NASCIMENTO, Juliana. Drags Demônias – O Grupo Cultural Belemense em Análise. Belém: PPGArtes. ICA – UFPa; Mestranda; Wladilene Lima. Bolsista CAPES. e Pesquisadora.

RESUMO: Desde 2014, na cidade de Belém, o grupo cultural que se auto identifica com o nome “Drags Demônias” tem quebrado diversos paradigmas que rodeiam a arte drag; reagindo artisticamente de acordo com uma construção filosófica e atravessamentos específicos. Em um primeiro momento organiza-se através de um estudo bibliográfico e análise através de história oral, seguido de um estudo dos conceitos que conversam com a arte drag (como , , drag queer, transformista, cross-dresser, travesti, transgêneros, etc.) e revisitando algumas confusões e alterações dessas estruturas conceituais e convergindo com a produção contemporânea. Partindo para um segundo momento onde, através de observação e análise, identifica-se a gênese do grupo como subgênero direto da arte Drag Queer. Partindo do princípio que esta consiste na não-definição de um gênero específico na sua construção poética; abrindo novas possibilidades de atravessamentos, percepções e estéticas. A Demônia, muito além da estética e do sincretismo cristão, remete ao demônio interior, ao grego daimon, ao destino – ethos anthropo daimon. Além de alimentar arcabouço teórico sobre o tema e suas transgressões e variações.

PALAVRAS CHAVE: Drag, Demônia, Queer, Belém.

ABSTRACT: Since 2014, in Belém, the cultural group that identifies itself with the name "Drags Demônias" has broken several paradigms that surround the drag art; reacting artistically according to a philosophical construction and specific crossings. At first it is organized through a bibliographic study and analysis through oral history, followed by a study of the concepts that talks with the drag art (as drag queen, drag king, drag queer, transformista, cross-dresser, travesti, transgenders, etc.) and revisiting some confusions and alterations of these conceptual structures and converging with contemporary production. Going for a second moment where, through observation and analysis, the genesis of the group is identified as a direct subgenre of Drag Queer art. Assuming that it consists in the non-definition of a specific genre in its poetic construction; opening new possibilities of crossings, perceptions and aesthetics. Demônias, far beyond aesthetics and christian syncretism, refers to the inner demon, the greek daimon, to destiny - ethos anthropo daimon. In addition to feeding theoretical framework on the theme and its transgressions and variations.

KEYWORDS: Drag, Demônia, Queer, Belém.

Situar historicamente os estudos de “montação” é uma tarefa longa e muito anterior ao tempo histórico representado aqui, então para dar início à apresentação do tema, trago à luz a definição etimológica do termo “drag”. Estudando os materiais teóricos de Baker (1994), Jatene (1997) e Bortolozzi (2015), podemos afirmar que a expressão possui uma etimologia duvidosa, mas podemos citar aqui as principais vertentes. A lenda etimológica mais antiga acerca da palavra “drag”, vem do período Elisabetano, quando as mulheres eram proibidas de atuar em palcos públicos e os homens que representavam seus papéis eram designados nos roteiros como D.R.A.G. (dressed as a girl – vestido de menina). A história é associada diretamente a Shakespeare, um dos principais encenadores da época. Também é considerada a colocação de que “drag” seria a adaptação da palavra dragon, sugerindo que seriam dragon (rainhas dragões), referindo-se ao seu visual exagerado e colorido. E ainda, mas não por menos, existe a hipótese de que “drag” seria diretamente o verbo “arrastar” em inglês, fazendo alusão aos enormes vestidos que elas ostentavam e, propriamente, arrastavam em seus espetáculos.

A figura da artista drag na cidade de Belém sempre foi presente enquanto estereótipo, havendo poucas representações históricas de drags que alcançaram um certo reconhecimento enquanto artistas fora dos meios LGBTI+, estas são contadas nos dedos como Liz Babeth Taylor e Eloi Iglesias. Existiam outras artistas como Shaula Vegas, Shantara Gomes, Glenda Áquila, Mel QBoa, etc. Mas essas eram encontradas apenas em espaços voltados para o público em questão. Desde 2014, o movimento de drags local fora bombardeado com uma nova geração de artistas saídas de grupos de teatro e de outros movimentos artísticos. Bem diferente e ao mesmo tempo bem parecido com o que era produzido antes, as mudanças semiológicas são perceptíveis em vários níveis, mas “cada ritual tem sua própria maneira de interrelacionar os símbolos” (TURNER, 1974), e assim acompanhamos a vinda à tona de um novo movimento de drags conceituais, as autointituladas “drags demônias”.

“Percebemos haver uma preocupação coletiva, não necessariamente clara, ou explícita, dos artistas e intelectuais belenenses em demarcar, esteticamente, o espaço do que seria uma “cultura” amazônica. ” (CASTRO, 2012)

Essas artistas desenvolvem um trabalho único, abraçando fortemente a cultura local enquanto fonte de produção artística, tirando a drag, necessariamente, de dentro das casas de shows e trazendo para o enfrentamento da rua em performances urbanas e atos políticos.

Na cidade de Belém, a drag sempre teve uma participação limitada enquanto alicerce artístico/cultural, sendo lembrada apenas em épocas específicas, como a Parada do Orgulho LGBT (que ocorre desde 2001 na cidade de Belém) e a Festa da Chiquita – que ocorre desde os anos 1970 e, atualmente, é organizada por Eloi Iglesias. A Chiquita acontece anualmente na Praça da República na noite de trasladação que precede o Círio de Nazaré, muito conhecida por ser uma festa “profana e de cunho homossexual”. (BRASIL, 2006).

“As performances são o grande atrativo da Festa da Chiquita. Não só as realizadas pelas drag-queens, mas pelo público que, embalado ao som das “músicas de boate”, se queda em jogos performáticos rivalizando com as prerrogativas heteronormativas.” (RIBEIRO, 2015)

Recentemente, a arte drag na cidade de Belém tomou uma nova roupagem. Um movimento que se iniciou com o evento Noite Suja – produzida por Tristan Soledade e S1mone –, em 2014, e tem gerado uma grande movimentação do cenário drag local. Seguido pelo aparecimento de outros eventos para este público como a Viada Cultural – produzida por Flores Astrais e Fabritney A.K.A. Della –, que iniciou em 2014, no antigo Bar do Oito, a Obscenna – produzida por Cílios de Nazaré –, que começou a ser realizada em 2016; além de outros eventos que não são necessariamente voltados para esse público ou não acontecem com periodicidade, que é o caso da DECAdance, da Karma Cool e da Pyrygotyk. Essas têm sido as representações sociais desse movimento autointitulado “drags demônias”. Uma nova geração de artistas que têm reproduzido cada vez mais o efeito da glocalização de Rolland Robertson (2000), onde os aspectos globais – no caso, a cultura drag já em voga, como glamour, paetês, plumas, o famoso “o que se espera de” – entram em harmonia com os aspectos locais – onde entra a cultura regionalista paraense, a utilização de penas de urubus, cuias, cocares, iconografia, lendas amazônidas, roupas características, traços culturais urbanos, costumes, etc. Um embate de influências que é abordado por Stuart Hall (2006) em:

“[...] as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Tudo isso acontece em meio a um momento de intensa globalização, com o desenvolvimento incessante das tecnologias de transporte e comunicação, que cada vez mais colocam o local e o global em contato. A maior interdependência global leva a um colapso das identidades tradicionais, ligadas ao local, e produz uma diversidade cada vez maior de estilos e identidades.” (HALL, 2006) A partir de então podemos enxergar que no movimento das “drags demônias” temos muitos exemplos do quanto essa localidade guia o trabalho dessas artistas, como é o caso de Cílios de Nazaré, vivida pela artista Monique Malcher, que faz uma clara referência ao Círio de Nazaré e leva a fundo sua inspiração usando looks inspirados em mantos e grandes cílios de diversos materiais; também podemos usar como exemplo Tristan Soledade, vivida por Maruzo Costa, que representa uma morta-viva e sempre moldou sua identidade baseada na lenda de Severa Romana (LACERDA, 2012) e até seu nome carrega a referência de um dos mais tradicionais cemitérios de Belém, além de looks como o de Fabritney A.K.A.Della, que já viveu uma índia com iconografias marajoaras no rosto e corpo; La Falleg Condessa, que montou um look inspirado em urubus do Ver-o-Peso; Luna Skyy, que já se inspirou em Yaci, deusa indígena protetora das plantas; diversas artistas performam músicas regionais e vários outros exemplos.

O grupo cultural das demônias tem tomado um espaço cada vez maior, seja na noite, seja em espaços artístico-culturais, ou mesmo nas ruas de Belém. É preciso afirmar e identificar a cultura paraense como objeto de estudo de artistas locais para fortalecer e cada vez mais abranger novos patamares de desenvolvimento e aceitação através da arte.

Existe uma confusão muito grande acerca dos conceitos que rodeiam esse tema, em grande parte porque eles estão em constante mutação. Para esse apanhado conceitual, buscou-se analisar o que já foi escrito acerca dos assuntos e uma atualização para novos significados das palavras.

GÊNERO, SEXUALIDADE E IDENTIDADE

A primeira, e mais comum, confusão é acerca da sexualidade e do gênero. É preciso entender que a sexualidade trata-se de como o indivíduo reage sexualmente e suas variações são diversas: heterossexual, homossexual, bissexual, assexual, pansexual, etc. Enquanto gênero é a palavra que vem causando controvérsias, enquanto conservadores buscam manter a visão biologizante de que o gênero é associado ao órgão genital de nascimento, estudiosos do mundo todo – com largo enfoque nos estudos de Judith Butler, Guacira Lopes e da Teoria Queer – afirmam que o gênero é uma construção social e que reagimos a ele através da performatividade que aprendemos desde que nascemos. Provocando variação na dualidade masculino/feminino e ampliando os horizontes do gênero para: mulher transgênero, homem transgênero, travesti, não-binários, gender-fluid, interssex, entre outros.

Identidade é o termo que mais tem se associado à palavra gênero desde seu entendimento enquanto construção social, Michel Pollak nos dá uma definição sobre o conceito:

“Aqui o sentimento de identidade (...) é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. ” (POLLAK, 1992)

Ou seja, é como a pessoa se identifica com ela mesma e socialmente.

A confusão começa com a marginalização de pessoas com variação de gênero ou sexualidade ao longo de quase toda a história da humanidade. A pessoa que não se identifica dentro dos padrões ditos normativos é segregada à marginalização, onde muitas vezes acaba encontrando formas não muito viáveis de sobreviver, em geral com meios ilícitos (tráfico, roubo, etc.) ou prostituição. Até porque são linhas tênues que separam as identificações e as pessoas podem não se identificar apenas dentro de um só termo ou arquétipo. A mulher transgênero Agatha Lima e a travesti Monica Rodriguez em entrevista ao portal M de Mulher explicam a diferença entre alguns dos termos mais frequentes:

“Por exemplo, a mulher trans nasce com o sexo biológico masculino, mas a sua identidade de gênero, que é a forma como ela se percebe, e orientação sexual são geralmente femininas. Já as travestis, são pessoas que têm o sexo biológico masculino, mas que possuem identidade de gênero ambígua (...) elas podem se identificar tanto com seu lado homem, quanto com seu lado mulher e ter orientação sexual fluída. Agora, cabe a cada pessoa dizer ou definir o que ela é. É ela quem define o que é e como quer ser reconhecida” (LIMA, 2017)

MONTAÇÃO

Identificamos a montação a partir de sua etimologia – montare – que remete a “colocar sobre”, e a alteração do indivíduo a partir de desse atributo, seja ele uma máscara ritualística ou um salto de trinta centímetros. Paes Loureiro, em 2000, identifica esse fenômeno como Conversão Semiótica: “A Conversão Semiótica (...) é o processo de mudança de função ou de significação dos fatos da cultura, ressaltando especialmente as artes, quando se dá uma mudança de dominante, re-hierarquizando dialeticamente as outras funções.” (LOUREIRO, 2011)

A mudança de função de um objeto/acessório/indumentária e sua mutação em atributo artístico (conversão semiótica) representa o processo de montação. Muitas vezes, esse processo passa por dentro do sistema de gêneros e sexualidades, pois, afinal, tudo entra no redemoinho das identificações.

DRAG QUEEN/KING

Conforme adotado como partida anteriormente, Drag é um termo que vem do inglês, precisamente da Inglaterra no período Elisabetano. E, desde seus primórdios fora uma palavra que remetia à utilização de roupas/acessórios de acordo com a acepção do social do gênero oposto com fins de entretenimento. Ou seja, uma Drag Queen seria um homem vestido de mulher e uma Drag King seria uma mulher vestida de homem.

Ao longo dos anos, tanto a concepção de gênero, quanto de acepção social, quanto de Drag mudaram bastante. Ainda hoje, a Drag é conectada diretamente ao conceito de performance artística – e a partir dos anos 70, também performance social. E, mesmo com as mudanças no conceito de gênero, a Drag Queen não deixou de representar o feminino e a Drag King o masculino, mas suas noções do que é aceito socialmente como signo de cada gênero continua em constante mutação.

E um grande ganho para a arte drag nos últimos anos foi seu questionamento enquanto arte e, a partir disso, o desenvolvimento de uma arte sem gênero e que fale de gêneros. Onde mulheres fazem Drag Queen e homens fazem Drag King, apesar dos preconceitos sofridos por esses artistas pela própria classe, continuam resistindo e em ascensão.

TRANSFORMISTA

Transformismo é o fenômeno latino da montação dentro das comunidades LGBTQI+ de subúrbio. Enquanto no começo se assemelhava muito com a Drag Queen estrangeira, buscando reencarnar as grandes divas, não só internacionais e da Broadway, mas também de novelas e grandes cantoras do rádio. O transformismo é a busca pela transformação no gênero oposto de forma natural.

Com a hipermidiatização da Drag Queen nos anos 1970 e sua eventual influência das comunidades Club Kid nos anos 1980, o conceito de Drag chega ao Brasil lentamente e causando uma estranheza na comunidade Transformista da época. Sarah de Montserrat fala em entrevista sobre como viu a chegada das Drag Queens na cidade de Belém e suas diferenças do transformismo:

“A diferença da Transformista para a Drag Queen está principalmente nas questões visuais, hoje a drag, o que é? É uma mulher exuberante, uma rainha exagerada. E o transformista não, o transformista tem aquela essência mais nostálgica. (...) O transformista, ele ressaltava e homenageava as grandes divas (...) era uma coisa mais fina, hoje a gente tem a questão do efeito de luz, do efeito especial, do estrobo. O transformista, ele tinha o público, uma luz e a música, só. Quando surgiu esse segmento de Drag Queens, pra mim, porque eu não tinha esses aparatos, essas coisas, esse suporte, e elas eram loucas, elas jogavam sangue, se batiam, se quebravam, se jogavam lá de cima, isso tudo foi muito estranho. (...) São segmentos que não deixam de andar juntos (...). Eu nunca consegui perder essa essência (transformista). Eu só me adapto. ” (MONTSERRAT, 2017)

Hoje, como diz Sarah, o Transformismo caminha junto com a Drag, mas em segmentos diferentes, este se mantém em grande parte nos concursos de beleza e em algumas poucas casas que ainda realizam shows voltados para esse público mais “nostálgico”.

DRAG QUEER

A Drag Queer é um fenômeno artístico que foi construído a partir das mudanças nos conceitos de gênero. Sendo este de caráter performativo, a questão levantada é: porque continuar a reproduzir os arquétipos de gêneros que nos prendem socialmente até dentro da arte? Assim nasce a drag que não reproduz gêneros específicos e busca brincar com eles, utilizando ambas as representações sociais ou até mesmo nenhuma (objetos, animais, etc).

Dentro das Drag Queers também se desenvolveram alguns subgêneros, para exemplo citarei dois dos mais importantes: a EcoDrag – a drag que busca utilizar materiais recicláveis ou orgânicos, geralmente representada em performances ativistas políticas e de apelo público às causas sociais e ambientais – e a Tranimal – a drag que busca desumanizar ao máximo sua construção artística, lembrando mais a aparência de animais do que de humanos.

DRAG DEMÔNIA

Em Belém, há algum tempo vêm-se desenvolvendo um outro subgênero da arte drag queer que se auto intitula enquanto movimento artístico das Drags Demônias. Mas o que é “demônio”?

Cuniberto (2002) nos fala sobre a etimologia da palavra dentro do seu uso homérico, que refletia a potência divina intrínseca aos seres humanos; sendo simbolizada nos vasos como uma criatura alada, não humana, nem divina, mas intermediária. Sendo esse “daimon”, propriamente, o destino, aquilo que nos distingue e que é exclusivamente nosso. Ainda na etimologia grega, o autor busca Plotino que dedica um tratado das Enéadas ao “demônio que tivemos por sorte”, referenciando o daimon à sorte, ao destino. O autor também não deixa de frisar a clássica citação heraclitiana: ethos anthropo daimon (o daimon é para cada um o próprio ethos – estilo, o que caracteriza), associando o daimon ao próprio caráter do indivíduo.

Mais a fundo na etimologia da palavra, Cuniberto (op. cit.) também frisa que o termo seria diretamente derivado da palavra daiomai, que significa “distribuir, dividir”, como podemos ver em seus diversos exemplos de variações gregas: dais (refeição em que cada um recebe a sua parte), daitron (porção), daitros (machado, faca), daiterion (o lugar da distribuição). Utilizando o uso em Crátilo, onde, nas lições, Platão determina os daimones “como são o conjunto das potências intermediárias, aquelas que “conectam a parte central do universo, repartem a potência divina e a levam a diante até as últimas coisas. ” (CUNIBERTO, 2002).

Com o crescimento desenfreado do cristianismo e sua intolerância com outras representações religiosas, o sentido de daimon e daimones ficou preso na mitologia pagã e foi sincretizado de forma negativa. Nogueira (2002) explica que a religião hebraica – de onde nasceu o cristianismo – foi quem estruturou o demônio cristão a partir do seu monoteísmo e não aceitação de qualquer outra força. Tudo que fosse diferente de Deus, seria do “grande inimigo”. Ainda dentro da cultura hebraica, Ruether (1993) nos acentua a depreciação do feminino (que já existia em outras civilizações, mas fora bastante proeminente no cristianismo), desde o Alcorão com Adão e Eva – sendo Eva a culpada pela expulsão do paraíso – e também a imagem de Lilith, que possui muitas interpretações, mas a autora cita suas principais designações como: a serpente que persuadiu Eva a comer a maçã; e a própria imagem do demônio feminino – ainda valendo frisar que Lilith era uma deusa muito adorada na Babilônia, onde os hebreus foram escravizados.

Com a emergência ao poder da cultura hebraica-cristã, na Idade Média, Lipovetsky (2000) afirma que a imagem da mulher foi associada ao ser pecaminoso e a sua beleza ao seu poder de sedução. Algo que foi desconstruído com o chegar da Renascença e a supressão dessa força sexual em função da exaltação da beleza feminina ao assexual, à divindade de caráter angelical. Sendo a imagem da mulher no imaginário popular dividida em duas: as que são profanas, poderosas, independentes; e as que são assexuais, mantenedoras do lar, submissas (as demoníacas e as angelicais).

Como já falado antes, existem várias versões para a construção etimológica da palavra Drag, e aqui não serão discutidas entre certas e erradas, mas na curiosidade de que a versão mais aceita seria a que diz que Shakespeare sinalizava os papéis femininos com “dressed as a girl – D.R.A.G.”, já que mulheres não podiam fazer teatro na Renascença. Justamente no período em que essa transição da visão do feminino ocorria. Alves (2013), em seu estudo sobre as mulheres no teatro de Shakespeare, aponta para a força sempre presente nos personagens femininos shakespearianos como Julieta, Ofélia e Lady MacBeth, “por essas mulheres não negarem nem seus instintos nem sua racionalidade, isso as torna livres, transgressoras e perigosas. ” (ALVES, 2013)

Sendo a gênese da artista drag já associada a essa visão da mulher poderosa (demoníaca). E, conforme vimos anteriormente, as nomenclaturas foram muito confusas e abrangentes durante muitos anos, sendo a artista drag confundida frequentemente com o homossexual, a travesti, a transexual, o cross- dresser, etc. Como afirma Baker (1994), seres marginais à sociedade, “demonizando” cada vez mais o trabalho da drag. Porém, conforme o autor, após a revolta do Stonewall, a tomada da drag como ato político nos anos 1970 e, consequentemente, a maior visibilidade destas na mídia. A primeira grande tentativa de “desdemonização” da arte drag veio por meio dos concursos de beleza gay (ainda com a confusão de termos) em meados dos anos 1970; onde as cross-dressers, travestis, transexuais e drags disputam pelo maior título de beleza, cujos parâmetros são justamente os traços e trejeitos femininos. Essa “beleza” do feminino, a beleza ideal, nos leva de volta à Renascença e à beleza intocável da mulher. Quanto mais femininas e angelicais elas se apresentarem, maiores as chances de ganhar.

A segunda grande tentativa de “desdemonização” aconteceu em meados dos anos 1990, com a ascensão de RuPaul, que iniciou sua carreira vendendo o slogan de “Supermodel of the World” e alcançou o estrelato ao comandar um reality show chamado RuPaul’s Drag Race em 2009. Que consiste em um concurso de drag queens, que, não apenas foca na beleza e trejeitos femininos, mas nas habilidades técnicas de maquiagem, costura, etc. Apesar do seu caráter “integrativo”, o programa visivelmente prioriza as participantes mais femininas e “castiga” as que fogem demais ao padrão imposto pela própria RuPaul. Por se tornar um sucesso mundial, o programa trouxe para a mídia diversas drags que priorizavam a questão da feminilidade extrema, a mulher intocável.

Em 2014 surgia em Belém do Pará uma festa idealizada por Maruzo Costa e Matheus Aguiar chamada Noite Suja, cuja proposta era ser uma noite feita por drags, para drags, onde a montação seria livre de arquétipos. Muito influenciados pela cultura club kid dos anos 1980 e pela larga cultura regional, afrontando o modelo hegemônico da “drag feminina/angelical”, o Noite Suja ao longo dos anos alimentou a cena drag local e criou uma grande comunidade que se autodenomina “drags demônias”.

O que começou com uma piada frequente de cumprimento, pois ao se verem, na porta das festas ou em bares, as artistas se saúdam com elogios sarcásticos como “olha, tá linda, parece um demônio” (fazendo relação direta ao demônio-cristão, algo feio e desprezível). As artistas adotaram o nome de “drags demônias” por não se importarem em fazer maquiagens “feias” e que causem deconforto nas pessoas. Justamente, o movimento artístico das drags demônias fala muito mais da sua experimentação pessoal, nos levando de volta ao conceito inicial da palavra, o daimon da essência de cada um – ethos anthropo daimon –, a demonização interna, o poder e o profano de cada indivíduo. Sendo essa construção de um nível extremamente pessoal e inacabável, representando o fazer artístico que o atravessa e trabalhando com tudo que cruza o caminho do artista para a construção que leva esse demônio interior para a sua performance artística.

O grupo cultural que desenvolveu o movimento é formado, em grande parte, por pessoas que já desenvolviam trabalhos artísticos antes – teatro, desenho, pintura, dança, canto, etc. – e que acabaram descobrindo suas identidades Drag em convergência com suas expressões artísticas anteriores. Esse grupo criou laços afetivos fortes e possui características estéticas muito diversas, mas que trilham no mesmo formato. Raymond Williams exemplifica: “existem grupos culturais (...) que têm em comum um corpo de práticas, ou um ethos que os distinguem, ao invés de princípios ou objetivos definidos em um manifesto” (WILLIAMS, 1999). As demônias não têm nenhum tipo de tratado ou manifesto, elas se manifestam através da estética de desconstrução de padrões.

Havendo ainda um subgênero da demônia que adota o título “themônia”, negando a etimologia do demônio cristão e afirmando o the (em inglês), como um protesto à prevalência estadunidense como padrão no desenvolvimento dessa arte.

CONCLUSÕES

A drag é uma variação da arte da montação que tem um histórico muito longo e vasto, sendo impossível abarcar suas nuances em um texto de pequeno porte, então, para esse estudo, toma-se por início a partir de sua criação etimológica no período Elisabetano.

É uma modalidade artística de muitas segmentações e subgêneros. Dentro destes, a artista denominada drag queer, que é chamada assim por não identificar um gênero em sua construção. As demônias, enquanto artistas queers, reagem a partir de um sistema de retro-alimentação de influências e de uma prévia bagagem artística que atravessa filosoficamente a essência de cada indivíduo para criação de uma identidade única. A drag demônia, em Belém, ganha cada vez mais espaço e é preciso identificar seu lugar como artista local.

Este estudo não buscou ser definitivo, mas contribuir para a produção acadêmica acerca da drag e realizar elucubrações em torno das drags demônias. Muito ainda cabe ser estudado e aprofundado, os atravessamentos, transgressões, deixando abertas as possibilidades de pesquisa à luz de novos questionamentos.

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