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ENTRE O DIREITO E AS CIENCIAS SOCIAIS: UMA EXPERIENCIA CENTRAL NA HISTORIA DOS ESTUDOS SOBRE TRABALHO E TRABALHADORES NO BRASIL

José Sergio Leite Lopes

A entrevista que se segue foi feita em 1992 para uma pesquisa então em andamento sobre a história social da sociologia do trabalho e dos trabalhadores. Como autor de um dos primeiros e mais importantes livros sociológicos sobre o sindicalismo no Brasil e como observador direto e privilegiado de parte da história do direito social no país, Evaristo de Moraes Filho se constituía em um entrevistado estratégico para a pesquisa. Como mostra a entrevista, não somente o livro O Problema do sindicato único no Brasil; seus fundamentos sociológicos domina a temática, o instrumental e a literatura do direito social e da sociologia , como a própria trajetória de seu autor, entre a Faculdade Nacional de Direito e a Faculdade Nacional de Filosofia, constrói a ponte entre essas duas áreas de conhecimento, essencial para o entendimento das relações entre o sindicalismo e o Estado no Brasil. Depois, o próprio Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil, experiência inter-institucional original e de curta duração tão associada à trajetória de nosso entrevistado, assegurava essa ligação entre o direito e as ciências sociais – incorporadas em Evaristo como representante no ICS da Faculdade de Direito – sob a prevalência das ciências sociais. Talvez a força mesma dessa interconexão entre direito e ciências sociais que peculiariza a contribuição de Evaristo fosse paradoxalmente a fonte do esquecimento de seu livro pioneiro de 1952 sobre o sindicalismo na literatura subseqüente de sociologia do trabalho que se constitui em São Paulo. Voltada para a construção universitária pioneira da sociologia como centro hegemônico das áreas de ciências humanas na Universidade de São Paulo, a “escola paulista de sociologia”, localizada entre as cadeiras I e II de Sociologia da USP e a Escola Livre de Sociologia e Política, era um ambiente propício para o esquecimento de contribuições que não estivessem envolvidas no esforço implícito de autonomização da disciplina. Uma contribuição produzida assim na Faculdade de Direito, matriz essa que aquela escola pretendia distanciar-se naquele momento, passa despercebida pelos autores lidando com a temática do trabalho e do Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 2 de 31 sindicalismo1. Não é por acaso que a obra de Evaristo é resgatada por José Albertino Rodrigues, sensibilizado por sua observação participante do sindicalismo pelo viés da instituição técnica de assessoria aos sindicatos por ele mesmo construída nos anos 50, o DIEESE, e que fez levantamentos na Biblioteca Nacional e no Ministério do Trabalho, no Rio de Janeiro, para a pesquisa que resultou em Sindicato e Desenvolvimento no Brasil, de 1968. De fato, a recepção de O problema do sindicato único está relacionada à atualização das conjunturas políticas favoráveis à crítica da estrutura sindical brasileira: em 1962, quando do fortalecimento do movimento sindical e da publicação de livros sobre as suas lutas no passado, a obra tem uma repercussão maior do que quando de seu lançamento dez anos antes, em edição limitada sem editora, quando então se relaxava timidamente o controle rígido prevalecente sobre os sindicatos de trabalhadores, por ocasião do segundo mandato presidencial de Getúlio Vargas, eleito em 19502. E em 1978, com o surgimento do movimento social tendo por centro a atuação sindical no ABC paulista e em São Paulo, no declínio do regime militar, O problema do sindicato único tem sua segunda edição publicada pela editora Alfa- Ômega, prefaciada por Paulo Sergio Pinheiro, então estudioso da sociologia do trabalho na Universidade de Campinas. A dificuldade inicial na percepção da importância da contribuição do livro pelo campo sociológico também se dá pela sua própria composição interna, elaborada para ser uma tese de livre-docência para a Faculdade de Direito, com três capítulos baseados numa interpretação da literatura internacional, sociológica e de direito público, com

1 Assim, como assinala Evaristo no posfácio à segunda edição de seu livro, Azis Simão, autor de Sindicato e Estado, livro fundamental na temática, publicado em 1966, não cita O problema do sindicato único na sua bibliografia; em Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil, outro livro de referência, de Leôncio Martins Rodrigues, também de 1966, ele é citado de passagem. O livro de Azis Simão guarda características de sensibilização através da experiência direta com o sindicalismo de São Paulo dos anos 30 a 50 que se assemelham às características comuns com o livro de Evaristo. O livro de Leôncio é fruto dos projetos coletivos formulados no Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, associado à cadeira I de Sociologia da USP, coordenados por Florestan Fernandes. Ambos os estudos fazem parte de um esforço considerável e fundamental das ciências sociais brasileiras entre os anos 50 e 60, fazendo de São Paulo um laboratório essencial para o entendimento das questões sociológicas colocadas pelo Brasil.

2 No início dos anos 60, Evaristo está em ascensão no campo das ciências sociais, com sua participação na direção do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil. Em 1962 foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, tendo por presidente Florestan Fernandes, como informa na entrevista, e em 1964 fez parte da banca do concurso para professor titular daquele professor na USP, examinando a tese da “Integração do negro na sociedade de classes”. Em 1963, com base em sua notoriedade na área do direito do trabalho onde O problema do sindicato único ocupa um importante lugar, é nomeado como autor e relator do anteprojeto de código do trabalho. Os anos posteriores a 1964 viriam interromper muito do que estava sendo feito nas ciências sociais em São Paulo e em particular no Rio de Janeiro. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 3 de 31 temas de uma generalidade em ordem decrescente – “o grupo social”, “a profissão e o sindicato” e “o problema do sindicato único” – e somente o último capítulo dedicado à experiência brasileira (capítulo IV - “no Brasil”). A interpretação original da história sindical brasileira fica assim “escondida” pelos eruditos três capítulos iniciais, os quais contam com uma cobertura bibliográfica impressionantemente atualizada para a época, com citações nas línguas das edições originais ou de consulta (em francês, inglês, espanhol, italiano e alemão; para as quais a segunda edição traz um apêndice com as respectivas traduções), e que transita com intimidade por entre uma literatura sociológica, de filosofia política, de história do Estado e do direito público3. E assim, a sua própria interpretação do sindicalismo brasileiro, baseada numa experiência pessoal de observação direta do aparato de Estado concernente às relações de trabalho, fica menos evidenciada. Essa entrevista, entre outros textos e entre outros depoimentos, ajuda a transparecer a originalidade desta interpretação, associada à própria trajetória de Evaristo de Moraes Filho. A ênfase do autor em seu desempenho escolar tanto na entrevista, assim como nos seus currículos, aponta para uma busca meritocrática que se consolida com sua entrada na Faculdade Nacional de Direito, núcleo expressivo de formação, escolar e extra-escolar, de parte importante da elite política e intelectual brasileira na primeira metade do século XX. Tem ele assim uma formação universitária mais importante que a de seu pai, pioneiro na assessoria jurídica a associações operárias e sindicatos de trabalhadores, publicista em seus diferentes sentidos, assim como primeiro consultor jurídico do Ministério do Trabalho nos dois anos iniciais do governo provisório saído da Revolução de 304. Do capital social de origem paterna nosso autor 3 Essa erudição fará de Evaristo um autor requisitado para o organização e a introdução de textos selecionados tanto de clássicos das ciências sociais (na coleção dirigida por Florestan Fernandes na Editora Ática a partir dos anos 70 e 80), quanto de homens públicos (reedições de livros de Evaristo de Moraes, organização de textos do empresário Jorge Street, por exemplo), quanto de questões sociais e correntes ideológicas (artigos e coletâneas sobre o socialismo e sobre o positivismo no Brasil, por exemplo). 4 Como mostra Evaristo na grande introdução que faz à reedição de Apontamentos de Direito Operário, de Evaristo de Moraes, Evaristo pai começou a advogar desde os 23 anos como “rábula”, como se auto- designa no livro Reminiscências de um rábula criminalista (1922), tendo depois se bacharelado em 1916, com 45 anos, na Faculdade de Direito Teixeira de Freitas, em Niterói, para em seguida revalidar seu diploma na Faculdade de Direito da Capital Federal com novos exames por força de lei. No fim de sua vida é nomeado pelo presidente da República, em 1938, professor de direito penal na Faculdade Nacional de Direito, onde lecionou dois anos. Também significativo na sua formação escolar é o seu pertencimento como aluno gratuito no externato do curso secundário do Colégio São Bento, entre 1883 e 1886, e em seguida sua experiência durante três anos de jovem professor auxiliar nas matérias de português, geografia e história no mesmo colégio, onde formou uma rede de relações com colegas que no futuro pertenceriam à elite intelectual e política. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 4 de 31 traz a possibilidade de compreender do seu interior as continuidades e rupturas da primeira república para a segunda, desde sua experiência como jovem secretário ainda estudante da comissão mista de conciliação, onde assiste à argumentação de empregadores e trabalhadores, desde a sua subseqüente carreira no Ministério do Trabalho5, até a elaboração universitária desta experiência, entre o direito e as ciências sociais. Ele pode assim, através da experiência de sua trajetória, recuperar e entender o contexto histórico da trajetória de seu pai, apropriando-se dela, o que lhe faz compreender de forma singular a importância dos movimentos sociais e da discussão pública das leis sociais antes de 1930, sem deixar de ver a importância e a especificidade das transformações posteriores. Isto se evidencia no capítulo IV de O Problema do Sindicato Único, nas introduções circunstanciadas feitas pelo autor a livros reeditados de seu pai, assim como nos prefácios a teses de história e ciências sociais publicadas. Se a experiência política de Evaristo de Moraes se dá na advocacia a movimentos sociais e na sua prática de publicista, isto é em círculos políticos e intelectuais extra-universitários, a de Evaristo de Moraes Filho se inicia na sua vivência estudantil na Faculdade de Direito, no período por ele mesmo denominado de “porre ideológico” do início dos anos 30. Ali ele encontra professores que o marcaram e também se engaja numa atividade extracurricular de colaboração em jornais e revistas estudantis, publicando ensaios que antecipam sua vasta produção futura. Com base nessa intensa vida intelectual e política encontrada na faculdade ele pode ter uma bagagem crítica para ver de forma distanciada a construção política e administrativa do Estado Novo e os desdobramentos e continuidades de algumas de suas políticas públicas no período democrático subseqüente, e fazer, em especial, a crítica da permanência da estrutura sindical corporativista. Essa pulsão crítica, potencializada por sua vivência estudantil, é feita no entanto de modo a incorporar aspectos de uma herança anterior e a reinterpretá-la em outro sentido. Pois, por outro lado,a socialização na faculdade parece fazer-lhe incorporar a sua tradição de erudição, suas redes de sociabilidade, os seus ritos de instituição como os concursos, as suas disputas, o seu consenso no dissenso. Ele é assim um mediador e um renovador entre períodos

5 No posfácio à segunda edição de O Problema do Sindicato Único, Evaristo assinala: “Cria autêntico do Ministério do Trabalho, dentro dele transcorreu toda minha carreira funcional até final aposentadoria, voluntária, em novembro de 1966” (p. 323). (Já a aposentadoria universitária, na UFRJ, em 1969, não será voluntária...). Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 5 de 31 históricos e tradições de pensamento diferentes, produzindo uma síntese interpretativa original. Como se vê no final do capítulo 4 de O Problema do Sindicato Único, Evaristo trabalha com a problemática de sucessivos autores do pensamento social brasileiro – , , Capistrano de Abreu, Oliveira Vianna, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre – para ilustrar as tendências levando ao insolidarismo da população brasileira ao longo da história, e a propriedade que teria o sindicato, e de preferência o sindicato único por profissão ou categoria profissional, de reverter esse quadro, inculcando tendencialmente a associatividade. Mas se o sindicato único é fundamentado pelo autor como o mais apropriado pela literatura internacional por ele analisada, para a defesa das classes trabalhadoras em geral e para as brasileiras em especial, ele o seria no entanto se destituído de complementos institucionais implantados durante o Estado Novo (regulamentares e de prática administrativa), como textos copiados da Carta de Lavoro do regime fascista italiano (cópia esta que ele é o primeiro a assinalar), como o controle ministerial sobre os sindicatos (com o seu poder de intervenção), o imposto sindical, o estatuto padrão, o atestado ideológico dos dirigentes. Essas críticas, feitas em 1952, antecipam e fundamentam tentativas posteriores de reforma da estrutura sindical, nas conjunturas de ascensão da associatividade e mobilização sindicais, em 1963 e em 19886. Em diferentes dimensões, portanto, Evaristo é um mediador entre tradições de pensamento diferentes, por um lado, entre os reformadores sociais dos anos 20 e começo dos anos 30 e os reformadores dos anos 80, passando pelos do início dos anos 60; por outro lado, entre o pensamento social brasileiro transmitido nas principais faculdades de direito e sua apropriação pelas ciências sociais do início dos anos 50 e as ciências sociais do trabalho das gerações pós-graduadas desde o final dos anos 70 (como sinalizado pelo prefácio de Paulo Sergio Pinheiro à segunda edição de O Problema do Sindicato Único). Esse princípio da sensibilidade ao equilíbrio entre herança e ruptura na passagem da memória entre diferentes gerações, Evaristo tira do modelo da passagem entre as décadas de vinte e de trinta, atravessadas por efeitos de obscurecimento, dadas pelas pré-construções eruditas baseadas em eventos políticos como a Revolução de 30 e o

6 Em 1963 Evaristo de Moraes Filho foi chamado pelo ministro João Mangabeira para ser autor e relator de um anteprojeto de código do trabalho; em 1988 fez parte da Comissão que precedeu a Constituição de 1988, na parte referente às leis do trabalho. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 6 de 31

Estado Novo. Entre essas duas décadas, com efeito, havia sido naturalizada entre historiadores e sociólogos uma barreira ligada tanto a uma superestimação das rupturas em detrimento das continuidades no dimensionamento da natureza empírica da transformação, quanto a especializações dos próprios historiadores em periodizações preestabelecidas. Por ocasião de prefácios a livros baseados em teses das novas gerações de pós-graduados dos anos 70 e 80, Evaristo teve a ocasião de explicitar a referida sensibilidade, que já está contida em O Problema..., e que se manifesta também na entrevista a seguir. Em livro por ele prefaciado, Ângela de Castro Gomes atravessa a barreira daquelas duas décadas, podendo assim constatar a importância da atuação da burguesia em defesa de seus interesses, embora a forma de sua atuação tivesse mudado de uma década para outra, corrigindo assim a minimização, corrente na literatura anterior, da atuação empresarial diante do Estado pós-30. A quebra analítica da barreira entre as duas décadas pela autora foi prontamente assinalada por Evaristo de Moraes Filho, ele próprio um autor pioneiro na desconstrução da visão que privilegia o Estado pós-30 como único produtor das leis sociais e do sindicalismo.7 O prefaciador então se anima a desenvolver por escrito aquilo a que se refere, na entrevista a seguir, com mais detalhes colaterais suscitados pela lógica da oralidade. Evaristo é estimulado pelo livro que prefacia a tecer considerações sobre como uma lei instituída em 1923, a Lei Eloi Chaves, vai ter grande importância, de forma não prevista e quase despercebida, em toda a estrutura sindical montada após os anos 1930, chegando a ser incorporada à CLT em 1943. A gênese dessa medida esteve ligada à lei que regia o funcionamento da caixa previdenciária dos ferroviários, onde a estabilidade após os 10 anos de trabalho era um dispositivo de caráter contábil. Tal dispositivo, anterior à leva legislativa dos anos 1930, vai ser retomado tal e qual nas leis que regem as caixas de outras categorias profissionais, como a dos bancários ou a dos marítimos, e

7 “Mostra a Autora muito bem como 30 não significou nenhum rompimento radical com o passado, nem remoto nem recente. As lideranças empresariais passaram intactas para o novo regime, como viria a acontecer igualmente com as lideranças operárias colaboracionistas e com as oligarquias estaduais. Tontearam um pouco, mas não chegaram a ir à lona; logo refeitas, retomaram as rédeas dos seus interesses, das suas associações ou de seus domínios regionais. (...) Outro tema tratado pela Autora é o que diz respeito à destruição do ‘mito da outorga’ da legislação do trabalho, mito este construído e cultivado pelos revolucionários de 30 e principalmente a partir de 37, com o Estado Novo. (...) Não podemos silenciar que nos coube a honra de haver iniciado essa derrubada. O nosso O Problema do sindicato único no Brasil, aparecido em princípios de 1952, leva por motivação justamente o combate ao mito.” In Ângela C. Gomes, Burguesia e trabalho; política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio: Campus, 1979, p. 15. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 7 de 31 vai ser retomado também, nos mesmos termos, na CLT8. Ele consagra e faz desse instrumento de estabilidade previdenciária o mecanismo de uma estabilidade mais geral, sustentando a implantação de uma organização sindical que os redatores das leis viam como antídoto a uma “falta de solidariedade” e a uma insuficiente propensão à associação que seria, segundo esses juristas e pensadores sociais, intrínsecas ao povo brasileiro. Evaristo dá assim uma ilustração de fenômenos históricos para os quais Max Weber e depois Norbert Elias chamavam a atenção, apontando para os desenvolvimentos históricos “cegos”, processos históricos inintencionais. Essa ilustração de uma lei que “fura” a “barreira” entre as duas décadas e vai se instalar, quieta, na CLT, compondo o estatuto da estabilidade adquirida após 10 anos de serviço, vai ter importância para a estrutura de delegados sindicais do movimento operário entre 1945 e 1964, e dali só será desalojada pela introdução do FGTS em 1966. Na entrevista, Evaristo salienta a mobilização e a força social de certas categorias profissionais, como por exemplo os bancários no início dos anos 30. Os testemunhos e contribuições de observações pessoais que recheiam os prefácios de Evaristo a livros provenientes de teses9, são estimulados pela surpresa e encantamento com o trato rigoroso e revelador dado ao material empírico, manuseio característico de uma nova geração de historiadores e cientistas sociais que o ex-diretor da experiência (interrompida pela repressão pós-64) do Instituto de Ciências Sociais da UFRJ tem diante dos olhos – esse produto da nova pós-graduação em ciências sociais e da nova investigação histórica incorporada por pesquisadores vinculados a uma pluralidade de instituições 10. A entrevista que se segue desenvolve e sugere estes e outros temas através do sabor da oralidade e do humor com que Evaristo de Moraes Filho auto-analisa a sua 8 Essa análise, já presente em O Problema..., será desenvolvida, através da expressão cidadania regulada, por Wanderley Guilherme dos Santos em Cidadania e Justiça, Rio: Campus, 1979. 9 Um outro prefácio é feito ao livro de Rosa Maria Barboza de Araújo, O Batismo do Trabalho; a experiência de Lindolfo Collor. Rio: Civilização Brasileira, 1981. 10 E presente inclusive nas ciências sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, nas gerações subseqüentes às do ICS, onde Evaristo pode inclusive encontrar trabalhos que guardam uma relação temática com sua produção e uma relação emocional e afetiva com ele próprio, como por exemplo os de Regina Lúcia de Moraes Morel, “A ferro e fogo: construção e crise da família siderúrgica – o caso de Volta Redonda; tese de doutorado, Sociologia/USP, 1989; da mesma autora, “História incorporada e identidade coletiva entre trabalhadores aposentados da CSN”, pp. 61-96, in Alice Abreu (org.), O Trabalhador Carioca, estudos sobre trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro, Rio: Ed. JC, 1995; Elina G. da Fonte Pessanha & Regina de Moraes Morel, “Gerações operárias: rupturas e continuidades na experiência de metalúrgicos no Rio de Janeiro”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 17, ano 6, out. 1991; ou Regina L. de Moraes Morel e Wilma Mangabeira,“ ‘Velho’ e ‘novo’ sindicalismo e uso da justiça do trabalho: um estudo comparativo com trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional”, Dados, vol. 37, n. 1, 1994. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 8 de 31 experiência profissional e humana; esta experiência que sabemos importante para a compreensão de um autor ocupando uma posição central numa história social das ciências sociais que lidam com o trabalho e os trabalhadores no Brasil.

ENTREVISTA COM EVARISTO DE MORAES FILHO

Data: 08 / 12 / 1992 Local: residência de Evaristo de Moraes Filho Entrevistador: José Sérgio Leite Lopes

José Sérgio:. Nessa entrevista gostaria de saber um pouco na sua carreira, sua história de vida, como é que o senhor chegou a elaborar o livro O Problema do Sindicato Único no Brasil. Era uma tese? Evaristo: Foi tese, mas eu não cheguei a defender. Eu fiz outra tese. José Sérgio: Então, era isso. Como é que o senhor chegou a esse trabalho. Porque o senhor começou no Ministério do Trabalho desde cedo... Evaristo: Eu tomei posse no Ministério do Trabalho a 25 de abril de 1934. Estava começando o meu segundo ano de Direito. Tinha 19 anos de idade. Era secretário das comissões mistas de conciliação. Essas comissões mistas de conciliação, que foram extintas, foram criadas pelo decreto 21.396, de 12 de maio de 32. A exposição de motivos do Collor, do Fernando Collor é muito boa, vale a pena você ler. José Sérgio: Do Lindolfo... Evaristo: Do Lindolfo. Fernando, veja você...! O veneno invade a minha casa! (risos) Veja você! (...) Mas voltando à história: o Lindolfo Collor, você sabe, ele era mais ou menos positivista, e na época ele era farmacêutico. Ele não era formado em Direito, não. Mas era um homem culto, muito inteligente, antigo jornalista, antigo deputado. Tinha sido republicano, da corrente de Júlio de Castilho, do Getúlio, Borges de Medeiros e assim por diante. Então, ele tinha aquela idéia fixa de integrar o proletariado na sociedade contemporânea. E na exposição de motivos número 19.770 - era o primeiro decreto sobre sindicalização depois da Revolução de 30, o 19.770, de 19 de março de 31 –, nesse decreto ele chega a citar Augusto Comte nominalmente. Ele cita Comte Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 9 de 31 nominalmente! Quer dizer, vê-se bem a influência castilhista. Já na Constituição de 1891, do Rio Grande do Sul, que aliás deu muita amolação a Rui Barbosa, Júlio de Castilho prevaleceu-se da Federação, do federalismo da República, e fez uma Constituição inteiramente independente; independente da Constituição Federal de 24 de fevereiro de 91. E já dava alguns direitos trabalhistas, alguma coisa e tal. E eles tinham essa idéia fixa de integrar o proletariado na sociedade moderna. E a exposição de motivos que criou as comissões mistas de conciliação é do Collor. Vale a pena você ver um livro do João Alfredo Lousada chamado “Legislação Social Trabalhista”. É de 1933, editado pelo Ministério do Trabalho. Você encontra aí na biblioteca [refere-se à sua famosa biblioteca pessoal]. Ele escreve todas as exposições de motivos do Collor. E naquele tempo, engraçado... Um pouco porque ele era um entusiasta relativamente moço e Ministro do Trabalho, as exposições são bem feitas. Ele chega a falar em lutas de classes, embora procurando apagá-las, acabar com elas. E essas comissões mistas de conciliação exatamente têm esse papel. Elas eram compostas de seis vogais: três de empregadores e três empregados; e presidida por um jurista. Um jurista as presidia. Eu fui secretário das duas, aqui no Rio de Janeiro. Elas não tinham um poder judicante; eram só de conciliação. Às vezes se fazia uma convenção coletiva, entre sindicatos de empregados e de empregadores. Levava-se às vezes 10, 8, 12 sessões. Era cansativa aquela negociação... Mas era interessante. Então, eu comecei a entrar em contato com o movimento sindical brasileiro daquela época. E uma coisa que ainda está pedindo um autor é o movimento sindical dos bancários e dos professores. Em São Paulo, uma moça, cujo livro eu tenho, mas não me lembro o nome, fez sobre o sindicato dos bancários. José Sérgio: Letícia Canedo. Evaristo: É. Mas no Rio de Janeiro os bancários faziam greves terríveis, em 33, 34. Os professores também. Os professores, por exemplo, eram dirigidos por trotskistas. Eu fui aluno de um deles, que era um grande sujeito, cuja memória precisa vir à tona. Sempre que eu posso, eu o cito. Chamava-se Rodolfo Coutinho. Pernambucano... ou de uma família de Pernambuco. E o Rodolfo Coutinho suicidou-se em 1953; jogou-se embaixo de um trem na estação de São Cristóvão. Foi preso em 35. Então, ele e o Branco – não me lembro o primeiro nome do Branco - eram os diretores do sindicato dos professores. Ele era trotskista. Trotskista, casado com uma alemã. Viveu um pouco na União Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 10 de 31

Soviética, esteve na Alemanha muito tempo. Ele foi meu professor de alemão. Era um sujeito fabuloso. Foi o Rodolfo Coutinho que, junto com Cristiano Cordeiro, fundou em 1919 o primeiro centro de estudos marxistas do Brasil, em Recife. 1919, um centro de estudos marxistas. O Foster Dulles, naquele livro dele, “O comunismo no Brasil, 1935- 1945”, ele cita isso. Fundou o primeiro centro de estudos marxistas no Brasil. Era um sujeito fabuloso. E para você ver a importância dos bancários, a estabilidade com 10 anos vem surgindo paulatinamente. A primeira classe a ganhar foram os ferroviários. E a lei não é do Getúlio, como muita gente pensa, não. A lei é de Arthur Bernardes, de 1923, chamada lei Elói Chaves. 1923. Dava estabilidade com 10 anos de serviços aos ferroviários. Depois aos portuários. Washington Luís deu , em 1926, aos portuários. Até que em 1931, houve uma grande reforma das caixas de aposentadorias e pensões dos serviços públicos. Naquele tempo nós tínhamos aqui a Light; a City – era inglesa –, de esgoto. Então, essas ganharam a estabilidade com 10 anos, essas classes. Depois, em 33, a outra classe que ganhou a estabilidade, era à medida que iam se criando os institutos de previdência social. Foram os marítimos. Em 1933 os marítimos ganharam estabilidade com 10 anos. Agora é que vêm os bancários. Em 34, duas classes ganharam estabilidade com 10 anos. Foram criados dois institutos de previdência social: os comerciários e os bancários. Agora é que você vai ver a mágica da coisa. Os bancários fizeram uma greve aqui, fabulosa. Tinham um líder chamado Sidney de Castro, uma coisa assim. Uma greve total. Conseguiram estabilidade com dois anos. De 1934 até a vigência da Consolidação, em 1943, os bancários gozaram durante nove anos de estabilidade somente com dois anos. Depois, quando veio a Consolidação de 43, uniformizou todos com 10 anos, fora os direitos adquiridos dos bancários que já tivessem... Mas você vê: o grupo de pressão era tão forte, tão eminente que eles conseguiram estabilidade com dois anos. Foi a única classe que teve por lei, no Instituto dos Bancários, pelo Decreto número 54... Aí você vê a força que eles tiveram. Naquele tempo, é curioso, apesar de ser ditadura... porque de 30, na vitória da Revolução de 30, de 24 de outubro até a Constituição de 16 de julho de 34, nós tivemos aqui o chamado Governo Provisório. O segundo Governo Provisório da República. E era uma ditadura. O Getúlio legislava por decreto. Nem era por decreto-lei, como no Estado Novo, essa hipocrisia do decreto-lei. Era decreto mesmo. Mas de qualquer maneira, houve um forte envolvimento sindical. E eu costumo dizer... e o José Murilo de Carvalho até me citou, Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 11 de 31 ele assistiu uma conferência minha em que chamei aquele período de verdadeiro “porre ideológico”. Você não imagina! O Manifesto Integralista é de outubro de 32, e eles foram fechados em 3 de dezembro de 37, no dia em que eu me formei. E a filha de Getúlio, a Alzirinha, também foi minha colega de turma. 3 de dezembro de 37. Então, havia essa exacerbação do movimento sindical. De um lado, o pessoal de esquerda; e os integralistas, a Igreja, o circulismo católico, esse homem que eu substituo na Academia e que na época era um reacionário terrível, o senhor . Eu sou daqueles que foram torcer pelo Hermes Lima no concurso de 33, e ele perdeu, ganhou o Hermes Lima. Mas afinal, a Aliança Nacional Libertadora é de 35. De maneira que foi um período de verdadeiro porre ideológico. Tinha a Liga Eleitoral Católica, tinha os integralistas, tinha os socialistas, tinha os comunistas, os trotskistas. Era uma confusão danada! O Filinto Müller, que foi chefe de polícia... Agora, a greve, desde a Revolução de 30, a greve, se não era proibida, tinha que ser, antes de declarada, antes de deflagrada, tinha que ser dado ciência aos empregadores, e tentar a conciliação da greve perante essas comissões mistas de conciliação. Você pega esse decreto 21.396 e lá instituía-se que se não tentasse a conciliação, a greve seria considerada ilegal. José Sérgio: E o senhor presenciava, então, essa comissão de conciliação... Evaristo: Ah, eu presenciava tudo isso. Eu era do lado dos trabalhadores. Eu tinha 18, 19, 20 anos e era do lado dos trabalhadores. Então, eu fui me interessando por isso. E havia um sujeito do Ministério do Trabalho... O Ministério do Trabalho estava cheio de ex-socialistas. Por exemplo, Joaquim Pimenta. Era procurador do Departamento Nacional do Trabalho. José Sérgio: Quando o senhor entrou, o seu pai já tinha saído... Evaristo: Já tinha saído. O meu pai saiu em março de 32. O meu pai saiu junto com o Collor, solidário com o Collor. O procurador-geral era um sujeito que fez a maior greve na Bahia, que durou três dias e três noites, em 19. Chamava-se Agripino Nazaré. Era o procurador-geral do Ministério do Trabalho. Também era procurador lá o Deodato Maia, que escreveu um livro muito medíocre, mas escreveu um livrinho sobre a regulamentação do trabalho, em 1912. Estavam Joaquim Pimenta, Agripino Nazaré, o Deodato Maia; já tinha saído o Carlos Cavado, que era socialista e anticlerical, que o Collor levou para o Ministério. Esse sujeito foi preso, fazendo um discurso socialista – sendo do gabinete do ministro - no Ceará. Você vê a prisão dele naquele livro da Rosa Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 12 de 31

Maria Araújo, O Batismo do Trabalho, do qual fui prefaciador. Mas afinal, havia uma efervescência criadora no Ministério, de reforma social. Quanto aos sindicatos, apesar de ser uma ditadura, o Getúlio só vai engrossar depois de 27 de novembro de 35. Depois da rebelião, da revolução comunista, da Intentona, como eles dizem. Eu me lembro como se fosse hoje. Foi numa quinta-feira chuvosa, eu fiquei preso na cidade. Mas depois, aí sim. É declarado o estado de guerra. Nílton Cavalcanti, pai do_Ladingen Cavalcanti, que foi professor do seu pai11 e meu colega. Foi professor de Biologia da Faculdade de Filosofia (F.N.Fi.). O Nílton Cavalcanti era um ex-integralista, um general. Foi o chefe do estado de guerra. E o estado de guerra foi de 35 a 37. Em 10 de novembro de 37 Getúlio dá o golpe e implanta o Estado Novo. Aí acabou a brincadeira. Filinto Müller intervém nos sindicatos, prendeu os professores, os bancários... Foi uma revolta, uma violência, uma coisa terrível. Mas 1931, 32, 33, 34 e praticamente quase todo o ano de 35 foram anos de ebulição, de efervescência, de liberdade sindical, de criação. Tentaram até, na Constituição de 34, aquela chamada “representação classista”, que foi uma burla. Porque era ministro do Trabalho... O primeiro ministro foi o Collor, de janeiro de 31 até março de 32. Aí veio o Salgado Filho. Agora você vê como é curioso isso com o Getúlio. Eu chamo a atenção e ninguém presta atenção. Dizia o Getúlio que no tempo do Washington Luís a questão social era uma questão de polícia. Continuou sendo, nos tempos do Getúlio. Ele dava as suas benesses, sua legislaçãozinha e tal. Mas se o trabalhador urinasse fora da bacia, continuava sendo questão de polícia. Basta dizer que os elementos... Três elementos eu vou lhe dar os nomes. Porque antes de 30, quem fazia a conciliação trabalhista eram os delegados de polícia. Eu consultei no Centro Industrial, que fica ali no n. 15 da Avenida Calógeras, no terceiro andar, quando eu escrevi aquele livro chamado Idéias Sociais de Jorge Street, eu consultei lá as atas e o Centro se correspondia com o chefe de polícia. Ele se correspondia com o chefe de polícia, e a polícia tentava conciliar - não dava porrada -, conciliar os empregados e os empregadores. E quem era o quarto delegado auxiliar, que era o DOPS da época? Joaquim Pedro Salgado Filho. Era o Salgado Filho. E quem é que vai ser ministro do Trabalho depois do Collor, de 32 a 34? Salgado Filho vai ser o ministro do Trabalho. Ele vinha com aquela prática dele da Quarta Delegacia Auxiliar. Depois, outro que era também da polícia: Luís Augusto de Rego Monteiro. Corporativista,

11 O físico José Leite Lopes, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). e da Faculdade Nacional de Filosofia Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 13 de 31 muito católico,tinha sido delegado de polícia. Foi para o Ministério do Trabalho. E vou te dar agora um nome curioso. O meu primeiro chefe chamava-se Francisco Eulálio do Nascimento Silva Filho. Era pai desse que foi ministro da revolução, muito amigo do , o Luís Gonzaga. Luís Gonzaga Nascimento Silva. Era pai desse. Tinha sido também delegado de polícia, e foi ser exatamente presidente de uma das comissões mistas de conciliação. Você vê como é curioso isso, não é mesmo? Eles traziam aquela prática da polícia de antes de 30. De modo que você vê que o Getúlio não era tão anjinho como se pensa, não. José Sérgio: E o senhor entrou lá através... Evaristo: Do meu pai, que era muito amigo do Salgado Filho. Porque meu pai foi revolucionário de 30. A revolução de 30 teve essa virtude. Ela não foi uma revolução de profundeza. Eu digo isso nos meus livros. O próprio Joaquim Pimenta, que foi revolucionário, ele fala nisso. Foi uma revolução de superfície, de oligarquias, simplesmente briga de elites. Não mudou nada. Mas de qualquer maneira, foi um pouco mais nacionalista. Criou dois ministérios, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e o Ministério da Educação e Saúde. Ela não reformou propriamente. Mas de qualquer maneira, significou um avanço. Agora, o bem da revolução é que ela levou para o Ministério do Trabalho todos os antigos líderes socialistas. Convidou Maurício Lacerda para ministro. O Maurício não aceitou. O Maurício não aceitou ser ministro do Trabalho. Mas o Maurício fez o mesmo papel em 30 - veja como a vida é curiosa - que o Carlos Lacerda vai fazer em 64. Ele é que foi pela América do Sul fazendo a propaganda da revolução. O Maurício de Lacerda foi a Buenos Aires, foi a Montevidéu falar sobre a Revolução de 30. Porque houve uma Revolução de 30 também na Argentina. Em 30 também houve uma Revolução na Argentina. Isso é que é curioso. Então, Evaristo de Moraes foi o primeiro consultor jurídico do Ministério do Trabalho. Ele é que fazia quase tudo para o Collor, não é? Mas o Collor é que escrevia. Meu pai dizia que era um jovem muito inteligente. E meu pai emprestava os livros, conversava com ele... Levou Evaristo de Moraes, Agripino Nazaré, Carlos Cavado, Deodato Maia, Joaquim Pimenta... Essa gente toda no Ministério do Trabalho. E os patrões ficaram assustados. E o Getúlio então, nos primeiros discursos... Você pega a política trabalhista de Getúlio, aquelas edições de 38, publicadas pelo José Olympio, saíram pelo José Olympio, aqueles volumes todos do Getúlio; você vê lá o discurso dele, por exemplo, de Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 14 de 31

3 de janeiro de 31. Nesse dia fazia um ano de posse da Revolução. Ele então fala sobre a política trabalhista; depois em 32 também. E nesses discursos você vê que o Getúlio se coloca logo entre as duas classes. Ele levanta desde então a bandeira da conciliação do trabalho e do capital. “Os dois são indispensáveis...” – esse linguajar que você está cansado de ouvir! “Os dois são indispensáveis à produção nacional e não-sei-o-quê...” Ele levanta a bandeira da conciliação. Ele não toma partido dos trabalhadores, não. E mais tarde, em 33, quando ele começa já a Constituinte, ele praticamente acaba com o Tenentismo. Porque os tenentes, na época, representavam um movimento, mais ou menos, para-socialista. Inclusive o Juarez Távora foi do Partido Socialista, em 32. O Plínio Salgado chegou a ser de um partido. Aí, quando viu que era socialista, pulou fora e fez o Manifesto Integralista, em 32. Você vê que porre ideológico era isso! A Igreja, o Integralismo... José Sérgio: Na Faculdade de Direito, onde o senhor entrou, também havia esse... Evaristo: Ah, havia! Nesse momento, por exemplo, dominava a esquerda. O grande líder... O único retrato de professor que eu tenho na minha mesa de trabalho é de Edgardo de Castro Rebelo. Baiano, Edgardo de Castro Rebelo era marxista e escreveu um livro, “Mauá, restaurando a verdade”, contra aquele livro do Alberto Faria. Nós tínhamos duas matérias só, no primeiro ano: Introdução à Ciência do Direito, cujo professor Castro Rebelo; e Economia Política, do Leônidas de Resende, que escreveu um livro grosso, deste tamanho, “A Formação do capital e seu desenvolvimento”. Foi a tese dele. O Leônidas ganhou o Alceu em 32. O Alceu veio com uma tese de Antropologia, “Economia pré-política”. José Sérgio: Alceu Amoroso Lima? Evaristo: É. “Economia pré-política”, em 32. E realmente era de uma grande erudição, mas baseada na escola histórico-político-cultural austríaca, alemã, do deus único, contrário ao evolucionismo e assim por diante. A matéria não era Economia Política. A do Leônidas, não. “A Formação do capital e seu desenvolvimento”. Um livro grosso, e tal. Ganhou. E entra o Hermes Lima, que vinha de São Paulo. Em 34, começa a dar aulas o Hermes Lima. Tinha um positivista lá, meio socializante, o Hahnnemann Guimarães, que morreu como ministro do Supremo. O outro, também, era Luís Carpenter, socialista. Luís Carpenter. José Sérgio: Já era ali onde é hoje a Faculdade de Direito? Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 15 de 31

Evaristo: Onde é hoje a UNE, na Rua do Catete. Em 38 é que saiu dali. Começou a ser na Moncorvo Filho, número 8, exatamente no ano de 1938. A minha turma foi a última turma. Eu me formei em 37. Em 37 foi na Rua do Catete. Depois mudou-se e ali ficou sendo a Faculdade do Rio de Janeiro, UERJ depois. Mas então, o Castro Rebelo era o mentor da Faculdade. E tinha também um pessoal integralista. Eu vivi a luta exatamente de 32... Eu entrei para a faculdade em fevereiro de 33, e em 37, quando eu me formei, foi exatamente a luta entre comunismo e integralismo. E o chefe integralista na faculdade de Direito era o... Delamare. Alcebíades Delamare. Era um homem que escreveu uma biografia maluca sobre Cristóvão Colombo. Mas era um integralista danado. Esse era livre-docente. E havia lá os integralistas. Como Getúlio, naquela época, estava dando mão forte aos integralistas, principalmente depois de 35, até 37, eles iam para a faculdade de camisa verde, faziam baderna. E havia também um movimento que durou pouco, do qual vocês têm pouca notícia, mas que era mais ou menos para-integralista: o patrianovismo. Esses patrianovistas eram realistas, monarquistas. Agora, ultimamente, quando andou se falando em monarquismo, andou se falando um pouquinho de novo em patrianovismo. Então, o patrianovismo era uma linha auxiliar do integralismo. E havia muita briga, muita luta. Aí a gente se reunia, os sindicatos... De repente, “- lá vem a polícia!”, e todo mundo saia correndo. Então, daí o meu interesse pelo movimento sindical, pelo movimento socialista, pelos trabalhadores. Veio daí. E eu comecei a estudar. Ah, havia um outro socialista também no Ministério do Trabalho, que escreveu um livrinho que vale a pena você ler. É de 33, o livro dele. Francisco Alexandre. O Francisco Alexandre era velho socialista também. Foi no livro dele que eu li pela primeira vez sobre o Congresso Socialista de 1906. Depois eu me aprofundei, mas ele dá a relação. Acho que ele tomou parte, até. De modo que desde ali eu comecei. E fiquei na Comissão Mista de Conciliação de 34 até 41. Eu me formei em 37. Mesmo formado, eu ainda era secretário. José Sérgio: Depois de 38 havia conciliação, ainda, com o Estado Novo? Evaristo: Havia, mas mudou a Intendência. A Comissão Mista existiu até 41, quando foi criada a Justiça do Trabalho. Criada a Justiça do Trabalho, as Comissões Mistas desapareceram. A Justiça do Trabalho foi criada, entrou em vigor, em primeiro de maio de 41. E desde que o Getúlio criou as Juntas de Conciliação e Julgamento, com esse mesmo nome que tem hoje... Foi em 22 de novembro de 32. Era um presidente Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 16 de 31 bacharel, um vogal empregado e um vogal empregador. Na Comissão Afonso Arinos, da qual eu fiz parte em 86, 87, eu acabava com os classistas. É um absurdo, isso. Isso é corporativismo, isso é um absurdo. E você sabe que os representantes classistas, temporários, conseguiam aposentadorias como se fossem magistrados de concurso, com salários de magistrados? É um absurdo! Os pelegos! Você já ouviu falar em Ary Campista, que foi ministro do Tribunal Superior do Trabalho? Ele e muitos outros. Então, esses pelegos eram juízes do Trabalho e foi criado o imposto sindical, em 40, já no Estado Novo... Evaristo: O Estado Novo deturpou inteiramente com o movimento sindical. Porque a Constituição de 37 foi mais ou menos copiada da Carta de Lavoro de 27, de Mussolini. E botou a greve como crime. Veio o código penal de 1940 e felizmente um socialista tomou parte no código, que foi o Roberto Lira. José Sérgio: Roberto Lira? Evaristo: É. O Roberto Lira, o Nelson Hungria e um outro que eu não me lembro o nome agora. Eram três. Quem fazia a exposição de motivos dos códigos, que vale a pena você ler para ver como ele coloca a greve como motivo anti-social, como crime? Francisco Campos. Ele fazia a exposição de motivos desses códigos todos. Então o movimento sindical cessou. Cessou porque o Estado Novo não brincava em serviço; a greve era proibida como movimento anti-social, nociva à produção nacional e assim por diante. Isso em 37. E fizeram logo uma lei sindical referendando, ratificando esse entendimento. É o decreto-lei. Aí já é decreto-lei, porque no Estado Novo, o Getúlio, pelo artigo 180 da Constituição de 37, o Getúlio podia suprir... Ele fechou a Câmara e o Senado, durante o Estado Novo, durante oito anos, de 37 a 45. Não houve Câmara, nem Senado. E o Getúlio, pelo artigo 180, ele podia legislar. Então, com fundamento no artigo 180... Chamava-se decreto-lei. Durante o Governo Provisório os atos do Getúlio, do chefe de Estado, chamam-se decreto. No Estado Novo, até 45, chama-se decreto-lei. E então, o 1.402 de 05 de julho de 39 – é o meu aniversário, 05 de julho, de modo que é fácil guardar a data. 05 de julho de 39. Esse decreto-lei, 1.402, é ultra-reacionário, fascista. E as eleições sindicais... A lista dos candidatos tinha que ir para o Ministério. O Ministério mandava para o DOPS. Se o sujeito fosse suspeito de alguma coisa, saia da lista. Essa lei criou o chamado “atestado negativo de ideologia”. Você tinha que provar Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 17 de 31 que não constava nada contra você, que era um bom moço. Foi um absurdo. Aí foi uma sufocação do movimento sindical... José Sérgio: E o senhor assistiu dentro do Ministério do Trabalho? Mudou muito a composição? Evaristo: Totalmente. José Sérgio: Essa pessoas saíram? Aqueles antigos líderes... Evaristo: O meu pai saiu logo em 32. O Pimenta continuou, mas sem forças; o Agripino também continuou sem forças; o Deodato Maia morreu; Cavado pediu demissão... Mudou inteiramente. Quem é que vai ser diretor do Departamento Nacional do Trabalho? Luís Augusto de Rego Monteiro, antigo delegado de polícia. Diretor do Departamento Nacional do Trabalho! Aí você vê como a coisa mudou. José Sérgio: O Oliveira Vianna... Evaristo: Quem é que vai ser consultor jurídico, substituindo meu pai, de 32 a 40, exatamente durante o Estado Novo, que fez o 1.402, que fez a Justiça do Trabalho de 39, classista? Porque essa Justiça é corporativa, classista. Isso é um absurdo. Porque esses pelegos se vendem ao capital, procuram estar sempre bem com o Governo... Porque quem escolhe, quem nomeia é o Governo. Então essa gente não tem autonomia deliberativa, de modo que é um absurdo a Justiça do Trabalho continuar corporativa. É caríssima, eles recebem um dinheirão e em geral decidem com o presidente. Eles não têm a competência. O que é pior no Tribunal Superior, com 17 membros, seis classistas. O que é que eles vão discutir de Direito? Mas afinal de contas, mudou inteiramente a feição. Desapareceu o movimento social, sindical, e entramos praticamente no fascismo, no corporativismo fascista. O diretor do DNT é o Luís Augusto de Rego Monteiro, e criam-se várias divisões... Por exemplo, há uma divisão DOAS, “doas a quem doer”,eles diziam de deboche. DOAS quer dizer Divisão de Organização e Assistência Sindical. Então, tinham os assistentes sindicais que assistiam as assembléias sindicais. Tomavam parte nas assembléias, ficavam lá sentados. Quer dizer, um pobre diabo que fosse mais afoito, que falasse mal do Governo, era logo preso, era fichado e tal. De modo que era uma assembléia de cordeiros, bem comportados, com pelegos e tal. E esse assistente sindical fazia relatório ao Ministério do Trabalho, ao Departamento Nacional do Trabalho. E todo primeiro de maio havia a festa comemorativa do trabalho, com Getúlio. As tais homenagens promovidas. O Ministério pagava. Porque antes de 42, de Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 18 de 31 ser cobrado o imposto sindical, os sindicatos viviam. No meu projeto de 86, do Afonso Arinos, eu acabava com o imposto sindical. Mas o Sarney não mandou o projeto para a Câmara, não. E até hoje a Constituição de 88 mantém indiretamente o imposto sindical, o que é um absurdo. É uma boa Constituição, é avançada em certos pontos, mas mantém. Então, o imposto sindical cria o pelego. Cada trabalhador paga um dia de trabalho, para o imposto. E para os profissionais liberais e as empresas, eles têm lá uma tabela. Agora você vê, de 38 a 42 os sindicatos resistiram. Faziam greves, convenções coletivas, conseguiam muitos associados, contribuições e iam vivendo. E você vê que só agora, depois de muitos anos é que ainda está se reformando... O Almir Pazzianoto acabou com essa história do atestado negativo de ideologia. Acabou com muita coisa, mas não acabou com tudo. Não pôde acabar com tudo, mas acabou com muita coisa. Intervenção sindical... O artigo 528 da Consolidação... Você pega o artigo 528 e você vê. Se sobre um sindicato aparecer qualquer suspeita, o Ministério intervém. E por tempo indeterminado. A Revolução de 64 se serviu desse artigo. E houve mil e tantas intervenções. De maneira que nós tivemos um movimento sindical pujante, mais anarquista, anarco-sindicalista até 30... No Congresso de 06 saiu vitoriosa a tendência anarquista. Desconfiavam muito dos socialistas. O meu pai, coitado, era socialista. Ele achava que através de leis podia-se fazer a reforma social, através de deputados, de Congresso... Os anarquistas não queriam nada com o Estado. José Sérgio: O senhor foi fazer Direito influenciado pelo seu pai? Evaristo: Ah, claro! O mais engraçado... Eu fiz enganado. Eu gosto mesmo é de ciências, da Sociologia, da Filosofia... Tanto é que eu não advogo. Eu nunca advoguei. Eu era secretário das Comissões Mistas. Quando Getúlio terminou, em 41, com as Comissões Mistas, me nomeou procurador da Justiça do Trabalho. Acabou com a Comissão e eu fui automaticamente... José Sérgio: O senhor já era formado, né? Evaristo: Eu já era formado e fui para a Bahia. Fiquei um ano na Bahia, como procurador da Justiça do Trabalho. De 41 a 42. Depois, vim para o Rio. Agora, como eu era contra o Getúlio... Eu escrevi o “Sindicato Único” onde eu critico duramente o Getúlio. José Sérgio: E o senhor fez esse livro a partir da experiência que o senhor tinha no Ministério do Trabalho? Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 19 de 31

Evaristo: Ah, exato. Eu conhecia todos eles. José de Segadas Viana, que era diretor do DNT, foi um dos autores da Consolidação também; o Alexandre Marcondes Filho, que foi ministro do Trabalho. Até o golpe de 45, o Marcondes Filho foi ministro do Trabalho. Então, eu fiz com essa minha experiência. E eu conhecia por dentro dele, como era a podridão da intervenção sindical, da polícia, não havia movimento sindical livre, o peleguismo e assim por diante. Essa deturpação toda que se viu até há pouco tempo, e que agora está se alterando. José Sérgio: O senhor como procurador, era na Justiça do Trabalho? Evaristo: Justiça do Trabalho. E em geral. Mas eu trabalhava era com trabalhador mesmo. José Sérgio: E como é que o senhor dividia a vida profissional no Ministério e a vida universitária? Evaristo: Era muito fácil, porque meu pai, quando pediu ao Salgado Filho um emprego para mim, porque eu era muito garoto... O meu pai era desquitado da minha mãe, e eu morava com minha mãe lá em Inhaúma. Uma vida pobre... Eu só tive dois ternos antes da minha vida universitária. O terno de casimira estava tão queimado de suor... Mandava-se lavar um terno naquela época por seis mil réis. Era mil réis. O Cruzeiro começou em 42. Então, eu não fui buscar o terno. Não valia a pena! (risos) Eu usava chapéu. O estudante era obrigado a ir à aula de gravata. A gente ia de paletó, gravata, chapéu. Eu usei chapéu até trinta e tantos. Eu tinha um chapéu de pano e um chapéu de palha. A gente ia à aula assim. Era muito engraçado. Você vê retratos de estudantes daquela época, estão todos vestidos assim. Eu morava com mamãe. E meu pai disse ao Salgado Filho: “- Arrume um emprego para o rapaz – o rapaz era eu – em que ele possa continuar estudando.” Eu não tinha ponto nem horário. Eu nunca tive ponto nem horário. De maneira que eu ia na Comissão Mista todo dia. Funcionou no edifício d’A Noite. No sétimo andar do edifício d’A Noite. Eu tinha uma chave da porta. Eu ia lá todo dia e fazia as atas da Comissão, convocava as reuniões, aquele negócio todo. E estudava. Eu freqüentava muitas aulas. As aulas eram de manhã. Hoje eu só saio da cama às oito e meia. Mas também, eu só vou dormir à uma hora. Mas naquele tempo a aula era oito ou nove horas da manhã. E fui um bom estudante. E com a influência do Castro Rebelo. O Castro Rebelo é curioso. Porque ele foi professor do Osvaldo Aranha. Então, o Aranha o colocou no Conselho Nacional do Trabalho. Ele foi do Conselho Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 20 de 31

Nacional do Trabalho, que hoje é o Tribunal Superior do Trabalho. O Castro Rebelo foi do Conselho. De modo que eu, com a lição do Castro, com a lição do Leônidas na faculdade, eu escrevi um estudo que foi minha estréia literária numa revista da faculdade chamada “Idéia”. Era escrito com letra vermelha, maiúscula. Eu escrevi “Marx e a Sociologia contemporânea”. Começava citando logo o Sorel, George Sorel. Dizendo que enquanto o pessoal vive cego no meio do espaço, a sociologia marxista enxergava, explicava e tal. E tinha lá na Comissão Mista de Conciliação um representante de um empregador que era um grande construtor civil, Eduardo Vasconcelos Pederneiras. Essa construtora dele desapareceu há uns dez anos. Eduardo Vasconcelos Pederneiras. E o Eduardo Pederneiras era um sujeito magrinho, alto, e era um menino, um rapaz. E eu era tão ingênuo que dei o ensaio para ele ler. Dei a revista para ele ler. Distribuí. Ele disse: “- Isso parece com o seu pai. Isso é um estudo comunista!” Eu ainda tenho aí a revista. Foi meu primeiro ensaio, em 1934. Depois escrevi outro: “Nós e a espiritualidade”, no qual eu combatia aqueles que diziam que o marxismo era um puro materialismo, era puro estômago. E cito um trecho muito bom, que você pode procurar rever no “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, de Engels. Ele define o que é ideologia; ele diz que a ideologia, uma vez criada, reage sobre a base. E não seria ideologia se ela não tivesse vida própria. De modo que ela reage sobre a base, e não é só dizer que a base econômica é tudo, não. Então, eu fiz esse trabalho também na revista Época. E continuei sempre nesse sentido. Em 37, na Idéia, eu publiquei um estudo que eu acho que foi o primeiro no Brasil sobre Sociologia do Conhecimento. “Marx e a Sociologia do Conhecimento”, que eu também tenho aí. Porque você sabe que o Karl Mannheim se baseou muito em Marx, não é? E eu citava principalmente aqueles estudos do Marx de 1844, “Os manuscritos de 1844”, em que ele defende o homem é o produto de suas relações sociais. Eu citava isso. E pensava que ia ser preso. Eu e o Délio Maranhão, que agora está muito doente12. Meu colega de turma, Délio Maranhão, foi um grande juiz do Trabalho. Foi o maior juiz do Trabalho que nós já tivemos. Ele está à morte. Está muito mal. Délio Barreto de Albuquerque Maranhão. Grande amigo meu. E o Délio e eu fomos diretores da Idéia. E eu dizia: “- Nós vamos ser presos a qualquer momento!” Mas não sei por quê não fui preso. Eu até quando me refiro a Marx, eu digo brincando “aquele senhor barbado”. E daí a minha

12 Délio Maranhão veio a falecer em 1996. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 21 de 31 inclinação e as minhas idéias por esse movimento, por esses estudos. José Sérgio: O senhor foi se chegando para a Sociologia dentro da Faculdade de Direito? Evaristo: Dentro da Faculdade de Direito, exato. Engraçado, o primeiro livrinho de Sociologia que eu li foi uma Sociologia, vamos dizer, formalista. O livro é interessante, mas é anti-marxista. É do Leopold von Wiese, da Escola de Colônia. “Sociologia, História e principais problemas”. Saiu tradução espanhola em 33, na Labor. E eu comprei. O histórico é bom. Ele e o Simmel – de quem eu organizei uma coletânea para a Ática - ele e o Simmel são os chefes . O Simmel morreu em 1918. Mas eles criaram o que ele chamava Beziehungslehre_. A escola acho que era a da Teoria das Relações Sociais. Então ficou uma coisa muito formalista, uma coisa muito abstrata. Basta dizer que em um livro que eu tenho aí, “Sistema de Sociologia Geral”, do von Wiese, deste tamanho, ele pretende relacionar todos os tipos de relações sociais. Chega a seiscentos e tanto. É um absurdo! O Simmel, não. O Simmel dá, por exemplo, relação de subordinação, relação de coordenação. Então, ele dá tipos abstratos de relações, dentro das quais cabem vários conteúdos concretos. Por exemplo, subordinação: O capitão e o soldado no Exército; o patrão e o empregado; antigamente, o marido e a mulher, pai e filho. E vai por aí afora. É uma relação de subordinação. E vários exemplos históricos concretos entram nesse tipo. Coordenação: é do mesmo nível. Sócios em uma sociedade; os irmãos... E assim por diante. Foi meu primeiro livro. Depois continuei estudando. Criamos na Faculdade de Direito uma Sociedade de Sociologia. José Sérgio: Entre os estudantes? Evaristo: Só estudantes. José Sérgio: Quer dizer, os estudantes tinham um peso grande nessas instituições, na publicação de coisas... Evaristo: Ah, tinham. Você não imagina. Fazíamos comícios à vontade... Você passa por lá, tem aquele portão de ferro. A única entrada daquele prédio é aquele portão de ferro. Nós amarrávamos com cadeado e a polícia não podia entrar. Nós ficávamos lá dentro e a polícia não podia entrar. José Sérgio: E aí o senhor resolveu fazer faculdade de Filosofia... Evaristo: Então, me formei em Direito em 37. Já gostava de Filosofia. Havia na faculdade uma revista chamada A Época. Eu fui diretor quatro anos da seção de Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 22 de 31 filosofia, dessa revista A Época. O meu primeiro artigo foi criticando a filosofia anti- intelectualista de hoje. Era o Conde von Keyserling_, era essa gente toda mística. Eu metia o pau neles. A filosofia anti-intelectualista de hoje. Foi logo o meu primeiro artigo. E nisso, com o Estado Novo, em princípios de 39 e fins de 38... Em 35 foi criado no Brasil a Universidade do Distrito Federal, a UDF, do Anísio Teixeira, do Castro Rebelo, do Hermes Lima... O Castro foi diretor de uma faculdade, o Hermes Lima foi diretor de outra, o Anísio Teixeira... Então, eles acabaram com a UDF e criaram a Faculdade Nacional de Filosofia, cujo primeiro vestibular foi na Praia Vermelha, No antigo prédio da Faculdade de Medicina.. Não existe nem mais o prédio hoje. E eu então fiz vestibular para Filosofia em abril de 39,já formado em Direito. Meu pai ainda estava vivo. Meu pai vai morrer em junho de 39, de repente. Tirei primeiro lugar, em Filosofia. Tenho prova disso. José Sérgio: E o senhor fez o curso todo de Filosofia? Evaristo: Fiz, mas interrompi muito tempo. Porque meu pai morreu em junho de 39; minha mãe em dezembro de 39. Dois golpes na cabeça no mesmo ano. José Sérgio: E o senhor tinha irmãos? Evaristo: Tinha. O Jorge Moraes, que foi meu assistente na Faculdade de Direito, ainda está vivo13. Um, o Paulo, que morreu em 85. Minha irmã Ivonete, que está viva. E esse meu irmão Evaristinho14 é filho de outra mãe. Ele nasceu em 09 de abril de 33. Mas essa senhora viveu com meu pai por dez anos e foi uma boa amiga dele, uma boa mulher. E eu gosto dele, ele é meu amigo. Essa confusão toda dos nossos nomes... José Sérgio: O senhor disse então que parou, com a morte de seu pai. Evaristo: Parei o ano de 40; em 41 fui nomeado procurador da Bahia. Fui para a Bahia e voltei só em 43. Me casei em dezembro de 43. Vou fazer bodas de ouro agora no dia 23, se Deus quiser. Me casei em 23 de dezembro de 43 e sou muito feliz. José Sérgio: E “O Problema do sindicato único no Brasil”? Era uma tese? Evaristo: Era uma tese. Eu ia fazer... José Sérgio: Era para a Faculdade de Filosofia ou era para a Faculdade de Direito? Evaristo: Era para a Faculdade de Direito. José Sérgio: Era a tese de livre-docência?

13 Morreria em 1999. 14 Falecido em 1997. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 23 de 31

Evaristo: Era a tese de livre-docência. O Getúlio estava no poder. O Getúlio ficou de 51 a 54. Eu levei 16 anos para ser promovido a procurador de primeira categoria. Eu fui nomeado em 41 para segunda categoria, e só fui promovido em maio de 57. Fui promovido por antigüidade. Eu já era professor e tudo. Ia sempre na lista por merecimento, e fui promovido por antigüidade, porque não poderia deixar de ser. Era o _Parsifal Barroso o ministro. Fui falar com o Castro Rebelo e ele me disse: “- É bobagem você fazer essa tese, porque você está atacando aí um presidente e tal...”. E na faculdade, o diretor era um sujeito do PTB, Luís Costa Carvalho. O Costa Carvalho, que morreu com noventa e tantos anos. O Costa Carvalho era advogado do PTB e diretor da Faculdade de Direito. Colega de turma do Castro. Eles não se gostavam. Ele disse: “- Você vai fazer essa tese, vão te reprovar”. Eu então não fiz, e fiz outra tese: “A Justa causa na rescisão do contrato de trabalho”. Fiz uma tese técnica. Eu já era procurador, tinha muita experiência de rescisão de contrato de trabalho. Recolhi a tese do “sindicato único” e fiz o concurso de livre-docente de Direito do Trabalho em março de 53. Briguei com a banca... A banca era boa. Tinha o Santiago Dantas, o Arnaldo Menezes da Fonseca, o Djacir Menezes, presidido pelo Hermes Lima, o Joaquim Pimenta e um sujeito que não gostava de mim, que me perseguiu, que era o Oscar Stevenson, professor de Direito Penal. O Santiago me elogiou muito, tirei distinção e tudo. O Santiago já estava mudando, já tinha deixado o integralismo. José Sérgio: E o senhor já era professor nessa época, de alguma das faculdades? Evaristo: Ah, era. Porque o Hidelbrando Leal, muito vivo, pegava os alunos do último ano, eles começavam a ensinar e ele recebia! Então, em 49, no último ano de licenciatura, comecei como auxiliar de ensino a dar aulas de Sociologia no curso de Jornalismo, na Faculdade de Filosofia. Era naquele salão grande. Todo mundo queria ser jornalista... Depois, fui ensinar no segundo ano de Filosofia, que também tinha aula de Sociologia. Mas então, em 50, 51 eu comecei a ensinar Sociologia no segundo ano do curso de Filosofia. Dava provas, dava nota, dava tudo. E quando eu quis fazer a docência de Sociologia – que foi em dezembro de 55, na Faculdade de Filosofia, na Casa de Itália – eu pedi certidão disso tudo. Fiz a docência de Sociologia em dezembro de 55. Porque podia fazer docência aquele que tivesse cursado a disciplina. E eu tinha cursado a disciplina de Sociologia. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 24 de 31

José Sérgio: Quer dizer, aí o senhor ficou entre a Faculdade de Direito e a Faculdade de Filosofia, né? Evaristo: Aí fiquei entre os dois. Em dezembro de 57, então... Pimenta fez em 56 setenta anos e caiu fora. E eu fui nomeado interino. Era livre-docente de Trabalho. Fui nomeado interino lá na Faculdade de Direito. Aí, em dezembro de 57 eu fiz a cátedra de Direito do Trabalho. Então fiquei catedrático de Direito do Trabalho de 57 pra cá e livre-docente lá na nossa, de Sociologia. E ensinava. Depois, em 58 é que foi o grande passo. Isso é que é engraçado. Vai caber a um homem que era da UDN... Não era muito reacionário, não. Do ponto de vista teórico, não era, mas nas suas ações, ele era. Era meu amigo. Você sabe que existia na UNESCO aqui na América três órgãos: a FLACSO, no Chile, que era a faculdade, a escola; o Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, que era no Rio de Janeiro, na Avenida Pasteur; e no Uruguai, em Montevidéu, era o Comitê Administrativo. Temístocles Brandão Cavalcante fazia parte desse Centro Administrativo. O Temístocles era especialista em Ciência Política, ele gostava muito de Ciência Política. Catedrático de Direito Administrativo da Faculdade de Ciências Econômicas, onde o Costa Pinto foi catedrático. O Temístocles foi diretor 15 anos, lá. Em 51 ele apresentou um projeto no Conselho Universitário criando o Instituto de Ciências Sociais. E foi bem planejado. O Instituto de Ciências Sociais foi o primeiro instituto multidisciplinar, interdisciplinar, e deixou de ser instituto de cátedra. Porque antes, cada catedrático era dono do seu minifúndio. Deolindo Couto era dono do Instituto de Neurologia, o Deolindo Couto era dono do Instituto de Psiquiatria, o Clementino Fraga do Instituto de Nutrição, e assim por diante. O dele, não. Esse Instituto era dirigido por um comitê formado por sete professores eleitos pelas Congregações. Dois da Faculdade de Ciências Econômicas: Costa Pinto e Temístocles Cavalcante; dois da Faculdade de Filosofia: o e o Victor Nunes Leal; dois da Faculdade de Direito: eu e Irineu de Albuquerque Melo; e um do Museu Nacional: o Luís Castro Faria – que faz anos comigo, dia 05 de julho. Então você vê que era interdisciplinar e desses sete saía o presidente do Instituto. E era proibida a reeleição. Então, havia continuidade burocrática pelos sete. Cada ano era um diretor. Foi fundado a 26 de dezembro de 58. Levou de 51 a 58 no Conselho Universitário. O Temístocles lutou muito para isso sair. Parece mentira. Em 58 saiu. Inauguramos no gabinete Pedro Calmon, ali na Praia Vermelha em 26 de dezembro de Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 25 de 31

58. E você vai ficar admirado de quem é que estava presente: o senhor Eremildo Viana. O cachorro estava ali presente... Naquele tempo ele se metia a bom moço. Aí, começamos a funcionar na Faculdade de Filosofia mesmo; depois, uma sala alugada no IBGE; depois no Piauí 72, no Edifício Piauí, na Almirante Barroso, 72; e depois, em 61, mudamos para a Marquês de Olinda 64, porque a Faculdade de Ciências Econômicas mudou para a Praia Vermelha. E ficou ali até 70, setenta e poucos. Até ir para onde vocês estão. E nesse Instituto eu fui diretor quatro vezes. Porque 58, 59, foi o Victor Nunes Leal, professor de Ciência Política na Faculdade de Filosofia, e eu, vice- presidente. O Victor era chefe da Casa Civil do Juscelino. Então, quem presidia era eu. Em 60, eu fui eleito presidente. Quando ele foi fechado, em 68, depois da intervenção fizeram um galpão nos fundos dele ali na Rua Marquês de Olinda – o galpão foi feito em meses – e foi dissolvida a Faculdade de Filosofia, era reitor o Raimundo Moniz de Aragão, que não é flor que se cheire. E então era presidente a Marina Vasconcelos. A Marina Vasconcelos foi a última presidente do Instituto. E foi o primeiro presidente do IFCS, o Djacir Menezes. Veio para o IFCS, porque eram três departamentos... O Moniz Aragão dizia: “dividir para reinar”. Porque a Faculdade de Filosofia parava o tráfego! Então, os reacionários começavam a gritar. O Carlos Lacerda, aquela turma toda. “ – Uma faculdade no centro da cidade é um absurdo...” Então eles dividiram: Instituto de Física, Instituto de Matemática, e o nosso trouxe Ciências Sociais, História e Filosofia. Transformou-se em IFCS. Resultado: naquele momento acabava a pesquisa em ciências sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E por muitos anos. Porque o nosso Instituto só fazia pesquisa, não tinha ensino.. Como nenhum de nós era matemático, nós tínhamos uma matemática lá para fazer os modelos estatísticos, os modelos de pesquisa. Era a Vera Werneck. Era pesquisador lá o Luciano Martins; o José Pessoa de Queirós, que suicidou-se, jogou-se de um edifício abaixo, ali na rua da Carioca; o Maurício Vinhas de Queirós; a Stella Amorim.... Todos esses foram pesquisadores. E um sujeito que depois foi trabalhar no CNPq, o Ivan de Freitas. E eu consegui naquela época uma Rural Willys para os pesquisadores, porque eles iam às fábricas, iam a comícios e tal... Realizávamos congressos, seminários, pesquisas... E tinha um diretor de programa, que era para coordenar aquele pessoal. Nós tivemos dois. Todos os dois já morreram. Um era muito bom. Em 51 ele teve que fugir do Brasil, era de esquerda. O outro era católico, mas também era um homem de bem. O primeiro foi Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 26 de 31

Tomás Pompeu Acioli Borges. Era um sujeito alto e tal. Cunhado do Juraci Magalhães. O Juraci está vivo ainda aí. Tomás Pompeu Acioli Borges. Morava aqui perto. Foi o primeiro diretor de programas. Economista. Depois foi para a FAO. O segundo foi o Manuel Diegues Júnior. Um bom homem. Professor de Sociologia da Católica. Era católico, mas um homem decente, bom mesmo. Basta dizer que quando a Marina morreu, só dois professores foram ao enterro dela. O Gilberto Velho diz que lembra isso. Eu e o Diegues. Mais ninguém. Ninguém mais compareceu. A Marina, coitada, o enterro foi num domingo, um sol danado, estavam lá alguns poucos alunos, a Hortênsia, o Gilberto Velho... Só fomos eu e o Diegues. Mas esse Instituto foi uma experiência formidáve!. Publicávamos uma revista, que você conhece. Uns quatro ou cinco números. Colaboravam todos. Também representou o Museu Nacional um sujeito de valor, que é o Roberto Cardoso de Oliveira. Foi presidente do Instituto também. Depois foi para Brasília. E publicávamos umas monografiazinhas. O Melatti. Fez um trabalho sobre índios, saiu lá. Aquele trabalho sobre o Matarazzo, do José de Souza Martins, é lá do nosso Instituto. Um trabalho sobre mudança social, do Costa Pinto, é lá do nosso Instituto. José Sérgio: Havia relação com a sociologia de São Paulo? Evaristo: A gente trazia gente para cá. Não a sociologia da Escola de Sociologia e Política, mas o Florestan Fernandes, por exemplo, veio. Fizemos um simpósio aqui com Florestan, lá no Instituto. E mantínhamos contato. Houve um congresso... Eu fui vice- presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia. O Florestan, presidente. Isso foi em 1962. Florestan presidente; eu, vice-presidente. O Otávio Ianni, o Fernando Henrique Cardoso... Eu examinei dois concursos de Sociologia. Um foi o do Ruy Coelho. Eu examinei a docência dele em 1962. Ele fez uma tese sobre Augusto Comte. Ele era da cadeira do Fernando Azevedo. Depois foi diretor da Faculdade de Filosofia de São Paulo. E examinei em junho de 64 a cátedra do Florestan Fernandes. José Sérgio: “A Integração do negro na sociedade de classes”... Evaristo: Uma tese desse tamanho, um tijolo assim! E ele estava com medo de ser preso, porque estava muito visado. Presidente da banca: um grande sujeito, Sérgio Buarque de HolandaVeio o Thales de Azevedo da Bahia, eu, ele, aquele filósofo de esquerda, eu tenho um livro dele aí, “A História das idéias no Brasil”... José Sérgio: O Cruz Costa? Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 27 de 31

Evaristo: O Cruz Costa, o João Cruz Costa. Então, examinei o Florestan Fernandes. É um grande sujeito, gosto muito dele até hoje. E você vê a coisa como fervia...! José Sérgio: O senhor dava Sociologia Industrial nessa época? Evaristo: É, eu mudei o nome para Sociologia do Trabalho. A princípio eu dava Sociologia Geral e depois mudei para do Trabalho. Aí, quando veio 68, acabaram com o Instituto e em 69 eu fui preso. Saí preso dessa casa. Saí preso em junho de 69 e deixei o Instituto. E como eu era regente de cátedra, não era catedrático... Livre-docente, regente de cátedra, eu não era propriamente vitalício, não tinha direito ao cargo. De modo que saí de lá. José Sérgio: O senhor era catedrático na Faculdade de Direito? Evaristo: Na Faculdade de Direito. José Sérgio: Mas estava licenciado? Evaristo: Não estava, não. Porque a Constituição, em 67, permitia você poder fazer um contrato. Eu tinha um contrato na nossa de Filosofia. Aí a Vanda Torok fez tudo para ir para lá. A Vanda era formada em Geografia e História, com o Delgado de Carvalho, que foi quem a iniciou na coisa. O Delgado foi um conquistador danado. Era um velhote bonito e tal... Então ela fez tudo, me denunciou, aí eu deixei a Filosofia, em 69. Ela denunciou aquela gente toda e tal. Basta dizer que em abril de 69 foram demitidos 12 professores do Instituto de Filosofia. 12 professores! Da universidade foram demitidos ao todo, em todo o Brasil, 44 professores. A minha televisão ficava ali, e eu me lembro que eu... Aquele sujeito do repórter Esso, Gontijo Teodoro, deu. E eu prestei atenção. Desses 44 em todo o Brasil, só do nosso Instituto dava 12. Para você ver como era... Eu ainda não fui preso nessa época, não. Eu ainda consegui ir vivendo. Larguei o Instituto e fui vivendo. Me pegaram foi com o AI-5. Eu ainda fui colega do seu pai em 68 e 69, no Conselho de Pesquisa, o “Conselhinho” da Universidade. Fui colega lá do José Leite Lopes, no “Conselhinho”. Até que me pegaram em 69. Primeiro de setembro de 69 eu fui preso. Fui aposentado. Preso eu fui em junho de 69. E a Sociologia, você vê... A pesquisa... São Paulo distanciou-se muito do Rio de Janeiro. Distanciou-se muito. Porque aqui a pesquisa agora é que está voltando. Agora é que está voltando, com vocês. É outra geração. É outra geração muito diferente. Houve um hiato muito grande. Costa Pinto15, que era muito pedante, muito prosa, muito vaidoso, mas que era um

15 Luís Aguiar Costa Pinto, falecido em ... Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 28 de 31 homem de talento, em 65 foi embora do Brasil e nunca mais voltou. Levou uma aluna que é um doce de coco, a Sulamita. Era uma morena de cabelo preto. Ele foi trabalhar na ONU. Ficou lá no Canadá e até hoje está lá. Esse não voltou mais. Aposentou-se nas duas faculdades. José Sérgio: E o livro do Sindicato Único, ele saiu como livro então? Evaristo: Saiu como livro. Como saiu em 52, o Getúlio era presidente e eu atacava o Getúlio nominalmente, ele promoveu o Flores da Cunha procurador de primeira categoria do Rio Grande do Sul e não me promoveu. E o Guilherme Figueiredo recebeu sua promoção em um ano. Ele escrevia numa revista chamada “Diretrizes”, do Samuel Wainer. Uma boa revista. Então, ele escreveu lá uma notinha que eu tenho guardada. Ele disse: “- O Evaristo de Moraes Filho, como disse que a legislação social já existia antes de 30 e atacou o Getúlio Vargas não foi promovido, não-sei-o-quê...” E eu sempre fui perseguido. O Dutra não gostava de mim, me chamava de comunista, me mandou para a Bahia. Em 45, eu já casado, com uma filha, fui removido para a Bahia. Fiquei por dois anos, de 45 a 47. E fui servir na Biblioteca Nacional. Rubem Borba de Moraes, que já morreu, era diretor, me requisitou, eu fiquei no gabinete dele, ali encostado, na Biblioteca Nacional. Fiquei lá até 47. Depois voltei à Procuradoria, e assim por diante. José Sérgio: Quer dizer, quando o senhor saiu da Procuradoria é que o senhor pôde se dedicar integralmente à Universidade. Evaristo: Exato. Eu estava na Procuradoria, mas lá não tinha ponto nem horário. Ficava à vontade. Mas sempre com fama de comunista. No “ Sindicato Único” a minha tese era defender o sindicato único antes do fascismo. Porque ele não é fascista. Porque na França mesmo, Henri Capitant e Paul Cuche no fim do século passado já quiseram fazer o sindicato único, o chamado sindicato “obrigatório”. Eles iam além. Você exercia uma profissão e era obrigatoriamente sindicalizado. Daí eu chamar nesse meu livro o sindicato de “a gestalt da profissão”. A configuração da profissão, a forma da profissão. Uma solidariedade necessária, obrigatória. Nesse sentido, era revolucionário. Daí eu citar Maxime Leroy - que era um grande socialista francês - no começo logo do livro, dizendo que a unidade da profissão era igual à unidade do corpo. O circulismo católico foi contra. O Alceu Amoroso Lima, em 34, conseguiu a pluralidade sindical. Para ter o circulismo católico. E tinha o sindicato católico, o sindicato por empresa... Você Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 29 de 31 imagina o sindicato por empresa! A empresa pagava a sede do sindicato, pagava as despesas do sindicato... E assim por diante. Matava o sindicato, né? Você deve ter visto muito isto lá no Nordeste. O usineiro dominando o sindicato. José Sérgio: O Joaquim Pimenta, ele também defendia o sindicato único? Evaristo: Defendia. Ele tem um livro interessante, “Retalhos do passado”, são as memórias dele. E um outro livro, “A Sociologia do Trabalho”, que publicou em 43 numa coleção que eu dirigia. Ele não era reacionário, não,ele era socialista. José Sérgio: O senhor dirigia essa coleção nessa época, em 43? 16 Evaristo: Dirigia. Era co-editada por um editor de São Paulo, hoje eu acho que não existe mais. Era um sujeito foragido da Polônia, me esqueço o nome dele. Quem inaugurou a coleção, curioso isso, foi o Oliveira Vianna com “ Problemas de direito sindical”. E ele procurou negar o fascismo dele. Era 43, a coisa já estava virando e ele procurou negar. O segundo volume foi “Sociologia Jurídica do Trabalho”, do Pimenta; depois o terceiro foi um livro já de Direito do Trabalho, Dorval Lacerda, “Renúncia do Trabalho”. José Sérgio: E o senhor resolveu editar o livro na época porque achava oportuno... O momento era oportuno de fazer uma revisão... Evaristo: Ah, é. Porque ainda estava em vigor a Constituição de 46. E estando em vigor a Constituição de 46, como é que nós tínhamos ainda o imposto sindical? Como é que nós tínhamos ainda a intervenção sindical? De maneira que eu citei alguns julgados do Tribunal Federal de Recursos, uns contra e outros a favor do imposto sindical. E eu lutei contra o imposto sindical, contra a intervenção sindical, contra o atestado negativo de ideologia, pela liberdade e autonomia sindical e assim por diante. De modo que eu publiquei o livro com essa intenção. José Sérgio: O senhor chegou a dar cursos no Ministério do Trabalho? Evaristo: Houve um curso lá. Um sujeito que era juiz do Trabalho, do Tribunal Superior, chamado Astolfo Serra. Esse Astolfo Serra era maranhense e era um homem livre, inteligente... Foi em 47. Eu me lembro que nas primeiras aulas eu ficava com o coração pulando, porque era um curso para a multidão, era um curso livre, aberto. Não há nada pior do que você dar aula para uma turma não-homogênea. Porque você dava coisa que era adiantada para um, atrasada para outro; reacionária para um, avançada

16 O entrevistador refere-se à coleção Direito do Trabalho da Editora Max Limonad. Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 30 de 31 para outro, assim por diante. Eu dei aulas lá de Introdução ao Direito do Trabalho. E comecei meu ensino de Direito do Trabalho em 47. Porque só em 56 é que eu fui nomeado catedrático interino de Direito do Trabalho. Em 51 eu já fui contratado para Direito do Trabalho. Basta dizer que o Petrônio Portella, que foi Ministro da Justiça da revolução foi meu aluno. “- Mas como é que você é meu aluno se você é da minha idade?” “- Mas foi da sua primeira turma, o senhor era muito moço...” E realmente, eu comecei em 1951. 1950 foi o primeiro ano em que eu dei aula de Direito do Trabalho contratado. Naquele tempo não havia ainda a obrigatoriedade de fazer doutorado e essas coisas todas não. O sujeito saía formado e podia fazer concurso. Então, eu comecei em 47 o curso no Ministério do Trabalho, ensinei lá muito tempo, depois também dei Sociologia Industrial, depois em 49 eu comecei Sociologia na Faculdade de Filosofia, em 50, Direito do Trabalho na Faculdade de Direito, aí nunca mais deixei. Até 69. Mas só contaram como tempo de serviço meu de 54 para cá. Daí eu ter poucos anos e ganhar uma miséria de anuênios. Foi uma vida de luta, sabe? Foi esse regime que acabou com tudo. E eu sou o único catedrático - essa é que é a minha honra -, o único titular que não aceitou a anistia no Rio de Janeiro. Eu sou o único. Só duas pessoas não aceitaram no Rio de Janeiro: eu e uma moça chamada Elisa Frota Pessoa. A Elisa me telefonou e disse: “- Mas Evaristo, você vai aceitar?” Eu disse: “- Não. Não fiz nada, fui preso. Não fiz nada, fui aposentado. Não fiz nada, fui anistiado. Isso é paranóia coletiva, isso é loucura. Eu não fiz nada!” Então, o Renato Caldas, que foi um relativo bom reitor –era bisneto do Duque de Caxias, morreu num desastre de automóvel - escreveu uma carta a todos os professores, a mim, a teu pai, a todos os professores, para nós não passarmos pelo vexame de requerer a volta. Isso foi interessante. Mas eu escrevi uma carta para ele de resposta dizendo que eu não aceitava. Ele me cantou, me cantou, esperou, e eu não voltei. Até que prescreveu. Você tinha uns dois meses, um mês, para requerer. E eu não requeri. De modo que só eu e a Frota Pessoa que não voltamos. Eu sou o único titular que não voltou a ser professor. Porque eu sou aposentado com o tempo parcial de 69. É uma miséria. Esse mês, com todo o décimo terceiro salário – eu recebi ontem a nota – foi 292 mil cruzeiros. Com todo o décimo terceiro. E eu não voltei a ensinar; não reassumi. Quem era diretor da Faculdade de Direito? Arthur Machado Paupério,, integralista. Um sujeito nojento. Quem era professor de Sociologia criminal? José Arthur Rios. Eu não voltei a ensinar. Em São Paulo não voltaram o Florestan Fernandes, Entrevista com Evaristo de Moraes Filho 08 / 12 / 1992 Página 31 de 31 o Ianni, o Gianotti. Mas no Rio, eu fui o único titular que não reassumiu a cátedra. Hoje eu estaria com um salário bem maior, bem melhor. Mas pela minha idade eu tinha que agüentar ainda... Em 79 eu tinha 62, 63 anos. Eu tinha que agüentar ainda uns sete anos. Eu não ia agüentar. Eu ia brigar lá na Faculdade. Mas fui o único titular que não aceitou a anistia. Quer dizer, para mim os algozes não foram anistiados porque eu não aceitei a anistia. José Sérgio: Porque aí, o senhor voltaria para a Faculdade de Direito, né? Evaristo: De Direito, é. De Filosofia, eles tentaram. Me elegeram patrono lá, uma vez.

Eu fui patrono de uma turma na faculdade. Examinei um concurso lá, também. Mas não voltei.