FARC: uma nova perspectiva do movimento em vista do plano Colômbia

FARC: a new outlook of the movement according to the Plan Colombia

Tiago Leonardo Lucero Graduando em Direito pela Universidade de Passo Fundo, UPF e estagiário do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [email protected]

Resumo Reformular erros históricos tem se tornado um dos objetivos principais dos governos populistas da América Latina. Foi assim com desaproprian- do terras, mesmo sendo elas produtivas, e com Cristina Kirchner redistribuindo as concessões junto à mídia argentina. O grupo guerrilheiro colombiano denominado Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) tem uma proposta filosófica social, marxista, pouco conhecida da grande maioria das pessoas. Logo, sua caracte- rização como grupo terrorista narcotraficante é a mais comum. Analisar o surgimen- to do grupo, desde o retorno de Alberto Lleras Camargo, então secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), até os dias atuais e a possível fuga dos objetivos que fundaram essa organização, além, é claro, do exercício do Plano Co- lômbia, é o objetivo do presente estudo, que propõe rever a imagem distorcida pela política exterior repressiva dos Estados Unidos da América, pela mídia internacional e pelo exercício de uma oligarquia no Estado colombiano, sem deixar de reconhecer as atuais atitudes do grupo beligerante, mas defendendo a ideia de rediscussão de alguns erros históricos trazidos pelo mau exercício do poder de Estado. Palavras-chave Farc; plano colômbia; insurgentes; beligerantes; terrorismo de estado.

Abstract To reformulate historical errors has become a major goal of populist governments in . Evo Morales did so when expropriating land, even productive ones, and so did Chistina Kirchner when redistributing grants to the Ar- gentinean media. The Colombian guerrilla group called the Revolutionary Armed Forces of Colombia (FARC) has a social, Marxist, philosophical proposal which is little known by the vast majority of the people, hence its common characterization as

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(21): 53-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 53 Tiago Leonardo Lucero a terrorist drug dealer group. The goal of this study is to analyze the emergence of the group, since the return of Alberto Lleras Camargo, then General Secretary of the Or- ganization of American States (OAS), to the present day and the possible withdrawal from the goals that founded this organization, besides, of course, the implementation of the Plan Colombia. This study’s aim is to reconsider the image distorted by repres- sive foreign policy of the of America, by the international media, and by the exercise of an oligarchy in the Colombian state, while recognizing the current attitudes of this belligerent group, but advocating the idea that some historical errors caused by the poor performance of State power should be reviewed. Keywords Farc; plan colombia; insurgents; belligerents; state terrorism.

Introdução

A imagem internacional do Estado colombiano não está ligada diretamente à sua exportação de café, nem mesmo às belezas naturais, ou às obras do escritor Gabriel Garcia Márquez, mas principalmente ao narcotráfico e às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). No universo particular de alguns cidadãos, o narcotráfico e as Farc estão impli- citamente vinculados – talvez pela imagem que o governo colombiano tenta impor a esta organização: a de terroristas e narcotraficantes. Não obstante, o povo colombiano é quem mais sofre com o conflito entre o go- verno colombiano e os grupos guerrilheiros, pois acaba por viver em uma constante guerra civil. Este conflito tem base em um desafio de alto nível a que se submeteu o povo colombiano, pois muitos são os apoiadores das Farc, assim como são muitos os contrários a esta organização. O presente estudo visa obter uma nova perspectiva desta organização, diante de sua qualificação segundo as normas do Direito Internacional e as ações do Plano Colômbia. O método de abordagem será o hipotético-dedutivo, fazendo uma análise acerca das definições sobre a organização (beligerância, insurgência ou organiza- ção terrorista), para então concluir sua perspectiva com base no Plano Colômbia (KÖCHE, 2007, p. 69). Far-se-á uma breve análise acerca da qualificação desta organização como grupo terrorista, bem como a definição de terrorismo para o Direito Internacional, tendo em vista sua abrangência internacional. Será utilizado o método de procedimento históri- co-comparativo, investigando o contexto social do surgimento e a proposta ideológica da organização, comparando-os com as atitudes do plano (MARCONI, 2008, p. 107). É importante ressaltar que não se pretende defender as atitudes violentas atri- buídas a esta organização, mas, sim, trazer uma imagem distinta daquela vista pela

54 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(21): 53-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 FARC: uma nova perspectiva do movimento em vista do plano Colômbia maioria das pessoas, buscando explicar seu surgimento e as razões de sua existência, tanto no contexto político-social em que foi fundada como no atual.

Surgimento e ideologia

Hernando Calvo Ospina, em sua obra O terrorismo de Estado na Colômbia, obra por muitos considerada um dos mais importantes estudos políticos sobre o Es- tado colombiano, atribui o surgimento das Farc à morte de Jorge Eliécer Gaitán, líder popular que, apesar de ser integrante do Partido Liberal, possuía um discurso anti-imperialista e foi morto em 1948, um ano antes de sua provável eleição como Presidente da República da Colômbia. Seu assassinato gerou uma grande revolta popular, com várias manifestações violentas que até hoje são conhecidas como Bo- gotazo (OSPINA, 2010, p. 59). Sua morte, somada à volta de Alberto Lleras Camargo, que ocupava o posto de secretário-geral da OEA, em Washington, deu surgimento à coalizão entre o Partido Liberal, com ideologia neoliberal, e o Partido Conservador, com ideologia liberal. Nascendo, assim, a chamada Frente Nacional, dando fim às controvérsias políticas. Esta aliança impossibilitou que qualquer grupo civil ou militar pleiteasse ou tomasse o poder. Logo, a Colômbia passou a ser um Estado indiretamente oligarca, pois somente dois partidos poderiam chegar ao poder, mesmo em um sistema mul- tipartidário. Organizavam-se da seguinte maneira: o mandato presidencial era exer- cido de forma revezada pelos partidos aliados, e as cadeiras no Congresso Nacional eram divididas em uma proporção capaz de limitar os poderes do partido que exercia a presidência (OSPINA, 2010, p. 82). Os recursos naturais exportados pela Colômbia passaram a ser cada vez mais valorizados, e os camponeses começaram a perceber que estavam sendo explorados, pois seus patrões ganhavam muito dinheiro, enquanto suas remunerações eram bai- xas. Uma saída para esta situação foi a venda do café diretamente pelos pequenos agricultores a um preço menor. Logo os latifundiários exigiram medidas do governo. E aqui começaram a sur- gir os sindicatos de pequenos agricultores e camponeses. Os conflitos entre campo- neses e latifundiários aumentaram ainda mais quando estes passaram a exigir o direi- to a propriedade não produtiva abandonada. Em seguida, começaram as invasões de terras, pois o governo não ouvia a reivindicação dos camponeses. Os assentamentos eram espécies de refúgios das vítimas da violência dos latifundiários. Com a aprovação da Lei 200, os camponeses passaram a perceber o direito de apropriarem-se de terras improdutivas, o que revoltou os latifundiários, que come- çaram a oprimir os líderes dos movimentos campesinos (IZQUIERDO, 2007, p. 11).

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Em seguida, a Frente Nacional, o Estado indiretamente oligarca colombiano, tratou de perseguir os camponeses rebelados, principalmente os liberais gaitanistas. Os povos campesinos foram atacados, dentre eles aquele em que vivia Manuel Ma- rulanda Vélez, que se viu obrigado a adotar uma nova forma de resistência: a guerra de guerrilhas, assim nascendo as Farc, em 1965. Os camponeses que originaram o surgimento das Farc viviam na miséria. Segundo Villota,

estudiosos do conflito armado colombiano são unânimes em afirmar que a intervenção violenta do Estado, na esfera política, contribuiu so- bremaneira para a configuração desses grupos. Vários fatos da história do país parecem confirmar essa hipótese. Entre esses fatos, destaca-se a tendência do Estado colombiano para usar a violência contra tudo aquilo que se apresentasse como ameaça na disputa pelo poder, ocasio- nando, em conseqüência disso, as mais diversas manifestações contra a violência. (2007, p. 20).

Talvez em virtude do costume de conviver em um Estado indiretamente oli- garca, em que as decisões não são contestadas, os governantes não tenham aceitado o surgimento destas novas ideologias, que apesar de se basearem em Marx (1818- 1883), surgiam recentemente no Estado colombiano. As Farc são o maior e mais antigo movimento guerrilheiro do mundo. Estão pre- sentes em 24 dos 32 territórios colombianos, porém sua influência política vai além dessas fronteiras, estando também na e no Equador. São consideradas o maior inimigo do Estado colombiano e possuem ligações externas com outros grupos revolucionários de cunho esquerdista, como o MST, no Brasil, e o ETA, na Espanha, e são reconhecidas por 33 países como facção terrorista, sendo que a maioria dos gover- nos americanos não as qualifica desta maneira. O Brasil, com o governo Lula, também deixou de reconhecer esta organização como terrorista (INESC, 2002, p. 33).

Beligerantes e insurgentes

Diante da repressão estatal ou pela busca por reconhecimento de direitos, o povo organiza-se para reivindicar. Porém, quando falamos de um Estado repressor ou de forças internacionais repressoras, estas reivindicações tornam-se arriscadas e ilegais, daí surgindo os movimentos beligerantes e as forças insurgentes. Os movimentos beligerantes somente passaram a ser reconhecidos quando de seu surgimento no continente europeu, mais precisamente na Grécia, porém já exis- tiam anteriormente e seguiam em ascensão. (A Guerra Civil da Grécia, entre 1943 e 1949, foi um dos primeiros conflitos que ocorreram no contexto da Guerra Fria,

56 Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(21): 53-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 FARC: uma nova perspectiva do movimento em vista do plano Colômbia apesar de haver iniciado no transcurso da Segunda Guerra Mundial. Foi um conflito político entre a esquerda e a direita daquele país, e nele surgiram as seguintes forças insurgentes: KKE, do grego Kommounistikó Kómma Elládas, o Partido Comunista da Grécia; DSE, do grego Dimokratikos Stratos Elladas, o Exército Democrático da Gré- cia; EAM, do grego Ethniko Apeleftherotiko Metopo, a Frente Nacional de Liberação; e o ELAS, do grego Ellinikós Laikós Apeleftherotikós Stratós, o Exército Democrático da Grécia). Na realidade, as primeiras forças insurgentes foram as que lutaram contra a opressão de países colonizadores, formadas, em sua grande maioria, por escravos vindos da África que lutavam contra a exploração e buscavam o poder. Como exem- plo é possível citar as forças insurgentes que lutaram contra a colonização espanhola na América Central. (DEFARGES, 1999 p. 35). O reconhecimento de um movimento como beligerante tem natureza jurídica declaratória, consistindo em ato discricionário do Estado, feito normalmente me- diante uma declaração de neutralidade. A caracterização, o reconhecimento de uma organização como beligerante, concede-lhe o direito à conclusão de tratados. Os prisioneiros passam a ser tratados como prisioneiros de guerra, o governo deixa de ser responsável pelos atos praticados pelos beligerantes contra outros Estados, e os navios da organização deixam de ser reconhecidos como piratas. Mas os principais efeitos têm a ver com o status jurídico, que passa a ser igual ao do Estado, e com a neutralidade dos Estados estrangeiros (MAZZUOLI, 2007, p. 335). Pode-se perceber que há uma troca de interesses nestes efeitos, principalmente com relação ao terceiro efeito acima citado, pois ele traz um benefício ao Estado quan- do tira dele a responsabilidade pelos atos praticados pelos beligerantes. Em contrapar- tida, os demais trazem benefícios aos beligerantes e aos eventuais presos ou reféns. Ou seja, como possuidora deste status, pode-se dizer que a organização fica sujeita às regras de direito internacional em matéria de guerra. Por outro lado, se não fosse reconhecida a beligerância, os terceiros Estados não se encontrariam sujeitos à neutralidade e, por conseguinte, somente o governo legal poderia comprar armas no exterior. Sendo assim, a importância desse reconhe- cimento decorre, justamente, dos direitos humanos, mas não pela aquisição de uma maior quantidade de material bélico, mas, sim, com relação ao massacre injusto por uma das partes do conflito. Quanto à questão dos tratados e acordos internacionais, é importante ressaltar que as Farc apenas fazem acordos com o Estado colombiano e com outras institui- ções de cunho revolucionário, e os acordos com o primeiro devem sempre ser ratifi- cados pela Assembleia Nacional. Logo, pode-se afirmar que os atos beligerantes podem ser considerados aque- les exercidos por uma organização que promove revolução de grande envergadura,

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(21): 53-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 57 Tiago Leonardo Lucero dispondo de tropas regulares e controlando parcela significativa do território de de- terminado Estado. Já uma insurgência é uma rebelião armada contra uma autoridade constituída, quando aqueles que participam da rebelião não são reconhecidos como beligerantes. As características dos grupos insurgentes e beligerantes são semelhantes: visam à tomada do poder das mãos do governo; porém enquanto o movimento beligerante assume aspecto de guerra civil, o movimento insurgente não chega a tais proporções. São reconhecidas como tal, quando seu movimento não gera um caráter de guerra civil ao Estado, nem cria uma situação definitiva para seus participantes, como no caso dos beligerantes. A insurgência tem inspiração política, econômica, religiosa ou étnica, ou pode reunir mais de uma destas qualidades (MAZZUOLI, 2007, p. 336). Os efeitos desse reconhecimento são os seguintes: os navios da organização não são considerados piratas, os prisioneiros passam a ser considerados prisioneiros de guerra, o governo não é mais responsável pelos atos dos insurgentes e os terceiros Estados não são obrigados à neutralidade. No caso dos insurgentes, os efeitos, que dependem dos Estados que o reco- nhecem, não gerando, automaticamente, determinada situação jurídica, são mais restritos do que no segundo, como a não obrigatoriedade de os Estados terceiros reconhecerem a neutralidade. A grande diferença está na intervenção internacional, pois o movimento beligerante obriga o terceiro Estado à neutralidade, enquanto a insurgência, não. O que pode levar a entender que este não reconhecimento por parte dos EUA é para não ser impedido de intervir, enquanto para a Colômbia é para não perder o apoio estadunidense. Então, pode-se dizer que a diferença entre a força insurgente e os movimentos beligerantes está nos efeitos e nos resultados da manifestação. Quanto aos efeitos para a força insurgente, estes são mais restritos, e na busca pelo resultado, quando falamos em beligerância, a disputa é menos injusta, pois não há intervenções inter- nacionais e há permissão para aquisição de armas no exterior.

Terrorismo

Os crimes julgados pela Corte Penal Internacional são os de agressão, geno- cídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. É uma competência muito semelhante à dos Tribunais de Guerra. O Estatuto de Roma, criador do Tribunal Penal Internacional, não faz menção ao conceito de terrorismo, porém a doutrina e a prática posicionam-se no sentido de que este termo está incluso dentro dos crimes contra a humanidade.

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Curiosamente, nem mesmo o Estatuto de Roma do Tribunal Penal In- ternacional faz referência expressa ao termo terrorismo. Deve-se enten- der, porém, que a expressão se enquadra na categoria dos crimes contra a humanidade previstos pelo estatuto de Roma, especialmente no seu art. 7º, §1º, alínea K, na fórmula genérica “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física mental”. (MAZZUOLI, 2007, p. 870).

Logo, não há uma definição expressa, porém este é o entendimento implícito acer- ca da definição do delito de terrorismo, e a corte é competente para julgar este delito. Podem ser considerados atos violentos de uma pessoa ou de um grupo de pes- soas, praticados de surpresa e geradores de terror, contra pessoas inocentes ou alvos normalmente sem interesse militar, voltados à demonstração de insatisfação para com os poderes constituídos, a fim de modificar ou substituir por outro o regime político existente (MAZZUOLI, 2007, p. 869). O terrorismo é geralmente praticado contra pessoas inocentes, financiado por facções terroristas ou grupos rebeldes. Os meios mais conhecidos de atuação terro- rista são as bombas que, por intermédio de extremistas, em muitos casos suicidas, são infiltradas no local alvo do extermínio. Quando em contato com meios de comunicação, percebe-se que a atuação dos grupos terroristas está ligada a conflitos religiosos e geralmente ocorre em locais como o Oriente Médio, apesar de que recentemente países como os EUA e a Espanha foram alvos desses atos violentos. As características das ações terroristas são quatro: a natureza indiscriminada; a imprevisibilidade e a arbitrariedade; a gravidade dos atos e das consequências; e seu caráter amoral e de anomalia (WOLOSZYN, 2007, p. 22). A partir destas características é possível descaracterizar as Farc desta configu- ração de terrorista. A natureza indiscriminada traz à tona a questão da imprevisibilidade do alvo, o que não ocorre nas atitudes desta organização em virtude de os alvos serem parti- dários da direita política, que de uma forma ou outra contribuem para a repressão do movimento, ou, ainda, os paramilitares, que são grupos armados, formados no geral por militares, e que servem como uma espécie de milícia, impedindo a ascensão dos movimentos sociais. Quanto à imprevisibilidade e a gravidade dos atos, estas, sim, estão presentes nos atos violentos da organização, pois buscam a negociação de seus interesses com o governo por esse meio, assim como os demais grupos insurgentes ou beligerantes espalhados pelo mundo.

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A questão da amoralidade e da anomalia tem a ver com o desrespeito aos valo- res sociais, religiosos, culturais de uma sociedade. O movimento não visa a este des- respeito, mas, sim, o reconhecimento político da organização e o fim da repressão. Não é coerente que em uma democracia o grupo político que busque reformas governamentais e estatais, de acordo com suas propostas políticas, seja considerado terrorista em virtude da não compatibilidade com um modelo de vida. Quando há terrorismo, sim, devem ser preservadas as intervenções internacio- nais, respeitando a soberania dos Estados, pois a vida e os direitos humanos devem ser protegidos. Porém, com cautela, considerando que este motivo pode ensejar in- tervenções incoerentes com estes direitos, o que poderia ser considerado exercício de terrorismo de Estado em âmbito internacional. O terrorismo de Estado é o próprio delito de terrorismo exercido pelo Estado, pois seria a busca pela imposição de um interesse, por meio de repressão, o que é muito mais grave por ser exercido pela instituição responsável pela proteção aos direitos hu- manos. A América do Sul conheceu bem este delito, pois países como Argentina, Brasil e Chile sofreram com as repressões estatais em épocas de ditadura militar. Já o terrorismo de Estado no âmbito internacional é a expansão da repressão aos demais Estados, é a imposição internacional de interesses. É o que ocorre na Co- lômbia. Alegando que as Farc praticam o terrorismo, o governo colombiano admite a intervenção de um Estado estrangeiro para auxílio militar por meio do Plano Colôm- bia. Logo, a caracterização de terrorismo é uma desculpa para reprimir a ascensão da ideologia proposta pelas Farc.

Plano Colômbia

O Plano Colômbia foi criado no ano 2000 pelo governo dos EUA. Este governo propôs ao estado colombiano um auxílio financeiro e exigia que este conseguisse junto ao Banco Mundial um montante de 4 bilhões de dólares para que o plano fosse cumprido. A ideia propulsora do plano era a de um auxílio ao desenvolvimento do Es- tado colombiano, com combate ao narcotráfico e restabelecimento da ordem social no país. Trazia ainda a proposta de negociação com as guerrilhas (INESC, 2002, p. 36). As inconsistências, somadas ao alto investimento militar, causaram desconfian- ça, fazendo com que a União Europeia e o Japão não apoiassem o plano, sendo que o governo espanhol e o governo norueguês acresceram 120 milhões de dólares aos caixas do projeto; ou seja, aquela comunidade deixou de auxiliar, o que não impediu que seus integrantes o fizessem por livre iniciativa (INESC, 2002, p. 13). O projeto assim se mostrava: para o Congresso estadunidense era uma inves- tidura militar de combate direto ao narcotráfico; quando apresentado ao parlamento europeu, era uma política de direitos humanos e inversão social.

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Na América do Sul, trouxe mais desconfiança ainda, não só por toda a história de exploração de riquezas naturais nesta parte do continente, por parte dos estran- geiros, mas também pela presença militar massiva em meio à Mata Atlântica, aquela tão cobiçada região. Em um estudo acerca do Plano Colômbia, o parlamento brasileiro, com o auxílio do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) recolheu dados econô- micos, em 2002, capazes de demonstrar o cunho militarista do plano, conforme as seguintes ilustrações:

1) operações militares antidrogas no sul da Colômbia: 416, 9 milhões de dó- lares (treinamento de dois batalhões antinarcóticos do exército colombia- no, e a aquisição de 60 helicópteros para a condução de operações milita- res em regiões produtoras de cocaína); 2) operações de interdição ao tráfico de drogas: US$ 378,6 milhões (moder- nização do sistema de radares, aviões e lanchas na região andina, controle do tráfico aéreo, marítimo e fluvial); 3) ajuda à Polícia Nacional Colombiana: US$ 115,6 milhões (auxílio aos ser- viços de inteligência e compra de aviões para a fumigação de plantações); 4) apoio à promoção de direitos humanos e à reforma do sistema judicial colombiano: US$ 106 milhões (treinamento de juízes e promotores para investigar a corrupção e a violação de direitos humanos, assim como o apoio a diversas ONGs e associações civis que promovem programas edu- cacionais relacionados com os direitos humanos); 5) apoio ao desenvolvimento econômico alternativo: US$ 106 milhões (desen- volvimento de atividades agrícolas alternativas à produção de coca e heroí- na, bem como recursos para a construção de escolas, hospitais e estradas); 6) apoio ao processo de paz e à região andina: US$ 183 milhões (promoção do processo de paz através de doações a uma variedade de instituições norte-americanas e colombianas que estudam as negociações de paz). (INESC, 2002, p. 14).

Com a análise destes dados é possível perceber que os investimentos ligados às ações militares são muito maiores. A pesquisa do parlamento chega à conclusão de que somados estes valores aos 330 milhões de dólares que o governo estadunidense já havia destinado à Colômbia pouco antes da aprovação do plano, 80% dos investi- mentos estão destinados a uma estratégia de repressão. As Farc dominam parte do território colombiano e estão presentes em toda a região andina, principalmente nas zonas desmilitarizadas, pois apesar de ser um mo-

Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(21): 53-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 1676-529-X • ISSN Eletrônico: 2238-1228 61 Tiago Leonardo Lucero vimento armado, não posssuem o mesmo preparo militar de um exército estadista. Os EUA e a Colômbia, que atribuem a esta organização o status de terrorista, na verdade demonstram uma perseguição ideológica com o intuito de desestruturar as guerrilhas colombianas por meio deste alto investimento militar. São fatos que levam a crer que estes Estados construíram um inimigo, repreendendo a ascensão de uma ideologia de vida distinta da neoliberal.

Conclusão

Desde seu surgimento, a ideologia e a proposta social das Farc foram ignoradas. É assim por ser uma organização atualmente denominada terrorista e narcotraficante, e, quando surgiram, sofriam com a repressão tanto do governo como por parte dos paramilitares (os quais se mantêm até hoje). É como se houvesse, no decorrer da história da organização, uma repressão direta quando de seu surgimento e indireta nos dias atuais. Reconhecer a organização como beligerante seria a medida adequada por parte dos terceiros Estados, ao menos para demonstrar o repúdio a este desrespeito aos di- reitos humanos que existe na Colômbia. Também para aderir à neutralidade e evitar que influências internacionais, como o Plano Colômbia, venham a aumentar ainda mais a repressão e, por meio de um lobby, buscar o reconhecimento desta pelo pró- prio Estado colombiano. Não é necessário o reconhecimento prévio por parte do Estado colombiano, haja vista que se trata de um ato unilateral. É assim com o reconhecimento de outros Estados e também com o reconhecimento de movimentos beligerantes. Por exemplo, as Farc fazem acordos com o Estado venezuelano, pois este as reconhece como movimento beligerante, independentemente do reconhecimento prévio pelo Estado colombiano. O fato de o movimento ocupar parte do território colombiano e o conflito poder dar um caráter de guerra civil àquele Estado demonstra que os requisitos para este reconhecimento estão preenchidos, e que isto traria respeito à dignidade humana e à existência da organização. Com o presente estudo, conforme dito anteriormente, não se pretende defender atitudes extremistas e violentas, mas, sim, o respeito à dignidade e à autodetermi- nação dos povos, pelo conserto de um erro histórico. Do contrário, é possível até mesmo falar em terrorismo de Estado, tanto no âmbito interno como no internacio- nal, o que seria passível de sanções, por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos ou pelo Tribunal Penal Internacional. Na competência do Tribunal Penal Internacional está incluso o julgamento de crimes contra a humanidade, sendo que o terrorismo está implícito dentro do con-

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Submetido em: 14-8-2011 Aprovado em: 9-1-2012

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