheiro em jogos e apostas. Contudo, tomando como parâmetro a separação que Campbell faz dos burgueses em filisteus e românticos, constata-se que pai e filha são semelhantes apenas no descontentamento advindo da discrepância entre seus sonhos e a realidade que os cerca. Isso porque os devaneios de Rubinho em relação ao dinheiro estão completamente atrelados a sua arte, enquanto os prazeres ilusórios que Fátima experimenta ao ler as revistas têm a ver com os bens duráveis luxuosos restritos àqueles que gozam de uma excelente condição financeira. Isto é, sua perspectiva é completamente utilitária em oposição à do pai, essencialmente romântica.

No Rio de Janeiro, Fátima – ancorada no gosto sancionado pelas elites presente no material de sonho que a vida inteira consumiu – segue a cartilha de Seixas sobre a importância das aparências como passaporte para a ascensão social. Entretanto, de modo diferente ao do arrivista de Senhora, a filha de Raquel aplica golpes rocambolescos, a fim de ficar próxima de pessoas do jet set. Por acreditar que frequentando o grand monde terá mais chances na carreira de modelo que almeja a princípio, ela finge ser rica, hospeda-se no Copacabana Palace e até simula um incêndio na revista Tomorrow, para roubar uma agenda na qual estão os contatos de profissionais capazes de adequarem seu visual ao que é de rigueur.

Paralelamente a essas ações de Fátima, Raquel – acreditando todo momento que a filha vendeu a casa porque foi influenciada por César – também parte para o Rio de Janeiro atrás dela, a fim de resgatá-la. Esse movimento da personagem revela o quanto ela é o protótipo da mãe – um dos desdobramentos do mito judaico-cristão da mulher sobre o qual o melodrama foi estruturado (Oroz, 1999). Por isso, assim como a mãe de Seixas, Raquel define-se pela bondade, pela

174 capacidade de se sacrificar pelos filhos e também pelo exagero característico do gênero teatral do qual a telenovela não abriu mão.

Desta forma, apesar dos indícios de que a filha tem um péssimo caráter, a personagem de Regina Duarte – nessa altura da trama – continua a acreditar que Fátima é uma pessoa boa. Nem a chegada conturbada de Raquel ao Rio de Janeiro, quando ela tem a carteira com todo seu dinheiro roubada por um pivete em meio a uma discussão com o taxista por este tentar cobrar a mais pela corrida, abala suas certezas otimistas, entre elas a de que o Brasil – como a personagem defendeu na discussão de Fátima com o avô – é também um país de gente boa, honesta e que trabalha.

Corrobora para o pensamento de Raquel o apoio que ela recebe dos moradores do Catete, para onde vai à procura de Rubinho, a fim de que o pai de Fátima lhe dê uma pista da filha ou lhe ajude a encontrá-la. Mas, embora ao ajudarem a heroína, esses tipos estejam em consonância com a sensibilidade romântica tal qual apontada por Lowy e Sayre no que esta tem de recuperação dos valores qualitativos como a solidariedade, a maioria deles é flexível ao “jeitinho brasileiro” que a personagem de Regina Duarte condena.

Assim, por exemplo, a personagem Aldeíde Candeias (Lilian Cabral) que acolhe Raquel em sua casa – apesar de trabalhar duro como secretária da TCA, a empresa de aviação de Odete Roitman, e de ser “boa praça” – comete pequenos delitos que vão desde embolsar os rolos de papel higiênico da empresa até trocar as etiquetas dos produtos no supermercado. Como contraponto, ela tem seu honesto irmão Aldálio (Pedro Paulo Rangel), apelidado de Polyana por sempre procurar ver o lado bom das coisas. Esse personagem permite uma dupla leitura, já que sua postura de vida pode tanto significar uma visão otimista e esperançosa em relação ao país, quanto uma atitude de conformismo e aceitação do lado devorador do sistema capitalista.

Por meio desses e de outros tipos anedóticos do núcleo do Catete, Gilberto Braga retoma a estratégia adotada por José de Alencar, a fim de adequar o modelo europeu do folhetim romântico à cor local. Por isso, em Vale Tudo, há a mesma variação de tom da periferia para a trama central que Roberto Schwarz (op.cit.) identifica em sua análise do romance Senhora e mantida por Braga na adaptação.

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Logo, o Catete passa a ser uma esfera em que até pode haver conflito e sofrimento, mas esse lugar na vida cotidiana ocupado pelos personagens periféricos não é colocado em questão. Assim, nesse núcleo, além de Aldeíde e Polyana, há um conjunto de seres dotados de uma simpática e natural propensão à sobrevivência rotineira, como a solteirona moralista Consuelo (Rosane Gofman), o porteiro Vasco (Paulo Rezende), chegado a uma fofoca, o motorista Jarbas (Stepan Nercerssian), que torce pelo Fluminense e a impagável diarista espaçosa Lucimar da Silva (Maria Gladys), praticamente uma doutora em sabedoria popular.

Mas, a despeito de esses personagens periféricos servirem ao comic relief, eles não deixam de estar relacionados à premissa da novela, seja por meio de ações como as de Aldeíde, por exemplo, seja por meio de comentários sobre como vários aspectos da corrupção no país afetam suas vidas. Desta forma, a novela acaba por guardar relações com o melodrama no que este tem de reverência à tragédia clássica, já que o núcleo do Catete – de modo ao semelhante ao coro no teatro grego – comenta e dá informações sobre a trama central.

Portanto, em relação à topografia do enredo, tanto na adaptação de Senhora, quanto em Vale Tudo o dinheiro aparece como critério definidor, ou seja, essas novelas seguem o modelo alencariano, no que se refere a conferir ao universo dos pobres, apesar das dificuldades, tintas felizes e fazer do mundo dos ricos um tecido ficcional pelo qual circulam personagens conturbados. Contudo, Gilberto Braga não fecha exatamente com a máxima de que o dinheiro não traz felicidade, já que – como contraponto a esta ideia – apresenta personagens ricos de bem com a vida como, por exemplo, o proprietário da revista Tomorrow, Renato Felipelli (Adriano Reys).

Entre o núcleo rico – mais problemático – e o Catete feliz, está a classe média, representada na novela pelo personagem Ivan Meireles (Antônio Fagundes) e sua família envolta em seus problemas no país do vale tudo. Por meio desse conjunto de tipos, Gilberto Braga – no tom exagerado ao qual o melodrama recorre para intensificar o didatismo na abordagem das questões – fala da inflação, dos preços na feira que estão pela hora da morte, das roupas que na etiqueta indicam ser de um tecido, mas são de outro, da mensalidade do colégio das crianças que aumenta sem parar e de profissionais qualificados obrigados a se

176 submeterem a subempregos. Esse último ponto passa a ser o caso de Ivan, cuja empresa na qual acabara de conseguir uma colocação, após ser encampada pelo grupo Almeida Roitman, demite-o, obrigando-o a ingressar na TCA como operador de telex.

Consoante com o pensamento da pesquisadora Anna Maria Balogh (2001) em sua análise de Vale Tudo, na qual ela aponta Ivan como um tipo que passa por grandes modulações e tem condutas ambíguas, pode-se estabelecer uma ponte entre o personagem de Antônio Fagundes e o universo de Rocambole e o do anti- heroísmo de . Isso porque, apesar de agir a maior parte do tempo de acordo com os valores éticos, Ivan, movido pela ambição e pelo carreirismo, adere à trapaça para se dar bem.

Em suas ações, no melhor estilo dos personagens de Ponson Du Terrail e de Bráulio Pedroso, ele se apropria de relatórios, envia memorandos falsos e, por fim, passa-se por um executivo que havia faltado a uma reunião da TCA. Infiltrado, impressiona Odete Roitman (Beatriz Segal) ao desvendar a sabotagem em um charter da empresa de aviação na Polinésia Francesa e é promovido a assessor. Essa ascensão de Ivan, de acordo com o didatismo que permeia toda a discussão sobre corrupção exposta na trama, aparece como uma via intermediária entre os caminhos opostos de ascensão social percorridos por Raquel e Fátima.

Raquel representa a via honesta. Suas ações mostram como é possível crescer por meio de um trabalho do qual se goste e que traduza um talento pessoal. No caso da personagem de Regina Duarte, esse dom é a culinária. A cada passo que galga, a cozinheira é movida menos pela ambição do que pelos sentimentos românticos, que variam do amor ao desejo de vingança. Mas é este último que determina sua grande virada na trama, quando ela descobre que foi separada de Ivan – o amor de sua vida – graças a um ardil da própria filha. A partir desse ponto, Raquel passa a querer muito dinheiro para poder negar ajuda a Fátima, quando esta fracassar.

Portanto, em Vale Tudo, Gilberto Braga volta a recorrer ao tema romântico da vingança presente em Senhora. Entretanto, enquanto Aurélia se vale do dinheiro como uma arma em seu plano contra Seixas, Raquel em nenhum momento usa seu poder econômico de forma ardilosa para alcançar sua meta. Ou seja, na personagem de Regina Duarte, não há espaço para a ambiguidade, já que

177 ela ancora sua lição moral sobre a filha na certeza de que o bem triunfa sobre o mal e na tranquilidade de que o caminho honesto propicia à consciência. Em outras palavras, como heroína típica do melodrama em consonância com o caráter pedagógico do gênero teatral, Raquel – que age em prol da justiça e confia na bondade alheia – acede ao conhecimento de que existe maldade no mundo depois de ser enganada por Fátima. No entanto continua sendo boa e incorruptível para mostrar que pode enfrentar essa maldade e vencer na vida.

Então, em comparação com Aurélia, o embrutecimento de Raquel ao se deparar com a força corruptora do dinheiro é mais ameno. Contudo, a mulher simples e sentimental também passa a compreender o valor da riqueza e das aparências em sociedade. Muda o visual e, internamente, de uma pessoa exageradamente cautelosa em seus investimentos, transforma-se numa capitalista empreendedora e que se arrisca mais.

Essa mudança na visão de mundo de Raquel fica mais evidente, sobretudo, em seus diálogos com o sócio Polyana, a quem ela carrega consigo em seu processo de ascensão. O personagem de Pedro Paulo Rangel traz a marca do investidor acuado pelo capitalismo selvagem. Desta forma, a cada etapa do avanço de seu negócio com Raquel, ele propõe medidas mais cautelosas – como, por exemplo, comprar móveis de segunda mão – devidamente recusadas pela heroína, que, agora, em consonância com os modelos burgueses de aspiração de vida, adere a máximas do discurso liberal, tais como: “não se pode pensar pequeno no mundo dos negócios”, “o dinheiro tem que circular”, “uma boa apresentação é fundamental para atrair o cliente” etc.

Mas, embora a ascensão de Raquel siga uma espécie de atualização da cartilha do bom capitalista, que orientava os mercadores de Londres no drama burguês, tal processo é atravessado por um caráter mágico, próprio do melodrama, segundo Sílvia Oroz, que acaba por simplificar as contradições reais enfrentadas por quem opta em subir na vida honestamente. Assim, de vendedora de seus próprios sanduíches na praia, Raquel passa a fornecer comida para o botequim de Polyana, arrenda o restaurante de um clube e, por fim, acaba dona da Paladar, uma rede de restaurantes industriais que tem, entre outros clientes, a TCA, para a qual passa a fornecer comida nos aviões. De uma etapa para outra, ela é ajudada por uma vitória no jogo do bicho, pela conquista de uma cozinha industrial num

178 concurso de culinária e por duas reportagens que, ao destacarem sua trajetória e seu tempero, aumentam a sua clientela e atraem investidores como o milionário Laudelino (Ivan de Albuquerque), que lhe propõe sociedade na cadeia de restaurantes.

Alçada à condição de capitalista vitoriosa, Raquel é uma das personagens de Vale Tudo por meio das quais é possível identificar na obra de Braga a democracia sentimental característica dos folhetins de Emile Richebourg, já que, no comando de seus negócios, a heroína re-edita a figura do bom patrão, que se mostra sempre justo e a quem todos consideram um amigo. Além dela, os personagens de Afonso Roitman (Cássio Gabus Mendes) e Renato Felipelli atuam nesse mesmo diapasão.

O primeiro – como membro da diretoria da TCA – propõe uma gestão ancorada na justiça social. Já Renato, no comando da revista Tomorrow, paga salários acima do mercado para seus jornalistas e se envolve com os problemas deles. Como contraponto aos três, aparece o personagem Marco Aurélio (), que, na vice-presidência da TCA, exerce a tirania sobre seus subordinados e prega o corte de pessoal como solução para os momentos de crise.

Além dessas diferentes posturas na relação patrão-empregado, Afonso e Renato são didaticamente contrapostos a Marco Aurélio e Odete também no que se refere à honestidade na esfera da elite, já que Gilberto Braga procura não identificar a corrupção como algo exercido apenas pelos ricos, para afastar a crença de que só quem rouba enriquece no Brasil e, ainda, reforçar a ideia do trabalho honesto como mecanismo de ascensão. O autor se porta da mesma forma no que concerne à postura da classe alta em relação ao país.

Assim, enquanto Odete apresenta um desprezo absoluto pelo Brasil com um discurso que reforça velhos preconceitos como, por exemplo, de que o país não vai para frente porque o povo é preguiçoso, seu filho resgata o romantismo de Gonçalves Dias, na medida em que é um “exilado” saudoso das coisas boas da terra que ama. O personagem se ressente por ter tido seus laços com o país cortados ao ser obrigado por sua mãe a estudar fora. Esses conhecimentos adquiridos no exterior são outra fonte de atrito, porque Afonso se recusa a viver novamente em Paris e Odete não admite a ideia do herdeiro querer investir

179 intelectual e financeiramente num lugar de terceiro mundo. Ela, assim como Marco Aurélio, é adepta da evasão de divisas.

O fato de Afonso detestar a ideia de morar novamente fora do Brasil acaba sendo uma moeda na troca de favores entre Fátima e Odete, que possibilita enfim a ascensão social tão desejada pela filha de Raquel. Assim, após ter feito intrigas para separar Afonso de Solange (Lídia Brondi), a personagem de Glória Pires ganha o apoio da milionária para se casar com o herdeiro desde que consiga convencê-lo a morar em Paris e, além disso, promova a separação de Raquel e Ivan, já que Odete – percebendo o interesse de Heleninha Roitman () no personagem de Antônio Fagundes – quer vê-lo casado com sua filha.

Esse entrecho da novela pode ser destacado na trama como um exemplo através do qual Gilberto Braga retoma as relações regidas pelo mecanismo do favor já presentes tanto no romance Senhora quanto na adaptação como uma forma de adequação dos grandes temas do romance-folhetim europeu – entre eles, a força dissolvente do dinheiro e o antagonismo entre o amor e a conveniência – à realidade brasileira. Em Vale Tudo, o favor como forma de acesso à vida social e aos bens aparece atravessado pela temática da corrupção que dá o tom da novela.

Por isso, Fátima separa a sua mãe de Ivan, fazendo a personagem de Regina Duarte crer que seu ambicioso companheiro havia roubado os 800 mil dólares desviados da TCA por Marco Aurélio – dinheiro que foi parar na mão do casal graças a um coup de théâtre no qual as malas de Rubinho e do vice- presidente da empresa de Odete haviam sido trocadas. Entretanto não são apenas os personagens da ala do mal de Vale Tudo que usam do expediente do favor, já que este procedimento tem um caráter ambíguo, podendo aparecer associado tanto a atos graves de corrupção, quanto ao “jeitinho brasileiro”.

Assim, a benevolente Celina (Natália Thimberg) – irmã de Odete – adota o mesmo mecanismo com o gerente do apart-hotel, no qual Fátima mantém encontros com o amante César. Em troca de informações que possam incriminar a personagem de Glória Pires, a irmã de Odete promete organizar festas no salão do edifício. Em outro momento da trama que também envolve Celina, o favor aparece atrelado à questão sentimental, pois – embora goste de Raquel – a tia de Afonso propõe à cozinheira sociedade na Paladar desde que ela prometa não se aproximar de Ivan, que, ao se separar, casou-se com Heleninha.

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As descobertas de Celina sobre o adultério de Fátima pela via do favor marcam o início da derrocada da golpista. Mas, antes mesmo desse episódio, a ascensão social através do casamento por interesse é mostrada na novela de forma a desmistificar uma aparente facilidade que esse caminho possa ter. Assim, apesar de conseguir ficar cercada dos luxos com que sempre sonhou, a filha de Raquel depara-se com o fato de que a riqueza da família está toda concentrada nas mãos de Odete.

Esse tipo de desilusão permeia toda a trajetória de Fátima, pois as metas que ela alcança nunca traduzem fielmente os devaneios que a impulsionaram. Tomando como parâmetro o pensamento de Campbell, pode-se dizer que o movimento da personagem reproduz o ciclo desejo-aquisição-desilusão e desejo renovado característico do hedonismo moderno. Ou seja, como não dá para ser do jeito que ela sonhou, Fátima engendra sempre um novo plano de forma a ajustar as cenas imaginadas para sua vida aos embaraços próprios da realidade.

Desta forma, decepcionada com o fato de a carreira de modelo não ser como ela via nas revistas, ela passa a querer um marido rico. Como o que consegue é completamente dependente da mãe, a personagem deseja engravidar para se separar, receber o dinheiro do acordo pré-nupcial e poder viver feliz ao lado do amante César como sempre quis. Nesse ponto, além da discrepância entre devaneio e realidade, está grande calcanhar de Aquiles nos planos de Fátima: o amor passional, que tal como acontecia no melodrama clássico, reaparece em Vale Tudo como uma prerrogativa dos vilões, na medida em que as atitudes do casal atentam contra a razão e o bom senso, ou seja, são um fator de desequilíbrio pessoal e social.

Após Fátima dar à luz, comprovado que o pai de seu filho é César, ela é expulsa da mansão dos Roitman, com um bebê no colo e uma mala na mão, numa sequência que dialoga com o mesmo sofrimento ao qual ela submeteu a mãe no começo da novela. Entretanto, mais do que pelas atrocidades que cometeu contra Raquel, nesse ponto, Fátima é exemplarmente punida por seu adultério. Essa relação da paixão marginal com o sofrimento herdada do melodrama explica-se, segundo Igor Caruso (apud Oroz, 1999), porque esse tipo de envolvimento é um ato não social relacionado com princípio do prazer – algo oposto ao que Herbert Marcuse (apud Oroz, op.cit.) chamou de princípio do rendimento, que seria a

181 relação entre a produtividade e as normas sociais exigidas pelo sistema social de dominação para sua tranquila manutenção.

A telenovela recupera esse aspecto e, completamente derrotada, Fátima – exatamente como Raquel havia devaneado – vai procurar a mãe, que lhe nega o perdão, mas acolhe o neto. Recomeça então um novo ciclo de devaneio-desilusão na trajetória da vilã que, para garantir um recomeço, planeja vender o filho a um casal de estrangeiros pela quantia de 25 mil dólares, mas é impedida.

Tem-se, assim, nesse entrecho uma atualização dos folhetins da terceira fase, nos quais a vítima – em muitos casos – é personificada pela criança que sofre nas mãos de mães venais movidas pelo dinheiro. Pode-se dizer ainda que essa relação fria de Fátima com a maternidade, além de ter na novela a função moral de contrapô-la aos personagens de Raquel e de Solange – a boa moça que sonha em ter um filho nem que seja via produção independente – aproxima-a de Odete no que essa também rompe com a estrutura resignação-bondade comum ao protótipo da mãe melodramática.

Sem ter a mesma falta de escrúpulos de Fátima, mas personificando a angústia da classe média dividida entre seus valores éticos e o ajuste ao vale tudo, Ivan também enfrenta muitos percalços no seu processo de ascensão social, sobretudo, em função de seu casamento com Heleninha Roitman. Por meio desse entrecho, a história de Aurélia e Seixas reaparece em Vale Tudo com novas colorações. Assim como a heroína de Alencar, Raquel – ainda pobre – passa a encarar Ivan como um homem vendido e, quando enriquece, chega a dar um cheque ao personagem de Antônio Fagundes após uma noite de amor que ocorre quando este percebe que seu casamento com Heleninha havia sido um equívoco.

Em nenhum momento da relação com Heleninha, Ivan se porta como uma pessoa interesseira. E, para reforçar a ideia de que não foi comprado, o personagem de Antônio Fagundes assume uma postura semelhante à de Seixas, já que procura ater-se ao patrimônio que possuía antes de se casar. Assim, por exemplo, insiste em morar com Helena num lugar que ele mesmo possa pagar.

Apesar de ambicioso, seu envolvimento com a herdeira se dá em razão da carência e da mágoa oriundos do descrédito de Raquel para com ele no episódio da mala de dólares. Além disso, Odete incumbe-lhe de uma missão da TCA na

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Itália com o intuito de aproximá-lo da filha, pois sabia que Helena estaria com uma exposição no mesmo local. Então, ardilosamente envolvido num clima idílico, Ivan sucumbe ao amor da personagem de Renata Sorrah.

Ivan defende-se das suspeitas de Raquel dizendo que aquilo que o atraiu na nova esposa não foi o dinheiro em sua face utilitária, mas transmutado em agente que proporciona o acesso a produtos culturais determinantes no desenvolvimento de uma pessoa em relação às coisas do espírito. E Helena, entre outros traços românticos de sua personalidade, tem uma visão boêmia, de acordo com a qual, uma boa condição financeira só tem sentido a serviço da sensibilidade artística. Entretanto a união não dá certo, porque a herdeira dos Roitman, também como os românticos boêmios, tem na bebida uma válvula de escape para suas agruras reais, que são muitas.

Assim, em consonância com a topografia do enredo que confere às histórias do núcleo rico maior densidade dramática, Helena representa o expoente máximo do sofrimento durante toda a novela. Após passar seis meses numa clínica de reabilitação devido ao alcoolismo, tem de enfrentar uma série de restrições que o ex-marido Marco Aurélio lhe coloca para ver seu filho Tiago (Fábio Vila Verde). A personagem perdeu a guarda do adolescente após uma bebedeira, em razão da qual, supostamente, além de causar um acidente automobilístico que matou um de seus irmãos, provocou um princípio de incêndio que colocou a vida de Tiago em risco.

Pode-se dizer então que, além de ser o protótipo da pobre menina rica que, embora cercada de luxos, padece com a falta de afeto, Heleninha – assim como Rubinho – personifica na novela a sensibilidade romântica no que esta tem de teoria da arte extrapolada para uma filosofia de vida. Mas, em virtude da personagem de Renata Sorrah ser rica e o de Daniel Filho, pobre, esse mesmo aspecto do Romantismo que ambos representam ganha diferentes nuances e motivações.

Desta forma, apesar de terem em comum a boemia, o comportamento autodestrutivo, a valorização do prazer acima da utilidade e certo egoísmo, a falta de dinheiro faz com que essas manifestações no personagem do Rubinho remetam ao estereótipo do artista que, por insistir em viver exclusivamente de sua arte, submete a si – e também a família, no caso do pianista – a uma existência à beira

183 da privação e da pobreza. Gilberto Braga retoma esse tipo em Paraíso Tropical (2007) por meio da história de Evaldo (Flávio Bauraqui), ourives talentoso que, além de ter seu trabalho explorado por oportunistas, afunda-se na bebida.

Tanto Rubinho quanto Evaldo morrem no momento em que a vida lhes dá a chance de finalmente concretizar suas aspirações artísticas. Ao matar esses personagens semelhantes, Braga dá vazão ao Romantismo em sua face resignada com o fato de que, numa sociedade regida pelas regras do dinheiro, artistas pobres e sonhadores não têm possibilidade de redenção.

Já Helena, por ser rica e de família influente, teve condições de investir na carreira de pintora e de se inserir facilmente no mercado, obtendo inclusive reconhecimento internacional. Nela, os mesmos traços da filosofia de vida romântica que aparecem em Rubinho e Evaldo, além de ser uma forma de escapismo da culpa que a personagem carrega e também uma maneira que ela encontra de chamar a atenção para sua carência afetiva, assumem um caráter de resistência à opressão da mãe Odete que, por ter o controle do patrimônio dos filhos, dispõe sobre a vida deles como lhe convém. Ou seja, a personagem de Renata Sorrah não enfrenta em seu fazer artístico as restrições financeiras de Rubinho e Evaldo, seu confronto se dá no plano das ideias, no qual sua mãe personifica a visada mercantil.

Ao se embebedar, Helena dá vazão às tais explosões descontroladas de emoção poderosa por meio das quais o romântico revela a natureza única de seu ego com o objetivo de provocar uma reação desaprovadora naqueles burgueses enriquecidos que, assim como Odete, além de defenderem uma moralidade que a conduta romântica rechaça, são regidos pela cartilha do dinheiro, o que os leva a uma perspectiva utilitária da arte e da vida. Essas diferentes visões aparecem confrontadas num embate entre mãe e filha que acontece na primeira cena do capítulo 30, quando Helena, alcoolizada, sai em defesa de sua Tia Celina – vítima constante das implicâncias da sovina Odete, que considera a irmã uma perdulária:

Odete (a Celina): – Mas o que é isto? Você trocou os estofados aqui da sala? [...] Você vai acabar na miséria, jogando dinheiro pela janela [...] Helena: – [...] Ela trocou os estofados, porque achou esses mais bonitos. Tem algum problema com a beleza, é? Por que tudo pra você tem que ser utilitário?

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[...] Ela não precisa ligar pra Paris e pedir licença pra irmãzinha pra poder comprar uns metrinhos de fazenda não! Odete: – [...] Eu sei que ela não precisa ligar pra mim pra pedir licença pra fazer coisíssima nenhuma, porque ela tem do que viver [...] Agora, você não. Fica aí tomando cinco litros de whisky por dia, às minhas custas, com o meu dinheiro, porque, que eu saiba, faz muito tempo que você não vende uma tela. Helena: – Cala a boca! Não abre essa boca pra falar de beleza, nem em pintura, porque você não entende nada de beleza! [...] (BRAGA, 1988) A fala crítica de Odete sobre o comportamento de Celina guarda relações com o ascetismo protestante tal como este era didaticamente propagado no drama burguês inglês, já que, para a personagem, o controle racional dos gastos é uma condição necessária para acumulação de capital. Por isso, a arte na visão da empresária só tem sentido na perspectiva do lucro, como ela assim o expressa ao cobrar as vendas da filha. Confirma esse argumento outra cena em que ela volta ao assunto dos estofados com a irmã e aponta um quadro na sala como uma forma correta de empregar o dinheiro, pois se trata de investir em uma obra que pode ser revendida e gerar dividendos num momento de crise.

Entretanto, levando-se em conta o ponto de vista do drama burguês inglês, essa é a única conduta de Odete em relação ao dinheiro que poderia ser encarada como um exemplo de doutrinamento positivo, pois sua atuação como empresária passa ao largo do puritanismo que condenava o rebaixamento moral com o propósito de enriquecimento. Desta forma, no comando de sua empresa, ela se vale de chantagens, subornos, conchavos com políticos corruptos, abuso de poder, contas ilegais no exterior, entre outros expedientes escusos.

Tais ações de Odete como executiva entrelaçam-se na novela as suas atitudes como mãe, ou seja, ao discutir a corrupção por meio da personagem de Beatriz Segal, Gilberto Braga atualiza o aspecto de privatização da vida que o melodrama herdou do drama burguês, sobretudo, o francês. Por isso, a empresária usa sua compreensão do poder do dinheiro e do carreirismo para equivocadamente garantir a felicidade dos filhos aproximando-os de Ivan e Fátima e também para separar os personagens de Antônio Fagundes e Regina Duarte, quando estes voltam a se envolver.

A milionária convence o genro – que está com um projeto parado por ter equipamentos retidos na alfândega – a subornar um funcionário público como

185 sendo algo de praxe na TCA. Ivan – mantendo a modulação que o faz pender entre as duas formas de ascensão opostas pedagogicamente na novela – cede ao carreirismo e, por isso, cai na armadilha de Odete, que registra todos os seus passos. Assim, a executiva monta um dossiê contra ele de modo a assegurar o que acredita ser a felicidade da filha, mesmo mantendo-a num casamento desgastado.

Por meio desse entrecho, Gilberto Braga – além de trazer uma mazela da ordem pública para a esfera privada, transformando-a no agente da separação do casal romântico – recupera também a tradição melodramática de atrelar o amor- sacrifício ao amor homem-mulher, quando este implica a infelicidade de uma terceira pessoa (Oroz, op.cit.). Assim, mesmo antes de ser vítima da chantagem de Odete, Ivan procura ser um bom marido, mantendo-se firme ao lado de Helena nas crises de alcoolismo desta e não pedindo a separação – em comum acordo com Raquel – para que a mulher não sofra. O apelo ao sofrimento no tratamento desse adultério revela também um cuidado do autor de não vilanizar o casal.

Embora Raquel e Ivan fiquem juntos no final, em consonância com o exagero melodramático e com os romances de vítima nos quais – como ressalta Meyer (1996) – “desgraça pouca é bobagem”, o casal de amantes só alcança a felicidade depois que o personagem de Antônio Fagundes passa um ano na cadeia por ter subornado o funcionário público. Ao sair da prisão, ele retoma a sua vida como executivo da TCA. Nesse ponto, o autor volta a se valer do caráter mágico típico das ascensões sociais dos heróis melodramáticos como fez na trajetória de Raquel, pois suprime todas as dificuldades que um ex-presidiário pode vir a ter em sua reintegração à sociedade.

Outro recurso narrativo retomado por Gilberto Braga nesse ponto da trama é a utilização de um alter-ego que transforma a história da novela em um livro. Em Senhora, essa função cabe a Torquato Ribeiro que faz um romance a partir dos fatos a ele narrados por Aurélia. No último capítulo, Torquato entrega seus originais a um editor, cuja caracterização remete à figura de José de Alencar. Desta forma, Braga se vale da intertextualidade para atribuir a Torquato – ou tomar para si – a identidade secreta da pessoa que, conforme Alencar explica ao leitor antes do início do romance, “recebeu diretamente e, em circunstâncias que ignoro, a confidência dos principais atores deste drama curioso” (Alencar, 1975, p. 4).

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Já em Vale Tudo, essa função de alter-ego cabe a Ivan, que aproveita o tempo encarcerado para escrever as histórias dos personagens da trama e reuni-las em um livro cujo nome é o mesmo da novela, mas acrescido de uma interrogação. Gilberto Braga não responde à pergunta. Em vez disso, promove a reflexão, por meio dos destinos finais – nem todos tranquilizadores – que confere aos personagens.

Portanto, embora Gilberto Braga – por meio da ascensão vitoriosa da personagem Raquel – tenha reafirmado o discurso romântico reformador no sentido de resgatar os valores morais caros às classes médias como, por exemplo, a honra em meio ao desencanto com os rumos da Nova República, em Vale Tudo, ele se mostra mais próximo da crítica ao restringir o espaço para a estrutura de consolação que havia em Senhora. Assim, além de Ivan, apenas os personagens pobres envolvidos em esquemas de corrupção são punidos. Os ricos saem ilesos, com direito a uma cena em que Marco Aurélio dá uma “banana” para o Brasil ao fugir do país com milhões de dólares desviados da empresa de Odete.

O gesto agressivo do vice-presidente da TCA permite tanto uma leitura sob o ponto de vista da indignação, quanto da catarse, pois, por um lado, revela o desprezo de uma elite corrupta pelo país, mas, por outro, reproduziu um ato que – naquela conjuntura – brasileiros desonestos ou não – queriam fazer em razão de uma série de dificuldades que viver no Brasil envolvia. Ou seja, para muitos, a saída era o aeroporto, ideia que Braga em 1994 transformou em espinha dorsal da novela Pátria Minha.

Fátima – após um ensaio de modificação no qual recupera para a mãe as provas que incriminam Ivan – reaproxima-se de César e, capturada por um novo devaneio de ascensão, aventura-se num casamento de fachada com um príncipe italiano, amante do personagem de Riccelli. Isto é, no final das contas, o caminho da personagem de Glória Pires – antagônico ao da mãe e ajustado ao vale tudo – também se mostra possível.

Nem o assassinato de Odete Roitman – a despeito do efeito catártico que provocou na população – chega a ser uma solução totalmente compensatória para um público ávido por ver os corruptos punidos. Isso porque Odete é aniquilada como mãe e mulher e não como uma empresária desonesta. Assim, a milionária – apesar de no decorrer da novela racionalmente manter relações na base do

187 dinheiro com jovens amantes, os quais exibe como signo exterior de riqueza – sofre com a traição de César, por quem ela realmente havia se apaixonado a ponto de largar a presidência da TCA para viver ao lado dele.

Em seguida a essa decepção, ela é apontada como a verdadeira responsável pela morte do filho no acidente pelo qual sempre culpou Heleninha. E, por fim, é assassinada em um crime passional, no qual Leila (Cássia Kiss) – ao disparar três tiros – acreditava que o alvo era Fátima. Ou seja, além de todos os castigos impingidos a Odete pertencerem à ordem privada, o que poderia ser uma consolação assume ares de ironia, já que ela foi morta por engano.

Outro aspecto a ser destacado no assassinato de Odete Roitman é que o mistério em torno desse crime – embora remeta ao recurso do whodunit largamente utilizado na literatura policial oriunda do Romantismo negro – é um dos muitos pontos na trama de Vale Tudo que guardam relações com as novelas de Janete Clair. Onze anos antes de Braga, a autora já havia mobilizado a população a desvendar o assassinato do milionário Salomão Ayala (Dionísio Azevedo) na novela O Astro (1977).

Estabelecer um diálogo entre as obras de Gilberto Braga e de Janete Clair é possível, pois dos autores responsáveis pelas mudanças que conferiram à telenovela uma linguagem moderna e brasileira, Janete Clair foi a que exerceu maior influência nas criações de Braga. Além de auxiliá-lo na sua estreia como autor de novela em A Corrida do Ouro, ela o convidou para ser seu colaborador na novela Bravo (1975), a qual ele teve que concluir sozinho, já que Janete Clair foi obrigada a escrever às pressas para substituir a primeira versão de que havia sido censurada: “Aprendi tudo com Janete. Faço o folhetim que ela criou adaptado aos nossos anos” (Braga, 2003, p. 21).

Assim, a ida de Raquel para o Rio de Janeiro e sua posterior ascensão social remete a Selva de Pedra, já que a novela de Janete Clair também tematiza os desafios morais com que se defrontam os que desejam manter seus laços familiares e comunitários, bem como subir na vida na cidade grande (Hamburger, 2005). Além disso, a mala com 800 mil cruzeiros de um assalto que, em Pecado Capital, tira o sono do taxista Carlão reaparece em Vale Tudo recheada com 800 mil dólares, que desviados de um esquema de corrupção, vão parar debaixo da cama de Raquel.

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Mas, enquanto o sonhador personagem de Francisco Cuoco cai em tentação, a “pé no chão” Raquel – coerente com a missão pedagógica que lhe foi impingida pelo autor de ser um bom exemplo – resiste. Recuperado por seu amor a Eunice, Carlão morre ao tentar devolver o dinheiro. Já Raquel fica sem amor e sem os dólares, que vão parar nas mãos de Fátima. Esta – bem mais pragmática que o taxista criado por Clair – devolve o dinheiro a Marco Aurélio, porque está interessada no patrimônio da família Roitman, cujas características assemelham-se a outros núcleos ricos criados por Janete Clair.

Da mesma forma que na obra de Gilberto Braga, as famílias ricas do universo de Janete Clair também possuem um personagem que concentra a riqueza, como, por exemplo, Salviano Lisboa em Pecado Capital e Salomão Ayala em O Astro. O primeiro, em sua trajetória, enfrenta os surtos psiquiátricos da filha Vilma (Débora Duarte) – protótipo da rica problemática que Braga atualiza por meio de Heleninha – e sofre com a falta de afeto de quase todos os filhos, que condenam seu amor por Lucinha – personagem que passa por um processo de ascensão mágica semelhante ao de Raquel. Ayala, em contrapartida, tem um desenho mais próximo de Odete no que concerne ao poder econômico como elemento de conflito com os filhos.

Entretanto a resistência que Odete enfrenta dos filhos é pífia se comparada aos arroubos românticos que Salomão suporta do filho Márcio Ayala (). Além de tomar atitudes como jogar o dinheiro do pai pela janela para que o povo na rua pegue, Márcio rompe definitivamente com o milionário após exigir sem sucesso que Salomão pague salários justos aos seus empregados.

Assim como Helena e Afonso ouvem da personagem de Beatriz Segal, Márcio ouve do pai que é muito fácil criticá-lo e continuar vivendo do seu dinheiro. Mas, ao contrário dos filhos da empresária que – numa atitude ambígua em relação à riqueza – acabam por se ajustar, Márcio – numa cena que remete ao mito de São Francisco de Assis – despe-se de todas as suas vestes e deixa a mansão dos Ayala disposto a viver uma nova vida ao lado de Lili (Elizabeth Savala), moça pobre e suburbana, a quem realmente ama.

As associações entre as obras de Braga e Clair, principalmente, no que se refere à recorrência ao tema romântico da riqueza como agente da dissolução de valores, corroboram para o argumento de que o fenômeno romântico é uma moeda

189 de dupla face. Assim, Pecado Capital termina com a leitura de um jornal que, nas colunas sociais, traz a notícia do casamento do milionário Salviano Lisboa com a modelo Lucinha. Até aí, a autora mostra que o sonho é possível, já que a mocinha pobre ascende magicamente às passarelas e ainda se casa com o milionário, o qual consegue transformar pela força do amor. Entretanto, nesse mesmo periódico, um outro personagem aparece derrotado, pois a manchete “Morto por um pecado capital” relata o fim trágico do sonhador Carlão que, mesmo modificado pelo amor de Eunice, não foi capaz de vencer o poder do dinheiro.

Essa mesma ambiguidade romântica do final da novela de Janete Clair é mantida por Gilberto Braga na conclusão de Vale Tudo. Mas aparece atravessada pela crítica e pela ironia. Embora conquiste a felicidade, Raquel assume um papel de exemplo idealizado de conduta honesta numa tentativa do autor de despertar no brasileiro um espírito de mudança, a fim de que o país de fato um dia seja realmente como os versos da música Isto aqui o que é?, de Ary Barroso (1941), que serviram de inspiração para a personagem de Regina Duarte: “um Brasil que canta e é feliz, que não tem medo de fumaça, que não se entrega não”.

Contudo, ao deixar escapar os grandes corruptos, ao punir apenas os pobres e ao não modificar Fátima, Gilberto Braga, sem esperança, responde a Ary Barroso que isto aqui é o país dos rocamboles do desencanto, cujo lema ajustado ao circuito de ódio do capitalismo selvagem passa ao largo do ufanismo de um Brasil em aquarela para se aproximar da ideia contundente expressa na letra do tema musical da filha de Raquel interpretado pelo Barão Vermelho: “Ataco se isso for preciso, sou eu quem escolho e faço os meus inimigos. Saudações a quem tem coragem, aos que estão aqui pra qualquer viagem. Não fique esperando a vida passar tão rápido. A felicidade é um estado imaginário. Pense e Dance” (Frejat, Goffi, 1988).

Mesmo com um final nada tranquilizador, Vale Tudo foi um grande sucesso. Motivado por essa repercussão, Gilberto Braga continuou nas suas duas seguintes – O Dono do Mundo (1991) e Pátria Minha (1994) – a fazer uma crônica do Brasil pós-redemocratização. Se na primeira a questão central girava em torno do valor da honestidade, nas obras que completam essa espécie de trilogia as perguntas eram se a classe dominante tinha alguma preocupação com as

190 camadas mais pobres da população e se valia a pena morar (ou voltar a morar) no Brasil, apesar de tudo.

Entretanto, em O Dono do Mundo e Pátria Minha, a crítica social suplantou o romanesco, e tal desequilíbrio – que não havia em Vale Tudo – afugentou a audiência. No caso de O Dono do Mundo, os telespectadores das classes populares – que correspondem aos segmentos C e D na medição do Ibope – preferiram assistir à trama mexicana Carrossel, exibida pelo SBT. Essa novela, que contava a história da professorinha Helena e seus alunos, era rigidamente estruturada de acordo com o modelo seguro de consolação.

Já a história de Braga, em contrapartida, para defender a tese de que a elite brasileira não se importa nem um pouco com o povo, trazia sequências em que as camadas menos abastadas da população eram cruelmente ridicularizadas ou rechaçadas pelos ricos. Em uma cena, por exemplo, a personagem Karen – uma socialite interpretada por Maria Padilha – dizia para a empregada: “Esse vaso custa mais do que um ano do seu salário. Se você quebrar, vai pagar” (Braga, 2008, p. 394).

Em entrevista ao livro Autores – Histórias da Teledramaturgia, Gilberto Braga apontou essa crueldade da elite brasileira para com o povo como a razão para o insucesso da trama: “Pesei a mão na crítica social e paguei por isso. Em telenovela, é preciso pegar um pouco mais leve” (idem). Quanto à Pátria Minha, além de diversos problemas envolvendo o elenco, o autor acredita que o público não foi capturado pela história, porque esta não era adequada para um folhetim: “Numa telenovela, nós tentamos comover, fazer algo com alguma substância. Mas eu não deveria ter abordado o tema principal de Pátria Minha em uma novela, porque era sério demais” (ibidem, p. 396).

Após essas novelas mal sucedidas no horário nobre, Gilberto Braga foi convidado a assumir novamente o horário das 18h. Então, em parceria com Alcides Nogueira, escreveu a novela Força de um Desejo (1999), livremente inspirada em obras do autor romântico Visconde de Taunay:

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De certa forma, eu me senti rebaixado quando me escalaram para o horário das seis. Para piorar a situação, Força de um Desejo não atingiu a audiência que a emissora queria. Dava uma média de 26 pontos. E eu sofria muito com isso. Esse tipo de coisa mexe muito com a gente, porque você começa a achar que não está cumprindo o seu papel. [...] Felizmente, voltei para o time lá de cima depois que fiz (Braga, 2009, p. 99).

Tanto os fracassos de audiência de O Dono do Mundo e Pátria Minha, quanto a fala de Gilberto Braga em relação às expectativas do mercado mostram que a telenovela, além dos temas e da estrutura narrativa, guarda estreitas relações com o folhetim no que concerne à ingerência de fatores como público, editores, veículos e anunciantes no modo de produção do autor. Então, assim como o inventor do folhetim Emile Girardin, que, cuidadoso com o projeto mercantil por ele engendrado, condicionava a continuação de uma história à boa aceitação do público, as emissoras de TV o fazem em relação à telenovela, encurtando-a ou exigindo modificações na trama no intuito de promover uma adequação ao gosto da audiência.

Contudo, de acordo com a dialética do folhetim, pode-se afirmar que Braga, embora tenha procurado satisfazer o público e o mercado minimizando os conteúdos ideológicos em detrimento da engenharia folhetinesca, não deixou de lado a mordacidade ao construir uma história sobre a fama. Desta forma, Celebridade traz tanto o aspecto de buscar atingir um denominador comum de modo a conquistar uma audiência mais ampla possível – ou relembrando as palavras de Zola: “tentando agradar a uma multidão sem arranhar ninguém” – quanto apresenta brechas que deixam atravessar ou são atravessadas por outras falas, escutas e interpretações possíveis.

Sob o aspecto da adequação aos anseios empresariais e também aos do público, Celebridade é um exemplo de como Gilberto Braga segue os passos de Ponson du Terrail no que concerne à forma como o autor de Rocambole se valia da pilhagem narrativa, apropriando-se da obra de outros escritores e pirateando a si mesmo de modo a atender às exigências do mercado folhetinesco. Isso porque, com o intuito de recuperar a audiência que havia lhe escapado na década de 1990,

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Braga – em Celebridade – faz referências claras a suas novelas anteriores de sucesso, ainda que confira novos contornos às personagens e situações34.

Além de fazer apropriações de sua obra, Gilberto Braga – como é uma constante em seus trabalhos, bem como na telenovela brasileira desde seus primórdios – recorreu ao cinema como fonte de inspiração em Celebridade. Para construir a espinha dorsal da novela, o autor tomou como ponto de partida o filme A Malvada (All About Eve), clássico de 1950 dirigido por Joseph L. Mankiewicz. No longa-metragem, Eve Harrington (Anne Baxter) é uma candidata à atriz que se apresenta como uma moça modesta, a fim de conquistar a confiança da grande estrela Margot Channing (Bette Davis) para depois tomar o seu lugar. A esse fio condutor, Braga – para dar ao produto um sentido contemporâneo que despertasse interesse – incorporou a discussão sobre a visibilidade midiática.

Assim, na apropriação de A Malvada feita por Gilberto Braga, a dama dos palcos interpretada por Bette Davis transforma-se na modelo e empresária musical de sucesso Maria Clara Diniz (). Esta chegou ao estrelato por conta da música Musa do Verão, supostamente a ela dedicada 15 anos antes35. Ou seja, num diálogo com a célebre frase de Andy Warhol, o autor mostra que a protagonista de sua história conseguiu permanecer famosa bem mais do que os 15 minutos previstos pelo papa da pop art que, ao discorrer sobre o futuro da produção cultural massificada, afirmou que esse seria o tempo de sucesso de cada um.

Maria Clara guarda com a personagem cinematográfica que lhe inspirou apenas o fato de ser uma estrela, pois, ao contrário da atriz de teatro interpretada por Bette Davis, ela não é voluntariosa, nem egocêntrica, para se aproximar mais do perfil da heroína romântica que, mesmo com dinheiro e fama, continua sendo uma pessoa simples, à procura de um grande amor e sonhando com a maternidade. Em contrapartida, Laura Prudente da Costa (Cláudia Abreu), cujo papel na novela

34 Ao longo da análise de Celebridade, as notas de rodapé trarão alguns exemplos de autopilhagens narrativas feitas por Braga na novela. 35 Numa reunião de pauta da revista Fama usada como recurso para apresentar a personagem Maria Clara, o editor Renato Mendes (Fábio Assunção) diz: “Tá fazendo 15 anos que Musa do Verão estourou nas rádios e ela virou modelo famosa. Continua lá em cima, empresária, agora tá trazendo o Simply Red, bem mais tempo do que o Andy Warhol previu, gente, 15 anos!”

193 corresponde ao de Anne Baxter36 no filme, tem um perfil mais próximo de sua matriz cinematográfica. Ambas querem o lugar das estrelas e, por isso, procuram se apropriar das posturas de suas vítimas no que se refere a gosto, estilo e atitude, mas a diferença é que Laura – motivada por um misto de inveja e vingança – quer também o patrimônio de Maria Clara, ou seja, a casa, a empresa e o dinheiro da modelo.

Em outras palavras, Gilberto Braga – para fazer uma novela sobre o universo das celebridades, tomando como base um filme que revela os bastidores da ascensão ao estrelato no meio teatral – acrescentou ao material cinematográfico outros traços românticos, entre eles a heroína idealizada, o dinheiro – além da fama – como motivação para a vilã e também o tema da vingança. Desta forma, entre os letreiros luminosos – emaranhados num caça-palavras – que se sucedem na abertura da novela37, além dos termos ligados diretamente à temática da fama como, por exemplo, beleza, nudez, arte, futebol, show e imagem, aparecem também em destaque aspectos como loucura, ódio, favor, amor e dinheiro, ou seja, elementos recorrentes nas intrigas dos folhetins românticos.

Em Celebridade, Ademar (Daniel Dantas) trabalhava como contínuo na emissora de TV que promoveu o concurso em que Musa do Verão venceu. Na época, ele atravessava sérias dificuldades e aceitou suborno de Ernesto (Roberto Pirilo) para roubar a ficha na qual Ubaldo Quintela (Gracindo Jr.) inscrevera a música, para que, assim, Vagner – irmão de Ernesto e noivo de Maria Clara – pudesse concluir a fraude e se passar como o verdadeiro autor. Além disso, Lineu Vasconcelos () que, na novela, personifica a arrogância advinda da concentração de poder, entrega Ubaldo – seu amigo de juventude – à polícia, quando este, depois de um acesso de fúria, no dia do casamento de Maria Clara, assassina o noivo que havia lhe roubado a autoria de Musa do Verão.

Como se vê, Braga volta a recorrer ao personagem que, por concentrar toda a riqueza, dispõe da vida das pessoas de acordo com o que entende ser o

36 A vilã de A Malvada foi também uma das fontes de inspiração para Gilberto Braga criar Maria de Fátima. Em Vale Tudo, o mordomo Eugênio (Sérgio Mamberti) – um alter-ego do lado do cinéfilo autor – comentava as tramas da novela, relacionando-as aos filmes que as haviam inspirado. E, ao perceber a personalidade de Fátima, sempre se referia a ela como Eve Harrington. 37 Uma marca na obra de Gilberto Braga é que o autor costuma participar da criação das trilhas sonoras. Love’s Theme, de Barry White, música de abertura de Celebridade, além de ser um exemplo disso, revela uma escolha condizente com a trama, já que toda intriga da novela é motivada pelo roubo da autoria de um tema de amor.

194 certo. Entretanto, em consonância com a discussão principal da trama, esse grande dono do dinheiro é também o senhor da fama. Proprietário do grupo Vasconcelos, um império de comunicação que reúne jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, Lineu usa todo o seu poder econômico e midiático em prol de seus interesses e em detrimento dos direitos alheios.

Ao trair Ubaldo, Lineu visava proteger Maria Clara – a quem considera como filha – mas também não deixou de capitalizar em cima da projeção midiática alcançada pela modelo graças ao sucesso e à tragédia envolvendo Musa do Verão. Desta forma, criou a linha de produtos Summer Spell – nome que a música cuja autoria foi roubada recebeu em sua versão em inglês, tornando-se um sucesso mundial – colocando a personagem de Malu Mader como rosto exclusivo, numa jogada lucrativa para ambos.

Lineu apresenta uma conduta contraditória em relação ao uso do seu poder durante toda a sua participação na trama. Assim, é capaz de ajudar a manicure Jaqueline () – a quem considera uma pessoa pura de coração – a ter o seu tão almejado programa de TV. Em contrapartida, usou essa mesma influência para boicotar profissionalmente o genro Fernando Amorim (), por acreditar que este se casou com sua filha Beatriz (Déborah Evelyn), porque estava interessado no patrimônio da moça. Tal atitude obrigou Fernando a se refugiar no exterior para desenvolver sua carreira de cineasta.

Da mesma maneira que outros personagens com perfil semelhante presentes na obra de Gilberto Braga, o presidente do Grupo Vasconcelos pratica ações movidas pela ambição e pela arrogância que acabam por fundar as principais intrigas da novela. Ao ajudar a desgraçar a vida de Ubaldo – que, a despeito da fama de mitômano38, era realmente o verdadeiro autor de Musa do Verão – Lineu também provocou a derrocada moral de Marília (), verdadeira inspiradora da canção que, enquanto Maria Clara enriquecia graças a um sucesso que não lhe pertencia por direito, era obrigada a cantar em inferninhos de Copacabana e até a se prostituir para conseguir sustentar a filha Laura, gerando nesta o desejo de vingança, amplificado pela morte prematura da mãe causada pela frustração e pelo desgosto.

38 Ubaldo tinha essa fama por ter acusado Chico Buarque de ter lhe plagiado a música A Banda.

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Por abusar exageradamente de seu poder, Lineu acaba sendo assassinado, somando à obra de Gilberto Braga mais um whodunit, recurso da literatura policial que se tornou uma marca na obra do autor39. O que particulariza o assassinato de Lineu é que, ao contrário da morte por engano de Odete, o empresário foi punido por tentar manter a farsa para ele lucrativa em torno da verdadeira autoria de Musa do Verão, ou seja, ele foi punido realmente por seu crime. Ao saber que Laura havia conseguido os documentos que comprovavam que Ubaldo realmente havia criado a canção, Lineu usa a máquina da qual dispõe, para conseguir recuperar as provas e tentar negociar com a personagem de Cláudia Abreu. Esta não cede ao acordo proposto e atira no presidente do grupo Vasconcelos40, disposta a seguir com sua vingança.

Tomando como parâmetro o pensamento de Antônio Cândido, segundo o qual, a vingança é um passaporte para o romancista circular livremente pela sociedade, ligando as camadas e desvendando as conexões obscuras (Cândido apud Meyer, 1996, p. 68), pode-se afirmar que, por meio da vingança de Laura, Gilberto Braga mostra o que há por trás do mundo do showbizz, onde nem tudo é glamour. Assim, embora cada passo de Laura sirva à construção de um folhetim, cuja intrincada engenharia plena de reviravoltas prende a atenção e diverte o

39 Gilberto Braga valeu-se do whodunit pela primeira vez na novela Água Viva (1980). O mistério da novela era “Quem matou Miguel Fragonard?”. Esse personagem – interpretado por – embora não fosse maléfico como Odete, representava na novela a figura do grande dono do dinheiro. Médico famoso, ele vivia às turras com o irmão Nelson Fragonard – o menino do Rio interpretado por Reginaldo Faria – que recusava qualquer espécie de controle. Na trama, os irmãos também disputam o amor de Lígia (). Miguel foi morto por Kleber (José Lewgoy) que, no passado, havia sido seu tutor e de Nelson. O motivo do crime foi financeiro, já que Miguel descobriu que Kleber estava envolvido na perda dos bens de Nelson. Assim como Miguel, nem todos os personagens que personificam o poder do dinheiro na obra de Braga são maus, mas isso não garante que escapem de uma morte trágica. Em O Dono do Mundo (1991), o milionário Herculano Maciel (Stênio Garcia) é vítima de um serial killer. O mesmo acontece com o Barão Henrique Sobral (Reginaldo Faria) em Força de Um Desejo (1999). Em ambas as novelas, o mistério sobre a identidade dos assassinos é revelada no final. Os responsáveis pelos crimes eram William (Antônio Calloni) e a Baronesa Bárbara (Denise Del Vechio), respectivamente. Em contrapartida, alguns poderosos malvados são redimidos pelo amor, como, por exemplo, acontece com Chica Newman (Fernanda Montenegro) em Brilhante (1981), Alfredo Fraga Dantas (Hugo Carvana) em (1984) e Raul Pelegrini (Tarcísio Meira) em Pátria Minha (1994). Já Antenor Cavalcanti (Tony Ramos) em Paraíso Tropical (2007) se modifica em razão do amor por Lúcia (Glória Pires), mas é punido com a morte de dois de seus filhos. Um deles – o bastardo Ivan (Bruno Gagliasso) – morre em seus braços logo após o reconhecimento da paternidade. 40 O assassinato de Lineu acontece durante uma festa no Espaço Fama. Eis outra recorrência na obra de Braga já ressaltada na análise de Senhora. O autor utiliza as festas como cenários para acontecimentos que avançam a narrativa. No caso de Celebridade, a morte do empresário remete à associação entre execução e festa que, segundo informação de Marlyse Meyer colhida no livro Vigiar e Punir, de Foucault, recupera um aspecto folhetinesco herdado de um velho tema popular alimentado pelas complaintes ou literatura de colportage francesa (Meyer, 1996).

196 espectador, a vingadora em busca do seu objetivo também deixa entrever o que acontece quando os letreiros luminosos se apagam, já que – não só os flashbacks da infância da vilã, mas também suas ações no presente – são atravessadas por histórias de autorias roubadas, plágios, estrelismos, troca de favores – inclusive sexuais –, tráfico de influências, sabotagens em casas de espetáculos, fofocas, verdadeiros artistas sem oportunidade e pessoas sem talento desfrutando de dinheiro e sucesso.

Laura41 se vale dessa mesma engrenagem que a embruteceu para alcançar os louros da fama, cujo ápice na novela é representado pela conquista do Troféu Celebridade. Isso porque a vilã é premiada pelo projeto de uma coletânea da obra de Pixinguinha, ideia que roubara de Maria Clara. Tal passagem remete novamente ao filme A Malvada, que começa com Eve sendo agraciada com o prêmio da Sociedade Sarah Siddons, a maior honraria conferida à classe teatral. Embora Eve seja talentosa, os prejudicados por ela que estão na plateia sabem do que a atriz foi capaz de fazer para conseguir a estatueta. Por meio da apropriação de mais esse aspecto do filme, Gilberto Braga aponta criticamente que nem sempre os vencedores dos prêmios são os que deveriam ser contemplados com os mesmos. Além disso, o autor mostra a manipulação que há por trás de tais premiações, já que, no início da novela, Lineu Vasconcelos – presidente do grupo que concede o troféu – tenta de todas as maneiras que seu genro e desafeto Fernando Amorim não seja indicado na categoria de cineasta do ano.

Esse lado obscuro da fama assume em Celebridade o papel que o dinheiro representa em Senhora e Vale Tudo no que se refere à variação do tom dramático da trama. Por isso, o mundo dos famosos aparece na novela como o núcleo dos personagens envoltos em conflitos mais sérios. Assim, a estrela Maria Clara Diniz, além de sofrer com a perda de privacidade e as maledicências da imprensa, atrai oportunistas que querem aparecer as suas custas e invejosos como Laura, que não mede esforços para destruí-la.

Entretanto a riqueza – advinda ou não da fama – também aparece na novela como um fator que pode gerar infelicidade. Por isso, entre os sofrimentos

41 A escolha do nome Laura por Gilberto Braga condiz com os objetivos da personagem. Em latim, o nome significa árvore dos louros ou coroa de folhas de louro.

197 da heroína, está o fato de que ela sustenta a mãe Corina42 (Nívea Maria), a irmã invejosa Ana Paula (Ana Beatriz Nogueira), o cunhado sempre envolto em projetos fracassados, Nelito (Taumaturgo Ferreira), além dos sobrinhos, sem contrapartida em termos de afetividade ou mesmo de gratidão. A única exceção é a sobrinha Sandra (Juliana Knust) que se envergonha dos pais explorarem a benevolência da tia43.

Outra personagem por meio da qual Gilberto Braga mostra a riqueza como um fator de desajuste é Beatriz Vasconcelos – a filha de Lineu. A herdeira, cujo perfil combina traços da pobre menina rica carente de afeto como Heleninha com a afetação e o desprezo pelo Brasil característicos de Odete44, atrai amizades falsas como a de Laura que, no intuito de prejudicar Maria Clara, alia-se à milionária, iludindo-a com a possibilidade de salvar seu casamento falido com Fernando, que se apaixona pela produtora musical.

Além disso, Beatriz atormenta-se por, no passado, ter engravidado do primo Renato Mendes (Fábio Assunção) e dito que o filho era de Fernando, para forçar seu casamento com o cineasta. Quando tal segredo é descoberto, ela passa a ser chantageada por vários personagens da novela. Nesse entrecho, a fama volta a aparecer como elemento causador de problemas, pois, em troca de silêncio, Beatriz é obrigada tanto a dar dinheiro e pratarias como o faz para calar Yolanda Mendes – a avó de Renato interpretada por Natália Thimberg – quanto voltar a

42 Celebridade chegou a ser acusada de fazer apologia ao mau-caratismo. Por isso, alguns personagens tiveram seus perfis modificados durante a novela. Corina que, antes era mais interesseira e preferia a filha invejosa, tornou-se amiga e grande companheira de Maria Clara. Outro personagem que teve seu perfil modificado ao longo da trama foi Ubaldo. Ao sair da cadeia, ele tinha um lado mais obscuro e vingativo inspirado no personagem vivido por Robert Mitchum e Robert De Niro nas duas versões cinematográficas de Cabo do Medo (1962/1991). O filme conta a história de um criminoso que jura vingança ao seu advogado, porque este omitiu uma prova que poderia inocentá-lo. Mas a referência acabou ficando apenas nas tatuagens que o autor de Musa do Verão exibia pelo corpo de forma semelhante ao personagem do cinema no qual Gilberto Braga se inspirou para criá-lo. Ainda por meio das tatuagens de Ubaldo, Braga cita O Mensageiro do Diabo (1955), outro clássico do cinema protagonizado por Robert Mitchum. Neste filme, o ator interpreta um criminoso que, assim como Ubaldo, tem a palavra amor tatuada na mão direita e a palavra ódio, na esquerda. 43 Em Água Viva, Gilberto Braga já havia explorado essa mesma situação. Na novela exibida em 1980, Janete (Lucélia Santos) era indignada com o fato de os pais viverem à custa de Irene, a tia solteirona interpretada por Eloísa Mafalda. 44 Tal característica de Beatriz é um dos motivos que a afastam do marido Fernando. Isso porque o personagem é um apaixonado pelo Brasil e esse sentimento aumentou ainda mais ao ser obrigado a viver no exterior, para fugir do boicote de Lineu. O perfil do personagem de Marcos Palmeira aproxima-o do Afonso Roitman, de Vale Tudo, na medida em que ambos possuem traços do romantismo de Gonçalves Dias expressos em Canção do Exílio e enfrentam conflitos familiares por essas convicções românticas.

198 tocar Musa do Verão nas rádios do Grupo Vasconcelos – que passa a presidir após a morte do pai. Esse “pedido” lhe é feito por Ubaldo Quintela, quando este descobre que – após a verdade sobre a autoria da canção ter vindo à tona – a empresária havia proibido a execução da música nas emissoras do grupo.

Como contraponto a esse núcleo rico e famoso, mas infeliz, Gilberto Braga criou os personagens não famosos que vivem no Andaraí. São eles os responsáveis, em Celebridade, pelo comic relief, além de terem a função de dialogar com a trama principal, seja por meio de comentários ou ações. É pelo bairro da zona norte carioca que circulam a sacoleira Eliete (Isabela Garcia), Salvador (Roberto Bonfim), o dono da barbearia e Wanderley, o dono da banca de jornal, parada obrigatória para as manicures Darlene (Déborah Secco) e Jaqueline, ávidas consumidoras de revistas de celebridades e sempre envoltas em planos mirabolantes para alcançar o estrelato. Contrastando com essa obsessão das manicures pela fama, nesse mesmo núcleo, aparece o bombeiro Vladimir (Marcelo Faria) que com elas forma um triângulo amoroso.

Ao contrário das duas manicures que perseguem o sucesso e não o alcançam, a visibilidade chega para Vladimir – sem que ele a busque – em razão de sua beleza e de seus atos heroicos. Entretanto, embora faça alguns comerciais e presenças em festas, o rapaz tem orgulho da profissão que escolheu, incomoda-se em aparecer e quer ser apenas uma pessoa comum. Pode-se dizer então que, por meio do personagem de Marcelo Faria, Gilberto Braga traz para Celebridade a sensibilidade romântica tal qual entendida por Lowy e Sayre, pois, na medida em que a fama com o advento do capitalismo de consumo passou a ser tão divinizada quanto o dinheiro, o comportamento do bombeiro é uma recusa a um aspecto da sociedade burguesa.

Embora o Andaraí reúna personagens mais anedóticos, há exceções como o jornalista Cristiano (Alexandre Borges), que passou a ter problemas com o alcoolismo após a perda de sua esposa – irmã do vilão Renato Mendes. Este arma uma intriga criminosa para tirar do cunhado a tutela do sobrinho Zeca, a fim de abocanhar a herança do garoto. Por meio desse entrecho, Braga resgata em sua obra45 uma temática romântica presente desde o melodrama Coelina, de

45 A criança explorada é outra recorrência na obra de Braga. Em O Dono do Mundo, Karen (Maria Padilha) cuida do sobrinho Paulinho (Jonathan Nogueira) para poder extorquir dinheiro do pai

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Pixerécourt, e que se tornou recorrente no folhetim, sobretudo, nos romances de vítima: crianças herdeiras que se tornam vítimas de ações vis. Além disso, ao apresentar Zeca como uma criança pura, doce e extremamente amorosa com o pai, Braga recupera a visão romântica no que essa, segundo Löwy e Sayre, entendia da infância como uma forma, além do amor, de transformar a própria vida mesmo estando no interior da sociedade burguesa, pois para os românticos, as crianças trazem consigo valores primitivos da humanidade que se perderam com a alienação das relações humanas engendrada pelo capitalismo.

Além de Zeca, outro personagem de Celebridade por meio do qual Gilberto Braga dá vazão à sensibilidade romântica é Hugo (Henry Castelly), um músico anônimo que tem um estilo de vida alternativo com quem Maria Clara se envolve num momento da trama que reproduz a mesma situação de Vale Tudo, na qual o amor-sacrifício mistura-se ao amor homem-mulher, quando este acarreta a infelicidade de uma terceira pessoa. Isso porque a entrada de Hugo na vida da produtora acontece quando ela se afasta de Fernando – seu grande amor na novela – porque o cineasta tem de adiar seu divórcio de Beatriz em virtude de um acidente automobilístico do qual seu filho Inácio escapa por um triz, mas sofre sérias fraturas, precisando, assim, do apoio do pai.

Clara, que está acostumada a lidar com a afetação do mundo das celebridades, encanta-se, desde o primeiro momento, por Hugo – uma pessoa de natureza pura e ingênua a quem Laura chama ironicamente de hippie. De fato, o comportamento do personagem de Henry Castelly resgata traços do movimento cultural, no qual tanto Campbell, quanto Löwy & Sayre identificam a permanência da visão romântica de mundo. Além disso, Hugo personifica a sensibilidade romântica no que esta faz do amor um antídoto contra qualquer estratégia racional, já que ele se dedica à personagem de Malu Mader sem interesse em seu dinheiro ou em sua fama, ou seja, não exige nada em troca, nem mesmo o amor da produtora. E esse sentimento é estendido à Nina, de quem Hugo chega a assumir a paternidade, mesmo sabendo que ela é filha de Clara e Fernando.

milionário do garoto. Já em Paraíso Tropical, Taís (Alessandra Negrini) tenta ficar com a guarda do filho de seu avô, para poder gastar a herança deixada para o menino.

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Diferentemente de Senhora e Vale Tudo, nas quais o dinheiro aparece em primeiro plano no embate moral entre arrivistas e românticos, em Celebridade, a riqueza atravessa as intrigas da história amalgamada à fama como elemento de dissolução dos valores. Tal aspecto é determinante para a divisão maniqueísta da trama que opõe pedagogicamente os que querem a fama a qualquer preço e os que são famosos e, no entanto, além de encararem o sucesso como algo advindo do trabalho, colocam-no em segundo plano em relação ao amor.

Ainda por meio da demarcação dos campos do bem e do mal, Gilberto Braga procura discernir no jornalismo de celebridades os profissionais sérios dos não éticos. Nessa diferenciação, o autor mostra mais uma vez a força corruptora do dinheiro, já que, entre os jornalistas sem escrúpulos, a verba é ilimitada, para obter um flagrante de um famoso numa situação constrangedora ou inusitada. Na novela, o grande exemplo de mau-caratismo na profissão é Renato Mendes – o editor da revista Fama, publicação que Braga, reproduzindo criticamente a realidade na ficção, coloca como sendo a de maior vendagem do Grupo Vasconcelos, apesar de todos os escândalos que ela traz.

Assim como Maria Clara e Laura, Renato foi outro personagem da novela criado a partir do filme A Malvada. Seu papel em Celebridade corresponde ao do crítico de teatro Addison DeWitt, interpretado por George Sanders no cinema. Em comum, ambos têm a crítica mordaz capaz de destruir uma peça ou show, o gosto pelo sexo com belas aspirantes à fama sem qualquer conteúdo e também o fato de se envolverem com as vilãs sobre as quais sabem tudo, mantendo-as, desta forma, sob controle. Entretanto, além de ser muito menos ético que DeWitt em sua profissão e viver acima de suas posses, Renato é atravessado por características dos vilões folhetinescos.

Um exemplo disso é que, embora seja vaidoso e aprecie a visibilidade midiática, é por meio dessa personagem que o tema romântico do dinheiro como dissolução dos valores encontra sua expressão maior na trama. Renato usa dos expedientes mais baixos para alcançar o poder e a riqueza, que vão desde a intriga para ficar com a guarda do sobrinho até cogitar matar Beatriz e Inácio – quando descobre que este é seu filho – a fim de assumir a presidência do grupo Vasconcelos.

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Outro componente dos personagens dos folhetins românticos presente em Renato é o sentimento de vingança. Após ser traído por Laura, que lhe conquistou de verdade ao se fazer de virgem e recatada, o jornalista colhe todas as informações possíveis para ter a vilã sob seu controle e a serviço de suas ambições. Renato cria uma armadilha para que Laura, mesmo sendo rica, perca a liquidez, já que, sem poder econômico de fato, ela se torna um alvo muito mais fácil. Então, munido de uma fita na qual a vilã negocia com um traficante as drogas que ela usa para incriminar Maria Clara, Renato obriga Laura a se casar com ele e controla todos os seus passos. Na rua, coloca seguranças no encalço da esposa durante o tempo todo. Em casa, com dinheiro desviado da Vasconcelos, coloca câmeras em todos os cantos, reproduzindo um Big Brother particular no qual Laura é a estrela.

Nesse entrecho, Gilberto Braga dá uma amostra da permeabilidade da telenovela aos temas contemporâneos, uma vez que ele extrai das tecnologias mais recentes novas possibilidades criativas para atualizar o tema romântico da vingança. Desta forma, não só o dinheiro é um elemento importante no plano de Renato, mas também as câmeras. Estas, assim usadas como recurso na intriga, acabam se revelando objetos de desejo tão ambíguos quanto a riqueza ou a fama para as quais são instrumentos, já que podem tanto trazer a visibilidade ansiada, quanto possibilitar a vigilância e o controle.

Embora em Celebridade Gilberto Braga aproxime-se mais do folhetim de Xavier de Montepin, no qual a demarcação maniqueísta apresenta-se mais rígida, ainda assim, em razão da dialética folhetinesca também presente nos romances do autor europeu, por vezes na trama, os papéis de vítima e algoz se invertem, já que os bons são capazes de ações rocambolescas e os maus sofrem por amor. Maria Clara, por exemplo, temendo que Renato Mendes achincalhe um show que ela produziu por não ter sido colocado numa boa mesa, consegue a autorização de um homônimo do jornalista para publicar um anúncio sem foto nos principais jornais, dizendo que Renato Mendes havia adorado o show46. Em outro momento da novela, o jornalista é vítima de outra armadilha da heroína que, disposta a

46 Esse entrecho foi baseado num fato real, ocorrido na Broadway com o produtor teatral americano David Merrick. Para promover o musical Subways are for sleeping (1961), ele encontrou sete nova-iorquinos com os mesmos nomes dos sete maiores críticos teatrais da cidade, convidou-os a assistir ao espetáculo e conseguiu autorização para usar seus nomes em um anúncio com aspas elogiosas ao show (Braga, 2008).

202 recuperar a fita que prova sua inocência no caso das drogas, finge que vai se entregar a Renato, mas assim que consegue o tape que lhe interessa, ela se afasta. Por fim, a produtora vinga-se de Laura, dando uma surra47 na vilã justamente no dia em que esta conquista o Troféu Celebridade.

Já a personagem de Cláudia Abreu, apesar de maquiavélica, sofre ao ser impedida por Renato de se encontrar com Marcos (Márcio Garcia). A distância forçada do comparsa leva-a a perceber que seu sentimento pelo cúmplice é um grande amor e não simplesmente uma atração física. Assim, as cenas do casal que, antes da vingança de Renato, eram caracterizadas pela atmosfera das paixões marginais, transformam-se em encontros mais afetivos com a aura dos amores infelizes do melodrama romântico, já que ambos têm que transpor inúmeros obstáculos para ficarem juntos.

Entre esses polos do bem e do mal, há personagens voláteis como a manicure Darlene (Déborah Secco) que, em sua busca insana pela fama, é capaz tanto de atitudes engraçadas como retirar a parte de cima do biquíni em um evento para atrair os fotógrafos, quanto, ao saber do segredo de Beatriz, chantagear a milionária, obrigando-a a apoiá-la em seu projeto de ascensão midiática. Além disso, Darlene assalta um banco de sêmen, a fim de engravidar de Caio Mendes (Theo Becker) – famoso atleta da natação e irmão de Renato –, mas a farsa não funciona, pois o material que ela roubara era de um doador negro e Caio é loiro. Assim, ela acaba dando à luz a dois bebês negros. Ao final da novela, a manicure acaba se modificando em função do amor pelos filhos.

Mas, antes de personificar o protótipo da mãe melodramática no que se refere ao amor-sacrifício, recusando um teste para um papel numa novela de Sílvio de Abreu, a fim de cuidar dos filhos que ficam doentes, Darlene é a personagem da trama que mais se vale do mecanismo do favor. Em troca de projeção, ela coloca a carreira do namorado bombeiro em risco, fazendo-o posar sem saber para a capa de uma revista gay. Depois, para ser capa na revista Fama, entra em acordo com Lineu – dono da publicação – que, por achá-la interesseira,

47 A cena em que Laura apanha de Maria Clara no banheiro do Espaço Fama, além de ter sido o maior pico de audiência da novela, é outro exemplo de autopilhagem narrativa em Celebridade, já que Gilberto Braga havia feito o mesmo em Água Viva, novela na qual Lígia (Betty Faria) dá uma surra em Selma (Tamara Taxman) no banheiro do Canecão, porque esta havia lhe tirado o marido Heitor (Carlos Eduardo Dolabella).

203 quer vê-la afastada de seu neto Inácio. E, por fim, com a promessa de um programa de TV, Darlene entrega a Laura as provas da verdadeira autoria de Musa do Verão, mesmo sabendo que isso prejudicaria seu pai, Ademar – um dos envolvidos no roubo da documentação. Em outras palavras, por meio de tais ações da personagem de Débora Secco, Gilberto Braga atualiza a prática do favor, substituindo o dinheiro pela fama como moeda de troca.

Além desse aspecto do favor, por meio da personagem Darlene, Braga volta a destacar em sua obra a figura da leitora feminina. Em Senhora, o autor fez isso por meio das personagens Adelaide, Mariquinhas e Nicota. As duas primeiras eram leitoras de romances românticos e, na adaptação do livro de Alencar, Braga resgata não só o sentimento de insatisfação com o estado de coisas que esse tipo de literatura despertava nas jovens, mas também a postura de desafio às convenções sociais que essas mesmas jovens assumiam com base na ficção romântica, gerando, assim, o pensamento conservador que responsabilizava tais leituras pelo rompimento com os laços tradicionais.

Já Nicota é uma leitora de revistas femininas, o que a faz sonhar com uma vida requintada como a que é retratada nos exemplares que consome, ou seja, ajustada ao que é convencional em sociedade. Em Vale Tudo, esse hábito da irmã mais nova de Seixas reaparece atualizado em Fátima, que lê publicações dirigidas à classe A como Stampa e Tomorrow, nas quais o conteúdo romanesco apresenta um caráter reificado, ou seja, diluído num conjunto fundamentalmente apologético aos valores dominantes com a função de evocar o potencial de sonho de um produto, levando ao consumo. Mas, enquanto Nicota restringia-se ao escapismo, Fátima é levada a um movimento cíclico no qual se alternam devaneio e desilusão.

Assim como a filha de Raquel, as aspirantes à fama Darlene e Jaqueline também embarcam no mesmo ciclo. Entretanto, de acordo com a premissa da novela, Braga atualiza o material de sonho que as motiva, transformando-as em leitoras da revista Fama, um duplo fictício de publicações no estilo Caras, Quem, Flash, Isto é Gente etc, ou seja, revistas que experimentaram um boom no jornalismo brasileiro na primeira década do século XXI e nas quais o caudal romanesco serve como instrumento para retratar o mundo das celebridades numa atmosfera de sonho com direito a ilhas, castelos, lugares exóticos, festas suntuosas

204 e glamour. Por isso, de modo diferente de Fátima, Darlene e Jaqueline até podem desejar uma vida de riqueza, mas esta não tem o menor sentido se não vier atrelada ao sucesso midiático, que é vendido em cada exemplar como uma garantia de felicidade.

A leitora feminina é resgatada também em Celebridade por meio de Laura. Da mesma forma que Eve Harrington procurava se informar sobre seu alvo através da revista Who’s Who? – uma publicação que dizia quem era quem no showbizz americano – a personagem de Cláudia Abreu colecionava tudo que era publicado sobre Maria Clara em revistas nas quais a produtora surge envolta numa aura de glamour, projetando um estilo de ser. Esse material foi fundamental para que Laura construísse um projeto de vida fantasioso e, assim, o objetivo inicial de retomar um lugar que era por direito de sua mãe, passou a ser também o de ocupar o lugar de Maria Clara Diniz graças a um misto de admiração e inveja alimentado pela magia midiática.

Por meio dessas leitoras presentes em Senhora, Vale Tudo e Celebridade, Gilberto Braga faz uma referência à Madame Bovary, já que a protagonista do romance de Gustave Flaubert era também uma ávida consumidora de leituras romanescas, através das quais estabelecia os parâmetros para sua própria vida. A ficção romântica levava Emma Bovary a um estado mental no qual a sensibilidade e a imaginação predominavam sobre a razão, o que acabava por gerar na personagem uma insatisfação romanesca com a realidade, que assumia formas como o individualismo, a revolta, a fuga, a melancolia ou a fantasia. Ao ressaltar cada uma dessas manifestações nas diferentes leitoras que criou, Braga pontua os registros que o bovarismo – entendido como identificação entre o romanesco e o real (Morin, 1989) – pode assumir não só em suas personagens, mas também nas espectadoras de telenovelas, uma vez que estas atualizam a relação estabelecida entre a mulher e a literatura romântica desde a Era da Sensibilidade, inclusive sob o ponto de vista da crítica conservadora que esse tipo de leitura recebia.

Preservando-se as diferenças de contexto histórico, já que os veículos de comunicação não possuíam os mesmos recursos tecnológicos que, na contemporaneidade, possibilitam-lhes um alcance global e também, levando-se em conta que a palavra celebridade não tinha a mesma conotação a qual lhe é atribuída na sociedade de consumo, pode-se dizer que – entre os personagens que

205 compõem a vasta galeria de alpinistas sociais da obra de Gilberto Braga – a busca por uma vida de luxos sempre esteve acompanhada por um anseio de notoriedade. Assim, em Senhora, Seixas, além de querer se garantir economicamente através de um casamento de conveniência, desejava fazer uma carreira política e tinha em seu trabalho como jornalista uma maneira de projetar seu nome na metrópole.

Já em Dona Xepa48, a arrivista Glorita (Ana Lúcia Torre) é obcecada pela ideia de aparecer nas colunas sociais. Para isso, tenta se aproximar a todo custo da socialite Isabel Becker (Ida Gomes), adotando os marcadores de status da milionária e se adaptando às modificações dos mesmos. Em Vale Tudo, Fátima – antes de querer se casar com um homem rico – queria ser uma modelo famosa e, Raquel, embora não fosse um alpinista social, tem na visibilidade midiática um dos elementos mágicos que impulsionam a sua ascensão como empresária, pois as reportagens feitas sobre a heroína atraem clientes para o seu restaurante, entre eles Laudelino, um milionário investidor.

Na mesma novela, a questão da visibilidade midiática aparece ainda por meio da personagem Aldeíde que – após ficar viúva de Laudelino – investe seu dinheiro em campanhas publicitárias com o intuito de ficar famosa. Por meio dessa personagem, aparece ainda de forma embrionária uma questão que, em Celebridade, assume um caráter central: o sucesso midiático como um fator de distinção social.

Por isso, de modo diferente ao que acontecia em Senhora e Vale Tudo, novelas nas quais a topografia do enredo era definida pela condição financeira, em Celebridade, embora as tradicionais marcações de riqueza e pobreza permaneçam, a divisão que impera é determinada pelo sucesso. Os ricos vivem em flats ou mansões da zona sul, são editores de revistas de fofoca, produtores de eventos, modelos, atletas, cineastas, dondocas e presidentes de grupos empresariais. Nos shows, ficam na área vip, mas, ainda assim, alguns deles – como o jornalista Renato Mendes – brigam pela melhor mesa, pelo melhor lugar. Já alguns dos personagens menos abastados do Andaraí, que trabalham em atividades nada relacionadas ao glamour midiático, em vez do poder econômico, sonham com a

48 Dona Xepa também trouxe Nívea Maria no papel de Rosália. Essa personagem que humilhava a mãe feirante foi a primeira grande arrivista contemporânea de Gilberto Braga. Assim como várias vilãs marcantes na galeria do autor, Rosália queria dinheiro e sucesso.

206 fama que poderá lhes abrir as portas de todos os eventos, de preferência na área vip.

Não basta mais ser rico, ter bom gosto e estilo, o topo agora também significa estar na mira dos paparazzi e sob a luz dos holofotes49. Em um mundo que se dá como imagem, um mundo onde ser filmado e tornar-se um produto a ser consumido é uma possibilidade concreta, a aristocracia do dinheiro foi substituída pela aristocracia da fama. Assim, se outrora Aurélia – após enriquecer – tornou-se a nova estrela que brilhava nos salões da sociedade fluminense, a personagem de Malu Mader – na era do culto à celebridade – reina no grande salão midiático, no qual sua imagem impera em outdoors, capas de revista, shows, eventos e programas de TV, alimentando os sonhos do capitalismo de consumo como, por exemplo, ter uma festa só para si no Espaço Fama – templo ficcional de celebridades as quais Edgard Morin denominou de olimpianos, vedetes da cultura de massa, astros de cinema e TV, os campeões, príncipes, reis, playboys e artistas célebres e também a falsa musa Maria Clara Diniz, que, por meio de sua dupla natureza, divina e humana, efetua a circulação permanente entre o mundo da projeção e o mundo da identificação (idem), lugar da experiência maravilhosa onde as Bovarys de Braga, algumas até mesmo sem dinheiro, querem estar.

49 Corrobora para esse argumento o fato de que, assim como a personagem Aldeíde, em meio aos milionários da vida real como Luciano Huck, Luís Calainho, Roberto Justus, João Dória Jr., Luciano Szafir e Lucília Diniz, alguns deles, apesar de não necessitarem da exposição midiática como forma de ganhar dinheiro ou de ter acesso a eventos importantes, chegam a comprar horários nas emissoras para ter o seu programa de TV.