Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia ISSN: 1415-0549 [email protected] Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Brasil

de Souza Rossini, Miriam O cinema da busca: discursos sobre identidades culturais no cinema brasileiro dos anos 90 Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, núm. 27, agosto, 2005, pp. 96-104 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre, Brasil

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O cinema da busca: discursos sobre identidades culturais no cinema brasileiro 1 dos anos 90 OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO, atualmente, são importantes mediadores de representações RESUMO que perpassam o social, e que, com isso, A proposta deste artigo é analisar o cinema como mediador ajudam a produzir discursos em torno da de representações em torno das identidades culturais de um identidade cultural de um grupo. Dentro grupo. A partir de aportes teóricos de autores como Stuart destes meios, os audiovisuais são os mais Hall e Manuel Castells se procurará fazer um estudo de caso comumente consumidos, daí a necessidade centrado em dois filmes brasileiros, produzidos durante os de refletir sobre os discursos identitários anos 90: Terra Estrangeira, 1995, de Walter Salles e Daniela que perpassam estes meios. A representa- Thomas, e Central do Brasil, 1997, de Walter Salles, que desde ção, aqui, vai ser compreendida a partir de os títulos apontam para uma discussão em torno das ques- Roger Chartier (1990), quando diz que ela tões de representações das identidades culturais brasileira. articula o mundo social com as “práticas que visam a fazer reconhecer uma identida- ABSTRACT de social, exibir uma maneira própria de Following Stuart Hall´s and Manuel Castells´ work, this estar no mundo, significar simbolicamente article examines Terra Estrangeira (1995) and Central do um estatuto e uma posição” (1990: 23). Já a Brasil (1997) as representations of cultural identities. identidade cultural será tensionada a partir de Stuart Hall (2000) e de Manuel Castells PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) (1999). Para Castells, identidade é “o pro- - Cinema brasileiro (Brazilian Cinema) cesso de construção de significado com - Representações (representations) base em um atributo cultural, ou ainda em - Identidade (identity) um conjunto de atributos culturais inter-re- lacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) so- bre as outras fontes de significado” (1999: 22). Ao conceito de identidade estão associ- adas as representações verbais e não-ver- bais através das quais nos damos a conhe- cer. Já Hall fala em identidade como algo em constante mutação, pois, como ele ex- plica, conforme as necessidades internas do grupo se transformam (e, poderíamos tam- bém dizer, se enfrentam), o discurso em torno da identidade também sofre altera- ções, atualizações, transformações, ou res- gates. Daí Hall preferir falar em identifica- ção e não em identidade. Este processo de Miriam de Souza Rossini suturação, que articula o grupo, opera, se- gundo ele, por meio da différance, que “en-

96 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral volve um trabalho discursivo, o fechamen- a favela, com isso flagrando a grande trans- to e a demarcação de fronteiras simbólicas, formação que se operava no Brasil após os a produção de efeitos de fronteiras” (2000: anos 20. 106). Segundo o próprio Mauro, O cinema, enquanto produtor de dis- cursos que ajudam a dar visibilidade às re- o cinema brasileiro entre nós terá que presentações sociais em torno das identida- nascer do meio brasileiro, com todos des culturais, nos permite compreender os seus defeitos, qualidades e ridícu- tanto os enfrentamentos quanto as perma- los, com a marcha precária e contin- nências e as mudanças presentes no campo gente de todas as indústrias que flo- social. Sendo o cinema um meio que articu- rescem traduzindo as necessidades re- la discursos verbais e imagéticos, vamos ais do ambiente em que se formam trabalhar com estes dois níveis discursivos, (Mauro apud Souza, 1987: 114) . trazendo para este artigo aportes da análise fílmica, em especial com base em Jacques Para ele, nosso cinema devia ser uma Aumont (1995). Para este autor, o filme representação fiel do que somos e deseja- deve ser pensado como representação visu- mos ser. No entanto, o Brasil que Mauro al e sonora, que produz seus sentidos a queria mostrar não agradava nem ao públi- partir do cruzamento de vários elementos co e nem à crítica, pois, ao apontar a contra- como: o próprio enquadramento; a relação dição do processo de mudança, entrava em entre o campo e o fora de campo, compo- dissonância com a imagem de Brasil novo e nentes do espaço fílmico; a articulação in- moderno que se construía. Esse foi um dos terna das cenas, e destas com o filme como motivos pelos quais seus filmes ficaram um todo, bem como com o trabalho sonoro praticamente esquecidos durante muito do filme, que pode, inclusive, contrapor-se tempo. Foram necessárias quase quatro dé- ao sentido do que é visto ou verbalizado. cadas para que o projeto modernizante, ini- Compreender o filme, portanto, como um ciado durante o governo de Getúlio Vargas produto social que opera seus sentidos a e intensificado nos anos 50, deixasse entre- partir de características próprias da técnica ver seus custos, bem como a distância entre cinematográfica é importante para a análise o discurso oficial e a realidade, o que foi que se segue. marcado em vários debates da época, No cinema brasileiro, a discussão em como, por exemplo, aqueles mantidos pelo torno da representação da identidade cul- ISEB e pelo CPC. tural é antiga, pois o nosso é o cinema da Também no plano cinematográfico, busca: do público, das verbas, do reconhe- buscavam-se alternativas a projetos de pro- cimento, de uma linguagem própria, de dutoras como a Atlântida e a Vera Cruz, uma identificação com o país. O mineiro considerados falidos e/ou alienados, den- Humberto Mauro é considerado o pai-fun- tro daqueles debates citados. Um filme dador do cinema nacional e o inaugurador como Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos oficial deste debate em torno da identidade Santos, com sua influência neo-realista, traz cultural brasileira. Seus primeiros filmes, algo de novo ao cenário cinematográfico que retratavam o cotidiano dos brasileiros, brasileiro, pois aponta, justamente, para a já deixavam entrever o confronto entre o contradição de um processo de moderniza- país rico e o país pobre; entre o país indus- ção que não abarca a todos. É dentro deste trializado e urbano e o país agrário e rural; cenário que os jovens cineastas dos anos entre a busca pelo moderno e a manuten- 50/60, também marcados pelos debates ção do tradicional. Os personagens de isebiano e do CPC, resgataram Humberto Mauro transitavam por espaços pouco uti- Mauro, tornando-o um marco para o início lizados até então, como as fábricas, a rua e do cinema nacional, realmente preocupado

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral 97 com questões de representação do nacional ra. Daí o interesse pela questão da identi- na tela (Ramos, 1983). Os cineastas dos dade e a retomada de Humberto Mauro. anos 60/70 buscavam novos olhares que Este cinema de ação e de renovação estética indicassem uma outra possibilidade de in- deixou várias marcas no cinema brasileiro, terpretação da realidade brasileira, e, nova- das quais gostaria de destacar duas, impor- mente, o confronto entre os binômios que tantes para este trabalho. Primeiro, embora se destacam nos filmes de Mauro voltou à os cinema-novistas buscassem representar tona, pois se apresentavam como a melhor uma identidade brasileira, os discursos que possibilidade de se entender (e de se repre- eles produziram em torno dessa identida- sentar) o Brasil. , em seu li- de foram vários e conflitantes. Segundo, a vro Revisão crítica do cinema brasileiro (2002), imponência retórica e estética destes filmes afirma que Humberto Mauro é o elo inicial foi muito grande, projetando o cinema bra- do realismo crítico no cinema brasileiro. sileiro para vários outros países, e deixan- No entanto, embora os cinema-novistas do para os cineastas posteriores uma espé- buscassem produzir uma visão revolucio- cie de trilha a ser seguida, ou contestada, nária, desalienante sobre o Brasil, seus fil- mas nunca ignorada. mes acabaram sendo marcados pela busca Discursos sobre a pobreza e a impos- utópica de um mito fundador da nação, em sibilidade de se construir uma nação mo- razão da própria discussão teórica que derna passaram a fazer parte do discurso abraçavam, e que opunha ricos e pobres; do cinema nacional, e desde então eles não dominados e dominantes; invasores e inva- saíram mais de moda. A década de 90, po- didos; interno e externo; nacional e cosmo- rém, irá retomar esse discurso de uma for- polita. ma mais insistente, devido a uma nova Segundo Ruy Gardnier, conjuntura interna e externa, e que de uma certa forma ajuda a repor os debates dos o tem uma relação de anos 50/60. Em 1990, o presidente Fernan- dupla opressão com o mito fundador: do Collor de Mello fechou a Embrafilme, de uma parte ele precisa tentar cassar levando a classe cinematográfica brasileira o mito (herança do populismo), e de a uma crise, pois sem apoio governamental outra ele precisa se comportar como a atividade não conseguia se sustentar. As- criador de imaginário, o que resvala sim, os anos 90 foram palco de mais uma na mitificação. E esses mitos são qua- crise para o cinema brasileiro: a produção se sempre os mesmos: fazer do povo caiu praticamente a zero; o público perdeu o elemento dinâmico do sistema, mos- o interesse por filmes em geral mal-acaba- trando a passagem da ignorância à to- dos; não havia financiadores interessados mada de consciência (populismo de em apoiar esta empreitada, que raramente esquerda) e recorrer às imagens de dava sequer retorno de marketing. No en- um Brasil profundo, representado pe- tanto não se pode esquecer que aquela los segmentos mais pobres e desas- nova crise do cinema brasileiro refletia, sistidos do país - subúrbios, favelas, também, a crise do país diante dos desafios campos - e que por isso encarnariam de um presente quase sempre incerto; de uma essência brasileira (essencia- mudanças estruturais causadas pelo avan- lismo) (2001: 21). ço de projetos neoliberais e globalizantes da economia, e que deixaram marcas no so- cial e na cultura. Com isso, voltaram à tona A década de 60 foi um período explo- as disputas e discussões que pretendem sivo, contagiante, e aquele cinema pedagó- demarcar identidades e alteridades, tanto gico via-se como mais um instrumento em no nível interno quanto externo, fugindo favor de uma transformação social brasilei- daquilo que se passou a chamar de homo-

98 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral geneização global das identidades em fa- questão da religião, seja por movimentos vor do apagamento das diferenças locais. messiânicos ou não, e pela busca arquetípi- Dentro deste cenário, tornou-se importante ca do pai ou da figura fundadora. Como outra vez repensar o Brasil que se construí- mediador dos discursos do presente, os ci- ra nas últimas décadas, e a partir daí enten- neastas dos anos 90 foram buscar elemen- der a verdadeira face do país, como já se ha- tos, estéticos ou de conteúdo, nos filmes viam proposto outros cineastas em outras dos anos 60. No entanto o que se produz décadas. Aliando-se as já históricas dificul- não é um novo cinema novo, mas a recolo- dades estruturais do país ao novo contexto cação de determinadas construções discur- conjuntural, que se aprofunda nos anos 90 sivas que são usadas para se falar do Bra- — a globalização econômica que facilita o sil, para re(a)presentá-lo. Mesmo que a con- deslocamento de produtos culturais com juntura seja nova, e, portanto, os discursos características cada vez mais mundializa- sobre esta identidade cultural precisem ser das, deslocalizadas, além de discursos que adaptados aos novos tempos, os elementos apregoam uma possível homogeneização de constância que são resgatados ajudam das identidades culturais (Ortiz, 1997) —, é justamente a suturar o processo interno, possível se entender melhor o retorno da como afirma Hall, ao mesmo tempo em discussão sobre identidade na década pas- que permitem a identificação entre passado sada. e presente, dando um certo sentido de de- Talvez, em termos de cinema, o que senvolvimento histórico e de pertencimen- trouxe a questão da identidade outra vez to social. para o primeiro plano das discussões esteja Dentre os filmes que retomam a dis- na fala angustiada de um cineasta como cussão sobre a identidade cultural, dois de- Guilherme de Almeida Prado, publicada les chamam em especial a atenção, pois no Dossiê: Cinema Brasileiro, organizado desde os títulos indicam a mudança de po- pela Revista da USP: “Fazer cinema sem di- sicionamento do olhar do(s) realizador(es) nheiro é possível, o que é bem mais difícil sobre a questão, saindo de uma posição em é fazer cinema sem um país. Já não temos consonância com os discursos sobre globa- mais um país claro e definível, não sabe- lização que marcaram o início da década, mos mais o que somos, qual a nossa ‘cara’” até um realinhamento com o olhar interno (1993: 26). sobre a identidade nacional. São eles, Terra No entanto, mesmo que esta cara este- Estrangeira (1995), de Walter Salles e Danie- ja conscientemente indefinível para o cine- la Thomas, e Central do Brasil (1997) dirigido asta, ela continua a ser apresentada/repre- apenas por Salles. sentada nos filmes brasileiros, desde Hum- Terra Estrangeira (1995) fala de perso- berto Mauro, com uma certa marca de re- nagens que vão para outro país, onde são gularidade. Ou seja, em termos de Brasil, estrangeiros, mas fala também do senti- não são quaisquer discursos que vêm à mento de ser estrangeiro no próprio país. tona, como percebe Rui Gardnier. Muitos Central do Brasil (1997), por sua vez, vai ao dos discursos sobre identidade nacional, âmago do país em busca de um pai arque- que retornam com força nos anos 90, ainda típico e nunca encontrado. Ou seja, em am- possuem uma forte relação com aqueles bos o que se marca é a falta, é a incomple- produzidos nos anos 60, que, conforme tude de um processo que se quer tornar apontamos, já possuíam uma ligação, mes- claro, mas que se percebe como indefinível, mo tênue, com os discursos produzidos insolúvel. O país que se busca nunca está por Humberto Mauro desde os anos 20 e onde se pensa que está; ele é um e, ao mes- 30. A discussão outra vez se dá contrapon- mo tempo, outro; está e não está ao mesmo do-se o Brasil urbano e o rural; o moderno tempo. Daí esta procura que se torna inces- e o arcaico, tudo isso perpassado pela sante, e que é uma das marcas do cinema

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral 99 brasileiro em geral. pós-modernidade, e, tão logo chega, Paco É interessante observar que o mais an- já assume o lugar de outro. Com a morte tigo deles é Terra Estrangeira, feito num mo- de um pequeno traficante, Miguel, Paco li- mento em que os discursos pró-globaliza- teralmente fica no lugar do morto: de Mi- ção imperavam como saída para o futuro guel ele herda a namorada Alex e suas com- da humanidade. O filme, feito neste mo- plicações com o submundo das drogas e mento, surge como uma nota dissonante, do tráfico de pedras preciosas. Ao aceitar a em preto-e-branco, enchendo de dúvidas e vida do outro, já que não tem mais vida desesperanças este futuro promissor. A própria, ele aceita também seu destino, a imagem do brasão da República Federativa morte. O símbolo da vida de Paco é o na- do Brasil, sobre a qual se sobrepõe o título vio encalhado numa praia portuguesa. do filme, indica ao mesmo tempo o lugar Apesar de ter ido tão longe, ele não irá a de onde se fala, mas também o sentimento lugar algum, pois o lá e o aqui são os mes- com o qual se fala. O país é o nosso, mas mos lugares, recobertos pelos significados ele realmente nos pertence? Que traços mundializados dos não-lugares pós-mo- marcam esta identidade cultural brasileira? dernos. E assim, ao contrário da corte portuguesa Os sentimentos expressos pela perso- que vem para o Brasil, como no filme de nagem Alex (quanto mais o tempo passa , Carlota Joaquina (1994), em mais ela se sente estrangeira) igualmente Terra Estrangeira é o brasileiro que vai a expressam essa sensação de não-pertenci- Portugal, a terra fundadora da ex-colônia, mento, de uma identidade construída atra- em busca de algo que ele não acha mais em vés da negação dos laços de localidade, ou seu país, pois seus laços de pertencimento pela impossibilidade de se refazer tais la- foram desfeitos neste mundo de fronteiras ços. Por não-pertencer a lugar nenhum é teoricamente afrouxadas. O personagem que ela pode vender seu passaporte para o Paco não tem pai, e a mãe morreu; também submundo do tráfico, já que qualquer um não tem amigos ou parentes. Sua solidão é pode ser brasileiro. Não há traços distinti- a solidão do homem moderno, mais e mais vos ou definitivos; tudo está em constante isolado em seu pequeno mundo estrangei- mutação. A identidade, tal qual se passou a ro, sentimento este que se aprofundou nas compreender, é processo, é identificação últimas duas décadas do século XX com com papéis diferenciados para cada mo- rotinas de vida cada vez mais atomizadas. mento ou situação. Não há nela nada de Sozinho numa cidade escura e assustadora, determinante ou de definitivo. Paco se entrega à proteção do traficante Assim, pode-se compreender a terra Igor e com isso, mesmo sem saber, ingressa estrangeira de que fala o título do filme na marginalidade (ou será que ratifica a po- como sendo: a) o solo pátrio, o Brasil, já sição de marginalidade em que já vivia?). que é sobre o brasão do país que aparece Os primeiros cortes entre os dois constro- este título e nenhum dos personagens da em uma aproximação grande entre eles, narrativa se identifica totalmente com o quase amorosa, em que Igor seduz Paco país; b) Portugal, para onde viaja Paco, e para uma nova vida. Igor, o traficante apai- onde já vivem outros estrangeiros (brasilei- xonado pelos objetos e pelas histórias do ros, africanos); ou c) o mundo como um passado, representa para Paco o elo entre a todo, o mundo globalizado sem fronteiras, memória e a mudança. E quando o jovem onde as marcas dos produtos mundializa- viaja com o casaco do seu bem feitor, é uma dos dão um certo ar de familiaridade, mas nova pele que ele ganha, uma nova identi- que no fundo é vivido como se estivesse dade. esvaziado de significados culturais locais. No entanto, esta nova pele é mutante, A idéia (ou sensação) do afrouxamento das assim como muitas são as identidades na culturas locais deixa tudo cinza, ou branco

100 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral e preto como é a estética do filme. ratura, de tal modo que, pode-se dizer, Contrapondo-se a esta idéia de uma é um elemento fundamental na constru- identidade total e vazia ao mesmo tempo, ção da memória nacional (2002: 106). está o filme seguinte de Walter Salles, Cen- tral do Brasil, feito poucos anos depois, Para compreender melhor a importân- quando os arautos da idéia de globalização cia sobre a escolha do espaço para onde se começavam a ceder espaços para enfrenta- volta, podemos citar ainda Maria Tereza mentos, tanto físicos quanto discursivos, Luchiari, quando explica que em favor das culturas locais, do resgate das identidades regionalizadas, da memória em cada época, o processo social im- coletiva.2 prime materialidade ao tempo, pro- Para Oricchio, Terra Estrangeira havia duzindo formas/paisagens. As paisa- surgido gens construídas e valorizadas da so- ciedade revelam sua estrutura social e num momento de rescaldo, quando o conformam lugares, regiões e territóri- país procura[va] exorcizar seu baixo os. A paisagem é materialidade, mas é astral desse início de década e tenta- ela que permite à sociedade a concre- [va] refazer sua auto-estima. No con- tude de suas representações simbóli- texto da filmografia de Salles, deve cas (2001: 15-16). ser considerado como o momento do luto, muito doloroso, porém necessá- Daí que é para o Nordeste, já ratifica- rio para a reconciliação que virá em do imaginária e cinematograficamente seguida com Central do Brasil (2003: como Brasil, desde o Cinema Novo, que 71). vai a personagem Dora, numa viagem em busca de si mesma. Dora é uma mulher so- Central marca, portanto, a volta para zinha, sem laços familiares e com um único casa do diretor. E com certeza não é para laço afetivo, que é sua amiga Irene. Seu ga- qualquer casa que ele retorna; o Brasil que nha-pão é a malandragem brasileira: escre- ele vem desvendar, que ele vem procurar, ver cartas, nunca enviadas, para analfabe- é novamente o mesmo Brasil já flagrado tos na estação carioca de trens Central do preferencialmente pelas lentes cinema-no- Brasil. O trem, no século XIX, foi o grande vistas nos anos 60: o Nordeste brasileiro. veículo de integração de espaços, diminu- Voltar para casa, portanto, é voltar para o indo a distância espaço-tempo, marca da sertão nordestino que já é reconhecido pelo modernidade (Ortiz: 1997). E é por esta es- imaginário popular como sendo o Brasil, e tação que a vida de milhares de pessoas, seu povo como sendo a cara do brasileiro. diariamente, se comprime. Os primeiros Segundo Isabel Cristina Martins Guillen, planos de pessoas descendo dos trens na Central dão a sensação de gado sendo des- quando se tratou de buscar uma ‘es- pejado, tão logo a porteira se abre. E, do sência’ da brasilidade, inquestiona- meio deste gado, algumas vidas vão sendo velmente o sertão foi a ela associado, pinçadas para que conheçamos sua histó- e aparece como uma idéia tão antiga ria. De todos os cantos do país, as histórias quanto a própria nação. Evidentemen- se repetem: pobreza, analfabetismo, aban- te, este fenômeno não ficou adstrito ao dono, embaladas em uma tênue esperança, pensamento social; todos nós, brasi- e o mesmo contentamento com o pouco leiros, desde crianças nos bancos esco- que a vida (moderna) dá. Os rostos vinca- lares somos bombardeados com esse dos, sofridos, envelhecidos se coadunam imaginário. Está presente na música, com aquela idéia do essencialismo brasilei- nas artes plásticas, no cinema e na lite- ro de que fala Gardnier.

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral 101 A Central do Brasil é, assim, o micro- acabam achando um ponto de equilíbrio, cosmo das misérias do país, e também da sendo que a marca da mudança, provocada cara do país. O ponto de confluência do ar- pela viagem de Josué e Dora, está nas rou- caico e do moderno; do rural e do urbano; pas novas que os dois compram nas muitas do novo e do velho. E é lá que a figura de paradas que fazem. A primeira destas tro- Josué irá entrar na vida de Dora, após per- cas é por uma camisa branca, símbolo da der sua mãe. Josué está sem família, assim pureza, mas também do novo, do intocado, como Paco em Terra Estrangeira; está sem daquilo que está pronto para ser preenchi- laços de pertencimento, sem ninguém que do com novos significados. A camisa bran- o auxilie. E dentro da sua solidão é em ca une o destino dos dois personagens, afi- Dora, a personagem que incorpora os as- nal ambos ficaram órfãos de mãe com a pectos da transgressão que havia também mesma idade e o pai é uma figura desco- em Igor, que Josué acaba encontrando al- nhecida para eles. Dora há muito perdeu gum apoio. suas esperanças de ter uma família, de refa- E aqui se dá a grande diferença em rela- zer seus laços de pertencimento e de iden- ção à Terra Estrangeira. Enquanto em Terra, tidade, mas Josué, como é próprio da infân- Igor usa Paco para fazer seu comércio ilegal cia, anseia por retomar sua vida, sua histó- de jóias, em Central, Dora volta atrás no seu ria, ao lado dos familiares que ainda pos- plano de traficar o próprio Josué. A persona- sui no sertão nordestino. A idealização do gem, portanto, recobra um pouco da humani- menino (símbolo do novo) se contrapõe à dade perdida e vai também ela atrás da sua amargura e à desesperança da mulher (sím- afirmação enquanto ser humano interessado bolo do velho). Do ventre cansado, infértil pela vida de outro, rompendo, assim, aquele da mulher aparentemente não sai mais círculo de indiferença e individualismo que é nada, pois ela está embotada pela vida a marca da modernidade, e que estava muito acinzentada da vida urbana e moderna, presente no filme anterior. onde as pessoas se tornam gado, solitárias Central do Brasil quer, com isso, se e mesquinhas. Assim, é o menino que pre- apropriar duplamente desta terra que se cisa puxá-la para a vida, trazê-la de volta à tornou estrangeira: o espaço físico, geográ- condição de ser humano solidário, pleno fico do País, e o eu de cada pessoa. A pere- de sentimentos. grinação que se inicia é a marca do herói No entanto, qual é o novo para o qual em busca de si mesmo. Da cidade cinza e aponta Josué? É o retorno para o antigo, cruel, mostrada sempre em enquadramen- para o Brasil central, interno, agrário, rural tos enclausurantes, asfixiantes, passa-se (Rossini, 2001). É lá que o menino se encon- para espaços de campo aberto, verdes e en- tra e encontra sua família, e sente-se feliz e solarados. em casa. É no interior do Brasil, e não no Durante este percurso juntos, Oricchio espaço urbano e moderno, que os laços de descreve a relação dos dois como sendo pertencimento e de identidade são refeitos. tensa, pois Ou seja, não é qualquer identidade que foi buscada, não é qualquer laço que foi refei- tanto a mulher quanto o menino são pes- to, não é qualquer discurso que foi retoma- soas duras, sofridas; uma é desencantada; do/referendado. o outro, precocemente amadurecido. O re- Assim como o Cinema Novo voltou lacionamento entre eles é feito de um mis- suas lentes para o Nordeste a fim de buscar to de atração e repulsa. Estão sempre jun- aquelas figuras míticas fundadoras da na- tos, querendo separar-se e, separados, ção brasileira, também Salles foi para o buscam um ao outro (2003:137). Nordeste atrás das mesmas respostas. Ou melhor, atrás de uma possível solução para Assim, apesar das diferenças, os dois o processo de desidentificação, de desen-

102 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral raizamento do país. O Nordeste, local de formação pessoal, individual, marca dos chegada dos primeiros colonizadores, onde novos tempos em que a salvação é buscada foi fundada a primeira capital da colônia, é de um em um. o ponto de partida da apropriação que foi No entanto, apesar destas diferenças, feita das terras brasileiras. Outra vez o pa- no plano da representação os elementos ralelo com Terra Estrangeira se impõe: Paco, que conferem uma identidade cultural ao guiado por Igor, vai a Portugal, a pátria- Brasil permanecem: se olharmos os rostos mãe-fundadora do Brasil atrás de respostas dos brasileiros que seguem o Santo Sebasti- que não encontra, e por isso padece. Josué, ão ou Corisco, em Deus e o Diabo na Terra do guiado por Dora, vai ao Nordeste, região Sol, 1964, de Glauber Rocha, e olharmos os de onde se expande o processo de coloni- rostos dos brasileiros que transitam na zação português, e, portanto, espaço histó- Central do Brasil, ou nos sertões do Nor- rico e mítico fundador do Brasil. deste, veremos que eles são os mesmos, Só que ao contrário de Paco, Josué re- apesar dos 30 anos que separam um e ou- encontra sua família, dois irmãos igual- tro filme. São os mesmos rostos repetidos mente órfãos, mas que possuem uma casa, também em outros filmes brasileiros, trabalho, amigos, ou seja, possuem laços como, por exemplo, em O Sertão das Memó- de pertencimento, de enraizamento. A vila rias, 1996, de José Araújo, ou em Amarelo em construção e de nome sugestivo, Bom Manga, 2003, de Cláudio Assis. Jesus, onde moram os irmãos de Josué, é Independente da intenção de cada fil- outra vez símbolo desta (re)construção de me, o Brasil é representado como sendo um país novo, refeito desde dentro, desde aqueles rostos, cansados, sofridos, envelhe- o centro. Um novo princípio para Josué, cidos, mas esperançosos. Por mais que os que já simboliza o novo, mas também para anos passem, a essência do país parece ser Dora, o velho que ganha novas cores. aquela, praticamente imutável ou insensí- Se a Dora do início do filme era uma vel à passagem do tempo; indiferente ao mulher sozinha, mesquinha, rabugenta, processo de (pós)modernização do mundo. sem a menor alto-estima, a Dora do final do E é em função desta imutabilidade, que ga- filme, embora continue sozinha, já mudou rante a constância de um processo, que o em muito sua identidade. Se ela acompa- Nordeste é visto (e mostrado) com a mes- nha o pequeno herói da história, Josué, a ma cara, a cara que garante a identificação voltar para casa, quem se transforma du- da nação em torno de alguns elementos co- rante a viagem na verdade é ela. E por isso muns em todas as regiões do país. Ou seja, ela troca de pele novamente. A Dora que no Nordeste percebe-se mais claramente os parte, deixando Josué ao lado dos irmãos, descompassos entre o tempo que avança e vai envergando um vestido novo, dado a o tempo que pára; ele reflete melhor a fla- ela pelo menino; vai com um colorido novo grante disparidade social brasileira. No no rosto e nos lábios, que aprenderam a imaginário nacional, o Nordeste ainda é o sorrir e a chorar. espaço privilegiado da velha luta entre o Com isso se flagra a distância das in- arcaico e o moderno, o pobre e o rico, e de tenções entre o Cinema Novo e cinema dos outros binômios instaurados, desde Hum- anos 90: a mudança estética e política é berto Mauro, no cinema brasileiro. E é por imensa. No plano estético, a narrativa, hoje, isso que, em momentos de crises identitári- está disciplinada; as linguagens visual e as da nação, é a ele que sempre se volta . sonora foram amenizadas para não causar estranhamento a um público cada vez mais Notas acostumado aos (poucos) formatos dos fil- mes mundializados. No plano político, a 1 O presente artigo resulta de minha pesquisa As construções transformação social cedeu espaço à trans- discursivas sobre identidade nacional no cinema brasileiro (2002-

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral 103 2004), e foi apresentado no NP 07 Comunicação HOBSBAWN, E., RANGER, T. (1984). A invenção das tradições. Audiovisual da Intercom (2004). : Paz e Terra.

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104 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 27 • agosto 2005 • quadrimestral