Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão Paulo Bernardo Silva

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE

Presidente Eduardo Pereira Nunes

Diretor Executivo Sérgio da Costa Côrtes

ÓRGÃOS ESPECÍFICOS SINGULARES

Diretoria de Pesquisas Wasmália Socorro Barata Bivar Diretoria de Geociências Luiz Paulo Souto Fortes Diretoria de Informática Paulo César Moraes Simões Centro de Documentação e Disseminação de Informações David Wu Tai Escola Nacional de Ciências Estatísticas Sérgio da Costa Côrtes (interino)

UNIDADE RESPONSÁVEL

Centro de Documentação e Disseminação de Informações Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística - IBGE Centro de Documentação e Disseminação de Informações

Rio de Janeiro 2010 Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística - IBGE Av. Franklin Roosevelt, 166 - Centro - 20021-120 - , RJ - Brasil

ISBN 978-85-240-4115-0

© IBGE. 2010

Este livro foi organizado por Nelson de Castro Senra, Doutor em Ciência da Informação (ECO/UFRJ), Pesquisador no Centro de Documentação e Disseminação de Informações – CDDI e Professor de “Sociologia das Estatísticas” no Programa de Mestrado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE, ambos no IBGE.

Capa Mônica Pimentel Cinelli Ribeiro - Gerência de Editoração - Centro de Documentação e Disseminação de Informações

Folhas de Guarda 1a - Folha de Guarda: Avenida Central do Núcleo Bandeirante - 1957 - Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal 2a – Candangos na Praça dos Três Poderes, em Brasilia - 1959-1960 - Foto de Mario Fontenelle – Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal

Veredas de Brasília : as expedições geográfi cas em busca de um sonho / Nelson de Castro Senra (organizador) ; Nísia Trindade Lima ... [et al.]. - Rio de Janeiro : IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações, 2010. 195 p.

ISBN 978-85-240-4115-0

1. Capitais (Cidades) – Transferência. 2. Brasília (DF) – História. 3. Brasil – Capital. 4. Brasília (DF) – Descrições e viagens. 5. IBGE – História. I. Senra, Nelson de Castro. II. Lima, Nísia Trindade. III. IBGE. Centro de Documentação e Disseminação de InformaçõesGerência de Biblioteca e Acervos Especiais

Gerência de Biblioteca e Acervos Especiais CDU 711.432(81) RJ/IBGE/2010-03 GEO Impresso no Brasil / Printed in 07 APRESENTAÇÃOÇ

09 INTRODUÇÃOÇ O IBGE, para saudar Brasília, desvela sua própria atuação na criação da capital Nelson de Castro Senra

1a Parte: O LOCAL DA CAPITAL 17 Brasília: a capitalp no sertão Nísia Trindade Lima 35 A Comissão Cruls e o projeto de mudança da Capital Federal na Primeira República Moema de Rezende Vergara 48 Perfi l, porp Marco Aurélio Martins Santos Louis Cruls: o homem que seguiu as estrelas até a futura capital do Brasil

51 Na boca do sertão ou integrada ao ecúmeno? Militares, estatísticos, geógrafos e a localização da nova capital Sergio Nunes Pereira

Vivências: 75 Uma candangag antes dos candangos: vivências de uma expedição geográfi ca Cybelle de Ipanema 78 As expediçõespç geográfi cas do IBGE Pedro P. Geiger 828 Perfi s, ppor Marco Aurélio Martins Santos General Djalma Polli Coelho: entre glórias e crises Francis Ruellan: um mestre geógrafo em campo Fábio de Macedo Soares Guimarães: presença marcante em duas comissões Sumárioumáá Leo Waibel: uma referência entre mestres 93 Brasília, codinome Vera Cruz: a comissão engenheira que 141 Geografig a de esperança: fundou as bases da construção da nova capital. a Reserva Ecológica do IBGE e a nova capital Luiz Henrique G.Castiglione Mauro Lambert Ribeiro

Perfi s, por Marco Aurélio Martins Santos 114 157 ANEXOS Marechal Aguinaldo Caiado de Castro: um personagem da 1. Carta de Mário Augusto Teixeira de Freitas ao Dep. João d’Abreu História a ser redescoberto (representante do Estado de Goiás), a propósito de um discurso na Marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque: uma vida Assembléia Constituinte, em 15 de junho de 1946. determinada pelo ideal 2. Carta de Mário Augusto Teixeira de Freitas ao General Djalma

Polli Coelho (Chefe do Serviço Geográfi co do Exército e Presidente da Comissão de Estudos para a localização da nova Capital do Brasil), contendo palavras de agradecimento, em 09 de junho de 1947 2a Parte: O INÍCIO DA CAPITAL 3. Entrevista de Mário Augusto Teixeira de Freitas ao Diário 123 Em 1959, o censo experimental na alvorada de Brasília Trabalhista, do Rio de Janeiro, publicada em resumo em sua edição Luiz Antônio Pinto de Oliveira de 13 de setembro de 1948, sob o título “Brasília, capital do Brasil”. Vivência: 4. Texto de Alain Ruellan (fi lho de Francis Ruellan), “A localização de 137 Um candangog ibgeano Brasília: papel das Expedições Geográfi cas de junho a setembro de Walker Roberto Moura 1947”, em novembro de 2005. Neste livro, o IBGE, por seu Centro de Documentação e Disseminação de Informações, lembra sua distinta presença na história de Brasília. O momento é propício, nos 50 anos da cidade como Capital Federal, desde sua inauguração pelo Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira em 21 de abril de 1960.

A proposta de mudança da capital vem de antes do IBGE, é certo. É sabido que houve, em sua defesa, inúmeras propostas anteriores à Indepen- dência e ao longo do Império, mas ação ofi cial, mesmo, surgiu apenas no início da República, com a Comissão dirigida por Luiz Cruls, porém sem chegar à mudança. E os discursos continuaram.

Muitos homens notáveis pugnaram pela mudança e muito dessa longa história é contada neste livro. Entre vários, está Mário Augusto Teixeira de Freitas que, entre outros feitos notáveis, com ousadia e coragem, idealizou e implantou o IBGE. Sua pena serviu ao pensar a reocupação do território, centrada na mudança da Capital Federal.

O IBGE, desde 1936, em vários documentos preciosos à história do Brasil, defendeu a mudança, e tão logo a Constituição democrática de 1946 retomou a mudança como preceito, envolveu-se diretamente.

Assim, já em 1947, promoveu duas expedições geográfi cas (no âmbito do Conselho Nacional de Geografi a, então um dos seus dois órgãos máxi- mos), dando conteúdo científi co à Comissão dirigida por Polli Coelho, incumbida da localização de um sítio para a nova capital (indo no rumo de Cruls). Na ocasião, geógrafos notáveis se fi zeram presentes: Antonio Teixeira Guerra, Christovam Leite de Castro, Dora Amarante Romariz, Eugênia Zambelli Gonçalves, Fábio de Macedo Soares Guimarães, José Veríssimo da Costa Pereira, Lindalvo Bezerra dos Santos, Lúcio de Castro Soares, Marília Galvão, Ney Strauch, Nilo e Lysia Bernardes, Orlando Valverde, Speridião Faissol, e Walter Alberto Egler, entre vários outros. Todos, eles e elas, notáveis ibgeanos, valeram-se da orientação científi ca de Francis Ruellan e de Leo Waibel, geógrafos estrangeiros associados ao Conselho Nacional de Geografi a.

Adiante, num terceiro momento, 1955-1956, na Comissão dirigida por José Pessoa, de novo o IBGE esteve presente com Fábio de Macedo Soa- res Guimarães, então Secretário-Geral do Conselho Nacional de Geografi a, e com o eminente cientista Allyrio Hugueney de Mattos. Suas ações foram decisivas, até pela retomada do realizado no passado recente.

Defi nida a localização, objeto dessas missões, e já iniciada a construção, o IBGE fez um censo na futura capital, em 1959, pelo qual revelou a população e a habitação daquele tempo, hoje um retrato histórico admirável. Nesse tempo, ainda, coube ao IBGE a iniciativa de realização do primeiro mapa da nova capital, com o sítio geral e nele posto o Plano Piloto (o fez, o cartógrafo Clóvis de Magalhães, em 1958). E mais: em terras que recebeu próximas à capital, em 1961, pouco a pouco, criou um centro de estudos ambientais da biogeografi a do Bioma Cerrado, com grande renome nacional e internacional.

E o IBGE não fi cou nisso, apenas na história passada, já que Brasília integra suas pesquisas estatísticas e geocientífi cas, pelas quais é vista de forma contínua e sistemática. Por essas novas visões, a história presente de Brasília segue sendo revelada, e se soma à história aqui contada, neste livro, por excelentes acadêmicos.

Eduardo Pereira Nunes Apresentaçãopreess Presidente do IBGE

O IBGE, para saudar Brasília, desvela sua própria atuação na criação da capital

Brasília tornou-se Capital Federal em 21 de abril de 1960. Foi inaugurada solenemente, com toda pompa e circunstância, pelo Presidente Jusce- lino Kubitschek de Oliveira. Como Meta-Síntese vitoriosa, coroava de sucesso seu ousado Plano de Metas, pelo qual o Brasil devia crescer 50 anos em 5, o tempo do mandato presidencial. Desde então, em seus 50 anos, avançou e se fi rmou como Capital; nesse tempo, fez e viveu história; hoje, goste-se dela, ou não, pouco importa, é impossível fi car indiferente à sua beleza urbanística e arquitetônica; ela tem charme, sem dúvida nenhuma.

Durante todo esse período, o IBGE esteve presente na trajetória de Brasília, já que sempre a relevou e a revelou em suas pesquisas estatísticas e geocientífi cas, mas não será disso que trataremos nesta publicação.

O foco deste livro é outro, é de caráter histórico, e é anterior à inauguração. Antes mesmo da construção, quer-se tratar da questão da de- fi nição da localização, numa sucessão de comissões, com diversas expedições geográfi cas, bem assim, já ao tempo da construção, quer-se mostrar algumas atividades realizadas (censo, mapa, estudos). Eis, então, as duas partes deste livro: 1) O local da capital, com quatro textos, dos quais, o primeiro introduz a temática das três comissões que, pouco a pouco, defi niram o melhor local da nova capital, e 2) O início da capital, com dois textos, relatando atividades ibgeanas ao tempo da construção. E mais quatro textos em anexo, dos quais, três são de autoria de Teixeira de Freitas (escritos ao calor da hora)1, e o último de autoria (recente) de Alain Ruellan (fi lho de Francis Ruellan), em que procura recuperar a importância das expedições geográfi cas de 1947, saídas do IBGE.

***

A ideia de mudar a capital era antiga, e remonta ao período colonial, tendo estado latente durante o Império. Mas a primeira atividade concre- ta pela mudança só se daria no início da República (instaurada pelos militares, em golpe contra a ordem constituída, em 15 de novembro de 1889). Não obstante, durante a Primeira República, até 1930, pouco (quase nada) seria realizado efetivamente.

No período colonial, ao tempo de Pombal em Portugal (reinado de D. José I), Francesco Tosi Colombina, cartógrafo e geógrafo italiano, ela- borou uma carta de Goiás, focando o Planalto Central, que atenderia as vantagens estratégica (segurança contra invasões) e demográfi ca (povoar o interior) da capital ideal. Naquele Planalto Central devia estar uma Nova Lisboa (outros nomes virão: Pedrália, Petrópole, Petrópolis, Brasília, ao

1 O leitor que queira melhor conhecer a participação do IBGE no contexto da Comissão dirigida por Polli Coelho deverá consultar duas resoluções emanadas da Assembléia Geral do Conselho Nacional de Estatística: a de no 388, de 21 de julho de 1948, assinada pelo Embaixador José Carlos de Macedo Soares (desde 1936 Presidente do IBGE), em que “exprime votos e sugestões do Conselho a propósito da transferência da Capital da República para o Planalto Central”, em cujos anexos estão textos de Polli Coelho; a de no 492, de 12 de setembro de 1951, assinada pelo General Djalma Polli Coelho (recém- em- possado Presidente do IBGE, em substituição ao Embaixador) que “exprime congratulações ao Sr. Presidente do Conselho (o próprio General) por motivo dos seus patrióticos esforços em prol da mudança da Capital da República para o Planalto Central”. Nesses tempos, Teixeira de Freitas já havia deixado a Secretaria Geral do IBGE, mas essas resoluções têm sua inegável inspiração. Introduçãontro tempo do Império; e tempos depois, já no período republicano, Vera Analisemos, agora, a primeira parte do livro, com seus quatro guma capital no interior, e se bateu por Belo Horizonte. Várias pessoas Veredas..de Cruz). textos2 . apoiaram essa sugestão de mudança provisória, variando somente a Brasília cidade alvo, entre as quais alguma cidade no Triângulo Mineiro. Tei- Vários farão a defesa da mudança, com destaque para Hypoli- No texto de abertura, “Brasília: a capital no sertão”, intro- xeira de Freitas, um leitor atento de Alberto Torres, uma de suas refe- to José da Costa, em seu Correio Braziliense, (editado em Londres), e duzindo a temática da mudança, Nísia Trindade Lima apresenta as rências intelectuais, advogava, também, uma completa revisão da di- para José Bonifácio de Andrada e Silva, poderoso ministro de D. Pedro principais conclusões das sucessivas comissões incumbidas da loca- visão política do País; nessa seara dialogou, entre outros, com Juarez I, em ação antes e depois do 07 de setembro de 1822 (Independência): lização da capital, com seus muitos e variados especialistas, e o faz, Távora (a face do poder que deu forma ao IBGE). antes, nas Cortes de Lisboa, encarregada da elaboração da Constitui- com acurada propriedade, analisando a “delicada trama que envolveu, ção do Reino Unido; depois, durante a Constituinte encarregada da em cada momento, as relações entre ciência e política”. Ainda que A autora, antes de analisar as comissões de localização (Cruls, elaboração da Constituição do Império do Brasil (já separado de Por- não exista, de modo algum, um inexorável caminho natural, cada co- Polli Coelho e Caiado/Pessoa), busca as origens do desejo de mudança, tugal). Mas, ao fi m e ao cabo, a primeira Constituição brasileira (1824) missão pautou-se no passado, indo buscar nos relatórios anteriores oferecendo cuidadosa leitura dos textos de Porto Seguro. Ao fi nal, já deixaria o assunto de fora. inspirações e identidades, mas pondo suas marcas de revisão e de tendo passado pelas comissões, concluindo, afi rma: “consórcio pecu- inovação. Como seja, já a primeira comissão, chefi ada por Luiz (Louis) liar entre ciência e política, nesse encontro com o sertão, as missões Durante o Império vários deputados e senadores abordaram Cruls, valeu-se do livrete de Porto Seguro, como as demais comissões ao interior desempenharam importante papel; e diz mais: “empreen- a mudança, sem nenhum resultado concreto. Por demais, Francisco valer-se-ão dos relatórios da comissão Cruls, e assim em diante. deram, ao mesmo tempo um notável trabalho de exploração cientí- Adolpho de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro (historiador e fi ca, contribuindo, desse modo, para alargar o conhecimento sobre o diplomata), fará a defesa enfática da mudança. Mais que usar sua Afora a estratégia da segurança, protegendo a capital de ataques Território Nacional, além de terem criado imagens duradouras sobre a voz e sua pena potentes irá ao local, em viagem em lombo de burro, externos, no que o Rio de Janeiro era muitíssimo vulnerável pela locali- região e sobre o País”; enfi m, “o balanço desse legado é parte da histó- vendo com seus olhos o famoso Planalto Central. Em 1877, em Viena zação litorânea, havia a razão da insalubridade. O Rio de Janeiro não era ria das ciências e também da história social e política do Brasil”. d’Áustria, onde ocupava a legação brasileira junto ao Império Austro- salubre, ao passo que o Planalto Central o seria, pela altitude, pelo clima, Húngaro, editará o livrete “A questão da capital: marítima ou no in- pelas águas. Essa visão quase idílica, tanto nos textos de Porto Seguro, *** terior?”, onde junta seus textos sobre o assunto. quanto na missão Cruls, seria posta em xeque pelas viagens médicas do Instituto Oswaldo Cruz, que mostrou um Brasil doente, a exigir fi rmeza No texto seguinte, “A Comissão Cruls e o projeto de mudança Proclamada a República, sua primeira constituição (1891) pre- para saneá-lo (o que ainda levaria muito tempo). Ao contrário, a velha da Capital Federal na Primeira República”, Moema de Rezende Ver- ceitua a mudança da capital para o Planalto Central: “Fica pertencen- Capital, com certa rapidez, passava por renovações urbanísticas e sani- gara analisa os processos de trabalho e os principais resultados da te à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.400 tárias, pelas mãos de homens notáveis, entre os quais Pereira Passos e comissão chefi ada por Luiz (Louis) Cruls, no início da República. Em km², que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a Oswaldo Cruz. Esta e outras razões adiaram a mudança. suas duas expedições (entre 1892 e 1895), integradas por cientistas futura Capital Federal”. Este preceito, com pequenas mudanças, esta- de nomeada, a comissão defi niu um sítio ideal que, ao longo da histó- Essa abordagem certamente enriquece a análise, como tam- rá presente na Constituição de 1934 (após a queda da Primeira Repú- ria, fi cou conhecido como “Quadrilátero Cruls”, e que teve infl uência bém as refl exões de Teixeira de Freitas, o maior dos ibgeanos, que o blica em 1930) e na de 1946 (após a retomada da democracia, depois nas comissões seguintes. Antes de seguir, convém registrar o interesse texto também considera. Desde jovem ele pugnou pela mudança, e a do Estado Novo de 1937, cuja carta omitirá o preceito). Comissões de da comissão pelos relatos de Varnhagen, fazendo-se herdeira de uma via como vital, a ponto de sugerir uma mudança provisória, para al- localização serão formalizadas. tradição histórica, ainda que lhe introduza mudanças signifi cativas, 2 As frases entre aspas são extratos dos textos que estão neste livro. sobremodo por trabalhar de maneira mais científi ca. *** 10 Todo o material científi co, incluindo armas, barracas e manti- O autor avalia com atenção as expedições geográfi cas emanadas do Por fi m, o texto abarca refl exões de Teixeira de Freitas, com mentos, ocupava 206 caixas e fardos, pesando 9 640 quilos, transpor- Conselho Nacional de Geografi a – CNG (então, parte do IBGE), com diversas afi nidades, não totais, mas bem reais, com o processo e o tados em burros de carga. As pessoas também se moviam em lombo realce às atuações de Christovam Leite de Castro e Fábio de Macedo resultado dos trabalhos da Comissão. À época, ele não mais ocupava de mulas, por certo com muita lentidão, e não poucos riscos, já que Soares Guimarães, e dos consultores estrangeiros Francis Ruellan e a Secretaria Geral do CNE e, pour cause, do IBGE, mas suas ideias era mínimo o mapeamento da região, como de todo o País (viaja- Leo Waibel. A par com as atuações do CNG, houve ainda as atuações ainda eram o pano de fundo das grandes decisões dos Conselhos, e ram, em vários rumos, cerca de 4000 km). Os instrumentos utilizados do Conselho Nacional de Estatística - CNE (então, parte do IBGE), sob do IBGE como um todo. No anexo, o leitor poderá sopesar as refl exões foram, entre outros: teodolitos, barômetros, cronômetros; bússolas, forte inspiração do incansável e meticuloso Teixeira de Freitas. de Teixeira de Freitas em duas cartas e em uma entrevista; nesses três sextantes, lunetas; material fotográfi co. Pelo seu uso, nas viagens do textos, suas ideias aparecem com absoluta clareza, e com sua força século XIX, diferente daquelas do século XVIII, “o ato de ver do via- Ao contrário da Comissão Cruls, em que seus membros eram moral sobre o IBGE. jante se desloca da esfera de contemplação para a da objetividade”, e cientistas, agora, os integrantes da comissão seriam técnicos, já com diz mais, a autora: “a objetividade era um dos principais atributos que formações específi cas, e com predomínio dos engenheiros (inclusi- Em suma, trata-se, por assim dizer, do coração da publicação, se buscava na prática científi ca”, enfi m, “o conhecimento se tornou ve os geógrafos). O autor os agrupa, para facilitar suas análises, em em que a ação do IBGE aparece claramente, seja pelos estatísticos, atrelado àquilo que se pode medir”. “militares, estatísticos, geógrafos”, em associação “aos âmbitos insti- seja pelos geógrafos, seja pelos diálogos que mantinham com os cha- tucionais em que estavam inseridos”. Diante das pressões de políticos mados militares (no caso, fortemente representado pelo General Djal- Pelo quase pioneirismo, certamente pela qualidade científi ca ma Polli Coelho, com sua personalidade inegavelmente autoritária). dos relatórios, a documentação produzida pela comissão é, hoje, dis- mineiros e goianos que disputavam a localização, e a pressionavam, a comissão procurou realizar estudos e análises abundantes e de quali- ponível em publicações bem sistematizadas, em contínuas reedições: Os documentos dessa comissão têm como centro o IBGE, dade, de modo a tomarem decisões objetivas, o que intentou efetiva- “a importância do Relatório Cruls e as notícias publicadas em livros e mas, ao contrário daqueles da comissão Cruls, estão dispersos, sem mente, mas sem, ao fi m e ao cabo, o conseguir plenamente. revistas nacionais e internacionais possibilitaram a permanência da nenhuma reedição sistemática. Quanto aos relatórios das Expedições Comissão Exploradora do Planalto Central na memória nacional”, afi r- Realizam-se as Expedições Geográfi cas, organizadas no âmbi- Geográfi cas, há no acervo apenas suas versões preliminares (já no ma a autora. Não obstante, a mudança foi sempre adiada, e nada de to do CNG. As polêmicas foram inúmeras, a começar do signifi cado Fundo Ruellan, existente na Université de Haute Bretagne, há cinco concreto foi realizado, mas a ideia seguiu presente em discursos, e em de Planalto Central; a defi nição da Comissão Cruls não satisfazia aos outros, além do relatório preliminar). Vários artigos alusivos às ex- 07 de setembro de 1922, no centenário da Independência, uma placa, geógrafos. E havia a dúvida se a capital deveria ser integrada ao ecú- pedições, ou sobre temas correlatos, saíram na Revista Brasileira de colocada próximo de Planaltina, fi xou o lugar em que se ergueria a meno, benefi ciando-se de comodidades já existentes, ou se deveria ser Geografi a e no Boletim Geográfi co (periódicos sob editoração do futura capital (ele estava, naturalmente, no Quadrilátero Cruls). localizada “na boca do sertão”, sendo um centro de colonização, no CNG), escritos, entre outros, por Christovam Leite de Castro, Fábio *** que os membros da comissão polemizavam. Idas e vindas no interior de Macedo Soares Guimarães, Francis Ruellan, Leo Heinrich Waibel, Everardo Adolpho Backheuser. Há, ainda, resoluções emanadas do CNE No texto que segue, “Na boca do sertão ou integrada ao ecú- da comissão, e por pressão do seu incansável presidente, fortemente meno? Militares, estatísticos, geógrafos, militares e a localização da autoritário, o Quadrilátero Cruls permearia as decisões fi nais, mas se- (duas delas estão no anexo). Por fi m, há os relatórios da comissão, por nova capital”, Sergio Nunes Pereira analisa em minúcia a comissão ria ampliado (para cerca de 52 000 km²): “a tradição estava mantida Polli Coelho, disponíveis na Biblioteca do Senado, e no Arquivo Públi- eredas..de VBrasília dirigida pelo General Djalma Polli Coelho (1946 a 1948), criada em e ao mesmo tempo atualizada, segundo os modernos parâmetros do co do DF (e agora, também no IBGE). atenção ao preceito da mudança recolocado na Constituição de 1946. pensamento geopolítico”. *** 11 No texto fi nal desta parte, “Brasília, codinome Vera Cruz: a Escolhido, fi nalmente, o Sítio Castanho, que fazia parte do Quadrilá- Na segunda parte do livro, duas ações do IBGE são realçadas: a Veredas..de comissão engenheira que fundou as bases da construção da nova tero Cruls e da área de Polli Coelho, o Marechal cuidou de garantir as primeira, por Luiz Antônio Pinto de Oliveira, valendo-se do censo feito Brasília capital”, Luiz Henrique G. Castiglione analisa a última comissão condições econômicas e operacionais de construção da futura capital, em 1959, da população e da habitação; a segunda, por Mauro Lambert de localização, primeiro chefi ada por Aguinaldo Caiado de Castro e, em articulação sigilosa para evitar danosas especulações. Assim, as Ribeiro, traçando a história da Reserva Ecológica que é mantida pelo depois, até seu fi nal, por José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, ela, condições estavam postas quando o Presidente Juscelino Kubitschek IBGE na capital, em área que lhe foi doada pouco depois da inauguração também, antes técnica que científi ca (entre os quais, os ibgeanos Fá- tomou a peito mudar a capital; mais que apenas a defi nição da loca- (outubro de 1961), na qual seus técnicos estudam o Cerrado. bio de Macedo Soares Guimarães e Allyrio Hugueney de Mattos, e um lização, havia informações fundamentais disponíveis. futuro ibgeano, Paulo de Assis Ribeiro). Ainda que, também, realizan- Antes, porém, valerá marcar outra ação do IBGE, esta em 1958. do expedições geográfi cas, a comissão decidiu, mesmo, por métodos E como diz o autor, “fechar os olhos a todos os trabalhos que Trata-se do primeiro mapa de Brasília (que está na capa deste livro), indiretos (bastante modernos). antecederam a construção e que criariam as condições para que ela executado pelo cartógrafo do CNG, Clóvis de Magalhães, fi lho da cida- ocorresse, é apenas um exercício de vaidade, uma dissimulação que de de Formosa, que, ao lado de Planaltina e de Luziânia, deram origem Os trabalhos realizados trouxeram importantes modernidades, visa, apenas, tornar uns mais destacados do que outros, uns mais im- ao Distrito Federal. Impresso em sete cores (no Serviço Gráfi co do IBGE, como a utilização da aerofotogrametria, e de diversas medições, inclusi- portantes do que outros”. Os homens da construção foram impor- por encomenda do escritório de Goiás no Rio), na escala 1:100 000, foi ve decisões por complexos parâmetros, o que, não obstante, não garan- tantes, sem dúvida alguma, mas o foram também os homens da lo- baseado em reconstituições aerofogramétricas. Foi entregue solene- tiu um completo resultado objetivo. De novo, o já famoso e cristalizado calização, nas três comissões, e os que antes atuaram, sem afi rmar mente ao Presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira. “Quadrilátero Cruls” esteve presente nas avaliações, e nele estava inse- ter havido linearidade, pura e simples dos resultados. Não, de modo *** rido o chamado Sítio Castanho (também referido na comissão dirigida algum, cada nova comissão apropriou-se do passado como quis, e o por Polli Coelho), fi nalmente escolhido como localização. fez ora aceitando, ora negando, e sempre avançando rigorosamente.

Coube ao General (futuro Marechal) Aguinaldo Caiado de Cas- Os documentos dessa comissão estão dispersos, sem nenhuma tro a decisão de contratar a empresa Cruzeiro do Sul para realizar os reedição. Alguns relatórios são disponíveis na Câmara dos Deputados, serviços de aerofotogrametria, o tê-lo feito, talvez se explique por sua em Brasília (e agora, também, no IBGE). Ademais, há em raros acervos vivência na Segunda Guerra Mundial, “na qual a fotografi a aérea de os livros escritos pelo Marechal José Pessoa e pelo seu segundo na reconhecimento teve um papel muito importante em termos estraté- comissão, Ernesto Silva (o IBGE os tem agora). O relatório Belcher, em gicos”. E lhe coube também contratar a empresa americana Donald J. capa dura, é encontrado em diversos acervos, inclusive no IBGE (terá Belcher and Associates para derivar informações das aerofotografi as, tido uma grande tiragem, provavelmente). Já as fotos aéreas feitas cujo relatório já seria entregue ao Marechal José Pessoa Cavalcanti de pela Cruzeiro do Sul, não conseguimos localizá-las. Por fi m, cabe di- Albuquerque, que o sucede na direção da comissão de localização. As zer que o acervo pessoal do Marechal José Pessoa está sob a guarda decisões de Caiado de Castro foram decisivas. do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getulio Vargas - FGV (devidamente Obtidas as informações, seria feita a escolha. A comissão de- bateu, e se dividiu, delongando a tomada de decisão. Para acelerar microfi lmado). a escolha, o Marechal valeu-se de sua força de mando e comando. *** Quadro constante no primeiro mapa do Distrito Fede- ral, feito pelo cartógrafo do IBGE Clovis de Magalhães, contendo créditos e informações gerais 12 Acervo de Manoel Antonio Soares da Cunha. No texto inicial, “Em 1959, o censo experimental na alvorada dição geográfi ca chefi ada por Francis Ruellan (1947); “As expedições Aguinaldo Caiado de Castro de Brasília”, Luiz Antônio Pinto de Oliveira apresenta as estatísti- geográfi cas do IBGE”, por Pedro P. Geiger, experiente nessas expe- (neto do Marechal Aguinaldo Caiado de Castro) Alain Ruellan cas da população e da habitação quase ao término da construção. O dições, das quais trata em linhas teóricas; e “Um candango ibgeano”, (Professeur Emérite de l’AgroCampus de Rennes – France, fi lho de candango aparece em cores vivas, fi xando residência nos arredores da por Walker Roberto Moura, técnico do quadro do IBGE (natural do Francis Ruellan) capital, nas chamadas cidades-satélites. Um retrato bem traçado, bem Espírito Santo), que muito jovem (11 anos) migrou de Minas Gerais Angela de Castro Gomes (CPDOC / FGV) Célia Almeida (Biblioteca da Presidência da República) delineando a população trabalhadora que construía a capital. O autor para a capital (1958), seguindo a família que seguiu seu chefe (o pai), Cybelle Moreira de Ipanema (IHGB e IHGRJ) vai além, e procura mostrar os efeitos da capital na dinâmica regional que fora antes batalhar na construção, Diana Augusta Formiga da Luz (Biblioteca Geraldo Rocha – CODEVASF) de Goiás, bem assim, suas infl uências “na estratégia de interiorização Edinair Aparecida da Silva (técnica da Associação Médica de Goiás) Por fi m, sete perfi s de pessoas selecionadas, as mais proemi- do crescimento e na expansão em direção ao Oeste e Norte do País”. Fabio Celso de Macedo Soares Guimarães nentes nas comissões, feitos por Marco Aurélio Martins Santos, (FINEP, fi lho de Fábio de Macedo Soares Guimarães) Números seriados dos censos revelam uma evolução rápida na cidade, completam e enriquecem a publicação. Foram perfi lados, na ordem em João Pessoa de Albuquerque (IBAM e ABE) para além do previsto inicialmente; para 2000 previam-se 600 mil ha- José Celso de Macedo Soares Guimarães (almirante na reserva) que aparecem: Luiz (Louis) Cruls, General Djalma Polli Coelho, Fran- bitantes, contudo, chegou-se ao montante assustador de 2,7 milhões José Pessoa Cavalcanti Albuquerque previstos para 2010. cis Ruellan, Fábio de Macedo Soares Guimarães, Leo Heinrich Waibel, (brigadeiro na reserva, fi lho do Marechal José Pessoa Cavalcanti de Marechal Aguinaldo Caiado de Castro e Marechal José Pessoa Caval- Albuquerque) Luiz José Borges Neto (Arquivo Público do Distrito Federal) No texto que segue, “Geografi a de esperança: a Reserva Eco- canti de Albuquerque. A ele coube também organizar a iconografi a lógica do IBGE e a nova capital”, Mauro Lambert Ribeiro trata da Magali Caiado de Castro da publicação; para tanto, ouviu os autores, e dialogou com diversas (fi lha do Marechal Aguinaldo Caiado de Castro) cessão ao IBGE da gleba Roncador, em 1961, área em que, pouco a pessoas, em vários locais; trabalho laborioso, minucioso, exigiu muito Manoel Antonio Soares da Cunha (IBGE, aposentado) pouco, realizaram-se valiosos estudos do Bioma Cerrado, em suas esforço de pesquisa (em várias fontes). Marcelo Gomes Durães (Arquivo Público do Distrito Federal) variadas espécies de fl ora e fauna. Nessa Reserva Ecológica, o IBGE Marcus De Grossi (geólogo e colecionador) patrocina um verdadeiro laboratório científi co, testemunha da eco- Nelson de Castro Senra Margareth da Silva Pereira (PROURB / UFRJ) Maria Helena de Almeida Freitas história do Planalto Central, com reconhecimento internacional e Doutor em Ciência da Informação (ECO/UFRJ e IBICT/CNPq) (bibliotecária na Biblioteca do Senado Federal) nacional. Segundo o autor, “o modelo implantado possibilita o foco Pesquisador e Professor no IBGE Maria José Teixeira Soares (bisneta de Louis Cruls) moderno nos serviços ambientais e a proteção da biodiversidade deve Mario Cesar da Silva (sargento na Biblioteca do Exército) ser buscada no contexto de paisagens que incluam centros urbanos, Nireu Cavalcanti (UFF, aposentado) Patrícia Balduino de Sousa (Biblioteca Geraldo Rocha – CODEVASF) áreas agrícolas e unidades de conservação intensamente administra- Agradecimentos Pedro Henrique Calixto de Oliveira (soldado na Biblioteca do Exército) das para manter sua integridade”, e conclui: “Brasília precisa assumir Roberto Schmidt de Almeida (IBGE, aposentado) defi nitivamente sua vanguarda em conservação”, no que o IBGE vem Na elaboração deste livro contamos com o concurso de diversas Rodrigo Aldeia Duarte (Técnico do Arquivo Nacional) tendo papel essencial. Rosária de Fátima Moraes (bibliotecária na Biblioteca do Exército) pessoas, em diferentes posições, e por diversas maneiras, ora nos dando Rui Gilberto Ferreira (presidente da Associação Médica de Goiás) *** acesso a um documento, ora nos dando acesso a uma pessoa, ora nos Walker Roberto Moura (chefe da Unidade do IBGE no DF) O livro, além desses textos, tem três testemunhos enriquece- dando uma notícia, que nos servia de pista. Sem eles todos, fazer este eredas..de Biblioteca da Câmara Federal V livro teria sido mais difícil, talvez mesmo impossível. Seguem, adiante, Brasília dores: “Uma candanga antes dos candangos: vivências de uma ex- Biblioteca do Clube de Engenharia pedição geográfi ca”, por Cybelle de Ipanema, que esteve na expe- em ordem apenas alfabética, sem indicar nenhuma importância. Setor de Acervo do Museu de Astronomia e Ciências Afi ns - MAST 13 eredas..de VBrasília

Trecho da linha do tempo sobre a construção de Brasília. Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal 14 O..LOCAL. .DA..CAPITAL

parte Imagem de abertura da 1a parte: Mapa do Brasil com representações das distâncias entre todas as capitais dos estados e Brasília-DF Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal Brasília: a capital no sertão Nísia Trindade Lima*

A transferência da capital para um ponto central do território é um dos temas mais instigantes da imaginação política sobre o Brasil. Sua abordagem esteve quase sempre relacionada às tentativas de se representar geografi camente o sentido que, em diferentes contextos históricos, se procurou atribuir à unidade e à identidade nacionais. Litoral ou sertão? A pergunta não se resume à localização da sede do governo, uma vez que traz um questionamento mais profundo sobre a nação imaginada pelos brasileiros, o que envolve versões e propostas bastante distintas referidas Palácio do Catete, sede tanto ao passado como ao futuro do País. do governo federal até Situar as propostas de transferência da Capital, à luz desse debate mais amplo, é o objetivo principal desta introdução1. Com este propósito, o 1960 Acervo do texto inicia-se com a apresentação de uma das fontes mais citadas por aqueles que se dedicam à história e à historiografi a da proposta de mudança IBGE da capital para o interior. A seguir, com ênfase na história das comissões ofi ciais encarregadas da demarcação do melhor sítio para a sua localização, as visões sobre sertão e sobre Brasil que, ao mesmo tempo, orientaram e resultaram de tais iniciativas são realçadas. Desnecessário observar que a abordagem das sucessivas comissões de estudos voltadas para a mudança, lideradas por Luiz Cruls, Djalma Polli Coelho, Aguinaldo Caiado de Castro e José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, pretende apenas apresentar os temas priorizados e seu impacto nas teses em prol da transferência da capital para o interior. Pretende-se, assim, analisar a delicada trama que envolveu, em cada momento, as relações entre ciência e política, pois se tratava de comissões de estudos constituídas por especialistas em diferentes campos do conhecimento, de quem se demandava o saber capaz de balizar a ação.

Ao considerar um longo período da história do País não se pretende sugerir um caminho natural e inexorável que nos faria realizar um per- curso linear – do Império à transferência da capital para o Planalto Central, no governo de Juscelino Kubitschek. Ou mesmo, iniciar com um recuo maior, buscando origens no passado colonial, em particular nos movimentos em prol da Independência, como a Inconfi dência Mineira que propôs a transferência da capital para São João del Rei. A propósito, vale lembrar que a inauguração de Brasília ocorreu em 21 de abril de 1960, data que sugestivamente associa a cidade modernista com sua utopia igualitária à fi gura heróica de Tiradentes.

Não se trata, portanto, de propor uma reconstituição exaustiva ou mesmo uma genealogia da ideia de mudança da capital, assumindo, deste modo, que a história de Brasília não passaria da realização de um ideal cujas raízes se encontram, segundo alguns autores, no Século XVIII Palácio do Planalto, sede do * Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, professora do Programa de Pós Graduação em História das governo federal a Ciências e da Saúde e editora científi ca da Editora Fiocruz. partir de 1960 1 Agradeço à Tamara Rangel Vieira a indicação de preciosas fontes de pesquisa. Sua dissertação de mestrado (VIEIRA, 2007), realizada sob minha orientação, constituiu-se em uma das principais fontes Acervo do IBGE para a elaboração deste texto. (CEBALLOS, 2005; VIEIRA, 2007). O que se pretende é levantar al- resguardada no centro, como está no corpo humano o cora- Veredas..de ção [...]. (VARNHAGEN, 1877, p. 1).2 gumas questões relacionadas aos novos signifi cados atribuídos a Brasília uma ideia que apresentou continuidades e descontinuidades, rela- cionando-a a diferentes projetos que alcançaram espaço em con- Francisco Adolpho de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, junturas políticas específi cas. Trata-se, portanto, de observar a força foi, durante o Século XIX, um dos principais defensores da mudança de alguns textos em relação aos quais certos argumentos foram re- da capital para o interior. Historiador e diplomata cuja obra se consti- afi rmados, outros contestados ou revistos e novos sentidos foram tui em referência obrigatória para os que se dedicam à historiografi a atribuídos sempre que se colocou em pauta a proposta de transfe- produzida durante o Império, ele se ocupou do tema ao longo de pelo rência da capital para o interior. Mesmo porque o ponto que cumpre menos 40 anos. No trecho acima citado, afi rma que o fi zera instinti- enfatizar pode ser assim resumido: foram os atores políticos, porta- vamente, pois, em um primeiro momento, desconhecia a existência de dores de diversos interesses e projetos, que recorreram à história e propostas anteriores a que defendera. selecionaram do passado nacional aquelas ideias e símbolos com os Antes de Varnhagen, Francisco Tosi Colombina, que no Século quais buscaram se identifi car. Em certas circunstâncias, tais ideias XVIII viajou ao interior do Brasil deixando mapas e escritos a respeito, se corporifi caram nas cartas constitucionais, em outras, ainda mais é citado como precursor pelos que se dedicaram a reconstituir histo- especiais, o que estava na lei tornou-se realidade. Os projetos de ricamente a ideia da mudança. Mais tarde, em 1810, Veloso Oliveira, transferência da capital para o interior, ou sertão, constituem-se, ao conselheiro da corte portuguesa, propôs que a capital fosse transferi- mesmo tempo em projetos de nação e trazem um sonho feliz de país da para local “são, ameno e aprazível” distante da vulnerabilidade do e de cidade; um casamento de amor, quase sem noivado, como ob- litoral e da confusão de uma cidade voltada para o comércio. Ainda servou Gilberto Freyre (1960, p. 103), entre antigos e ásperos sertões no início do Século XIX, o jornalista Hypólito da Costa divulgava no e o projeto de cidades novas; uma utopia que buscou unir tradição Correio Braziliense a necessidade de a corte se dirigir para um ponto Francisco Adolpho Varnhagen, Visconde de Porto Seguro e modernidade. central do País. (VARNHAGEN, 1877; PIMENTEL, 1910; CRULS, 2003; CEBALLOS, 2005; COUTO, 2001; KUBITSCHEK, 2006; VIEIRA, 2007).

Durante o Primeiro Reinado, logo após a proclamação da Independência, coube a José Bonifácio de Andrada e Silva a defesa entusiasta da mudança. Esse foi o teor de sua memória Sobre a Capital marítima ou no interior? Os argumentos de Varnhagen necessidade de ser edifi cada no interior do Brasil, uma nova capital para assento da Corte, da Assembléia e dos Tribunais Superiores, Antes de termos a menor notícia de que já, em outro tempo*, houvera a ideia de se transferir para o interior a ca- 2 No texto de Varnhagen, encontra-se a seguinte nota, assinalada com o*: “De 1809 a 1823, se- pital brazileira, e levados quase unicamente pelo instincto, ao gundo depois fomos averiguando; conforme, mais adiante minuciosamente explicamos” (VAR- observar o mappa, parecia-nos que estaria ella muito mais NHAGEN, 1877, p. 1). Neste texto, tecerei breves comentários a respeito de tais propostas. 18 apresentada, em 1823, à Assembléia Constituinte e Legislativa do Brasil intelectuais, infl uenciados pela interpretação de Buckle, os obstáculos (ROURE, 1979, p. 199; COUTO, 2001, p. 38-39). Defendia a construção representados pela natureza tropical, eram insuperáveis. Para outros, da nova capital na Comarca de Paracatu, Minas, sugerindo que a radicava-se na diversidade racial e, sobretudo, na inferioridade mesma fosse denominada Petrópole ou Brasília. A proposta não se atribuída a negros, indígenas e mestiços os mais graves problemas efetivou, mas até o fi nal do Império muitas vezes a ideia da mudança para o esforço civilizatório e de construção nacional (LIMA, 2007). foi retomada, especialmente por Francisco Adolpho de Varnhagen Esses temas e a reiterada ideia de absoluto desconhecimento sobre o (COUTO, 2001, 38-39). território e sua população combinam-se, com ênfases diferenciadas em um ou outro elemento, nos debates sobre a transferência da Ainda que não tenha sido o primeiro a fazê-lo, Varnhagen cidade sede do governo. apresentou argumentos que aparecem na quase totalidade dos textos publicados desde fi ns do Século XIX até a inauguração de Brasília, em Três argumentos principais orientaram a elaboração de A 1960. E não apenas argumentos, uma vez que a localização ideal a questão da capital: marítima ou interior?, publicado por Varnhagen, em Viena, onde ocupava o cargo de embaixador do Brasil: as seu ver – o triângulo formado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre condições favoráveis do clima; a capital no interior como um foco de D´Armas – se tornou o ponto de referência de todos os projetos de civilização com efeito irradiador para os sertões e as possibilidades transferência da capital para o Planalto Central. Ali, na confl uência de defesa da sede do Império em casos de ameaça externa. A nação das bacias do Amazonas, Prata e São Francisco se encontraria o imaginada pelo historiador deveria ainda se apoiar fortemente na coração do Brasil, imagem das mais persistentes no imaginário imigração européia, em consonância com as teses que, no Século sobre as propostas mudancistas.3 O que sob sua pena era afi rmado XIX, atribuíam valor negativo a uma população caracterizada pela como decorrência natural da observação de um mapa trazia, não forte mestiçagem (SKIDMORE, 1976; OLIVEIRA, 1990; CARVALHO, obstante, um conjunto de questões e dilemas próprios ao processo de 1994; SCHWARCZ, 2008). construção da nacionalidade brasileira. Que o País não constituía uma O texto foi escrito após sete meses de “uma penosa viagem a ca- nação era voz corrente: nenhum sentimento de nacionalidade era valo”, com o objetivo de “procurar por localidades de sertão mais apro- percebido no povo. Era frequente a reprodução de frases como a do priadas a centros de colonização européia [...]” (VARNHAGEN, 1877, p. naturalista Saint-Hilaire em um dos relatos de suas viagens científi cas: Folha de rosto do livro 13) e aos requisitos para a transferência da Capital. O autor reiterou “A questão da capital: marítima ou havia um país chamado Brasil, mas não havia brasileiros. Para alguns no interior?”, do Visconde de Porto Seguro argumentos que apresentara nos dois números de Memorial Orgânico, Acervo do IBGE publicados sem assinatura em Paris, respectivamente em 1849 e 1850,

3 Nessa perspectiva, é interessante lembrar um dos versos do samba enredo da Escola de Samba e republicados, em 1851, na revista Guanabara. Antes mesmo, em carta eredas..de Beija- Flor de Nilópolis no carnaval de 2010, em homenagem aos 50 anos da construção de V Brasília: “No coração do Brasil, o afã de quem viu um novo amanhã.” De acordo com Moema ao Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro - IHGB, de 1839, havia ex- Brasília Vergara (2006), Varnhagen poderia ter se inspirado em Cícero que no livro Da República elogiou Rômulo por fundar Roma longe da costa, em um ponto central – o coração do Império. posto suas ideias a respeito da necessidade da mudança (VARNHAGEN, 19 1877). Ao que defendera, acrescentou novos pontos e as suas observa- anos que se seguiram, ainda que com a difusão e consolidação de negativamente, neste último caso com a conhecida imagem de Brasí- Veredas..de ções de viajante aos sertões de Goiás. novas teorias médicas, a relação entre condições climáticas e de sa- lia como “ilha da fantasia”. Brasília lubridade aparece frequentemente tanto nos textos científi cos como Em suas conclusões, o historiador ressaltou a necessidade de a Ainda que tenha encontrado durante o Império um defensor nos debates parlamentares em torno da transferência da Capital. capital ser transferida para local salubre: da estatura de Varnhagen, foi durante os anos iniciais da Primeira República que a proposta da transferência da capital para o interior Quanto à nação em geral com a dita transferência Finalmente Varnhagen propôs a construção de uma cidade (compendiando aqui só as principais vantagens) adquiriria nova, pois nenhuma das já existentes no sertão preencheria os ganhou peso político. A constituição republicana, promulgada de Ella outra sede de governo mais central, mais segura, mais 1891, determinava em seu artigo 3º: “Fica pertencendo à União, no bem edifi cada, mais nacional e menos commerciante, mais requisitos por ele considerados. E tal urbes deveria ser criada no adequada a civilisar todo o sertão e a desenvolver suas laten- local que o historiador já havia defi nido como o coração do País – o planalto central da República, uma zona de 14 400 km², que será tes riquezas, bem como o commercio interno das províncias oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital entre si, e fi nalmente mais sã e mais própria a recommendar Planalto Central – ponto de encontro das bacias do Amazonas, do São ao mundo todo o clima do giganteo Brazil; o que não succede Francisco e do Prata - de onde, para seguirmos com suas metáforas, Federal.” Para os trabalhos de exploração científi ca e demarcação, foi hoje, em que muitos o julgam todo invadido da febre ama- criada, em 1892, a Comissão Exploradora do Planalto Central, sob a rella, pelo simples facto de grassar ella na capital, que, por partiriam as artérias e chegariam as veias, permitindo, dessa forma, a natural instincto, todos crêem dever encontrar-se em uma circulação no corpo do Brasil. chefi a do astrônomo Luiz Cruls. das paragens mais favorecidas. (VARNHAGEN, 1877, p. 17). Com as diferenças próprias aos valores e interesses

O tema das condições de salubridade acentuado nas conclu- predominantes em cada época, os argumentos de Varnhagen sões de Varnhagen encontra-se entre os mais relevantes não só no aparecem reproduzidos em diversos outros textos, acrescidos de um O sertão saudável da Comissão Cruls e o Império, como em toda a história republicana. No contexto em que o que já fora apontado, em 1810, por Veloso de Oliveira, no momento sertão doente e abandonado revelado pelas historiador publicou seu trabalho, a percepção do Rio de Janeiro como da transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro: “a viagens médicas do Instituto Oswaldo Cruz Capital deveria ser fi xada em lugar são, ameno, aprazível e isento de uma cidade insalubre era uma constante, principalmente como efeito Os nossos fi lhos, que aprendem nas escolas que a vida das sucessivas epidemias de febre amarela, em 1850, 1868, 1873 e confuso tropel de gentes indistintamente acumuladas” (VIEIRA, simples de nossos sertões é cheia de poesia e de encantos, pela saúde de seus habitantes, pela fartura do solo, e generosidade 1876. Tal quadro só seria alterado, no início do Século XX, após a cam- 2007, p. 27, grifo nosso). da natureza, fi cariam sabendo que nessas regiões se desdobra mais um quadro infernal, que só poderia ser magistralmente panha sanitária empreendida por Oswaldo Cruz (BENCHIMOL, 2001; A proteção em pauta não se referia ao eventual ataque de descrito pelo Dante imortal. (NEIVA; PENNA, 1916, p. 222). CHALHOUB, 1996; LOWY, 2006). Em contraste com a cidade carioca, as uma esquadra de nação estrangeira, preocupação maior de Varnha- regiões percorridas por Varnhagen no Planalto Central, devido a sua gen, mas à rotineira e constante movimentação humana de todas as Os primeiros anos da República foram palco de um expres- altitude e em decorrência das teorias médicas de cunho ambientalis- camadas sociais – “as gentes indistintamente acumuladas” – vistas sivo movimento de valorização do sertão. Não é preciso lembrar a 4 ta do período, foram vistas como amenas, no que se refere à média como um risco à integridade da corte e ao poder da Coroa Portuguesa. força que a viagem de Euclides à região confl agrada de Canudos e das temperaturas registradas, e salubres em relação às ”pantanosas” Essa ideia de uma população que poderia colocar em risco o centro o impacto de Os Sertões tiveram para os intelectuais do período em regiões do litoral. Como argumentou Tamara Rangel Vieira (2007), nos decisório aparecerá reiteradas vezes durante a história republicana e questão. Ainda que não tenha sido o primeiro a propor a dualidade

4 Sobre este tema ver: Ferreira (2001); Jordanova (1995) e Edler (1999). se tornou mesmo um tópico de senso comum valorizado positiva ou sertão/litoral para pensar a formação histórica do Brasil, foi esse 20 escritor que imortalizou a imagem de uma diátese social e que cons- rico evidencia-se na diversidade de lugares e contextos em que ele foi cientistas repercutiram nos principais periódicos da época, que levavam truiu de forma mais elaborada o argumento sobre o isolamento do utilizado, desde o Brasil Colônia: para nomear o interior da capitania à população urbana notícias dos longínquos sertões, apresentavam o sertanejo (LIMA, 1999, 2010). de São Vicente (PRADO, 1961, p. 234); o oeste paulista nas primeiras diagnóstico e a perspectiva de futuro antevista pelos cientistas para o décadas do Século XX (FIGUEIRÔA, 1997); a Amazônia (LIMA, 1999; Planalto Central e para a nação (ROSAS, 1996; VERGARA, 2006, 2008). Datam também desse período importantes expedições ao JOBIM, 1957, p. 179); a cidade do Recife (FREYRE, 1977, p. 147); a O trecho a seguir, extraído do relatório da Comissão, dispensa maiores interior, como as da Comissão Rondon; a liderada pelo astrônomo capitania de Minas Gerais (AMADO, 1995); a ilha de Santa Catarina comentários: Luiz Cruls ao Planalto Central visando à mudança da Capital, e as (PRADO, 1961, p. 337); áreas do Nordeste e Centro-Oeste brasileiros expedições científi cas do Instituto Oswaldo Cruz. Muitas dessas via- [...] Nutrimos, pois a convicção de que a zona demar- (NEIVA; PENNA, 1916); o Norte de Goiás (THILEN et al, 2002); subúr- cada apresenta a maior soma de condições favoráveis possí- gens estiveram associadas a projetos de expansão da infra estrutura veis de se realizar, e próprias para nela edifi car-se uma grande bios da Cidade do Rio de Janeiro (PEIXOTO, 1918)5. A imagem criada material do Estado Nacional e devem ser vistas à luz do debate so- Capital, que gozará de um clima temperado e sadio, abasteci- pelo médico Afrânio Peixoto não poderia ser mais sugestiva: os ser- da com águas potáveis abundantes, situada em regiões cujos bre interiorização e unidade territorial e política. A própria noção de terrenos, convenientemente tratados, prestar-se-ão às mais tões teriam seu início no Rio de Janeiro, logo após a Avenida Central, importantes culturas, e que, por um sistema de vias férreas território brasileiro era problemática. Não se dispunha de uma carta e mistas convenientemente estudado, poderá facilmente ser símbolo da reforma urbana empreendida pelo prefeito Pereira Passos bem defi nida; muitos acidentes geográfi cos eram desconhecidos; o ligado com o litoral e os diversos pontos do território da Re- (HOCHMAN, 1998). pública [...] (CRULS, 2003, p. 19). conhecimento sobre os rios e o relevo, entre outros fatores geográfi - cos, eram escassos; problemas de fronteiras não estavam totalmente A transferência da capital para o interior não pode ser À semelhança do que fi zera Varnhagen, retoma-se a relação solucionados. Projetos cujas origens podem muitas vezes ser locali- dissociada, assim, desse debate mais amplo sobre a incorporação entre clima e salubridade e para essa avaliação francamente positiva zadas no Império, não apenas se intensifi caram durante a República dos sertões brasileiros. Sertão, povoamento, civilização, integração sobre o Planalto Central concorreu decisivamente o trabalho realizado como ganharam nova expressão e se associaram ao ideário cientifi cis- à nacionalidade constituem termos recorrentes em diferentes textos pelo médico Antônio Martins de Azevedo Pimentel, autor do Anexo ta dominante entre a intelectualidade (SÁ; SÁ; LIMA, 2008). É possível divulgados durante as três primeiras décadas do Século XX e, entre eles, 4 ao Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central, docu- falar de uma atitude de maior intervenção diante da natureza, cada desempenhou papel importante o relatório da Comissão Exploradora mento no qual se estendeu longamente sobre a ocupação histórica de vez mais associada à ideia de recurso natural, e da auto atribuição do Planalto Central, bem como a ampla cobertura pela imprensa das Goiás, as condições climáticas e a patologia da região, considerando de uma missão civilizatória às elites intelectuais que se viam como atividades por ela realizadas (VERGARA, 2006, 2008; ROSAS, 1996). que esta nada tinha de específi co quando comparada ao quadro de responsáveis pela formação da nacionalidade e pela incorporação dos Nomeada em 1892, durante a presidência de Floriano Peixoto e enfermidades de outras partes do território do País (ROSAS, 1996; sertões (LIMA, 1999). chefi ada pelo astrônomo Luiz Cruls, diretor do Observatório Nacional, VERGARA, 2006, 2008; VIEIRA, 2007). Pimentel desempenhou ainda a Comissão contava entre seus membros com geólogos, botânicos, Aliás, não por acaso, era comum utilizar-se o vocábulo no plu- papel importante na divulgação dos trabalhos da Comissão após o ral, tão distintos geográfi ca e culturalmente eram os sítios por ele astrônomos, farmacêuticos, médicos e militares, somando um total encerramento de suas atividades, tendo publicado vários artigos sobre designados. Desde o período colonial, o termo litoral não denotava de 22 pessoas. Iniciou seus trabalhos em junho de 1892 e os concluiu o tema na Revista do Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro e o simplesmente a faixa de terra junto ao mar, mas principalmente o em fevereiro do ano seguinte. Antes mesmo de seus resultados terem livro A nova Capital Federal e o Planalto buscando, eredas..de VBrasília espaço da civilização. Por seu turno, sertão era concebido como o sido publicados como relatório em 1894, as atividades realizadas pelos assim, ampliar o alcance do que escrevera para o relatório da Comis- espaço dominado pela natureza e pela barbárie. Este sentido metafó- 5 Essas referências compreendem as relacionadas por Amado (1995, p. 149) e Lima (1999, p. 60). são Cruls (MIRANDA, 1985). 21 A defesa da salubridade dos sertões goianos era acompanha- especialmente cardiopatia, cretinismo e hipertiroidismo. Causada por Bahia; e em toda a zona goiana. Tal observação encontra importante Veredas..de da nesses textos pela crítica ao tipo de ocupação territorial litorânea um protozoário denominado por Carlos Chagas Trypanosoma cruzi, evidência nas fotografi as registradas durante a expedição e também Brasília que caracterizara a história do Brasil. No contexto da Primeira Repú- a doença recebeu inicialmente o nome científi co de tripanossomíase publicadas no relatório. Das 24 imagens de doentes que o integram, blica, tal crítica viria a se somar às difi culdades experimentadas com americana, e posteriormente doença de Chagas. A despeito da intensa 18 referem-se à doença de Chagas, sendo o aspecto mais salientado a o federalismo que, como argumentou Moema Vergara (2006), foi um controvérsia sobre essa descoberta científi ca, que ocorreu em 1909, representação de portadores de bócio, ou “papudos”, tal como apon- elemento chave para a aprovação do artigo constitucional sobre a ela se tornou um símbolo da medicina brasileira e da alta qualifi cação tado por Nancy Stepan (2001) e Simone Kropf (2009a, 2009b). mudança da capital e criação da Comissão Cruls, pelo governo Floria- da ciência nacional (KROPF, 2009a, 2009b). no Peixoto. A autora, que se apoiou na análise de Renato Lessa (1988) É interessante observar que a divulgação dessas imagens Na década de 1910, merecem destaque as viagens científi cas sobre a “política dos estados” adotada pelo governo de Campos Sa- e do texto do relatório ocorreu em um contexto marcado por promovidas pelo Instituto de Manguinhos em apoio às atividades les (1898-1902) e seu papel na instituição de um regime oligárquico, controvérsias científi cas em torno da doença de Chagas. Entre elas da Inspetoria de Obras contra as Secas, com o objetivo de realizar considera que, principalmente a partir daquele momento, os proble- a motivada pelos estudos realizados a partir de 1915, na Argentina, o inventário das condições epidemiológicas e socioeconômicas mas relacionados ao federalismo foram tratados com base em uma pelo microbiologista austríaco Rudolf Kraus, que contestaram os das regiões percorridas pelo rio São Francisco e de outras áreas nova alternativa política. Esta característica teria, entre outros efeitos, enunciados de Carlos Chagas sobre a forma crônica da doença, em do Nordeste e Centro-Oeste brasileiros. Entre elas, a que se tornou deslocado o tema da mudança da capital da agenda republicana. especial no que se referia à etiologia do bócio endêmico. Tal como mais conhecida foi a de Arthur Neiva e Belisário Penna, dirigida aponta Simone Kropf (2009a, 2009b), em decorrência das polêmicas Além dessa explicação bastante plausível e referida ao sistema a localidades situadas nos Estados da Bahia, Pernambuco, Piauí e daquele momento, o cientista brasileiro, ainda que reafi rmasse suas institucional, sugiro que se considere outra: a mudança na percepção Goiás (NEIVA; PENNA, 1916). ideias gerais sobre a doença, promoveu uma revisão progressiva dos sobre os sertões e os sertões goianos em particular, sobretudo a Dez anos após a Comissão Cruls ter afi rmado as excelentes enunciados sobre seu quadro clínico, minimizando os elementos partir da década de 1910, após a descoberta da doença de Chagas condições encontradas no Planalto Central, os dois médicos foram tireoidianos (como o bócio) e acentuando a importância das e a repercussão das viagens científi cas promovidas pelo Instituto responsáveis por um diagnóstico oposto, traçando, segundo sua ex- manifestações cardíacas. Curiosamente, a divulgação da imagem dos Oswaldo Cruz. pressão, um quadro dantesco dos sertões brasileiros, inclusive das “papudos”, em grande parte reforçada pela repercussão do relatório Foi naquele contexto que Carlos Chagas e Belisário Penna terras goianas. Ao longo do relatório que escreveram, fi ca claro que em pauta, permaneceria, a despeito daquela intensa controvérsia dirigiram-se, em junho de 1907, a Lassance, no norte de Minas um dos objetivos da viagem fora encontrar evidências que corrobo- científi ca, conferindo grande visibilidade à doença de Chagas e Gerais, por requisição da Estrada de Ferro Central do Brasil, para rassem a importância epidemiológica da doença de Chagas (KROPF, reforçando a retórica do quadro dantesco dos sertões brasileiros, tal realizar a profi laxia da malária que dizimava os trabalhadores 2009a, 2009b; LIMA, 2009). Segundo Neiva e Penna (1916, p. 125; como caracterizado por Neiva e Penna (1916). contratados pela empresa para prolongar a linha férrea até Pirapora. grifo nosso), tanto o bócio endêmico - considerado por Chagas, na Durante os trabalhos, Chagas realizou várias observações sobre um época, como um sinal clínico da doença por ele descoberta - quanto É à ‘descoberta’ de um Brasil ignorado e doente pelas viagens inseto hematófago, comum na região, popularmente conhecido às modalidades nervosas e cardíacas atribuídas à enfermidade, es- médicas do Instituto Oswaldo Cruz, e em particular à descoberta de como barbeiro. Verifi cou ser este o vetor de uma doença até então tavam presentes nas localidades dos municípios de Remanso, Santa Carlos Chagas, que alude uma das frases que se tornou emblemática desconhecida, que associou a uma série de manifestações mórbidas, Rita do Rio Pardo e Barra do Rio Grande pertencentes ao Estado da do movimento pelo saneamento dos sertões e da criação da Liga Pró- 22 Saneamento do Brasil, em 1918: o Brasil como um imenso hospital, (1917-1935). Esse periódico dedicou-se à defesa da salubridade da segundo a forte expressão utilizada por Miguel Pereira (KROPF, 2009a, região e da transferência da capital para as terras goianas e entre seus 2009b; SÁ, 2009a). Ela se tornou o principal dístico da intensa campa- colaboradores mais assíduos se encontravam os médicos Francisco nha pública em prol do saneamento rural e da centralização dos servi- Ayres da Silva, citado no relatório de Neiva e Penna, e Antonio Azevedo ços de saúde com a criação de um ministério próprio (CASTRO-SANTOS, Pimentel (SÁ, 2009b). A salubridade do Planalto Central e das terras 1985, 1987, 2004; HOCHMAN, 1998). goianas como sítio para a construção da nova capital seria um ponto permanente de indagação nas discussões sobre a transferência e foi Este fato não poderia deixar de ter efeitos sobre a proposta novamente abordado pelas comissões de estudos criadas nas décadas de mudança da capital para o Planalto Central, uma vez que se de 1940 e 1950. divulgou uma imagem bastante negativa das terras goianas. Essas

seriam assoladas pela doença ao contrário do que afi rmara o relatório Após a Revolução de 1930 e durante todo o primeiro governo Fotografi a registrada da Comissão Cruls e, em particular, o médico Antonio Martins de de Getúlio Vargas (1930-1945), a questão da transferência da capital durante a viagem científi ca pelo norte Azevedo Pimentel, que a considerara uma área paradisíaca (ROSAS, para o interior deixou de fi gurar na agenda política. Mesmo quando da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do 1996; VIEIRA, 2007; VERGARA, 2008). Como demonstra Dominichi a bandeira da Marcha para Oeste6 foi defl agrada durante o Estado Piauí e de norte a sul de Goiás, realizada Miranda de Sá (2009a), a intensa repercussão na imprensa do Novo (1937-1945), com sua proposta de ocupação de terras do pelos médicos Arthur Neiva e Belisário relatório de Neiva e Penna, sobretudo na série de artigos publicada interior, expansão da fronteira agrícola e contenção do êxodo rural e Penna pelo Correio da Manhã de outubro de 1916 a março de 1917, teria da migração para os principais núcleos urbanos, o tema da mudança Acervo da Casa de Oswaldo Cruz efeitos importantes para a causa da mudança da Capital. O primeiro da capital não teve proeminência. deles, intitulado: “A eliminação do brasileiro”, trazia um trecho À semelhança do que ocorrera nos períodos de aprovação bastante sugestivo: das constituições políticas no Império e na Primeira República, foi Hoje que as pesquisas tão pacientes quanto brilhantes exatamente durante a Assembleia Nacional Constituinte, reunida de Carlos Chagas e de Arthur Neiva vieram revelar esse sertão brasileiro tal qual ele se apresenta aos olhos do cientista e do em 1946 para estabelecer a nova ordem constitucional da nação, médico, é que podemos avaliar em que camisa de onze varas que a tese mudancista retornou. Muitos políticos com atuação de- nos teríamos metido, se houvéssemos transferido a sede do cisiva na criação de Brasília, inclusive o futuro presidente Juscelino governo federal para o planalto central antes de estar rea- lizada a obra colossal do saneamento do vastíssimo sertão Kubitschek, atuaram naquele momento, protagonizando acaloradas brasileiro. (SÁ, 2009b, p. 197). discussões em plenário. Se no plano mais geral dos discursos pro- feridos, os diferentes projetos para o Brasil estavam em debate, não Como reação a esse artigo foi criada pelo médico goiano eredas..de V Antonio Americano do Brasil e pelo militar Henrique Silva, que Carlos Chagas 6 Blog Lambe-Lambe Brasília Sobre A marcha para Oeste, ver: Lopes (2002); Linhares (1999); Velho (1976); Lenharo (1986) havia participado da Comissão Cruls, a revista A Informação Goiana e Beskow (2010). Acesso em 26/03/2010 23 se pode ignorar a importância das clivagens estaduais, opondo os cito, dela também tomaram parte, entre outros cientistas e técnicos, Veredas..de que desejavam a mudança para o Triângulo Mineiro aos defensores Jerônimo Coimbra Bueno, Christovam Leite de Castro, responsável pela Brasília da área delimitada pela Comissão Cruls. Também Goiânia, cidade subcomissão de investigações geográfi cas, o médico Geraldo de Paula

Acampamento agrícola recentemente construída e que vivera uma intensa mobilização em Souza e o engenheiro Lucas Lopes (VIEIRA, 2007). de emigrantes 7 goianos, provenientes 1942, durante o evento denominado batismo cultural , foi proposta de Luziânia. Foto de Lúcio de Castro como nova sede do governo por João Fernandes Campos Café Filho. Soares A transferência para o Triângulo Mineiro foi defendida por Benedi- Acervo do IBGE O Brasil é um País a organizar: as con- to Valadares, político mineiro que havia atuado como interventor clusões da Comissão Polli Coelho e a defesa em Minas Gerais entre 1933 e 1945, por Israel Pinheiro e Juscelino da nova capital no Planalto Central por Kubitschek, com base em estudos realizados pelo engenheiro Lucas Teixeira de Freitas Lopes. Pedro Ludovico Teixeira, que fora responsável pela mudança [...] a terapêutica de que precisamos terá de atingir as da capital de Goiás para Goiânia, e outros membros da bancada da- origens profundas dos erros que motivaram a tremenda diáte- quele estado, admitiam essa última cidade como opção temporária, se social e econômica em que o país se debate. Ora, o remédio heróico para o nosso quadro patológico é exatamente aquela mas defendiam a transferência defi nitiva do Distrito Federal para a mudança de rumos na vida nacional. Aquela valorização das área demarcada pela Comissão Cruls (COUTO, 2001, p. 47; BOJUN- terras interiores. Aquela obra de povoamento e a conseqüente fi xação do homem ao sertão (FREITAS, 1948, p. 87). GA, 2001, p.172/395; SILVEIRA, 1957, p. 265-266; VIEIRA, 2007, p. 53-54). Nas Disposições Transitórias da Constituição Federal, pro- Os trabalhos realizados com o intuito de conferir base científi ca

Emigrantes mineiros, com destino à Colônia Agrícola Nacional de mulgada em 18 de setembro de 1946, estabeleceu-se a transferên- à localização da nova capital envolveram posições divergentes, uma Goiás. Foto de Fábio de Macedo Soares Guimarães cia da capital da União para o Planalto Central, a nomeação de uma vez que alguns membros da Comissão de Estudos consideravam Acervo do IBGE comissão de técnicos para os estudos necessários a sua localização; inadequada a transferência para o quadrilátero Cruls, alternativa o encaminhamento dos resultados desses estudos para o Congresso defendida pelo seu presidente, Polli Coelho. Este, em texto sobre o conceito geopolítico do Planalto Central elaborado antes dos trabalhos Nacional para deliberação e o início da delimitação da área do novo fi nais da Comissão, observou que os principais argumentos contrários Distrito Federal. consistiam na inviabilidade para empreendimentos agrícolas e nos Dois meses após a promulgação da Carta Constitucional, o custos de construção naquelas localidades:

presidente Eurico Gaspar Dutra nomeou a Comissão de Estudos para Uma das asserções mais frequentes, de que a área do a Localização da Nova Capital (VIEIRA, 2007, p. 71). Liderada pelo ge- retângulo de 14.400 quilômetros quadrados, demarcada pela Comissão Cruls, é estéril porque é formada de “cerradões”,em neral Djalma Polli Coelho, diretor do Serviço de Geografi a do Exér- chapadas areníticas, onde nada se poderá plantar ou criar e onde faltam por completo as águas potáveis e os materiais de construção indispensáveis à edifi cação do novo Distrito Casa típica de colono, construída a pau e pique 7 Sobre o Batismo Cultural de Goiânia, ver: Camargo (2008b). Federal. Foto de Fabio de Macedo Soares Guimarães Acervo do IBGE 24 Ora, os trabalhos de campo da Comissão, de que sou Presidente, desautorizam completamente essas levianas con- clusões (COELHO, 1948, p. 9-10).

Importava, assim, para as atividades da Comissão observar as condições do solo, a existência de água potável, o potencial hidrelétrico e as condições naturais para as atividades agro pecuárias e as possibilidades de colonização. Esse conjunto de preocupações fi ca bastante evidente no trabalho realizado pelas duas expedições geográfi cas ao Planalto Central organizadas pela Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital do Brasil e constituídas por membros do Conselho Nacional de Geografi a8. A primeira, dirigida por Francis Ruellan, estudou em detalhes as oito zonas previamente defi nidas no intuito de indicar os sítios mais adequados para a transferência. A segunda fi cou sob responsabilidade de Fábio de Macedo Soares Guimarães, com orientação científi ca de Leo Waibel, e analisou o Planalto Central em seu conjunto tendo em vista defi nir a melhor posição (GUIMARÃES, 1949)9.

Para o geógrafo Fábio de Macedo Soares Guimarães a posição deveria ser o critério prioritário, pois a nova capital deveria ocupar situação central em relação às áreas povoadas do País e permitir fácil comunicação com as diferentes regiões (GUIMARÃES, 1949, p. 497). Ao se levar em conta o sítio e a posição, as seguintes características deveriam ser estudadas para defi nir a localização da nova Capital: a altitude; os estados de tempo, as condições do lençol d´água, o relevo,

Mapa do Brasil 8 O Conselho Nacional de Geografi a e o Conselho Nacional de Estatística, também citado neste com a divisão texto, eram órgãos do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística - IBGE. A este respeito ver: territorial proposta por Veredas..de Senra (2008). Teixeira de Freitas Brasília 9 O sítio referia-se aos aspectos intrínsecos ao local visitado e a posição compreendia a situa- Acervo da Memória ção da cidade a ser construída em relação ao conjunto do País (GUIMARÃES, 1949). Institucional do IBGE 25 a estrutura geológica, a drenagem, a vegetação, os solos, a Dessa forma, a questão geopolítica priorizada pelo presi- Veredas..de ocupação humana, as atividades econômicas, as vias de transporte e dente da Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital Brasília comunicações; e a incidência de malária, problema que era relacionado incidia sobre a natureza do Estado brasileiro, entendendo que este à altitude, considerando-se que as chapadas elevadas tendiam a era mal-estruturado, apoiado em um federalismo frágil. Invertendo ser isentas da doença. Um aspecto importante nos trabalhos das explicações anteriores sobre os problemas nacionais - os “males do expedições geográfi cas consistiu na preocupação com o registro Brasil”-Polli Coelho afi rmava que da débil organização política resul- fotográfi co de acidentes do relevo; da vegetação, das cachoeiras, mas tariam o analfabetismo e a doença. Sua crítica ao federalismo tinha também da ocupação humana, com ênfase nas atividades agrícolas já como cerne a heterogeneidade dos estados no que se referia às áreas, existentes e nas colônias que se formavam (GUIMARÃES, 1949). às populações, às riquezas, aos climas e ao solo. Em sua perspectiva, isto explicaria “tudo o que ocorre de desagradável no Brasil: despovo- Os dados obtidos pelas duas expedições foram essenciais amento, falta de ligações internas, subalimentação do povo, perma- para o relatório da subcomissão de assuntos geográfi cos, sob respon- nência de endemias, etc.” (COELHO, 1948, p. 13). sabilidade de Christovam Leite de Castro e orientação científi ca de Leo Waibel. Nesse documento, o “Retângulo Cruls” fi cara em sexto lugar Nesse ponto havia um forte ponto de convergência com a entre as oito localidades investigadas, pois, segundo Waibel (1961), posição de membros do Conselho Nacional de Estatística que, em se teria privilegiado a geografi a humana. Essa foi uma posição mi- Assembléia Geral realizada em julho de 1948, manifestou plena noritária na Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital concordância com as conclusões da Comissão de Estudos para a 10 Membros da Comissão Polli Coelho (da do Brasil que concluiu pela alternativa Cruls, considerando o critério Localização da Nova Capital (IBGE, 1948) . E entre os estatísticos esq. para a dir.): Luís Vieira, Coimbra brasileiros, foi Mário Augusto Teixeira de Freitas quem mais se Bueno, Djalma Polli Coelho e Francisco geopolítico como o mais importante. Perspectiva adotada por Polli de Souza; sentados: Antonio Carlos pronunciou em defesa do documento fi nal da Comissão Polli Coelho. Cardoso, Lucas Lopes e Coelho, o argumento geopolítico deve ser entendido à luz dos debates Christovam Leite de Castro travados à época. Acervo do IBGE Diretor de Informações, Estatística e Publicidade do Ministé- rio da Educação e Saúde, de 1931 a 195211, Teixeira de Freitas desem- Não se tratava de uma simples atualização da ênfase de penhou papel chave na criação do Instituto Nacional de Estatística, Varnhagen na necessária defesa da Capital, mesmo porque na década em 1936, e em sua transformação em Instituto Brasileiro de Geografi a de 1940, e ainda mais após a Segunda Guerra Mundial, outra era a e Estatística - IBGE, dois anos depois. Também em 1936 assumiu a Se- compreensão sobre a defesa da soberania nacional e dos meios técnicos e militares necessários para tanto. Além de se apoiar em geopolíticos 10 A Resolução nº 388, de 21 de julho de 1948, da referida assembleia, apresenta entre suas europeus infl uentes no Brasil, a exemplo de Rudolf Kjellen e Otto resoluções: Artigo 3: O Conselho assinala, ainda, o fato de coincidir integralmente com o pen- samento que os Estatísticos Brasileiros já fi rmaram, há muito, unanimemente, o ponto de vista Maul, Polli Coelho tinha na obra de Alberto Torres, com sua crítica claramente exposto pelo general Djalma Polli Coelho, Presidente da referida Comissão e que, por ao centrifugismo, às oligarquias estaduais e sua defesa de uma nova feliz coincidência, também fala em nome do Serviço Geográfi co do Exército. (IBGE, 1948, p. 7). 11 Teixeira de Freitas foi também presidente da Sociedade Brasileira de Educação, de 1935 a organização nacional, uma das principais referências (COELHO, 1948). 1938 (CAMARGO, 2008a, p. 393). 26 cretaria Geral do Conselho Nacional de Estatística, cargo que ocupou parte da área dos atuais estados maiores para aqueles de menor porte,

por 12 anos. Ao lado dessa intensa atuação institucional, dedicou-se anulariam os confl itos regionais, afastando o risco do separatismo e Teixeira de Freitas (primeiro a direita) em inúmeros trabalhos às relações entre a natureza do conhecimento estimulando a consciência nacional de toda a população”. (CAMARGO, na cerimônia do Batismo Cultural de Goiânia Acervo do IBGE estatístico e as políticas de desenvolvimento e povoamento do País 2008a, p. 387). (CAMARGO, 2008a, p. 383)12. Defensor das políticas de interioriza- Com a perspectiva de sugerir medidas necessárias para ção e da transferência da capital para o Planalto Central, foi também viabilizar a transferência da Capital, Freitas apresentou a Polli Coelho um dos principais organizadores do Batismo Cultural de Goiânia, em a alternativa de instituir em Belo Horizonte uma sede transitória, 1942, responsável pela realização do VIII Congresso Brasileiro de Edu- proposta que, sem mencionar a cidade mineira, fi gurava entre as cação na nova capital de Goiás. (CAMARGO, 2008b, p. 603). resoluções do Conselho Nacional de Estatística: “transferência

À semelhança de Polli Coelho, Teixeira de Freitas tinha Alberto provisória dos principais órgãos do Governo e da República para uma Torres como uma de suas principais referências intelectuais, daí cidade do interior, desde que esta ofereça as condições necessárias e reportar-se com frequência à frase “O Brasil é um país a organizar”. esteja colocada a meio caminho entre o Rio de Janeiro e o Planalto Central (IBGE, 1948, p. 8). Era à crítica ao federalismo brasileiro que se voltava grande parte de seus textos nos quais se dedicou ao projeto de reformulação do Toda a discussão travada partia do pressuposto do papel ir- mapa político do Brasil. Em longa carta ao presidente da Comissão de radiador civilizatório de uma capital no sertão do País, capaz de con- Estudos para a Localização da Nova Capital, ao mesmo tempo em que tribuir para a superação da diátese social lembrada por Freitas, com defendia a opção pelo Planalto Central, situava-a no âmbito de uma base em uma evidente inspiração euclidiana. Naturalmente não havia proposta mais ampla concernente ao tema que o ocupava “há cerca consenso em torno de tal proposta e não por acaso o relatório da de 40 anos”: uma nova divisão política do Território Nacional, por comissão presidida por Polli Coelho gerou tão intensa mobilização meio do estabelecimento de novos Estados-membros da Federação, que abarcou desde a Assembleia do Conselho Nacional de Estatística com destaque para a formação de um consórcio entre Minas Gerais, a cartas a parlamentares e entrevistas à imprensa. Afi nal, como já Rio de Janeiro e o antigo Distrito Federal (FREITAS, 1947). Essa assinalado, havia opiniões divergentes no interior mesmo da Comis- proposta já constava de documentos anteriores de Freitas sobre uma são de Estudos para a Localização da Nova Capital, destoando do que nova divisão política para o País nos quais ele argumentava que “a ocorrera à época da Comissão Cruls, caracterizada por um alto grau proporcionalidade da extensão geográfi ca, através da cessão de de unidade, ao menos no que se refere às manifestações públicas de Pedro Ludovico, Teixeira de Freitas e Christovam Leite de Castro no Batismo seus integrantes. Cultural de Goiânia Acervo do IBGE 12 Note-se que, na publicação do IBGE, A localização da nova capital da república, além da já Os membros da Comissão Polli Coelho dividiam-se entre os eredas..de mencionada resolução do Conselho Nacional de Estatística e do estudo de Polli Coelho sobre o V espigão mestre, são reunidos “esclarecimentos e sugestões (documentos subscritos pelo antigo que defendiam uma área localizada no Triângulo Mineiro e os que Brasília Secretário Geral do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística),” o que demonstra a importân- cia atribuída às posições de Teixeira de Freitas (1948). consideravam o quadrilátero Cruls como principal referência para a 27 mudança. Na argumentação do primeiro grupo, era frequente a an- e ao norte a Chapada dos Veadeiros (VIEIRA, 2007, p. 84-85). Assim, tal A escolha da área específi ca em que seria construída Brasília Veredas..de teposição do centro geográfi co ao centro demográfi co ou econômi- como consta na mensagem que acompanhou os estudos da comissão fi cou sob responsabilidade da Comissão de Localização da Nova Capi- Brasília co. O dilema foi resumido por Polli Coelho com a seguinte pergunta: encaminhada ao Presidente da República em 21 de agosto de 1948: tal, sob a liderança do general Aguinaldo Caiado de Castro, Chefe da “haverá uma técnica capaz de dar solução ao problema da mudança, Casa Militar da Presidência da República13. De acordo com o decreto [...] A conclusão aqui encaminhada é no sentido de que é um problema antes de tudo político?” (COELHO, 1948, p. 12). Ele estabelecê-lo no planalto goiano aproveitando integralmente que a instituiu, os seguintes requisitos deveriam ser considerados para questionava a possibilidade de resolver o problema da localização a a área proposta em 1892 pela comissão Cruls, em zona de escolha defi nitiva do local: clima e salubridade favoráveis, facilidade confl uência das bacias dos rios Amazonas, Paraná e São Fran- partir do trabalho de uma comissão técnica de 12 membros e, como cisco. Não se teve em vista unicamente a ideia de respeitar a de abastecimento de água e energia elétrica; facilidade de acesso às já observado, elegia o problema geopolítico como o principal a ser tradição constitucional, mais ainda os efeitos favoráveis sobre vias de transporte aéreo; topografi a adequada; solo favorável às edi- a economia geral da Nação e sobre a estruturação geopolítica levado em conta para tal decisão. do estado, considerando este como um todo unifi cado e con- fi cações; existência de materiais de construção; proximidade de terras solidado [...]. (VIEIRA, 2007 p. 85). para cultura e, por último, paisagem atraente (BRASIL, 1953). No âmbito da Comissão, a minoria, que contava entre seus proponentes com Paula e Souza, Christovam Leite de Castro e Lu- Após a trágica morte de Getúlio Vargas e sob a presidência O documento citado foi encaminhado pelo Presidente da cas Lopes, defendeu uma área de 6 000 km², localizada no Triângulo de Café Filho, o marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque República, Eurico Gaspar Dutra, ao Congresso Nacional, que criou Mineiro, apoiando-se na tese do centro demográfi co ou econômico substituiu o Gal. Caiado de Castro.14 Na condução dos trabalhos, ele uma comissão especial para sua análise e realização de estudos com- (VIEIRA, 2007). Um dos mais entusiastas defensores dessa proposta, coordenou os levantamentos necessários para defi nir a localização plementares. Em seu relatório fi nal, esta última indicou uma área Lucas Lopes, afi rmaria anos mais tarde em um depoimento: com base no laudo técnico da empresa de engenharia norte-ame- de cerca de 50 000 km² a ser escolhida na região Anápolis-Goiânia. [...] havia os que tinham uma visão global, de que o ricana Donald Belcher que indicara cinco áreas como mais adequa- Entretanto, apenas em 1953, durante o segundo governo de Getúlio importante era que a capital fi casse não no interior de Goiás, das à construção. Para a escolha, mais uma vez foram acentuadas mas num ponto que dominasse politicamente o Brasil Central. Vargas, a questão da transferência foi retomada com a nomeação de Todo o meu interesse em levar a capital para o triângulo Mi- as condições climáticas e de salubridade (VIEIRA, 2007, p. 103). Em neiro foi de caráter político. Eu sentia que a capital no Triân- uma nova comissão de estudos dedicada à escolha defi nitiva do local abril de 1955, a comissão defi niu uma área de 5 850 km², situada gulo Mineiro seria capaz de conquistar o Brasil Central porque da nova Capital. aquela região tinha bases econômicas boas e estava ligada ao entre os rios Preto e Descoberto, a ser desapropriada para que se ini- que eu chamava de core área, a área medular do Brasil econô- ciasse a construção da nova Capital. Dessa forma, quando Juscelino mico. Todo o efeito econômico do Triângulo Mineiro poderia ser projetado sobre a bacia amazônica, o Tocantins, etc. Além disso, era uma área próxima às fronteiras do sul do Brasil, que eram as fronteiras mais tensas. (LOPES, 1991, p. 100). Das comissões de estudo da década de 13 Integravam a Comissão: Tasso da Cunha Cavalcanti; Capitão Paulo Bosiso, Coronel Aureliano 1950 à construção de Brasília Luiz de Faria, Jorge dÉscragnolle Taunay, Ademar Barbosa de Almeida Portugal, Flávio Vieira, João Castelo Branco, Paulo Assis Ribeiro, Valdir Niemeyer, Coronel Júlio Américo dos Reis, Enge- Por sua vez, a maioria, que contava com a liderança do pre- nheiro Jerônimo Coimbra Bueno (já participara da comissão Polli Coelho), Major Mauro Borges [...] O Brasil deve ser louvado pelo fato de ser a primei- Teixeira e Coronel Deoclécio Paulo Antunes (VIEIRA, 2007, p. 101). sidente da comissão, Polli Coelho, optou por uma área de cerca de 78 ra nação na história a basear a seleção do sítio de sua capital 14 Alguns membros permaneceram na Comissão - Aureliano Luiz de Faria, Ademar Barbosa de 000 km², formada de terras do leste do Estado de Goiás, confi nando a em fatores econômicos e científi cos, bem como nas condições Almeida Portugal, Flávio Vieira, Paulo Assis Ribeiro, Coronel Júlio Américo dos Reis. Passaram de clima e beleza. A localização geral do Novo Distrito Federal também a integrá-la José Peixoto da Silveira (então Secretário de Saúde do Estado de Goiás); leste com os Estados da Bahia e Minas Gerais, e abrangendo ao sul e Silvio Borges de Souza Mota, José Eurico Dias Martins, Fábio de Macedo Soares Guimarães foi determinada após longos anos de acurados estudos dos (participara da Comissão Polli Coelho); Lucídio Albuquerque; Augusto Sérgio da Silva, Felinto parte do oeste o retângulo demarcado pela Comissão Cruls em 1892, fatores regionais [...] (BRASIL, 1957, p. 20). Epitácio Maia e Rubens d´Almeida Horta Porto (VIEIRA, 2007, p. 102). 28 Kubitschek assumiu a Presidência da República, em janeiro de 1956, já o Departamento Nacional de Endemias Rurais para que se estudas- estava defi nido o local onde se ergueria Brasília (BOJUNGA, 2001). sem as condições de salubridade e se planejassem as ações de saúde que deveriam acompanhar a construção da nova cidade. No mesmo Foram muitas as controvérsias a respeito dessa localização. As ano, a Comissão foi extinta e criada a Companhia Urbanizadora da críticas à escolha foram divulgadas tanto em revistas especializadas, a Nova Capital do Brasil - NOVACAP, sob a presidência de Israel Pinheiro exemplo do Boletim Geográfi co, como nas páginas da revista O Cruzei- e tendo na diretoria Bernardo Sayão, Íris Meinberg e Ernesto Silva, ro, o magazine de maior circulação àquela época. Uma das principais responsável pelo Departamento de Assistência Social e Saúde. No que dirigia-se à aridez do solo do Planalto Central e às difi culdades para se se refere a esse departamento, as preocupações voltavam-se para im- desenvolverem atividades agrícolas no cerrado. Devido a elas e à ca- rência de indústrias na região, acentuavam-se, em vários artigos, os portantes diretrizes do governo Juscelino Kubitschek. problemas de abastecimento (VIEIRA, 2007, p. 103-110). Ainda que, como salientou Gilberto Hochman (2009), a saúde No âmbito da comissão presidida por Pessoa Cavalcanti de Al- não fosse um ponto central do programa de governo de Kubitschek, a buquerque, as defesas mais veementes da escolha foram feitas pelo preocupação com as endemias rurais e sua relação com o desenvolvi- médico Peixoto da Silveira, secretário de saúde do Estado de Goiás, mento nortearam a sua plataforma para esse setor. Nele se afi rmava Situação geográfi ca das áreas propostas para o futuro Distrito Federal que compartilhava a tradição dos médicos seus conterrâneos na de- que o Brasil não era mais “o vasto hospital da frase, que se tornou Acervo do IBGE fesa da mudança da Capital. O trecho de sua entrevista publicada em histórica porque verdadeira, da observação clarividente de Miguel Pe- O Globo dá uma noção do teor de seus argumentos: reira.” (KUBITSCHEK, 1955, p. 53). No caso específi co da construção

[...]Completando as indiscutíveis condições de salubri- de Brasília, a preocupação com as endemias rurais intensifi cava-se dade, há numerosos cursos de água, em abundância, de fácil no que tangia à possibilidade de infestação por barbeiros. Esta era captação e excelente índice de potabilidade. A própria topo- grafi a da região, que não é montanhosa e nem chata, mas constante, como se pode verifi car no artigo publicado pelo médico suavemente ondulada, além de proporcionar os mais belos Isaac Barreto Ribeiro: panoramas, muito facilitará a arquitetura e as obras públicas de calçamento, água e esgoto. Nestas condições – e debeladas algumas endemias de fácil saneamento, hoje, pelos modernos [...] medidas estão sendo tomadas relativas á cons- processos – Brasília será uma nova e verdadeira “Xangri-Lá” trução das habitações rurais, no sentido de tornar impossível [...]. (SILVEIRA, 1957, p. 203). nelas a existência do inseto transmissor. Vimos um rancho derrubado por não preencher os requisitos acima, sendo as- sim proibida a construção de casas de tipo primitivo, de pa- Um passo decisivo foi dado com a transformação da comis- redes barreadas e cobertas de capim, etc., que possibilitem a são presidida por José Pessoa em Comissão de Planejamento da Cons- proliferação dos triatomídeos. (RIBEIRO, 1957, p. 197). trução e da Mudança da Capital Federal. Em junho de 1956, o médico eredas..de VBrasília Ernesto Silva assumiu a sua presidência e, logo após, lançou o edital Conforme demonstra o estudo de Tamara Rangel Vieira (2007 do concurso para o Plano Piloto de Brasília e os entendimentos com e 2009), os médicos de Goiás, e em particular os que se articulavam 29 em torno da Revista Goiana de Medicina, desempenharam um pa- bairro da Pampulha e em Brasília indicam, para a autora, a expressão Veredas..de pel relevante na transferência da capital para o Planalto Central e da “importância do modernismo mineiro no estabelecimento de polí- Brasília na construção de Brasília. No período de construção da cidade, tal ticas arquitetônicas no Brasil” (BOMENY, 2002, p. 205). importância acentuou-se, pois, como observa a autora, “Brasília pro- Por sua vez, a experiência de Goiânia e suas afi nidades com as jetada como expressão de arrojo e da modernidade de uma época não escolhas políticas que antecederam a defi nição do sítio e a construção poderia prescindir de um planejamento que levasse em conta suas da nova Capital, estiveram muito presentes nos textos publicados de condições de salubridade” (VIEIRA, 2009, p. 298). 1940 a 1960. Desde a época do batismo cultural da capital de Goiás, A experiência de planejar e construir a nova capital também muitas páginas foram escritas sobre o signifi cado de uma cidade pla- envolvia fortemente a importância atribuída ao urbanismo e à nejada com o forte concurso das ciências – da higiene ao urbanismo. arquitetura – uma aposta de redefi nição do espaço social a partir Monteiro Lobato foi um dos escritores a saudar aquele experimento do traçado das cidades. Tal importância, ao lado da preocupação urbano. Escrevendo na década de 1940, em uma de suas obras de lite- com as condições de salubridade, aproxima o projeto realizado pelo ratura infantil, manifestou o encanto com a nova capital e seu impacto governo de Kubitschek a duas outras experiências urbanas instigantes para um estado que dava a impressão de um deserto. Ao elogiar o seu ocorridas no Brasil: a transferência da capital de Minas Gerais para plano urbanístico, no qual, em sua opinião, tudo estava previsto, afi r- Belo Horizonte15, em 1897, e a de Goiânia, que se tornou capital de mava que foram verdadeiros estadistas os que tiveram a “ideia de criar Goiás em 1937 (VIEIRA, 2009).16 essas cidades certas” (LOBATO, 1957, p. 64).

A comparação entre Belo Horizonte e Brasília motivou He- As referências à Goiânia foram também freqüentes durante os lena Bomeny a considerá-las cidades-irmãs no modernismo, com anos de construção da nova capital do País. Entre outros autores, Ra- seu apelo às largas avenidas, ao universalismo e ao cosmopolitis- chel de Queiroz, acentuava em artigo da revista O Cruzeiro, o dinamis- mo (BOMENY, 2002). Outra afi nidade modernista entre elas viria mo de Goiás e a importância das cidades que seriam vizinhas à Brasília dos projetos urbanístico e arquitetônico realizados durante a ges- - Santa Luzia, Planaltina, Formosa, Anápolis e, sobretudo a “jovem e tão de Juscelino Kubitschek quando prefeito da primeira cidade, de crescente Goiânia” (QUEIROZ, 1957, p. 130). No mesmo periódico, Gil- 1940 a 1945. A conexão entre as construções de Oscar Niemeyer no berto Freyre que criticava a arquitetura escultural e a cidade concebida Capa da Revista Goiana de Medicina, v. 4, n. 1, jan-mar 1958 a partir de um plano urbanístico, a seu ver pouco considerando aspec- Acervo da Associação Médica de Goiás tos sociológicos, enaltecia a experiência de Goiânia e o projeto de levar 15 Sobre as questões de saúde envolvidas na construção de Belo Horizonte, em especial no que se refere ao bócio endêmico, ver: Marques e Mitre (2004). Sobre as relações entre saúde e a a capital para o interior, “Goiânia foi o primeiro grande arrojo no sentido experiência dessa cidade, ver: Silveira (2004). Sobre o mesmo tema na história de Goiânia ver: Freitas (1999). de realizar-se o já velho desejo de muitos brasileiros de transferirem a 16 Uma outra discussão relevante refere-se às experiências de transferência de capitais e cons- trução de cidades planejadas em outros países, em particular a partir do Século XIX. A propósito, Capital do seu país, do litoral para um interior ecológica, econômica e a fundação de Washington e São Petersburgo é lembrada nas discussões sobre a mudança da capital no Brasil, entre outros autores, por Varnhagen (1877) no texto aqui comentado. sociologicamente estratégico.” (FREYRE, 1960, p. 36). 30 Entretanto, ainda que tivesse tantos laços com a tradição de A capital no sertão: considerações fi nais Flor no deserto, nas palavras do fi lósofo Roland Corbisier se pensar as integrações territorial e política do País e apresentasse (1960); uma clareira no sertão, imagem corrente que mereceu a Cinquenta anos passados de sua inauguração, Brasília per- afi nidades com as experiências anteriores de Belo Horizonte e Goiâ- crítica arguta de Rachel de Queiroz (1957), Brasília ainda hoje divide manece um desafi o para a análise acadêmica e a imaginação política. nia, era à imagem de um País que se desenvolvia em ritmo acelerado opiniões. Difícil fi car indiferente à cidade traçada por Lucio Costa O legado de tantos projetos, dispositivos constitucionais e estudos, que mais se associava o projeto da nova Capital. Brasília se tornou e marcada pela arquitetura de Oscar Niemeyer. Sob seu traçado, cujas origens remontam ao Século XVIII e que foram brevemente a meta-síntese da presidência de Juscelino Kubitschek e se este não camadas arqueológicas de uma história por vezes invisível podem comentados neste texto, não poderia explicar as especifi cidades do participara da decisão do local onde deveria ser erguida a nova cidade, levar a múltiplos caminhos e visões de seu presente, mas também processo de construção, afi rmação e mudanças dessa cidade. Não é transformou-a em um monumento do Brasil moderno que concebeu. de seu passado. Objeto de desejo da ciência, sonho aristocrático e possível dissociá-lo, entretanto, da história dos projetos de transfe- (BENEVIDES, 1976; LAFER, 2002; GOMES, 2002; BOMENY, 2002; FARO; irrealizável de uma cidade protegida de movimentos e demandas rência da capital para o interior. E em particular da tradição de pensar SILVA, 2002). Cidade símbolo de uma época de otimismo, tal realiza- populares, utopia igualitária: cada uma dessas projeções não poderia o Brasil a partir do sertão, termo polissêmico, por vezes designando o ção não esteve infensa a paixões e fortes antagonismos. Críticas e determinar os rumos e a criação cotidiana de uma cidade. Brasília se lugar do atraso, por vezes a raiz de uma nação autêntica; ora paradi- defesas veementes à nova capital ocupavam o Congresso Nacional e transformou, mas ainda hoje guarda um pouco da poesia da Sinfonia síaco, ora lugar da doença e do abandono. Isto em uma sociedade na da Alvorada, que, em sua referência ao Genesis, faz pensar tanto na as páginas dos principais periódicos (VIEIRA, 2007). Em muitas delas qual, como advertiu Roger Bastide (1978), a geografi a não se separa capital no sertão, como na reinvenção permanente de um país: apontavam-se problemas de gasto público e mesmo de corrupção17; da história. em outras se atacava, por exemplo, o que se considerava um problema No princípio era o ermo de difícil solução: as favelas do Rio de Janeiro18. As vozes favoráveis Consórcio peculiar entre ciência e política, nesse encontro Eram antigas solidões sem mágoa. consideravam, sobretudo, que Brasília representaria o elemento es- com o sertão, as missões ao interior desempenharam importante O altiplano, o infi nito descampado sencial para a efetiva marcha para Oeste, alterando a geografi a eco- papel. Ente elas, as sucessivas comissões de estudos responsáveis No princípio era o agreste: nômica e a política do País19. pela demarcação do melhor sítio para a Capital, não apenas o fi zeram O céu azul, a terra vermelho-pungente reafi rmando, a despeito das inúmeras controvérsias, a opção pelo E o verde triste do cerrado. Planalto Central. Empreenderam, ao mesmo tempo, um notável Eram antigas solidões banhadas trabalho de exploração científi ca, contribuindo, desse modo, para De mansos rios inocentes 17 Este era um dos principais problemas apontados no discurso de oposição ao governo Ku- alargar o conhecimento sobre o Território Nacional, além de terem bitschek, principalmente pelos políticos da União Democrática Nacional - UDN. Ver a respeito: Por entre as matas recortadas Benevides (1976). Na imprensa, o jornalista David Nasser (1957a, 1957b; 1959) foi o que mais criado imagens duradouras sobre a região e sobre o País. O balanço levantou a questão, tal como pode ser visto nos artigos que publicou em O Cruzeiro. Não havia ninguém. 18 É interessante observar que a mobilização contrária a Brasília durante o governo de Jusceli- desse legado é parte da história das ciências e também da história no Kubitschek levantasse com frequência a crítica ao grande volume de recursos aplicados na social e política do Brasil. Se a utopia da integração nacional, sempre construção da nova capital e a indiferença pelo problema representado pelas favelas do Rio ‘Brasília, Sinfonia da Alvorada’ de Janeiro. Tal visão teria motivado o jornal O Estado de São Paulo a contratar a conceituada lembrada pelas diferentes comissões de estudo, não se realizou, a Sociedade de Análises Gráfi cas e Mecanográfi cas Aplicadas aos Complexos Sociais - SAGMACS Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim‘ para realizar uma extensa pesquisa sociológica nas favelas cariocas. O mencionado estudo foi publicado como suplemento do jornal O Estado de São Paulo e alcançou grande repercussão. A mudança da capital alterou o mapa político do País, contribuindo para eredas..de V este respeito, ver: Lima (1989) e Valladares (2005). a ocupação do Centro-Oeste e gerando impactos em todas as regiões Brasília 19 Ver a respeito os artigos publicados pelo economista Benjamim Cabello (1959a, 1959b), na revista O Cruzeiro. brasileiras. 31 eredas..de VBrasília

1a página do Capa do Relatório de Relatório de Lucio Lucio Costa sobre o plano Costa sobre o plano piloto de Brasília [1957] piloto de Brasília [1957] Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal

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Moema de Rezende Vergara*

Introdução

No fi nal do Século XIX, a recém-instaurada República tinha em suas mãos uma nação de proporções continentais, herdada da Monarquia, mas os conhecimentos geográfi cos a respeito deste território eram ainda bastante lacunares e havia o sentimento generalizado da necessidade de maior integração entre o litoral e o interior. Talvez por isto mesmo, naquele momento, se decidiu formar uma comissão que deveria demarcar o local da Capital Federal no interior do País: a Comissão Exploradora do Planalto Central, de 1892, chefi ada pelo astrônomo Luiz Cruls1. A comissão era composta por membros de outras instituições científi cas, além do Exército brasileiro, com a participação de soldados e ofi ciais, todos egressos da então chamada Escola Superior de Guerra.

A decisão da mudança da Capital Federal seria uma tentativa de realização do antigo desejo de transferência da Capital para o interior, como foi expresso em um artigo de Hypólito da Costa publicado em 1808 no Correio Brasilense. Durante o Império, o mais ardente defensor desta ideia foi Varnhagen, que desde 1839 expôs as vantagens de uma capital no interior numa carta ao Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro - IHGB e no Memorial Orgânico de 1849. Varnhagen voltou ao tema em um texto de 1877, que narrou sua viagem ao sertão em direção a Goiás. Em seu retorno a Viena, onde era embaixador, o historiador escreveu A questão da capital: marítima ou no interior?, onde afi rmou que tinha encontrado o lugar determinado pela própria Providência para a nova capital, formado pelas três lagoas Formosa, Feia e Mestre-de-Armas, das quais manam águas para o Amazonas, para o São Francisco e para o Prata. Os principais motivos para a mudança da Capital defendida pelo historiador seriam basicamente a segurança – uma capital marítima fi caria à mercê das esquadras inimigas –, a salubridade e a maior integração da corte com as demais províncias. Argumentos que retornaram com força no contexto republicano.

A trajetória da Comissão Exploradora do Planalto Central começou com a primeira constituinte da República brasileira por um decreto pro- posto pelo delegado catarinense Lauro Müller, que defi niu a transferência da Capital Federal para o Planalto Central. A Constituição de 1891 trazia

* Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Coordenadora da História da Ciência Museu de Astronomia e Ciências Afi ns - MAST/MCT.

1 O belga Louis Ferdinand Cruls, quando chegou ao Brasil aportuguesou o seu nome para Luiz Cruls, assinando documentos ofi ciais e trabalhos acadêmicos, por isto mesmo o presente texto utilizar-se-á a versão em português. Na historiografi a da ciência no Brasil, é possível encontrar textos que empregam seu nome grafado de ambas as formas.

Louis Cruls Acervo do Museu de Astronomia e Ciências Afi ns - MAST em seu 3o artigo a instrução da mudança futura da Capital da Fede- palmente o levantamento do sistema hidrográfi co. O problema para Veredas..de ração2. Para acatar a decisão do Congresso Nacional, a comissão foi a continuação do serviço, segundo este relatório, estaria na falta de Brasília organizada pelo Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, que orçamento previsto, mas afi rmava que os trabalhos deveriam conti- destinou para a missão o montante de 350:000$000. O texto consti- nuar, principalmente para a realização de estudo de uma estrada de tucional já determinava uma área de 14 400 km2 para a nova capital, ferro com um traçado direto entre a futura capital e a atual (BRASIL, ou seja, dez vezes o tamanho da Capital Federal no Rio de Janeiro. A 1895, 1896). Comissão Exploradora do Planalto Central viajou de junho de 1892 a O Relatório do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas março de 1893, tempo no qual foram percorridos mais de quatro mil de 1892 era bastante claro quanto ao que a Comissão deveria fazer: quilômetros e feito um levantamento topográfi co, climatológico, hi- explorar o Planalto Central do Brasil e demarcar o local da futura drográfi co, geológico, da fl ora e da fauna, visando à futura exploração Expedição Cruls (da esq. para a dir., sentados): Dr. P. A. Capital da República: Gouveia, Dr. A. Pimentel, Dr. Luiz Cruls, Dr. J. Lacaille, Dr. A. econômica da região. Cavalcanti, Dr. Celestino Bastos; (em pé): Dr. T. Fragoso, No desempenho dessa importante tarefa deveis pro- E. Chartier, Dr. Hussak, F. Souto, Araújo Costa, Dr. Henrique Após um período de interrupção de alguns meses, os trabalhos ceder aos estudos indispensáveis ao conhecimento da posi- Moritze, Dr. Ule, Dr. A. Gama, Dr. H. Moura, Melo, ção astronômica da área a demarcar, da topografi a, orografi a, A. Abrantes, Peres Cuiabá, capitão Pedro Carolino foram retomados sob o nome de Comissão de Estudos da Nova Capital hidrografi a, condições climáticas e higiênicas, natureza do Acervo do Museu de Astronomia e Ciências Afi ns - MAST da União que vigorou de agosto de 1894 a dezembro de 1895, tam- terreno, quantidade de águas que devem ser utilizadas para o abastecimento, materiais de construção, riqueza fl orestal, bém chefi ada por Luiz Cruls, mantendo praticamente todos os seus etc., da região explorada [...]. Podereis realizar, não só os estu- membros. A missão desta comissão era complementar os trabalhos dos, que julgardes de vantagem e utilidade para mais comple- to desempenho de vosso encargo, mas ainda os que possam topográfi cos iniciados em 1892. Ao que tudo indica, no Congresso concorrer para a determinação de dados de valor científi co Nacional havia discordâncias sobre a continuidade de tal comissão com relação a essa parte ainda pouco explorada do Brasil. (BRASIL, 1893, p. 235). e no orçamento de 1894 não foram previstos os créditos necessários para o seu funcionamento. Mesmo assim, o governo cedeu recursos Segundo as instruções de 1894, era preciso produzir um mapa, extraordinários para o estudo da região, privilegiando a construção de após o levantamento do perímetro realizado anos antes. Para tal, era uma estrada de ferro de Catalão a Cuiabá, que ampliaria as ligações necessário dar início aos trabalhos de triangulação “único processo ri- do Planalto Central com o restante do País. Esta nova fase deveria goroso para não só levantar a planta topográfi ca da zona, como tam- se dedicar aos trabalhos de triangulação3. O relatório ministerial fez bém para a fi xação defi nitiva dos quatro vértices que devem encerrar um balanço do que fora realizado anteriormente, destacando princi- uma área de 14.400 km2” (CRULS, 1896, p. 11). Naquele momento, a 2 Até a fundação de Brasília em 1960, todos os textos constitucionais possuíam um item sobre escolha do local exato da futura Capital já estava mais defi nida: a mudança da Capital Federal, com a exceção da Constituição de 1937. 3 Método topográfi co ou geodésico de localização de um ponto a partir de visadas de outros Sob o ponto de vista da qualidade, abundância de pontos, espacialmente controlados, de forma a que, com duas visadas para dois pontos não dispostos em linha reta, defi ne-se a posição topográfi ca do ponto de interesse que será o vértice água, natureza e topografi a do terreno, salubridade e condi- de um triângulo. ções climatológicas, é provável que esta escolha se fi xe defi ni- 36 tivamente quer na região compreendida entre os rios Gama e Janeiro para realizar os trabalhos de gabinete no Observatório então Torto, no vale do rio Descoberto. (CRULS, 1896, p. 12). instalado no Morro do Castelo. A Comissão Exploradora do Planalto Central produziu um relatório fi nal, em 1894, o relato mais conhecido A expedição fora equipada com teodolitos, aneróides, bússo- pelo público em geral sobre o Planalto Central brasileiro. A Comissão las e podômetros, sextantes, lunetas, instrumentos meteorológicos e de Estudos da Nova Capital da União elaborou somente um relatório material fotográfi co. Todo o equipamento, inclusive barracas, armas parcial, publicado em 1896, e talvez por isto mesmo menos divulgado e mantimentos, ocupou 206 caixas que viajaram em 9 de junho do que o primeiro. A estrutura de ambos os relatórios é a mesma, ou seja, Rio de Janeiro para Uberaba, ponto terminal da linha férrea da Com- há uma introdução geral escrita pelo chefe da comissão, em seguida panhia Mojiana. Desta cidade mineira se organizou durante 20 dias vem os relatos dos chefes de turmas e os anexos com as análises dos A Expedição Cruls nas a entrada no sertão, que tinha como meta Pirenópolis em Goiás. Ali margens do Rio Paranaíba. especialistas no fi nal. Cruls (2003) chegando, se deu o início da expedição em 1o de agosto, terminando em janeiro de 1893 no Tocantins.

O governo federal previa que a cidade teria um milhão de habi- O Planalto Central tantes e precisaria de 500 litros de água diários por habitante. Por isto mesmo as instruções ministeriais determinavam a busca por dados Uma das primeiras questões que Cruls se colocou ao interpre- acerca do clima, de água, de material de construção, enfi m, elementos tar o 3o artigo da Constituição era saber a defi nição exata do que se imprescindíveis para se erguer a cidade planejada. entendia por Planalto Central do Brasil. Segundo ele, era evidente que por planalto central se deve entender a “parte mais central do Do ponto de vista cartográfi co, é possível sintetizar estas duas planalto brasileiro em relação ao território” (CRULS, 2003, p. 18). Por viagens ao Planalto Central da seguinte forma: a primeira realizada planalto, Cruls utilizou a defi nição já estabelecida pelos geólogos, de em 1892 estabeleceu o perímetro, um primeiro levantamento da área, um terreno que variasse entre 300 e 1 000 metros de altitude. já a segunda em 1894 teve a missão de mapear a região através das técnicas mais avançadas daquele momento, ou seja, a triangulação. O Planalto brasileiro abrange vários estados, como o Rio de Para melhor compreensão do que foi a chamada “Missão Cruls” é Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Maranhão, Piauí e Rio Grande do fundamental a leitura conjunta dos relatórios de ambas comissões, Sul. O que seria levado em consideração era a parte a que caberia a uma vez que são complementares em vários aspectos, isto é, para a denominação de central, e que se achava nas proximidades dos Piri- Azimute acotovelado: instrumento (Século XIX) compreensão global dos trabalhos de Luiz Cruls no Planalto Central neus, no Estado de Goiás, não só por ser, na realidade, a mais próxima utilizado para determinar, ao mesmo tempo, as duas eredas..de V é preciso conhecer os dois relatórios. Cabe esclarecer que entre as do centro do Brasil, como também por se acharem aí as cabeceiras de coordenadas de um astro Brasília Acervo do Museu de Astrono- duas viagens chefi adas por Luiz Cruls, sua equipe retornou ao Rio de alguns dos mais caudalosos rios do sistema hidrográfi co brasileiro. Os mia e Ciências Afi ns - MAST 37 rios eram parte fundamental daqueles estudos, pois eles, além do for- metros, e “um número não pequeno de rios torna esta região rica em Veredas..de necimento das águas, seriam vias de transporte. Cruls em seu primeiro águas potáveis” (CRULS, 2003, p. 69). Brasília Círculo Meridiano portátil: instrumento (Século XIX) que relatório já sinalizava que nem todos aqueles rios eram navegáveis e determina as declinações (ou distâncias polares) deveriam ser complementados pelas vias férreas. A relação no pensa- das estrelas e a latitude de um lugar. mento geopolítico brasileiro entre rios e território é antiga, consolida- Este modelo portátil foi desenvolvido para facilitar o da pela ideia mitológica de “Ilha Brasil”, ou seja, de que as fronteiras Os trabalhos de delimitação transporte em expedições naturais do País teriam sido desenhadas pela Providência por meio Acervo do Museu de Astronomia O conhecimento da posição astronômica era indispensável e Ciências Afi ns - MAST dos principais rios, o Amazonas e o Prata. Esta ideia, existente entre para demarcar a área da futura Capital e por isto mesmo fora no- os cartógrafos desde os tempos da colônia, justifi cara a expansão do meado um astrônomo de conhecido zelo e provada competência Brasil na direção oeste. Neste sentido, ao buscar o local da futura Ca- (BRASIL, 1893, p. 235). A relação entre conhecimento astronômico pital na confl uência destes rios, a República brasileira estava, de certa e demarcação se dá na aplicação da astronomia de posição, que se forma, atualizando o mito da Ilha Brasil. utiliza dos astros para a orientação na superfície da Terra (ARANA, O ponto mais alto do Planalto seria o Pico dos Pirineus, nome 2000, p. 8). Sem dúvida alguma, Luiz Cruls era a pessoa certa para de origem indígena segundo Saint-Hilaire, que já tinha visitado aquela executar esta missão, uma vez que já possuía seu nome fi rmado região. Cruls citou os livros dos geólogos Orville Derby Os Picos altos como importante astrônomo; entre seus feitos estava a correção da do Brasil e Charles Hartt, Geology and Physical . paralaxe solar, na ocasião da passagem de Vênus pelo disco solar em Segundo Hartt (apud CRULS, 1957, p. 71) “os pontos mais altos de 1882, o que lhe garantiu uma medalha Valz pela Academia de Paris Goiás são os montes Pirineus, perto da cidade de Goiás, que segundo em 1883 (CRULS, G., 1957, p. 13). Tradicionalmente, os biógrafos de dizem, excedem a 9500 pés.” A altitude do pico dos Pireneus, estabe- Luiz Cruls destacam sua contribuição à astronomia e aos estudos de lecida em cerca de 3 000 metros por Emmanuel Liais, Charles Hartt climatologia no Brasil, dando pouca importância aos seus trabalhos e Orville Derby, foi contestada por Cruls, pois segundo seus cálculos na área de geodésia, que é uma forma de aplicação da astronomia. os Pirineus teriam 1 385 metros. Este pico faz parte da Chapada dos Contudo, cabe lembrar que sua primeira atuação profi ssional no Veadeiros, rica em itacolomita, quartzo e xisto. Brasil foi como membro da comissão da Carta Geral do Império, de 1875, na seção de geodésia, encarregado de comprar instrumentos O Planalto Central foi descrito por Cruls como formado por Círculo azimutal: instrumento científi cos na Europa. Na época da Comissão do Planalto Central, ele (Século XIX) utilizado no apoio aos uma série de chapadões cujas altitudes vão crescendo de sul a norte, levantamentos geodésicos e era professor de geodésia da Escola Militar, além de ser o diretor do topográfi cos no território e embora ocupe realmente uma extensão bastante considerável, tem nacional, nas determinações das Observatório Astronômico do Rio de Janeiro. posições geográfi cas e na a sua região central localizada na zona onde se encontram as cabecei- demarcação de limites ras dos principais rios do sistema hidrográfi co brasileiro: o Tocantins, Para delimitar a zona da futura Capital, Cruls optou por ado- Acervo do Museu de Astronomia e Ciências Afi ns - MAST o São Francisco e o Paraná. A altitude média fi ca entre 900 e 1 300 tar o método de determinação das fronteiras dos estados empregado 38 pelos Estados Unidos da América, produzindo assim um quadrilátero, Todos os itinerários percorridos pela Comissão foram levantados localizado em torno dos 15o aos 16o de latitude sul e por volta de 47o a pelo processo americano de caminhamento, servindo-se do podôme- 49o de longitude oeste, em detrimento do método irregular tomando tro4, da bússola e do aneróide, que permitiu não só a verifi cação das co- como referência os sistemas orográfi co e hidrográfi co, que seria mais ordenadas, mas a exploração do terreno aproveitando quando possível demorado e mais custoso. Segundo Cruls (2003), o quadrilátero esfe- as estradas e caminhos já existentes, e desenhando diariamente e papel roidal teria ainda a vantagem de produzir uma fi gura geográfi ca regu- milimétrico o caminhamento percorrido na escala de 1/1 000 000.

lar, o que oferecia a vantagem de evitar no futuro questões litigiosas Chegando ao vértice, a turma deveria fazer uma entre os estados limítrofes. A primeira solução, isto é, a forma irregu- escavação, com um metro de largura e 1,3m de profundidade. Em seu centro será depositado um documento assinado lar, além de outras desvantagens, necessitava de muito maior tempo pelo chefe e membros da turma, em que serão escritas as para sua demarcação, pois se tornava indispensável o levantamento coordenadas, e depois convenientemente lacrado. Em seguida seria feito um marco no local para identifi cação imediata e de todo o perímetro da zona, assim como a medição de uma base geo- futuros trabalhos de triangulação. (CRULS, 2003, p. 77). Membros da Expedição Cruls em Goiás: désica, para atingir o grau de precisão desejado. Isto não signifi ca que (da esq. para a dir.) Julião de Oliveira Lacaille, Alípio Gama, João de Azevedo Cruls estava descartando defi nitivamente este tipo de levantamento; Estas instruções reforçam a noção de que mapear é uma for- Peres Cuyabá, Henrique Morize, Ernesto Ule para ele, quando ocorresse a demarcação defi nitiva seria necessário Acervo do Museu de Astronomia e Ciências ma de apropriação e dominação do território. O mapa é um podero- Afi ns - MAST um levantamento geodésico preciso e mais detalhado. so instrumento de posse na medida em que comprova a existência do terreno em questão e através do mesmo permite se retornar ao Assim, Cruls, em sua primeira viagem, dividiu a Comissão em local. A dominação se manifesta em vários elementos, como a or- quatro equipes que deveriam caminhar em direção aos vértices deste denação do território ainda desconhecido pelo princípio do méto- quadrilátero já determinado e depois retornar ao ponto inicial em For- do científi co, com o desenho em escala pré-determinada no papel mosa: Turma SW (sudoeste) Luiz Cruls (chefe), Hastimphilo de Moura, milimétrico, com instrumentos que garantem seu rigor e precisão. Eduardo Chartier, Francisco Souto, Pedro Carolino Pinto de Almeida e Concomitante ao processo de apropriação do terreno pelo método Henrique Silva. Turma NW (noroeste) Tasso Fragoso (chefe), Celestino científi co, observa-se a formulação de um rito simbólico ao deposi- Alves Bastos, Alfredo José Abrantes e João de Azevedo Peres Cuyabá. tar no vértice, um documento assinado e lacrado, com a esperança Turma SE (sudeste) Henrique Morize (chefe), Alípio Gama e José Paulo de que fosse (re) descoberto por futuras gerações, convergindo es- de Mello. Turma NE (nordeste) Antonio Cavalcante Albuquerque (che- paço e tempo no mesmo marco. fe), Julião de Oliveira Lacaille (depois exonerado da comissão), Pedro 4 O uso do podômetro foi assim explicado por Alipio Gama (1896, D-9): “O podômetro foi car- Gouvêa, Antonio Jacintho de Araujo Costa e Joaquim Rodrigues de Si- regado sempre suspenso dentro do bolso do peito do colete, onde com a posição vertical e comprimido ao corpo do cavaleiro, pode melhor participar do movimento que determina a sua queira Jardim. A equipe também era formada pelo médico higienista, marcação. Ordinariamente se costuma carregá-lo suspenso a uma das casas de botões do colete, eredas..de o que é mais cômodo, mas não conveniente, porque nas subidas o cavaleiro naturalmente incli- V Antônio Martins de Azevedo Pimentel, pelo geólogo Eugênio Hussak e na o corpo para frente e o podômetro, perdendo este apoio do corpo ao qual vinha encostado, Brasília procura a posição vertical, que não adquire, e fi ca suspenso, oscilando no ar. Estas oscilações as pelos botânicos A. Glaziou e Ernesto Ule. vezes são grandes e perturbam a marcação”. 39 O relato de Henrique Morize, chefe de turma SE, demonstrou E isto foi feito pela Comissão. Dadas as latitudes de dois arcos Veredas..de que a realidade oferece frequentemente resistências ao que se ima- de paralelo bem como as longitudes de dois arcos de meridiano que Brasília gina ser o ideal. Ele informou que por falta de material não foi possí- limitam a área demarcada, torna-se possível verifi car a todo o tempo vel cumprir à risca as instruções de instalação do marco. A alternati- a posição exata no terreno dos limites da zona. A geometria da forma, va foi colocar no vértice um tronco de aroeira de dois metros e meio produzida pela astronomia, daria os parâmetros científi cos para esta de comprimento. Contudo o lado ritualístico não foi esquecido por empreitada. Morize, que além da assinatura dos membros da comissão colheu O chefe da Comissão instruiu suas equipes a determinar diaria- a de testemunhas conferindo ao “ato de posse” um aspecto ainda mente a longitude e a latitude. Bem como quaisquer fenômenos que mais solene: pudesse servir para a determinação da longitude, como os eclipses do [...] depois de convenientemente arrolhado e lacrado, 1o satélite de Júpiter e ocultações, sempre observados em pelo menos, um vidro contendo um documento assinalando a posição geo- gráfi ca do vértice, assinado pelo pessoal da turma e por diver- três pontos do itinerário. Cabe sublinhar que a repetição sistemática sas pessoas presentes. (MORIZE, 2003, p. 156, grifo nosso). das observações astronômicas é o que garante a exatidão desta ci- ência. Os fenômenos celestes listados pelo chefe da comissão eram O método de demarcação empregado pela Comissão Explora- regulares e permitiam que o observador determinasse a longitude da dora do Planalto Central era utilizado nos Estados Unidos da América localidade em que se encontrava ao ver, por exemplo, a passagens de desde o Século XVIII. Os quadriláteros do território americano seriam uma estrela e calcular a diferença entre a hora local e a hora em que o mesmo fenômeno ocorresse no meridiano de referência. O método uma forma de ordenar a terra, ao aplicar o desenho clássico no terre- recomendado para a determinação da longitude seria por distâncias no, criando uma “tela em branco” a ser preenchida tanto pela cultura lunares (como foi feito na cidade de Santa Luzia), pela passagem da quanto pela natureza (HARLEY, 2001, p. 58). Para John Noble Wilford lua e de uma estrela pelo mesmo meridiano (CRULS, 2003, p. 63). (2000, p. 251), o quadrilátero, ao demarcar áreas a partir das longitu- Ao longo do Relatório de 1892, observa-se a utilização de três des e latitudes5, poderia retratar regiões que se constituem em vazios Louis Cruls (segundo da esq. para a diferentes meridianos iniciais para o cálculo da longitude: o de Gre- dir.) e membros de sua Expedição cartográfi cos, ainda inexplorados no terreno. Após a delimitação, o Acervo do Museu de Astronomia e enwich, o do Observatório do Rio de Janeiro e o de Paris. Somente Ciências Afi ns - MAST trabalho do cartógrafo seria preencher o quadrilátero com informa- a partir de 1884, no Congresso Internacional do Meridiano Zero de ções geológicas, topográfi cas, hidrográfi cas e assim por diante. Washington, Greenwich passou a ser considerado universalmente o meridiano de referência ou inicial6.

5 Cabe lembrar que as latitudes do sistema de coordenadas geográfi cas são paralelas ao Equador 6 O objetivo deste congresso era estabelecer um padrão universal para os cálculos de longitude, formando uma série decrescente de anéis concêntricos. Já os meridianos de longitude se posi- segundo Wilford (2000, p. 258), antes deste congresso, havia 14 meridianos diferentes utilizados cionam de forma inversa: eles enlaçam o globo do Pólo Norte ao Pólo Sul, “formando grandes na confecção dos mapas. Interessante notar que o representante brasileiro foi o próprio Luiz círculos de tamanhos idênticos, todos convergindo para os mesmos pontos nas extremidades Cruls, que foi voto vencido ao defender a utilização de um meridiano que passe preferencial- da Terra” (SOBEL, 2008, p. 11). mente em sua maior parte pelo mar, evitando ao máximo percorrer a Terra. 40 A utilização de diferentes meridianos de referência ou zero O jornalista paulista Domingos Jaguaribe, por exemplo, escreveu no pode ser explicada pelo fato de que na época da expedição a resolu- jornal O Município em uma série de artigos criticando a expedição ção do Congresso em Washington ainda ser recente e não estar to- chefi ada por Luiz Cruls. Para o jornalista, se a questão era buscar um talmente incorporada pelos técnicos na confecção das coordenadas. local de clima ameno, ele propunha Campos do Jordão como cidade A falta de padronização do meridiano zero no cálculo das longitudes ideal para a nova capital, afi rmando que os estudos sobre o Planalto deve ter tornado mais demorada e trabalhosa a redução dos mapas Central eram um desperdício de tempo e dinheiro público (JAGUARI- nos trabalhos de gabinete. BE, 1896). Além disso, para Jaguaribe, se o quadrilátero poderia ser

Para a determinação de longitude, nota-se que em algumas feito através das latitudes e longitudes, a expedição ao local era des- turmas foi possível utilizar o método telegráfi co, somente quando a necessária. Ao responder a estas críticas Cruls se mostrou bastante equipe estava próxima da Capital de Goiás. As diferenças de longitude indignado e em sua resposta pode-se apreender a necessidade de se entre Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro foram determinadas por este fazerem os trabalhos de campo:

processo. Entretanto pela impossibilidade de contar com os serviços Realmente, é o cúmulo da inépcia! Segundo o Dr. Ja- telegráfi cos ao longo de toda viagem, foi adotado o transporte da guaribe, não é necessário estudar as condições topográfi cas da região, sua climatologia, a natureza e abundância das águas, hora, ou seja, através da leitura de cronômetros cuidadosamente cali- etc. etc.; tudo isso é supérfl uo, e resolve-se a bico de pena, en- brados por observações astronômicas. tre quatro paredes! Mas o Dr. Jaguaribe perde de vista que a competência, a que alude só se adquire por meio dos estudos Do ponto de vista da demarcação, o Ministério da Indústria, que se fazem no terreno e que os trabalhos de gabinete e de laboratório, são somente complementos daqueles, que vêm em Viação e Obras Públicas avaliou positivamente a expedição e anunciou primeiro lugar e antes de tudo! (CRULS, 1896b, p. 13). em seu relatório a Floriano Peixoto que os trabalhos de campo da Comissão estavam completos e que já se tinham “informações sufi - A ideia expressa nesta passagem remete para o fato de que na- cientes para se formar opinião segura a respeito da zona demarcada” quele momento havia uma maior ênfase na produção científi ca que se (BRASIL, 1894, p. 353). Ainda estavam sendo elaborados um relatório fazia no local e não através de especulações da fi losofi a natural, como fi nal com os cálculos das posições geográfi cas e mapas dos itinerários ocorria no Século XVIII, por exemplo. Isto se deve ao grande destaque e coleção numerosa de fotografi as. O relatório ministerial também que os estudos experimentais estavam alcançando na segunda me- afi rmou que os trabalhos de gabinete foram paralisados em grande tade do Século XIX, principalmente a partir dos avanços da ciência Henrique Morize, astrônomo, cientista, parte devido à Revolta da Armada de 1893. vice-diretor do Observatório Nacional, segundo os parâmetros estabelecidos por Claude Bernard. autor das fotografi as da Expedição Cruls. Acervo do Museu de Astronomia À diferença das características das viagens dos períodos an- Preenchendo o quadrilátero teriores, ao viajar equipado com uma grande quantidade de instru- eredas..de V A ideia polêmica de levar a Capital da República para um lo- mentos científi cos, o ato de ver do viajante se desloca da esfera de Brasília cal distante do litoral provocou imediatamente o debate na imprensa. contemplação para o da objetividade. Nas viagens do Século XVIII 41 e início do Século XIX, que possuem Alexander Humboldt como seu de relatórios (FIGUEIRÔA, 2008, p. 770). Para a autora, as imagens rio Angicos que não só não foi transposto por mim, como Veredas..de jamais achei quem dele me desse notícia. Assim ou esse rio paradigma máximo, havia um maior espaço para a expressão da fotográfi cas nos relatórios de comissões de exploração produzem Brasília está grosseiramente mal fi gurado na carta ou trata-se não subjetividade do observador. A valorização estava na capacidade do uma imagem do homem “vencendo a natureza” e cumprindo “papel do rio dos Angicos e sim do Monteiro, o que parece-me mais verossímil. viajante em transmitir sua sensação de êxtase e vertigem ante os essencial na transmissão e produção de uma ideologia progressista- cenários do Novo Mundo. Claro que estes viajantes levavam con- triunfalista” (ARRUDA, 2001, p. 201). sigo instrumentos científi cos, mas a ênfase estava em colocar em Tal qual outros demais comissários, Hussak citou os viajan- Pode-se afi rmar que os relatórios das comissões exploradoras primeiro plano sua capacidade individual de apreensão da natureza tes que percorreram aquela área anteriormente, como, por exemplo, da Primeira República não se dirigiam apenas ao Estado; mas visa- que os cercava. No contexto das viagens de Cruls, a objetividade Johann Emanuel Pohl, concordando com este sobre a grande presença vam também a uma opinião pública urbana que desejava informações era um dos principais atributos que se buscava na prática científi ca. de granito na parte mais próxima à Minas Gerais. Afi rmou, também, sobre este “território desconhecido”, ou nas palavras de Euclides da Por isto mesmo, em seus relatórios, os instrumentos científi cos ga- que não encontrou fóssil e sugere que a região provavelmente se re- Cunha desta “terra ignota”. Não por acaso, são recorrentes a publica- nham uma enorme relevância e uma série de informações passam a metia a idade paleozóica, como descrita por Derby em seu relatório ção de partes destes relatórios em revistas e jornais de grande circula- merecer destaque, tais como os fabricantes dos instrumentos, suas sobre o rio das Velhas. ção. Neste sentido, entende-se o esforço dos agentes civilizatórios de condições de uso e medições, que são cuidadosamente anotadas. A A mineração recebeu bastante atenção de Hussak (2003, p. 299), partir daí, o conhecimento científi co que se tem do mundo natural então, seja o Estado sejam as instituições científi cas, em produzir um que constatou a presença de ouro, diamantes, cristais, quartzo, turmali- depende dos instrumentos de medição, como teodolito, barômetro e conhecimento acerca do Território Nacional em termos das categorias na e moscovita. Para ele, o declínio da mineração do ouro na região es- o cronômetro. Assim, o conhecimento se tornou atrelado àquilo que e padronizações estabelecidos pela ciência para organizar todos os tava relacionado com o fi m da escravidão, pois “não havia à disposição se pode medir. Neste sentido, os instrumentos científi cos podem ser elementos desta natureza e dispô-los em um mapa nacional, produzi- outra força que permitisse continuar com proveito no sistema primitivo tidos como “as salvaguardas mecânicas” que protegeriam o cientista do em bases convencionadas como “científi cas”. com bateia e os mineiros não sabiam aplicar os novos métodos, que na de sua própria subjetividade. Segundo Lorraine Daston (1999), isto No Relatório de 1892, o anexo sobre a geologia, escrito por Califórnia e Austrália, economizam o trabalho manual”. marcaria outra compreensão dos fenômenos naturais a partir dos Eugenio Hussak (2003, p. 294), inicia-se com uma referência ao pro- avanços técnicos. Assim, era preciso entender a natureza utilizando blema da falta de um mapa nacional confi ável. Segundo ele, seus A fauna fi cou a cargo de Antonio Cavalcanti de Albuquerque novas lentes, visão presente nos relatórios escritos por Luiz Cruls. trabalhos não poderiam ser considerados completos, pois careciam que descreveu macacos, aves, morcegos, onças, lobos, cobras e diver- Outro aspecto importante para se entender a produção des- de algo essencial para o estudo da geologia, que seria “uma boa sas ordens de insetos. Albuquerque narrou que foi oferecida a Cruls tes relatórios, é que eles compartilhavam características comuns aos representação cartográfi ca da região a ser estudada”. O problema uma pele de cuíca d´água, “belo marsupial, hoje raro em todos os demais produzidos na Primeira República, principalmente em áreas da cartografi a também foi mencionado por Tasso Fragoso, chefe da estados do Brasil, o chironectes palmatus dos zoologos” (CAVALCANTI, pouco exploradas: além de prestar contas do objetivo principal da turma NW, que utilizou uma das cartas mais conhecidas naquele 2003, p. 324). A caça que mereceu fi gurar em seu relato era a do tatu, missão, sempre traziam outras informações sobre topografi a, hidro- momento do Estado de Goiás, organizada em 1874 por Moraes Jar- que ocorria quando este ia buscar alimentos saindo de seus esconde- grafi a, geologia, botânica, meteorologia, coordenadas geográfi cas, dim. Segundo Tasso Fragoso (2003, p. 173), aquela carta estava rijos. O autor denuncia o perigo da extinção das emas, cujos bandos, população, presença de índios, etc. O uso de recursos iconográfi cos, segundo relatos , eram outrora mais numerosos. Ele explica o fato da [...] indubitavelmente errada quanto à hidrografi a do como mapas e fotografi as também eram frequentes nestes tipos terreno da margem esquerda do Maranhão, pois lá fi gura o procura da população de Goiás pelos ovos para aplicações culinárias. 42 No Relatório de 1896, Glaziou (1896, F-3) escreveu o Anexo, em honra de nosso chefe – Wunderlichia Crulsiana”. O Planalto era correr de alguns anos tenho adquirido na leitura e estudo das coisas “Notícia sobre Botânica Aplicada”. Para ele o Planalto Central possuía coberto por uma vegetação de arbustos, chamada de cerrado, alter- que dizem respeito à minha pátria”. uma série de vantagens para atender às necessidades humanas. Estes nando nos campos pela ocorrência de gramínea. O tom geral deste É no relatório de Pimentel (2003, p. 238) que se desenvolveu recursos naturais deveriam ser reunidos e cultivados “racionalmen- relatório era enfatizar as possibilidades do aproveitamento do solo uma das principais teses nas quais se apoiavam os defensores da te n´um viveiro experimental do Estado, estabelecimento de máxima para diversas culturas úteis e as riquezas fl orestais da região. Cabe mudança da capital, a questão da salubridade: “Todo mundo sabe utilidade logo no que diz respeito à alimentação e ao progresso da a ressalva de que do ponto de vista da descoberta científi ca propria- sociedade”. E conclui assim a nota antecipando o que seria a Brasília mente dita, os únicos registros couberam à botânica. que o povoamento do Brasil quase que se limita exclusivamente à de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer: faixa do litoral, [...]. Justamente nesta região é a salubridade subor- O relatório do médico higienista da comissão, Antônio Martins dinada, em geral, ao grau do paludismo, visto ser baixa, úmida e Graças ao poder do Governo da União, auxiliado pelo de Azevedo Pimentel, foi um dos mais divulgados, principalmente na bom senso e o talento de profi cientes arquitetos, que saberão quente e palustre toda essa zona”. aproveitar as belezas naturais desses lugares e harmonizá-las Revista do Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro. Sobre sua ex- com suas obras de arte, espero que, n´um futuro próximo, vere- periência no Planalto Central, Pimentel (1907, p. 262) afi rmou mais Para este médico, o Planalto Central era diferente, principal- mos erguer-se a cidade modelo projetada e, do íntimo do cora- ção, almejo o raiar desse faustoso dia. (GLAZIOU, 1896, F-13). tarde: “Tive em minha vida a feliz ocasião de visitar as terras elevadas mente por sua altitude, que produzia temperaturas mais frescas e do Brasil central [...] e pus em contribuição os conhecimentos que no solos férteis, “tudo enfi m, que tem as mais estreitas relações com os Estes relatórios feitos por especialistas deveriam dar um pano- rama geral da área. Contudo, muitas vezes esta visão era contrariada pelos chefes de turma em suas viagens pelos itinerários, o que pode ser explicado pela abrangência da área que abrigaria ecossistemas di- ferentes de difícil síntese. Segundo o relato do major Celestino Alves Bastos, a fl ora e a fauna por onde atravessou, isto é, de Araxá em Minas à cidade de Santa Luzia em Goiás, eram paupérrimas, “naquela região predominava a vegetação do cerrado, pouco variada, mirrada e raquítica” (BASTOS, 1896, B-4).

O botânico da comissão, Ernesto Ule (2003, p. 343), descreveu as chapadas, os vales, as cabeceiras dos rios, a fl oresta e a serra dos Pireneus. Um elemento recorrente na narrativa de todos os cientistas era a reclamação pela falta de tempo para análises mais detalhadas. Mesmo assim, afi rmou que “já se encontraram espécies novas e dois eredas..de V gêneros novos. Os últimos são a Composta da serra dos Pireneus e a Brasília Papilionacea da serra da Balisa; a nova Wunderlichia [foi] nomeada

Expedição Cruls na cachoeira do Rio Cassu. Cruls (2003) 43 progressos materiais de uma grande cidade e com o bem-estar dos Ao dar este peso à altitude, nota-se que naquele momento ain- Veredas..de seus habitantes” (PIMENTEL, 2003, p. 238). A ideia de que o clima da da não se havia descartado por completo a noção negativa da pos- Brasília região era adequado para a instalação de uma próspera cidade corro- sibilidade de civilização nos trópicos. A revisão do determinismo cli- borava uma das principais conclusões do Relatório da Comissão Ex- mático da nosologia brasileira, por exemplo, só ocorrerá alguns anos ploradora do Planalto Central, que afi rmava que seu resultado mais mais tarde com o movimento sanitarista que buscará as explicações importante era concernente ao clima da região: para as doenças nas singularidades patológica e social do País (LIMA; HOCHAMAN, 1996). O texto de Pimentel é permeado por referências Em resumo, a zona demarcada goza, em sua maior ex- tensão de um clima extremamente salubre, em que o emigrante neo-hipocráticas, baseadas na relação intrínseca entre doença, am- europeu não precisa de aclimação, pois encontrará aí condições biente e sociedade (LÉCUYER apud FERREIRA, 2001, p. 208). Como, climatéricas análogas às que oferecem as regiões mais salubres por exemplo, a condenação, pelo médico da comissão, da ingestão de da zona temperada européia. (CRULS, 2003, p. 111). alimentos fortemente condimentados ou do descuido da moça que Segundo uma carta contraiu pneumonia por lavar a cabeça ao meio-dia. provisória de Cruls. Assim, nestas viagens pode-se observar um consórcio de téc- Reclus (1894) nicos e cientistas: médicos, engenheiros e astrônomos trabalhando Importante destacar que o higienismo era uma preocupação juntos para desmistifi car a ideia de que “todo o interior do Brasil ain- constante da República, tanto para atrair a imigração europeia, quan- da hoje passa por ser País doentio, muito quente e mesmo inóspito” to para resolver o problema da insalubridade do Rio de Janeiro, que (PIMENTEL, 2003, p. 239). Estes homens não estavam de todo livres de segundo a concepção da época, retardava o desenvolvimento eco- uma visão pessimista da infl uência dos trópicos, mas afi rmavam que nômico do País. Pimentel afi rmava que não havia nenhuma doença mesmo nas latitudes de clima tropical poder-se-iam encontrar áreas endógena na região e que os casos encontrados são alienígenas e de- temperadas, como já observava Humboldt, autor largamente citado correntes de outros fatores. Nesta fonte vemos, também, que Pimen- no Relatório, em sua viagem à América do Sul. Isto se devia princi- tel se aproxima da escola tropicalista de medicina, quando cita como argumento de autoridade os médicos Bilharz e Wucherer, de quem palmente à análise da altitude como importante fator dos estudos apoia as teorias parasitárias. Esta escola postulava que a umidade e o da climatologia, juntamente com o estudo das condições do solo e calor tinham o poder de exacerbar as doenças, que eram associadas à vegetação, entre outros. Nas palavras de Pimentel (2003, p. 256): pobreza, má nutrição, falta de saneamento e comportamento inade- A altitude representa um papel importante na modi- quado (EDLER, 1999). Estes fatores eram identifi cados, não só no texto Azimute Prismado: fi cação dos climas tropicais, temperando-lhes o calor, tanto instrumento (Século XIX) de Pimentel, mas nos dos demais membros da Comissão, que associa- utilizado para determinar a que muitas regiões situadas abaixo do equador ou dele mui- altura dos astros com to próximas têm as temperaturas diminuídas a tal ponto que vam estes problemas ao passado colonial. Aquela geração se via como grande precisão apresentam médias análogas às dos países temperados da portadora do progresso, simbolizado inequivocamente pelas ferrovias, Acervo do Museu Europa, como se dá com a Argélia, o cabo da Boa Esperança e de Astronomia e Ciências Afi ns - MAST com as Índias Orientais, etc. referências constantes ao longo do Relatório Cruls. Se os caminhos 44 naturais do Planalto Central eram os rios, a ferrovia iria ligar mais Como estivéssemos então na estação chuvosa, que difi culta consideravelmente os trabalhos de campo, mandei facilmente o litoral ao centro do País. Na visão de Pimentel (1900, p. prosseguir os serviços de escritório, cálculos de desenho, 217) estas estradas de ferro deveriam ser elétricas, já que: aproveitando, contudo o ensejo de alguns dias de estiada para exercitar os ajudantes na medição dos trabalhos geodésicos, [...] a produção de eletricidade é extremamente fácil e utilizando para isso três sinais geodésicos dos morros da Fro- que não há de ser nunca com o carvão de pedra inglês, norte- ta, Santa Barbara e Boa Vista. americano ou outro qualquer de países remotos, com que se há de mover as locomotivas das vias férreas destinas a levar a civilização e a vida ao esplendido araxá brasileiro. Os problemas do dia a dia da comissão foram de ordem di- versa: a turma “Oeste de Minas”, chefi ada por Alipio Gama não A construção do território brasileiro como se conhece atual- conseguiu realizar todas as determinações de coordenadas de seu mente foi um processo dinâmico que contou com diversos fatores itinerário, prejudicada tanto por questões climáticas, como o tempo ao longo da história, entre ações do Estado, expedições científi cas chuvoso e o céu encoberto, como por acidentes: na cidade de Para- e implementação de novas tecnologias, como a estrada de ferro e o catu o chefe da turma foi mordido por uma cobra que o paralisou telégrafo. Segundo Cruls, uma objeção constante à transferência da parcialmente impossibilitando-o de manusear os instrumentos com Capital era o problema da distância, que para o chefe da comissão fi rmeza (CRULS, 1896, D-22). seria resolvido pela construção de estradas de ferro como acontecera nos Estados Unidos. A distância entre a zona demarcada e o Rio de Janeiro é de 1 200 km, que levariam 20 horas para ser percorridos em Conclusão uma velocidade média de 60 km/hora, o que para ele não seria um problema grave (CRULS, 2003, p. 111). Na historiografi a da ciência no Brasil, as viagens ocupam gran- de parte da literatura desde a colônia até a República. Nesta longa Como já se afi rmou anteriormente, a prioridade durante a se- duração, os signifi cados da viagem não são os mesmos, nem as mo- gunda viagem era fazer a triangulação do terreno, mas sem esquecer tivações, muito menos os agentes. Sabe-se que a região explorada que o contexto era pouco favorável em termos de recursos. Neste pela Comissão do Planalto Central já havia sido visitada por viajantes sentido, era frequente a reivindicação por mais material, animais e estrangeiros, tais como Saint-Hilaire e Castelnau, e nacionais como reforço do contingente para execução dos trabalhos, tendo o chefe da Varnhagen, todos mencionados nos relatórios da Comissão. Contudo, comissão que voltar ao Rio de Janeiro com o fi m de solicitar aumento o que tornou as viagens chefi adas por Luiz Cruls diferente? de verbas. Além disso, a comissão era também refém do mau tempo, o que tornava ainda mais penosa a missão. Responsável pelo estudo Se aquela região já havia sido visitada por outros viajantes, Folha de rosto do Relatório Cruls editado em francês do rio São Francisco e sua ligação com o Planalto Central, Henrique a Comissão Cruls não pode possuir um aspecto de descobrimento ou Acervo de Maria José Teixeira eredas..de V Morize (1896, p. A-7), relatou da seguinte forma as difi culdades que “desbravamento dos sertões”. Sua característica principal pode ser Soares, bisneta de Cruls Brasília encontrou: vista como a sistematização e classifi cação da natureza daquele lo- 45 cal, segundo os padrões científi cos, a partir de uma equipe compos- Antes de ser publicado em forma de Relatório, as notícias desta das maiores comemorações para celebrar a nação brasileira, o Pri- Veredas..de ta por especialistas de diversas áreas. Todos estes dados inscritos e expedição já circulavam nos principais jornais do País, como o Jornal meiro Centenário da Independência, em, 7 de setembro de 1922, uma Brasília mapeados no quadrilátero esferoidal proposto por Luiz Cruls, que do Commercio, e mais tarde, em artigos de revistas, como a Revista do placa foi descerrada na área demarcada por Luiz Cruls, garantindo a organizou este conhecimento, produzido por instituições científi cas Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro. As notícias da Comissão associação do nome deste cientista à fundação da cidade de Brasília. nacionais, tais como o Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, também foram publicadas em revistas internacionais como a france- o que representou mais um passo no sentido da institucionalização sa A Travers le Monde com o artigo “La future capitale du Brésil” e a das ciências no Brasil. inglesa The Geographical Journal, “Explorations in Central Brazil”. Referências Outro aspecto importante a salientar com relação à Comissão No texto do Relatório, há uma interpenetração de questões ARANA, José Milton. Astronomia de posição: notas de aula. Presidente Pru- dente, SP: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Cruls é a recorrente citação na historiografi a que liga esta Comissão que estavam afl igindo determinados setores da sociedade brasileira Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Cartografi a, mar. 2000. Mimeo. do fi nal do Século XIX ao surgimento de Brasília em 1960. Entretanto da época, como a salubridade do clima brasileiro para o imigrante ARRUDA Gilmar. Fotografi as de cidades de fronteira: a vitória sobre a natu- esta história não é linear, apesar dos cálculos de Cruls para a futura europeu, a defi nição das fronteiras e a integração do território. Os reza. In: ARRUDA, Gilmar; TORRES, David Velázquez; ZUPPA, Graciela (Org). Capital terem sido utilizados pela comissão de Polli Coelho de 1947. relatos de Cruls continham uma série de elementos que empolgavam Natureza na América Latina: apropriações e representações. Londrina: Ed. UEL, 2001. p. 193-216. Talvez um dos motivos da permanência do nome de Luiz Cruls à de- os leitores urbanos como as possibilidades de exploração das rique- zas naturais e descrições do sertão. Cabe também lembrar que neste BASTOS, Celestino Alves. Relatório do Dr. Celestino Alves Bastos, chefe da terminação do local da futura Capital esteja no fato de seu relatório turma n. 2. In: CRULS, Luiz. Relatório parcial apresentado ao exm. Sr. Dr. ter sido lido como um livro de geografi a ao longo da primeira meta- momento nem todas as fronteiras nacional e internacional do País Antonio Olyntho dos Santos Pires [...]. Rio de Janeiro: Typ. Lith.C. Schmidt, 1896. p. B1-B5. de do Século XX. Deve-se lembrar o livro de Élisée Reclus, Nouvelle estavam demarcadas, e que o público acompanhava a conquista do território passo a passo. BRASIL. Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Relatório apresen- géografi e universelle de 1894, que no capítulo sobre o Brasil possui tado ao vice-presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo mi- uma parte dedicada à descrição do Planalto Central. O autor afi rmou nistro de Estado dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas, enge- Se na passagem para o Século XX, a geopolítica fi ca num se- nheiro Antonio Francisco de Paula Souza, no anno de 1893. Rio de Janeiro: que recebera um mapa e notícias sobre o Planalto Central ainda em gundo plano em relação à novidade que a natureza do Planalto Cen- Imprensa Nacional, 1893. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. notas manuscritas de Luiz Cruls. Em 1947, época em que a questão tral trazia, aquela não foi esquecida por alguns setores da sociedade, ______. Relatório apresentado ao vice-presidente da República dos Esta- da mudança da Capital volta à cena, o relatório foi editado na Cole- como, por exemplo, os militares. Isto fez com que o Relatório da Co- dos Unidos do Brasil pelo general Dr. Bibiano Sergio Macedo da Fontoura ção Brasiliana, por iniciativa do fi lho do astrônomo, o literato Gastão missão fosse exaustivamente analisado no que se refere à construção Costallat, ministro de Estado dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Pú- blicas em maio de 1894. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894. Disponível Cruls, com o auxílio do general Hastimphilo de Moura, que participa- da nova Capital, em 1960. Uma alternativa a esta produção histo- em: . Acesso em: mar. 2010. ra da Comissão. Depois seria novamente editado por José Olympio, riográfi ca teleológica seria ler o Relatório não como o antecedente ______. Relatório apresentado ao vice-presidente da República dos Estados em 1957, na Coleção Documentos Brasileiros, estas reedições foram histórico de Brasília, mas como um diálogo entre a ciência e as pre- Unidos do Brasil pelo engenheiro Antonio Olyntho dos Santos Pires ministro de Estado dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas em maio de um fator de sua popularização. Isto favoreceu a permanência do Re- ocupações mais gerais da sociedade na Primeira República. A impor- 1895. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. ______. Relatório apresentado ao vice-presidente da República dos Esta- trabalhos que tratam aquela Comissão como o marco zero da histó- nacional e internacional possibilitaram a permanência da Comissão dos Unidos do Brasil pelo ministro de Estado dos Negócios da Indústria, Via- ria de Brasília. Exploradora do Planalto Central na memória nacional. Assim, em uma ção e Obras Públicas, engenheiro Antonio Olyntho dos Santos Pires em maio 46 de 1896. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1896. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. Luiz. Relatório parcial apresentado ao exm. Sr. Dr. Antonio Olyntho dos San- Hachette, 1894. v. xix. tos Pires [...]. Rio de Janeiro: Typ. Lith.C. Schmidt, 1896. p. D1-D60. CAVALCANTI, Antonio. Relatório de A. Cavalcanti, chefe da turma NE (Anexo SOBEL, Dava. Longitude: a verdadeira história do gênio solitário que resolveu III). In: CRULS, Luiz. Relatório Cruls: [relatório da Comissão Exploradora do GLAZIOU, A. Relatório do Dr. A. Glaziou, botâncio. In: CRULS, Luiz. Relatório o maior problema do século XVIII. Tradução Bazán Tecnologia e Linguística. Planalto Central do Brasil]. Brasília, DF: Senado Federal, 2003. (Coleção Edi- parcial apresentado ao exm. Sr. Dr. Antonio Olyntho dos Santos Pires [...]. Rio São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. 149 p. Tradução de: Longitude: the true ções do Senado Federal, v. 22). Edição fac-similar. p. 175-236. de Janeiro: Typ. Lith.C. Schmidt, 1896. p. F3-F16. story of a lone genius who solved the greatest scientifi c problem of his time. CRULS, Gastão. Luiz Cruls: escorço biobibliográfi co. In: CRULS, Luiz. Planalto HARLEY, John Brian. The new nature of maps: essays in history of cartogra- ULE, Ernesto. Relatório de Dr. Ernesto Ule, botânico da Comissão (anexo VI). Central do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. p. 9-27. phy. Edited by Paul Laxton; introduction by J. H. Andrews. Baltimore: Johns In: CRULS, Luiz. Relatório Cruls: [relatório da Comissão Exploradora do Pla- Hopkins University, 2001. 331 p. nalto Central do Brasil]. Brasília, DF: Senado Federal, 2003. (Coleção Edições CRULS, Luiz. Exploration in central Brazil. Geographical Journal, London, GB: do Senado Federal, v. 22). Edição fac-similar. p. 329-343. Royal Geographical Society, v. 9, n. 1, p. 64-67, jan. 1897. 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1 Marco Aurélio Martins Santos* servatório Imperial do Rio de Janeiro . Ali estudou o planeta Marte comissão para realizar estudos sobre o local ideal para a profundamente. Ele ainda faria observações sobre a órbita de Vênus construção da nova capital. A chefi a desta comissão foi e participaria da primeira observação de um cometa, em 1882, que entregue a Louis - ou melhor, Luis, como ele preferia ser Louis Ferdinand Cruls nasceu em Diest, pequena cidade belga acabou recebendo o seu nome. Como reconhecimento de sua valio- chamado – Cruls. localizada na região de Flandres, na província de Brabante Flamengo, sa contribuição para a Astronomia, uma cratera em Marte e outra Ele então organizou uma equipe de 21 pesquisa- em 21 de janeiro de 1848, fi lho de Auguste Cruls e Anna Elisabeth na lua foram batizadas como “Cruls” em sua homenagem. Cruls foi dores, entre geólogos, geógrafos, botânicos, naturalistas, Jordens. o criador da Revista do Observatório, o primeiro periódico científi co engenheiros, médicos e higienistas, para rumarem na no Brasil. Ao tempo de fazer seus estudos secundários seguiu para a ci- direção do Planalto Central, usando trem e cavalos, per- dade de Gand, na mesma região, onde também cursou engenharia Louis Cruls viveu por muitos anos no Rio de Janeiro, inclusive correndo cerca de quatro mil quilômetros até a região civil, primeiramente em faculdade, posteriormente se transferindo ele optou por abrasileirar seu primeiro nome, para Luiz. Aqui se casou, que explorariam. Em determinado momento, Cruls e sua Luiz Cruls para a Escola dos Aspirantes da Engenharia Militar, onde concluiu o constituiu família e tinha a sua casa no bairro carioca de Laranjeiras. equipe se encontraram no meio do Nada, sem qualquer Acervo do Museu de Astronomia curso como segundo-tenente. Ele fi caria engajado no Exército belga ponto de referência, que os localizassem geografi camente. Astrônomo Em 1884, representou o Brasil em Washington, na conferência até 1874, quando pediu baixa. Um convite o fez trocar a carreira mi- experiente, bastou Cruls olhar para cima para obter sua exata locali- que tinha o objetivo de adotar um meridiano único (Meridiano Zero) litar por uma aventura que lhe estimulava a curiosidade. O brasileiro zação. A partir da posição das constelações, ele e sua equipe sabiam para a Terra. De 1887 a 1889, esteve em Paris, representando o Brasil Caetano Furquim de Almeida o convenceu a vir ao Brasil, para onde exatamente qual rumo iria tomar em pleno Brasil Central. nas conferências que trataram da elaboração de uma nova Carta Ce- ele embarcou no paquete “Orénoque” naquele mesmo ano. Na via- leste. Ainda em 1889, foi nomeado professor de Geodésia e Astrono- Ao demarcar os 14 400 km² constitucionais da pré-área esco- gem, conheceu Joaquim Nabuco com quem travou amizade. mia da escola Superior de Guerra. lhida para sediar a nova capital, a Missão Cruls aproveitou para reali- Chegando ao País, foi apresentado por seu novo amigo ao zar estudos científi cos inéditos na região neste espaço, que seria pos- A Constituição de 1891 determinou que a Capital Federal fosse imperador Pedro II e ao ministro Buarque de Macedo, sendo no- teriormente conhecido como “Quadrilátero Cruls”. Este foi demarcado transferida para o interior do País, conforme rezava o Artigo 3o: “Fica meado para a Comissão da Carta Geral do Império, cujo chefe era no espaço delimitado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre D’Armas. pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de o marechal Henrique Beaurepaire-Rohan. Cruls permaneceu neste Curiosamente, o mesmo local indicado por Varnhagen, em 1877. 14 400 km², que será oportunamente demarcada para nela estabele- cargo até que a Comissão fosse extinta. Depois de ter publicado, na cer-se a futura Capital Federal”. Ao retornar de sua missão e apresentar os resultados, o enge- nheiro belga foi nomeado, em junho de 1894, presidente da Comissão

* Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatís- 2 Por intermédio do ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Antão Gonçalves de ticas – ENCE/IBGE, jornalista, Analista em Planejamento e Gestão de Informações Geográfi cas Farias, em Portaria no 119-A de 17 de maio de 1892, constituindo a Comissão Exploradora do e Estatísticas no IBGE. 1 Posteriormente ele seria nomeado diretor do Observatório, cargo que ocupou até sua morte. Planalto Central do Brasil. 48 perfil

de Estudos da Nova Capital da União. Ele, então, organizou uma se- por anos. Em 1908, seguiu para Paris em busca de tratamento para gunda expedição para retornar ao “Quadrilátero” e selecionar o local sua moléstia, vindo a falecer. defi nitivo onde seria edifi cada a nova capital brasileira. Após estes Depois de seu passamento, em Paris, no dia 21 de junho de estudos, Cruls elaborou um meticuloso relatório, incluindo levanta- 1908, foi encontrado entre seus pertences, um texto de autor desco- mento sobre a topografi a, clima, hidrografi a, fauna, fl ora, pedologia, nhecido descrevendo sua trajetória de vida. A parte fi nal deste texto é recursos minerais além dos materiais de construção disponíveis na particularmente tocante e atesta o extremo amor que Louis Ferdinand região. O relatório bilíngue (português e francês na versão original) Cruls dedicava ao Brasil, sua segunda pátria. incluía fotografi as, tabelas, cálculos e croquis, assim como um atlas Um fato que muito me impressionou, e que me foi com 83 mapas da região. Ele fazia, inclusive, projeções sobre o total narrado há tempos por sua esposa, passou-se a bordo do na- máximo da população da nova capital e o respectivo abastecimento vio que levava o ilustre casal para a Europa. Todas as noites, Cruls costumava contemplar demoradamente, do tombadilho, de água do local, conforme pode ser lido no Relatório apresentado o céu meridional que ia aos poucos desaparecendo, substituí- ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo En- do cada dia mais pelas constelações do setentrião. O Cruzeiro do Sul cada noite se apresentava mais baixo o que Cruls fazia genheiro Antonio Olyntho dos Santos Pires, ministro de Estado dos questão de assinalar à sua companheira com emoção, como Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas em maio de 1895: se tratasse do próprio Brasil que fi cava mais distante. Até que certa noite em que Cruls tinha se demorado no tombadilho “Por aviso de 6 de fevereiro último, foi aprovada a base de um mi- até mais tarde, ele entra no camarote e diz à sua esposa, pá- lido e emocionado: “Está tudo acabado”. Era o Cruzeiro do Sul lhão de habitantes para o máximo da população da futura capital e que afi nal mergulhava defi nitivamente horizonte e não seria 500 litros de água para o mínimo a fornecer diariamente a cada habi- mais visto, como não foi, por aqueles olhos sonhadores de quem amou tanto a terra do Brasil”.3 tante” (BRASIL, 1895, p. 468).

Todavia, com o fi m do governo de Floriano Peixoto (1839-1895), todo o processo de mudança da capital foi interrompido. Os estudos só seriam retomados mais de 40 anos depois. Referência do perfi l Além da expedição para determinar o local onde seria cons- BRASIL. Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Relatório apre- sentado ao vice-presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo truída a nova capital, ele participaria de outra missão de alto valor engenheiro Antonio Olyntho dos Santos Pires ministro de Estado dos Negó- científi co. Cruls chefi ou, em 1901, a Comissão Limites, expedição en- cios da Indústria, Viação e Obras Públicas em maio de 1895. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1895. Disponível em:. Acesso em: mar. 2010. determinar as coordenadas da nascente do rio Jaquirana, com a fi na- eredas..de V lidade de demarcar a fronteira com a Bolívia. Conclui seu relatório no Brasília 3 Ver site: Grupo Escoteiro Luiz Cruls. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2009.

Casa em que Cruls nasceu, em Diest, na Bélgica com placa comemorativa no detalhe Acervo de Maria José Teixeira Soares, bisneta de Cruls 49 eredas..de VBrasília

Duas outras comissões (Polli Coelho e Caiado / Pessoa) ainda seriam formadas, até que a nova capital pudesse ser construída. Então, atrairia muitas e muitas pessoas, abrindo muitas frentes de emprego, como mostra esta imagem. Arquivo Público do Distrito Federal. 50 Na boca do sertão ou integrada ao ecúmeno? Militares, estatísticos, geógrafos e a localização da nova capital Sergio Nunes Pereira*

Observadores minimamente familiarizados com a história brasileira sabem que a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para o inte- rior do País é uma ideia não somente antiga como recorrente. Com base em argumentos estratégicos, descentralizadores e de integração nacional, tal ideia foi defendida pelos conjurados de Vila Rica (1792); pelo jornalista Hypólito José da Costa, no seu Correio Brasiliense (1813); e por José Bonifácio de Andrada e Silva, em memória encaminhada à Assembleia Constituinte de 1823. Motivou, ainda, profecias místicas como o sonho do bispo D. João Bosco, em 1833; um projeto de lei em 1852 e, em 1877, a viagem ao Planalto Central do historiador e diplomata Varnhagen, já agraciado Visconde de Porto Seguro. A Constituição de 1891 endossaria o projeto, resultando, no ano seguinte, numa expedição exploradora chefi ada pelo astrônomo Louis Cruls, que delimitaria o quadrilátero do futuro Distrito Federal. Reafi rmada pela Constituição de 1934, sem gerar ações concretas, a proposta voltaria a aparecer na Carta de 1946, desenterrando velhos argumentos e suscitando novos ânimos e paixões.

Neste capítulo1, examinamos a participação do IBGE e de alguns de seus quadros profi ssionais no esforço ofi cial com vistas a dar uma so- lução defi nitiva à questão, em obediência ao artigo 4o das disposições transitórias da nova Constituição. Mesmo num livro organizado de forma cronológica, parece evidente que o recorte considerado na análise – de 1946 a 1953, tempo de vigência da Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital do Brasil, criada pelo dispositivo constitucional – não deve se limitar rigidamente ao período de existência institucional da agência, sob pena de ter engessada a sua compreensão. De fato, referências a ideias e ações do passado se fariam sentir no juízo dos técnicos encarregados de estudar o problema da interiorização da capital, da mesma forma que, antecedendo em pelo menos uma década os trabalhos da Comissão, au- tores independentes e órgãos técnico-administrativos governamentais vinham dedicando considerável atenção ao tema. Daí que a infl uência de um pensador do Século XIX como Varnhagen, ou de trabalhos mais recentes produzidos no âmbito do Conselho Nacional de Estatística, sob a inspiração de Teixeira de Freitas, também sejam considerados na análise, na medida em que encontram ressonância no discurso e nas práticas dos técnicos empossados em 1946.

* Doutor em Geografi a Humana pela Universidade de São Paulo; professor do Departamento de Geografi a da Universidade Federal Fluminense.

1 Agradecemos a Felippe Souza Silva pelo competente trabalho de levantamento e sistematização de artigos da Revista Brasileira de Geografi a e do Boletim Geogáfi co.

Placa no Marco Comemorativo de 1922, em Planaltina-DF – Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal Folha de rosto do Por outro lado, o estudo de uma comissão ofi cial específi ca, evidência de que tenham sido, de fato, publicadas. Mas não chegam Veredas..de Relatório técnico da Comissão com todas as suas tensões internas, injunções políticas e vinculações a fazer falta, dado o desembaraço com que os técnicos expressaram Brasília presidida pelo general Polli Coelho institucionais – com destaque para aquelas envolvendo o IBGE, em suas posições no volume II. Acervo do IBGE suas distintas ramifi cações – oferece uma possibilidade interessante Afora os relatórios citados, a documentação ofi cial da Comis- para se compreender os meandros de uma operação política que, além são inclui ainda dois volumes extranumerários. Um deles, trazendo o de mobilizar a opinião pública do País, evidenciou diferentes concep- selo “reservado” no frontispício, contém os pareceres do Estado-Maior ções quanto ao papel da organização do território como elemento do Exército e do Estado-Maior Geral (do conjunto das Forças Arma- catalisador do “desenvolvimento nacional”. Para tanto, utilizamos a das) sobre questões estratégicas e de segurança nacional implicadas documentação referente à Comissão; resoluções da Assembleia Geral na transferência da capital. Já o outro volume, intitulado A localiza- do Conselho Nacional de Estatística - CNE; artigos publicados à época ção da nova capital da República, consiste em um autêntico dossiê na Revista Brasileira de Geografi a e no Boletim Geográfi co, mantidos montado pelo presidente da Comissão com o intuito de corroborar pelo Conselho Nacional de Geografi a - CNG e, fi nalmente, trabalhos sua posição quanto à solução do problema. Sem qualquer página in- acadêmicos voltados para o tema da transferência da capital e da trodutória, o general Polli Coelho insere no documento uma resolução criação de Brasília. da Assembleia Geral do CNE2 solidária às suas ideias, da qual constam Com vistas a melhor descrever as fontes bibliográfi cas e docu- ainda dois de seus estudos sobre o tema, na forma de anexo. Na se- mentais referidas, adiantamos a seguir informações mais detalhadas gunda parte do mesmo documento, são apresentadas duas cartas e sobre as mesmas. Os relatórios técnicos compõem-se de três volumes: uma entrevista de Teixeira de Freitas, principal mentor do CNE e anti- o primeiro deles apresenta a resolução fi nal vencedora na Comissão, go secretário-geral do IBGE, expondo sua antiga militância em favor em texto assinado por seu presidente, general Djalma Polli Coelho, da transferência da capital para o interior do Brasil. além de sugestões operacionais para a instalação da nova capital; o A rede de afi nidades costurada por Polli Coelho, no entanto, segundo, o mais extenso de todos, contém as declarações de votos não cobriria todo o aparelho administrativo ao qual pertencia o CNE. de cada membro do coletivo de especialistas, eventualmente justi- O regulamento da Comissão previa o funcionamento de subcomissões fi cadas e acompanhadas por anexos; e o terceiro reúne as atas das de estudos especiais ou seções especializadas3 com autonomia para 23 reuniões plenárias que, de novembro de 1946 a agosto de 1948, registraram as discussões travadas em torno da questão. Esses três volumes, perfazendo um total de 280 páginas, são identifi cados como 2 o a Trata-se da Resolução n 388, de 21 de julho de 1948, cujo conteúdo será discutido mais a “1 parte” do relatório. No prefácio ao volume III, há referência à adiante. publicação futura das 2a e 3a partes, destinadas a conter pontos de 3 A documentação examinada utiliza indistintamente os dois termos, ao passo que outras fontes em geral registram “comissão técnica” (QUEIRÓS, 1949). Pelo sentido claro que denotam e em vista individuais dos membros da Comissão e de outros estudiosos do favor da fl uidez do texto, preferimos o termo Subcomissão, que será usado ao longo do capítulo. Além da Subcomissão de Estudos Geográfi cos, havia equivalentes nas áreas de geologia, energia, tema da mudança da capital. No entanto, não encontramos nenhuma agronomia, clima e urbanismo.

Rio de Janeiro, então Distrito Federal 52 Acervo de Marco Santos a realização de estudos de determinadas questões (cujos resultados, Geográfi cos; por outro lado, Laurent Vidal, além de deslocar o olhar no entanto, deveriam ser submetidos ao Plenário). Dirigida pelo en- sobre o tema para o debate parlamentar (fora, portanto, do âmbito genheiro Christovam Leite de Castro, integrante da Comissão e secre- estritamente estatal), proporcionou uma chave de leitura interessante tário-geral do CNG, a Subcomissão de Estudos Geográfi cos levaria a para a dimensão geopolítica valorizada por Vesentini, ao entendê-la cabo, por sua própria conta, duas expedições ao Planalto Central. O como “uma linguagem técnica e relativamente consensual, a qual re- resultado das mesmas − por sinal destoante da posição de Polli Coe- correu um grupo social determinado (os militares e os técnicos) para lho − foi reunido num texto de 137 páginas, apresentado por Leite de justifi car uma posição particular com relação à mudança da capital” Castro e publicado como documento interno do CNG. Os argumentos (VIDAL, 2009, p. 166). aí contidos, porém, bem como comentários adicionais posteriores, en- Defi nidas as bases documental e bibliográfi ca que dão suporte contrariam divulgação mais ampla nas páginas da Revista Brasileira a este capítulo, resta esclarecer seus objetivos e conteúdos, no con- de Geografi a e do Boletim Geográfi co, os novos periódicos científi cos texto do presente livro. Pelo até aqui exposto, já sabemos que ao me- editados pelo CNG. Na linha de frente ou nos bastidores, a recente comunidade científi ca dos geógrafos não se furtaria a opinar sobre nos duas posições se confrontaram nas discussões travadas quanto tema tão importante da vida nacional. à localização da nova capital. Se estas ainda não foram identifi cadas, podem, contudo, ser deduzidas a partir do título do capítulo. Mas o Na análise dos documentos e artigos de época apontados, nos que exatamente queremos traduzir, através das expressões “boca do valemos também de alguns trabalhos acadêmicos que, sob diferentes sertão” e “ecúmeno”? Deixemos a resposta para um personagem di- prismas, lançam luz sobre o tema da interiorização da capital de for- retamente envolvido nos trabalhos empreendidos para a solução do ma crítica. O principal mérito dessa bibliografi a é o de oferecer uma problema que, por sinal, acreditava no caráter estritamente técnico abordagem do problema alternativa à perspectiva linear e à apolo- de sua contribuição. Diz o geógrafo francês Francis Ruellan, consultor gética de estudos anteriores de cunho jornalístico ou memorialista contratado do CNG: (VASCONCELOS, 1978; VITOR, 1980; SILVA, 1985). Distanciadas em forma e conteúdo dessas histórias de Brasília, os trabalhos do ge- Finalmente, é necessário defi nir o que esperamos da nova capital. Deve ela ser exclusivamente um centro político ógrafo José William Vesentini (1986) e dos historiadores Luís Carlos e administrativo, gozando de todas as comodidades possíveis Lopes (1992) e Laurent Vidal (2009) ancoram-se em sólidas pesquisas, para ela mesma e seus arredores, localizada no centro de uma zona já muito povoada? Nesse caso, é no sul do Planalto desenvolvidas em teses de doutoramento. Nessa mesma linha, artigos Central que se encontram os melhores sítios. Ao contrário, recentes sobre aspectos mais específi cos da construção de Brasília se a capital deve ser como um fermento, um centro de co- lonização e irradiação até o sertão ou interior do Norte e do merecem igualmente registro (VIEIRA, 2009). Vesentini aguçou nos- Oeste, é preciso situá-la como são situadas as grandes cida- O geólogo francês sa percepção do aspecto geopolítico da questão, não apenas em seu des, na porta da estepe ou do deserto. Pequim, por exemplo, Francis Ruellan eredas..de é capital política, mas é, ao mesmo tempo, porto terrestre e Acervo da Memória V sentido histórico geral, mas também na controvérsia verifi cada entre Brasília ponto de partida das caravanas até a Mongólia e a Manchúria Institucional do IBGE a Presidência da Comissão e os técnicos da Subcomissão de Estudos (RUELLAN, [2004], p. 24, grifo nosso). 53 A pergunta era respondida de modos diferentes no interior da apresentava a ideia, sendo necessária a intervenção de última hora Veredas..de Comissão. Cogitavam-se ainda soluções intermediárias, como a mu- do ex-Presidente Arthur Bernardes (na ocasião, deputado pela União Brasília dança para o interior mais profundo em uma etapa posterior, após um Democrática Nacional - UDN mineira), para inseri-la na versão fi nal do período de permanência da capital na fronteira econômica do País. anteprojeto. Formada uma comissão para a redação do texto, não tar- Nos ocuparemos dessa controvérsia, buscando situar as linhas de for- daram a surgir divergências na formulação de emendas e nas sessões ça existentes e suas bases de sustentação. Nos limites deste texto, plenárias subsequentes, reveladoras de interesses regionais. Os deputa- concentramos a atenção na Comissão e no corpo técnico do IBGE, re- dos de Minas Gerais inclinaram-se por uma alternativa envolvendo o correndo eventualmente a Laurent Vidal para um enquadramento da Triângulo Mineiro, enquanto os goianos e nordestinos cerraram fi leiras questão no nível político mais geral. Com base em tal direcionamento, em torno de Goiânia, como solução provisória para a transferência de- identifi camos os grupos envolvidos na querela como estatísticos, ge- fi nitiva da capital ao Retângulo Cruls (VIDAL, 2009, p. 162-63). ógrafos e militares, considerando não suas formações profi ssionais, Quanto à participação partidária nos debates sobre a mudança, falsamente indicadoras de suas reais especializações,4 mas os âmbitos o autor destaca o quase monopólio do Partido Social Democrata - PSD institucionais em que estavam inseridos. Assim, chamamos de esta- nas iniciativas, em contraste com o reduzido envolvimento da UDN, tísticos, os quadros técnicos atuantes no CNE; de geógrafos, aqueles representante da elite tradicional anterior a 1930. Vidal conclui desse vinculados ao CNG, procedentes das mais diversas áreas do conhe- fato a preponderância dos herdeiros do sistema político de Vargas na cimento e de militares, o Presidente da Comissão, diretor do Serviço condução e direção das discussões, a qual, no entanto, dado o desdo- Geográfi co do Exército, bem como os ofi ciais de Estado-Maior com os bramento tecnicista do impasse constitucional, pouco lhes valeu: quais este mantinha interlocução. A nomeação de uma comissão técnica para a localiza- ção da capital, a participação constante do IBGE nos estudos e nos trabalhos de refl exão confi rmam [...] [a] “confi scação” Dilemas de uma Comissão: do projeto de mudança pelos militares, pelos técnicos e pelos General Polli Coelho, presidente cientistas cujo poder dentro da sociedade cresceu considera- da Comissão de Estudos para a Triângulo ou Retângulo? Localização da Nova Capital velmente desde 1930 (VIDAL, 2009, p. 165). Federal do Brasil Ao reconstituir o ambiente político em que foi introduzida a Acervo da Memória Institucional do IBGE questão da mudança da capital na Constituinte de 1946, Vidal lem- Defi nido o texto constitucional, fi cou registrado no artigo 4o de bra que, em meio aos debates travados na Assembleia, o tema qua- suas disposições transitórias que a capital da União seria transferida se caiu no esquecimento dos representantes eleitos para elaborar a para o Planalto Central do País. Para tal fi m, o Presidente da República nova Carta. A primeira versão do anteprojeto de Constituição sequer nomearia uma comissão de técnicos de “reconhecido valor” para efeti-

4 A título de exemplo, tomemos o caso dos engenheiros. Dos 12 membros da Comissão, dez var o estudo da localização da nova capital; esta, por sua vez, encami- eram engenheiros, fato que, como veremos, encobria especializações em agronomia e geologia, por exemplo. Afora isso, Christovam Leite de Castro, secretário-geral do CNG, era engenheiro nharia o resultado de seu trabalho ao Congresso Nacional, a fi m de que de formação; mesmo o general Polli Coelho poderia ser enquadrado em tal categoria, por sua condição de engenheiro-geógrafo. fosse aprovado e deliberado, na forma de lei especial. 54 Mas quem eram afi nal esses técnicos de “reconhecido valor”? Já • Luiz de Anhaia Mello, ex-prefeito de São Paulo (1930-1931), pro- sabemos que a presidência foi confi ada ao general Djalma Polli Coelho, fessor da Escola Politécnica da USP e fundador da Faculdade de diretor do Serviço Geográfi co do Exército, que conhecera altos e baixos Arquitetura e Urbanismo, da mesma instituição; em sua trajetória, mas se fortalecera com o esforço de guerra, no pe- • Odorico Rodrigues de Albuquerque, diplomado pela Escola de ríodo 1941-1945. Seguindo a hierarquia, a vice-presidência coube ao engenheiro Luiz Augusto da Silva Vieira, notabilizado por sua passa- Minas de Ouro Preto, autor de estudos pioneiros sobre a geologia gem na Inspetoria de Obras Contra Secas e pela construção de açudes da Amazônia e sobre recursos naturais do Vale do rio Doce, com e usinas hidrelétricas. Os demais integrantes, nove engenheiros e um vistas à instalação de siderúrgica; médico sanitarista, por possuírem o mesmo status na hierarquia da • Geraldo H. de Paula e Souza, médico higienista do antigo Institu- Comissão, são apresentados a seguir no mesmo bloco: to de Higiene de São Paulo, transformado em Faculdade de Saúde • Christovam Leite de Castro, secretário-geral do CNG desde sua Pública quando incorporado à Universidade de São Paulo - USP; fundação, tendo chefi ado anteriormente a Seção de Estatística • Jorge Leal Burlamaqui, engenheiro ferroviário, com carreira exer- Territorial da Diretoria de Estatística da Produção, do Ministério Christovam Leite de cida na Estrada de Ferro Central do Brasil; e Castro em reunião no CNG, da Agricultura; com Macedo Soares e Teixeira de Freitas Acervo da Memória Institucional do IBGE • Antonio Carlos Cardoso, professor da Escola Politécnica de São • Francisco Xavier Rodri gues de Souza, especialista em meteoro- Paulo, autor do projeto de eletrifi cação da Estrada de Ferro Soro- logia. cabana e membro, em 1941, da comissão que estudou a instala- A partir da observação da lista, com seus nomes e informações ção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda; profi ssionais, podemos arriscar algumas conclusões. A variedade de • Lucas Lopes, Secretário da Agricultura, Indústria e Comércio de especializações abarcadas pelos membros da Comissão – agronomia, Minas Gerais, durante o Estado Novo e, após a redemocratização, geologia, meteorologia, higienismo e diversas engenharias – demons- Secretário de Viação e Obras Públicas do mesmo estado; tra que o problema da localização exata da futura capital envolvia múltiplas facetas, tais como clima, salubridade, fertilidade, disponi- • Jerônimo Coimbra Bueno, responsável pela construção de Goiânia, bilidade de recursos naturais e facilidade de acesso à região. Assim, em seguida, concessionário da rodovia que ligava o sul de Goiás aspectos práticos também tinham de ser levados em consideração, e a São Paulo, pelo Triângulo Mineiro e, por fi m, candidato eleito ao não somente políticos, como a gosto de alguns estudiosos da ques- governo de Goiás, em 1947; tão. Este seria, desde sempre, um dos pontos de divergência entre os • Arthur Eugenio Magarinos Torres Filho, ao mesmo tempo, docen- membros da Comissão, demarcando posições mais técnicas, valoriza- eredas..de VBrasília te e diretor da Escola Nacional de Agronomia, reitor da Universi- doras do sítio no qual se ergueria a cidade, e outras mais comprome- dade Rural e presidente da Sociedade Nacional de Agricultura; tidas com um pensamento geopolítico pautado na ideia de posição 55 A Expedição comandada – no caso, a mais central e interiorizada possível, de modo a gerar timo, embora compartilhasse a preocupação do primeiro, não chegou Veredas..de por Fabio Guimarães chegou ao Marco o efeito desejado de propagação das “forças da nacionalidade” para a encaminhar nenhuma substituição (COMISSÃO..., 1948, v.3, p.30). Brasília Comemorativo de 1922 todo o País. Acervo de Fabio Celso de Mas atas, quase sempre polidas e austeras, não costumam ser boas Macedo Soares Guimarães Afora a questão dos critérios a se considerar na decisão, as di- fontes para se detectar insatisfações. Para além do tema da duplici- vergências também possuíam um caráter latente, herdado dos acalo- dade de funções, havia, entre alguns membros da Comissão, o receio rados debates ocorridos na Constituinte. Não é por outro motivo que, de certa parcialidade de Coimbra Bueno em suas avaliações (VIEIRA, mal iniciados os trabalhos da Comissão – e apesar de sua propalada 2009, p. 296). Vale lembrar que os parlamentares goianos, com os “neutralidade técnica” – reproduziu-se em seu interior exatamente a quais o novo governador teria que se relacionar politicamente, se des- mesma polarização da Assembleia: uma tendência favorável à loca- tacavam entre os mais mobilizados com os planos de mudança da lização no Triângulo Mineiro e outra em Goiás, próxima ao retângulo demarcado por Cruls. Não era desconhecida dos outros membros da capital − obviamente para o seu estado. Comissão, a estreita colaboração do engenheiro Lucas Lopes com os A resolução fi nal sobre a localização da futura capital seria to- deputados mineiros que mantiveram ativa campanha em prol do Tri- mada através de votação envolvendo a totalidade dos membros da ângulo, como Israel Pinheiro e Juscelino Kubitschek,5 ambos do PSD. Comissão – seu Plenário – segundo o artigo 14o do regulamento bai- Para suas intervenções nos debates, Juscelino ancorou-se num estudo realizado por Lopes sobre a evolução geográfi ca do “centro demo- xado em 10 de abril de 1947. Porém, antes que isto fi nalmente ocor- gráfi co brasileiro”, situado à época pelo autor em ponto próximo ao resse, o Plenário deveria decidir sobre todas as questões relacionadas Triângulo Mineiro (VIDAL, 2009, p. 163, n. 49). aos trabalhos da Comissão, aprovar os programas de estudo propos-

A antigas desconfi anças somavam-se novas. A Comissão fora tos e examinar pareceres e relatórios da Presidência e dos diretores empossada pelo Presidente Dutra, em novembro de 1946, e dera iní- das subcomissões. Qualquer que fosse a matéria em julgamento, a cio à sua rotina de trabalho. Contava com o engenheiro Jerônimo deliberação seria tomada por maioria de votos dos presentes, com a Coimbra Bueno entre seus membros, o qual seria eleito, no início do permissão de voto por escrito para os ausentes e a prerrogativa do ano seguinte, governador do Estado de Goiás. Em tais circunstâncias, “voto de Minerva” para o Presidente (artigos 11o e 12o) (COMISSÃO..., Chegada do general Polli o Presidente da Comissão poderia considerar incompatíveis as duas Coelho ao Planalto Central 1948, v.3, p. 95). em avião do tipo Stimson funções, solicitando ao Presidente da República a nomeação de um Acervo do IBGE substituto. A julgar pela ata da 7a sessão plenária, ocorrida em 10 de Conforme já informado, a Comissão realizou um total de 23 abril de 1947, Polli Coelho consultou Dutra sobre o problema. Este úl- reuniões plenárias, de novembro de 1946 a agosto de 1948, quase todas na sede do Ministério da Justiça, na então capital. Somente uma 5 Não deixa de ser irônico que, quando Presidente da República, o ex-deputado defensor da “causa” mineira, tenha concretizado a instalação defi nitiva de Brasília no Retângulo Cruls. dessas sessões, a 17a, teve lugar na Fazenda São Bento, situada no Mu- 56 nicípio de Cavalcante, centro de Goiás.6 A consolidação de uma forte Deste planalto, porém a única parte à qual cabe a de- nominação de central é aquela que se acha nas proximidades tendência, no interior do grupo, de não se limitar à ratifi cação do Re- dos Pirineus, no estado de Goiás, não somente por ser, na rea- tângulo Cruls conduziu a uma multiplicação dos estudos, produzindo lidade, a mais próxima do centro do Brasil, como também, por se acharem aí as cabeceiras de alguns dos mais caudalosos uma massa de documentos e informações que passou a constituir a rios do sistema hidrográfi co brasileiro, isto é, o Tocantins, o matéria principal tratada nas reuniões subsequentes. A complexidade São Francisco e o Paraná [a parte mais elevada, onde seria inscrito o famoso quadrilátero] (CRULS, 1957, p. 50-51, grifo gerada contrastava fortemente com a redação simplória do artigo 4o do autor). das disposições transitórias da Constituição: “a capital da União será transferida para o Planalto Central do país”. Ora, naqueles tempos em Veremos, mais adiante, que a concepção de Cruls e de seu prin- que o CNG mal completara uma década − e, portanto, pouco havia cipal inspirador, Varnhagen, seria aceita sem restrições por Polli Coelho feito em termos de pesquisa sistemática do espaço físico brasileiro − e assimilada, graças à campanha movida pelo Presidente e por alguns o que se entendia por Planalto Central? É compreensível que a nova técnicos. Por ora, no entanto, concentraremos nossa atenção no gru- geração de técnicos, geógrafos ou não, não se desse por satisfeita po empenhado em defi nir um conceito de Planalto Central alternativo com defi nições literárias ou imprecisas, como a que fi gurava na intro- àquele estabelecido pela tradição histórica. Nesta posição, encontrava- dução do Relatório Cruls: se a Subcomissão de Estudos Geográfi cos, a qual, após uma série de É evidente que por planalto central se deve entender trabalhos de gabinete referenciados em estudos anteriores de Orville a parte do planalto brasileiro mais central em relação ao cen- Derby, Teodoro Sampaio e Delgado de Carvalho, apresentou uma noção tro do território, isto é, mais próximo deste. Esta é, indubita- Localização aproximada do velmente, a única interpretação exata da expressão planalto mais precisa que, mais tarde, seria aprovada no Plenário. Na impossibili- Planalto Central, segundo a central que fi gura na Constituição [...]. Subcomissão de 7 dade de acesso direto à resolução, fi quemos com um trecho da mesma, Estudos Geográfi cos Este planalto ocupa grande parte dos Estados do Rio citado em parecer posterior do relator Eunápio Queirós, no momento Acervo do IBGE de Janeiro e Minas Gerais, parte menor do de Goiás, estende- se, sob forma de faixas estreitas, uma na Bahia, a leste do rio em que o resultado fi nal dos trabalhos já estava sob apreciação do Con- São Francisco, outra a oeste deste mesmo rio, até os limites gresso Nacional: do Estado de Goiás com os do Maranhão e do Piauí, outra, fi nalmente, ao longo do litoral, em direção ao sul, até o rio Grande. Eis, em traços largos, a confi guração geral do planalto A Comissão adota, para efeito de seus estudos, o se- brasileiro que nos interessa diretamente. guinte conceito geográfi co de “Planalto Central do país” – é a parte central do planalto brasileiro compreendendo o ma- ciço que tem por limites ao sul o rio grande, a leste o rio São Francisco, que, ao norte a ao oeste, descamba suavemente na direção geral do noroeste, estendendo-se até às primeiras 6 A viagem coletiva dos membros da Comissão a áreas do Planalto Central selecionadas para estudo foi proposta na 15a sessão (13.11.1947), não sem certa resistência de alguns técnicos, sob a alegação de que, naquela altura dos trabalhos, seria mais produtivo aprofundar os estudos 7 Nem todo o trabalho da Comissão, transformado em programa de estudos e pareceres, era eredas..de de gabinete. O membro mais entusiasta da viagem era Christovam Leite de Castro que, na con- anexado aos relatórios técnicos. Também não encontramos referência à resolução nas atas das V dição de diretor da Subcomissão de Estudos Geográfi cos, organizou seu roteiro. A reunião foi reuniões plenárias, somente uma curta passagem na qual Christovam Leite de Castro propõe Brasília realizada em 22.05.1948, num barracão próximo à fazenda. Estiveram presentes sete membros que a Comissão considerasse como Planalto Central a região central do maciço brasileiro (10a da Comissão (incluindo o Presidente). sessão, em 16.04.1947). (COMISSÃO ..., 1948, v. 3, p. 37). 57 Francis Ruellan sobre caminhão que está sobre cachoeiras a jusante dos rios amazônicos e até as bordas da Comissão e, para tanto, havia que se dobrar certas resistências como Veredas..de um vagão de trem no rumo do Planalto Central encosta envolvente do pantanal mato-grossense (QUEIRÓS, a Brasília Acervo de Alain Ruellan 1949, p. 352). a que se nota num registro da 9 sessão: O Engenheiro Jerônimo Coimbra Bueno apresentou uma segunda proposta de emenda ao parecer [...], no sen- A mudança de concepção traria implicações profundas no tra- tido de que a Comissão verifi que preliminarmente “in loco” balho da Comissão. Ao se negar o monopólio da identifi cação do Re- se o planalto indicado por Cruls satisfaz ou não as condições necessárias para localização da capital, diante das exigências tângulo Cruls com o Planalto Central, admitia-se implicitamente que atuais e futuras; que, em caso afi rmativo, a Comissão adote outras áreas do interior brasileiro seriam potencialmente capazes de essa região indicando o local até agosto próximo [...]; em caso contrário que se inicie o estudo das outras regiões, fazendo sediar a nova capital, desde que incluídas nos limites propostos. Esta previsão do tempo indispensável para a segurança dos tra- seria, igualmente, uma maneira de neutralizar a polarização estabele- balhos, fundamentando as razões que condenaram aquela cida a priori – Retângulo versus Triângulo – ampliando as possibilida- Região, já tradicionalmente enraizada no espírito nacional, há mais de meio século [...] (COMISSÃO..., 1948, v. 3, p. 34). des de escolha e transferindo seus critérios para o âmbito dos traba- Junta de bois lhos de campo, já demandados por algumas subcomissões e membros desatolando Apesar dos contratempos, o ponto de vista dos geógrafos caminhão da individuais. Nessa linha, o próximo passo seria selecionar, dentro da Expedição acabou se impondo. Os provisoriamente vencidos, como Odorico de Ruellan vasta região planáltica considerada, as áreas onde seriam realizadas Albuquerque, não deixaram de alertar para o risco de “uma tendência Acervo de Alain Ruellan inspeções. Decidiu-se, então, que a densidade demográfi ca das mes- de expansão para o sul” estar desvirtuando o sentido da Comissão, mas não deveria ser menor do que 5 hab./km2 (valor médio do Brasil “com [a] sumária exclusão da zona indicada por Cruls” (COMISSÃO..., à época) e a altitude, inferior a 700 metros, de modo a compensar 1948, v. 3, p. 37). Talvez por isso, após terem sido admitidas “cinco os efeitos climáticos da baixa latitude. Ainda assim seriam admitidas regiões selecionadas” – pela Subcomissão de Estudos Geográfi cos – algumas exceções − a começar pelo Retângulo Cruls − quanto ao Albuquerque tenha se somado a Coimbra Bueno em sua proposta de a aspecto da densidade populacional.8 considerar, além daquelas, “uma 6 região, que incluísse a Chapada do Veadeiros”. Ao deslocar o conjunto para o norte (a direção dos grandes A defi nição das áreas não foi tão rápida ou automática como “espaços vazios”), a manobra fazia sentido. O jogo, porém, estava em pode sugerir o parâmetro de seleção. O processo iniciava com o pare- aberto: “o Eng. Lucas Lopes declarou então que, neste caso, pleitearia cer submetido ao Plenário pela Subcomissão de Estudos Geográfi cos, a inclusão de uma sétima região correspondente à ponta do Triângulo após a conclusão dos trabalhos de gabinete. Se aprovadas as áreas Mineiro e à faixa territorial isolada entre o retângulo de Cruls e a Fábio de Macedo Soares Guimarães, ao centro, e membros de sua Expedição sugeridas, passava-se à próxima etapa, correspondente aos trabalhos divisa de Minas” (COMISSÃO..., 1948, v. 3, p. 35) Encerrado o cabo de Acervo de Fabio Celso de Macedo Soares Guimarães de campo. De qualquer forma, era necessário obter o sinal verde da guerra, as áreas que deveriam ser submetidas a trabalhos de campo eram oito. Acordou-se, também, que tal seleção não impediria a ad-

8 Igual tolerância seria estendida à Chapada dos Veadeiros, por apresentar qualidades compen- missão de outras áreas que se revelassem interessantes no decorrer satórias; de forma análoga, a área de Ituiutaba seria admitida, apesar de situar-se aquém da cota de altitude estipulada. das investigações. 58 Todo o conjunto estava situado no que se convencionou cha- capital. Após 65 dias de trabalho, Ruellan propôs 15 possíveis locais: mar, como medida de consenso, de sudeste do Planalto Central. As cinco em Minas Gerais, dois no limite Minas-Goiás e oito em Goiás, áreas específi cas, identifi cadas por letras, podem ser observadas na dos quais seis na “zona G” – o Retângulo Cruls. Tais sítios não foram relação abaixo e no mapa que lhes oferece localização. hierarquizados, mas tão-somente descritos em suas características in- A – Uberaba; dividuais, sem qualquer sentido comparativo. Para o geógrafo francês, B – Ituiutaba; uma classifi cação dos mesmos implicava se considerarem fatores que C – Uberlândia; não eram de sua competência específi ca: “O problema é, com efeito, D – Patos de Minas; essencialmente político e a técnica só poderá intervir para informar E – Ipameri; [as] autoridades responsáveis das vantagens e dos inconvenientes de F – Goiânia; cada zona e de cada sítio possível” (RUELLAN, 1947, p. 51). A impar- G – Quadrilátero Cruls; e cialidade, no entanto, convivia com a discreta preferência por uma H – Chapada dos Veadeiros. alternativa goiana, que não escaparia a certos registros.10

A Subcomissão de Estudos Geográfi cos apressou-se em iniciar A segunda expedição, transcorrida em paralelo à primeira, foi a nova etapa do trabalho, premida pela aproximação da época de chu- confi ada a Fabio de Macedo Soares Guimarães, o segundo nome mais vas na região do Planalto e sem esperar pela aprovação parlamentar importante do CNG, contando ainda com a consultoria científi ca de do crédito fi nanceiro que lhe cabia (os recursos foram adiantados pelo um experiente geógrafo alemão, Leo Waibel. Apesar de menos nu- CNG). Entre julho e setembro de 1947, duas expedições percorreram merosa (contava apenas com sete geógrafos, um botânico e um pe- cerca de 200 000 km2 do Triângulo Mineiro e do sul de Goiás, com ob- dólogo), seu objetivo era mais amplo que o da expedição anterior: “o jetivos diferentes. A primeira, chefi ada pelo geógrafo francês Francis conceito de posição da Nova Capital foi sempre o guia que presidiu a Ruellan, visava estudar detalhadamente as oito áreas pré-seleciona- escolha dos itinerários, procurando-se ao mesmo tempo estudar não das em termos de topografi a, relevo, clima, natureza do solo, abaste- só [...] as oito zonas [...] escolhidas pela Comissão como também os cimento de água e de alimentos, comunicações e disponibilidade de espaços entre elas compreendidos” (GUIMARÃES, 1947, p. 2).11 Afora materiais de construção. O objetivo desse levantamento − levado a isso, dessa vez não se evitava a comparação entre as zonas referidas. cabo por uma equipe numerosa (40 membros) e interdisciplinar − 9 Sudeste do Planalto Central e zonas era o de identifi car sítios específi cos favoráveis à instalação da nova 10 selecionadas pela Comissão de Estudos Além da interpretação do próprio relatório, vejamos o depoimento do fi lho, Alain Ruellan, para a Localização da Nova Capital do Brasil integrante da expedição aos 16 anos: “Francis Ruellan descreve as vantagens e desvantagens [...] 9 [de cada um dos sítios]. Recusa-se, no entanto, a classifi cá-los comparativamente. Mas podemos Acervo do IBGE O contingente era formado por alunos e ex-alunos de Ruellan da Universidade do Brasil, além sentir nitidamente que seu coração pende mais para o norte, para Goiás, para o papel pioneiro, de especialistas em geodésia, botânica e zoologia. Deixemos a caracterização mais completa desenvolvimentista e unifi cador da futura capital: para ele, Brasília deve contribuir fortemente para o chefe da expedição: “[os] grupos eram uniformemente compostos de três equipes: a pri- para a construção da Nação brasileira como um todo” (RUELLAN, [2004], p. 5). eredas..de meira, de geomorfologia, encarregada do levantamento topográfi co; a segunda, de climatologia V e biogeografi a, era também encarregada das medições hidrográfi cas; e a terceira, de geografi a 11 O relatório foi publicado integralmente, dois anos mais tarde, na Revista Brasileira de Geo- Brasília humana, encarregada de estudar os modos de vida, as questões econômicas e as possibilidades grafi a, v. 11 n. 4 em 1950, com o título “O Planalto Central e o problema da mudança da capital de colonização” (RUELLAN, [2004], p. 9). no Brasil”; no entanto, nesse capítulo, demos preferência a utilizar a versão original. 59 Ao contrário. Como resultado de 80 dias de trabalho, o relatório fi nal A pincelada fi nal cabia ao diretor da Subcomissão de Geo- Veredas..de apresentava uma classifi cação das melhores posições das mesmas, grafi a e seria dada com fi rmeza. Em seu relatório-síntese de seis Brasília com nítida vantagem para aquelas localizadas em Minas Gerais. O páginas, Christovam Leite de Castro assume a responsabilidade de Retângulo Cruls fi gurava em sétimo lugar, à frente apenas da Chapa- classifi car os 15 sítios assinalados por Ruellan, dividindo-os em três da dos Veadeiros. Cabe dizer que tal classifi cação se orientava por classes: 1) muito bons (os localizados nas zonas de Uberlândia e parâmetros da geografi a política e da econômica, segundo os quais Goiânia-Anápolis); 2) bons (os que se encontravam na zona de Pato a capital, por suas múltiplas funções, deveria localizar-se próxima às de Minas e no vale do rio São Marcos, fora das zonas selecionadas); regiões mais povoadas – integrada ao ecúmeno, e não na boca do e 3) regulares (os restantes). Quanto à segunda expedição, Leite de sertão. Havia toda uma argumentação para justifi car tal preferência, Castro não fez mais que endossar as três preferências apontadas, que discutiremos mais adiante, na análise das diferentes perspecti- tornando mais claro, porém, o descarte das demais alternativas: vas demonstradas por estatísticos, geógrafos e militares ao aborda- rem a questão. Trata-se de uma segunda seleção, pois a Comissão, em excelentes estudos de gabinete, escolheu oito regiões, redu- A problemática dos sítios foi considerada na expedição atra- zindo de muito a imensa área do planalto. vés de um complexo sistema de pontuação,12 aplicado em relação Território Federal do Planalto Central, segundo Em nova fase de estudos, que seria concentrada nas a resolução fi nal da Comissão Polli Coelho a cada uma das oito áreas selecionadas. Concluída a operação, os três regiões apenas, todos os aspectos do problema da locali- Acervo do IBGE índices alcançados foram integrados à classifi cação referente à po- zação seriam examinados em minúcia e a fundo, para chegar- se à solução ótima desejada por todos (CASTRO, 1947a, p. 6). sição, chegando-se a um resultado fi nal em que o Retângulo Cruls aparecia em quinto lugar. A área de Uberlândia foi apontada como a mais qualifi cada para abrigar a capital, seguida das zonas de Pato de Ao acompanharmos os geógrafos em suas incursões pelo Minas e Goiânia-Anápolis, nessa ordem. Na última página do relató- Planalto Central, quase nos perdemos do restante da Comissão. Re- rio, intitulada Sumário das Conclusões, o chefe da expedição sugeria tomemos, pois, esse contato. Após um longo recesso das sessões que as três zonas fossem objeto de estudos topográfi co e hidrológico para a realização dos trabalhos de campo – de meados de maio pormenorizados, a fi m de se completar o reconhecimento geográfi co ao início de novembro de 1947 – os debates foram retomados. A preliminar nelas efetuado. apresentação do relatório da Subcomissão de Estudos Geográfi cos, nas 12a e 13a reuniões plenárias, obedeceu a rotina protocolar sem que se tivesse registrado, nas atas, maiores incidentes. Na realidade, após um ano de trabalho, as posições quanto à localização da nova 12 Tal sistema levava em conta as seguintes variáveis, listadas aqui em ordem decrescente de importância: topografi a e clima (peso 20); abastecimento de água e proximidade de fl orestas capital já estavam bem consolidadas, sendo pouco afetadas pelas (15); energia hidráulica e paisagem atraente (10) e, por fi m, natureza do subsolo e matérias de construção (5). novidades aportadas pelos geógrafos. 60 O Retângulo Cruls, “tradicionalmente enraizado no espírito na- e Souza, por sua vez, alargava o conjunto, estendendo-o ao mesmo cional”, como já dissera Coimbra Bueno, iria revelar-se um baluarte inex- tempo para o sul e para o norte. Como medida de última hora, já em pugnável. E mais, numa versão geografi camente ampliada. O Presi- regime de votação, Leite de Castro, Cardoso e Lopes fi zeram anexar ao dente da Comissão amadurecera uma proposta na qual o quadrilátero volume II do relatório uma complementação de voto, ajustando seus original, de 14 400 km2, era expandido para norte e nordeste, de modo pontos de vista quanto à localização da capital na zona limítrofe entre a formar o Território Federal do Planalto, com cerca de 52 000 km2. O Minas e Goiás. objetivo alegado era o de se colocar a área – o novo Distrito Federal – sobre a bacia do rio Tocantins, dando-lhe acesso à foz do Amazo- A visualização das duas propostas num mesmo mapa, propor- nas; além disso, apostava-se que os recursos naturais ali existentes a cionada em alguns trabalhos, fornece elementos interessantes para a capacitariam a prover cerca de 80% de suas próprias necessidades. O compreensão das lógicas geopolítica e econômica que as sustenta- território proposto seria aumentado em suas dimensões. Baseando-se vam. O recurso permite ainda a comparação entre as áreas dos res- nos mesmos princípios e em estudos da Comissão, o engenheiro Luiz pectivos distritos federais e suas distintas posições em relação aos Augusto da Silva Vieira estendeu-o ainda mais para o norte, enquanto fatores levados em consideração nas referidas propostas: a centra- Coimbra Bueno desenhou-lhe limites naturais na parte acrescida, em lidade geométrica, o acesso à bacia do Tocantins e a proximidade do lugar das linhas geodésicas originais. Chegou-se, assim, a uma área de ecúmeno. Cabe informar que a alternativa de localização da capital no 77 953 km2, maior que muitos estados brasileiros.13 Estado de São Paulo, sugerida em alguns esquemas, não era cogitada No outro extremo, os membros da Comissão contrários a uma pela Comissão. interiorização exagerada da capital, a ponto de afastá-la dos centros mais desenvolvidos, também procuravam afi nar suas posições. En- Defi nidas as posições em seus últimos contornos e já avançado

tre estes, havia certo consenso quanto à sua instalação num trecho o ano de 1948, restava formalizar a decisão. Na 20a reunião ordinária, Distrito Federal na divisa entre Minas Gerais e Goiás, proposto pela minoria vencida na Comissão da divisa entre Minas e Goiás, abrangendo o Triângulo, bem como realizada em 21 de julho, foi feita a primeira votação, tendo sido a Acervo do IBGE quanto à criação de um Distrito Federal de dimensões relativamente reunião do dia seguinte dedicada à confi rmação dos votos. Por sete a reduzidas (cerca de 5 000 km2).14 Não havia, no entanto, coincidência favor e cinco contra, placar apertado, a Comissão aprovou a resolução precisa quanto à sua localização e limites. Alguns, como Chistovam fi nal que fora motivo de tantas discussões. Na proposta vencedora, Leite de Castro e Antonio Carlos Cardoso, apontavam um trecho do mantinha-se o território delimitado por Cruls, em 1892, e acrescen- vale do Paranaíba a noroeste de Uberlândia; Lucas Lopes indicava a tava-se ao mesmo cerca de 52 000 km2 – situados ao norte, na boca mesma região, só que mais próxima a Tupaciguara; Geraldo de Paula do sertão. Em 12 de agosto de 1948, o relatório com a resolução foi

eredas..de 13 2 V Apenas para efeito comparativo, o Rio de Janeiro possui 43 600 km e o Espírito Santo, enviado à Presidência da República, de onde seria encaminhado ao Brasília 46 000 km2. 14 O Distrito Federal organizado em 1960, onde se localiza Brasília, possui 5 800 km2. Congresso Nacional, em 21 de agosto do mesmo ano. 61 Convergências e divergências Questionamentos ao Retângulo, acumulados com o avanço Veredas..de em torno da nova capital dos trabalhos da Comissão, eram contestados pelo general de dife- Brasília rentes modos. Os críticos, em geral, consideravam a região um “de- Na segunda parte deste capítulo, voltaremos nossa atenção serto demográfi co”, isolado e estéril. A isto, numa estratégia que po- para os argumentos sobre a interiorização da capital formulados por demos chamar de defensiva, Polli Coelho respondia com argumentos personagens e instituições envolvidos, direta ou indiretamente, nos contrários, como o laudo da Subcomissão de Estudos Agronômicos trabalhos da Comissão. Nossa intenção é apreciar esses atores de for- favorável à área ou comprovações de sua excelência climática. Por ma mais individualizada, de modo a perceber os traços característi- vezes, o contra-ataque precisava ser mais contundente, ocasiões es- cos – e fundamentais – de sua atuação. Iniciamos pelo representante dos militares, general Polli Coelho, fi gura dominante na Comissão pela tas em que o general habilmente explorava contradições presentes condição de Presidente e por personalidade; seguimos com os esta- nos relatórios de seus oponentes. Assim, valendo-se das conclusões tísticos, na fi gura laboriosa do secretário-geral do CNE, Teixeira de de Ruellan – que, recordemos, não eram desfavoráveis ao Retângulo Freitas; passamos pelos geógrafos, representados pela expertise de Cruls – Polli Coelho as utilizava para atestar a viabilidade energética Christovam Leite de Castro, Fabio Guimarães e Leo Waibel; por fi m, do mítico quadrilátero. encaminhamos o encerramento do capítulo com a sentença do depu- Num contexto em que outras opções eram aventadas, respal- tado Eunápio Queirós, relator da comissão parlamentar sobre a mu- Proposta de localização e áreas dadas em sucessivos trabalhos de gabinete e de campo, era conve- do novo Distrito Federal, dança da capital nomeada pelo Congresso Nacional. segundo esquema de niente uma diversifi cação dos argumentos. Nesse sentido, o gene- Jerônimo Coimbra Bueno. ral mostraria-se arrojado e criativo. A fi m de combater a imagem Vidal (2009, p. 164) da área de sua preferência como zona desfavorecida − que exigiria O general: tradição histórica e razão geopolítica pesados investimentos da União caso viesse a abrigar o Distrito Fe- deral − Polli Coelho, paradoxalmente, propôs a ampliação de seus li- As ideias do general Polli Coelho mostraram-se onipresentes mites territoriais rumo ao Norte do País. Tal solução, que resultaria na Comissão. Era ele quem apresentava os relatórios técnicos e de- no Território Federal do Planalto fi gurado na resolução fi nal, busca- mais documentos, escrevia a justifi cação da resolução fi nal tomada e, va seu fundamento em riquezas naturais supostamente existentes como se não bastassem esses deveres de ofício, foi de sua autoria a naquela localidade, capazes de prover em grande medida o sustento mais longa justifi cação pessoal de voto – 69 páginas, das 140 do vo- da futura capital,15 e em razões geopolíticas que logo discutiremos. lume correspondente. Já sabemos que tal obsessão pela palavra tinha 15 “Pela [...] maior extensão da nova Capital verifi cou-se agora de toda vantagem a provisão do uma fi nalidade bastante clara: defender a “solução histórica” propos- seu abastecimento em mor [sic] parte por meios locais ou regionais [...]. Para uma população ofi cial que, à data da mudança da Capital, deverá ser de 200/250 000 habitantes e à qual se ta por Cruls de outras alternativas que circulavam em certos âmbitos, deverá somar mais uns 50 000 habitantes exigidos pelas atividades locais privadas e públicas, certifi ca-se da viabilidade de abastecimento, pela própria região, de 70/80%, ao menos, das mesmo antes de a Comissão ter sido formada. necessidades dos consumidores urbanos” (COELHO, 1948a, p. 17, grifo nosso). 62 Seria um erro, no entanto, concluir que a ideia de “deserto” as- manchas privilegiadas e singulares” existentes no País. Prefere con- sociada ao Planalto Central estimulava uma atitude apenas defensiva siderá-lo uma “região representativa das condições gerais do meio da parte de Polli Coelho, no sentido de negá-la. Este era somente um brasileiro”, a qual, ao viabilizar o sonho da transferência da capital, lado da moeda. Em outros momentos, o general abordava o tema em implicaria a “inauguração de uma grande escola, cujas experiências e sua positividade, como fi ca patente no trecho a seguir: lições irão valer para todo o Brasil” (COELHO, 1948a, p. 18). O planalto

O quase nulo desenvolvimento econômico da região goiano, diria o general em outra ocasião, não era “nem estéril, nem e a baixa densidade de sua atual população, longe de serem fértil”, era apenas “uma região que espera o homem se revelar total- empecilhos ao empreendimento, só tornarão essa solução de mais fácil execução e de maiores repercussões imediatas. Le- mente” (COELHO, 1948b, p. 16). Nesse sentido, havia desafi os consi- vando os poderosos recursos de execução da nova Capital para deráveis: uma região que se mostra, ainda hoje, de difícil exploração às General Polli Coelho em visita a iniciativas privadas, dispor-se-á, para o livre desenvolvimento A necessidade de trabalhos enormes para exploração, uma fábrica de carros de bois, do plano geral, de campo largo e desembaraçado, sem [maior] em 1947, em Planaltina, GO recuperação e conservação dos recursos naturais do Territó- ônus de desapropriação de benfeitorias existentes [...] e sem os Acervo do IBGE rio, a obrigação de atacar múltiplos serviços para a defesa inconvenientes, que existem em outros lugares, de fatal des- truição ou desequilíbrio das atividades econômicas da região sanitária e a valorização humana dos habitantes da região, pela ação dos trabalhos de implantação da nova Capital (COE- serão pesados encargos que devem ser assumidos sem hesi- LHO, 1948a, p. 16, grifo nosso). tação, provadas que hoje estão a sua possibilidade técnica e até mesmo a sua rentabilidade econômica e, com sua plena realização, patentear-se-á que se poderá criar nas zonas tro- Em termos concretos, o planalto goiano, com sua vastidão de picais uma civilização superior, com todas as condições de sa- lubridade, de conforto e de produção (COELHO, 1948a, p. 18). terras devolutas de preço relativamente baixo, mostrava-se mais atra- ente que outras áreas nas quais se cogitava a instalação da nova capital. Quando evocada, como no trecho citado, a oportunidade de se ter pela Quais seriam, então, as qualidades dessa região supostamente frente “campo largo e desembaraçado”, estava implícita a ideia de que a predestinada, se é que existiam? Para Polli Coelho, certamente exis- história futura do País poderia ser escrita a partir de um novo patamar, tiam, mas não podiam ser percebidas no enquadramento tradicional sem os entraves do passado, aos quais se relacionava a presença nociva no qual eram geralmente apreciadas. No encaminhamento da respos- de interesses particulares e de elites parasitárias. Assim, o “terreno nu” ta, o general nos oferece lições elementares de geopolítica: “O Brasil sobre o qual o general sonhava erguer a nova capital não possuía so- é [...] um Estado que possui uma imensa base geográfi ca, estando co- mente uma conotação física ou material. locado em posição especial dentro do continente sul-americano, do qual ocupa grande porção” (COELHO, 1948a, p. 19). Tal posição sui Em momento algum Polli Coelho identifi ca o Retângulo Cruls generis não teria escapado à visão de “homens notáveis” do Século como área dotada de qualidades naturais excepcionais,16 “uma dessas XIX, como Varnhagen e Cruls, e deveria novamente guiar o pensamen- eredas..de Hipótese geopolítica da Terra Central (Heartland) V 16 A não ser quanto ao clima que, devido às “condições de latitude, altitude e arejação [sic] do to dos brasileiros chamados a pensar a mudança da capital, naquele segundo Halford Mackinder. Brasília Planalto Central [...] [seria] mais benigno que a média dos observados no País” (COELHO, 1948a, Chaliand e Rageau (1983, p. 21) p. 18). presente momento. 63 Dita assim de forma isolada, a primeira lição não parece muito Analistas sentiam-se tentados a aplicar a teoria a outros con- Veredas..de esclarecedora. Será preciso ampliar a escala geográfi ca para se com- textos continental e nacional. Extensas regiões interiores, como as ricas Brasília preender melhor a situação e, daí, voltar ao tema da capital. O general pradarias da América do Norte ou, na América do Sul, o vasto hinter- recorria então ao geógrafo britânico Halford Mackinder (1861-1947), land situado entre a Amazônia ocidental no Brasil e as planícies do Pan- autor de uma das mais infl uentes teorias geopolíticas acerca do poder tanal e do Chaco (incluindo Argentina, Bolívia e Paraguai), eram alvos mundial. Segundo Mackinder, o mundo era composto por uma única atraentes para especulações. Em tal contexto estimulante, Polli Coelho grande ilha, formada por um núcleo continental denominado “Terra não se furtaria a esboçar sua própria versão:

Central” (Heartland), localizado no coração da Eurásia e cercado, por Na América do Sul, o Brasil possui uma grande área sua vez, por terras peninsulares anexas (seu “anel periférico interior”) que se pode chamar também de Terra Central, ou Heartland. Essa Terra Central, que pertence integralmente ao Brasil, não e, mais remotamente, por um “anel exterior ou insular”. está entretanto ocupada pelos brasileiros senão em propor- ções insignifi cantes. Vazia de população, nossa Terra Central A partir dessa confi guração desigual, Mackinder extraiu impor- nada signifi ca como ecúmeno no conjunto do continente. Suas riquezas são apenas potenciais. A grandiosidade da sua tantes conclusões geopolíticas17 que iriam seduzir acadêmicos, milita- área está em violento contraste com a mediocridade de sua res e estrategistas. A ideia-chave era a de que a Terra Central, por suas economia. Entretanto, essa Terra Central será perfeitamente habitável e aproveitável, se não faltar ao Brasil a autodeter- características intrínsecas – grande extensão, abundância de recursos, minação indispensável a qualquer nação que não deseja ser mobilidade interna e proteção natural contra invasões – possuía enor- relegada para planos secundários da vida internacional, com risco para sua própria existência (COELHO, 1948a, p. 21, grifo me importância geopolítica, constituindo a base do poder mundial. nosso). Formulada em plena era imperialista e num contexto de antagonismo entre a Grã-Bretanha (potência marítima) e a Alemanha e a Rússia A preocupação aludia, em parte, a circunstâncias recentes de (potências centrais), a teoria encontrava certo respaldo empírico nas guerra que haviam reciclado antigas restrições à “capital marítima” duas guerras mundiais e naquilo que era tido, na conjuntura da Guer- (VARNHAGEN, 1978), mas também ultrapassava a perspectiva tradi- ra Fria, como o “novo imperialismo russo”. A emergência da União cional. A novidade estava no reconhecimento de que, naquele mo- Soviética como potência mundial e, antes disso, sua resistência frente mento histórico, o poder de uma nação calcava-se sobretudo em seu O “Planalto Central” do general Polli Coelho, à invasão alemã, eram vistas como demonstração cabal da tese de poderio econômico, o qual dependia, “em última análise, dos recursos situado frente às bacias hidrográfi cas Mackinder, uma vez que o país ocupava justamente a Terra Central. brasileiras e seus divisores. naturais que se retira da terra” (COELHO, 1948a, p. 22). Daí que a resis- Coelho (1948, p. 117) tência militar e econômica do Brasil, numa eventual invasão inimiga, pudesse ser melhor organizada a partir da Terra Central. Assim, do ponto de vista da geopolítica e da segurança do Estado Brasileiro, não 17 A teoria é apresentada no artigo “The geographical pivot of History”, publicado na revista da Royal Geographical Society (Geographical Journal v. XXIII, n. 4, p. 421-437, 2004); posterior- haveria dúvida quanto à tarefa a ser feita: ocupar, o quanto antes, a mente, foi republicado no mesmo periódico em razão de seu centenário (v. 170, n. 4, p. 298-321, 2004). Terra Central do País. Tratava-se, segundo o general, de um “lebens- 64 raum 18 pacífi co”, alcançável sem que fosse necessário tomá-lo do de Estudos Geográfi cos − ou as ponderações de que a nova capital CNG com seus geógrafos que estava na linha de frente, e não o CNE. vizinho: “Já é nosso. Resta só marchar sobre ele, com as armas do não deveria se afastar da fronteira econômica do País, feitas pelos Mesmo assim, este não deixaria de atuar nos bastidores, o que traz progresso nas mãos e ocupá-lo” (COELHO, 1948a, p. 22). engenheiros Lucas Lopes e Luiz de Anhaia Melo. No caso do Brasil, questões interessantes para discussão. por sua posição sui generis no continente sul-americano, o critério Ficam patentes, nesse quadro, os imperativos da localização da A impressionante trajetória de Teixeira de Freitas na administra- geopolítico deveria prevalecer sobre qualquer outro, no que dizia res- nova capital. Sua interiorização obedecia a um diagnóstico estritamente ção pública20 nos estimula a examinar a emergência de quadros técni- peito à mudança da capital. Aos partidários de áreas ecologicamente geopolítico, pois, como “posto de comando para toda a Nação, deve cos investidos de autoridade político-administrativa pelo Estado brasi- mais favoráveis, localizadas em Minas ou em outros trechos de Goiás, fi car nessa mesma região [a Terra Central], porque então o comando leiro, na década de 1930, então em franco processo de fortalecimento respondia: será mais facilmente exercido, em todas as direções e com equivalente e modernização. Para tanto, recorremos a estudos sobre a constituição É muito frágil o argumento de que só é possível apro- alcance em profundidade” (COELHO, 1948a, p. 23). A fi m de se maximi- veitar bem as regiões excepcionalmente férteis, que aliás exis- de grupos profi ssionais com papel relevante na reorganização da bu- zar o objetivo centralizador almejado, era de vital importância – ainda tem no planalto central. Contra esse argumento temos, no rocracia estatal, como os de Helena Bonemy (1993) e Angela de Castro Brasil, os exemplos de Belo Horizonte e de Goiânia, cidades mais para um engenheiro-geógrafo acostumado à precisão geométri- que foram edifi cadas sobre solos considerados impróprios e Gomes (1994). Enfocando os anos de1920, quando já se esboçava a que hoje desempenham perfeitamente as funções de Capitais, ca – defi nir o ponto ótimo a partir do qual a integração nacional seria sendo até apontadas como grandes atos geopolíticos, que na montagem de novos quadros administrativos no País, as autoras si- coordenada. Sobre isso, o general não tinha dúvidas: tal ponto estava verdade são (COELHO, 1948b, p. 14). tuam com precisão a crise do chamado “bacharelismo”. O bacharel, localizado na região mais elevada do “verdadeiro planalto central do homem público originário do Império, de formação jurídica e hábi- E concluía: Brasil”, “para os efeitos da mudança da capital, aquela parte do ‘espigão Essa [a razão geopolítica] é a única questão que tem tos intelectuais ligados à cultura humanística, cedia lugar a um novo mestre’ ou divortium aquarium das bacias amazônica e platina, a qual, importância e, diante dela, somente deveria ser abandonada tipo de elite dirigente, encarnada exemplarmente na fi gura do técnico. a região do planalto goiano se ali existissem circunstâncias situada em território goiano, vem morrer nas encostas ocidentais do que tornassem impossíveis, ou pelo menos difícil, a existên- Este, devido à sua formação especializada e seu suposto isolamento vale do Rio São Francisco” (COELHO, 1950, p. 123). Tal como dissera cia da população da nova capital e de seus arredores (COE- da política, estaria mais capacitado a enfrentar resolver os problemas LHO, 1948b, p. 15). Varnhagen,19 tal como demarcara Cruls. A tradição estava mantida e, ao nacionais (GOMES, 1994, p.1-3). mesmo tempo, atualizada, segundo os modernos parâmetros do pen- samento geopolítico. Estatísticos: elites técnicas e “organização nacional” 20 Para um breve resumo desta trajetória, oferecemos a ótima síntese elaborada por Alexandre Camargo: “Mário Augusto Teixeira de Freitas nasceu em São Francisco do Conde, Bahia, em 31 de Diante dessas questões imperiosas, as demais fi cavam total- março de 1890. Ingressou, em 1908, na Diretoria Geral de Estatística, subordinada ao Ministério da Agricultura, Viação e Obras Públicas, onde promoveu numerosas pesquisas estatísticas, até mente obscurecidas. A Polli Coelho pouco importava a excelência dos então inéditas no País. Graduou-se com distinção no Curso de Direito, em 1911, pela Faculdade Ao considerarmos a atuação dos estatísticos nas discussões de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Logo se tornaria o principal nome na estatística sítios de outras regiões − apontadas, sobretudo, pela Subcomissão brasileira [...]. Primeiro como delegado geral do censo de 1920 em Minas, depois como chefe do sobre a mudança da capital, devemos recordar, mais uma vez, que departamento de estatística daquele estado, Teixeira de Freitas teve a oportunidade de aplicar sua efi ciente fórmula de cooperação administrativa entre as esferas de governo e de lançar im- 18 eles não participaram diretamente da comissão criada especialmente portantes trabalhos, entre eles o Anuário Estatístico do estado, o Anuário Demográfi co e o Atlas Espaço vital, segundo a concepção clássica de Friedrich Ratzel (1844-1904), que caíra, no Corográfi co Municipal de Minas Gerais. Após a revolução de 1930, Freitas emergia nacionalmen- entanto, no domínio discursivo comum na primeira metade do Século XX. para aquele fi m, embora a fi gura mais destacada da categoria, Mário te como o grande organizador da atividade estatística, o que lhe credenciou a chefi ar os serviços 19 “[...] a verdadeira paragem para ela [a nova capital proposta] é a [...] natureza quem aponta, e de estatística do ministério da Educação, e a moldar e dirigir o Instituto Nacional de Estatística de modo mui terminante... É a em que se encontram as cabeceiras dos afl uentes Tocantins e Pa- Augusto Teixeira de Freitas, estudasse o tema desde seus primeiros (logo IBGE), criado em 1934 e instalado em 1936. [...] Criado o IBGE, despontaria mundialmente eredas..de raná, dos dois grandes rios que abraçam o Império; isto é., o Amazonas e o Prata, com as do São como uma excelência brasileira nas pesquisas estatísticas, tornando-se vice-presidente do Inter- V Francisco [...]. É nessa paragem bastante central e elevada, donde partem tantas veias e artérias tempos de serviço público, prestado no Rio de Janeiro e no Estado de national Statistical Institute, sócio-fundador e primeiro presidente do Inter-American Statistical Brasília que vão circular por todo o corpo do Estado, que imaginamos estar seu verdadeiro coração; e aí Institute, além de idealizar e dirigir a Sociedade Brasileira de Estatística, de 1941 até sua morte, que julgamos que deve fi xar-se a sede do governo” (VARNHAGEN, 1978, p. 12-13). Minas Gerais. Na representação do IBGE na Comissão, porém, era o em 1956” (CAMARGO, [20--]). . 65 Segundo Angela Gomes, caberia ao pensamento autoritário do nos campos político e econômico. Por apresentar fortes caracterís- denominava “organismo nacional”. “É preciso também cuidar da ar- Veredas..de início do século, especialmente a Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, a ticas do regime político, composição de forças e organização so- ticulação dos 30 membros do corpo político da nacionalidade, cen- Brasília melhor sistematização da crítica às antigas elites dirigentes. De acordo cial anteriores a 1930, tal quadro era visto pelo organizador das tralizado o sistema por uma metrópole no interior do País e bem à com esse pensamento, a erudição dos bacharéis consistia num fator de estatísticas brasileiras como inadequado e pernicioso, favorecendo altura, sob todos os pontos de vista, da sua alta fi nalidade” (FREITAS, atraso econômico do País, cuja modernização demandava outro tipo tendências local e regional supostamente ameaçadoras da “unidade 1936, p. 19). O plano contemplava, portanto, a mudança da capital, de liderança, dotada de mentalidade racional-cientifi cista. “O Brasil nacional”. Tal diagnóstico vale dizer, era compartilhado por pensa- mas não diretamente para o Retângulo Cruls. Embora reconhecesse precisava não de ‘profi ssionais da política’, mas de profi ssionais com dores como o engenheiro Everardo Backheuser e o militar Segadas a transferência para esta área como solução ideal, Teixeira de Freitas formação técnica específi ca ao desempenho das novas funções do Vianna, entre outros. preconizava a instalação temporária do poder central em uma cidade Estado, cada vez mais intervencionista e autoritário” (GOMES, 1994, já existente, dotada de feição moderna, infraestrutura e edifi cação A primeira manifestação pública de Teixeira de Freitas sobre p. 4-5). No momento em questão, a racionalização do aparelho de (de modo a acelerar o processo e reduzir seus custos). Essa nova ca- o tema que se tem registro é uma conferência proferida, em 28 de Estado era uma tendência mundial, à qual não estavam necessaria- pital política ainda deveria estar ligada, por meio de efi cientes vias outubro de 1932, no Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro. Sua mente associados o novo modelo de administração pública e o auto- de comunicação, ao Rio de Janeiro e outros centros dinâmicos do ocorrência a menos de um mês do fi m dos combates da Revolução ritarismo político. No Brasil, porém, as duas perspectivas convergiam. Brasil. Por atender satisfatoriamente os aspectos considerados e estar Constitucionalista nos oferece uma mostra do ambiente político com situada no Planalto Central, Belo Horizonte era apontada como uma Ao mesmo tempo, importantes mudanças no modus operandi que foi recebida, por parte dos assistentes. Seu próprio título – O rea- possível solução provisória.21 da administração pública eram efetivadas. Nesse sentido, o aspecto justamento territorial do Brasil – já deixa transparecer o conteúdo: a mais evidente a destacar é a introdução de critérios meritocráticos redivisão do espaço político brasileiro, modifi cando-se drasticamente A maneira quase absoluta com que as ideias de Teixeira de Freitas se impuseram no CNE deixa patente a direção centralizado- na prática administrativa. Como aponta Helena Bonemy (1993, p. 25), a proporção nele ocupada pelas Unidades Federadas, de modo a se ra do secretário-geral, a ponto de se confundir sua própria fi gura a antiga tradição assentada em “formas personalistas, hierárquicas e obter maior coesão, equilíbrio e unidade (FREITAS, 1936). A proposta com a do órgão colegiado. Prova cabal desta ordem de coisas é o excludentes” passava a ser questionada pari passu ao reconhecimen- seria retomada em dezembro de 1937, em estudo publicado alguns estudo Problemas de base do Brasil, publicado sem a assinatura do to crescente da competência técnica, revestida de uma aura científi ca. anos depois pela Revista Brasileira de Geografi a (FREITAS, 1941). Não secretário, mas imbuído, a cada parágrafo, de sua marca inconfun- Os que falavam em nome da ciência apossavam-se de um poder dis- seria casual que a sistematização das ideias sobre o tema tenha ocor- dível. O referido texto foi submetido ao Governo Federal, em 1941, tinto da autoridade política tradicional – o poder da própria ciência rido entre o período do Governo Provisório e a instalação do Estado como contribuição ao estudo dos “problemas fundamentais da or- – que lhes conferia, por sua vez, “o argumento central da legitimidade Novo, e já no IBGE. Em tal situação – que combinava fortalecimento ganização nacional, com base em documentação estatística” (IBGE, tanto da crítica aos padrões convencionais, quanto da eleição de no- da autoridade política e formação de um efi ciente órgão técnico-ad- 1955, p. 3). Sua estrutura retoma de forma sintética e contundente vos procedimentos” (BONEMY, 1993, p. 27). ministrativo – a pesquisa científi ca tornava-se instrumento potencial

de ações governamentais. 21 Em geral, a alternativa de transferir a capital para o Planalto Central “em etapas” tem sido A partir desse contexto, podemos compreender a atuação de entendida como uma preocupação basicamente fi nanceira, tendo em vista a crise econômica mundial iniciada em 1929. Tal argumento, contudo, só atende parcialmente à questão. Ao me- Teixeira de Freitas. Sua grande obsessão, no exercício do elevado cargo Proposta sem parcimônia, a redivisão territorial do Brasil de nos para Teixeira de Freitas, o processo todo envolvia algumas décadas, pois deveria ser acompa- nhado tanto de intervenções materiais concretas (ampliação da rede viária e da infraestrutura, que lhe cabia no CNE/IBGE, era a racionalização do quadro territorial nada valeria se não viesse acompanhada de outras iniciativas centra- por exemplo), quanto de medidas situadas no plano jurídico e administrativo. Como estratégia territorial, a transferência da capital só alcançaria seu objetivo se fosse “parte integrante do brasileiro, a fi m de compatibilizá-lo com os projetos governamentais lizadoras, capazes de fortalecer a base daquilo que Teixeira de Freitas esforço de reenquadramento político do Brasil” (FREITAS, 1932, p. 20). 66 as linhas gerais da conferência de 1932, acrescentando-lhe outros temas. Sem a necessidade de voltar a tais conteúdos, nos limitamos a registrar a existência de um capítulo sobre a interiorização da me- trópole federal, estrategicamente situado após uma discussão sobre equilíbrio e equidade na divisão territorial brasileira.

Se preocupações e conteúdos pouco mudavam, o mesmo não se pode dizer das condições em que Teixeira de Freitas realizava suas pesquisas. Anteriormente um investigador isolado, o secretário-geral do CNE trabalhava a partir de então em um órgão público concentrador das informações estatística e geográfi ca, contando com uma equipe de colaboradores e nutrindo-se, certamente, de contatos políticos22 que lhe valiam acesso a fontes privilegiadas e outras facilidades. Teixeira de Freitas sempre teve um projeto, mas somente a partir da implementa- ção da tecnoestrutura necessária estaria em condições de realizá-lo. Para tanto, contava em muito a quantidade e variedade de dados dos quais começaria a dispor, graças ao poder de alcance dos órgãos que dirigia. Sobre isso, nada se pode acrescentar ao comentário de Roberto Schmidt de Almeida (2000, p. 122, grifo do autor):

Concebido como uma super agência de informações, o Instituto Nacional de Estatística [logo IBGE] abrangeria a totalidade do território nacional em quase todos os aspectos, constituindo um dos principais fatores de coesão do governo Vargas. Sua estrutura de funcionamento contemplava todas as instâncias de governo e caracterizava o que podemos de- fi nir como Agência Capilarizada do Poder Central, isto é, um órgão de informações diretamente subordinado ao Gabinete da Presidência da República, mas com alcance até a instância municipal.

Após conhecermos as ideias e os meios de trabalho de Teixei- Anteprojeto do Instituto Nacional de Estatística, ra de Freitas, cabe verifi car sua infl uência nos rumos da Comissão. futuro IBGE, elaborado por eredas..de V Teixeira de Freitas, Brasília 22 Com base em Roberto Schmidt de Almeida (2000, p. 123), podemos indicar alguns desses em 1933 contatos: Juarez Távora, Francisco Campos e Gustavo Capanema. Acervo do IBGE 67 Entre 1947 e 1951, o secretário-geral manteve um diálogo cordial A refl exão sobre os números lhe indicava uma tendência à con- Veredas..de com o general Polli Coelho, caracterizado por iniciativas de apoio centração urbana, em “metrópoles viciosamente dilatadas [na quais] Brasília Teixeira de Freitas mútuo e afi nidade de posições.23 Há dois registros principais dessa avultam e se agravam os problemas do trabalho, da assistência, da Acervo da Memória Institucional do IBGE interação entre os personagens. O primeiro é uma longa carta de habitação, do abastecimento e da ordem pública”; no mesmo compas- Teixeira de Freitas ao Presidente da Comissão, por ele anexada a um so, crescia o “abandono do Brasil interior”, transformado em “espaços documento complementar aos relatórios técnicos (FREITAS, 1948). O vazios” ou “imensos latifúndios coloniais” (IBGE, 1950, p. 109). Aos segundo é uma resolução da Assembleia Geral do CNE, aprovada em dirigentes da Nação cabia conter, ou pelo menos atenuar tal movi- 21 de julho de 1948, mesmo dia da votação preliminar da resolução mento migratório, considerado avesso à vocação histórica do País por fi nal sobre a localização da capital, que envolvia os membros da Teixeira de Freitas. Os esforços no sentido de se reverter este quadro Comissão (IBGE, 1950). Discutiremos a posição do secretário-geral a podem ser vistos como claro indicador do princípio de organização respeito do tema a partir desses dois textos, buscando destacar seus preconizado sob a forma de política territorial: traços mais representativos. A verdade é que não é possível “esperar” que os núcle- Um aspecto que chama imediata atenção nesses textos é o os sociais interiores vão aparecendo por si mesmos, que suas atividades produtivas se organizem [...]. Como poderemos fi - uso que neles se faz de uma ideia cara ao pensamento social brasi- car na confi ante expectativa de que a população se desloque leiro da década de 1930, tomada de um estudo anterior de Alberto espontaneamente pelo Brasil adentro, e lá conserve a saú- de e adquira cultura com os seus próprios recursos, abra as Torres. Trata-se da ideia de organização nacional, cunhada em obra vias de comunicação, desbrave uma natureza ingrata, e crie homônima de 1914 e aplicada por Teixeira de Freitas em sua aná- riquezas compensadoras, tentando, por si mesma, a aventura dessa formidável empresa que seria a “mise en valeur” do solo lise sobre o quadro territorial do Brasil. O que estava em jogo, no pátrio? (FREITAS, 1948, p. 38-39). caso, era evitar que as forças social e econômica do País adquiris- sem uma orientação espontaneísta, fortalecendo condicionamentos Nada iria ocorrer espontaneamente. Ficava patente a responsa- regionais fragmentadores do corpo político da Nação. Partidário da bilidade do poder público em promover ações territoriais organizadas, vertente centralizadora do regime vigente e portador da mentalida- dentre as quais fi gurava a transferência da capital. Com as forças eco- de cientifi cista que lhe conferia efi ciência administrativa, o mentor nômicas e correntes demográfi cas atraídas para as metrópoles litorâne- do CNE detectava em suas pesquisas estatísticas a ausência de orga- as, tornava-se indispensável a criação de um novo centro de gravidade nização da sociedade brasileira. no interior do País. Tal intenção traduzia-se na resolução da Assembleia Geral do CNE, através da seguinte formulação:

Folha de rosto da publicação Problemas de base [...] constitui providência de alcance nacional capaz de do Brasil. Esta obra teve cinco edições, todas com 23 a chancela do IBGE, sem autoria. Após a morte de Tal cordialidade seria rompida no fi nal de 1951, quando Polli Coelho, nomeado Presidente do efetivar tal conversão de tendências a mudança da Capital da Teixeira de Freitas, ele foi ofi cialmente IBGE, criticaria severamente o estado das estatísticas brasileiras. O episódio inaugura a chamada República para um ponto de onde lhe fi quem assegurados reconhecido como autor desta obra “crise do IBGE”, que se estenderia pelo ano seguinte e culminaria na destituição de Polli Coelho do cargo (SENRA, 2008). O mero registro do episódio, sem a preocupação de desenvolvê-lo, tanto no presente como no futuro, o optimum de atuação Acervo do IBGE deve-se à sua exterioridade em relação ao conteúdo deste capítulo. coordenadora sobre toda a Nação e o aproveitamento das 68 forças propulsoras e civilizadoras, decorrentes de sua missão Geógrafos: a centralidade em outra perspectiva política, em benefício direto de ampla região central e em progressiva e equilibrada infl uência sobre as demais áreas do país (IBGE, 1950, p. 110, grifo do autor). A análise dos diferentes enfoques sobre a localização da nova capital não fi caria completa sem um comentário sobre os geógra- O colegiado dos estatísticos, sob a sombra permanente de seu fos, tal como propomos entendê-los aqui: quadros técnicos do CNG secretário-geral, concluía que a capital interior construiria no espaço e especialistas da Subcomissão de Estudos Geográfi cos. Com vistas nacional uma situação de maior equilíbrio ou mesmo de uma “dúplice a uma caracterização satisfatória, seria conveniente apontar alguns polaridade”, com efeitos imediatos sobre os deslocamentos das mas- traços distintivos deste grupo em relação aos que acabamos de tra- sas rurais. Revertendo parcialmente o fl uxo migratório, a iniciativa tar na segunda parte do capítulo. Os geógrafos em questão formam igualmente atuaria em benefício de uma maior integração nacional, claramente uma comunidade híbrida, se levamos em conta a compo- outro objetivo da mudança da capital. sição dos quadros do CNG desde sua criação. Além de engenheiros – a Orlando Valverde (esq.) na expedição O documento apresenta grande afi nidade de pensamento en- começar pelo núcleo diretor, composto por Leite de Castro e Fábio comandada por Fabio Guimarães tre os estatísticos e a Presidência da Comissão, sobretudo quanto à Acervo de Fabio Celso de Macedo Guimarães – o órgão contratara profi ssionais de diversas procedên- Soares Guimarães necessidade de transferência imediata da capital e suas razões (em- cias, unifi cando-os em torno de uma nova e atraente área de estudo, bora fossem justifi cadas pelos primeiros através de argumentos mais embora pouco defi nida. Um grande esforço foi realizado no intuito de Geógrafos do IBGE em tecnocráticos). Mas persistia uma diferença. A “transferência imedia- campo (da esquerda se desenvolver padrões profi ssionais baseados na ciência geográfi ca para a direita): Lysia ta” clamada pela resolução não seria para o terreno nu do Planalto Calvacanti, Nilo praticada na Europa e na América do Norte. Exemplo disto é a con- Bernardes, Carlos Central, e sim para uma cidade interior situada a meio caminho entre Augusto, Dora Romariz tratação de consultores como Ruellan e Waibel, bem como o envio de este último e o Rio de Janeiro aquele (Art. 7o, III). Dessa vez, no entan- Acervo de Alain geógrafos brasileiros para especialização nos Estados Unidos, entre Ruellan to, não se fazia menção a Belo Horizonte. 1944 e 1947. O principal resultado deste aprendizado foi a defi nição Três anos depois, a Assembléia Geral do CNE aprovaria outra de um estilo de pesquisa fundado na observação de campo, na des- resolução com teor semelhante (Resolução no 492, de 12 de setem- crição e na síntese. Graças ao apostolado estrangeiro, criava-se uma bro de 1951), na qual se retomava, ainda, a complementaridade su- identidade mínima para o coletivo. gerida por Teixeira de Freitas entre a mudança da capital e a revisão Tais características estão evidentemente presentes nos estu- do quadro político-territorial do País. O Conselho endossava a pri- dos realizados pelo CNG, entre os quais se pode incluir, como tarefa meira, mas em contrapartida, solicitava soluções quanto à segunda, integrante da Comissão, os trabalhos de campo realizados no Planalto seja no sentido tradicional já apontado (equilíbrio e equidade entre as Unidades da Federação), seja propondo novas fórmulas, tais como Central, em 1947. Quanto a isto, nosso procedimento será o de mostrar Membros da Expedição Ruellan (da esq. para a direita): eredas..de Ney Strauch, Henrique Pimenta Veloso, Marilia Galvão e Alain Ruellan V como a tese favorável à localização da nova capital junto ao ecúmeno Brasília o “agrupamento sistemático de municípios, segundo suas afi nidades Acervo de Alain Ruellan geográfi cas” (IBGE, 1952). ganhou força entre os geógrafos, sintetizada na ideia de que a me- 69 lhor solução seria proporcionar o contato da capital tanto com a área objetivo nesse item. O fazemos, contudo, em um registro diferente ração pretendida e em respeito ao relatório da Subcomissão, que de- Veredas..de de maior expressão econômica e demográfi ca do País − localizada em que, além de aportar alguns dos elementos referidos, ainda fornece dica ao tema parte substancial de suas páginas. Assim, encontramos Brasília sua parte meridional litorânea − quanto com a porção centro-ocidental informações interessantes sobre os trabalhos de campo e seus parti- ali a seguinte diferenciação: do território brasileiro, localizada em seu interior (resultando, daí, uma cipantes. Trata-se, no caso, do depoimento de Speridião Faissol, um Entende-se por sítio o conjunto de aspectos intrínse- dos personagens envolvidos na aventura. Diz o geógrafo, em uma maior integração entre ambas as partes, em benefício recíproco). Esta cos do local em que se acha a cidade, bem como das zonas entrevista: seria a marca distintiva da Subcomissão de Estudos Geográfi cos nos de- imediatamente circunvizinhas. São as características do rele- vo, do clima, do solo, da vegetação, etc., da área ocupada pela bates internos, assemelhada a posicionamentos dos engenheiros Lucas Foram realizadas duas excursões, nas quais o objeti- vo básico era a posição da nova capital e não apenas o sítio. cidade e suas circunvizinhanças, considerados em si mesmos. Lopes e Antonio Carlos Cardoso. Delimitaram-se sete ou oito áreas, onde os grupos do prof. Francis Ruellan, inclusive eu, estavam estudando sítios, fazen- Por posição compreende-se a situação da cidade em O envolvimento dos geógrafos nos trabalhos da Subcomissão do trabalhos de levantamento. [...] O Orlando Valverde era o relação a outras áreas distintas, mesmo que muito afastadas, principal assistente do Waibel. Este grupo fez um reconheci- em relação ao conjunto do país e até do continente, em suma. foi mencionado em partes anteriores deste texto, mas de forma um mento geral, permanecendo uns dois ou três meses em todos Não é um conceito puramente geométrico, que se possa ex- tanto anônima, reduzida às fi guras de Christovam Leite de Castro e os locais. Sentíamos muito a responsabilidade, já que todos – eu, Orlando, Lúcio, Lindalvo, Veríssimo – estávamos na casa primir simplesmente pelas coordenadas geográfi cas [...], pois dos chefes das duas expedições, Francis Ruellan e Fabio de M. S. Gui- dos vinte anos. Somente o Fábio era mais velho. O propósito envolve considerações a respeito das condições geográfi cas marães. Quem formava a equipe desses chefes? Uma consulta aos deste grupo era descobrir qual seria a posição relativa mais de outras áreas que não aquela que se acha estritamente ocu- adequada, associada à existência de sítios favoráveis. O Waibel pada pela cidade. Tais considerações se referem, por exemplo, relatórios revela nomes àquela época desconhecidos, mas que anos tinha trazido da África a experiência de localizações urbanas, à situação da cidade em relação a acidentes geográfi cos dis- pequenas vilas etc. Preocupava-se com a existência de bacias depois se tornariam profi ssionais destacados pela atuação acadêmica de recepção de água, as quais procurávamos. [...] A excursão tintos, tais como as grandes linhas de relevo, os cursos d’água e pela folha de bons serviços prestada ao IBGE. São eles Ney Strauch, era organizada de uma forma curiosa, o Fábio era o responsá- importantes, as fronteiras políticas, as vias mestras de trans- vel, a maior autoridade no Conselho de Geografi a, mas Waibel porte e comunicações; à proximidade ou o afastamento do Marilia Galvão, Antonio Teixeira Guerra, Carlos Augusto de Figueiredo não admitia que alguém [lhe] dissesse o que fazer. Ele marcava mar; às suas relações com outras regiões do país, tendo em Monteiro, Dora Amarante Romariz, Nilo Bernardes, Lysia Cavalcan- todo mundo, não era fácil! Comentava com a gente, discutia, vista as facilidades ou difi culdades de comunicações, de inter- fazia reuniões. A ideia fundamental era, pare ele, a posição da câmbio econômico, etc. (GUIMARÃES, 1947, p. 29-30). ti (logo Bernardes), Walter Egler, Speridião Faissol, Orlando Valverde, nova capital, que deveria ser mista, ao mesmo tempo de apoio ao pólo de desenvolvimento brasileiro e de projeção sobre a Lúcio de Castro Soares, Lindalvo dos Santos e José Veríssimo da Costa área não povoada. Mas não podia sair do pólo, não podia ser Pereira, entre outros. Muitos desses calouros já não traziam a marca no “meio do deserto”. Concluiu-se pelo Triângulo como melhor Em seguida, o relatório discorre sobre o conceito de “boa po- posição e fez-se o relatório (FAISSOL, 1997, p. 83-84). híbrida da primeira geração de profi ssionais do CNG. Eram “geógrafos sição” para uma capital, abstratamente e no caso de uma localização especializados” do órgão ou alunos e ex-alunos de Ruellan na Facul- no Planalto Central brasileiro, repetindo a operação em relação ao Fica evidente, a partir do texto, que sítio e posição eram con- dade Nacional de Filosofi a. sítio. Nos abstemos de comentar essa parte, pela redundância que siderados de forma integrada nos estudos, e também que a posição signifi caria frente ao já discutido, mas também por não considerá-la Já distanciados da descrição anteriormente feita a respeito dos possuía, para os geógrafos, um sentido distinto daquele evocado pelo trabalhos de campo da Subcomissão, nos vemos forçados a recuperar general Polli Coelho. Em passagens anteriores, nos referimos a essas a melhor fonte para se abordar a os aspectos distintivos do modus alguns de seus aspectos, a fi m de extrair elementos úteis para uma duas categorias sem a preocupação de distingui-las mais detalhada- operandi dos geógrafos no enfrentamento do problema. Nesse sen- caracterização da perspectiva dos geógrafos diante da questão, nosso mente. Agora não há como deixar de fazê-lo, tendo em vista a compa- tido, preferimos utilizar uma série de artigos escritos por Christovam 70 Leite de Castro para a Revista Brasileira de Geografi a24 e o Boletim • A quarta aproximação prevê a determinação das áreas do Pla- Geográfi co, editados pelo CNG desde 1939 e 1943, respectivamente. nalto Central de mais intensa e favorável infl uência dos grandes centros urbanos da parte oriental do País sobre a região; e Foram analisados seis artigos, sendo alguns breves relatos ou editoriais. Nosso interesse em relação ao conjunto recaiu principal- • Finalmente, a quinta aproximação, a mais local de todas, é a es- mente no modo recorrente de o autor apresentar os textos, carac- colha propriamente dita do sítio onde se assentaria a nova ca- terizado por uma explicação do método de pesquisa utilizado pela pital. Subcomissão de Geografi a em seus trabalhos no Planalto Central. Lei- De forma mais detalhada ou como referência de fundo, as “cin- te de Castro denomina tal método uma “sequência de aproximações co aproximações analíticas” irão fazer-se presentes nos demais artigos sucessivas”, organizada em ordem decrescente de escala geográfi ca. de Leite de Castro, sobretudo em conferências transcritas (CASTRO, O artifício é bem caracterizado em um dos primeiros artigos da série, 1947b) e editoriais (CASTRO, 1947c). O esquema ilustra exemplar- embora de modo um tanto longo (CASTRO, 1946, p.571-572), razão mente o ângulo a partir do qual os geógrafos conceberam o espaço pela qual optamos por uma apresentação resumida e sistematizada regional tornado objeto de investigação, ao qual cunharam um nome do mesmo: – Sudeste do Planalto Central – que adquiriu certa ofi cialidade na Comissão. A partir da segunda aproximação, podemos afi rmar ser este um espaço móvel, por conter a região pioneira planaltina (CASTRO, • a primeira aproximação diz respeito à conceituação científi ca e 1946). O fato adicionava complexidade ao problema da localização da Membros do CNG e do CNE delimitação cartográfi ca do Planalto Central; Acervo da Família Teixeira de Freitas capital, ao tornar relativamente transitórias noções absolutas de “ser- • A segunda aproximação refere-se à defi nição da faixa pioneira tão” e “ecúmeno”, operadas por alguns membros da Comissão. Outro de povoamento, que corresponderia tanto à fronteira econômica aporte interessante dos geógrafos era a noção de infl uência urbana brasileira (oriental) como à zona de transição entre esta e a parte (quarta aproximação), com a qual buscavam avaliar a qualidade das ocidental inexplorada e pouco ocupada; distintas posições naquele vasto hinterland. Por fi m, novidades à par- te, o esquema consagrava a tradicional inclinação da ciência geográ- • A terceira aproximação consiste na detecção das áreas de maior fi ca em proporcionar uma análise ecológica e sintética de aspectos altitude (logo, de clima mais ameno), para fi ns de uma coloniza- defi nidores de uma localização. ção mais profícua; Com base nessas constatações, Christovam Leite de Castro • defi niu sua opção por localizar a futura capital próxima ao centro demográfi co do Brasil, a qual conformaria a tendência vencida na eredas..de 24 A publicação mais antiga tinha por objetivo “contribuir para um melhor conhecimento do V território brasileiro” – objetivo do próprio CNG – e “difundir o sentido moderno da metodologia Comissão. Tratava-se, segundo esse ponto de vista, de oferecer à Brasília geográfi ca” (SOARES, 1939, p. 4). Conjugá-los era um modo de conferir legitimidade científi ca aos diagnósticos territoriais apresentados. sede do governo federal condições ótimas de instalação – um sítio 71 apropriado, em seus diversos aspectos – e contato com a fronteira (core areas) da maioria do mundo ocupam posições perifé- rós apresenta forte objeção à visão calcada na necessidade impe- Veredas..de ricas. Este é certamente o caso do Brasil, cuja terra-coração, econômica do País. Estendendo-se o mais possível a oeste e a norte riosa da mudança, em obediência a um suposto “destino histórico” Brasília em minha opinião, se estende da latitude 20o para o sul e sua localização, a capital deveria permanecer, contudo, dentro da tem o seu centro na cidade de São Paulo (WAIBEL, 1961, p. (VIDAL, 2009, p. 169-170). região pioneira. Para Leite de Castro, esta seria a única maneira de 616). Tal opinião leva o deputado a posicionar-se a favor da proposta alimentá-la do dinamismo que deveria ser repassado ao conjunto vencida na Comissão. Queirós endossa ponderações de Lucas Lopes e da Nação. Sob este novo ponto de vista, outra noção de centralidade era desenvolvida. declara sua preferência pela localização da capital em Anápolis, uma Se a capital deve preocupar-se, sobretudo, com a vida nacional, tem de ser localizada no palco onde se desenvolve das zonas indicadas pela Subcomissão de Geografi a, embora não a essa mesma vida, de modo a haver a melhor vinculação pos- primeira. Em sua justifi cativa, o relator formula juízos que poderiam sível entre o cérebro e o sistema muscular do organismo na- cional. [...] Localizada desse modo ela poderá aspirar recursos ter sido escritos por Christovam Leite de Castro: e elementos da parte povoada, que refl etem vitalidade política, Resultados da Comissão Polli Coelho: social e econômica para projetar esses mesmos elementos em repercussões e desdobramentos Não estamos tratando de construir uma cidade “boca favor do vazio e, portanto, em favor da expansão geral do país de sertão”, para impulsionar o progresso de uma região. Não (CASTRO, 1947b, p. 283, grifo nosso). lhe poderemos, também, atribuir um poder intrínseco tão Encerramos este capítulo com uma breve notícia sobre a re- grande, capaz de, por si mesma, infl uenciar o desenvolvimen- cepção da resolução fi nal da Comissão Polli Coelho no Congresso to econômico e social de uma vasta região e muito menos de Metáforas orgânicas não eram raras entre os que se envol- um país todo. Nacional, com base no relatório do deputado Eunápio Queirós (PSD- veram no debate sobre a capital. Desde Varnhagen, outro partidário Bahia); em seguida, de forma igualmente breve, fazemos um registro A capital deve, forçosamente, estar apoiada nos gran- do organicismo, a mesma era retratada como “cabeça da Nação”, ou des centros econômicos e sociais do país, para diante das dos desdobramentos posteriores,25 quando a comissão parlamentar o seu coração. Respondendo às críticas de Polli Coelho ao relatório forças do progresso. Seria uma nova base de operações, devi- sobre a mudança da capital, chefi ada por Queirós, teve suas conclu- damente apoiada numa poderosa retaguarda. Não podemos da segunda expedição da Subcomissão de Geografi a, Leo Waibel não sões rejeitadas. “saltar” e sim “avançar” (QUEIRÓS, 1949, p. 365-366). se conteve em utilizá-las. Em texto publicado em O Jornal no fi nal de 1948, convertido em artigo no momento da fundação de Brasília, Em relatório apresentado à Câmara Federal dos Deputados Outro ponto de discordância com a resolução fi nal da Comissão o geógrafo comenta o uso geopolítico do termo “coração” inspira- em 7 de dezembro de 1948, Eunápio Queirós faz uma apreciação Polli Coelho foi quanto às dimensões exageradas do Distrito Federal do em Mackinder, aqui referido como Terra Central (Heartland, no muito crítica da resolução fi nal da Comissão instituída em 1946. aprovado (quase 78 000 km2), e sua concepção quase autárquica: original). Lembremos que o general o empregava fartamente para Sua argumentação segue a ordem do relatório organizado por Polli Penso que o DF deve conter a cidade-capital com todas designar o Território Federal do Planalto, ou então a parte elevada Coelho, questionando os pontos arrolados. A função colonizado- as instalações que possa vir a necessitar para o futuro. Discor- e central do Brasil, de onde partiriam importantes “artérias fl uviais”. ra prevista para a nova capital é considerada de pouca signifi cação, do da necessidade de bastar-se a si mesmo, pois, desde que se Waibel, habilmente, deslocava a metáfora para localização preferida enquanto sua função política (consolidar a unidade nacional e man- trata de uma cidade privilegiada, é natural que ofereça possibi- pelos geógrafos: lidades de intercâmbio com todas as unidades federadas. ter o esquema federativo) careceria de melhor fundamentação. Com Tal como o coração do corpo humano tem posição relação à função geopolítica, a mais duramente criticada, Quei- Assim, sou da opinião que uma área de 5 a 6 000 periférica e não está localizado no centro do corpo, assim quilômetros quadrados, conforme sugere a minora da Comis- também as terras-corações (heartlands) ou áreas nucleares 25 Para ambas tarefas utilizamos como apoio a análise de Laurent Vidal (2009). são Técnica, será sufi ciente (QUEIRÓS, 1949, p. 368). 72 A publicação do relatório suscitou reações de grupos regio- Referências nais com presença na Câmara, provocando o bloqueio temporário do projeto (VIDAL, 2009, p. 171). Passados cinco anos, os resultados ALMEIDA, Roberto Schmidt. A Geografi a e os geógrafos do IBGE no período 1938-1998. 2000. 712 f. Tese (Doutorado)-Programa de Pós-Graduação em da Comissão Polli Coelho forram sancionados e, consequentemente, Geografi a, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. rejeitadas as conclusões da comissão parlamentar (Lei no 1.803, de BONEMY, Helena. Novos talentos, vícios antigos: os renovadores e a política 05 de janeiro de 1953). O Poder Executivo fi cava encarregado, uma educacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais; Asso- ciação de Pesquisa e Documentação Histórica, v. 6, n. 11, p. 24-39, 1993. vez mais, de realizar estudos defi nitivos para a implantação da nova CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. Povoar o Hinterland: o ensino rural como capital na região delimitada por Polli Coelho, agora chamada “Retân- fronteira entre estatística e educação na trajetória de Teixeira de Freitas, [20--]. Trabalho inédito a ser divulgado na Revista Brasileira de História da gulo do Congresso”. Educação. Uma nova comissão é formada em junho de 1953, confi ada ao CASTRO, Christovam Leite de. A mudança da capital do país. Boletim Geográ- fi co, Rio de Janeiro: IBGE, v. 4, n. 47, p. 1435-1436, 1947c. general Aguinaldo Caiado e Castro, chefe do Gabinete Militar da Pre- _____. A mudança da capital do país. Revista Brasileira de Geografi a, Rio de sidência da República. São realizados levantamentos fotogramétricos Janeiro: IBGE, v. 10, n. 3, p. 449-451, 1948. na área em questão, enviados para o exame da fi rma norte-americana _____. A mudança da capital do país à luz da ciência geográfi ca. Revista Brasileira de Geografi a, Rio de Janeiro: IBGE, v. 9, n. 2, p. 279-295, 1947b. Donald J. Belcher. Daí resultariam cinco locais possíveis para a insta- _____. Seção especializada de estudos geográfi cos. In: IBGE. Relatório pre- lação da capital, um dos quais é escolhido em 30 abril de 1955. Nesta liminar apresentado pelo Engenheiro Christovam Leite de Castro, diretor da altura, a Comissão já havia mudado de nome e de chefi a. À frente dos Seção. Anexo no 1. Seção Especializada de Estudos Geográfi cos. [Rio de Ja- neiro: CNG/IBGE], 1947a. p. 6. trabalhos estava agora o marechal José Pessoa Cavalcanti de Albu- ______. A transferência da capital do país para o Planalto Central. Revista querque. Na explicação de Laurent Vidal, “Café Filho [que assumira Brasileira de Geografi a, Rio de Janeiro: IBGE, v. 8, n. 4, p. 567-572, 1946. a Presidência após a morte de Vargas] organiza um novo gabinete CHALIAND, Gérard; RAGEAU, Jean-Pierre. Atlas stratégique: géopolitique dêsrapports de forces dans le monde. Cartographie Catherine Petit.Paris: Fa- incluindo diversos responsáveis da UDN e modifi ca a composição da yard, 1983.224 p. Revista Brasileira de Geografi a Acervo do IBGE Comissão de Localização da Nova Capital Federal, integrando milita- COELHO, Djalma Polli. Espigão mestre do Brasil e conceito geopolítico do res que tinham rejeitado a lógica nacionalista da política de Vargas Planalto Central. In: A LOCALIZAÇÃO da nova capital da República. Rio de Janeiro: IBGE, 1950. Parte I. Anexo. p. 115-126. em proveito de uma visão internacionalista e anticomunista favorável ______. Justifi cação da resolução fi nal, escrita pela Presidência da Comissão. a uma aliança com os Estados Unidos” (VIDAL, 2009, p. 173). Algo da In: COMISSÃO DE ESTUDOS PARA A LOCALIZAÇÃO DA NOVA CAPITAL DO história se repete? Deixemos a resposta para o próximo capítulo. BRASIL. Relatório técnico: contendo a justifi cação da resolução fi nal tomada pela Comissão, quanto à localização do novo Distrito Federal. Rio de Janeiro, 1948a. Parte 1, v. 1. _____. [Justifi cação de voto]. In: COMISSÃO DE ESTUDOS PARA A LOCALIZA- Veredas..de ÇÃO DA NOVA CAPITAL DO BRASIL. Relatório técnico: contendo as justifi ca- Brasília ções e declarações de votos dos membros da Comissão. Rio de Janeiro, 1948b. Parte 1, v.2. 73 COMISSÃO DE ESTUDOS PARA A LOCALIZAÇÃO DA NOVA CAPITAL DO BRASIL. RUELLAN, Francis. Alguns problemas da expedição encarregada de encontrar Veredas..de Relatório técnico: contendo a transcrição das Atas das Reuniões Plenárias os sítios para a nova capital federal dos Estados Unidos do Brasil. In: CAPI- Brasília realizadas pela Comissão. Rio de Janeiro, 1948. Parte 1, v. III. BERIBE, João. A Expedição Ruellan ao Planalto Central. Brasília, DF: Senado CRULS, Luiz. Planalto Central do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, Federal, 2004. 38 p. Publicado anteriormente no Bulletin de l´Association de 1957. 333p. (Coleção Documentos brasileiros, 91). Géographes Français, Paris: Centre National de la Scientifi que, n. 194-195, p. 2, mai/juin 1948. FAISSOL, Speridião. Cinquenta anos de Geografi a. Entrevista com o Prof. Spe- ridião Faissol. Geo UERJ: revista do Departamento de Geografi a, Rio de Janei- ______. Relatório preliminar da primeira expedição geográfi ca ao Planalto ro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n. 1, p. 79-94, 1997. Central. In: IBGE. Relatório preliminar apresentado pelo Engenheiro Chris- tovam Leite de Castro, diretor da Seção. Anexo no 1. Seção Especializada de FREITAS, Mário Augusto Teixeira de. Palavras de agradecimento. Carta envia- Estudos Geográfi cos. [Rio de Janeiro: CNG/IBGE], 1947. p. 51. da ao general Djalma Polli Coelho, em 9 de junho de 1947. Rio de Janeiro. In: A LOCALIZAÇÃO da nova capital da república. Rio de Janeiro: IBGE, 1948. SENRA, Nelson. Estatísticas organizadas (c.1936-c.1972). In: ______. Histó- Parte II, p. 37-69. ria das estatísticas brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. v. 3. ______. O reajustamento territorial do Brasil. Conferência do Dr. Mario Au- SILVA, Ernesto. História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realida- gusto Teixeira de Freitas. Boletim: Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro, de. 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Relatório preliminar da segunda expedi- dência, 1978. 375 p. ção geográfi ca ao Planalto Central do Brasil. In: IBGE. Relatório preliminar Fabio de Macedo Soares Guimarães (a esq.) em apresentado pelo Engenheiro Christovam Leite de Castro, diretor da Seção. VESENTINI, José William. A capital da geopolítica. São Paulo: Ática, 1986. acampamento na Expedição de 1947 Anexo no 1. Seção Especializada de Estudos Geográfi cos. [Rio de Janeiro: 240 p. Acervo de Fabio Celso de Macedo Soares Guimarães CNG/IBGE], 1947. p. 76. VIEIRA, Tamara Rangel. No coração do Brasil, uma capital saudável – a par- IBGE. Problemas de base do Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1955. 84 p. ticipação dos médicos e sanitaristas na construção de Brasília (1956-1960). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo IBGE. Resoluções da Assembléia Geral 1948/49. Rio de Janeiro: CNG/IBGE, Cruz, v. 16, supl. 1, p. 289-312, jul. 2009. 1950. _____. Resoluções da Assembléia Geral 1951. 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Nossas vidas constroem-se com a alternância de positivos e meira, objeto dessas linhas. Sua chefi a encarregou a Francis Ruellan, negativos, na tentativa sempre da superação e de alcançar o pata- professor de Geografi a do Brasil da Faculdade Nacional de Filosofi a mar maior, avalizado pela autoestima. A oportunidade que propicia - FNF, discípulo de Emmanuel de Martonne, que chegara durante a o IBGE, através do convite de Nelson Senra, para registrar memórias guerra, em 1942, a integrar a FNF, o que não era estranho, pois esta sucedera à UDF, onde tinham sido notórios os professores franceses da primeira iniciativa do Século XX, tendente a concretizar o preceito Cybelle Bouyer e italianos, em especial no curso de Geografi a e História. Suas aulas e Francis constitucional da mudança da capital, movimenta lembranças de um Ruellan no trabalho científi co a par de altamente cívico e mobilizador de orgulho eram dadas em francês e o professor Ruellan, natural da Bretanha, caminhão da Expedição não ocultado. imbuído da Geografi a de campo, trazia métodos modernos e discipli- Acervo de Alain na rígida em seu relacionamento com os alunos. Nunca chegou a bem Ruellan Se a Constituição Republicana de 1891 foi pioneira com o le- dominar o português e as tarefas tinham que ser cumpridas “custe vantar o problema, em seu Artigo 3o, enviando a Comissão Cruls, do que custe”, justifi cando: “C´est mon systéme”. (No curso da expedição, belga Louis Cruls, de que resultou a delimitação, no Estado de Goiás, certa feita em Goiânia, como não servissem em hotel, pão à refeição, da área da futura capital do País, a de 1946 (após duas outras), se- disse um dos nossos: “C´est leur systéme...”). ria retomada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, com o objetivo de transformar o presente o “Quadrilátero de Cruls”. Orgulho não ocul- Além da Faculdade, era o orientador das tertúlias científi cas do tado permeia esse em depoimento de uma integrante das equipes de Conselho Nacional de Geografi a - CNG cujos quadros recentes esta- trabalho da Comissão de Estudos para Localização da Nova Capital do vam sendo preenchidos por alunos e ex-alunos da Filosofi a. Detentor Brasil, de 1947, confi ada ao general Djalma Polli Coelho e vinculada de notável capacidade de trabalho e organização, bem o demonstrou ao ministério da Justiça e Negócios Interiores. A consciência da par- na expedição de 1947 que, durante 67 dias (de junho a setembro), ticipação de um esforço nacional, revolucionador da vida brasileira, percorreu cerca de 18 000 km de trem, de caminhão, a cavalo, de Francis Ruellan, nos meados do século passado, é galardão que, me parece, a modéstia avião e a pé. A área abrangida foi do Triângulo Mineiro à Chapada dos Dora Romariz (sentada de não deva apagar. Veadeiros, em Goiás. lado) e Cybelle (de boné) entre outros A organização da expedição fez-se no Rio de Janeiro, convo- membros da eredas..de V cados os participantes pelo ofício do general Polli Coelho, dirigido às Expedição Brasília * Presidente do Instituto Histórico e Geográfi co _IHGRJ do Rio de Janeiro, primeira secretária do Acervo de Alain Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro - IHGB. autoridades a que estavam subordinados, onde o presidente da Co- Ruellan 75 vivênciass missão ressaltava a relevância do problema da mudança, encarecida Na estação de Patos de Minas, ouvimos música que depois virou 12 e 15”. (Aliás, nesses casos era carne presuntada, em lata, queijo Veredas..de na mensagem enviada pelo presidente da República ao Congresso Na- febre no Rio de Janeiro: “Eu tenho uma mula preta, com sete “parmo” “Clab”, um queijo amarelo, e chocolate, pela energia). “Apesar do guia Brasília cional, e o próximo início dos trabalhos de campo. de “artura”... Pró mulão de qualidade quatro milhões eu enjeitei...”. que levávamos, foi impossível encontrar o caminho [...] na Chapada dos Veadeiros. A 1 e 30 da madrugada ainda não tínhamos chegado, Dos 33 componentes da primeira expedição geográfi ca, nove Os grupos trabalhavam todo o dia e acampavam à tarde. O decidindo o professor que se dormisse sobre o caminhão”, sob a luz de direção procurava alcançá-los e pouco acampou, tendo sido, no eram do CNG e sete da faculdade, ou seja 50% do total. Outras enti- das estrelas. dades também compareceram, sendo o pessoal de apoio contratado entanto, o jipão preparado para receber traves e uma barraca, se ne- Tudo vai registrado no relatório, trajetos, condições geográfi - em Minas Gerais e Goiás, entre motoristas, cozinheiros e auxiliares. cessário. cas, perspectivas, de suas próprias observações e troca de informações De Catalão a Goiandira, para trocar da Rede Mineira para a A distribuição foi em cinco grupos: um de direção e quatro com os chefes de grupos. Para mim, era o cerrado imensa novidade, EFG, foi necessário carregar a bagagem às costas. Os jovens, ajudando operacionais, compostos igualmente, de três equipes cada, como com seus galhos retorcidos, queimados, deixando vislumbrar formas o chefe, apelidavam a deste, “a mala do trilho”, pelo peso das fotogra- está no relatório do chefe da expedição, encarregadas dos estudos inexistentes de uma vegetação angustiada, traduzida na leve ousadia fi as aéreas que a integravam. de geomorfologia, biogeografi a, climatologia, hidrografi a e geografi a de uma inspiração poética: “Onde outrora era verde,/ Só resta fuli- humana. O de direção compunha-se do chefe, prof. Francis Ruellan, No caminhão, improvisamos uma mesa de trabalho atrás gem./ Os galhos que clamam justiça aos que passam,/ Não teem suas sua senhora, Anette Ruellan, responsável pelos serviços gerais, uma da carroceria, o que dava visão global da estrada. Nosso motorista vozes ouvidas de alguém,/ Porque o viandante que passa na estrada/ secretária científi ca, uma secretária administrativa e um desenhista. chamava-se Alcebíades (“Cebiádes”, para o chefe). Em dada manobra, É cruel como todos./ Ou não passa ninguém [...]”

Aluna do último ano de Geografi a, coube-me a Secretaria Científi ca, tombamos para trás, de pernas para o ar, chefe e secretária ..., o que O chiar dos carros de bois, o encontro certa vez, de nove juntas sob o nome de solteira, Cybelle Bouyer. ensejou: “C´est brusque ce rapaz lá!” de bois puxando uma carroça com ... uma peneira, e, quando atolamos e só uma junta de bois nos retirou... Para cada grupo, foram contratados dois caminhões nos dois As anotações de todo o trajeto iam sendo feitas, ao lado de estados. O material seguiu do Rio de Janeiro em um jipão do exército, ditados seus que transcrevo de originais: “Mêmes observations que Aprendia-se – como nunca – Geografi a in loco. Visitamos a rica obtido em cima da hora, não emplacado, só com um “conhecimento”. prècedement pendant la première heure du camion. An-delá appa- Colônia Agrícola Nacional de Goiás – Ceres, administrada por Ber- Este serviu ao grupo de direção e impressionava, sobretudo, as crian- rait um palier ondulé...”. nardo Sayão; com o prefeito de Pirenópolis, fomos à base dos Mon- tes Pirineus; ida à Cachoeira Dourada, a Luziânia (ex-Santa Luzia), ças, por suas dez “rodêras”. Para o comum, usava-se certa técnica. Como conhecia taqui- da marmelada em caixinha; Pedra Fundamental (cerca de 10 km de grafi a (em português) e ele falava muito rápido, em francês, decodifi - A partida, em duas levas, dirigiu-se a Belo Horizonte, em 27 Planaltina), colocada a mando do presidente Epitácio Pessoa, em 7 o cava para a nossa língua e transformava em sinais. Quando voltamos, de junho de 1947, retornando do Planalto Central, em 1 de setem- de setembro de 1922, Centenário da Independência, decorrência da sua preocupação era de que eu traduzisse os caracteres. bro. Dali, seguiu-se pela Rede Mineira de Viação - RMV (“Ruim, mas expedição Cruls. Recebemos as visitas do general Polli Coelho e do Dr. vai”) e Estrada de Ferro de Goiás - EFG, cujo ponto fi nal era Anápolis. Em nossas cadernetas, registram-se, por exemplo, tomadas de Christovam Leite de Castro. De vez em quando cruzávamos com inte- O jipão nos alcançou nesta cidade, de onde partimos para localizar altitude à meia-noite, à luz de lanterna. Anotações, aqui, ao acaso: grantes da outra expedição (bem diferente da nossa). Em Planaltina, pessoal e equipamento em suas respectivas áreas de trabalho. “Saímos de Ituiutaba às 6 e 30”; “Almoço no campo, das 11 e 25 às por exemplo, fi camos conversando à noite, na sala e o Prof. Ruellan, 76 vvvivências s

com o propósito de sairmos cedo, advertiu, naquele seu espírito de O susto que tivemos – uma jovem professora de pouco mais de 20 responsabilidade: “C´est completement ridicule!”. Nessa mesma linha, anos –, viajando de Araguari, no Triângulo, para Goiás, sobre o cami- ele condenava a Secretária Administrativa (que atravessou toda a ex- nhão, este sobre o trem, com uma chuva de fagulhas desprendida da pedição com sua Remington a tiracolo), que usava um “batonzinho”: locomotiva... “Vai ver o diable?”. Os dados e a emoção suplantam o espaço. Quando, 20 anos Éramos, então, grupo de direção, dois caminhões: o jipão e um, mais tarde, fui residir em Brasília, observei que, para os naturais, ela pequeno, comandado por sua senhora. Se íamos atrás, ela se impa- nascera de Juscelino Kubitschek, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, igno- cientava, pois parávamos para colher rochas, fazer observações. Foi rando Eurico Dutra, Djalma Polli Coelho e Francis Ruellan. Publiquei, tratado que inverteriam. Passou o grande caminhão que provoca a então, no oitavo aniversário da cidade, Brasília, uma expedição in- queixa: “Vous cassez tous les mata-burros (aquelas travessas para im- justiçada. 1 pedir a entrada de animais) ...” Agradeço a Nelson Senra a divulgação, como, de público, a Curiosa foi a casa que nos cederam para base por algum tem- Francis Ruellan (1895-1975), pela confi ança de há 63 anos e pela de- po: construção de quadro cômodos, quadro “águas”, o telhado, de dicatória no exemplar de Quelques problèmes [...]: “Hommage à Ma- telha vã, em pirâmide de base quadrada. Para economizar luz, uma demoiselle Cybelle Bouyer, en souvenir de sa collaboration pendant lâmpada apenas, no vértice. Nesse local, determinada instalação di- cette expedition où elle s´est tant dévouée”. vidia o espaço com galinheiro. E madame Ruellan (que, aliás, falava bem, português): “Está cheio de galinha “por dentro”.

Todos ajudavam, todos tinham boa vontade, autoridades e po-

pulares. Deixávamos telegramas (em tempo e locais de difícil comu- Cybelle (ao centro) em trabalho de campo nicação), cumpríamos um desiderato que pôde ser pelo chefe assim Referências sintetizado: “Le problèmes materiels ou purement techniques n´ont RUELLAN, Francis. Quelques problèmes de l´expedition chargée de trouver des sites pour la novuelle capitale fédérale des Etats-Unis du Brésil. Bulletin évidemment pas été moins sévéres que les problèmes scientifi ques” de l´Association de Géographes Français, Paris: Centre National de la Scien- (RUELLAN, 1948, p. 2). tifi que, n. 194-195, p. 2, mai/juin 1948.

Quero me permitir, pelo menos, mais duas lembranças. Em uma ausência do professor, era a chefe do caminhão e, tranquilamente, atravessava a ponte pênsil Afonso Pena, sobre o Rio Paranaíba (fron- eredas..de V teira Minas Gerais-Goiás), sem parar, com um estranho jipe desempla- Brasília 1 Ver: REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Rio de Janeiro, n. 336, p. cado... Também: carregávamos a gasolina em tambores, no caminhão. 195-203, jul./set. 1982. Transcrito do Correio Braziliense, datado de 21.04.1968. 77 vivênciass As expedições geográficas do IBGE tureza pública, atendendo diretamente a interesses de governos. Quer Veredas..de as de natureza privada, nos interesses de empresas econômicas, ou Brasília Pedro P. Geiger* de entidades civis, como as Sociedades de Geografi a. O processo de viagens e de expedições se mantém na atualidade, e com novas mo- Uma história de viagens e expedições dalidades. A aventura humana no espaço inclui hoje o mergulho no de natureza geográfica sentido macro, extraterrestre, e, através de instrumentos, no sentido A prática da movimentação de pessoas para a exploração de micro, o das partículas e dos genes. territórios (explorar no sentido de levantar informações) se perde em As expedições geográfi cas do passado expressavam inter- tempos imemoriais. A Bíblia narra Josué, o seu povo ainda no deserto, esses de países em outras regiões, e colonizadores. Como as do inglês enviando exploradores para trazer informações da terra de Canaã Livingstone, na África. Após a Segunda Grande Guerra, meados do (Josué, cap. 2). Narrativas históricas de viagens e explorações famosas século XX com o fi m da era colonial, as expedições compreendendo transmitiram atmosferas de aventura, como as viagens de Marco Pólo cientistas dos países do Centro passaram a se conformar aos inter- Técnicos da Expedição em seu na China, na antiguidade, ou as explorações de Amundsen nos pólos, esses dos países nos quais elas se realizavam. Exemplo famoso foi acampamento na região do Jalapão Acervo do IBGE já na modernidade. o do estudo de tribos indígenas no Brasil pelo francês Claude Levi O impulso maior do movimento europeu para fora do con- Strauss, e que deu origem à chamada Antropologia Estrutural. tinente, desde os chamados Grandes Descobrimentos, dos fi ns do Membros da Expedição ao Jalapão século XV, ampliou o número e as dimensões de expedições asso- no local denominado “Pedra da Bali- za”. Na foto: Gilvandro Pereira, Álvaro ciadas à conquista e ao estudo do ecúmeno. Após o descobrimento Geografia universitária moderna. Sampaio, Pedro Geiger; Domingos Carvalho e José Silva do Brasil, em 1500, o governo português organizou várias expedições Excursões e expedições geográficas Acervo do IBGE de caravelas costeando o litoral brasileiro, para trazer informações O desenvolvimento de cursos universitários de moderna e fundar postos de ocupação. O alargamento do ecúmeno foi sendo acompanhado pela expansão da prática científi ca de estudar a natur- Geografi a introduziu o trabalho de campo geográfi co de forma eza e a diversidade populacional da Terra. A circunavegação de Fernão sistemática, para fi ns do ensino da disciplina, e como método na de Magalhães foi organizada para provar à redondeza da Terra. Sécu- produção acadêmica. Deste modo, o trabalho de campo voltou-se los depois, as viagens de Darwin dariam origem à teoria da evolução para interior dos próprios paises em que se localizavam os cursos de das espécies. A procura das fontes do Nilo é outro episódio destas Geografi a. histórias, todas com o sabor da aventura. A organização e os custos Nos anos 1930, a reforma Capanema introduziu no Brasil as das expedições eram providos por instituições ofi ciais. Quer as de na- faculdades de Filosofi a e seus cursos de bacharelato e licenciatura, en- tre os quais, os de Geografi a e História. Muitos destes cursos tiveram em seu início professores visitantes, convidados do primeiro mundo. * Geógrafo aposentado do IBGE, Pesquisdor Senior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Na área da Geografi a, Pierre Monbeig em São Paulo, e Francis Ruellan, Científi co e Tecnológico - CNPq, Professor visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. no Rio de Janeiro, permaneceram no País por muitos anos. Eles intro- 78 vvvivências s

duziram a prática sistemática do trabalho de campo no ensino e na uma das últimas folhas da Carta. O Professor Ruellan que atuou e desceu pela bacia do Parnaíba, até a histórica Corrente, no Piauí. pesquisa. também, como consultor do antigo Conselho Nacional de Geografi a Voltou aos Gerais e iniciou o retorno na direção do São Francisco, Surgiram dois termos associados aos trabalhos de campo: - CNG, sugeriu então que um geógrafo da Seção de Estudos do CNG já em setembro, época em que as águas dos rios estão baixas e as excursão e expedição. O primeiro era aplicado para deslocamentos participasse da expedição, com a missão de apresentar um relatório viagens das gaiolas mais raras. Para não perder a licenciatura, Pedro não muito duradouros nem muito distantes. O segundo se referia sobre a geografi a regional. Aceita a sugestão, indicou o jovem Pedro P. Geiger desceu o rio Preto, desde a cidade, então, de igual nome, às saídas para lugares distantes, por longo tempo, e acompanhados. Geiger, então com 20 anos de idade, cursando ainda a Faculdade para em balsa de buriti, utilizada pelos comerciantes locais para expedir além de instrumentos de trabalho, de equipamentos de alojamento a licenciatura, e que no ano anterior indicara para trabalhar no IBGE. ceras, peles, couros, até Barra. De onde retornou para o Rio, pelo e de mantimentos. Dadas as precárias condições das regiões percor- A participação de Pedro Geiger na expedição ao Jalapão a caracteriza mesmo trajeto de ida. ridas. Entretanto, depois da Segunda Guerra Mundial, com o desen- como a primeira expedição geográfi ca do IBGE. A atmosfera de aventura foi sempre mantida. Pedro Gei- volvimento do turismo pelo mundo, alargou-se a utilização do termo Pedro Geiger saiu do Rio em abril de 1943, pela Central do ger deveria realizar um levantamento topográfi co paralelo ao dos excursão, mesmo para saídas longas e distantes de turistas. As empre- Brasil, para Belo Horizonte, de onde seguiu por bitola estreita, para topógrafos, para produzir perfi s geomorfológicos. O professor Ruel- sas de turismo passaram a se articular com empresas hoteleiras e de Pirapora. Neste trecho, uma rês fez descarrilar um vagão, recolocado lan ensinara que a mirada com a bússola devia ser lida dom a agulha transporte, de modo que infra-estrutura urbana passou a ser provi- nos trilhos pelos passageiros. De Pirapora desceu de gaiola até Bar- totalmente imóvel. Os topógrafos, mais experientes, ou menos rig- da mesmo em regiões menos desenvolvidas No oceano, os enormes ra do Rio Grande, na Bahia. Enquanto aguardava os cartógrafos e o orosos, o faziam mais rapidamente e iam se distanciando, até que chefe da expedição, o engenheiro geodezista Gilvandro Simas Pereira, Geiger se via sozinho nos imensos gerais. Não se seguia propriamente transatlânticos se destinam atualmente quase que exclusivamente a vindos de Salvador, realizou entrevistas e pegou malária. O grupo de por uma estrada, mas por picadas que se subdividiam, algumas se re- cruzeiros, termo designativo de excursões turísticas marítimas. cartógrafos era dirigido pelo, o chefe da expedição. O grupo vindo de encontrando adiante. Por qual seguir? Pavor, até descobrir que a mula O adensamento econômico e demográfi co do Brasil, a im- Salvador viajou de trem a Juazeiro e de lá subiu de gaiola pelo rio São sabia por onde devia ir. Ou, as estórias de Vitalino, o chefe dos guias plantação de infra-estrutura urbana e interurbana, mesmo em áreas Francisco. O barco fazia linha para Barreiras e na escala de Barra, Pe- contratados em Rio Preto, e com quem fez amizade, sobre a passagem menos desenvolvidas, estimuladas inclusive pelo turismo, tem reduz- dro Geiger se juntou ao grupo. O barco entrou pela foz do rio Grande, da coluna Prestes pela região. Ouvir pela BBC a invasão de Sicília pelos ido a necessidade da forma expedição, para trabalho científi co, a um atravessou a garganta do Boqueirão. e na confl uência do rio Preto Aliados. Pernoites no chão, à margem do rio, junto com os tripulantes espaço geográfi co cada vez menor. o grupo desembarcou com as suas bagagens. A partir daí, seriam da balsa na viagem de dias para Barra do Rio Grande. Etc. iniciados os levantamentos cartográfi cos, geodésicos e geográfi cos, A expedição descobriu que não havia um ponto fronteiriço subindo-se pelo vale do rio Preto. Entrava-se numa região em que não comum entre quatro estados, Bahia, Goiás (hoje o trecho é Tocan- As expedições geográficas do IBGE. A expedição ao Jalapão se sabia o que era eletricidade, nem veículo a motor. A expedição se tins), Maranhão e Piauí. Que o Maranhão não é limítrofe da Bahia, moveria sobre muares, pernoitava em barracas que eram montadas, como aparecia em mapas antigos. Que águas emendadas é apenas A partir dos anos 1940, o recém criado IBGE iria recorrer às ou em casebres e casas das pequenas localidades por onde passava. um pequeno pântano de onde fl uem fi letes de água para afl uentes expedições e excursões geográfi cas para expor a estrutura espacial À noite Gilvandro observava o céu com os instrumentos, para as nove das duas bacias, São Francisco e Tocantins. Pedro Geiger descreveu do País. A instituição já dispunha de uma experiência de trabalho de em ponto ouvir o sinal da BBC e defi nir a latitude e longitude do lugar pela primeira vez uma pequena cadeia de centros urbanos e a sua campo intensivo na área dos levantamentos geodésicos cartográfi cos, em que estávamos. Os escritos à noite eram à luz de lampião. hierarquia Esta foi defi nida pelas classes sociais dominantes. A ci- Veredas..de Brasília associados à produção da Carta do Brasil ao Milionésimo. Em 1943, A expedição atravessou o vale do rio Preto, subiu e atraves- dade de mais alta hierarquia era Barra, onde se localizavam os ata- seria realizada a grande expedição ao Jalapão, para a confecção de sou os Gerais, e desceu pela bacia do Tocantins. Retornou aos Gerais cadistas, distribuidores pela região os produtos vindos de Salvador 79 vivênciass ou do Sul. Eles compravam para reexportar produtos da pecuária Brasileira de Geografi a. A Geografi a moderna se concentrava na an- Veredas..de local e da coleta dos gerais. Os comerciantes que não eram anterior- tiga Seção de Estudos, que se ampliava com o recrutamento contínuo Brasília mente fazendeiros se tornavam criadores de gado, uma condição de novos formandos dos cursos universitários de Geografi a. As expe- regional de status social. A segunda hierarquia era de cidades ou dições geográfi cas e as apresentações de seus resultados iriam servir vilas como Rio Preto e Formosa, onde a classe dominante era for- para marcar a diferença e separar os dois ambientes. mada de varejistas importadores de Barra, e para qual enviavam Nesta década de 1940, a Seção de Estudos foi transforma- como atacadistas os produtos dos gerais. Muitos dos lojistas eram da, passando a se organizar em cinco Seções Regionais e um setor imigrantes estrangeiros que também se tornavam fazendeiros, uma de Geografi a Geral. Iniciou-se a prática regular de expedições che- forma de aculturação e de assumir o status tradicional. Finalmente, fi adas por geógrafos brasileiros. A do Centro Oeste, em 1948, che- a terceira categoria reunia centros como Corrente, onde a atividade fi ada por José Veríssimo da Costa Pereira durou três meses. O trecho comercial era incipiente, e onde a classe dominante ainda era a dos Campo Grande/Cuiabá se fez num caminhão rasgando o cerrado, fazendeiros criadores, a comum, à região rural. seguido de uma camionete. Os pernoites se fi zeram em barraca, com As expedições do IBGE foram uma das formas de penetração fogueira acesa á frente pra espantar onças, que Veríssimo teimava O vapor “Saldanha Marinho” no do poder federal no interior do País. O setor rural tradicional as via ter visto. A expedição passou por Poxoreu, então um centro novo de lugar denominado Boqueirão, no Rio Grande, por onde passou a com desconfi ança, como preparativas de intervenções políticas futur- garimpagem, razão para que o itinerário fosse sujeito a assaltantes. expedição do IBGE as. Muitos fazendeiros arrancavam os marcos geodésicos por ventura Além de ter contratado um pistoleiro para a travessia, Veríssimo se Acervo do IBGE fi ncados em suas propriedades, imaginados como instrumentos de vestia de macacão para ocultar sua condição de chefe e portador do demarcação de futuras reformas agrárias. dinheiro. Nesta mesma década de 1940, o professor Ruellan conseguiu As expedições tiveram as suas tragédias. Roberto Galvão, organizar excursões de logo percurso e tempo de duração, por diver- marido de Marília Galvão, e Walter Egler, marido de Eugênia Egler sas regiões do País e fi nanciadas pelo CNG. Reunia, nas mesmas, fun- e pai de Cláudio Egler, mortos em episódios separados em rios da cionários e estudantes da Faculdade Nacional de Filosofi a. Tratava-se Amazônia. de simultaneamente praticar aprendizagem de trabalho de campo e desenvolver a nova forma de produzir Geografi a moderna. O clima do Expedições geográficas temáticas. Brasília CNG na época ainda apresentava a convivência da Geografi a tradi- cional e a da Geografi a moderna em expansão. A tradicional estava Inicialmente, as expedições geográfi cas visavam um recon- presente na participação de pessoas não formadas em Geografi a uni- hecimento geral das áreas visitadas. Depois, evoluíram, passando a versitária. Como dirigentes, caso de Virgílio Correia Filho, como articu- focalizar objetivos específi cos. Foi o caso de expedições associadas à listas da Revista Brasileira de Geografi a, caso do engenheiro Moacyr localização de Brasília e de expedições associadas ao estudo da colo- Silva, autor de estudo clássico sobre transportes no Brasil. Geólogos, nização não ibérica. militares, diplomatas, políticos participavam das tertúlias semanais. A questão da mudança da capital do Brasil do litoral para o Congressos nacionais eram organizados em parceria com a Sociedade interior, uma idéia vigente desde o Império, voltou a ser agitada após 80 vvvivências s

a Segunda Grande Guerra. A perspectiva de novas pressões políticas mo desde antes da Guerra. Waibel consagrou a descrição topográfi ca Um litoral por entravam ideologias e costumes ameaçadores à ordem populares sobre o governo, centradas nas grandes metrópoles, e in- do planalto central, de grandes superfícies aplainadas contendo de- moral e social, e à identidade nacional. fl uenciadas por ideologias vindas do exterior, avivavam o velho dilema pressões suaves de montantes de rios, as dales, cuja presença de água A realidade da história vem mostrando erros maniqueístas da litoralização/interiorização. A tragédia de Getúlio Vargas em 1952, levara à localização dos históricos centros urbanos do planalto. nas duas posturas. O Brasil atual foi, e vai se compondo num processo mostrava o grau da tensão ideológica instalada. A mudança da capital O professor Waibel em sua estadia no Brasil orientou tra- contínuo de interpenetrações de forças, imanentes, do um interior atenderia formalmente a um desejo histórico, repetido nas constitu- balhos de campo, dirigidos para temas específi cos. Especialmente ex- territorialmente pleno, e transcendentes, vindas do exterior. Forças ições, mas que serviria, na verdade, como atenuante de preocupações cursões e expedições voltadas ao estudo da colonização européia no que dizem respeito a diferentes setores sociais, de elites e de camadas das classes dominantes e conservadoras com o futuro. Por outro lado, Sul do Brasil, e dos sistemas agrícolas estabelecidos no País. populares, e diferentemente distribuídas regionalmente. a mudança se ajustaria à exposição de movimento de modernidade, A criação do antigo CNG e sua integração com o órgão caracterizado pela setorização e especialização. Por criar um ambiente estatístico pré-existente, o CNE, deu ensejo à formação do IBGE. O singular para a gestão do País. Como fi zeram os Estados Unidos, ao O sentido das expedições aparecimento desta instituição foi um marco da relação litoral/inte- criar Washington DC para separar o poder federal de estados fed- rior Através das expedições, geodésicas, cartográfi cas, geográfi cas, as- Descoberto o Brasil, os portugueses organizaram primeiro, erados com altos poderes de autonomia. País onde as capitais es- sim como através das Agências de Estatística, o IBGE participou, até expedições marítimas, como a de Martins Afonso de Souza, para taduais se situam em pequenas cidades para assinalar, ao máximo, a os anos 1960, deste movimento litoral/interior. Que começou a ser distância entre uma economia dominante de mercado e governo. Ou balizar e fi ncar pé no litoral. Depois, vieram as penetrações terrestres, recoberto pela idéia do Brasil Grande, do golpe militar de 1964. As an- como fez a Turquia, que sob a direção dos jovens turcos, coronéis que como as das Entradas e Bandeiras, para explorar e ocupar o imenso tigas expedições do IBGE como que reproduziram as ondas ofi ciais de instalaram a República e moveram capital de Istambul para Ancara, interior. Com o Brasil independente desde 1822, expedições de diver- modernização partidas do Rio de Janeiro. Expedições para conhecer e após a derrota na Primeira Grande Guerra. No caso turco, a criação sas naturezas, inclusive militares, estabeleceriam relações de poder modernizar, como desconfi avam os fazendeiros que arrancavam fora da nova capital também representava dois movimentos distintos e entre os centros nacionais instalados no litoral e o interior. Como as os marcos geodésicos de suas propriedades. simultâneos: a volta às raízes nacionais asiáticas e a modernidade da de Rondon para instalar linhas telegráfi cas. A despeito destas resistências, o Brasil foi se tornando outro, separação de Estado e religião. Istambul era o ícone da islamização de Nas primeiras décadas do século XX, formou-se a idéia do multiplicando enclaves de modernidade, como Brasília, a Novacap, e Constantinopla. País composto de dois ambientes sociais. O da litoralização, onde se criando extensões desenvolvidas. Hoje, a maior parte do País oferece Antes mesmo do governo Juscelino Kubitschek, o IBGE foi in- concentravam, nas grandes cidades, o comércio e a entrada de ideo- condições para trabalhos de campo na forma de excursões. Expedições stado a realizar estudos para a localização da nova capital. A primeira logias e costumes vindos do exterior; e o da interiorização, que se brasileiras, agora, se encontram na Antártida. Ou no Haiti. expedição foi chefi ada por Francis Ruellan. Geomorfólogo, Ruellan estabelecia com a instalação das fazendas e de pequenas cidades, e percorreu o Planalto Central goiano, área prevista historicamente onde o estilo de vida tradicional era preservado. Para uns, o litoral era para a localização da capital, estudando as condições regionais gerais o emissor da modernização, o propulsor do progresso. As resistên- e as possibilidades de estabelecer áreas de agricultura para abastecer cias do interior deviam ser necessariamente dissolvidas para o País se a futura capital. desenvolver plenamente. Para outros, os verdadeiros valores morais A segunda expedição, chefi ada por Fábio de Macedo Soares de brasilidade se encontravam no interior, os que davam um sentido Veredas..de Brasília Guimarães foi assessorada por Leo Waibel, geógrafo alemão, da área próprio ao País. No litoral se encontravam as forças comerciais e fi - humana e econômica, radicado nos Estados Unidos, fugido do nazis- nanceiras que procuravam subjugar um país “essencialmente agrário”. 81 perfis General Djalma Polli Coelho: Polli Coelho entrou para o Conselho Nacional de Geografi a, Veredas..de entre glórias e crises representando o Ministério da Guerra, em meados dos anos de 1940. Brasília Àquela altura, já tinha desempenhado vários cargos em sua carreira Marco Aurélio Martins Santos* militar, destacando-se os de diretor da Escola de Geógrafos do Exército, sub-chefe da Comissão Demarcadora de Limites (Setor Sul), chefi a in- Djalma Polli Coelho nasceu em Curitiba, a 17 de outubro de terina do Departamento Técnico e de Produção do Exército. Mas foi em 1892, fi lho de José Manoel da Silva Coelho e Amália Polli Coelho. novembro de 1946 que ele recebeu uma missão muito especial: o então Na fase escolar, entrou para o Colégio Militar, no Rio de Janeiro, es- presidente da República, Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), o nomeou tabelecimento de ensino fundado pelo conselheiro Tomás Coelho chefe da Comissão de Estudos para Localização da Nova Capital. (1837-1895), onde foi aluno destacado, chegando ao posto de co- Esta comissão, a ser composta por técnicos de reconhecido mandante-aluno, em 1909. cabedal, tinha a incumbência de realizar estudos no interior do Brasil Sua trajetória no Exército Brasileiro foi vertiginosa. Aos 18 anos, para atender ao preceito constitucional que vinha se repetindo desde ingressou na antiga Escola de Guerra do Realengo, no então Distrito 1891, o de realizar a mudança da Capital Federal da República para o o Federal, passando a aspirante, em 1914. Daí chegou a 2 tenente em interior do Brasil. 1916, a 1o tenente em 1920, capitão em 1926, major por merecimento em 1934, tenente-coronel também por merecimento em 1939, gener- Polli solicitou a ajuda do Conselho Nacional de Geografi a e, al-de-brigada em 1946 e general-de–divisão em 1952. Fez inúmeros por extensão, do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística para cursos na Infantaria e na Cavalaria. cumprir a missão. E vários dos geógrafos mais importantes do Brasil davam expediente exatamente lá. Organizaram-se duas expedições: Por formação era engenheiro-geógrafo. Chefi ou por bom tem- uma comandada pelo geógrafo francês, consultor técnico do CNG, po o Serviço Geográfi co do Exército, de 1946 a 1951. Este órgão foi Francis Ruellan (1894-1975); outra, chefi ada por Fábio de Macedo criado em 1890, inicialmente anexo ao Observatório Nacional, poste- Soares Guimarães (1906-1979), com a assessoria técnica do geógrafo riormente transferido para o Ministério da Guerra. A partir de 1917, alemão Leo Waibel (1888-1951). recebeu o nome de Serviço Geográfi co Militar, voltando a ter a antiga denominação em 1932. Embora a Comissão Cruls tenha fi cado mais famosa, hoje se re- conhece o valor da chefi ada por Polli Coelho. Suas conclusões são ti- No ano de 1946, Polli criou o “Quadro de Topógrafos do Serviço das como absolutamente perfeitas, refl etidas após observações in loco General Djalma Geográfi co do Exército”, assim como o Curso de Topografi a para Ofi - Polli Coelho feitas no maior rigor e seriedade. Para que os melhores locais fossem ciais das Armas na Escola Técnica do Exército, hoje Instituto Militar de Acervo da Memória apontados a fi m de se erigisse a nova capital do Brasil, levaram em Institucional do Engenharia. O general era esperantista e admirador do positivismo. IBGE conta fatores como clima, geologia, solos para a agricultura, fontes de * Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatís- energia elétrica, suprimento de água, fl ora e fauna, vias de comuni- ticas – ENCE/IBGE, jornalista, Analista em Planejamento e Gestão de Informações Geográfi cas e Estatísticas no IBGE. cação, enfi m, todo um relatório de necessidades e de impacto sobre a General Polli Coelho segurando um enorme cristal na Região de Veadeiros, no Planalto Central 82 Acervo do IBGE perfis

região. O próprio general esteve percorrendo os caminhos do Planalto ça seja realizada com método e calma, iniciando-se a grande O general tomou posse e seus primeiros atos despertaram Central indicados pelas expedições que integravam a Comissão por operação com a criação e a organização do Distrito Federal, o desconfi anças na Casa. Mas o pior estava por vir, como num clímax de qual deverá ser colonizado, fl orestado, dotado de estradas de ele chefi ada. rodagem, de eletricidade etc., antes de ser iniciada a construção fi lme de suspense. Em fi ns de 1951, o jornal carioca Correio da Man- de qualquer grande cidade (COMISSÃO..., 1948, p. 6). hã divulgou uma nota solta acusando o IBGE de ser um “relógio de Feitos os estudos e avaliações pelos técnicos das duas expedições, platina atrasado”, pois era um aparelho caro que, contudo, falava de que percorreram milhares de quilômetros, a Comissão chefi ada por Polli Depois de ter remetido o relatório ao presidente, este o enviou um tempo passado, visto que seus resultados mais recentes se refe- se reuniu em uma espécie de plenário para decidir que local seria o mais para o Congresso, pela Mensagem 293, de 21 de agosto de 1948. Lá, o riam a anos bem anteriores. O presidente Polli se apressou em mandar apropriado. Havia duas correntes: uma defendendo a melhor localiza- uma resposta ao jornal. Ao invés de defender o Instituto, concordou ção no Triângulo Mineiro e outra apontando a área histórica já percor- tema fi cou em discussão por cerca de cinco anos, sofrendo as pressões que havia erros, mas se isentando deles, pois tinha recém-assumido. rida por Cruls e seus técnicos no interior de Goiás. Cada técnico pôde se políticas dos deputados que militavam na tendência “mineira” e dos E mais: com todas as letras, reconhecia de público que as estatísticas manifestar e após as discussões realizaram um pleito eleitoral entre os que defendiam a vertente “goiana”. O presidente seguinte, Getúlio membros. Por sete votos a cinco, venceu a que defendia o Quadrilátero Vargas, só iria tratar do assunto no fi nal de seu governo, justamente ibegeanas eram “realmente atrasadas, caras e, pior que tudo isso, de Cruls, no coração de Goiás. Isto em 7 de julho de 1948. naquele momento conturbado que já faz parte da História. duvidosa precisão.” (COELHO, 1952, p. 3).

Mas Polli queria se cercar de todas as certezas possíveis. Djalma Polli Coelho fi caria no comando do Serviço Geográ- Tais palavras foram sufi cientes para detonar uma bomba de Desde o ano anterior ele tinha enviado ofício pedindo a opinião do fi co do Exército até 1951, quando de lá saiu para assumir, no dia 2 muitos megatons no Instituto. Teixeira de Freitas e Waldemar Lopes Estado Maior do Exército, que lhe respondeu concordando com a de maio, a presidência do IBGE. Foi a primeira e única vez que um especialmente se incumbiram de demolir os argumentos do general indicação do Planalto de Goiás, conforme estava na Constituição, se- geógrafo chegou à presidência do órgão. Todavia, o período de sua presidente. Antigos e importantes técnicos da Casa pediram demis- gundo tinha sido defi nido pela Expedição de Louis Cruls (1848-1908) administração não foi um bom momento para o Instituto. são em desagravo às atitudes de Coelho. Começou na imprensa uma como o melhor local. batalha de artigos contra Polli, que tentava responder, mas não dava Com o fi m do governo Gaspar Dutra e a posse, em janeiro conta. Uma das manchetes dizia: “Teixeira de Freitas pulverizou Polli Em 12 de agosto de 1948, o general Polli Coelho entregou o de 1951, de Getúlio Vargas, presidente eleito no pleito do ano an- Coelho”, esclarecendo com minúcias os argumentos do fundador do relatório fi nal com a necessária justifi cativa, sugerindo áreas como terior, José Carlos de Macedo Soares (1883-1968) resolveu deixar a IBGE, defendendo a sua obra com a inteligência e a argúcia que lhes as mais indicadas. De forma geral, a Comissão concordava com o presidência do IBGE, que ocupava desde sua fundação, em 1936. Polli eram peculiares. defi nido no Quadrilátero Cruls, só indicando uma expansão dos 14 se interessou em ocupar aquela cadeira da Casa de Teixeira de Freitas 400 km2 para mais ao norte, mais próximo da Bacia Amazônica, to- que iria vagar e começou a se articular para isso. Buscou o apoio de Por fi m, o presidente Getúlio Vargas interveio e resolveu demitir 2 talizando 77 250km . Adhemar de Barros (1901-1969), político paulista que estava deix- o presidente do IBGE que ele nomeara. Polli saiu do Instituto pela porta dos fundos, sendo responsável pela maior crise da história da institu- No documento dirigido ao presidente Dutra, ele dizia: ando o cargo de governador de São Paulo, mas, como homem forte do Partido Social Progressista, da base do presidente eleito, tinha ição, quase provocando a sua extinção. Ele retornou ao Exército, onde se Se o Congresso Nacional aprovar a resolução fi nal que recolheu, lambendo suas feridas, como chefe do Departamento Técnico este relatório encaminha em primeiro lugar à alta consideração enorme infl uência. Embora Polli fosse um nome que não exatamente e de Produção.1 de Vossa Excelência, penso que a Nação brasileira poderá assis- agradasse aos funcionários da Casa, acabou contando com a con- eredas..de tir, dentro de pouco tempo, ao início de transformações políti- V cordância de Teixeira de Freitas (1890-1956), que via com bons olhos 1 Para mais detalhes sobre o que foi a chamada “Crise do IBGE”, ver: SENRA, Nelson. Histó- Brasília cas e econômicas da mais alta signifi cação. O interesse nacional rias das estatísticas brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. v. 3: Estatísticas organizadas (c- reclama, porém, no modo de ver desta Comissão, que a mudan- a presença de um homem de Geografi a na direção do IBGE. 936-c1972). Cap. 12-14. 83 perfis Ali a morte o alcançou, em 18 de outubro de 1954, quando Francis Ruellan: Veredas..de faleceu em sua residência, vítima de um fulminante ataque cardíaco. um mestre geógrafo em campo Brasília Talvez por conta de seu retiro e de mágoas não cicatrizadas, saiu no Marco Aurélio Martins Santos* seu obituário em O Globo um detalhe que não passa desapercebido: “a família dispensou as honras militares a que o general tinha direito” (GENERAL..., 1954, p. 8). Francis Ruellan1 veio ao mundo no dia 30 de setembro de 1894,

Polli Coelho foi um técnico respeitado, autor de uma obra na cidade de Rennes, capital da Bretanha, no noroeste da França. Seu consistente. Nela, destacam-se: História da triangulação do Distrito pai, François, era um modesto funcionário da ferrovia; sua mãe, Marie, Federal, Espigão mestre do Brasil e conceito geopolítico do Planalto ajudava no orçamento domiciliar como costureira. Central (que inclusive consta da Resolução no 388, da Assembléia O menino Francis fez seus estudos, do básico à graduação, Geral do CNE, de 21 de julho de 1948), O ponto mais oriental do Brasil em sua cidade natal. Formou-se em História e Geografi a pela Uni- e Geógrafos, cartógrafos e demarcadores, esta última, curiosamente, versidade de Rennes (que hoje está dividida em duas, com os depar- foi lançada no período em que era presidente do IBGE, mas saiu pelo tamentos de Ciências Sociais fi cando na Université Rennes 2 Haute Anuário do Serviço Geográfi co. Bretagne – Universidade de Rennes 2 Alta Bretanha). Sua formação era bastante eclética. Além de estudar Geografi a, frequentou, espe- cialmente depois da guerra, aulas no curso de Economia na Faculdade de Direito, de Mineralogia e Geologia na Faculdade de Ciências e no Museu de História Natural.

Depois de formado, ele foi convocado, aos 21 anos, para lutar na I Guerra Mundial contra a Alemanha e o império austro-húngaro. O soldado Francis Ruellan, que chegou à patente de tenente, esteve na frente de batalha até o fi m da guerra, em novembro de 1918. Quando o cessar-fogo foi declarado, ele estava em Estrasburgo, capital da Alsácia, no extremo leste da França, próximo à fronteira com a Alema- nha. Ali, ele conheceu Annette Scheer, com quem veio a se casar em

* Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatís- Francis Ruellan ticas – ENCE/IBGE, jornalista, Analista em Planejamento e Gestão de Informações Geográfi cas Acervo da Memória Institucional do IBG e Estatísticas no IBGE.

1 Para a elaboração deste perfi l o autor contou com a valiosíssima ajuda do professor Alain Ruellan, fi lho de Francis Ruellan, que lhe cedeu diversas informações. 84 perfis

1921. Deste casamento, nasceriam os fi lhos Claude, em 1924; Alain, Franco-Japonês do Kansai e não de Kyoto, embora esteja ali localiza- em 1931; e Jean, em 1932. do. Kansai é uma região da ilha de Honshu, na área centro-sul, da qual fazem parte seis províncias, entre elas, Kyoto e Osaka. De volta à Bretanha natal, ele foi nomeado professor de Geo- grafi a e História na comuna de Quimper, no extremo ocidental fran- À esta época, Francis Ruellan elaborava a sua tese de douto- cês, onde permaneceu por um ano (1923-1924), seguindo depois para rado sobre a geomorfologia da região de Kansai. Por esta ocasião, ele Brest, cidade portuária próxima, onde lecionou durante um ano na também fez viagens até à China, Manchúria e Sibéria. Neste perío- Escola Naval (1924-1925). do, Ruellan contou com a inestimável ajuda do eminente geógrafo o professor Emmanuel de Martonne (1873-1955), que ele considerava Em 1925, Francis Ruellan foi para o Japão, para trabalhar na como seu garnde mestre. Casa Franco-Japonesa, na capital, Tóquio, seguindo posteriormente para Kyoto, onde fundou e foi o primeiro diretor do Instituto Franco- Ruellan, sua esposa Annette e seu fi lho mais velho Claude, esti- Japonês do Kansai. Este estabelecimento foi criado por Ruellan, em veram no Japão entre 1925 e 1931. Quando Annette estava grávida de 1927, na colina de Kujoyama, no leste da cidade, com o objetivo de seu segundo fi lho, Alain, eles retornaram à França, numa longa viagem promover o intercâmbio entre Japão e França. Quando o geógrafo de navio que quase fê-la perder o bebê. Francis Ruellan e família – An- francês trabalhava em Tóquio, ele aproveitava para passar o verão em nette, Claude, Alain e o caçula Jean – permaneceram no país natal, mo- Kyoto, fazendo estudos e pesquisas no Monte Hiei, na parte nordeste rando nos arredores de Paris até 1934, quando ele precisou retornar ao da cidade. Um dia, ele teve a idéia de criar uma espécie de escola de Japão para concluir alguns trabalhos. Ele obteve os recursos necessários Francis Ruellan (de pé) e Alain verão, onde poderia ensinar o francês e também um pouco de Arte, do governo francês e seguiu para o país do Sol Nascente naquele ano, Ruellan (sentado ao lado, no caminhão) na Expedição A História, Geografi a, Filosofi a, aspectos da cultura francesa, de modo somente acompanhado da esposa, deixando os três fi lhos com os avós Acervo de Alain Ruellan geral. Sua proposta despertou o interesse de seus pares da Universi- maternos, em Estrasburgo. Após alguns meses, ele retornou à França, dade Imperial (atual Universidade Nacional) de Kyoto e também da concluindo sua temporada no Oriente em 1934, empreendendo a volta Universidade de Kansai. Restava só conseguir alguma entidade que ao continente europeu pelo trem Transiberiano. fi nanciasse a empreitada. Ruellan assumiu o cargo de diretor-adjunto de estudos em Por essa época, era embaixador francês no Japão o poeta e geografi a na École Pratique de Hautes Études, em Paris, lecionando dramaturgo Paul Claudel (1868-1955), que demonstrou vivo interes- também em diversos outros estabelecimentos de ensino. Em 1940, se no projeto de Ruellan, prometendo empenhar-se para conseguir publicou sua tese de doutoramento Le Kansai: étude géomorpholo- os recursos necessários. E o capital necessário veio de empresários gique d’une region japonaise (O Kansai: estudos geomorfológicos de eredas..de VBrasília industriais japoneses da cidade de Osaka, fi nanciadores do novo ins- uma região japonesa). Esta tese é considerada por estudiosos como tituto que, por conta de razões políticas, recebeu o nome de Instituto um importante avanço metodológico da geomorfologia moderna. 85 perfis Com a eclosão da II Guerra Mundial, em 1º de setembro de (Geografi a Humana). Um outro grande geógrafo francês, Pierre Mon- route! en route!”2, o que despertou um comentário jocoso deles, que Veredas..de 1939, Francis Ruellan foi convocado para o Exército, na patente de ca- beig (1908-1987), já ocupava a cátedra de Geografi a Humana desde perguntavam: “mas quem é esta Dona Rute?” Brasília pitão, sendo designado para o Estado-Maior por seus conhecimentos 1935, na Universidade de São Paulo. No período em que ele esteve atuando no CNG, participou de internacionais, especifi camente por ter vivido no Japão, um dos países Ainda neste ano, Francis Ruellan aceitou o cargo de consultor muitas expedições que levaram geógrafos do IBGE para vários lu- integrantes do Eixo. Em fevereiro de 1940, ele foi nomeado adido científi co do Conselho Nacional de Geografi a, criado em 1937, e que gares do País. Sobre Ruellan, escreveu Roberto Schmidt, autor de militar das embaixadas francesas instaladas na América Central e no no ano seguinte juntou-se ao Conselho Nacional de Estatística, com- excelente tese de doutorado sobre os tempos áureos da Geografi a norte da América do Sul. Ele deixou a França em 19 de abril de 1940, pondo o Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística – IBGE. do IBGE: por navio, em viagem que durou quase um ano, parando em New Em função de sua posição de liderança num período York (EUA), Porto Príncipe (Haiti), Santo Domingo (República Domi- Foi Ruellan quem estabeleceu uma espécie de “ponte” entre onde o IBGE possuía um enorme prestígio perante o governo nicana), Havana (Cuba), Panamá, Fort-de-France (Martinica), Caracas os alunos do curso de Geografi a da Faculdade Nacional de Filosofi a federal, seus projetos de excursões alcançavam qualquer par- te do Brasil, sem limitações de ordem fi nanceira ou logística, (Venezuela) até chegar no Rio de Janeiro (Brasil), onde aportaram em e o CNG. Ele levou vários de seus alunos para o principal órgão de podendo contar com um grande número de participantes, 11 de março de 1941, curiosamente em um navio japonês. Geografi a da época, com a devida anuência do então secretário-geral alunos da universidade ou profi ssionais de pesquisa do IBGE (ALMEIDA, 2000, p. 126). do Conselho, Christovam Leite de Castro (1904-2002), e de Fábio de Em 23 de março daquele ano, Francis Ruellan deu baixa no Macedo Soares Guimarães (1906-1979). Exército francês – pouco depois da França ter sido ocupada pela Ale- Há registros no IBGE dando conta que das principais excursões manha nazista - todavia permanecendo à disposição do Ministério Esta era uma de suas características principais: unir, em vincu- geográfi cas realizadas pelo IBGE, entre os anos de 1940 e 1950, 11 delas das Relações Exteriores da França. Foi nomeado professor de Geogra- lação estreita, o ensino teórico em sala de aula ao prático, no campo foram chefi adas por Francis Ruellan entre 1941 (“Baía da Guanabara e fi a da Faculdade Nacional de Filosofi a - FNF, no então Distrito Federal – especialmente – e no laboratório (para os geomorfológicos). Um Serra do Mar”) e 1951 (“Bacia do Rio São Francisco”). Entretanto, talvez (Rio de Janeiro). Ele fi caria neste cargo até 1956, formando toda uma defensor ardoroso do trabalho de campo, e também da fotograme- a mais signifi cativa entre todas tenha sido a que saiu do Rio de Janeiro, geração de geógrafos e professores de Geografi a. tria, da qual ele foi um especialista. Como escreveu, em artigo para em 1947, com o intuito de selecionar áreas para a construção da nova a Revista Brasileira de Geografi a, “Só existe geografi a de gabinete capital do Brasil, atendendo ao preceito constitucional que vinha desde Em 1941, quando entrou para o quadro docente da futura para o compilador. Para o pesquisador, serve apenas de complemento 1891 e se manteve nas Constituições de 1934 e 1946. Universidade do Brasil, ele substituiu um outro grande mestre fran- da investigação no campo que é a fonte viva de toda observação e cês: Pierre Deffontaines (1894-1978), que fundara a cadeira de Ge- O então presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) designou interpretação nova” (RUELLAN, 1944, p. 44-45). ografi a da Universidade de São Paulo, em 1935, e também lecionava o general Djalma Polli Coelho (1892-1954) para chefi ar uma comissão no Rio de Janeiro (até 1939), quando resolveu retornar para a França. Sua sólida disciplina e seu extremo senso de organização o encarregada de efetuar estudo no Planalto Central, com vias de pro- Ambos teriam – em momentos diferentes - signifi cativa participação celebrizaram entre seus alunos. Cybelle de Ipanema, atual presidente por espaços que poderiam ser adequados para a instalação da nova no Conselho Nacional de Geografi a – CNG. Nesta época, já leciona- do Instituto Histórico e Geográfi co do Rio de Janeiro, e que foi aluna Capital Federal do Brasil. Poli Coelho solicitou a participação do pres- vam Geografi a na FNF dois eminentes geógrafos brasileiros: Victor de Ruellan, além de partícipe de expedição comandada por ele, lem- tigiado Conselho Nacional de Geografi a nesta comissão, que por sua

Ribeiro Leuzinger (Geografi a Física) e Josué de Castro (1908-1973) bra que toda manhã ele acordava os técnicos em campo, dizendo “en 2 “A caminho! A caminho!” 86 perfis vez indicou dois eméritos geógrafos para chefi arem duas expedições Em 1956, retorna de vez para a França, estabelecendo residên- Fábio de Macedo Soares Guimarães: que deveriam percorrer o Triângulo Mineiro e parte do Estado de Goi- cia em La Richardais, próximo a Dinard. Aposentou-se em 1964, em- presença marcante em duas comissões ás para indicar as melhores áreas para a construção do novo Distrito bora continuasse a ministrar palestras na Europa e nas Américas. Marco Aurélio Martins Santos* Federal. Uma destas expedições foi comandada por Francis Ruellan Em 03 de outubro de 1975 veio a falecer em sua residência, em e a outra, por Fábio de Macedo Soares Guimarães com a consultoria La Richardais. Muito mais que a França, o mundo inteiro lamentou o técnica do célebre geógrafo alemão Leo Waibel (1888-1951). passamento de um verdadeiro sábio, um educador apaixonado pelo Fábio de Macedo Soares Guimarães nasceu no Rio de Janeiro, Ruellan partiu do Rio em 27 de junho de 1947, nas palavras trabalho prático em campo, alguém que devotou a vida à Geografi a e em 23 de abril de 1906, fi lho do jurista Celso Eprigio Guimarães e de de Alain Ruellan, fi lho do geógrafo e que participou, com 16 anos, da à formação de mais de uma geração de geógrafos. Noemia de Macedo Soares Guimarães. Fez suas primeiras letras no expedição, “com dezenas de pessoas, incluindo 40 cientistas, com o Colégio Pitanga, no Rio de Janeiro. Posteriormente, ele iria se transfe- objetivo de fazer o estudo detalhado de oito pré-áreas selecionadas, rir para o Colégio Santo Ignácio, onde concluiu ginásio e científi co. mas também regiões entre as áreas, a fi m de propor sítios específi - cos” (RUELLAN, 2005, p. 2, tradução nossa). Francis Ruellan, com sua Embora tenha vindo ao mundo em uma família de notáveis equipe multidisciplinar, percorreram cerca de 18 000 km, investigan- homens do Direito, ele veio a se formar como engenheiro-geógrafo e do aspectos geomorfológicos climáticos topográfi cos da região, assim civil, em 1928, pela Escola Politécnica. Um ano depois de formado, foi como relevo, vegetação, solos, potencial hídrico, tipo de ocupação hu- trabalhar na prefeitura da capital do Espírito Santo, onde permaneceu mana. Retornaram em 1o de setembro daquele ano, com o geógrafo até 1933. entregando minucioso relatório sobre a expedição e inclusive sugerin- do as melhores áreas. Uma delas, oito anos depois, a partir de outra Retornou então ao Distrito Federal, onde conseguiu emprego Annette Ruellan (ao centro) junto com excursão, foi a indicada para a construção de Brasília. outros membros da Expedição. como estatístico-cartógrafo no Serviço de Estatísticas da Produção do Acervo de Alain Ruellan Ministério da Agricultura. Em 1936, já casado com Marina Ribeiro Co- Em 1950, Francis Ruellan foi convidado para realizar um traba- rimbaba Guimarães, resolveu sem prejuízo do seu trabalho no Ministé- lho na Amazônia, onde esteve por várias vezes. rio da Agricultura, cursar Geografi a e História na Faculdade de Filosofi a Entre 1946 e 1956, ele se dividiu entre a França e o Brasil, da Universidade do Brasil, onde tirou licenciatura em 1940. Antes, em desenvolvendo inúmeros projetos tanto no âmbito acadêmico, nas 1937, ele tinha se transferido para o Instituto Nacional de Estatística, universidades de Rennes (França), do Brasil e de São Paulo, quanto integrando o grupo pioneiro formado por especialistas convidados a em trabalhos de campo em sucessivas excursões geográfi cas. Na sua colaborar com a política governamental envolvida, naquele momento, França natal, ele criou, em Dinard, região costeira a 80 km de Rennes, em unifi car o serviço estatístico federal naquele órgão. um laboratório de geomorfologia litoral, organizando e incentivando eredas..de V cursos, estágios, programas de pesquisas nos quais contaram com a * Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatís- Brasília ticas – ENCE/IBGE, jornalista, Analista em Planejamento e Gestão de Informações Geográfi cas participação de inúmeros geógrafos brasileiros. e Estatísticas no IBGE. 87 perfis Ali, naquele mesmo ano, Macedo Soares Guimarães foi um Outro trabalho de suma importância realizado por Fábio de Veredas..de dos fundadores do Conselho Nacional de Geografi a - CNG, que seria Macedo Soares Guimarães foi o referente ao cálculo do centro do Brasília incorporado, em 1938, pelo Conselho Nacional de Estatística - CNE, Brasil, que, ao contrário do que se pensava anteriormente, não se lo- formando o Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística – IBGE. No caliza no Estado de Goiás, mas no nordeste de Mato Grosso. novo órgão, alcançou elevados postos, chegando inclusive a secretá- rio-geral do CNG em duas oportunidades. Em 1945, ele chefi ava a Divisão de Geografi a do CNG e teve seu nome incluído na Comissão que seguiu para os Estados Unidos, Ao tempo em que era chefe da Seção de Estudos, do CNG, reali- visando do curso de aperfeiçoamento profi ssional. Deste grupo, fa- zou, a partir de 1941, os primeiros estudos sobre a divisão regional do zia parte os geógrafos Orlando Valverde (1917-2006), Lúcio de Castro Brasil, agrupando os estados brasileiros em Grandes Regiões, referên- Soares (1909-1986), Lindalvo Bezerra dos Santos e José Veríssimo da cia para estudos e análises das características físico-sócio-econômi- Costa Pereira (1904-1955) Lá, na Universidade de Wisconsin, estuda- cas do Brasil. Esta partição proposta por ele foi apresentada ao CNG, ram matérias que foram de extrema utilidade no planejamento regio- sendo bastante elogiada por não desmembrar as unidades políticas e nal, especialidade de Fábio de Macedo Soares Guimarães. Tornaram- por ajustar aspectos naturais como clima, vegetação e relevo, além se alunos de Leo Waibel (1888-1951), um dos grandes geógrafos do designar as Grandes Regiões, facilitando a atuação da administração mundo, que viria posteriormente ao Brasil a convite do CNG, vindo pública e do Estado como um todo. Estas partições, segundo Fábio, a trabalhar com Fábio na comissão de estudos para delimitar o local não deveriam ser escolhidas aleatoriamente, mas obedecendo “à dis- onde deveria se localizar o futuro Distrito Federal, no Planalto Central, posição determinada pela natureza, de modo a que cada uma delas atendendo ao dispositivo da Constituição de 1946. Fabio Guimarães no Planalto Central apresente uma unidade de conjunto, resultante da correlação entre os Acervo de Fabio Celso de Macedo A atuação de Fábio de Macedo Soares Guimarães foi marcante Soares Guimarães diversos fatos que nela se observem” (GUIMARÃES, 1941, p. 318). nos estudos encomendados para a defi nição do local onde deveria ser Isto infl uenciou a própria divulgação de pesquisas do IBGE, que erigida a nova capital do País, atendendo a uma antiga determinação passaria a tabular seus resultados segundo a distribuição dos estados constitucional de 1891 e repetida na Constituição de 1946. Por esta por suas respectivas regiões, tornando mais ágil a divulgação de da- recomendação, haveria de ser escolhido um local no Planalto Central dos agregados (estatísticas) sobre o País, proporcionando uma melhor onde se localizaria o novo Distrito Federal. Com a vinda ao Brasil do ação do governo em termos de planejamento espacial. geógrafo alemão radicado nos Estados Unidos Leo Weibel, contratado como consultor do CNG, traz novas luzes para a Geografi a no Brasil, A este tempo, ele já era considerado como um dos mais com- em particular a Agrária. Em 1947, foram criadas duas expedições para pletos geógrafos de sua geração e sua proposta de divisão regional a parte central do País, com o intuito de indicar sítios apropriados tornou-se ofi cial no País, pela Circular no 1, de 31 de janeiro de 1942, para a instalação da nova capital: a primeira sob orientação do gran- da presidência da República. de geógrafo francês Francis Ruellan (1894-1975); a segunda, sob a 88 perfis

responsabilidade de Fábio de Macedo Soares Guimarães, orientada feito ao tempo de Louis Cruls (1848-1908) e da Comissão chefi ada cientifi camente por Weibel. pelo general Djalma Polli Coelho (1892-1954). Já estava decidido que a nova capital seria localizada no Planalto Central do País, no “Pla- Tais expedições caracterizam claramente o “saber” e o “poder” nalto da Unidade Nacional” (ALBUQUERQUE, 1955, p. V), como dizia dentro das relações com o órgão de estatística e geografi a do Brasil. o general Polli. Conforme escreveu Fábio de Macedo Soares Guimarães: “a escolha da capital de um país é indiscutivelmente um problema político, mas os A Comissão José Pessoa defi niu cinco sítios, denominados por fundamentos são essencialmente geográfi cos. É perfeitamente correto cores (Verde, Azul, Vermelho, Amarelo e Castanho), sendo quatro de- denominá-lo um problema geopolítico. O político aponta os objetivos les inteiramente localizados no Estado de Goiás e um incluindo um que se têm em vista, o geógrafo lhe fornece os elementos em que ele se pedaço de terras ao noroeste de Minas Gerais (o Sítio Vermelho). Por decisão unânime da Comissão, o sítio escolhido foi o Castanho. fundamentará para atingir tais objetivos” (GUIMARÃES, 1949, p. 496).

Dessa comissão, além do marechal Pessoa e Fábio de Macedo De 1952 a 1954, ele esteve cedido à Escola Superior de Guerra, Soares Guimarães, participaram 14 outros técnicos, a maior parte quando retornou ao IBGE para ser o primeiro secretário-geral saído dos engenheiros. E ainda contaram com a colaboração técnica de 16 ou- quadros do CNG. Ele voltaria a ocupar este cargo no ano de 1961. tros especialistas, incluindo o cartógrafo do IBGE Allyrio Hugueney

E como secretário do CNG ele faria parte, entre 1953 e 1955, de Mattos (1890-1975). da Comissão para Localização da Nova Capital Federal, primeiramente Como já tinha participado de uma expedição ao Planalto para chefi ada pelo general Aguinaldo Caiado de Castro (1899-1963), pos- a mesma fi nalidade, a atuação presente de Fábio na Comissão José teriormente comandada pelo marechal José Pessoa Cavalcanti Albu- Pessoa foi de extrema valia. Sua competência como geógrafo, sua querque (1885-1959). Era a terceira oportunidade para se fazer cum- especialidade em regionalização foi capital para a boa consecução Fabio de Macedo Soares Guimarães prir o antigo preceito constitucional que vinha desde 1891. E Fábio dos trabalhos técnicos daquela Comissão. foi a única pessoa que participou de duas comissões com o fi m de delimitar o espaço onde deveria ser erigido o novo Distrito Federal: No ano de 1950, Fábio de Macedo Soares Guimarães publicou em 1947-1948 e 1953-1955. no Boletim Geográfi co uma série de artigos antes reunidos no “Pa- recer sobre o aspecto geográfi co da questão de limites Minas Gerais Na Comissão José Pessoa, que se reunia na sede da Compa- – Espírito Santo”, onde tratou do conceito de serra e seus desdobra- nhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba - mentos com o intuito de apresentar a visão estritamente geográfi ca Veredas..de Brasília CODEVASF, Fábio representava o IBGE, e o próprio CNG. Ali, eles dariam a respeito da questão envolvendo os limites entre os dois estados. o necessário prosseguimento aos trabalho, examinando o que se tinha Ele deixa claro que era sua visão pessoal, mas é possível perceber 89 perfis tratar-se de obra de fôlego, muito bem fundamentada na literatura Universidade Católica – PUC, de 1943 a 1979, chegando, inclusive Leo Waibel: Veredas..de acadêmica e com refl exões signifi cativas. a dirigir o Departamento de Geografi a desta Universidade. Do IBGE, uma referência entre mestres Brasília aposentou-se em 1968, dedicando-se exclusivamente ao magistério Além de preocupar-se em estudar e entender a questão territo- Marco Aurélio Martins Santos* até falecer em 4 de janeiro de 1979, deixando além de sua viúva, rial brasileira, Fábio de Macedo Soares Guimarães também se cuidava dois fi lhos: o economista Fabio Celso e o diplomata Luis Felipe. Foi de reverenciar seus pares, como o fez, por exemplo, em conferência também professor de Geografi a do Instituto Rio Branco, que forma proferida no Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro, em 28 de ju- O geógrafo Leo Henrich Waibel nasceu em 22 de fevereiro de diplomatas para o Itamaraty. nho de 1955, homenageando o centenário de nascimento do baiano 1888, na cidade alemã de Kützbrunn, na região norte do Estado da Baviera. Seu pai, Ludwig Waibel, era professor, e sua mãe, Theresa Teodoro Sampaio, a quem alcunhou de geógrafo (avant la lettre, na- Macedo Soares Guimarães escreveu vasta e importante obra Waibel, dedicada às prendas do lar. turalmente). científi ca, sendo publicado em diversos órgãos acadêmicos. Vale a Em 1894, entrou para a escola primária em sua cidade natal, Fábio esteve no exterior em diversas ocasiões, participando pena destacar: Divisão regional do Brasil, O Planalto Central e o pro- concluindo ali o curso fundamental, em 1899. Por esta época, sua famí- como convidado ou como representante do Brasil em eventos inter- blema da mudança da capital do Brasil, Distinção entre serra e divi- lia mudou-se para Heidelberg, onde o jovem Leo cursou o secundário nacionais. Um deles, por exemplo, foi a V Reunião Pan-Americana de sor de águas, entre muitos. entre 1900 e 1907. Com 19 anos começou seus estudos universitários, Consulta sobre Geografi a, realizada em Quito, no Equador, em 1959, Em 2006, o IBGE, por intermédio do seu Centro de Documenta- graduando-se em Geografi a e Ciências Naturais nas universidades de onde ele presidiu a Comissão de Geografi a. Além dele, estavam pre- ção e Disseminação de Informações, promoveu um seminário come- Heidelberg e de Berlim - onde esteve por algum tempo, retornando sentes na delegação brasileira Orlando Valverde e Carlos Delgado de morativo pelo seu centenário de nascimento, evento que contou com depois à cidade em que morava para concluir sua graduação. Carvalho (1884-1990). o apoio do Departamento de Geografi a da Universidade Federal do Seu interesse inicial tinha se focado nas ciências biológicas. Além de geógrafo de grande renome, ele também se distin- Rio de Janeiro – UFRJ e do Departamento de Geografi a da Pontifícia Entretanto, após ter assistido palestras do eminente professor Alfred guiu como professor, lecionando Geografi a do Brasil na Pontifícia Universitária Católica - PUC. Hettner (1859-1941) ele mudaria de ideia. Hettner é considerado um dos fundadores da Geografi a Moderna, inclusive tendo infl uenciado geógrafos russos. Waibel tornou-se discípulo de Hettner e voltou-se para a Geografi a, especializando-se na Biogeografi a, chegando inclu- sive a publicar trabalhos no campo da Zoogeografi a e Fitogeografi a. Particularmente esta última seria o seu grande interesse por toda a vida. Mas Waibel também desenvolveu pesquisas na Geografi a Huma- na, também por estímulo de seu mestre.

* Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatís- ticas – ENCE/IBGE, jornalista, Analista em Planejamento e Gestão de Informações Geográfi cas e Estatísticas no IBGE. 90 perfis

Em 1911, quando contava com 23 anos, Leo Waibel defendeu de vida da África Meridional, com contribuições científi cas extrema- Quando teve a chance, partiu para a América Central (em 1938) tese de doutoramento na Universidade de Heidelberg, sobre zooge- mente valiosas. Ele ainda publicaria outros trabalhos analisando a ve- e em seguida, em 1939, transferiu-se para os Estados Unidos, onde ografi a na África tropical. Após isso, ele conseguiu emprego como getação, clima e morfologia do sudoeste africano. lecionou na Universidade John Hopkins, a convite de Isaiah Bowman, assistente do professor Franz T. Thorbecke (1875-1945) e o acompa- Em 1920, iniciou sua carreira universitária no magistério, vin- e atuou intensivamente na American Geographical Society, onde en- nhou numa expedição científi ca à República de Camarões, na África culando-se como professor adjunto e assistente do Prof. Thorbecke, controu fraterna acolhida da comunidade acadêmica. Entre 1941 e Ocidental, patrocinada pelo Deutsche Kolonialgesellschaft (Socieda- na Universidade de Colonia, e posteriormente do Prof. Albrecht Penck 1946, ele lecionou na Universidade de Wisconsin, onde teve três geó- de Colonial Alemã), onde fi cou por dois anos. Esta viagem ampliou (1859-1945), na Universidade de Berlim. Em 1923, foi convidado para grafos brasileiros como alunos. O primeiro deles foi Jorge Zarur, emi- sobremaneira seus conhecimentos. Em seu relatório, ele destacava a assumir cátedra e dirigir o departamento de Geografi a da Universida- nente geógrafo pioneiro do Conselho Nacional de Geografi a – CNG, e ocupação humana naquele espaço, em que se contrastavam fl orestas de de Kiel (Christian Albrechts Universitat zu Kiel), onde permaneceu do próprio Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística – IBGE. Ele foi e pastagens. Ele registrou em suas observações que lá fi zeram uma de 1923 a 1930. Neste cargo, desenvolveu interesse pela Geografi a a Wisconsin pós-graduar-se em Geografi a Regional, em 1943, e teve “investigação antropogeográfi ca fi siológica da adaptação do Homem Econômica, particularmente na Geografi a Agrícola, especialidade em Waibel um mestre referencial. Em 1945, foi a vez de outros dois ao meio ambiente” (BROEK, 1952, p. 287, tradução do autor), que seria onde se destacaria internacionalmente. Enquanto lecionava naquela pioneiros do CNG e do IBGE irem a Wisconsin ter aulas com Weibel: de extrema valia posteriormente em sua carreira. universidade, esteve no México e no sudoeste dos Estados Unidos, en- Fabio de Macedo Soares Guimarães e Orlando Valverde. Eles convida- tre 1925 e 1926, em viagem de estudos, que gerou, inclusive trabalhos ram o mestre para vir ao Brasil, como consultor do CNG, convite pron- Em 1914, Waibel foi para a Namíbia, possessão alemã no su- científi cos bastante signifi cativos, como A sierra Madre de Chiapas, tamente aceito, embora estivesse com alguns problemas de saúde. doeste africano, integrando a expedição chefi ada por Fritz Jaëger tido como modelar na interpretação geográfi ca de uma região com (1881-1966), geógrafo alemão que passou boa parte de sua vida es- base em trabalho de campo. Com o fi m da guerra, Leo Waibel recebeu convites de universida- des de seu país, especialmente de Heidelberg, onde ocuparia a cátedra tudando o Continente Africano. Lá, os cientistas foram surpreendidos Ainda em Kiel, recebeu o convite para suceder Alfred Philipp- de seu mui querido mestre Alfred Hettner. Todavia, ele – que tinha se pela eclosão da I Grande Guerra, sendo obrigados a interromperem son (1864-1953) na cadeira de Geografi a da Universität Bonn (Uni- os trabalhos de campo para se engajarem como guardas territoriais versidade de Bonn), onde atuou entre 1929 e 1937. naturalizado cidadão norte-americano desde 21 de maio de 1945, recu- da colônia. Posteriormente, Waibel foi preso pelo exército inglês, mas sou todos os convites, preferindo vir para o Brasil, como consultor téc- Em 1933, ele publicou um livro contendo cinco ensaios sobre conseguiu permissão para voltar às pesquisas e, com isso, se embre- nico, com tempo integral para se dedicar às pesquisas, fato este que lhe geografi a agrícola que se revelou como uma esplêndida contribuição nhou pelo Território Namíbio. Pelos cinco anos seguintes à sua chega- dava muito prazer. Além disso, ele tinha tomado gosto pela aventura, para os fundamentos teóricos da ciência. da à África, ele ampliou ainda mais seu vasto conhecimento científi co desde seus tempos de jovem desbravador do Continente Africano. Desde aquele ano, a Alemanha estava sob o comando do partido adquirido naquele continente. nazista e com o passar dos anos as restrições impostas às universidades No Brasil, fez sua primeira viagem para o centro do País, via- Como fruto de seus anos de pesquisas em terras d’África, pu- acabaram por desagradá-lo. Sob marcação cerrada do governo hitleris- gem esta que rendeu o artigo “Vegetação e uso da terra no Planalto blicou trabalhos importantes como Contribuição para a geografi a do ta, foi obrigado a se aposentar em 1º de novembro de 1937 e proibido Central”, publicado na Revista Brasileira de Geografi a, em jul./set. de sudoeste africano, com Jaëger, e Da mata virgem ao deserto, este de lecionar. E para complicar ainda mais a situação, ele era casado com 1948. Para muitos especialistas, esta é uma obra seminal, “entre os eredas..de VBrasília sozinho, obra que alcançou enorme sucesso junto à comunidade aca- uma mulher judia. Ainda assim, ele conseguiu desenvolver alguns estu- melhores trabalhos que se produziram sobre região brasileira”, con- dêmica, por descrever com maestria e cuidadosa metodologia o modo dos voltados para a Geografi a Agrária da América Tropical. forme escreveu Nilo Bernardes (1952, p. 199-200). 91 perfis Em 1947, fez parte da Missão Polli Coelho, como orientador carinhosamente por antigos alunos e amigos diletos. Poucas semanas Veredas..de científi co da expedição que tinha como meta encontrar o local mais após seu retorno, “a mais indesejada das visitas”, na forma de um ata- Brasília apropriado para que fosse implantada a nova capital do Brasil, aten- que cardíaco, o surpreendeu no dia 4 de setembro de 1951, na cidade dendo a um preceito constitucional que vinha desde 1891. de Heidelberg onde sua vida acadêmica começara. Partia do mundo dos vivos deixando vasta e imprescindível obra. Ele participou da chamada “Segunda Expedição”, chefi ada por seu ex-aluno Fábio de Macedo Soares Guimarães, onde Waibel era o principal consultor científi co. Esta expedição tinha o fi to de fazer estudos regionais em si e em relação ao Território Nacional como Referências destes perfi s um todo. Este agrupamento de técnicos saiu do Rio de Janeiro em ALBUQUERQUE, José Pessoa Cavalcanti de. Relatório Final da Comissão de 04 de julho de 1947, retornando em 22 de setembro, perfazendo Localização da Nova Capital. Rio de Janeiro, 1955. 181 p. Mimeografado. 80 dias em atividade de campo, percorrendo 10 300 km em pleno ALMEIDA, Roberto Schmidt. A Geografi a e os geógrafos do IBGE no período 1938-1998. 2000. 712 f. Tese (Doutorado)-Programa de Pós-Graduação em coração do Brasil. Geografi a, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. BERNARDES, Nilo. Leo Waibel. Revista Brasileira de Geografi a, Rio de Janei- Após a conclusão deste trabalho, Leo Waibel se dedicou a aju- ro: IBGE, v. 14, n. 2, p. 199-200, abr./jun. 1952. dar a formar no campo uma nova geração de geógrafos brasileiros. BOEK, Jan. O. M. Leo Heinrich Waibel: an appreciation. Geographical Review, New York: American Geographical Society, v. 42, n. 2, p. 287-292, abr. 1952. Também se aplicou em estudar a colonização do País. Em suas pa- COELHO, Djalma Polli. A questão do Conselho Nacional de Estatística. Rio de lavras: “O nosso modo de encarar a colonização é espacial: onde há Janeiro: IBGE, jan. 1952. 44 p. ainda terra disponível para expansão do povoamento? De que espécie COMISSÃO DE ESTUDOS PARA A LOCALIZAÇÃO DA NOVA CAPITAL DO BRASIL. Relatório técnico: contendo a justifi cação da resolução fi nal tomada pela é a terra? Quanta gente sustentaria ela? Qual será a maneira de usar comissão, quanto à localização do novo Distrito Federal. Rio de Janeiro, 1948. a terra?” (BERNARDES, 1952, p. 200). pt.1 v. 1, GENERAL Polli Coelho. O Globo, Rio de Janeiro, p. 8. 19 out. 1954. Waibel fez várias viagens pelo Brasil, especialmente para o sul, GUIMARÃES, Fábio de Macedo Soares. Divisão regional do Brasil. Revista excursões estas que geraram artigos publicados na Revista Brasileira Brasileira de Geografi a. Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, n. 2, p. 318-373, abr./jun. 1941. de Geografi a e no Boletim Geográfi co. Alguns tiveram repercussão ______. O Planalto Central e o problema da mudança da capital do País. no exterior, sendo republicados em publicações estrangeiras, como a Revista Brasileira de Geografi a. Rio de Janeiro: IBGE, v. 11, n.4, p. 471-542, out./dez. 1949. Geographical Review. RUELLAN, Alain. Le choix du site de Brasília: rôle des expéditions géographi- ques de juin – septembre 1947. Montpellier, 2005. Disponível em : . ocupar a cátedra de Geografi a na Universidade de Minesotta e tam- Acesso em: fev. 2010. bém atuar na União Geográfi ca Internacional. No ano seguinte, retor- RUELLAN, Francis. O trabalho de campo nas pesquisas originais de geografi a regional.. Revista Brasileira de Geografi a, Rio de Janeiro: IBGE, v. 6, n. 1, p. Leo Waibel nou à Alemanha natal, já com a saúde bastante abalada. Foi recebido 35-45, jan./mar. 1944. Acervo do IBGE 92 Brasília, codinome Vera Cruz: a comissão engenheira que fundou as bases da construção da nova capital

Luiz Henrique G. Castiglione*

Palácio da Alvorada em construção Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal A história de Brasília parece reafi rmar a percepção de que é a emoção que põe os homens em movimento. A razão os equilibra, dá certa coe- rência ao movimento. A força motriz, entretanto, parece mesmo produzida pela emoção, pelos idealismos, pelas paixões, pelo amor e o entusiasmo que a emoção instila. Os relatos sobre a construção de Brasília com frequência se referem à doação de corpo e alma daqueles que dela participaram. As doações de corpo e alma, entretanto, não se restringiram à construção. Aliás, a construção encerra e corporifi ca um trabalho que começa muito tempo antes, mas que, no entanto, não deixa palácios que parecem fl utuar sobre as águas e, por isso, mais facilmente são esquecidos e tornados pouco importantes. O texto que se apresenta a seguir trata dos trabalhos da Comissão de Localização da Nova Capital Federal – CLNCF, instituída em junho de 1953. Nos documentos que se consegue recuperar das atividades desta Comissão, não faltam evidências de um trabalho apaixonado. Um trabalho orientado não apenas à busca de um local, um sítio para a nova Capital, mas também à produção mais abrangente possível dos estudos básicos de engenharia que deveriam anteceder os anteprojetos e projetos que orientariam a construção. Defi nitivamente, esta não foi uma Comissão diletante. A paixão pela causa que a movia, a transferência da Capital para o Planalto Central, jamais a deixou perder de vista o objetivo de promover os estudos básicos necessários à materialização consequente do sonho. Esta é sua marca principal, e talvez a razão do pouco reconhecimento his- tórico da importância de seu trabalho. Afi nal, em face do justo deslumbramento que a arquitetura de Brasília provoca em quem a contempla, quem iria se interessar pelos estudos básicos de engenharia que suportaram tão belo empreendimento?

A rigor, esta é mais uma comissão de cstudos de cngenharia e crbanismo do que uma cxpedição ceográfi ca. Há expedições no sentido tra- dicional, como houve nas missões anteriores de Luiz Cruls e de Polli Coelho; no entanto, os estudos aqui empreendidos para a escolha do local tiveram mais suporte nos métodos ditos indiretos, aerofotogrametria, do que nos métodos diretos de exploração de campo. Os trabalhos partem da defi nição, por lei, de um retângulo no Planalto Central. Neste quadrilátero os estudos deveriam identifi car, de acordo com critérios preestabele- cidos, cinco locais, cinco sítios, na terminologia usada pela lei, com potencial para localização do núcleo urbano da futura cidade. Defi nido o sítio, os objetivos da Comissão deveriam se voltar para a defi nição da área do distrito que envolve o núcleo urbano, que neste caso é o Distrito Federal.

* Engenheiro Cartógrafo, Doutor em Ciência da Informação, Professor no Departamento de Engenharia Cartográfi ca, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Consequentemente, num primeiro momento, resultariam do trabalho de quatro anos antes e decorria do Relatório Geral da Comissão Polli A rigor, a lei guarda certa dissonância com a realidade da épo- Veredas..de da Comissão a defi nição do melhor local para a construção da cidade Coelho, que havia, em linhas gerais, mantido o chamado retângulo de ca, na medida em que estabelece objetivos e prazos que são de difícil Brasília e a delimitação de seu distrito. Aprovados sítio e delimitação do dis- Cruls, como a área proposta para o futuro Distrito Federal (SILVEIRA, conciliação. Defi ne que os estudos deverão considerar as questões trito, os trabalhos da Comissão deveriam se voltar para os estudos das 1957, p. 267-268). É deste ano de 1948, também, a Resolução no 388, referentes a: clima e salubridade favoráveis, facilidade de abaste- condições à construção e transferência da Capital Federal para esta da Assembleia Geral do Conselho Nacional de Estatística - CNE, que cimento de água e energia elétrica, facilidade de acesso às vias de nova cidade. Simples assim. Com base numa descrição assim sintética, considerava segundo Silveira (1957, p. 267) que “a construção da nova transportes terrestres e aéreos, topografi a adequada, solo favorável parece até que Brasília surgiu de um nada, como por vezes dizem as Capital do Brasil é poderoso instrumento de que dispõe a Nação para às edifi cações e existência de materiais de construção, proximidade de versões da história. provocar a mudança de rumos que a vida nacional reclama.” terras para cultura e paisagem atraente. Por métodos convencionais à época, ou seja, por levantamentos diretos no campo, seria necessária O objetivo deste texto é descrever a essência dos trabalhos pro- Duas outras questões amplas podem, talvez, sinalizar as razões a mobilização de um enorme contingente de técnicos para execução movidos de 1953 a 1956, por conta da atuação de uma Comissão do desta longa hibernação de 1948 a 1953: a primeira, relativa a pouca do previsto. Não se teve acesso a registros que evidenciassem a ra- Governo Federal que, trabalhando quase apenas por amor à ideia da prioridade desta imediata questão, em face da observação de Boris zão do prazo de três anos. Em face da cultura política brasileira, não interiorização da Capital Federal, lançou as bases que viabilizaram a Fausto (2004, p. 404) de que “as manobras para a sucessão presiden- parece absurdo especular que este prazo foi concebido para que os construção da cidade em prazo recorde. Como se intentou aqui evi- cial começaram antes de Dutra completar a metade de seu mandato. estudos se concluíssem quando do término do mandato presidencial denciar, é mítica a ideia de que a cidade se fez quase de um nada. Não Getúlio aparecia como um polo de atração.” A segunda questão ampla àquele tempo em vigor, janeiro de 1956, quando se encerraria o go- fossem as paixões que engendraram a gênese de codinome Vera Cruz, parece se ater à pouca, ou nenhuma, crença que Getúlio destinava à transferência da Capital. Ronaldo Costa Couto, em seu livro Brasí- verno Getúlio Vargas. Outra opção é que se pensou, mesmo, em usar a revelação à luz da bela Brasília teria se dado em outro momento, e, lia Kubitschek de Oliveira, transcreve história do jurista Vicente Rao métodos indiretos – aerofotogrametria – para os levantamentos que provavelmente, em outras condições. que, tratando da questão mudança da Capital com Getúlio, havia dito instruiriam a defi nição dos cinco sítios. ao presidente que alguém poderia, depois dele, efetivar a mudança. Seja como for, o fato é que a Lei no 1.803 avança bastante numa Getúlio teria respondido simplesmente: “[...] só se for um maluco!” questão importante. Ela confi na os estudos a uma área aproximada (COUTO, 2006, p. 9). Contextualização inicial de 52 000 km2, chamada de Retângulo do Congresso. (KUBITSCHEK, o Sejam quais forem as razões, a Lei n 1.803, de janeiro de 1953, 1975, p. 25). Trata-se de um quadrilátero geodésico, defi nido por duas O marco inicial é o fi m da longa hibernação da questão da é promulgada e, logo na sequência, para operacionalizar sua execu- seções de meridianos (46o 30’ e 49o 30’ Oeste de Greenwich) e duas Capital Federal no Congresso e a promulgação da Lei no 1.803, de ja- ção, são postos em vigor o Decreto no 32.976, de junho de 1953, que seções de paralelos (15o 30’ e 17o Sul). neiro de 1953. A promulgação interrompeu um longo descaso com a cria a Comissão de Localização da Nova Capital Federal – CLNCF e defi - Mensagem no 293, de agosto de 1948, enviada ao Congresso pelo Pre- ne sua composição e sua competência; e, o Decreto no 33.769, de se- Em termos metodológicos amplos, o estudo deveria abran- sidente Dutra, como decorrência dos trabalhos da Missão Polli Coelho tembro de 1953, que complementa o anterior e defi ne a constituição ger toda a área do Retângulo do Congresso, enfocando cada um dos (KUBITSCHEK, 1975, p. 25), que tratou da questão da seleção de locais dos órgãos deliberativo e executivo da CLNCF, como Diretoria Técnica condicionantes defi nidos pela lei – clima e salubridade, topografi a, adequados à nova Capital. O projeto de lei original era de pouco mais e Secretaria Administrativa. etc. Depois, analisando espacialmente a articulação destes fatores no 94 território do Retângulo, o estudo deveria selecionar os cinco sítios que minada altura do processo, que poderia, na hipótese de uma deci- apresentassem a melhor solução de compromisso entre os condicio- são equivocada, ter comprometido todo o desenvolvimento futuro nantes. A escolha do local, em que se situaria a futura cidade, sairia e mesmo a viabilização do resultado fi nal. A decisão de Caiado de da avaliação dos cinco sítios e da defi nição de qual sítio melhor se Castro de contratar estudos para a análise dos sítios potenciais para adequaria ao estabelecimento da Capital Federal. a localização da nova Capital, com uso da fotointerpretação de foto- grafi as aéreas, parece ser um desses casos. Não foram encontradas Vale destacar duas questões complexas que se associam ao pro- evidências textuais que manifestassem as razões do presidente da cesso: a primeira é de que haveria subjetividade na consideração da CLNCF, no tempo de Getúlio Vargas, para a tomada desta decisão. importância relativa de cada fator. Ordenar os sítios segundo uma série No entanto, parece bastante razoável considerar que se os estudos de adequabilidade poderia não ser fácil; a segunda é de que haveria tivessem se desenvolvidos por métodos convencionais, por meio de questões de sigilo sérias envolvidas no processo, uma vez que a defi - estudos diretos no campo, e não indiretamente, através de aerofoto- nição do sítio poderia ensejar uma corrida especulativa à compra das grafi as, os dados básicos necessários ao lançamento da construção terras da região, difi cultando, encarecendo e até colocando sob o risco de Brasília, no início do governo de Juscelino Kubitscheck, a tempo Getúlio Vargas com o general de impasses jurídicos o processo de desapropriação necessário à cons- Caiado de Castro e Juscelino de terminá-la antes do fi nal de seu mandato, não estariam prontos. Kubitschek trução da cidade. No caso do processo que aqui se reporta, para pre- Acervo da Fundação A questão das razões pelas quais Caiado de Castro se decidiu pelo servar o sigilo do posicionamento de cada sítio no território estudado, Getúlio Vargas – uso de um método não convencional, inovador para a época, pode FGV/CPDOC eles foram identifi cados apenas por cores. O sítio afi nal escolhido, por O presidente Eurico Dutra no seguir como objeto de pesquisa. IBGE, entre Macedo Soares e exemplo, foi o chamado Sítio Castanho1. Teixeira de Freitas Acervo da Memória Se o governo Getúlio Vargas orientava-se pela aparente pouca Institucional do IBGE crença de seu líder na mudança da capital, tudo leva a crer que o general Caiado de Castro, chefe do Gabinete Militar e um dos mais O início dos trabalhos da CLNCF próximos e fi éis colaboradores do presidente, tenha atuado de forma sob a presidência do general pragmática na condução da CLNCF. Ele precisava não deixar dúvidas de Aguinaldo Caiado de Castro que a Comissão operava, ainda que, em termos de equipe, ela parecesse reduzida a seu presidente. Se foram pressões políticas que levaram à A análise de um processo de longa duração que transcorreu sanção da Lei no 1.803 por Getúlio, não havia mesmo porque criar de forma adequada, quando feita a posteriori, muitas vezes esmaece mais uma zona de atrito político com sua não implementação. Neste a percepção de um importante ponto de infl exão, situado em deter- contexto, parece ainda importante considerar que os anos de 1953 e

1 Cada um dos cinco sítios era identifi cado por uma cor. Eles eram sítios vermelho, amarelo, 1954 não foram fáceis para o governo de Getúlio Vargas. O ano de eredas..de azul, verde e marrom, ou, na palavra que se usava à época para esta cor, castanho. Em Portugal, V esta cor continua sendo identifi cada até hoje pela palavra castanho, que, afi nal, parece ser mais 1953, primeiro de vigência da nova lei, é um ano marcado por uma Brasília empática do que a palavra marrom. Mesmo no Brasil, coisas podem ser marrom, mas olhos e cabelos, neste mesmo tom, são castanhos. série de greves importantes, dentre elas a greve geral de março em São 95 Paulo e a greve geral dos marítimos em junho, no Rio de Janeiro, Santos aconselhado a usar a fotogrametria, porque somente através dela se Veredas..de e Belém (FAUSTO, 2004, p. 412). Entre junho e julho de 1953, Getúlio poderia dar conta do prazo de três anos defi nido pela Lei no 1.803. Brasília modifi cou seu ministério (FAUSTO, 2004, p. 410), o que voltou a fazer E, ao fi m e ao cabo, Caiado de Castro havia sido um comandante em fevereiro de 1954 (FAUSTO, 2004, p. 415), em meio às turbulências militar ativo na Segunda Guerra Mundial, na qual a fotografi a aérea de um momento político delicado. Considerando a proximidade e o de reconhecimento teve um papel muito importante em termos papel importante, inclusive em termos políticos, que o general Caiado estratégicos. de Castro tinha na Presidência da República2, parece difícil imaginar que Entretanto, fora do Serviço Geográfi co do Exército, a técnica Imagem de aerofotogrametria com ele tenha podido, neste período de relativa e crescente conturbação, a respectiva análise fotogramétrica não era ainda usual. Este era um tempo no qual a dedicar pouco mais que alguns poucos momentos eventuais às Acervo do IBGE cartografi a nacional em escalas superiores a 1:250 000 era privativa providências com a CLNCF. das Forças Armadas. Um trabalho apresentado no Congresso Brasileiro Em face destas circunstâncias, valorizam-se as duas mais de Geografi a de 1954 por Allyrio Hugueney de Mattos ilustra muito importantes e pragmáticas decisões que toma Caiado de Castro bem como ainda era incipiente o uso da técnica fotogramétrica. à frente da Comissão. A primeira a de contratar, ainda em 1953, o Numa argumentação que os mais de 50 anos decorridos tornam ainda recobrimento de toda a área do futuro Distrito Federal com fotografi as mais valiosa, Allyrio, então Diretor de Cartografi a do Conselho Nacional aéreas métricas, através das quais se é possível produzir mapeamentos de Geografi a - CNG/Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística - com precisão. A aerofotogrametria da área, hoje uma solução quase IBGE, professor emérito da Universidade do Brasil e uma das maiores óbvia em relação a um problema desta natureza, não era à época um autoridades brasileiras em Geodésia e Cartografi a, observa que método convencional. Apenas duas eram, a este tempo, as principais “um mapa moderno deve ser executado com o auxílio do método empresas privadas aparelhadas à execução de aerofotogrametria: a aerofotogramétrico, que não só reduz o tempo e o custo do trabalho, VASP Aerofotogrametria e a Serviços Aerofotogramétricos Cruzeiro como também enriquece os detalhes e isso tudo, sem prejuízo da do Sul, a primeira de São Paulo e a segunda do Rio de Janeiro. A precisão.” (MATTOS, 1954a, p. 13). Neste mesmo trabalho, que por utilização da técnica da fotogrametria no mapeamento, àquele razões não muito claras despertou polêmicas à época (MATTOS, 1954b, tempo, era predominantemente feita pelo Exército, através do Serviço p. 1), Allyrio (1954a, p. 17) trata de outras iniciativas da fotogrametria Geográfi co, o que pode em parte explicar a decisão do general Caiado no nível regional, que antecederam o uso da técnica nos estudos de de Castro. Se, pelo bom senso, se pode especular que ele tenha feito localização da nova Capital, como no caso do vale do rio São Francisco. consultas antes de tomar a decisão, tudo leva a crer que o tenham De uma maneira geral, em termos civis, os usos mais importantes da fotogrametria no Brasil se davam em áreas urbanas.

2 O general Caiado de Castro participou ativamente, ao lado de Getúlio, de todos os desdo- Caiado de Castro contratou o levantamento aerofotogramétrico bramentos da crise que levou o presidente ao suicídio. Saiu da vida militar, após o governo Getúlio. com a Cruzeiro do Sul, mas não contratou a chamada restituição das 96 fotos, ou seja, a elaboração dos mapas a partir destas fotos aéreas. O to, tendo tido uma longa carreira de realizações acadêmicas e de recobrimento fotogramétrico fi cou pronto em janeiro de 1954, mas o pesquisa e desenvolvimento junto à Escola de Engenharia Civil da conjunto de fotos, apenas, sem nenhuma produção de informações Cornell University (CORNELL..., 2005). sobre ele, não teria praticamente nenhuma utilidade. Tomou então O depoimento do marechal José Pessoa, no relatório anual de a sua segunda providência pragmática, a rigor, viabilizadora de tudo 1955 ao Presidente da República, faculta uma precisa qualifi cação da que viria na sequência: em fevereiro de 1954, contratou a empresa importância do trabalho da Belcher e do acerto de Caiado de Castro americana Donald J. Belcher and Associates Inc. para proceder aos em promover a dupla providência de contratar o voo foto (Cruzeiro do estudos e à seleção dos cinco sítios mais adequados à localização da Sul) e o trabalho de escolha dos sítios potenciais por fotointerpretação nova Capital, com base numa metodologia que, articulando serviços (Belcher). de campo e, principalmente, fotoanálise e fotointerpretação das fotografi as aéreas, era absolutamente inovadora no contexto da Devo acrescentar que a fi rma Donald J. Belcher and Associates cumpriu seus compromissos contratuais, engenharia brasileira à época3. Ernesto Silva observa em seu livro entregando à Comissão um substancioso trabalho, constante de relatório, mapas, maquetas, overlays, etc. que se evidenciam História de Brasília que “o General Caiado de Castro [estava ciente] úteis não sòmente aos misteres da Comissão como também que duas fi rmas, uma alemã e outra americana [Belcher], realizavam, a serviços de engenharia, geologia, agricultura e outros que porventura possam ser necessários naquela região do em vários países, modernos estudos de pesquisas, baseados na Planalto Central. interpretação de fotografi a aérea.” (SILVA, 1985, p. 76). A Belcher, na De fato, reconheço que não havia necessidade introdução de seu relatório, observa que a empresa era, àquele tempo, imperiosa de ter o nosso Govêrno se empenhado em tão vultoso contrato no estrangeiro, quando, com métodos “a mais antiga fi rma deste ramo e a única especializada nos campos convencionais ou usuais, poderíamos resolver o problema, da Geologia, Engenharia e Agricultura.” (DONALD..., 1956, p. 16). em mais largo tempo, é verdade, mas chegando aos mesmos resultados técnicos. (PESSOA, 1958, p. 113, grifo nosso). Donald Belcher era um dos pioneiros no uso das técnicas de Os grifos intentam destacar dois aspectos importantes que se fotointerpretação. Desde seu doutoramento, concluído em 1946, ele associam aos trabalhos desenvolvidos pela Belcher: seus trabalhos vinha pesquisando e trabalhando com as aplicações da aerofotogrametria não simplesmente aprofundaram os estudos das expedições nos estudos de engenharia. Hoje em dia, ele é considerado um anteriores; eles se consubstanciaram mais propriamente na produção dos pioneiros na fotointerpretação e no sensoriamento remo- Allyrio Hugueney de Mattos, cartógrafo do IBGE, de estudos básicos orientados no sentido do apoio a futuros projetos apresentando trabalho para o censo de 1950 de engenharia. Desta forma, eles transcenderam a simples questão Acervo da Memória Institucional do IBGE da localização e criaram condições para que muitos dos trabalhos

3 Observe-se que uma cláusula do contrato com a Belcher dizia que “tendo em vista que há o de engenharia subsequentes se fundamentassem num conjunto de eredas..de maior interesse em preparar e utilizar ao máximo engenheiros brasileiros no que se relaciona V com a moderna técnica da fotoanálise e interpretação, fi cam Donald J. Belcher and Associates dados básicos produzidos especifi camente para apoio às atividades Brasília Inc. por este instrumento, autorizados a subcontratar com engenheiros, técnicos e empresas brasileiras, serviços parciais [...].” (PESSOA, 1958, p. 44-45). de anteprojeto e projeto. Isso deve ter feito muita diferença quando a 97 eredas..de Companhia Urbanizadora da Nova Capital - NOVACAP, tempos depois, razões pelas quais ele convidou, em outubro de 1954, o marechal José V resolveu tocar toda a construção a toque de caixa. Pessoa para assumir a presidência da Comissão. Café Filho destaca, Brasília entretanto, que o Marechal ao assumir a CLNCF imediatamente a O outro aspecto a destacar dá conta da questão do prazo de reestruturou e a operacionalizou. O Presidente sinaliza que sua ideia execução dos estudos. Como observa o marechal José Pessoa, com ao convidar José Pessoa tenha sido a de colocar na Comissão alguém Folha de rosto do métodos convencionais ou usuais à época, ou seja, sem o emprego Relatório Técnico com luz própria e independência, para além de autoridade junto ao (Donald J. Belcher) de fotografi as aéreas, o tempo de execução de um estudo desta meio militar. Isso permitiria a ele, Presidente da República, não mais se Acervo do IBGE grandeza seria muito maior. Hoje, analisando o processo como um preocupar com a toada dos trabalhos na Comissão, nem criar, numa todo após seu curso, parece razoável dizer que se Juscelino não tivesse Comissão que ele provavelmente entendia como sem importância, um encontrado os estudos da CLNCF no estado avançado que encontrou, foco de problemas ou de desgaste político. Teria, assim, Café Filho difi cilmente poderia ter tomado a decisão de construir Brasília num menos um problema. único mandato. Não foi apenas a decisão de Caiado de Castro que propiciou isso. Como se verá mais à frente, o comando afi rmativo do marechal José Pessoa nos cerca de dois anos em que esteve à frente da Comissão também foram decisivos, a despeito da história, por vezes, Marechal José Pessoa assume destacar apenas a também fundamental coragem e competência de a CLNCF e a faz efetiva Juscelino em tocar a obra toda em tão pouco tempo, para não falar de todas as muitas outras competências que se associaram ao fantástico A presença do Marechal muda a CLNCF, inclusive ensejando uma conjunto desta obra. reestruturação formal, através do Decreto no 36.598, de dezembro de 1954. Este Decreto defi ne de modo mais preciso as condições para Contudo, o general Caiado de Castro e a sua tocada pragmática que os trabalhos emanados da Comissão possam produzir os efeitos à frente da CLNCF foram interrompidos pela crise defl agrada pela defi nidos pela Lei no 1.803. Ele prevê o encaminhamento parcelado dos morte de Getúlio e pela decorrente queda de seu governo. Assumiu o trabalhos à Presidência da República, providência prática importante, presidente Café Filho, de partido diferente, e com uma aparente postura por conta da ampla gama de demandas defi nidas pela referida lei. A distante e protocolar em relação à Comissão. Em seu livro de memórias, mudança intui a percepção de que há, agora, alguém que domina o Café Filho (1966, p. 402) observa que “condicionado pelo pouco tempo modus operandi do processo e que atua para torná-lo operacional e de mandato, preferi dar continuidade a certas providências, não lhes efi caz. distorcendo o curso de modo a apresentá-las, artifi cialmente, como obras do meu Governo [sic], mediante o expediente das inaugurações Quando o Marechal assumiu a CLNCF, a Comissão não tinha festivas”. O novo Presidente considerava que a questão da CLNCF espaço físico para se reunir e trabalhar. Uma das primeiras tarefas do Marechal Pessoa (ao centro ) e membros de sua Comissão Acervo do brigadeiro José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque estava neste contexto. Não fi cam claras, em seu texto de memórias, as Marechal foi constituir fi sicamente a Comissão, o que ele conseguiu 98 por conta da cessão, pela Comissão do Vale do São Francisco - CVSF, independente? A percepção de importância das subcomissões e da hoje Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e necessidade de se ter independência crítica em relação aos estudos do Parnaíba - CODEVASF, de duas salas de sua sede no Rio de Janeiro. parece ser uma das marcas importantes deixadas pela liderança do Imbuído da vontade de dar o que chamou posteriormente de “um longo processo pelo marechal José Pessoa. passo à frente no problema” da transferência da Capital (PESSOA, 1958, A atitude crítica em relação ao trabalho da Belcher, pelo p. 111), o novo presidente da CLNCF elaborou um plano de ação, no presidente da CLNCF, não deve ser, entretanto, entendida como qual se destaca a criação de subcomissões de técnicos especializados, descontentamento. Por conta de um compreensivo descompasso no que viriam a tratar das mais importantes questões que se associam cumprimento de compromissos contratuais que deve ter se seguido à implantação de uma cidade, em condições adequadas. O novo aos eventos traumáticos da transição do governo Getúlio Vargas para o presidente da Comissão tinha uma visão precisa do problema essencial: governo Café Filho, José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque encontrou o a questão política da localização já estava resolvida com a imposição contrato da Belcher com diversos atrasos de pagamento. Empenhou-se do Planalto Central pela Lei no 1.803. Como precisou o Marechal, a pela regularização dos pagamentos e pela normalização dos trabalhos questão que agora faltava ser bem defi nida era a questão técnica Membros da Comissão para Localização da da empresa, o que parece denotar a percepção que tinha da importância Nova Capital Federal, com o marechal José Pessoa (PESSOA, 1958, p. 11), vindo daí sua reestruturação da Comissão como ao centro, no Planalto Central dos levantamentos e estudos básicos que estavam sendo feitos. A um corpo deliberativo de caráter eminentemente técnico, engenheiro, Acervo do brigadeiro José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque talvez se pudesse assim afi rmar. paixão pelo empreendimento, entendido por ele como algo que se devia tocar em etapas e a longo prazo, bem como sua consideração de que A criação das subcomissões especializadas tem, como os estudos poderiam ser tocados por métodos convencionais, não o consequência mais importante, o mérito de criar um corpo técnico, impediram de, pragmaticamente, não efetuar mudanças metodológicas formado por pessoas com competência e experiência nas respectivas estruturais que, com o trabalho em andamento, apenas atrasariam o áreas, capaz não apenas de formular e solucionar problemas técnicos, objetivo fi nal de mudança da Capital. como também de avaliar criticamente o trabalho que, à época, fazia a Belcher. Sem estas subcomissões, quem avaliaria então os trabalhos O marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque que da consultora americana? Parece importante precisar que a função transparece da leitura de seus relatórios e de suas exposições de motivos da Belcher no processo era de assessoria, ou seja, de instrução, com é um empreendedor obstinado, um idealista, um homem de atitudes estudos orientados à defi nição da localização, da decisão que deveria independentes e soberanas, com luz própria, no nível da racionalidade, ser tomada pelo governo brasileiro. Ao governo caberia, através da e com intensas paixões por suas ideias, no nível das emoções, como CLNCF, apreciar o relatório de forma crítica e, conscientemente, segundo aquelas que poderiam dar a Brasília o codinome afetuoso de Vera Cruz, seus próprios valores e interesses, decidir fi nalmente qual seria o sítio nome para a nova Capital que ele defendeu apaixonadamente, como eredas..de V de localização mais adequado. Como fazer isso sem a formação de na exposição de motivos que fez ao Presidente da República (PESSOA, Brasília um corpo deliberativo com conhecimentos sufi cientes a uma decisão 1958, p. 233-235). As circunstâncias especiais de receber uma missão 99 baseada no uso de uma tecnologia inovadora não devem ter assustado desde antes de efetivada a escolha, de ampliar o leque de providências É para essa tarefa que encareço a valiosa cooperação Veredas..de do eminente governador de Minas Gerais, isto é, de auxiliar- o Marechal. Combatente na Primeira Guerra Mundial, aliado ao Exército a tomar, para criar condições ao empreendimento da transferência da Brasília nos a construir o trecho em questão, o que nos permitirá Francês, participou, naquela oportunidade, do uso inovador de carros capital. A visão do Marechal da missão da Comissão era ampla e não ir diretamente à região, a fi m de escolher o sítio onde será de combate, atividade que o fez, anos depois, introdutor dessa nova se circunscrevia à questão da localização do sítio e da delimitação do erguida a futura Capital, traçar o grandioso projeto da nova urbe e lançar o marco da fundação da futura Capital política tecnologia de combate no Exército Brasileiro (CÂMARA, 1985, p. 31). Distrito Federal. A rigor, ele parecia ter tido sempre a exata noção de do Brasil. Foi um renovador do ensino militar no Brasil, sendo um dos principais que a localização precisava ser defi nida o quanto antes para que todas Com tais providências, penso que se terá aberto responsáveis pela idealização e implantação da Academia Militar das as demais providências, mais trabalhosas e complexas, pudessem ser o caminho, e facilitado, aos que vierem atrás, encontrar o roteiro e prosseguir por ele até o término fi nal da Agulhas Negras – AMAN. Cultor devotado da história, como atesta o levadas a efeito. Assumiu não apenas a condução das atividades de grandiosa jornada. (PESSOA, 1958, p. 137, grifo nosso). valor simbólico que atribui à construção do Panthéon de Caxias na caráter técnico, mas também vislumbrava e empenhava-se pessoalmente AMAN, para sua tristeza até hoje não efetivada, mas com coração e na busca de articulações governamentais e interinstitucionais que Quase cinco meses antes do comício da cidade de Jataí, em mente obstinados pelo devir, o marechal José Pessoa aceitou presidir e criassem as condições para viabilização da transferência. Goiás, quando Toniquinho instou o candidato Juscelino a se posicionar liderar a CLNCF, sem nenhuma remuneração por isso, e depois de estar Ainda em 1954, esteve com o Ministro da Guerra, general sobre a questão da nova Capital, já havia o marechal José Pessoa dado há quase quatro anos retirado de atividades profi ssionais cotidianas, a Juscelino uma oportunidade de refl etir e assuntar sobre a questão da apenas pelo senso de que o Brasil precisava de uma Capital interior. Henrique Lott, para solicitar a transferência de um dos batalhões de mudança da Capital, se é que a carta passou pela assessoria e chegou Como sintetizou bem Ernesto Silva (1985, p. 318), o Marechal era engenharia do Exército para Formosa, em Goiás. Com o Ministro de ao então governador de Minas. então um “jovem de quase 70 anos”. Um jovem que dinamizou Viação e Obras Públicas tratou das questões relativas à ligação do a questão por conta de seu idealismo acerca da importância da futuro Distrito Federal com as ferrovias e rodovias mais próximas, Entretanto, o objetivo mais imediato era a escolha do sítio e a mudança da Capital. Passou a atuar, daí em diante, motivado pelo inclusive solicitando que o trecho Pirapora-Formosa, àquele tempo subsequente delimitação da área do futuro Distrito Federal. senso de importância de sua missão, e isso foi fundamental para projetado e locado para bitola de 1,00 m e de 1,60 m, fosse construído atravessar as áreas de turbulência política e vazios presidenciais que nesta última por razões de proporcionar maior capacidade de tráfego viriam pela frente, mantendo em curso as providências da mudança e rendimento. (PESSOA, 1958, p. 134-136). e viabilizando as decisões arrojadas que o governo Juscelino tomaria A escolha do sítio da nova Capital Em 17 de novembro de 1954, escreveu ao então governador adiante. Ernesto Silva observa ainda que de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, para solicitar apoio no sentido A primeira e mais importante das demandas que resulta da [...] as entrevistas periódicas concedidas à imprensa da construção de um trecho ferroviário, de Pirapora a Formosa. Um Lei no 1.803, principal marco inaugurador e regulador da última do País, procurando convencer a população de todos os quadrantes da pátria da necessidade inadiável da transferência trecho da carta do Marechal a Juscelino é interessante: etapa de estudos que antecede à construção da nova Capital, da capital, a seriedade com que tratou do problema fez com que a ideia, posta em ponto morto durante tanto tempo e Quem lançar o olhar para o mapa geográfi co notará é a escolha do sítio para planejamento e implantação da cidade. quase desmoralizada ante a opinião pública, ressurgisse de a importância desse trecho ferroviário, em bitola larga até A própria defi nição dos limites do novo Distrito Federal depende maneira mais viril e entusiástica. (SILVA, 1985, p. 105). Belo Horizonte, a fi m de servir à futura Capital, o qual com o tronco ferroviário paulista-goiano, em tráfego, e a rodovia desta defi nição. É para esta primeira providência que se orientam, BR-14, de futuro asfaltada, todas pertencentes ao Plano de principalmente, as duas mais importantes medidas tomadas pelo O Marechal empenhou-se pela escolha do sítio no tempo Viação Nacional, se encarregarão da tarefa propriamente dita mais breve possível. Seus relatórios deixam claro sua preocupação, da construção e mudança da nova cidade. general Caiado de Castro, presidente anterior da CLNCF: a tomada de 100 fotografi as áreas da área do Quadrilátero e a contratação da Belcher Cláusula quinta – Os estudos [...] compreenderão a elaboração de mapas básicos, mosaicos5 e ‘overlays’6 onde se- para os estudos de seleção e estudos de cinco locais, com potencial rão representadas, para cada área, as informações essenciais para a implantação da cidade. relativas à geologia, mostrando os tipos e ocorrências das rochas e dos depósitos não consolidados, bem como à espes- Os estudos da Belcher, que o marechal José Pessoa já encontra sura da camada de solo sobre a rocha, além dos elementos concernentes à drenagem, ao uso da terra e sua classifi cação, em andamento quando de sua posse, são fundamentais ao processo às fontes de água superfi ciais e de subsolo, à localização dos de escolha, bem como à preparação de dados básicos de engenharia depósitos de materiais de construção, aos sítios potenciais para aproveitamento hidrelétrico, à localização do aeroporto para o prosseguimento dos estudos após este processo. O objeto e ao traçado das vias de acesso. amplo do contrato fi rmado pelo governo brasileiro com a Belcher, por intermédio da Comissão do Vale do São Francisco, preconiza a Cláusula sexta – Com base nesses estudos, que serão acompanhados de relatórios especiais, Donald J. Belcher & As- “prestação de serviços técnicos especializados relativos aos estudos sociates Incorporated farão a seleção dos cinco melhores sítios de fotoanálise e fotointerpretação4 necessários à seleção dos sítios dentro da área total para localização da nova Capital Federal, e nesses cinco sítios selecionados, cada um com uma área apro- mais favoráveis à localização da nova Capital Federal” (PESSOA, ximada de 1000 quilômetros quadrados, procederão a estudos JK e Toniquinho, após 1958, p. 39-40). detalhados sobre as condições já descritas na cláusula anterior, Comício em Jataí além dos levantamentos topográfi cos a serem executados por restituição estereofotogramétrica, com base em triangulação Três das cláusulas do contrato assinado com a Belcher defi nem terrestre, triangulação radial e nivelamentos barométricos cui- metodologicamente como deverão ser os serviços. A transcrição dadosos, resultando dessa operação mapas básicos, desenha- dos em escalas apropriadas. destas cláusulas parece importante a uma ampla compreensão

da importância destas atividades para o empreendimento da Cláusula sétima – Ao término dos trabalhos, dentro do nova Capital como um todo, inclusive no que tange à sua futura prazo contratual [dez meses], Donald J. Belcher & Associates Inc. apresentarão, além dos mapas básicos, mosaicos, ‘overlays’ construção. Elas são as cláusulas quinta, sexta e sétima, transcritas e relatórios especiais sobre cada um dos sítios selecionados, um a seguir: relatório geral, com todos os dados básicos pertinentes aos vá- rios sítios e acompanhado de modelos em relevo e fotografi as oblíquas, permitindo colocar em confronto os vários atributos de cada sítio e proceder, com o necessário rigor, à escolha fi nal daquele que apresente melhores condições para a implantação da nova Capital Federal. (PESSOA, 1958, p. 40-41).

4 Placidino Machado Fagundes (1968, p. 84-85), em trabalho apresentado em 1968, descrevia as diferenças entre fotoanálise e fotointerpretação, referenciando-se a um grande especialista neste assunto: Donald J. Belcher. Em síntese, a fotoanálise contemplaria a identifi cação de fei- 5 Em termos genéricos, mosaicos, no contexto fotogramétrico, são o produto de uma articulação ções, elementos e características da paisagem representadas nas fotografi as aéreas, enquanto e colagem de fotografi as aéreas singulares contíguas, de forma a que se tenha uma visão única, a fotointerpretação contemplaria a signifi cação disso no contexto de uma dada temática de relativamente uniforme, de uma região de interesse coberta por várias fotos. análise (pedologia, geologia, meio ambiente, etc.). Com efeito, o analista não precisaria ser um 6 especialista na temática, enquanto o intérprete, necessariamente, precisaria ser um especialista, Overlays era o termo, não traduzido do inglês, que se usava para referenciar uma folha trans- uma vez que era o seu conhecimento da temática (geologia, etc.), que o permitiria modelar o lúcida (papel vegetal, por exemplo) ou transparente (fi lme) colocada sobre um mapa, para regis- eredas..de conhecimento instruído pelas evidências da paisagem. Estas evidências seriam, então, as chaves trar, em consonância com o mapa, informações temáticas adicionais à cartografi a básica. Muta- V para a revelação daquilo que se investigava. A larga utilização da fotointerpretação diretamente tis mutandis, se tratava de plano (ou layer, note-se a relação) de informação que se sobrepunha Brasília por pedólogos e por geólogos, nas áreas da pedologia e da geologia, respectivamente, ratifi ca a à base cartográfi ca, quando os sistemas de informações geográfi cas não eram computacionais, descrição teórica feita por Belcher e Placidino. mas sim meramente gráfi cos. 101 O resultado fi nal dos trabalhos da Belcher é consubstanciado enfrenta para a articulação de todos os fatores a considerar na escolha habitantes da cidade, e, fi nalmente, o sítio deve ser atraente Veredas..de à vista e oferecer aos projetistas da cidade a oportunidade do por mapas e overlays defi nidos acima e por um relatório fi nal muito de um sítio adequado a uma cidade. No caso do trabalho da empresa Brasília aproveitamento de paisagens e outros recursos de interesse importante, na qualidade de um estudo básico de engenharia para no Planalto Central, em cinco diferentes locais, dentro do Quadrilátero visual e beleza. diversos anteprojetos e projetos posteriores. defi nido pela Lei no 1.803, que formariam o leque de opções sobre o [...] qual a CLNCF escolheria o mais adequado. O relatório esclarece, inicialmente, que duas empresas brasileiras Assim, dentro da área geral, há uma grande variedade trabalharam como suas subcontratadas. Geocarta na elaboração de O problema é determinar onde se encontra, dentro de condições que devem ser apreciadas e consideradas antes desenhos fi nais e Geofoto, que executou o levantamento fotogramétrico da região, a mais favorável combinação dos fatores a do sítio da cidade ser determinado. Todos esses fatores devem dos sítios. A direção técnica dos levantamentos topográfi cos dos sítios, considerar. A confi guração do terreno, o tipo de solo, o tipo ser reconhecidos, previamente, de forma que a seleção fi nal e a profundidade da rocha fi rme, o potencial hidráulico, a incorpore as condições mais vantajosas, pois uma cidade por fotogrametria, coube ao engenheiro Placidino Machado Fagundes, altitude, a possibilidade de abastecimento adequado de água, representa um investimento de vulto e as complicações que supervisionou a produção dos mapas no Rio de Janeiro. É interessante o microclima, a possibilidade de conexão com rodovias tronco econômicas de um erro em sua localização, permanecerão constatar a presença de mais um engenheiro, na história da Vera Cruz e ferrovias, o aspecto do terreno, acidentes naturais especiais por centenas de anos, na sua vida. (DONALD J. BELCHER AND que possam ser aproveitados para fi ns recreativos – estes são ASSOCIATES INC., 1956, p. 20-21). daqueles tempos e na Brasília de hoje, que se tornaria marcante em os fatores que devem ser levados em conta. sua área de atuação, pelo conjunto de sua obra, como no caso de Nos detalhados estudos básicos de engenharia que apresenta, A combinação ideal destes fatores resultaria em um Donald J. Belcher e Allyrio Hugueney de Mattos. Placidino foi um dos sítio nas partes mais altas do platô, a uma altitude de cerca o relatório da Belcher deixa entrever uma, pode-se dizer, pouca fundadores da Sociedade Brasileira de Cartografi a, em 1958, e um dos de 1 000 metros. O terreno seria suavemente ondulado para tradição brasileira em relação ao planejamento e à produção de dados mais destacados especialistas em fotogrametria do Brasil no Século XX. proporcionar uma paisagem variada e quebrar a monotonia. As encostas seriam de pouca declividade, não excedendo 8%, básicos de longo prazo para o conhecimento do meio físico brasileiro. Membro da Sociedade Internacional de Fotogrametria e Sensoriamento assim permitindo construir sobre elas sem difi culdades. Deve À luz da constatação de que há muito, desde os tempos do Império, se Remoto – ISPRS, com largo transito internacional na área, foi um haver também área, localizada em posição dominante, que tratava da questão da interiorização da Capital, seja para o Triangulo dos principais responsáveis pelo primeiro Congresso Internacional da possa ser aproveitada, de forma monumental, para o núcleo governamental da cidade. Os solos devem poder receber Mineiro, seja para o Planalto Central, parece razoável considerar ISPRS fora dos centros mais tradicionais, no Rio de Janeiro, em 1984. vegetação; a rocha fi rme deve fi car sufi cientemente próxima que deveria ter havido, por parte das autoridades encarregadas de da superfície de forma a permitir fundações adequadas para Professor dos cursos de Engenharia Cartográfi ca do Instituto Militar de produzir dados básicos de meteorologia e hidrologia, por exemplo, a grandes edifícios, embora, sufi cientemente profunda, de forma Engenharia – IME e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, a que as tubulações e utilidades [redes] subterrâneas não preocupação com a produção histórica desses dados, nestas regiões. aposentou-se da UERJ aos 70 anos, de forma compulsória, triste pela exijam escavações em rocha. O sítio não deve ser interrompido Uma das restrições importantes que os serviços de estudos básicos impossibilidade de se manter na sala de aula, apesar de ter seguido por qualquer barreira física tal como uma garganta profunda, áreas muito acidentadas, pântanos ou serras altas. Os solos encontraram nesta área, como atesta o relatório, é exemplifi cado a trabalhar com a fotogrametria que amava, até o fi nal de seus dias. devem ser bem drenados e a confi guração do terreno deve pela observação da Donald J. Belcher and Associates Inc. (1956, p. Além de dirigir as atividades de mapeamento fotogramétrico, Placidino ser tal que seja possível o sistema de esgoto por gravidade. 121) de que “a quantidade de dados fl uviométricos existentes era traduzia os relatórios da Belcher para o português, o que garantia o Um abastecimento d’água adequado e certo deve ser previsto. Se a fonte de água estiver a uma altitude maior que a cidade, muito reduzida para este estudo. [...] Além disso, havia uma porção rigor técnico das traduções. de forma que ela possa ser alimentada por gravidade, tanto de interrupções em muitos dos registros.” Estes dados, em séries melhor. A área deve ser livre de bruma seca, de ventos fortes e Em seu sumário, o relatório da Belcher traz considerações históricas, são muito importantes à modelagem do conhecimento desagradáveis e outras manifestações climáticas indesejáveis. que são muito interessantes à compreensão da complexidade que se Deve haver, nas vizinhanças, motivos para uso recreacional dos sobre o comportamento natural dos fenômenos que eles reportam, 102 como o regime e a vazão dos rios ou como períodos de chuvas mais No que diz respeito ao sistema de drenagem da futura cidade, marechal Pessoa, tece algumas considerações sobre conclusões intensas ou de seca. No caso dos rios, de cujo conhecimento dos regimes o relatório Belcher observa que a “confi guração do terreno é tal que do relatório e sugere que a CLNCF providencie “estudos objetivos” anuais de vazão depende a estimativa de disponibilidade de água para um sistema de drenagem compreendendo toda a cidade seria um sobre o assunto (PESSOA, 1958, p. 201). Saturnino de Brito Filho, abastecimento ou mesmo à operação de barragens. Parece importante problema muito simples. Os solos deste sítio são, provavelmente, os que tinha um renomado escritório – ESB de Engenharia Sanitária, reconhecer o problema e refl etir acerca de suas consequências, em face mais bem drenados de todos os cinco [sítios da seleção]”. (DONALD J. viria a trabalhar com Juscelino nas obras de Brasília, continuando os da observação da Donald J. Belcherand Associates Inc. (1956, p. 121) de BELCHER AND ASSOCIATES INC., 1956, p. 249). Em termos de clima da estudos iniciados no âmbito da Comissão do marechal José Pessoa. que “por todas essas razões [quantidade reduzida de dados], tornou-se área e microclima do Sítio Castanho, a consideração é de que muitos são os aspectos favoráveis. A altitude média de 1 000 metros coloca-o De uma maneira geral, considerando todos os fatores impossível a determinação acurada dos volumes de escoamento para a como um dos de mais baixa temperatura média anual. Um ponto envolvidos, são poucos os quesitos nos quais o Sítio Castanho não maior parte dos rios”. polêmico, entretanto, tratava do abastecimento d’água. O relatório se posiciona bem favoravelmente em relação aos outros. O sítio que Com relação ao Sítio Castanho, no local que se posicionaria da Donald J. Belcher and Associates Inc. (1956, p. 250) qualifi cava o mais se aproxima dele, em termos de adequabilidade, é o sítio Verde, futuramente a embrionária Vera Cruz e a Brasília concreta, o relatório potencial de suprimento d’água como excelente. Francisco Saturnino que era vizinho do Castanho, o que o fazia compartilhar uma série de Belcher contempla algumas observações interessantes, principalmente de Brito Filho, em novembro de 1955, num relatório solicitado pelo fatores positivos mais regionais. depois de decorridos mais de cinquenta anos e da imensa transformação pela qual a região passou. Quanto à fi siografi a, o relatório diz que “seu detalhe topográfi co principal é um domo de forma triangular defi nido pelo Córrego Fundo e o Ribeirão Bananal, quando se juntam para formar o rio Paranoá, que então corre no rumo leste para o rio São Bartolomeu.” (DONALD J. BELCHER ASSOCIATES INC., 1956, p. 249). De certa forma as cidades têm, sempre, gênese espontânea, decorrente de uma complexa articulação de fatores naturais e antrópicos. Interessante perceber neste exercício de antevisão de uma cidade absolutamente planejada, num primeiro momento, a análise do local onde ela deverá se implantar. Observa a Donald J. Belcher and Associates Inc. (1956, p. 249) na sequência que “a extensa planície, de suave declividade para os rios limítrofes, presta-se ao desenvolvimento de uma grande cidade de qualquer tipo possível, sem a obrigação de interromper acidentes Sítios selecionados pela Comissão José geográfi cos.” Meio século depois, o crescimento da cidade foi tanto, que Pessoa, incluindo o Castanho, efetiva- ela mesma acabou criando um acidente geográfi co interposto em sua mente o escolhido eredas..de V expansão, que obrigou à construção da ponte JK sobre o espelho d’água Acervo do Arquivo Público do Distrito Brasília do lago Paranoá. Federal 103 Claro está, portanto, que o substancial trabalho de engenharia base em dados obtidos pela interpretação de fotografi as aéreas, este é o sítio onde se instalou a nova Capital. De fato, a Belcher Veredas..de contratado junto à Belcher visava dar subsídios à decisão, e, ainda, quase equivale a decidir num ambiente virtual ao invés de fazê- o recomendou e, afi nal, esta era, mesmo, a melhor solução para a Brasília produzir estudos que pudessem fornecer dados básicos às etapas lo num ambiente real, e, no limite da prudência e de uma possível localização da futura cidade. No entanto, a decisão de colocar ali posteriores de engenharia (anteprojeto e projeto básico, numa descrença, quase equivale a decidir às cegas. Com relação ao a Brasília de hoje, ou a Vera Cruz do marechal José Pessoa, não se perspectiva simplifi cadora e generalista). Se o governo brasileiro levantamento dos solos da região do futuro Distrito Federal, por deu por um simples referendo à proposição da Belcher. Os votos iria simplesmente aceitar e acatar de forma acrítica a análise que exemplo, um técnico havia considerado impossível se executar, individuais transcritos na ata da plenária na qual se decidiu pelo sítio a Belcher apresentaria dos sítios, ou se ele iria expor o trabalho à por métodos convencionais, o mesmo levantamento em três anos Castanho manifestam bem a análise crítica feita por sobre os estudos crítica de um corpo técnico competente e independente, para de (DONALD J. BELCHER AND ASSOCIATES INC., 1956, p. 26). Talvez da consultoria americana, principalmente por parte da Subcomissão forma soberana decidir a localização da nova Capital, dependia, num sejam essas as razões que levaram a Subcomissão de Fixação de de Fixação de Critérios e Normas Técnicas para a Comparação dos primeiro momento, de quem estivesse à frente do órgão responsável Critérios e Normas Técnicas, composta por sete membros, a elaborar Vários Locais e Seleção de Sítios. A sintética justifi cativa de voto do por isso. O órgão era a CLNCF, e o seu titular, o marechal José Pessoa um complexo sistema de pontuação e pesos para, à luz de cada um engenheiro Fábio de Macedo Soares Guimarães (apud PESSOA, 1958, já tinha, como uma de suas primeiras medidas à frente da Comissão, dos fatores defi nidos pela Lei no 1.803, pontuar os sítios e buscar p. 172), representante do IBGE na CLNCF, é paradigmática: “Declaro estruturado o processo de avaliação crítica e de tomada de decisão uma forma objetiva, quantitativa, para tentar subsidiar a escolha. que votei no sítio denominado ‘Castanho’, como o que preenche acerca do sítio. Neste contexto, o Sítio Castanho fi cou com 867 pontos, o Sítio Verde as melhores condições para a localização da nova Capital do País, com 800 (o Verde é contíguo ao Castanho), o Vermelho com 784 pelas razões que constam da ata da Subcomissão[...], da qual faço O Sítio Castanho, avaliado favoravelmente pela Belcher pontos, o Azul com 684 e o Amarelo com 635. (SILVA, 1985, p. 94). O parte”. O apaixonado arrazoado do Marechal para justifi cativa de e analisado, após o trabalho desta, pelas Subcomissões e pela peso da responsabilidade, afi nal, esteve nas mãos dos técnicos dessa seu voto no Sítio Castanho, que é cerca de 30 vezes mais extenso Comissão, já havia sido tratado favoravelmente por estudos subcomissão. que o do representante do IBGE, fundamenta-se não apenas numa anteriores. Ainda assim, tomar a decisão defi nitiva de ali assentar a avaliação crítica do relatório da Belcher, mas também nos relatórios futura Capital, e bater o martelo, não é propriamente uma tomada A sessão solene de escolha do sítio se realizou no dia 15 de das missões anteriores e no trabalho da Subcomissão de Fixação de de posição fácil. Certa insegurança, ou excesso de prudência, abril de 1955, data em que foi defi nida a posição em que, hoje, Critérios e Normas Técnicas. O trabalho da Belcher foi extremamente em face da metodologia por demais avançada para o momento está a cidade de Brasília. A escolha do Sítio Castanho foi unânime, importante, não há dúvida; mas, avocar exclusiva ou primordialmente brasileiro, parecem compreensíveis. Mesmo para um corpo técnico aclamada por uma salva de palmas do corpo deliberativo da CLNCF. a ele a decisão sobre o Sítio Castanho é fazer pouco da capacidade da formado por homens já maduros, profi ssionalmente acostumados O engenheiro-arquiteto Raul Penna Firme, relator da Subcomissão CLNCF de tomar uma decisão soberana, tecnicamente fundamentada a tomar decisões em questões importantes, a presença de uma de Fixação de Critérios e Normas Técnicas, fez a leitura do relatório e independente, no que tange à localização. metodologia muito inovadora de produção de dados para a tomada de análises dos vários sítios. Os votos individuais foram registrados de decisão, como no caso da Belcher, acaba por implicar numa certa em ata e, de forma geral, consagram o trabalho da Subcomissão de O voto do general Nelson de Castro Senna Dias, então Normas Técnicas. insegurança em relação à efi cácia do novo método. Para homens representante do Serviço Geográfi co do Exército na CLNCF, registra tradicionalmente acostumados à análise de dados construídos por Neste aspecto, como em diversos outros em relação ao um aspecto interessante da escolha do Sítio Castanho. Estabelecendo longas jornadas de pesquisa de dados em campo, tomar uma decisão trabalho da CLNCF, a história se faz incompleta, sempre que ela diz a relação do trabalho feito pela Belcher com o trabalho feito pelas desta importância, a seleção do local de construção da Capital, com simplesmente que a Belcher recomendou o Sítio Castanho e que missões anteriores de Cruls e Polli Coelho, Senna Dias observa que “a 104 escolha deste sítio, baseada nos mais modernos processos de pesquisa, nada mais constitui que a confi rmação dos trabalhos anteriormente apresentados.” (PESSOA, 1958, p. 181).

A defi nição do Sítio Castanho ensejou de imediato a defi nição da área do futuro Distrito Federal. Quem a elaborou foi a Subcomissão de Estudos da Demarcação da Área do Futuro Distrito Federal, composta pelos engenheiros Allyrio Hugueney de Mattos, do Conselho Nacional de Geografi a - CNG/IBGE, Aureliano Luiz de Farias e Luiz Eugênio de Freitas Abreu, os dois últimos ofi ciais do Serviço Geográfi co do Exército (SILVA, 1985, p. 101). A Subcomissão elaborou a delimitação em apenas 11 dias, ajustando os limites leste e oeste para que eles se posicionassem sobre elementos naturais da paisagem, facilitando a identifi cação no terreno destes limites. Assim é que o Córrego Santa Rita, o Rio Preto e o Rio Descoberto foram incorporados à delimitação. Os limites norte e sul seguem sendo seções de paralelos (16o 03’ e 15o 30’ Sul). A rapidez na defi nição da delimitação se impunha pelo receio de que um eventual vazamento das informações sobre a delimitação pudesse estimular movimentos especulativos nessas terras. Tudo tinha que ser feito rapidamente, até que legislação específi ca preservasse essas áreas

para o empreendimento da nova Capital. Mapa do Brasil, incluindo a Capital Federal, Nas reuniões da Comissão em que foram aprovados o sítio e a com as respec- delimitação da área do futuro Distrito Federal, foi aprovada também tivas distâncias para as capitais a contratação dos serviços para a elaboração do anteprojeto da dos estados da União, apresen- Capital, para o estudo da energia elétrica e do saneamento básico tando o novo Distrito Federal (SILVA, 1985, p. 185). Defi nida a localização, partia então a Comissão com o nome sugerido pelo para o mais importante: anteprojetar e projetar a nova Capital. Estas marechal José eredas..de Pessoa: Vera V contratações não se efetivaram porque a Comissão não dispunha Cruz. Brasília de apoio da Presidência da República. Muitos trabalhos, entretanto, PESSOA, (1958) 105 foram executados, através de trabalho voluntário dos técnicos Veredas..de convidados a atuar. Brasília

Em setembro de 1955, portanto, pouco menos de um ano depois do Marechal assumir a liderança da CLNCF, mas cerca de cinco meses depois da decisão tomada, a Presidência da República emite o Despacho PR no 19.685, que aprova o relatório que estabelecia o sítio escolhido – o Castanho – e a defi nição da delimitação da área do futuro Distrito Federal. Este despacho também determina que “a Comissão prossiga nos trabalhos de acordo com a Lei [1.803] e os Decretos já referidos [32.976, 33.769 e 36.598].” (PESSOA, 1958, p. 124).

Em novembro de 1955, encerrava-se um ciclo do processo, o de defi nição do sítio e da delimitação do futuro Distrito Federal. A CLNCF já vinha há muito trabalhando nos estudos decorrentes da de- fi nição. O Marechal, neste momento, qualifi ca bem o andamento do processo:

“Se a CLNCF estudou e escolheu tecnicamente o sítio próprio para a cidade e, em torno, a área para o Distrito Fede- ral, ipso facto encontrou ela a solução desejada. Agora, é uma questão de querer, pois está ao alcance de qualquer governo patriota materializar a velha aspiração nacional.” (PESSOA, 1958, p. 119).

A Comissão engenheira que fundou as bases da construção da nova Capital

A primeira das providências orientadas no sentido do apoio “Estudo preliminar para a futura cidade de Vera Cruz”, à construção, José Pessoa toma pouco mais de dez dias depois da conforme foi defi nido pelo marechal José Pessoa defi nição do sítio e cerca de quatro meses antes do Presidente da PESSOA (1958) República homologar o local e a área do futuro Distrito Federal, ou 106 seja, ainda em abril de 1955. Preocupado com um eventual vazamento espaço de tempo, com apoio do executivo e do legislativo do estado. viagem de Juscelino à área foi feita com um avião que pousou neste da escolha do sítio e com movimentos especulativos em relação às Foi afi nal o governador de Goiás, José Ludovico de Almeida, quem aeroporto, e ele foi usado até que, durante a construção, o novo terras tornadas importantes à construção da cidade, o Marechal pede primeiro ofi cializou a delimitação do futuro Distrito Federal (SILVA, aeroporto tivesse sido implantado. o apoio de Café Filho para a decretação de utilidade pública da área, 1985, p. 103). E no rastro deste apoio do governo de Goiás, que Defi nida a localização do sítio e a delimitação da área do que seria o primeiro passo no sentido da desapropriação de todas as criou na sequência uma Comissão de Cooperação para mudança da Distrito Federal, o Marechal idealiza uma série de providências áreas de interesse. Em face da pouca, ou nenhuma, importância que Capital Federal, veio aquela que foi uma providência fundamental orientadas para o apoio às atividades subsequentes de engenharia: Café Filho dá ao pedido, Pessoa se vê obrigado a uma manobra de para viabilizar a construção a toque de caixa feita por JK: a primeira implantação de marcos referenciais para a locação futura das obras, astúcia que, não apenas naquele momento, mas até em relação à desapropriação da área situada entre os rios Bananal e Torto, em nivelamento preciso destes marcos, em face da necessidade de projetos construção, no governo Juscelino, foi absolutamente decisiva para dezembro de 1955, onde iria ser construída a cidade (SILVA, 1985, p. de saneamento básico e outros, abertura de picadas para acesso a que a Vera Cruz em gênese pudesse se transformar em Brasília: 106-107). Juscelino, portanto, já toma posse com a área desapropriada, toda a área e de uma estrada no eixo central do sítio, construção solicitou ao governo de Goiás, naturalmente interessado em viabilizar desimpedida legalmente para o início da construção. de um alojamento, levantamentos fotogramétricos nas escalas de 1:2 a transferência da capital, que se transformasse no executor No que diz respeito ao necessário acesso ao sítio Castanho 000 e 1:1 000, típicas de apoio a projetos, instalação de réguas de governamental das medidas legais referentes à desapropriação. por ar, o uso do Sistema de Informações Geográfi cas disponibilizado medição de nível d’água em rios e riachos e instalação de um posto Nada havia de ilegal nisso. Ambos os poderes executivos, o federal e pelos trabalhos da Belcher pode ser bem apreciado nos trabalhos de o estadual, tinham a competência para as ações de desapropriação. de observação meteorológica ao lado do alojamento (PESSOA, 1958, defi nição do local para a implantação do que o Marechal considerava Como os compromissos do Marechal eram com o empreendimento p. 125-126). A CLNCF começa a se transformar, ainda mais, numa orgulhosamente como o Aeroporto de Vera Cruz. “Combinando da nova Capital e não políticos, ele agiu de forma independente e comissão engenheira. as sobrecapas [overlays] de solos para engenharia com os mapas profi ssional, orientado exclusivamente pelos interesses da nação. topográfi cos e os dados climáticos, engenheiros brasileiros e ofi ciais A este tempo da Comissão engenheira, uma das subcomissões Mais tarde, quando Juscelino consegue efetivamente entrar com o da Força Aérea Brasileira foram capazes de realizar uma completa e de maior destaque foi a de Planejamento Urbanístico. Participavam dela governo, de corpo e alma, na construção, grande parte da área já satisfatória seleção do local.” (DONALD J. BELCHER AND ASSOCIATES os arquitetos Raul Penna Firme, José Oliveira Reis e Roberto Lacombe. estava desapropriada pelo governo de Goiás, pronta para a invasão INC., 1956, p. 237). O Aeroporto de Vera Cruz, que fi cava no local Surgiu nesta subcomissão, pela primeira vez, a ideia de convidar o de máquinas. Se o Marechal se conformasse com a indecisão de onde hoje se situa a rodoferroviária, foi construído pelo governo de famoso arquiteto e urbanista Le Corbusier, que Oscar Niemeyer (2006, Café Filho, Juscelino jamais poderia iniciar e terminar a construção Goiás, sob o comando do vice-governador Bernardo Sayão, com o p. 34), em seu livro Minha experiência em Brasília dizia ser “o líder de Brasília num só mandato, como ele entendia indispensável para apoio de dois ofi ciais especialistas em engenharia da Aeronáutica, máximo da arquitetura contemporânea”, para aconselhar os arquitetos que tudo desse certo. que o ministro Eduardo Gomes encaminhou para orientação dos brasileiros. Surge destes estudos uma primeira planta de plano piloto, Para se avaliar a celeridade de Goiás no apoio ao Marechal, trabalhos, em relação às questões aeronáuticas. A construção da no qual já se encontra uma barragem que propiciará a formação do basta observar que são três os instrumentos legais que instruíram pista, na realidade desmatamento e terraplenagem do terreno natural, lago do Paranoá. Interessante que, mais tarde, quando a CLNCF já havia o processo de desapropriação: o Decreto no 480, de 30 de abril de e a construção de uma estação de passageiros, bastante rudimentar, se transformado em outra comissão, o marechal José Pessoa informa eredas..de V 1955, a Lei Estadual no 1.071, de 11 de maio de 1955 e o Decreto no foi útil para acesso ao local do Sítio Castanho, até o início das obras que Le Corbusier havia se oferecido para confeccionar o plano piloto Brasília 500, de 11 de maio de 1955, todos providenciados num curtíssimo efetivas de construção de Brasília (SILVA, 1985, p. 109). A primeira da nova Capital. (PESSOA, 1958, p. 364). 107 Com relação às questões de energia, A Subcomissão de Em termos de planejamento, uma das mais interessantes ques- Veredas..de Energia Elétrica, no fi nal do ano de 1955, encaminhou relatório com tões que envolvem o empenho do marechal José Pessoa à frente da Brasília orientações acerca das questões da futura Capital, que se constituem CLNCF envolve a ideia dele acerca de como deveria se dar a construção em evidências da maturidade que os estudos já haviam chegado nesta da cidade, de forma gradual, e de como esta construção deveria se fase pré-construção de Brasília. O ponto primeiro das conclusões dar de maneira autossustentável, no que diz respeito aos aspectos econômicos da questão. Juscelino, em seu livro sobre Brasília, opina indicava a necessidade de se prosseguir nos estudos da cachoeira do que o Marechal quando renunciou à presidência da Comissão o fez Paranoá e na preparação do projeto de aproveitamento hidrelétrico. porque havia assumido a recomendação do relatório Belcher de que Isso reafi rma, ainda, a questão de que o lago do Paranoá era uma a construção deveria se dar em etapas (KUBITSCHEK, 1975, p. 41-42). constante em qualquer solução urbanística para a futura capital. A análise do conjunto de relatórios que o Marechal produziu ao longo Por isso, inclusive, que ele foi colocado como condição inalterável à do tempo que esteve à frente da Comissão não sustenta, entretanto, execução do Plano Piloto, quando do concurso realizado para este fi m, a perspectiva de JK. Em realidade, José Pessoa entendia que a cons- que foi vencido por Lucio Costa. Adicionalmente, o estudo considera o trução deveria ser progressiva, inclusive, para que ela fosse economi- inventário de outras fontes de energia hidráulica porventura existentes camente autossustentável, aspecto não enfatizado pela Belcher. Um na região e a avaliação do prolongamento, até a nova Capital, do trecho de uma exposição de motivos do Marechal à Presidência da sistema de transmissão do rio Paranaíba. Os estudos alertam ainda República, ainda no ano de 1955, sobre o fi nanciamento dos terrenos O presidente JK assina a lei que fi xa a data da mudança para a para a importância da execução do anteprojeto da rede de distribuição da nova Capital, é revelador: Nova Capital, em 01 10 1957, no Palácio do Catete de energia, com a localização de subestações e outras providências, Considerando que a área total do futuro Distrito Fe- Acervo do Arquivo Público do tão logo se tenha uma defi nição do planejamento urbanístico da nova deral encerra cerca de 120 mil alqueires goianos (48 500 km2), Distrito Federal infere-se, daí, que a quantia total necessária para a desapro- Capital (PESSOA, 1958, p. 224). priação será de cem milhões de cruzeiros, despesa relativa- mente insignifi cante, para o País, a qual será recuperável com Nas questões afetas ao saneamento básico, Francisco Saturni- larga margem, através do loteamento daquele território, cuja renda proveniente da venda dos lotes, propiciará a construção no de Brito Filho, que depois continuaria com a NOVACAP, durante a da futura capital. Somente na área urbana, a cidade contará construção de Brasília, se mostrava cético com relação à disponibili- com 100 mil lotes, que, vendidos ao preço razoável de 200 mil cruzeiros (em Goiânia, lote idêntico custa mais caro), dará dade de água para a futura cidade, sugerindo à CLNCF que “providen- 20 bilhões de cruzeiros, quantia sufi ciente para a construção da cidade, inclusive os principais edifícios públicos, hospital, cie a efetivação de estudos objetivos, para um juízo satisfatório sobre escolas, serviços de água, esgoto, telefone e energia elétrica, a capacidade de abastecimento d’água, a fi m de que na futura Capital além da construção de 20 mil casas para funcionários públi- cos, acrescendo-se, ainda, que vários dos empreendimentos Federal não se venham verifi car, após certo tempo, as condições de acima referidos (água, telefone, energia elétrica) seriam ex- penúria d’água que se encontram na atual, no Rio de Janeiro, [...].” plorados, com renda substancial para o Estado, e as casas dos funcionários pagas por estes em módicas prestações. (PES- (PESSOA, 1958, p. 201). SOA, 1958, p. 228-229). 108 Como já se observou, entretanto, à época o presidente Café Filho de 25 km2, provavelmente a área específi ca do plano piloto, a produção não se movimentou para qualquer providência de desapropriação, de cartas devia se dar, também, na escala de 1:1 000, com curvas de obrigando o Marechal a pedir apoio ao governo de Goiás, em face da nível a cada metro. O padrão de exatidão cartográfi ca estabelecido necessidade de se produzir “medidas acauteladoras contra a ganância pelas especifi cações, numa época em que ainda não havia norma sobre imobiliária.” (PESSOA, 1958, p. 227). o assunto, equivale ao chamado Padrão de Exatidão Cartográfi ca – PEC - classe A, hoje normalizado pela legislação cartográfi ca em vigor. As preocupações do marechal José Pessoa com a viabilização A vencedora do certame administrativo, que foi contratada e elaborou da sua Vera Cruz eram tão amplas, que alcançaram até a questão da o mapeamento, foi a empresa Geofoto, que já havia trabalhado nas colonização do futuro Distrito Federal. Em ofício ao Presidente do atividades de mapeamento da Belcher. Instituto Nacional de Imigração e Colonização, o presidente da CLNCF Cruz tosca colocada solicita “estudos para encaminhamento àquela região [Planalto Esta foi, sem dúvida, uma providência de longo alcance da por Bernardo Sayão no ponto mais elevado goiano], de uma corrente imigratória, composta, de preferência, de CLNCF, assim como o foi a obstinação do Marechal em promover a da área onde seria construída Brasília. holandeses e nacionais, estes em grande maioria.” (PESSOA, 1958, desapropriação da área. Não se pode dizer que seria de todo impossível p. 240). construir Brasília sem essas plantas. Mas, considerando, inclusive, a necessidade depois defi nida de se fazer tudo a toque de caixa, para No fi nal do ano de 1955, pouco antes da transformação da término num só governo, como foi afi nal feito, todas as obras de CLNCF em outra comissão, em face mesmo de ter sido superada a infraestrutura, se não tivessem este mapeamento a lhes dar subsídio questão da localização que dava centralidade à atuação da Comissão, para anteprojeto e projeto, estariam bastante mais vulneráveis, e, e ainda, em plena turbulência da Presidência da República, por conta adicionalmente, obrigariam a uma quantidade maior de levantamentos da transição dos governos interinos para o já eleito, de Juscelino topográfi cos de campo. Vale lembrar que ao menos duas dessas obras Kubitschek, que apenas tomaria posse em janeiro de 1956, José Pessoa de infraestrutura têm na representação minuciosa do relevo, nas insiste e faz executar aquela que seria uma das providências mais curvas de nível, um importante condicionante: a barragem do Paranoá importantes à viabilização do início da construção no ano de 1956: a e o sistema de saneamento da cidade, em face de ambas demandarem, elaboração de um mapeamento para apoio a projetos na área do sítio, para sua precisa especifi cação, um conhecimento acurado das promovendo, então, concorrência administrativa entre três empresas variações altimétricas do relevo. Vale observar, por exemplo, que no especializadas do Brasil, VASP Aerofotogrametria de São Paulo, memorial de Lucio Costa (apud SILVA, 1985, p.162, grifo nosso) sobre Serviços Aerofotogramétricos Cruzeiro do Sul, do Rio de Janeiro, e seu Plano Piloto, logo no item 2, ele observa que “procurou-se depois Geofoto, também do Rio de Janeiro, para elaboração de plantas pelo a adaptação à topografi a local, ao escoamento natural das águas, Cruzeiro erigido a mando do marechal método aerofotogramétrico, de uma área de 150 km2, na escala de à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fi m de contê-lo Pessoa no ponto mais eredas..de elevado da área onde O presidente Juscelino Kubitschek V seria construída Brasília. 1:2 000, com traçado de curvas de nível a cada dois metros e com voo no triângulo equilátero que defi ne a área urbanizada.” O Plano Piloto diante do Cruzeiro de Brasília Brasília fotogramétrico na escala aproximada de 1:5.000. Numa área especial poderia até ser feito sem um mapeamento aerofotogramétrico tão 109 detalhado. No entanto, a disponibilidade deste mapeamento de Veredas..de grande escala e exatidão, quando do concurso para escolha do Plano Brasília Piloto, possibilitou que a concepção do Plano se fi zesse mais rica, como denota a possibilidade que Lucio Costa teve de melhor adequar sua concepção à topografi a local, em face da imposição natural dada pelo escoamento natural das águas que, numa cidade, condiciona tanto o escoamento superfi cial, quanto mesmo o projeto das redes de infraestrutura que operam por gravidade. Como observa Ernesto Silva (1985, p. 110), essas cartas “[...] foram de preciosa utilidade para a construção da cidade e que já estavam prontas quando do lançamento do concurso para o Plano Piloto, em setembro de 1956.”

Com a posse do governo JK, em janeiro de 1956, a Comissão começa a se transformar. Em realidade, ela já havia tido sua primeira transformação em dezembro de 1955, quando por conta do Decreto no 38 281 foi transformada em Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal. Na verdade, por conta do ritmo imprimido pelo seu presidente, a CLNCF já vinha atuando no planejamento da construção desde a escolha do sítio, em abril de 1955. Com a posse de Juscelino, o Marechal entrega seu cargo, e JK não aceita sua saída, mantendo José Pessoa à frente da Comissão (SILVA, 1985, p. 107). Neste tempo, o front de Juscelino era jurídico, para montar o arcabouço legal que o permitisse tocar a construção da forma que ele entendia a única viável (KUBITSCHEK, 1975, p. 9).

O marechal José Pessoa permaneceu atuando na Comissão até meados de 1956, quando surgiu, nas palavras de Juscelino Kubitschek (1975, p. 28), “a primeira e última divergência entre nós dois [...], da qual resultou seu afastamento do cargo em fi ns de maio de 1956.” Essencialmente, a questão decorria do convencimento do Marechal

Planta aerofotogramétrica confeccionada a pedido do marechal Pessoa e de que a obra não deveria ser feita em curto espaço de tempo, por que foi fundamental para a inserção do Plano Piloto Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal 110 conta da sua ideia de fazer um empreendimento auto-sustentável, Isso parece natural, em face do bom trabalho até então desenvolvido, em termos econômicos. Juscelino entendia que se a obra não fosse e até conveniente, diante da necessidade de continuidade harmoniosa executada num único mandato da Presidência da República, ela seria entre os estudos já feitos, e os projetos e a construção que pouco à inviabilizada pela troca de presidentes. Nas palavras de Kubitschek frente se iniciariam. (1975, p. 42), “quase todos os governos que se iniciavam, logo revelavam a preocupação de paralisar ou de alterar as iniciativas tomadas por seus antecessores.” O Marechal deve ter percebido a incompatibilidade entre o conjunto de seus planos e a ideia de Conclusão

estruturação do empreendimento que tinha JK, e tomou a sensata A política vive, sem culpas, da produção de mitos, da construção medida de sair de cena para que Juscelino, Presidente e responsável de versões convenientes para os acontecimentos. A investigação que último pelo empreendimento, pudesse tocar a obra a seu modo. deseja, entretanto, reconstruir o encadeamento dos fatos, a articulação Parece razoável intuir que ninguém precisaria alertar um homem com construtiva de um processo, que o permite compreendê-lo da forma a experiência de comando que tinha José Pessoa, de que consonância mais próxima possível de sua verdadeira gênese, não deve ceder à de ideias, num caso como esse, é imprescindível. tentação de tratar apenas do aparente, de tratar apenas daquilo que

Com a saída do Marechal em caráter irrevogável, a nova Capital afl ora, por mais belo que seja o afl oramento, como é caso desta bela em gênese deixa de ter o codinome dado pela paixão de José Pessoa e surpreendente cidade que é Brasília.

pela ideia, Vera Cruz, e fi ca por um tempo sem nome, até que a Câmara Não, Brasília não surgiu quase de um nada, como querem ressuscite o nome de Brasília, que havia sido sugerido por José Bonifácio, as versões míticas de sua construção (KUBITSCHEK, 1975, p. 7). Há Rio de Janeiro,1959 (Praia do Flamengo), ainda Capital Federal Acervo de Marco Santos em 1823, em sessão da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do pioneiros, mas eles não se encontram apenas após a criação da Império do Brasil (KUBITSCHEK, 1975, p. 18). NOVACAP. Fechar os olhos a todos os trabalhos que antecederam à

Após a saída do marechal José Pessoa, Juscelino convida construção e que criaram as condições para que ela ocorresse, é apenas Ernesto Silva, assessor do Marechal por todo seu mandato à frente um exercício de vaidade, uma dissimulação que visa, apenas, tornar uns mais destacados do que outros, uns mais importantes do que outros. da Comissão, e perfeitamente integrado às providências em curso, indicando uma espécie de reconhecimento ao trabalho feito pelas É preciso que se diga que sim, que realmente houve um Comissões, a Comissão de Localização da Nova Capital Federal - CLNCF Presidente da República que foi corajoso e competente para tocar a e sua sucessora, a Comissão de Planejamento da Construção. Outros obra em um único mandato, a toque de caixa. E também que sim, membros da Comissão também prosseguiram, como evidencia a que foram absolutamente geniais tanto o Plano Piloto de Lucio Costa eredas..de VBrasília presença de Raul Penna Firme, Renato Lacombe e Saturnino de Brito quanto a arquitetura dos palácios e outras obras de arte de Niemeyer. Filho, dentre outros, nos trabalhos posteriores, inclusive da NOVACAP. Mas é injusto, defi nitivamente injusto, que a edifi cação da cidade Em 1959, a Nova Capital que surgia no Planalto Central do Brasil Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal 111 como um todo valha apenas pela beleza de sua arquitetura, e pelo andado. [...] Tudo está muito vinculado, muito estreitamente Veredas..de vinculado. E o caso de Brasília é típico. Nesse caso você vê que arrojo com que sua obra foi tocada. Um País que se pretende justo, e Brasília tudo estava ordenado. (NEVES apud COUTO, 2006, p. 68). consequente, precisa reconhecer não apenas o trabalho que aparece, que se materializa nas externalidades. É preciso, também, que se dê Os trabalhos da CLNCF, que se intentou descrever e analisar valor ao trabalho invisível, aquele que cria a condição para que tudo neste texto, buscaram recuperar uma parte do trabalho de preparação que afl ora, afl ore com beleza e solidez. O que seria das obras de arte da edifi cação de Brasília que, por conta da necessidade política e do geniais de Niemeyer, se não fossem os engenheiros que as tornam deslumbramento que se associam à construção de mitos, permanece, estruturadas e sólidas? por muito tempo, ao largo da historiografi a da cidade, como se a Tancredo Neves, trazido à baila por Ronaldo Costa Couto, capital tivesse, sim, sido feita de um nada. permite a observação de como as coisas não se fazem a partir de um Infelizmente, parece que a política não tem compromisso estreito nada. com a veracidade dos fatos. Ela demanda estratégias, dissimulações e Mas o desenvolvimento não teria sido possível no artifícios. À luz de alguns dos fatos aqui apresentados, parece realmente governo de Juscelino se Vargas não tivesse preparado as bases, pouco crível que foram o comício de Jataí e o Toniquinho sejam os os alicerces que o possibilitassem. Você vê, por exemplo: a mudança da capital. Se o presidente Vargas não tivesse fi xado responsáveis pela meta-síntese do candidato Juscelino. Muito mais o local da capital, o Juscelino ia levar o governo todo só para crível demonstra ser a perspectiva de Costa Couto de que escolher o lugar. Quando Juscelino chega e vê Brasília fi xada O Palácio da Alvorada em todo o seu esplendor em um decreto – e um decreto que não veio por acaso, veio Brasília foi um projeto longamente amadurecido, Foto: Licia Rubinstein, março de 2010 como resultante de diversas comissões que trabalharam no calculado. De tramitação política quase impossível, habilmente estudo da localização da capital – ele encontra meio caminho operada, melindrosa a ponto de exigir a dissimulação da Acervo do IBGE

112 prioridade e interesse superior do próprio presidente. Até a eleito, Juscelino Kubitschek (FAUSTO, 2004, p. 421-422). A CLNCF era CORNELL University. Obituaries. Cornell Chronicle, Ithaca, New York, v. 36, inclusão no Plano de Metas foi de última hora, aparentemente diretamente vinculada à Presidência da República. A despeito desta n. 27, mar. 2005. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. no bolso do colete, agora presidencial, havia muito tempo. quase liquefação da liderança maior da Presidência da República, COUTO, Ronaldo Costa. Brasília Kubitschek de Oliveira. 5. ed. ver. Rio de Ja- [...] Juscelino estava envolvido com esse projeto desde a neste período, José Pessoa não arrefeceu a condução do processo da Constituinte de 1946. Então deputado pelo PSD mineiro, neiro: Record, 2006. 399 p. mergulhou fundo no assunto (COUTO, 2006, p. 21). nova Capital. Apesar de todas as turbulências, manteve os olhos fi xos DONALD J. BELCHER ASSOCIATES INC. Relatório técnico sobre a nova Capital no objetivo maior de viabilizar a transferência da Capital e, com isso, da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Departamento Administrativo do Serviço Esta mesma dissimulação pode justifi car um esquecimento, manteve a Comissão operando o tempo todo, criando, com efeito, as Público, 1956. em relação aos trabalhos feitos anteriormente, um intencional condições de base para que a construção pudesse ser iniciada tão logo FAGUNDES, Placidino Machado. Aplicações da fotografi a aérea e sua ade- não reconhecimento de importância daquilo que está na base do houvesse a decisão política para tal. Sua gestão para desapropriação quada terminologia. Boletim Geográfi co, Rio de Janeiro: IBGE, v. 27, n. 204, que se edifi ca depois. A observação de que “durante a gestão do das terras pelo governo de Goiás, em face da inoperância da Presidência p. 83-85, maio/jun. 1968. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. projeto de engenharia, em plena convulsão da transição presidencial realizada qualquer obra” (KUBITSCHEK, 1975, p. 28), não condiz com FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12. ed. São Paulo: Edusp, 2004. deste período, evidenciam como o Marechal comandava com os olhos a continuidade dos trabalhos de infraestrutura que foram estudados fi xos no horizonte, a despeito das turbulências que enfrentava. Trata-se KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch, 1975. desde muito antes da NOVACAP. O Plano Piloto e os palácios e grandes 370 p. de um exemplo da importância da profi ssionalização da função pública, monumentos são todos posteriores à CLNCF, mas o que dizer da barragem MATTOS, Allyrio Hugueney de. As necessidades da cartografi a brasileira. à margem dos interesses políticos, sempre circunstanciais. Se não do Paranoá, do sistema de saneamento, da desapropriação e do que Trabalho apresentado no XI Congresso Brasileiro de Geografi a, Porto Alegre, tivesse sido assim, muito provavelmente, Juscelino não teria encontrado mais se viu, e não é tudo, neste texto? Seria isso um quase nada? [1954a]. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. O que se viu aqui neste texto foi o trabalho de uma Comissão, mandato. Sem o longo e cuidadoso desenvolvimento de um embrião MATTOS, Allyrio Hugueney de. A quem interessar possa. Carta-manifesto a CLNCF, composta por inúmeros técnicos competentes, aos quais até chamado afetuosamente de Vera Cruz, preservado das instabilidades do sobre o trabalho apresentado no XI Congresso de Geografi a, Rio de Janeiro, Le Corbusier quis se juntar, formada e operada para criar as condições meio, a bela Brasília que dele se origina não estaria pronta para nascer. jul. 1954b. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. para que a construção e a mudança da Capital pudessem ocorrer. A Comissão teve num primeiro momento a tocada pragmática do MENDONÇA, Nadir Domingues. 21 de abril de 1960: Brasília, a nova Capital. São Paulo: Lazuli; Nacional, 2007. 116 p. general Caiado de Castro, e depois o trabalho apaixonado do marechal José Pessoa, que deu à cidade o codinome apaixonado de Vera Cruz. NIEMEYER, Oscar. Minha experiência em Brasília. 4. ed. Rio de Janeiro: Re- van, 2006. 52 p. José Pessoa assumiu a Comissão num momento delicado, Referências PESSOA, José. Nova metrópole do Brasil: relatório geral de sua localização. após a morte de Getúlio e a posse do governo interino de Café Filho, Rio de Janeiro: SMG-Imprensa do Exército, 1958. 368 p. e a conduziu por um período delicadíssimo, no qual as instabilidades CAFÉ FILHO, João. Do sindicato ao Catete. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1966. v. 2: Memórias políticas e confi ssões humanas. SILVA, Ernesto. História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realida- no poder federal fi zeram a Presidência da República transitar de de. 2. ed. Brasília: Senado Federal, 1985. 398 p. Veredas..de CÂMARA, Hiram de Freitas. Marechal José Pessoa: a força de um ideal. Rio Café Filho para Carlos Luz, e deste para Nereu Ramos, a tudo isso de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985. 209 p. (Biblioteca do Exército, 546. SILVEIRA, José Peixoto da. A nova Capital: por que, para onde e como mudar Brasília acrescidas as manobras, frustradas, para impedir a posse do presidente Coleção General Benicio, v. 233). a Capital Federal. [Rio de Janeiro]: Pongetti, 1957. 357 p. 113 perfis Marechal Aguinaldo Caiado de Castro: Lopes (1865-1949) e marechal reformado Odílio Bacelar. Todavia, De 1927 até 1930, Caiado esteve lotado na Diretoria de Aviação Veredas..de um personagem da história não conseguiu atingir seu objetivo, pois, no momento preciso, um Militar, no Rio de Janeiro, ainda sob as ordens de Góis Monteiro, ou Brasília a ser redescoberto sargento com quem combinara a tentativa resolveu traí-lo. Caiado substituindo-o interinamente, junto com outros ofi ciais, quando aquele Marco Aurélio Martins Santos* de Castro ainda travou luta corporal com o tenente Asdrúbal Gwyer se afastou do órgão. No momento em que irrompeu a Revolução de de Azevedo (1897-1970) e com o então capitão Juarez Távora 1930, Caiado era chefe de gabinete do general Mariante e ambos não (1898-1975), mas foi dominado e preso. Quando foi libertado, juntou- se envolveram no levante, nem lhe opuseram resistência. Aguinaldo Caiado de Castro era carioca, nascido em 2 de se aos legalistas na brigada do general Tertuliano de Albuquerque Vida de militar sempre leva a transferências e viagens. Em outubro de 1899, sendo fi lho de João Alves de Castro e Teresina Potyguara (1873-1957) e foi abrir combate aos rebeldes no bairro janeiro de 1932, Caiado de Castro estava lotado no 6o Regimento Caiado de Castro. paulistano da Mooca. Com o avanço dos rebeldes, Caiado de Castro de Infantaria, com sede na cidade paulista de Caçapava. Foi quando foi designado para participar da escolta à comitiva que conduziu o Caiado de Castro estudou no Colégio Diocesano São José, na estourou a Revolução Constitucionalista, que contou com a sua presidente do Estado de São Paulo (cargo semelhante ao do atual cidade mineira de Uberaba, vindo posteriormente para o Rio de Janeiro adesão. Ele participou de combates contra as tropas do governo governador) Carlos de Campos até Mogi das Cruzes. completar seus estudos secundários no Colégio Militar. Entrou para o varguista em vários locais do Vale do Rio Paraíba do Sul. Com a Exército em fevereiro de 1917, matriculando-se logo em seguida na Com o desenrolar dos combates, os rebeldes perderam derrota dos insurgentes, Caiado foi reformado por ato administrativo Escola Militar do Realengo. Lá, fez cursos de infantaria e cavalaria. posições e tiveram que deixar a capital paulista, movendo-se para e durante o período em que esteve fora do Exército entrou para a o interior do estado e daí para os estados mais ao sul, quando se Tornou-se aspirante em janeiro de 1921 e em fevereiro já estava faculdade de Direito de Niterói, vindo a formar-se advogado. Com a encontraram com a chamada Coluna Prestes. Em 1925, Caiado de inscrito no 1o Regimento de Infantaria, na Vila Militar, no Rio de Janeiro anistia aos revoltosos, concedida pelo presidente Getúlio Vargas, ele Castro integrou um batalhão que deu combate à Coluna Prestes. (atual Regimento Sampaio), onde serviu até 1922. Enquanto esteve voltou às Forças Armadas, matriculando-se em um curso na Escola do No ano seguinte, o então ministro da Guerra, general Fernando ali, foi segundo-tenente, desde maio de 1921. Em outubro de 1922 já Estado-Maior, onde permaneceu estudando de 1934 até 1936. Neste Setembrino de Carvalho (1861-1947) designou o general Álvaro tinha sido promovido para primeiro-tenente. Em 1923, conseguiu um ano, alcançou a patente de major, no ano seguinte, era ofi cial lotado Mariante (1875-1950) para reunir tropas e partir para a Bahia, para posto no 4o Batalhão de Caçadores, em São Paulo. no próprio Estado-Maior do Exército - EME. Foi quando aconteceu o enfrentar a Coluna Prestes, que já tinha chegado àquele estado. triste episódio de nossa História, conhecido como Plano Cohen, que Na capital paulista, ele acabou envolvido no combate ao Caiado de Castro foi convidado a integrar-se ao estado-maior de levaria à ditadura do Estado Novo. segundo movimento tenentista, o que ocorreu em São Paulo. No Mariante, sob o comando do então capitão Pedro Aurélio de Góis dia 5 de julho, quando irrompeu a revolta, Caiado de Castro foi Monteiro (1889-1956). Durante os combates à Coluna Prestes, Caiado Há uma versão que diz que Caiado de Castro teria surpreendido aprisionado pelos rebeldes. Ele ainda tentou reverter a detenção recebeu a promoção para capitão, por bravura. Isso em outubro de o capitão Olympio Mourão Filho (1900-1972), integralista de dando voz de prisão aos líderes da revolta, general Isidoro Dias 1926. Apesar das tentativas legalistas, os rebeldes comandados por quatro costados, reproduzindo em uma máquina de datilografar um Luis Carlos Prestes (1898-1990) conseguiram resistir e se deslocaram documento sobre um suposta insurreição comunista. Caiado teria pelo Território Nacional até embrenharem-se na Bolívia. Caiado de sugerido que ele falasse sobre o documento com o general Góis * Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatís- Castro e Góis Monteiro redigiram o relatório, descrevendo as lutas Monteiro, chefe do EME. Olympio teria respondido que não faria ticas – ENCE/IBGE, jornalista, Analista em Planejamento e Gestão de Informações Geográfi cas e Estatísticas no IBGE. contra os soldados da Coluna. isso, por ser conhecido como integralista, logo, inimigo crucial do 114 perfis

comunismo, o que poderia tirar o crédito da denúncia. Caiado de Com a participação do Brasil na grande guerra, Caiado Castro, então, levou o fato ao conhecimento de seu superior, que embarcou do Rio para Nápoles, na Itália, em setembro de instou Olympio a deixar uma cópia do documento em suas mãos 1944, integrando a 1a Divisão de Infantaria Expedicionária, que para as devidas providências. Posteriormente, Mourão negaria esta posteriormente seria conhecida como Força Expedicionária Brasileira hipótese, afi rmando que aquele documento era uma espécie de – FEB. No teatro de operações da guerra, ele foi inicialmente o “exercício dos integralistas em resposta a uma hipotética insurreição designado para o comando do 1 Regimento de Infantaria, na Itália. Em fevereiro, ele comandou as investidas brasileiras para tomar comunista” (BELOCH; ABREU, 1984, p. 722). De hipotético em Monte Castelo, o que foi conseguido a duras penas e com pesadas hipotético, aquele documento fi ctício (posteriormente, a História baixas nas tropas brasileiras. Caiado participaria de vários combates, provou que os comunistas nada tiveram a ver com ele), serviu comandando tropas ao lado ou sob as ordens do general Euclides para que o presidente Getúlio Vargas decretasse o Estado Novo, Zenóbio da Costa (1893-1962) e do general Osvaldo Cordeiro de atropelando as eleições diretas marcadas para o ano seguinte, Farias (1901-1981), duas legendas da FEB. submergindo o País em ditadura atroz por oito anos. Mesmo com o cessar-fogo decretado em maio de 1945, Caiado de Castro permaneceu no EME até junho de 1938, Caiado de Castro ainda permaneceria na Itália até agosto daquele o quando se transferiu para o 14 Regimento de Infantaria, com sede ano, quando regressou ao Brasil com seus comandados. Eram tempos no município fl uminense de São Gonçalo. No ano seguinte, ele foi de democratização e os militares se movimentaram para encerrar o incorporado na missão, chefi ada por Góis Monteiro, que foi aos Estado Novo de Vargas, depondo o presidente, com o general Góis Estados Unidos com o objetivo de planejar formas de cooperação Monteiro à frente. Caiado de Castro manifestou suas simpatias para entre os dois países, caso o perigo de guerra mundial que pairava no com este movimento. mundo naquele momento realmente se concretizasse. Em 1947, foi promovido a general-de-brigada, e esteve Em maio de 1940, ele foi novamente promovido, desta vez lotado em São Paulo até o ano seguinte. Em seguida, foi para Recife, General Aguinaldo Caiado de Castro a para tenente-coronel, sendo transferido, no ano seguinte, para a 8a como subcomandante da 7 Divisão de Infantaria, onde permaneceu Acervo da Fundação Getúlio Vargas – FGV/CPDOC Região Militar, em Belém, no Estado do Pará, onde esteve até 1943. até 1949, quando voltou ao Distrito Federal para servir na Escola Neste ano, ele foi novamente aos Estados Unidos para estágio, como Superior de Guerra.

preparação do Brasil para entrar na II Guerra Mundial. Retornando Em abril de 1952, com Vargas de volta ao poder como ao Brasil, foi lotado no 1o Regimento de Infantaria, na Vila Militar, presidente eleito, ele substituiu o general Ciro do Espírito Santo no Distrito Federal, mas ainda voltaria aos Estados Unidos para fazer Cardoso (1898-1979) como chefe do Gabinete Militar da Presidência eredas..de V curso na The Infantary School, em Fort Benning, no Estado ianque da República. E durante o período em que esteve no cargo, foi Brasília da Georgia. promovido a general-de-divisão, em 1953. 115 perfis Neste cargo, Caiado de Castro participou de dois momentos Vargas, pressionado a renunciar como decorrência de acontecimentos votos. No momento da defi nição da chapa presidencial, discordou Veredas..de signifi cativos de nossa História. O primeiro deles foi quando Getúlio de enorme gravidade, naquele momento, suicidou-se com um tiro no da corrente que apontava Juscelino Kubitschek (1902-1976) e João Brasília Vargas o convocou para presidir a Comissão de Localização da coração, deixando a vida e entrando para a História. Goulart (1919-1976) para presidente e vice, preferindo que o partido Nova Capital Federal. Esta comissão teria um chefe nomeado pela constituísse uma frente populista, apoiando a chapa Adhemar de Caiado de Castro, por esta época, já estava cuidando do presidência e de um representante de cada ministério, assim como Barros (1901-1969)-Danton Coelho (1906-1961). segundo momento signifi cativo de nossa História, que contou representantes do Conselho de Segurança Nacional, do Estado de com sua participação. Por ocasião do atentado ao jornalista Carlos Quando tentou retornar à presidência, João Café Filho, vice de Goiás, do IBGE, do Departamento Administrativo do Serviço Público Lacerda (1914-1977), em que morreu o major da Aeronáutica Rubem Getúlio que se licenciara, encontrou resistência dos políticos e das - DASP e da Fundação Brasil Central. Florentino Vaz (1922-1954), Caiado foi designado para acompanhar próprias Forças armadas. O Congresso votou pelo seu impedimento e Tão logo foi empossado por Getúlio, o general Caiado de as investigações, apurando responsabilidades. o senador Caiado de Castro foi um dos que votaram favoravelmente a esta medida. Castro contratou a empresa Cruzeiro do Sul Aerofotogrametria para Após conversa com Getúlio, o general Caiado emitiu nota à proceder ao levantamento aerofotogramétrico da área conhecida como imprensa, na noite do dia 22 de agosto, assegurando a intenção do Caiado viu a inauguração de Brasília, foi promovido a general- Retângulo do Congresso – espaço de 52 mil quilômetros quadrados presidente cumprir integralmente o seu mandato, contando com o de-exército, em 1958, passou para reserva e nesta condição chegou determinado pelo Congresso, entre os paralelos 15 e 17 e os meridianos apoio das Forças Armadas. Todavia, os generais Zenóbio da Costa, ao cargo de marechal. Cumpriu fi elmente o seu mandato até janeiro 46 e 49. Em janeiro de 1954, a fi rma brasileira que fazia parte da empresa Mascarenhas de Morais (1883-1968) e Odílio Denis (1892-1985) se de 1963, e, após ter combatido o bom combate, descansou no dia 7 Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul Ltda. (posteriormente absorvida pela reuniram com ele e asseguraram que era impossível resistir à pressão de julho daquele mesmo ano, deixando inconsoláveis sua viúva Josefa VARIG), completou o serviço e entregou as fotografi as à Comissão. Com dos militares favoráveis à renúncia. Mesmo sob aquela pressão, na Freire Amazonas Caiado de Castro e sua fi lha Magali. O marechal Caiado posse do material, Caiado de Castro pesquisou no mercado uma outra madrugada de 23 para 24 de agosto, Caiado reunido com o ministério de Castro defi nitivamente é um personagem que viveu bem perto das empresa que pudesse realizar a análise das fotos. Havia duas fi rmas e familiares do presidente, fez dramático apelo a Vargas para que luzes da História recente do Brasil, e que precisa ser redescoberto e resistisse. O presidente se matou e Caiado de Castro, quando soube da no mercado, uma alemã e outra norte-americana. Caiado optou pela trazido aos holofotes de uma aprofundada pesquisa. segunda, considerada a melhor disponível. Ele entrou em contato notícia, teve forte abalo emocional, que inclusive lhe trouxe prejuízo com a empresa Donald J. Belcher and Associates Incorporated e, à saúde. em 25 de fevereiro de 1954, foi assinado o contrato de prestação de Com a assunção do vice-presidente ao cargo mandatário da serviços entre esta fi rma e a Comissão do Vale do São Francisco, que Nação, Caiado de Castro deixou o Gabinete Militar e a presidência da assinou “por delegação da Comissão de Localização da Nova Capital” Comissão para Localização da Nova Capital, embora o Presidente João (SILVA, 1985, p. 76). O valor do contrato foi de 350 mil dólares ou Café Filho (1899-1970) o tenha convidado a permanecer no cargo. O Caiado de Castro, seis milhões e quatrocentos mil cruzeiros. General passou o comando do marechal José Pessoa Cavalcanti de Tancredo Neves e outros na comemoração do Albuquerque (1885-1959). aniversário de Em 24 de agosto de 1954, perto da conclusão dos trabalhos da Ivete Vargas Belcher, aconteceu um fato marcante na política brasileira, que traria Caiado optou por se candidatar ao cargo de senador pelo PTB, Acervo da Fundação Getúlio Vargas – desdobramentos nos trabalhos da Comissão. O presidente Getúlio nas eleições de outubro de 1954, conseguindo se eleger com 331 704 FGV/CPDOC 116 perfis Marechal José Pessoa Cavalcanti servir como ajudante-de-ordens e assistente do inspetor da 10a Região de Albuquerque: Militar, na Bahia. uma vida determinada pelo ideal Em 1918, ele viajou para a França para fazer um estágio na Marco Aurélio Martins Santos* Escola Militar de Saint-Cyr. Foi quando apresentou-se como voluntário para lutar nas fi leiras francesas, numa unidade de Carros de Combate – uma nova arma que surgia nos campos de batalha - naquele José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque nasceu em 12 de que seria o último ano da I Guerra Mundial. O tenente José Pessoa setembro de 1885, em Cabaceiras, na Paraíba, fi lho de Cândido comandou um pelotão de soldados franceses do 4o Regimento de Clementino Cavalcanti de Albuquerque e Maria Pessoa Cavalcanti de Dragões. Foi condecorado por atos de bravura e promovido a capitão Albuquerque. Pelo lado materno, tinha familiares que se tornaram em 1919. Com o fi m da guerra, permaneceu na França como enviado ilustres. Seu tio, Epitácio Pessoa (1865-1942), foi presidente da do Exército Brasileiro para comprar material bélico. Aproveitou a sua República de 1919 a 1922. Seu irmão, João Pessoa (1878-1930), foi permanência em terras francesas para frequentar o curso prático de presidente da Paraíba1 de 1928 até 1930, quando foi assassinado por artilharia de assalto no Centre D’études Des Chars de Combats (Centro um inimigo político. de Estudos de Carros de Combate). Neste mesmo ano, foi designado Quando em idade escolar, foi para a cidade da Paraíba (atual para acompanhar os reis da Bélgica Alberto (1875-1934) e Elisabeth João Pessoa), capital do estado, onde fez seus primeiros estudos. (1876–1965) em sua primeira viagem ao Brasil, assim como no seu Em 1903, transferiu-se para Recife, onde alistou-se no 2o Batalhão retorno a Bruxelas. de Infantaria e de lá seguindo para o Rio de Janeiro, onde entrou Marechal José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque Depois de cumprida esta missão, Pessoa retornou ao Brasil Acervo do brigadeiro para a Escola Preparatória e Tática, no bairro carioca de Realengo. naquele mesmo 1920, “com o espírito retemperado numa guerra José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque Em 1909, foi para Porto Alegre, onde se matriculou na Escola Militar, de grandes e com seus conhecimentos atualizados no que havia de saindo de lá aspirante-a-ofi cial. Em 1913, foi promovido a segundo- mais moderno na tática terrestre” (MATTOS, 1985, Apresentação). Tão tenente, chegando a primeiro-tenente cinco anos depois. Durante logo aqui chegou, foi designado para organizar a primeira unidade algum tempo, esteve à disposição da Brigada Policial do então Distrito de tanques do Exército Brasileiro, onde permaneceu por três anos. Federal, até ser enviado para o Mato Grosso com a missão de conter Quando instado a escolher os primeiros carros de combate que o disputas entre as regiões norte e sul do estado. De lá, foi para a Bahia Exército Brasileiro compraria, ele escolheu o modelo Renault FT-17. Publicou, em 1921, o livro Os tanks na guerra européia, o primeiro * Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatís- ticas – ENCE/IBGE, jornalista, Analista em Planejamento e Gestão de Informações Geográfi cas sobre o assunto na América Latina. Em 1923, saiu sua promoção para e Estatísticas no IBGE. eredas..de major. Logo em seguida, foi indicado para o posto de subcomandante V 1 Ao tempo da Primeira República, os dirigentes de alguns estados eram chamados de Presiden- Brasília te, como fora o caso da Paraíba. Outros estados já adotavam a denominação de governador, que da Escola Militar do Rio de Janeiro. Antes de chegar à patente de acabou consagrado após a Constituição de 1946, e segue sendo usado até hoje. 117 perfis tenente-coronel, em 1927, ele recebeu a incumbência de comandar A partir de sua experiência no comando da Escola de Realengo, Veredas..de o 1o Regimento de Cavalaria Divisionária – os chamados Dragões da ele teve a ideia de criar uma nova escola, uma Academia que dotasse Brasília Independência. Nos anos de 1928 e 1929, ele comandava a 2a Brigada o Exército de uma formação moderna, acompanhando o que havia de Cavalaria e fazia curso na Escola de Aperfeiçoamento de Cavalaria, de melhor e mais novo no mundo. O cadete de Caxias teria que alcançando a patente de coronel. fazer sua formação em instalações condignas, ser submetido a um rigoroso sistema de formação, com claras e sólidas regras ética e O turbilhão político verifi cado em outubro de 1930 teve a moral. participação direta do coronel José Pessoa. Seu irmão foi assassinado Em 1933, ele pretendia fi ncar a pedra fundamental em na Paraíba, numa briga meramente regional entre adversários Resende, município que escolhera para o estabelecimento de ensino. políticos, mas que foi capitalizada pelos insurgentes, que aproveitaram Todavia, seu projeto inicial foi desfi gurado ao longo de muitos para insufl ar a população contra o presidente Washington Luís palpites de patentes bem mais altas que a sua. E ele se recusou em o (1869-1957). José Pessoa, então comandando o 3 Regimento de participar dos planos de construção da Escola que estava no papel, Infantaria, junta seus comandados a um grupamento civil e invade tão diferente da que estava na sua mente. o Palácio Guanabara, onde estava o acuado presidente da República, Ainda neste ano, ganhou promoção para general-de-brigada que acabou preso, sendo conduzido pelo coronel insurgente para o e, no ano seguinte, enfrentou uma forte rebelião de cadetes da Forte de Copacabana. Escola de Realengo. Insatisfeito com a solução dada ao imbróglio, Com a vitória dos revoltosos de 1930, comandados por pediu demissão do comando da Escola. Foi designado como inspetor Marechal José Pessoa e membros da Comissão e comandante do Distrito de Artilharia de Costa da 1a Região Militar, em visita ao Planalto Central Getúlio Vargas (1882-1954), Pessoa passou um curto período como Acervo do brigadeiro José Pessoa Cavalcanti de comandante do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, sendo logo no Distrito Federal. Albuquerque designado, naquele mesmo ano, para o comando da Escola Militar Por ocasião da Intentona Comunista, de 1935, o então general de Realengo, onde fora estudante no início de sua carreira militar. Pessoa foi chamado a uma reunião para examinar a situação do País Era o momento ideal para ele por em prática os ensinamentos que e para discutir sobre a necessidade de se rever as leis punitivas para verifi cara em seu período na Europa. Reformou as instalações da os insurretos. Pessoa discordou de todos os presentes, alegando escola, estabeleceu uma doutrina para a formação do corpo de ofi ciais que aquela seria uma atribuição de juristas, não de generais. No brasileiros, o que conseguiu com a ajuda de instrutores com curso de seu entender, aquela reunião deveria se circunscrever a servir como Estado-Maior trazido ao Brasil pela missão Militar Francesa de 1920. moção de apoio ao ministro da Guerra, para que este, dentro das atribuições constitucionais, agisse junto aos órgãos competentes Ele via a Escola como um educandário, muito mais que um simples para solicitar punição aos que cometeram crimes. quartel. Ele fez mudança nos uniformes, recriou o espadim de Caxias como símbolo da honra militar, e com isso faz com que ser aluno da Quando no ambiente político se entabulavam discussões sobre Escola galgue posições na sociedade carioca. a sucessão presidencial do presidente Getúlio Vargas, em 1937, houve 118 perfis

uma corrente militar contrária a realização de eleições e também havia colaborou para a queda de Vargas ao lançar um manifesto contra os favoráveis e os neutros. O general Góis Monteiro (1889-1956), o “queremismo” e contra a nomeação de Benjamim Vargas para a membro atuante do movimento que queria abolir as eleições marcadas, Chefatura de Polícia do Distrito Federal. acusou o general Pessoa de inimigo do regime, por conta de uma Nomeado adido militar na embaixada brasileira na Inglaterra, suposta reunião na sua casa para conspirar contra o governo. José esteve fora do País entre 1946 e 1948. Tomou parte na fundação do Pessoa escreveu diretamente para o presidente, desmentindo Góis Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional, e alertando que processaria o seu acusador. No decorrer dos fatos, que articulou a campanhas “O Petróleo é Nosso”. Ainda em 1948, Góis Monteiro e outros militares linha-dura prevaleceram, as eleições chefi ou o Comando da Zona Militar Sul (que mais tarde seria III não aconteceram em virtude do golpe conhecido como Estado Novo. Exército), que abarcava tropas de Paraná, Santa Catarina e Rio Grande José Pessoa, que estava cotado para um cargo de comando em Belo do Sul, e, no ano seguinte, na sua data do seu 64o aniversário, ele Horizonte, fi cou um tempo na condição de “homem ao mar”, ou foi transferido para a reserva, como general-de-exército. Esta data “encostado” (BELOCH; ABREU, 1984, p. 2706), segundo palavras de se tornou especialmente grata ao velho homem de Armas. Ele fora Nelson Werneck Sodré (1911-1999), até que foi nomeado, em 1938, convidado para ir até a Escola Militar de Resende que criara e lá foi a comandante da 9 Região Militar, em Mato Grosso, bem longe do designado como “comandante por um dia”, entregou espadins aos centro de decisões nacionais. cadetes, recebeu tocante homenagem do então comandante de lá, Marechal José Pessoa colhendo fl ores general Cyro do Espírito Santo Cardoso (1898-1979). José Pessoa no Planalto Central para sua tia, Mary Em 1940, foi promovido a general-de-divisão, três anos depois Sayão Pessoa, viúva do presidente Epitácio Pessoa foi enviado ao Paraguai, como embaixador extraordinário à posse do fez um discurso memorável naquela solenidade, até hoje lembrado Acervo do brigadeiro brigadeiro José naquele estabelecimento de ensino. presidente daquela nação. Ainda em 1943, participou da comissão Pessoa Cavalcanti de Albuquerque que elaborou a defesa dos portos de Rio e Santos e também os portos Estava José Pessoa em seu retiro da vida pública, após uma fl uviais de Mato Grosso e no rio São Francisco. Em 1944, se elegeu brilhante carreira militar, desde 1953 tornado marechal, quando foi presidente do Clube Militar, permanecendo no cargo até 1946. Naquele convidado, em outubro de 1954, pelo então presidente João Café ano, em 1o de janeiro, foi inaugurada a Escola Militar de Resende, Filho (1899-1970), que assumira o governo após o suicídio de Vargas, antigo sonho de Pessoa. Ele queria que o nome fosse Academia Militar para uma missão especial: comandar a Comissão de Localização das Agulhas Negras, mas por determinação do general Eurico Dutra e Planejamento da Nova Capital Federal, no Planalto Central. E ele (1883-1974), prevaleceu o nome como Escola. Somente em 1952, por aceitou a incumbência com o mesmo ardor patriótico que o moveu decreto de Vargas, de 23 de abril, o estabelecimento adotou o nome durante sua vida. Não recebeu nenhuma remuneração por isso. E fez sugerido por seu idealizador. um excelente trabalho.

eredas..de V Por ocasião do fi m da II Guerra Mundial, Pessoa foi escolhido Ele herdou a Comissão após um período em que ela esteve sob Brasília para organizar comitês de boas-vindas aos ex-combatentes. Ele o comando de um outro companheiro de armas, o general Aguinaldo 119 perfis Caiado de Castro (1899-1963), escolhido por Getúlio Vargas, em 1953, vermelho e castanho. A Comissão decidiu por este último, que estava ao presidente. Sua missão já tinha sido cumprida, era hora do Veredas..de e que já tinha convidado uma empresa brasileira para os trabalhos localizado no centro do Quadrilátero Cruls e já tinha sido indicado empreendedorismo avassalador de Kubitschek levar adiante o antigo Brasília aerofotogramétricos – a Aerofoto Cruzeiro do Sul – e uma fi rma pela Comissão Polli Coelho (por sugestão da expedição comandada sonho de mudar a capital para o Planalto Central. norte-americana, a Donald J. Belcher and Associates, para ralizar a por Francis Ruellan). O presidente Café Filho relutou em iniciar Os olhos de José Pessoa não veriam a capital de pé. No dia devida análise e estudos aerofotogramétricos. Embora convidado a as desapropriações da área conhecida como Sítio Castanho, o que 16 de agosto de 1959 retirou-se da vida e virou História, deixando permanecer no cargo, Caiado preferiu se afastar. levou o marechal a viajar para o Planalto em busca de apoio do entristecidos sua esposa Blanche Mary, seus fi lhos Joy, José e Elizabeth, governador de Goiás, José Ludovico (1906-1989), que corajosamente Tão logo, Pessoa assumiu, verifi cou que a Comissão não tinha e todos os brasileiros que se orgulham de seus heróis. aceitou a sugestão e assinou ele próprio o decreto que autorizava a ainda uma sede própria, funcionando na sala do chefe do gabinete desapropriação em 1o de maio de 1955. Militar da Presidência (o próprio Caiado de Castro). Após rápida peregrinação, ele conseguiu duas salas na Comissão do Vale do São Em 24 de novembro daquele mesmo ano, José Pessoa entregou Francisco, situada na Av. Presidente Wilson, defronte à Embaixada o relatório de sua Comissão ao presidente Café Filho. Por sua sugestão, Referências destes perfi s dos Estados Unidos. Ali ele se reunia com os membros da Comissão, a nova capital deveria se chamar “Vera Cruz”. Há diversos documentos

incluindo o representante do IBGE, o geógrafo Fábio de Macedo Soares em que este nome aparece. BELOCH, Israel; ABREU, Alzira Alves de (Org.). Dicionário Histórico-Biográfi co Guimarães (1906-1979), e o representante do Ministério da Educação Brasileiro: 1930-1983. Rio de Janeiro: Forense-Universitária: Fundação Getulio Com Juscelino Kubitschek (1902-1976) presidente eleito e Vargas/CPDOC: Financiadora de Estudos e Projetos-FINEP, 1984. e Cultura, engenheiro Paulo de Assis Ribeiro (1906-1974). assumindo o governo, Pessoa foi ao Palácio do Catete para prestar MATTOS, Carlos de Meira. Apresentação. In: CÂMARA, Hiram de Freitas. Ma- rechal José Pessoa: a força de um ideal. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, Com seu dinamismo e capacidade de trabalho, José Pessoa contas de sua missão e entregar o cargo. Kubitschek pediu para ele 1985. (Biblioteca do Exército, 546. Coleção General Benício, v. 233). esteve no Planalto Central, acompanhado dos técnicos da Comissão permanecer no cargo, mas em fi ns de maio de 1956, ele entregou SILVA, Ernesto. História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realidade. e arrolaram cinco sítios, nomeados por cores: verde, azul, amarelo, o cargo de forma irrevogável por meio de uma longa carta dirigida Brasília: Senado Federal, 1985.

120 O..INÍCIO. .DA..CAPITAL

parte Imagem de abertura da 2a parte: Plano piloto de Brasília, criado por Lucio Costa Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal Folha de rosto da publicação do Censo Experimental de Brasília: Em 1959, o censo experimental na alvorada de Brasília população-habitação Acervo do IBGE Luiz Antônio Pinto de Oliveira*

Entre as atividades de planejamento dos censos demográfi cos no Brasil, faz parte a realização de testes-piloto para avaliação da forma e estruturação dos instrumentos operacionais censitários e, de modo mais integrado, a execução de um censo experimental, em um município selecionado, para o teste geral dos instrumentos de coleta. Tais procedimentos são adotados permanentemente nas operações censitárias do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística - IBGE até o presente. Vista parcial de eventos no escritório-sede da NOVACAP – Candangolandia, DF Para a realização do Censo Demográfi co de 1960, o IBGE encarregou o Núcleo de Planejamento Censitário, órgão do Conselho Nacional de Estatística, da preparação dos trabalhos de planejamento do recenseamento geral. Para este Censo, o IBGE introduziu alguns aperfeiçoamentos Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal metodológico e operacional, destacando-se o procedimento pioneiro do processo de amostragem para levantamento de diversas características da população.

O Censo experimental de Brasília, realizado em 17 de maio de 1959, foi o segundo inquérito de caráter experimental realizado pelo Núcleo de Planejamento Censitário com vistas ao Censo de 1960, tendo sido o primeiro efetuado no Município de Ituiutaba, na região do chamado Triângulo Mineiro.

Em relação ao Censo de Brasília, o volume publicado pelo IBGE em 1959, denominado Censo experimental de Brasília; população, habitação, 17 de maio de 1959, destaca que o próprio Presidente da República havia manifestado “interesse de conhecer de forma mais ampla possível, a situação demográfi ca da área da Nova Capital”.

Para a viabilização do censo experimental, a publicação destaca também o apoio da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - NOVACAP, das fi rmas construtoras, do Ministério da Aeronáutica e do Conselho Nacional de Geografi a. O inquérito teve como coordenador-geral o Sr. Newton Pires de Azevedo, do Serviço Nacional de Recenseamento e do Núcleo de Planejamento Censitário e a participação na Direção de

* Mestre em Demografi a Econômica, pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional - CEDEPLAR, da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Coordenador de População e Indicadores Sociais, da Diretoria de Pesquisas, do IBGE. técnicos que durante vários anos exerceram funções fundamentais no antigos “quadros rurais” dos Municípios de Planaltina, Formosa e da nova Capital. Para tal, desenvolvemos inicialmente uma seção que Veredas..de IBGE, como Heitor da Câmara Vellozo, Elson Mattos1, Vinícius Fonseca2, Luziânia, os quais são os municípios parcialmente formadores do discute a questão histórica da ocupação demográfi ca do Estado de Brasília Mauro Gonçalves de Andrade, Célio Fonseca e Amaro da Costa território da nova capital. Goiás e da área que veio a constituir Brasília, em seguida examinaremos Monteiro3. Coube especifi camente a Heitor da Câmara Vellozo e Célio de forma sistemática os resultados do Censo e encerraremos com Os instrumentos de coleta utilizados foram: o Boletim de Fonseca a direção dos trabalhos de coleta do censo experimental. Para uma breve consideração sobre a evolução posterior de Brasília e Família (o questionário propriamente dito), a Lista de Domicílio a constituição do corpo de recenseadores, coube à então Inspetoria seu signifi cado para os movimentos de interiorização e ocupações Coletivo e a Caderneta do Recenseador. O preenchimento dos Regional de Goiás contribuir com o maior número de recenseadores demográfi ca e econômica do grande oeste brasileiro. questionários teve caráter predominantemente universal, fi cando (52) tendo sido também importante a contribuição das Inspetorias a amostragem, técnica então pioneira, restrita a três quesitos Regionais de Minas Gerais e São Paulo, com 25 recenseadores cada do tema trabalho e rendimento, abrangendo uma amostra de uma. aproximadamente 25% da população. A localização de Brasília e a A área recenseada abrangeu todo o território do futuro Distrito O plano de divulgação compreendeu a preparação de cerca dinâmica regional de Goiás Federal (paralelos 15o 30´s e 16o 30´s), situada entre os rios Descoberto de 21 tabelas, procurando retratar o quadro das condições de vida e Preto, então pertencente ao Município de Planaltina (Estado de A área que foi desmembrada do Estado de Goiás para a criação então existentes, na situação transitória de construção da nova Goiás). A chamada Zona Rural incluía as áreas fora das localidades da nova Capital distribuiu-se pelo território de então três municípios capital. O volume de divulgação contém breves textos de apreciação estabelecidas para o recenseamento (acampamentos, núcleos goianos: Planaltina, Formosa e Luziânia. analítica para os nove subtemas sobre características individuais provisórios e núcleos estáveis), compreendendo inclusive parte dos da população (população total, sexo, idade, estado conjugal, cor, O estabelecimento do sítio correspondente ao atual Distrito religião, educação, migração e características econômicas) e também Federal é resultado de um longo processo de evolução histórica que, 1 Foi o idealizador e estruturador do Serviço Federal de Processamento de Dados - SERPRO, em para as características das famílias e dos domicílios. em sua gênese, remonta ao tempo do Império. A primeira Constituição meados dos anos 1960. Ainda tem atuação no IBGE, sempre competente em matéria censitária. 2 Republicana, em 1891, indica expressamente o Planalto Central como Foi o responsável pela transformação do Instituto Oswaldo Cruz em Fundação, a atual No presente texto, procuraremos explorar os resultados desse FIOCRUZ, da qual, na década de 1970, foi Presidente. Um “estranho no ninho”, dizia com humor local para edifi cação da nova capital, mandando demarcar uma sobre sua presença na FIOCRUZ, já que era estatístico e economista. censo experimental, enfatizando as características da população que 3 Depois, quando da transformação do IBGE em Fundação, foi Diretor Técnico na gestão de Isaac área de 14 400 km², trabalho executado pela conhecida “Comissão Kerstenetzky, voltando à função pouco depois na gestão Jessé Montello. então se estabeleceu no período de transição que foi a construção Cruls”. No centenário da Independência, o Presidente Epitácio Pessoa determinou o lançamento da pedra fundamental nas imediações do município goiano de Planaltina, a uma pequena distância do atual centro de Brasília. Iniciativas posteriores foram delimitando com maior rigor os limites, de tal forma que, em 1955, a Comissão de Localização da Nova Capital Federal escolheu uma área de 5 850 km² situada entre os rios Preto e Descoberto.

Vilarejo dentro do perímetro de Brasília, em 1958 Acervo do Arquivo Público do 124 Distrito Federal A área escolhida compreendia porções dos três municípios Em 1940, os municípios do sudeste goiano (Catalão, Corumbaiba, da expansão para o Oeste passam a ser mais concretamente sentidos goianos, sendo que a contribuição mais expressiva era dada por Ipameri, Morrinhos) já não eram os únicos que dominavam a produção através do crescimento das frentes demográfi cas, impulsionadas pela Planaltina, cuja cidade-sede passava a fi gurar no território do novo agrícola, favorecidos pela proximidade de sua ligação com o vizinho colonização dirigida (ofi cial) ou pelos movimentos espontâneos. As áreas Distrito Federal. Os Municípios de Formosa e Luziânia perdiam partes Triângulo Mineiro. A expansão já havia alcançado o sudoeste, a partir centrais do Estado passam a receber as novas correntes migratórias, de suas áreas rurais. do Município de Rio Verde. O norte do estado, incluindo regiões que tanto no vale de São Patrício (Colônia Nacional de Ceres), ao norte de hoje pertencem ao Estado do Tocantins, se destacava na pecuária Goiânia, como, principalmente na chamada região do Mato Grosso de O que representava, no contexto de Goiás, essa área (Pedro Afonso, Araguacema, Tocantinópolis), porém com povoamento Goiás. Também nesse período aprofunda-se a penetração de frentes desmembrada para a criação de Brasília? bastante disperso. pioneiras no sudoeste do estado, notadamente em Rio Verde e Jataí. A evolução demográfi ca de Goiás, após um longo período Um balanço da situação de Goiás no início da década de 1950 revela os Os anos de 1940 aprofundam e intensifi cam as redistribuições de baixo crescimento, vinha apontando um surto inicial de efeitos do crescimento e redistribuição populacional. Diferentemente sub-regionais das atividades econômicas e da ocupação demográfi ca. diversifi cação e expansão. Os efeitos das ligações ferroviária e das décadas anteriores, quando o crescimento demográfi co era mais A fundação de Goiânia, em 1942, é um marco no desenvolvimento da rodoviária especialmente com o Estado de Minas Gerais, favoreciam tímido, eventualmente inferior ao próprio crescimento vegetativo área central do estado. Em relação à Goiânia, é interessante lembrar a internalização no território goiano de frentes pioneiras em busca (o que indica perda populacional por saldo migratório negativo), no o papel desempenhado pelo IBGE em um conjunto de atividades período 1940-1950 a taxa de crescimento populacional anual de Goiás de áreas de fronteira agrícola, refl etindo-se tal movimento na institucionais comemorativas da nova capital. Tais atividades chegou a 4% (ao ano), refl etindo um saldo migratório positivo. Nas expansão de algumas culturas comerciais como o arroz e o milho. enfatizaram o papel das estatísticas e do conhecimento do território duas décadas seguintes essa tendência prosseguiu com valores de A população havia crescido, ainda em ritmo moderado, de 512 mil na delimitação e articulação da coordenação entre a União, Estados 4,62% e 4,38% de crescimento anual. para 826 mil habitantes, entre 1920 e 1940. e Municípios para a organização de políticas sobre a colonização

A Revolução de 1930, a par do fortalecimento da presença do territorial, o que, naquele momento, era uma “vocação do Instituto” Dados do Censo de 1950 mostram Goiânia já com uma Estado Nacional e da implementação de políticas, estimulou o debate em consonância com o ideário da “Marcha para o Oeste”. população de 53,4 mil habitantes, seguida de perto por Anápolis, com 50,3 mil. A antiga capital, Goiás, é ainda o município mais populoso, sobre a necessidade de interiorização e ocupações demográfi ca e As transformações que se iniciam na década de 1940 com 124,9 mil habitantes. O peso da região central já se evidencia, econômica dos espaços central e ocidental do País, como forma de redimensionam o antigo equilíbrio do Estado de Goiás, pautado em com a chamada zona de Anápolis e Zona de Goiânia agrupando reorganizações federativa e territorial. O avanço do povoamento, uma economia agropecuária tradicional que havia lentamente se quase 410 mil pessoas, cerca de um terço da população estadual. O através de frentes de expansão em direção às chamadas áreas de consolidado após o declínio da mineração no Século XVIII. De uma certa sudoeste, receptor de frentes recentes, também cresce, sobretudo fronteiras econômica e demográfi ca, desenvolveu sob o signo da forma, o isolamento de algumas áreas do estado foi se rompendo, para Jataí, Rio Verde e Itumbiara, com a população quase se equiparando chamada “Marcha para o Oeste”. A criação de colônias agrícolas isso concorrendo o estabelecimento de sua nova capital, que evolui a do sudeste (Catalão, Morrinhos, Ipaneri), uma área de atração mais nacionais, em Mato Grosso e Goiás, estimulou o movimento de de um burgo rural a uma capital em processo de urbanização, com antiga. As duas áreas juntas totalizavam 25% da população estadual. correntes migratórias nordestina e mineira para a área do sul e centro atividades mercantis e agroindustriais, as quais estabeleceram uma eredas..de VBrasília de Goiás, além das frentes espontâneas que já vinham avançando certa concorrência e integração com Anápolis, cidade relativamente A dinâmica demográfi ca de Goiás torna-se tão intensa e móvel desde o interior de São Paulo. próxima, que cumpria também algumas dessas funções. Porém, os efeitos que o estado mais que duplica o número de municípios, passando de 125 77 municípios, em 1950, para 179 municípios, em 1960. Hoje, o total conjunto, as atividades pecuárias mais tradicionais e menos dinâmicas Veredas..de de municípios goianos é de 246. representavam, em consórcio com atividades de subsistência, o Brasília principal modo de vida rural. Nesse contexto, é possível tentar responder à questão inicial dessa Seção sobre como se incorporava à dinâmica goiana a área Nesse sentido, a construção de Brasília vai incidir sobre uma correspondente ao Planalto de Brasília. área de certa forma estagnada, pouco integrada aos novos eixos de desenvolvimento e ocupação do estado, abrindo, por conseguinte, Como vimos, os 5 850 km² da futura capital haviam sido campo e espaço para um novo ciclo de crescimento demográfi co e desmembrados principalmente de Planaltina (inclusive a área urbana) valorizações econômica, política e social que irá afetar áreas específi cas e de porções rurais de Formosa e Luziania. Esses três municípios de Goiás nas décadas seguintes. se inseriam na Zona do Planalto, sendo que Luziania estava mais próxima de Anápolis. Suas populações eram reduzidas e o histórico de suas taxas de crescimento demográfi co anual indicavam taxas muito reduzidas (1% ao ano entre 1920 e 1940), o que sugere tratar- O censo experimental de 1959: população em se de áreas de emigração. Mesmo no período 1940-1950, sua taxa de trânsito, trabalhadores e pioneiros crescimento anual de 2,2% ao ano foi consideravelmente inferior à da média do estado no período (4,0%). Os contingentes populacionais

As atividades pecuárias tradicionais eram as que predominavam nessa região, sobretudo na área de Planaltina, o menos populoso dos Na apreciação analítica dos resultados do censo experimental três municípios em 1950 (7,3 mil habitantes) e aquele que cedeu não de1959, elaborada sob a coordenação de Vinícius Fonseca, quando Taguatinga, em 1957 só a maior parte do território da nova capital como inclusive a sua da caracterização demográfi ca do território onde se localizaria o Acervo do IBGE sede urbana. futuro Distrito Federal, concluía-se que, até o ano de 1950, “a marcha demográfi ca para o Centro-Oeste não benefi ciava a área de Brasília Em linhas gerais, os movimentos de ocupação demográfi ca e convergiu para o sul e sudoeste de Goiás, ou para o sul de Mato econômica que vinham mudando o perfi l de Goiás desde o início do Grosso” (CENSO..., 1959). Século XX e, sobretudo, a partir das décadas de 1930 e 1940, não se manifestavam de forma mais efetiva nessa região do Planalto, seja De fato, como vimos anteriormente, essa região era de em virtude de suas características geográfi ca e econômica, seja em povoamento estritamente rarefeito, ocupada por atividades de pecuária função das difi culdades de transporte, comunicação ou integração e subsistência, população pequena e esparsa, com dois reduzidos sub-regional. A região de Luziânia e Formosa ainda apresentava uma núcleos de antiga formação, quais sejam, a cidade de Planaltina e o certa diversidade na produção agrícola e na comercial, mas, no seu povoado de Brazlândia. 126 Nos dois primeiros anos de construção da nova capital (1956 e De origem social e regional distintas, esses profi ssionais 1957) foram lançados os alicerces do futuro povoamento. Os primeiros vinham, na maioria, do eixo Rio-Minas e mais secundariamente de

trabalhadores, contratados pela então recém-criada NOVACAP, teriam Goiás. Quanto aos trabalhadores da construção civil, predominavam chegado em novembro de 1956. Em torno de 250 pessoas estavam os nordestinos, com expressiva presença de mineiros e goianos das instaladas em alojamentos provisórios em novembro, número que áreas rurais. alcançou algo em torno de 500 pessoas no fi nal de dezembro. Em Em face do grande afl uxo populacional que se intensifi cou no janeiro de 1957, já com o Instituto Nacional de Imigração e Colonização ano de 1958 e no início do ano seguinte, com o território tomando iniciando a triagem de trabalhadores, estimava-se que estariam os ares iniciais de cidade, o IBGE tomou a decisão de realizar o censo vivendo na região do Núcleo Bandeirante e nos acampamentos cerca experimental em Brasília, com vistas ao Censo Demográfi co de de 2 500 pessoas. 1960, atendendo também à solicitação da Presidência da República, Em julho de 1957, o IBGE efetuou uma Contagem Populacional preocupada em conhecer a evolução demográfi ca da Capital que iria em todo o território do futuro Distrito Federal, encontrando uma ser instalada em 21 de abril de 1960. população que já atingia a 12 283 pessoas, das quais aproximadamente Para a realização do censo experimental de 17 de maio de a metade estava radicada nas “zonas velhas”, ou seja, as áreas rurais Taguatinga, em 1967 1959, o IBGE dividiu o território de forma a facultar informações Acervo do IBGE e a antiga cidade de Planaltina. Em março de 1958, oito meses depois, mais detalhadas à NOVACAP. Assim é que foram considerados quatro nova Contagem já alcançava um total de 28 804 pessoas, ou seja, um agrupamentos básicos, com suas respectivas áreas de desagregação. crescimento médio mensal de 2 100 pessoas em relação à Contagem 1. Acampamentos - Incluídas na Zona do chamado Plano Piloto, deles anterior. constavam o Acampamento Central da NOVACAP, a Candangolândia

Neste momento, o crescimento demográfi co estava em plena (conjunto residencial da NOVACAP), a Praça dos Três Poderes, Plano expansão, acompanhando o ritmo febril das obras. Os acampamentos, Piloto – Zona Sul e outros acampamentos. em geral situados na Zona do Plano Piloto, começavam a revelar a 2. Núcleos Provisórios - Bananal (núcleo residencial) e Bandeirante existência de uma população em movimento, originária de diversas (área de formação do centro comercial). regiões do País, a maioria constituída por antigos trabalhadores rurais agora transformados em serventes de pedreiro, de carpinteiro, ou em 3. Núcleos Estáveis - Cidade de Planaltina (Sede do antigo município), funções de vigilância e apoio. O aprendizado no trabalho constituía povoado de Taguatinga (área da futura cidade-satélite, criada no a principais formas de inserção e ascensão do camponês na escala fi nal de 1958) ocupacional da construção civil. No outro extremo, profi ssionais de 4. Zona Rural - Áreas rurais fora dessas localidades, incluindo as eredas..de VBrasília classe média buscavam trabalho em atividades profi ssionais mais áreas que faziam parte dos três municípios goianos formadores especializadas, principalmente de níveis técnico e superior. do território de Brasília. 127 Os resultados do censo experimental de 1959 revelaram que ocupação da cidade em obras. Foi muito freqüente a ocorrência de Veredas..de em 17 de maio de 1959 a população da futura capital federal ascendia casos de dupla moradia, em função da existência de pessoas que Brasília a 64 314, tendo mais que dobrado a população recenseada em março embora vivendo sós (nos acampamentos ou não) tinham família do ano anterior. Tratava-se de um crescimento extremamente intenso, domiciliada fora do território recenseado. O critério ligado à atividade algo como 123% de incremento em um prazo de um ano a três meses. foi fundamental nesses casos, fi gurando então como moradores as Flâmula comemorativa de Brasília. Brandão (1957, p. 35) A imigração era praticamente o motor exclusivo desse crescimento, pessoas cujas atividades eram normalmente exercidas em Brasília. atraída pelas oportunidades de trabalho que se intensifi cavam na A série de levantamentos populacionais construída desde 1957 medida em que o prazo fi nal das obras se reduzia. demonstraria o ritmo de povoamento do território da futura capital Ainda de acordo com os resultados do censo experimental, era e delineava claramente o crescimento do chamado Plano Piloto e, possível perceber que a área abrangida pelo Plano Piloto, que incluía paralelamente, a importância inicial da ocupação de área adjacentes os acampamentos como os da NOVACAP (Central e Candangolândia) que viriam a constituir, mais adiante, as cidades satélite, as quais detinha mais da metade da população recenseada (34 214 moradores). acabariam, no futuro próximo, por atrair a maioria esmagadora da O Núcleo Bandeirante, conhecido também como “Cidade Livre”, onde população do Distrito Federal. se instalaria o centro comercial, também apresentava uma população expressiva (11 565 moradores), embora seu crescimento estivesse sendo intencionalmente contido pela NOVACAP, que proibira novas construções Sexo, idade e estado civil Vista aérea da Lonalândia na chamada “Cidade Livre”. Outras áreas como os núcleos estáveis de Candangolândia – DF, em 06.08.1958 Taguatinga e Brazlândia e as áreas rurais, já então apresentavam um Segundo o censo experimental de 1959, a população de Acervo do Arquivo Público do notável crescimento, tendo passado de 4 864 moradores na Contagem Distrito Federal Brasília era constituída por 42 332 homens e 21 982 mulheres, ou de 1958 para 16 288 no censo experimental 1959, revelando o início seja, 192,6 homens para cada 100 mulheres, o que signifi ca uma do crescimento das futuras cidades-satélites. população masculina próxima ao dobro da feminina. Para se ter uma A ocupação da área correspondente à antiga cidade de noção comparativa, segundo o Censo de 1950, no Brasil tínhamos Planaltina mantinha-se praticamente estagnada, com a população de cerca de 99,3 homens para cada 100 mulheres e, nos três municípios apenas 2 247 pessoas. formadores de Brasília (Planaltina, Formosa e Luziânia) em 1950, para cada 100 mulheres existiam 99,7 homens, ou seja, em ambos os casos, A população contabilizada pelo censo experimental correspondia uma relação próxima ao equilíbrio. à população residente (moradores presentes e ausentes), considerando como morador todo o indivíduo domiciliado em território de Brasília. As razões para o alto índice de masculinidade de 1959 estão A aplicação do conceito encontrou, em alguns casos, difi culdades em obviamente relacionadas à natureza das correntes migratórias e do função das peculiaridades de que se revestia, naquele momento, a povoamento inicial, caracterizados pela atração do mercado de trabalho 128 da construção civil e dos serviços, de forte conotação masculina, bem Em 1959, entre as pessoas de 15 anos e mais de idade, as pessoas como pelas difi culdades de alojamento para as famílias, sobretudo casadas correspondiam a 48,9% do total, as solteiras, 46,8% e as viúvas, nas áreas dos acampamentos e núcleos provisórios. A exceção no 2,6%. Na comparação com o índice nacional em 1950, a proporção de território do futuro Distrito Federal era a cidade de Planaltina, antiga casados e viúvos era ligeiramente maior, 54,1% e 6,6%, respectivamente, povoação ainda pouco infl uenciada pelos fl uxos migratórios e onde a enquanto a proporção de pessoas solteiras decaia para 38,9%, uma composição por sexo era de 107,8 mulheres para cada 100 homens. queda mais expressiva, de cerca de oito pontos percentuais. Núcleo Bandeirantes Acervo de Marcus de Grossi A distribuição da população por idade mostrava uma alta O relativo equilíbrio entre a proporção de pessoas solteiras e concentração nas chamadas idades potencialmente ativas, com casadas no Censo de 1959 está, em grande parte, determinado pelo 57,5% da população situando-se entre os 20 e 59 anos de idade. peso maior das pessoas em idades mais jovens, sobretudo entre 15 e 29 Entre os homens, tal proporção em idade ativa subia para 64,5%. anos de idade, por conta das características das correntes migratórias. Na região do acampamento central da NOVACAP, para os homens, a proporção de população entre 20 e 59 anos alcançaria a 72,5%, sendo Em linhas gerais, a comparação por sexo e idade verifi cada ainda ultrapassada no acampamento do Plano Piloto - Zona Sul, no Censo de 1959 e, em maior escala, a distribuição das pessoas onde tal proporção batia em 79,5%. Já nos núcleos estáveis, ainda pelo estado conjugal, refl etiam preponderantemente a estrutura com populações pequenas, mas menos atravessadas pelos fl uxos de migratória que condicionou o povoamento de Brasília nos seus anos trabalhadores em trânsito, as proporções de homens em idade ativa iniciais. O Censo Demográfi co de 1960, realizado no ano seguinte declinavam substancialmente, sendo de apenas 38,2% na cidade de ao experimental, aprofundou algumas das tendências iniciais da Planaltina. Nessas localidades, predominavam os núcleos familiares ocupação demográfi ca. Assim, em 1960, com o Distrito Federal já constituídos, incluindo mulheres e crianças. instalado desde 21.04.1960, a população mais que dobrou em relação

A proporção de crianças e jovens não deixava de ser expressiva, a 1959, passando dos 64 314 habitantes para 140 164 habitantes, cerca de 41% das pessoas tinham até 19 anos de idade, mas seus uma taxa de crescimento relativo extremamente elevada, reveladora valores eram claramente inferiores às médias existentes na maior do ritmo da etapa fi nal de construção e do inicio do funcionamento parte do País. Nos três municípios formadores de Brasília, por da nova capital, com a instalação dos serviços públicos (remoção de exemplo, essa proporção de crianças e jovens chegava a 55% da servidores) e atividades em geral. Além disso, com o funcionamento população total em 1950. A redução relativa da proporção de crianças da nova capital, as novas correntes migratórias estariam mais voltadas e jovens em Brasília refl etia, por conseguinte, as caracteristicas da para a fi xação e as novas condições de trabalho e vida, intensifi cando- população imigrante em busca de trabalho e o estágio ainda inicial se a formação de núcleos familiares. A população feminina começa a da consolidação da população no território, com níveis relativamente crescer e a razão de masculinidade decai dos 192,6 homens para cada Veredas..de Brasília baixos de constituição de famílias e consequente postergação na 100 mulheres, para 164,6 em 1960. No Censo de1970, as proporções expansão do número de mulheres, crianças, jovens e idosos. já estão equilibradas e a partir de 1980 o número de mulheres é

Vista aérea do Núcleo Bandeirantes Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal 129 sistematicamente superior ao de homens. Em 1960, as proporções etárias A presença mais efetiva de mulheres de cor branca é percebida Veredas..de são praticamente idênticas às de 1959 revelando ainda o signifi cativo na região do Plano Piloto, onde residiam quase todos os técnicos e Brasília peso demográfi co das pessoas em idade ativa que migraram para a especialistas nas atividades da construção, inclusive lá existindo as únicas construção e o funcionamento inicial da nova capital. residências defi nitivas e que eram habitadas por famílias de posição mais elevada, em sua maioria de origem branca. Nos acampamentos de Praça dos Três Poderes a proporção de mulheres brancas era de 62,0%.

Cor e religião Na antiga cidade de Planaltina, no núcleo provisório de Bananal e na Zona Rural, o predomínio absoluto da população de cor branca não O censo experimental de 1959, dentro dos princípios adotados foi registrado, sendo que, no núcleo de Bananal, onde as condições de com vistas ao Censo Demográfi co 1960, procedeu à investigação do vida mostravam-se as mais precárias entre as localidades de formação quesito “cor”, seguindo critério semelhante aos já obedecidos nos recente, a proporção de pessoas de cor branca era a mais baixa de todo Painel saudando o presidente Juscelino, pintado em parede anônima de Brasília. Censos de 1940 e 1950. As instruções e coleta limitaram as declarações o território, 41,2%. Brandão (1957, p. 122) aos grupos de cor “brancos”, “pretos”, “amarelos” e “pardos”, sendo Em relação aos municípios formadores de Brasília, onde em 1950 que este último abrangeria todas os casos que não se enquadrassem a proporção de brancos era de 50,1%, a de pardos 31,1% e a de pretos nas denominações anteriores. A Comissão Censitária Nacional tinha 18,7%, os resultados do censo correspondiam a uma efetiva modifi cação plena consciência de algumas limitações no objeto de investigação da estrutura étnica da região, com o aumento da proporção de brancos e, segundo a publicação de 1959, “na impossibilidade de proceder e pardos e a acentuada redução da proporção da população de cor ao levantamento de características étnicas propriamente ditas, os preta, que passa de 18,7%, em 1950, para 8,6%. Tais alterações têm recenseamentos nacionais tem pesquisado um de seus elementos, a necessariamente a ver com características étnicas e socioeconômicas Painel pintado em uma parede cor.” (CENSO..., 1959). anônima de Brasília. da população imigrante. Brandão (1957, p. 167) De acordo com os resultados, 55,0% dos entrevistados eram Quanto à religião declarada, 88,4% dos moradores de Brasília, em brancos, 34,9% pardos, 8,6% pretos e 0,9% amarelo. As variações 1959, diziam-se de religião católica romana, número indiscutivelmente por sexo eram muito pequenas, notando-se uma leve predominância revelador da predominância deste culto. Contudo, em 1950, para o da proporção de mulheres brancas em relação aos homens (56,4% Brasil, a proporção de católicos era de 93,0%, com uma leve tendência contra 54,3%) e da proporção de homens de cor preta em relação às declinante, em função da infl uência das religiões de imigração e das mulheres (9,5% contra 6,9%). ações missionárias e campanhas de outras religiões.

Os valores encontrados não são signifi cativamente diferentes Na região correspondente aos três municípios formadores de dos registrados no Censo de 1950 para o Estado de Goiás e o conjunto Brasília, em 1950 a proporção de católicos chegava ao elevadíssimo da Região Centro-Oeste. patamar de 97,0%. 130 No conjunto de Brasília, não haviam diferenças signifi cativas acampamentos e o núcleo provisório de Bandeirante do que em na preferência religiosa entre homens e mulheres, enquanto entre Bananal, Taguatinga, Brazlândia e Zona Rural, onde variava entre as localidades era possível observar algumas distinções. Assim é 53,4% e 34,1% (na zona rural). que, enquanto nos acampamentos do Plano Piloto a proporção de Não parece haver dúvida de que a população emigrada para católicos situava-se entre 88% e 89%, nos núcleos provisórios e no Brasília, apesar de todas as difi culdades e desigualdades, possuía nível povoado de Taguatinga fi cavam entre 80% e 87%. Já nas áreas mais de alfabetização superior ao da população tradicional da região e do antigas, como na cidade de Planaltina, Brazlândia e zonas rurais, a interior de Goiás. predominância católica crescia, variando entre 92% e 97%. Entre as crianças de 7 a 14 anos de idade, 49,3% frequentavam Os protestantes eram o segundo grupo, com 5,5%, chegando a escola em Brasília. Na área do Plano Piloto, essa proporção chegava 8,0% no acampamento de Candangolândia, 8,6% no núcleo Bandeirante alcançar 81,1% no acampamento da Candangolândia, sendo em e 12,2% no povoado de Taguatinga. Desse modo, percebe-se já no geral superior a 60,0% no Plano Piloto. Já no núcleo de Bananal e período de formação de Brasília o potencial crescimento das pessoas de na zona rural, a frequência à escola oscilava entre 20,5% e 26,3%. culto protestante ou evangélico, notadamente aquelas que professavam Desse modo, a escolarização das crianças refl etia as desigualdades cultos pentecostais, que já despontavam nos anos de 1940 e 1950. das condições socioeconômica e educacional das famílias conforme Os adeptos do espiritismo, que representavam 2,3% da sua localização espacial.

população e as pessoas sem religião, com 2,4%, também assinalavam As pessoas de 10 anos e mais de idade, que haviam frequentado uma tendência que iria se aprofundar nas décadas seguintes , fruto de ou estavam frequentando escola, tinham, em média, cerca de 2,26 profundas transformações estrutural e cultural em todo o Pais. anos de estudo no conjunto de Brasília, o que evidenciava o baixo acumulo de instrução formal. Quando se considerava apenas as pessoas Escola na periferia de Brasília com instrução, a média de anos de estudo subia para 3,99, ou seja, Características educacionais praticamente equivalente ao curso primário da época.

Quando se considera as pessoas com 5 anos e mais de idade A taxa de alfabetização das pessoas de 5 anos e mais em que haviam frequentado ou estavam frequentando escola, 81,2% Brasília era, em 1959, de 55,6%, superior à média nacional de 1950 e distribuíam-se no chamado grau elementar, 16,0% no grau médio bastante mais elevada do que a do Estado de Goiás também em 1950 (1o e 2o ciclo) e 2,1% no grau superior. Com essas informações (28,2%). Entre os homens, a taxa era de 58,4%, caindo para 49,7% podemos ter uma ideia aproximativa do quantitativo de pessoas com entre as mulheres. formações técnica e superior especializadas, incluindo-se as 3 447 eredas..de VBrasília A maior taxa de alfabetização era encontrada no acampamento e as 1 046 pessoas que se distribuíam no primeiro e segundo ciclo central da NOVACAP (77,9%), sendo em geral mais elevada entre os do grau médio e as 596 pessoas no grau superior. Entre as pessoas 131 que estavam frequentando escola, apenas uma em cada 100 pessoas A maior parte dos emigrantes concentrava-se nos do ponto de vista demográfi co, para a formação de Brasília. Veredas..de atingira o nível universitário. acampamentos do Plano Piloto, nos núcleos Bandeirantes e Bananal Brasília A esse respeito cabe uma consideração acerca da fi gura do e no recém-fundado povoado de Taguatinga, ou seja, nas áreas mais Os perfi s educacionais, que já revelavam mudanças em relação migrante, notadamente o nordestino, que se transformou em um diretamente envolvidas nas obras de construção da cidade e dos às condições da época na região, iriam se transformar profundamente a dos símbolos no período de construção e funcionamento inicial da partir da instalação e crescimento futuro do Distrito Federal. núcleos de moradia. nova capital. Trata-se da designação dada aos primeiros habitantes de

Mais da metade dos emigrantes brasileiros eram naturais de Brasília, que passaram a ser conhecidos como “Candangos” Características migratórias três estados: Goiás (23,3%), Minas Gerais (20,3%) e Bahia (13,5%). Um breve exame histórico do signifi cado da palavra candango Do total de pessoas recenseadas em Brasília (64 314), As três Unidades Federativas estão, teoricamente, entre as revela que a mesma estava carregada de sentido depreciativo. exatamente 7 361 haviam nascido no território da futura capital, ou mais próximas ao território do futuro Distrito Federal e possuíam um Durante a construção da Capital as pessoas que migravam para o seja, menos de 12% da população era natural daquela região. considerável excedente demográfi co, principalmente nas áreas rurais. Planalto Central, composta em grande parte por trabalhadores rurais Importantes correntes demográfi cas dirigiam-se para Brasília do sul empobrecidos ou mesmo sem-terra e que foram encaminhados para Nas áreas da antiga formação territorial (Zona Rural, Cidade os canteiros de obra, passaram a ser progressivamente chamados de Planaltina e Povoado de Brazlândia) residia a maior parte dessas e centro-oeste goianos, do norte, oeste e sudoeste mineiros e dos de “candangos”. A grande seca de 1958 no Sertão do Nordeste teve pessoas, 5 886. As crianças nascidas após o início das obras de sertões da Bahia. uma repercussão direta na construção de Brasília, através do fl uxo de construção da cidade, que teriam até 2 anos de idade, representavam Em termos das Grandes Regiões, segundo a confi guração milhares de nordestinos, trabalhadores itinerantes/retirantes da seca. uma proporção bastante reduzida. regional atual, 44,0% dos migrantes nasceram na Região Nordeste, Parte deles foi abrigada às pressas no recém criado povoado e futura Por conseguinte, quase 90% dos moradores de Brasília, em 29,4% na Região Sudeste, 24,2% na Região Centro-Oeste, 1,3% na cidade-satélite de Taguatinga. Esses retirantes que se engajaram 1959, eram migrantes, ou seja, haviam nascido nas outras Unidades Região Sul e 0,6 na Região Norte. Confi rma-se, assim, a imagem na construção de Brasília, passaram a ser chamados de candangos, Federativas (55 737) ou em Países Estrangeiros (1 216). predominante de que a migração nordestina foi a mais importantes, palavra que, advinda da escravidão (origem angolana), em algumas regiões do Brasil referia-se às pessoas pobres e que praticavam a agricultura itinerante no interior do País (sertão), pessoas distintas daquelas do litoral. Através das correntes imigratórias do sertão esse termo chegou a Brasília.

O candango, termo que se consolidou e estendeu-se para todo o morador da cidade, foi paulatinamente mudando de conotação,

Painel com candangos passando gradativamente a ser identifi cado como o trabalhador na fi la do Serviço de Alimentação e Previdência que construía a cidade, que civilizava e civilizava-se. Nesta operação Social – SAPS. ideológica, seu perfi l, atributos e missão foram sendo reavaliados, Brandão (1957, p. 170) transformando-os paulatinamente na fi gura de um verdadeiro pioneiro. 132 Não mais um peão de obras, mas sim um trabalhador com carteira de Dois fatores principais explicam a alta proporção de pessoas trabalho e segurança social. Um dos símbolos plásticos de Brasília, economicamente ativas naquele momento em Brasília. Primeiro, o fato um emblema reconhecido internacionalmente, é o monumento “Os de que a cidade em formação era um verdadeiro canteiro de obras e, Candangos”, na Praça dos Três Poderes, obra do escultor Bruno Giorgi. portanto, o volume de trabalhadores crescia permanentemente e, não menos importante, a estrutura etária da população estaria fortemente O imigrante nordestino, em vários aspectos acompanhado pelos concentrada, mas idades potencialmente ativas, sendo mais reduzida mineiros e goianos, foi, por conseguinte, um dos mais importantes a proporção de crianças, jovens, mulheres e idosos que constituíam, à inspiradores da identidade cultural e étnica de Brasília. época, os segmentos populacionais não economicamente ativos. Voltando às características da população migrante, cabe ainda destacar a participação dos emigrantes estrangeiros, com a presença Na região do Plano Piloto, sobretudo em algumas áreas de numérica equilibrada de espanhóis, italianos, portugueses e japoneses, acampamentos, a proporção de pessoas economicamente ativas que constituíram 60% do contingente estrangeiro. Os japoneses tiveram atingia o patamar de 80%, enquanto nos núcleos antigos e povoados um papel inicial relevante na produção de um cinturão hortigranjeiro. ocupados por famílias de migrantes recentes (Taguatinga e Bananal), essa proporção caía para valores entre 31% e 35%.

Em relação à população ativa, mais de 50% ligava-se Candangos na inauguração do SAPS. Brandão (1957, p. 119) Características econômicas diretamente às atividades de construção civil, predominando entre as ocupações as de serventes de pedreiro (21,4%), carpinteiros e Em 1959, o censo experimental de Brasília investigou as marceneiros (10,5%) e pedreiros (7,0%). Expressiva era também a características da população economicamente ativa de mais de 10 anos ocupação de trabalhadores braçais (5,9%) e trabalhadores agrícolas de idade, obedecendo a critérios adotados desde o Censo de 1940. e de enxada (5,4%), compondo-se assim um quadro caracterizado Os resultados mostram uma alta proporção de pessoas pela predominância de ocupações formalmente ligadas à construção economicamente ativas, principalmente quando a comparamos e desenvolvimento da cidade. com o total de população residente (que inclui a todos, inclusive a As mulheres representavam apenas 8,4% das pessoas população de menores de 10 anos de idade). Desse modo, das 64 314 economicamente ativas, o que se explica pela presença, na época, ainda residentes de Brasília, 54,7% eram pessoas economicamente ativas reduzida de mulheres no conjunto da população e pela própria natureza (35 201 pessoas), o que estabeleceria a existência de aproximadamente do trabalho requerido naquela fase de implantação da capital. 0,8 não ativo para cada pessoa ativa. Por comparação, em 1950 no vizinho Estado de Goiás, haveria três não ativos aproximadamente Entre os profi ssionais liberais de formação universitária, eredas..de VBrasília para cada pessoa ativa e no Brasil como um todo, aproximadamente destacavam-se os engenheiros, que totalizavam 179 ocupações, 2 não ativos para cada pessoa ativa. seguidos pelos dentistas (38), médicos (29), arquitetos (20) e 133 advogados (18). O mercado de trabalho para esses profi ssionais Entre os domicílios, 46,0% foram classifi cados como duráveis Veredas..de era ainda bastante limitado, indicando um estágio onde os serviços e 44,5% como rústicos, que utilizavam predominantemente material Brasília individual e coletivo ainda não se faziam efetivamente presentes e como taipa, sapé, palha, madeira não aparelhada, piso de terra, etc. as ocupações superiores estariam atreladas predominantemente ao Os domicílios rústicos predominavam nos acampamentos ritmo das obras. da Candangolândia e da Praça dos Três Poderes e nos povoados de Da população ocupada, 85% era empregada e 11% trabalhadores Bananal e Taguatinga, além da área rural. Na verdade, eles ilustravam por conta própria, refl etindo o mercado de trabalho fortemente o caráter transitório e improvisado da construção da cidade e da direcionado para as atividades das empreiteiras de construção civil formação dos núcleos periféricos. que recrutavam os trabalhadores assalariados. Com a implantação Os indicadores de saneamento domiciliar básico eram futura da nova Capital, a estrutura de posição na ocupação irá se naturalmente precários, com apenas 22% dos domicílios possuindo diversifi car, a partir do crescimento dos serviços autônomos. água com canalização interna e fossa séptica, a grande maioria nos acampamentos do Plano Piloto. Os domicílios com iluminação elétrica Famílias e domicílios chegavam a 37%, mais uma vez concentrados no Plano Piloto e núcleo Bandeirante. O censo experimental de Brasília classifi cou as “famílias censitárias” de acordo com a natureza do vínculo de convivência, Entre os equipamentos domiciliares, destacava-se a máquina designando como “grupo familiar” aquelas onde o elemento básico de costura, presente em 34,4% dos domicílios, de forma generalizada de ligação entre as pessoas fosse o parentesco direto ou por afi nidade em todos os acampamentos e núcleos, sugerindo seu caráter e “grupo convivente” quando o vínculo de convivência fosse mais complementar nas economias domésticas. O rádio estava presente relacionado com o interesse comum. em 26,9% dos domicílios e a geladeira em apenas 6,4%.

Por este critério, 70% das pessoas eram componentes de grupos familiares e 30% de grupos conviventes. Esses últimos estavam fortemente concentrados na área das obras, representando Brasília e a dinâmica regional recente mais de dois terços da população residente nos acampamentos da Praça dos Três Poderes e Zona Sul e quase metade dos moradores do O censo experimental de 1959 captou um momento signifi cativo Entalhe representando um trabalhador acampamento central da NOVACAP. Nos núcleos provisório e estável da formação de Brasília. A população vinha aumentando em ritmo de Brasília no SAPS. Brandão (1957, p. 164) predominavam amplamente os grupos familiares, importantes nas acelerado, as correntes migratórias obedeciam a uma lógica socio- povoações antigas e nas migrações familiares que iriam formar os econômica e regional bem-delineada, o espaço urbano começava povoados que se transformariam novas cidades-satélites. a se expandir e transbordar para fora dos limites prioritários e os 134 trabalhadores das obras constituíam o principal efetivo do mercado sugerem que Brasília poderá apresentar uma população em torno de de trabalho. Iniciava-se, em algumas áreas, a fi xação de núcleos 2,7 milhões no Censo de 2010. familiares que mais tarde se imporiam na dinâmica demográfi ca Além disso, a infl uência de Brasília se fez sentir intensamente na local, enquanto as condições gerais de vida eram então transitórias e chamada região do Entorno, notadamente entre os municípios goianos. precárias, porém em ritmo inexorável de movimento e mudanças. A Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno - O Censo de 1960 mostrou a população já mais que duplicada RIDE, que compreende o Distrito Federal, 18 municípios goianos e dois em relação a 1959. Entre 1960 e 1970, Brasília registrou uma taxa mineiros, apresentava, em 2007, uma população superior a 3,5 milhões de crescimento demográfi ca excepcional, 14,4% ao ano, chegando a de habitantes, com alguns municípios sendo receptores de expressiva 537 mil habitantes impondo-se então como um centro de atração correntes migratórias que buscam acesso à oferta de serviços, trabalho migratória de ampla diversidade social e econômica. e oportunidades que se imaginam Brasília possa oferecer. Esse conjunto de municípios deverá continuar a crescer nos próximos anos e muito Nas décadas seguintes, o ritmo de crescimento manteve-se deles caracterizam-se, atualmente, por precariedade e riscos sociais. intenso, com a população chegando a mais de 2 milhões de habitantes (2 051 mil) no ano de 2000. Embora a geração de pessoas nascidas em Brasília seja bastante elevada, durante os anos de 2000 o peso das correntes migratórias As taxas de crescimento demográfi cas nas últimas duas (fl uxo acumulado) ainda era ligeiramente predominante, incluindo décadas são consideravelmente superiores ao crescimento vegetativo, migrantes de décadas atrás. As condições social e econômica de indicando a contribuição de um ainda expressivo fl uxo migratório, Brasília, a partir de recursos federais e da imagem da capital de um em sua maior parte proveniente de Unidades Federativas (e de sub- país com a importância do Brasil, contribuíram para que a Cidade regiões específi cas) que já eram as mais relevantes em 1959, como - Estado ostente alguns dos melhores indicadores sociais do País, Avenida W3, no início dos anos 1960 partes da Região Nordeste, Minas Gerais e Goiás. reforçando assim o seu poder de atração. Já na década de 1970, Brasília havia ultrapassado as metas do A existência de Brasília como Capital Federal foi fundamental na planejamento inicial que previam uma população de 600 mil habitantes estratégia de interiorização do crescimento e na expansão em direção no ano de 2000. Sua confi guração interna relegou ao Plano Piloto ao Oeste e Norte do País. As estradas e comunicações que foram um papel secundário, do ponto de vista estritamente demográfi co estabelecidas, conectando o Norte e o Centro-Oeste ao Sul-Sudeste e (menos de 200 mil habitantes) e regiões administrativas como Nordeste, através de Brasília, foram fatores decisivos no processo de Ceilândia, Taguatinga e outras surgem como os núcleos polarizadores povoamento, ocupação econômica e integração territorial. das concentrações urbanas, comercio e serviços. A expansão de novos eredas..de VBrasília núcleos de povoamento teve novo ímpeto a partir dos anos de 1990 A infl uência direta de Brasília sobre a Região de Anápolis e do e as taxas de crescimento demográfi co, impulsionadas pela migração, entorno Goiano contribuiu para o impulso dessas áreas do Estado 135 de Goiás. Foi igualmente importante sua infl uência sobre o noroeste Referências Veredas..de de Minas (o Grande Sertão) e a região do Triângulo Mineiro e Alto Brasília Paranaíba, que se conectaram com o sudeste de Goiás. Outras áreas BERTRAN, Paulo. Uma introdução à história econômica do Centro-Oeste também se benefi ciaram do poder direto de Brasília. do Brasil. Brasília, DF: Companhia de Planejamento do Distrito Federal – CODEPLAN: Universidade Católica de Goiás, 1988. 140 p. Contudo, parte signifi cativa da expansão do Centro-Oeste BRANDÃO, Manoel Francisco. Brasília: folclore e turismo. Rio de Janeiro: [s.n.], 1957. Tese apresentada ao V Congresso Brasileiro de Turismo em brasileiro seguiu uma dinâmica própria, que se inicia, como vimos 1957. anteriormente, nos anos de 1940 e 1950, com o avanço das frentes CENSO experimental de Brasília; população, habitação 17 de maio de 1959. pioneiras pelo centro-sul de Goiás e sul de Mato Grosso (atual Mato Rio de Janeiro: IBGE, 1959. 109 p. Grosso do Sul). A partir dos anos de 1960 e 1970, tais frentes se DISTRITO Federal: síntese de informações socioeconômicas 2008. Brasília, DF: Companhia de Planejamento do Distrito Federal - CODEPLAN, 2008. 89 conjugaram com o avanço do capitalismo no campo e as migrações p. de pequenos e médios proprietários do Sul do País, consolidando a LOPES, Luís Carlos. Brasília, o enigma da esfi nge, a construção e os bastidores Brasília em construção do poder. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Unisinos, ocupação do Mato Grosso do Sul nos anos de 1970-1980, sul de Mato Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal 1996. 247 p. Grosso nos anos de 1980-1990 e norte de Mato Grosso nos anos PALACIN, Luiz; MORAES, Maria Augusta de Sant’Anna. História de Goiás de 1990-2000. Esse fl uxo de ocupações demográfi ca e econômica (1722-1972). Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1986. obedeceu à lógica de expansão do moderno agronegócio e criou um PINTO, Maria Magdalena Vieira. Brasília: a nova capital do país. São Paulo: Zenit, 1960. 48 p. Publicação comemorativa da XX Assembléia Geral do conjunto de novos municípios com funções urbanas diversifi cadas, Conselho Nacional de Geografi a. atraindo milhares de migrantes para os municípios polarizadores, SENRA, Nelson. Estatísticas organizadas (1936-1972). In: ______. História criando também as condições para o surgimento e multiplicação das da estatísticas brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. v. 3. agroindústrias e serviços complementares. Tal movimento incorporou SILVA, Ernesto. História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realidade. 5. ed. Brasília : Do Autor, 2006. 391 p. também o sudoeste goiano, Tocantins e o Estado de Rondônia, sendo VASCONCELOS, Adirson. As grandes datas de Brasília e JK: as efemérides a infl uência direta de Brasília, nesses casos, menos relevante. brasilienses. Brasília, DF: Thesaurus, 2009. 1168 p. VIDESOTT, Luisa. Os candangos. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura Em suma, Brasília é hoje o resultado de vários processos que se e Urbanismo, São Carlos, SP: Universidade de São Paulo, Programa de Pós- originam de esforço pioneiro e da determinação política do fi nal dos Graduação em Arquitetura e Urbanismo, jan. 2008. Disponível em: . Acesso em: mar. 2010. registrados nos resultados do pioneiro censo experimental de 1959 e VIGGIANO, Alan. Itinerário de Riobaldo Tatarana: geografi a e toponimia em na serie subsequente de censos demográfi cos e pesquisas do IBGE, Grande Sertão: Veredas. 4. ed. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. os quais permitem acompanhar a notável evolução dessa que é hoje uma metrópole a caminho de se tornar a terceira cidade do País em tamanho de população. No dia da inauguração de Brasília, a festa dos candangos. Foto de Mario Fontenelle. 136 Acervo do Arquivo Público do Distrito Federal vvvivências s Um candango ibgeano marcenaria. Naquela época, a fabricação de móveis tinha forte infl uência europeia, especialmente francesa, cujos móveis tinham Walker Roberto Moura* partes torneadas e também entalhadas, etc. E como ele era excelente profi ssional, iniciou contratando colegas e conhecidos dele, com experiência, e como já naquela época existia escassez de mão de Incluindo o tempo de Serviços prestados ao Recenseamento obra especializada, passou a contratar profi ssionais principiantes na Geral realizado em 1970, quando trabalhei como recenseador dos profi ssão de marceneiro, inclusive seu irmão caçula, para formar a sua Censos Demográfi co, Agropecuário e Econômico, diria que estou equipe, para atender à demanda recebida de sua clientela. completando 40 anos de serviços prestados ao Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística – IBGE, na Unidade Estadual do Distrito Federal Acontece que o Sr. Walter não tivera grandes estudos, apenas - UE/DF, neste exercício de 2010. o primário, mas aprendera a escrever com boa caligrafi a, graças aos antigos cadernos de caligrafi a, dominava bem a aritmética, era bem O meu pai Walter Moura, natural de Baixo Guandu, no Espírito falante e afeito a criar círculos de amizade. Instalando a sua primeira Santo, sendo o segundo fi lho de uma família de seis irmãos, tendo a marcenaria em prédio alugado, defronte ao portão do campo de primeira nascida mulher, na década de 1920. Ela, tendo nascido numa futebol do time Democrata, que atualmente disputa a 1ª Divisão do família tradicional e interiorana, não trabalharia fora do lar. Então, Campeonato Mineiro, onde ele e dois irmãos mais novos jogavam ele teve que trabalhar precocemente, e com pouco mais de dez anos aprendeu o ofício de marceneiro. Aos vinte e poucos anos, já profi ssional futebol, um na posição de goleiro (Pedro Moura - também conhecido reconhecido em sua cidade natal, conheceu a jovem Luzia Figueiredo como Pedro), meu pai zagueiro, antigamente (beque) e Eudes, o mais e em 1946 casou-se com ela, fi lha única de sua família. Em 1950, o novo dos irmãos no meio de campo (armador). Lembro-me que foi campo de trabalho estava restrito em Baixo Guandu e então a família um tempo promissor. Entrei para a escola em 1955 - estudei os resolveu mudar-se para Governador Valadares, em Minas Gerais, em quatro primeiros anos no Colégio Ibituruna, à época, reconhecido busca de melhores oportunidades naquela cidade mais próspera, com pela qualidade dos profi ssionais de ensino e a educação rígida que mais oportunidades de emprego e desenvolvimento profi ssional. impunham - era um colégio de padres (católico apostólico romano) com uma disciplina “espartana”. Lembro-me que no período 1950/1956 Candangos na periferia de Brasília Inicialmente, meu pai trabalhou como empregado, conheceu a vida era muito boa, a marcenaria era grande, muitos empregados, o mercado de trabalho e logo criou um círculo de amizades com tínhamos caminhão para transportar madeira e móveis, e automóvel a clientela, profi ssionais e empresários de seu ramo de trabalho, para passear, um jipe. vislumbrou a oportunidade de estabelecer-se criando a sua própria Então, o Sr. Walter não se contentou apenas em ser eleitor e eredas..de V resolveu ter participação mais ativa na política local e começaram os

Brasília * Graduado em Ciências Contábeis. Atual Chefe da Unidade Estadual do IBGE no Distrito Federal. desequilíbrios orçamentário e fi nanceiro, porque ele era empreendedor, 137 vivênciass mas não estudara o bastante para administrar com competência o nem imaginavam o tamanho traçado e a grandiosidade da obra, e do mato em caminhões e de lá, por via férrea, para os grandes centros Veredas..de negócio e a vida. nem se seria construída completamente como o foi. Então, o Cristiano do País. Também tinha muito gado, milho e feijão, nos chamados Brasília sabendo da quebradeira do amigo em Valadares, escreveu uma carta “Armazéns Gerais”, que empregavam muita mão-de-obra. Ainda quando criança, íamos a muitos comícios na própria cidade a ele, dizendo que Brasília era uma coisa doida, construção para todo e em cidades vizinhas, como Caratinga, por exemplo. Com estradas Considerando a grande atividade econômica, também era forte o lado, tinha muita gente trabalhando e chegava gente, homens o dia péssimas, atoleiros, numa das viagens o jipe capotou com meu pai ao a quantidade de pistoleiros, jagunços e outros arruaceiros naquela todo, de todos os lugares. E o chamou para ir para Brasília, pois havia volante. Comícios com as presenças de Benedito Valadares e outros região, o que tornava a vida ali bastante perigosa. Por conta disso, era emprego para todos, tinha muita construtora, pagavam em dinheiro infl uentes da época, e para o governo do Estado de Minas Gerais, até enorme a preocupação de minha mãe e a nossa pela tal viagem de meu vivo e que ele nunca tinha visto tanta gente faturando numa cidade. Juscelino Kubitschek, o grande e ilustre mineiro de então e sempre. pai, que estaria indo encontrar alguém que poderia ter práticas não Lembro-me da expressão: “Aqui ganha-se dinheiro até vendendo tão lícitas. Tudo o que acontecera em nossa vida foi muito repentino, Num curto espaço de tempo as despesas aumentaram muito, bananas na rua”. Recebida a notícia e como a situação estava difícil em decorrência de política e maus negócios, fruto da pouca cultura minha mãe adoeceu e precisou ser tratada em Belo Horizonte, MG, para o meu pai, ele reuniu a família e explicou que a nossa vida estava de meu pai e de minha mãe, ambos apenas com curso primário e impondo gastos imprevistos, meu pai avalizou despesas de alguns muito difícil naquele lugar e ele não via como recuperar tudo perdido. eu cursando a 5ª série ou admissão. E meu pai fi caria muito tempo correligionários, amigos e compadres, e em pouco tempo, para honrar O único jeito era nos deixar em Valadares e viajar para Brasília, ao viajando sem a família. os compromissos assumidos, perdemos tudo. Nem casa para morar encontro do amigo Cristiano, que até então nenhum de nós da família, tínhamos. Fomos morar de aluguel e depois na casa de minha avó conhecíamos, e aí surgiram as incertezas... quem era aquele homem Depois daquela reunião familiar, passados dois dias meu pai viajou. Foi de trem até Belo Horizonte e de ônibus até Brasília, que materna, que sempre acompanhou a família, mas naquele tempo que meu pai iria encontrar? tinha a sua própria casa. ainda não era Distrito Federal em 1958. Chegando lá, desembarcou Nossa família era composta pelas seguintes pessoas: minha na rodoviária da cidade livre, atualmente Núcleo Bandeirante, e logo A situação fi cou difi cílima e as notícias da construção de Brasília, mãe, Luzia, minha avó materna, Maria, minha tia Amália, irmã caçula de encontrou o amigo Cristiano, que o aguardava e o levou até a futura a nova Capital do Brasil tomavam conta do noticiário radiofônico. meu pai, que o acompanhou desde quando ele casara com minha mãe, esplanada dos ministérios, bloco 10, atualmente sede do Ministério do Programas como “A voz do Brasil”, só falavam da destinação de devido ao fato de seus pais terem falecido num intervalo de seis meses Trabalho. Meu pai foi contratado como carpinteiro e posteriormente recursos para construção de Brasília. O “Repórter Esso” e o noticiário de um para o outro e os familiares acabaram se dispersando em busca promovido a mestre de carpinteiro, e ali trabalhou até a conclusão das local, todos falando de Brasília. As discussões dividiam o povão, entre de trabalho, isso exatamente no ano em que nasci (1947) e os fi lhos, eu, obras, em 1960. um cigarro e outro: a Capital sairia do Rio de Janeiro, quando será que com 12 anos, João, com oito, Maria, com sete e Lana Mara, com dois. Decorreram-se quase dois anos, e ele trabalhando em Brasília a capital sairá de lá? Outros diziam que a Capital não mudaria. E todos A cidade de Governador Valadares vivia os áureos tempos e mandando dinheiro e cartas para a família em Valadares. Meu pai acompanhavam as notícias sobre a construção de Brasília. da exploração da mica (material isolante, largamente utilizado em “ocupou”, para não dizer invadiu, um lote numa área de expansão, Foi então que um motorista pernambucano de nome Cristiano, eletricidade e tantas outras aplicações, cujas empresas que processavam na cidade-satélite de Taguatinga, na área sul da cidade. Ele conseguiu que também morava em Valadares, conhecido de meu pai, tinha dito a matéria-prima, empregavam um grande número de pessoas). Havia madeira para construir um barracão, coberto com zinco, escreveu a ele que iria se “aventurar”. Esse era um termo usado naquela época também a indústria madeireira no auge da exploração, industrialização para minha mãe, comunicando que ia passar o fi nal do ano de 1959 para quem ia tentar trabalhar em Brasília, cidade que os interioranos e comercialização, com muitas serrarias, cujas toras eram transportadas em Governador Valadares e que ela começasse a se preparar para a 138 vvvivências s

mudança defi nitiva de toda a família para Brasília. Que ela procurasse Para quem saiu de Valadares, residindo em casa de alvenaria, comprador para o que fosse possível vender, inclusive a casa de minha com dois pisos, assoalho de madeira peroba, lote de terreno com cerca avó, pois construiríamos tudo novamente em Brasília. Não levaríamos de 1 500 metros, frutíferas, rua calçada com pedra, água encanada mudanças em razão da distância e custos. E assim aconteceu, meu pai tratada, luz elétrica, etc., foram muitas mudanças em pouco tempo retornou de férias em dezembro de 1959; com dinheiro, proporcionou de vida, e um aprendizado enorme. E Brasília cresceu rápido, em ritmo o Natal de pós-crise, resolveu em Valadares todas as pendências e lá alucinante. Em pouco tempo, as antigas chácaras que produziam fomos nós, de mudança para a futura nova Capital Federal. gêneros hortifrutigranjeiros foram loteadas, e onde havia plantação Ao chegarmos na Cidade Livre, na rodoviária, nos deparamos de alface, logo virou casas, quadras e ruas. A população do entorno de Catedral de Brasília em construção e com uma cidade dos fi lmes de bangue-bangue, todas as casas, postos Brasília se multiplicou em muito pouco tempo, e com isso, os terrenos Esplanada dos Ministérios de gasolina, mercado... tudo construído de madeira. Para nós, era tudo Acervo do Arquivo Público fi caram valorizados, pois a cada dia chegavam mais e mais pessoas do Distrito Federal muito estranho e devido a tantas horas viajando naquele ônibus, com para viver na Capital Federal. frente de caminhão e bancos inteiriços, sem conforto algum, ao descer do mesmo, parecia que tudo girava. Fomos para Taguatinga de táxi, Em 16 de outubro de 1961, fui contratado pela Companhia asfalto tinha somente na Rodovia BR-60, Brasília/Goiânia. Entrando à Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - NOVACAP, para trabalhar no Trabalhadores direita da via para Taguatinga, era uma estrada de terra, encascalhada Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos, onde permaneci (Candangos) para construir Brasília e com tanta poeira que nem se via o carro que ia a sua frente. Ao até 1968, quando saí para cumprir o serviço militar e, ao retornar, chegarmos, nos vimos diante de um barracão de madeira, com tábuas tinha sido enquadrado na Lei nº 1.711, de 28 de outubro de 1952, como aproveitadas de construção, que originalmente serviam de forma para servidor público, sendo lotado na Secretaria de Finanças do Governo concreto daquelas colunas de sustentação dos prédios existentes na do Distrito Federal. Ali, trabalhei na Divisão de Fiscalização, seção de Esplanada dos Ministérios. O quintal cercado com arame farpado, ruas Postos Fiscais, como Fiscal Arrecadador, onde permaneci até 1970, sem calçamento, só barro vermelho, luz de lampião a querosene ou vela, quando prestei concurso para trabalhar no Recenseamento Geral de fogão a lenha. A água era tirada de poço ou cisterna, o esgotamento 1970, da Fundação IBGE, em Brasília, DF, no Serviço de Coleta de Brasília era por fossa, a iluminação pública inexistia. Escolas primária e ginasial - SCBR. Findo os trabalhos censitários, fui convidado a continuar fi cavam a mais ou menos dois quilômetros de distância e o transporte trabalhando no IBGE, desempenhando a função de Agente de Coleta. era feito por bicicleta ou a pé. Para o hospital, a mesma distância. Casos mais graves eram levados ao Hospital Distrital de Brasília - HDB, a mais Foi quando pedi licença sem vencimentos para tratamento de assuntos ou menos 25 quilômetros de onde morávamos. Os ônibus urbanos particulares na Secretaria de Finanças, posteriormente pedi demissão eredas..de VBrasília tinham ponto fi nal a 500 metros de nossa casa. Isso em 1961, pois a de lá e ingressei no IBGE, como Celetista, onde permaneço até esta partir de 1963, já tínhamos ponto diante de nossa porta. data, morando em Brasília, cidade que praticamente vi nascer. 139 eredas..de VBrasília

Defi nida a localização, começaria a construção, com grande atração de público, e a frequente presença do Presidente da República, como nesta imagem em que ele aparece numa Romiseta. Arquivo Público do Distrito Federal. 140 Geografi a de esperança: a Reserva Ecológica do IBGE e a nova capital Mauro Lambert Ribeiro*

O Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística – IBGE, possui uma Reserva Ecológica. Situa-se a 30 km ao sul do centro de Brasília, na bacia do Lago Paranoá, concebida originalmente como “Faixa Sanitária”, para proteção dos mananciais hídricos da Nova Capital. Passados 50 anos da criação de Brasília, constitui área nuclear do mosaico de unidades de conservação que protegem sua área tombada – Patrimônio Cultural da Humanidade. Com 1 398,75 hectares, abriga grande diversidade de ecossistemas e espécies da fl ora e fauna do Bioma Cerrado, algumas em vias de extinção. Com tantos atrativos naturais e impulsionada por iniciativas pioneira e visionária do IBGE, tornou-se “laboratório científi co” comparativo para seu Centro de Estudos Ambientais do Cerrado que, em parceria com instituições científi cas nacionais e internacionais, vem produzindo há 35 anos o mais importante acervo de inventários e experimentações ecológicas com vistas a subsidiar governos na busca de um planejamento territorial sustentável para o Cerrado. Tes- temunhas da eco-história do Planalto Central, a Reserva Ecológica do IBGE e Brasília compartilham nuances de sonho, esperança e realidade e desafi os convergentes de sustentabilidade. Este capítulo traz a marca desse enlace. Justa homenagem aos condutores dessa jornada.

Pioneiros e visionários

Não é uma cidade qualquer. Possui antecedentes históricos e razões geopolíticas incomuns. Cidade do futuro, sua construção apoteótica passou a impor novos rumos à estrutura social, à econômica e à cultural do País, cultivou esperanças e atraiu a atenção mundial. Brasília imprime sua marca.

Brasília nasceu da refl exão. Uma nova experiência geográfi ca, pensada para o amanhã. A mudança da capital para o Planalto Central satisfaz à solução geopolítica que visa à integração de todas as Unidades da Federação Brasileira, com equidade socioeconômica entre as regiões. Razão que dá sentido nacional à ideia. Chave de um projeto de desenvolvimento nacional que promove a unidade territorial e o povoamento dos sertões. Sua presença no centro geodésico do Brasil, berço das três principais bacias hidrográfi cas do País, não apenas estabelece o necessário equilíbrio funcio-

* Doutor em Zoologia pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho – UNESP, Rio Claro, SP. Gerente de Recursos Naturais e Estudos Ambientais, do Centro de Estudos Ambientais do Cerrado – Reserva Ecológica do IBGE.

Exemplar da fl ora do Cerrado na RECOR nal do regime federado, como deve inspirar sua função civilizadora, geopolítica” (BERTRAN, 1994, p. 143). Neste sentido, a marcha para o Dos entendimentos prévios entre o Dr. Dalmy Antônio Álvares Veredas..de capaz de criar na vida brasileira uma bipolaridade – o mar e o sertão, centro com a nova capital lhe resgataria a importância experimentada Rodrigues de Souza, chefe daquela unidade do IBGE e o Dr. Joffre Mo- Brasília idéias difundidas por Mario Augusto Teixeira de Freitas, idealizador do por mais de meio século, perdida desde a exaustão do ouro. Recon- zart Parada, engenheiro que coordenou as desapropriações de terras IBGE (ORICO, 1960; TRÊS..., 1960). quista que, em poucas décadas, projetaria o Planalto Central como a para a implantação da nova capital, foi escolhida a gleba Roncador, mais nova fronteira agrícola do País. onde a equipe de geodésia achava-se acampada desde 14 de abril A mudança da capital é ideia antiga. Surgiu com o registro carto- de 1960 (SIMÕES, 1985). A gleba pertencia à antiga Fazenda Santa gráfi co no “Mapa de Goyás” do geógrafo italiano Francesco Tosi Colom- O determinismo histórico da mudança da capital atravessou a Bárbara, que desde o Brasil Colônia havia trocado várias vezes de pro- bina. Primeiro a retratar o epicentro das três maiores bacias hidrográfi - Colônia e o Império, para tornar-se lei na Primeira Constituição da Re- prietário. A partir de então, a área da família Machado, desapropriada cas do Brasil, ao cruzar o planalto goiano entre 1749-1751, vislumbrou pública. Mas, de José Bonifácio a Juscelino Kubitschek, fez-se antes pelo governo de Goiás, doada à União e repassada para a NOVACAP o valor estratégico da região e infl uenciou o Marquês de Pombal a expectativa (ORICO, 1960). Conheceu indecisões quanto ao momento em 1959, passaria a pertencer ao IBGE. Em outubro de 1961, o IBGE manifestar a conveniência de instalar-se a sede do governo da grande oportuno de realizá-la e suplantou dúvidas quanto à sua melhor loca- produziu o novo mapa de Brasília, na escala de 1:100 000. Seria o pri- colônia no sítio em que se ergueria Brasília (ORICO, 1960; COSTA; ME- lização, amparada nos conhecimentos científi cos das três expedições meiro registro da área recém-empossada pelo IBGE na Nova Capital. DEIROS, 2009). Naquela época, convém ressaltar, a colonização do Dis- geográfi cas constituídas para sua defi nição. Ressurgiria, sob o sentido trito Federal e seu Entorno já estava iniciada. Segundo Bertran (1994), de urgência e oportunidade, para tornar-se meta-síntese do governo O IBGE marcou imediatamente sua presença na área. Realizou começara em meados dos anos de 1730, pelo norte, com fazendeiros de Juscelino Kubitschek de Oliveira (VASCONCELOS, 1978; 2007). A o levantamento topográfi co e o nivelamento do polígono, construiu da Casa da Ponte, vindos dos sertões do rio São Francisco e noroeste epopeia da construção de Brasília, seu caráter monumental e o entu- a cerca de arame farpado ao longo do perímetro e os prédios provi- de Minas Gerais. Três décadas mais tarde, 37 sesmarias já povoavam o siasmo do Presidente Kubitschek e de todos os pioneiros, infundiram sórios de madeira, que até 1977 serviram tanto de alojamento como Distrito Federal, com destaque para a extensíssima Fazenda Santa Bár- confi ança na capacidade criativa, tenacidade e poder de realização de de escritório. Em 1965, negociou com a NOVACAP a instalação da rede bara, concedida a Serafi m Camelo de Mendonça, em 1767 (onde hoje nosso povo. Capital instalada no Sítio Castanho. Sonho realizado. Le- elétrica entre Brasília e o Roncador em troca de serviços de levan- está instalada a Reserva Ecológica do IBGE). Cidades ligadas ao ciclo gado de esperanças para a Nova Era do Brasil (SILVA, 1999). tamento topográfi co. Entre 1976 e 1977, foram construídos os sete do ouro estavam sendo fundadas desde 1730, outras, como pouso das pavilhões de alvenaria que abrigariam as ofi cinas e demais serviços de Com a inauguração de Brasília, o IBGE encaminhou à Compa- tropas. Estabelecimentos para arrecadação de impostos e controle de apoio, bem como a equipe técnica (LUCARELLI, 1992). nhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - NOVACAP solicitação para circulação de ouro, gado e mercadorias já haviam sido instalados, por que fosse concedida uma área para instalação da sede de seu Tercei- Durante os primeiros 15 anos de Roncador, a área foi usada onde passavam as duas estradas que ligavam o sítio em que se cons- ro Distrito de Levantamentos Geodésico e Topográfi co, transferido de como campo de treinamento das práticas geodésica e topográfi ca, truiria Brasília às capitais que a antecederam (Estrada Real, em 1730, Belo Horizonte e que desde 1957 atuava na área do Distrito Federal. complementado por cursos de nível médio em agrimensura e geodésia, interligando o Rio de Janeiro a Belém; e a Picada da Bahia, em 1732, O pleito foi atendido nos termos e sob as condições estipuladas em ministrados, sobretudo a partir de julho de 1968, com o convênio fi rma- entre Salvador e Vila Bela, a primeira capital de Mato Grosso). Resolução do Conselho de Administração da NOVACAP, em sua 138ª do com o Centro de Ensino Técnico de Brasília – CETEB. Essas atividades “Eis que o Distrito Federal não era sertão incomunicável”. Ao Sessão, em 13 de julho de 1960, publicado no Diário Ofi cial da Prefei- tiveram grande importância na formação dos profi ssionais de campo, contrário, a intensidade de circulação de caravanas e de mercado- tura em 07 de outubro de 1960, com escritura de doação lavrada em que aprenderam o ofício durante as campanhas de levantamento geo- rias demonstra que sua “centralidade antecede em 200 anos à solução 10 de maio de 1961. désico e topográfi co. 142 Além disso, geodesistas altamente matematizados, com rela- matologia e biogeografi a, com notável cooperação de profi ssionais es- os princípios norteadores de sua fundação, emanados por Teixeira de ções internacionais sistemáticas e fortemente exigentes de tecnologia, trangeiros, sobretudo da Escola Francesa (ALMEIDA, 2000). Mas, a com- Freitas desde os anos de 1930, vislumbraram a reestruturação de um vislumbraram a conveniência de se instalar no Roncador um projeto plexidade das questões ambientais que emergiam no início dos anos de IBGE capaz de promover a “descrição, análise e interpretação do País pioneiro: Centro Geodésico Brasileiro, com funções de ensino e pes- 1970, sobretudo relativas à erosão da biodiversidade, à perda de produ- em todos os seus aspectos relevantes ao planejamento territorial” (AL- quisa, nos moldes da Cartographic School do Interamerican Geodetic tividade dos solos e à poluição crescente, impulsionados pelo modelo MEIDA, 2000, p. 297). Atentos aos problemas ambientais relatados pelo Survey, localizada na Zona do Canal do Panamá (FERRARI, 1965). O exponencial de crescimentos populacional e econômico, às expensas de Brasil dos anos de 1960 apresentava carência de formação de profi s- Clube de Roma e pela Primeira Conferência Internacional de Meio am- recursos naturais fi nitos, necessitariam de novos paradigmas. sionais que atendessem às demandas dos grandes projetos nacionais biente, realizada em Estocolmo em 1972, e com raro ímpeto realizador, desenvolvidos pelo IBGE. A Escola Sul-americana de Geodésia, ideali- A gestão do Presidente do IBGE Isaac Kerstenetzky (24.03.1970 tomaram providências que se tornariam os primeiros ensaios para a zada como o braço de ensino do Centro Geodésico Brasileiro, visava à – 29.08.1979) e de seu Diretor-Geral Eurico Andrade Neves Borba foi inserção da temática ambiental no âmbito do planejamento territorial formação desses profi ssionais em vários graus de especialização, em marcada por suas concepções sistêmicas e integradoras. Resgatando do Brasil. cooperação com as universidades brasileiras e instituições interna-

cionais. O Centro Geodésico Brasileiro promoveria ainda pesquisas e Localização da Reserva Ecológica aplicações de métodos avançados das técnicas geodésica e cartográ- do IBGE e seu fi ca, além de investigações sobre as riquezas do solo (mineralógicas, primeiro registro cartográfi co no petrolíferas, hidrológicas, oceanográfi as e botânicas), com a oportuna novo mapa do Distrito Federal, integração dos profi ssionais da geografi a física do IBGE. organizado e desenhado pelo Conselho Nacional Projetado para o futuro, como laboratório de tecnologias, in- de Geografi a – Di- vestigações científi cas e formação profi ssional, o Centro Geodésico visão de Cartogra- fi a, em dezembro Brasileiro não encontrou o necessário apoio que lhe permitiria mexer de 1960. Revisto e atualizado em no tabuleiro de infl uências científi cas latino-americanas. Talvez ainda junho de 1961. Publicado em sob a desconfi ança que tentou destronar Brasília após a sua criação outubro de 1961. (VASCONCELOS, 1978), fez-se releitura de sua história. Permaneceu Escala 1:100 000. expectativa. A ideia pioneira de Dalmy e Ferrari de implantar no Ron- cador um centro nacional de referência em pesquisas científi cas te- ria de aguardar até a década seguinte, para renascer sob o enfoque emergente dos estudos ambientais.

Em certa medida, a saga dos estudos ambientais no IBGE tem eredas..de VBrasília raízes na “velha guarda” da geografi a física, que desde a década de 1940, produziu estudos clássicos notadamente de geomorfologia, cli- 143 Amparados pelas novas atribuições funcionais do IBGE (Lei (Portaria IBDF no. 144/78), é parte importante dessa trajetória. Não Veredas..de no 5.878, de 05 de maio de 1973), que incentivavam a produção e análise foi ato fortuito. A percepção de que o avanço da fronteira agrícola Brasília integradas de dados ambientais, criaram em 1975, a Superintendência sobre o Cerrado provocaria impactos ambientais irreversíveis em um de Recursos Naturais e Meio Ambiente – SUPREN (atual Coordenação de bioma com biodiversidade desconhecida e ainda pouco protegida, Recursos Naturais e Estudos Ambientais – CREN), que progressivamen- além do despreparo da sociedade e dos governos para lidar com te estruturou-se em duas linhas de atuação de vanguarda: a) bancos suas consequências, e da necessidade de tratar essas questões no de dados ambientais; e b) estudos ambientais integrados. Com a inclu- âmbito do planejamento territorial, motivaram essa decisão. Essa são do Projeto RADAM ao IBGE, a partir de 1985, os bancos de dados se iniciativa teve também a preocupação de incentivar outros órgãos expandiram e os diagnósticos ambientais integrados fomentaram im- públicos, detentores de grandes áreas rurais, a criarem reservas eco- portantes projetos nacionais de planejamento territorial, notadamente lógicas, vislumbrando a transversalidade que essas novas questões o Zoneamento Ecológico – Econômico do Brasil. Mais recentemente, demandariam dos diversos setores da sociedade (RESERVA..., 1995). em sintonia com os programas brasileiros relativos à Convenção da Di- Logo no primeiro ano, foi elaborado para a RECOR um pro- versidade Biológica – CDB, surgiram outras contribuições importantes: grama inédito de pesquisas científi cas. Conjugando escalas local Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, Mapa de Biomas – base para a aplicação da legislação ambiental federal. A atual Presidência do e regional, visava ao estudo comparativo da estrutura e funciona- IBGE e sua Diretoria de Geociências deram início ainda a três projetos mento do Cerrado da RECOR – área controle, ainda bem preserva- inéditos: Sistema de Contas Ambientais, Rede Nacional de Riscos Am- da – em contraponto às áreas do bioma alteradas por diferentes bientais e SIG Brasil, portal de acesso da Infraestrutura Nacional de Da- fontes e magnitudes de perturbação induzidas pelo homem (VAL- dos Espaciais – INDE, que permitirá a integração de dados geoespaciais VERDE, 1978; DIAS, 1977; HERINGER, 1977). Ao avaliar o plano, de todas as instituições públicas do Brasil (COMITÊ DE IMPLANTAÇÃO o mundialmente reconhecido geógrafo francês Jean Tricart (1977, DA INFRAESTRUTURA NACIONAL DE DADOS ESPACIAIS, 2009). Essas p. 1) afi rmou: “a estação pode tornar-se a primeira no mundo em iniciativas demonstram que a atuação ambiental do IBGE conseguiu observações ecodinâmicas e oferecer uma contribuição brasileira de reter ao longo de sua trajetória a essência de integração e vanguarda primordial importância ao conhecimento científi co universal.” Em idealizada nos anos de 1970. 1979, foi criado o Departamento Regional de Pesquisas Ecológicas – DERPE (atual Centro de Estudos Ambientais do Cerrado – CEAC), com A transformação daquela área de treinamentos geodésico e o objetivo de implementar as pesquisas. topográfi co em Reserva Ecológica do Roncador – RECOR (Resolu- ção PR-26, de 22 de dezembro de 1975), rebatizada como Reserva Na visão de sua direção, ao estender o eixo de preocupações Ecológica do IBGE (Resolução PR-5, de 03 de janeiro de 1978) e ambientais da Amazônia e Mata Atlântica para os cerrados, o IBGE reconhecida pelo Instituto Brasileiro e Desenvolvimento Florestal – estaria contribuindo para que a marcha para o centro, iniciada com Área do Roncador utilizada para treinamentos da equipe IBDF como área de preservação permanente de interesse científi co a construção de Brasília, fosse também acompanhada pelo estudo de do Terceiro Distrito de Levantamentos Geodésico e Topográfi co do IBGE, entre 1960 e 1977. 144 alternativas para o desenvolvimento sustentável do Planalto Central área, com grande diversidade de ecossistemas e espécies; acervo de do País. Para dar conta do enorme desafi o, incentivaram a abertura dados e coleções científi cas de referência para validar as informa- da área da RECOR a todos os pesquisadores e instituições de ensino e ções bióticas investigadas; permissão para a realização de inventários pesquisa do Brasil ou estrangeiras, dispostos a participar, em parceria, e experimentação ecológica com manipulação de ecossistemas para daquela jornada. testar hipóteses relativas aos impactos humanos sobre fatores-chave na manutenção da biodiversidade do Cerrado. Acrescente-se, ainda, Passados 35 anos, a Reserva Ecológica do IBGE tornou-se refe- o extraordinário acervo de informações geográfi cas e sobre a história rência nacional em conservação e pesquisas ecológicas no Bioma Cer- natural do Distrito Federal, geradas entre os Séculos XVIII e XX, pelos rado. Suas contribuições amparam o cumprimento das Metas Nacionais inúmeros viajantes, cronistas das entradas e bandeiras que vasculha- de Conhecimento e Conservação da Biodiversidade, assumidas no âm- ram a região em busca de ouro e índios, e pelas expedições de na- bito da Convenção da Diversidade Biológica. Testemunho dos enlaces turalistas. Cumpre ressaltar, sobretudo, os estudos das três missões históricos com Brasília e com a saga ambiental do IBGE, fez-se a um destinadas a defi nir a localização da nova capital, considerados como só tempo, oportunidade e propósito. A inserção da sustentabilidade do precursores dos Estudos de Impactos Ambiental e do Zoneamento Cerrado no planejamento territorial como sonho. A interiorização das Inauguração da Reserva Ecológica do Roncador (22 de dezembro de 1975), Ecológico – Econômico (BERTRAN, 1994). Brasília nasceu do registro posteriormente rebatizada como Reserva Ecológica do IBGE (03 de janeiro preocupações ecológicas e a integração interinstitucional como estra- de 1978) com a presença do Presidente do IBGE Dr. Isaac Kerstenetzky (a científi co. direita) e do primeiro administrador da RECOR, Sr. Jacob Freitas tégia. Síntese geográfi ca de esperança, sob a inspiração de Teixeira de Freitas e o ímpeto realizador de Isaac Kerstenetzky e Eurico Borba. Ta- Parte desses estudos relatam a eco-história da Fazenda Santa refa de pioneiros. Percepção de visionários. Na interpretação de Almeida Bárbara, das bacias do Roncador e do Gama, itinerários de algumas (2000, p. 300) “Pensaram grande para 1975, mas pensaram certo...”. daquelas expedições. Estão nos registros cartográfi co fl uvial, geofísico e viário do Distrito Federal no “Mapa de Goyás” do geógrafo italiano Francesco Tosi Colombina, em 1751; nos relatos geográfi cos do Diá- rio de D. José de Almeida, escrito pelo cronista e geógrafo Tomás de Jornadas de conhecimento Souza, autor do excelente Mapa dos julgados, em 1778; aparecem explícitos no pioneiro inventário natural de Joseph de Mello Álvares O programa científi co da Reserva Ecológica do IBGE tem – 1886 (BERTRAN, 1994, p. 274); e nas exsicatas coletadas durante a a marca da cooperação, entre o IBGE e as mais de 150 instituições Missão Cruls (GLAZIOU, 1905). Os primeiros registros científi cos da nacional e estrangeira, que contribuíram na sua execução, ao longo RECOR antecedem em dois séculos o seu programa de pesquisas. desses 35 anos. Concorreram para seu sucesso diversos fatores: lo- calização e acesso, relativamente próximo ao centro de Brasília, mas Até o fi nal da década de 1980, o programa de pesquisas eredas..de V sufi cientemente afastado das áreas de maior dinamismo antrópico; estava focado na escala local, tendo produzido vários inventários e Inauguração da Reserva Ecológica do Roncador (22 de dezembro de 1975), pos- Brasília teriormente rebatizada como Reserva Ecológica do IBGE (03 de janeiro de 1978). infraestrutura e serviços de apoio às pesquisas; valor científi co da estudos ecológicos de referência. Cumpre destacar os estudos sobre Discurso de inauguração feito pelo Diretor-Geral do IBGE, Dr. Eurico Borba 145 as matas de galeria (HERINGER; PAULA, 1980), sobre gramíneas (FIL- Cerrado, desenvolvido em parceria pelo IBGE, Universidade de Brasília Veredas..de GUEIRAS, 1981) e tipos de vegetação (PEREIRA; FILGUEIRAS, 1984); e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA, a partir de Brasília sobre fungos (PERES; HERINGER, 1978); sobre diferentes grupos ani- 1988, representou um marco para o conhecimento de biodiversidade mais, tais como: insetos (SIMÕES, 1980; DIAS, 1982), aves (NEGRET, de plantas do Bioma Cerrado. Com hipótese inovadora e um protoco- 1983), mamíferos (FONSECA; REDFORD, 1984; MARES; ERNEST; GET- lo padronizado de coletas, foi possível inventariar as espécies e avaliar TINGER, 1986), crustáceos semiterrestres (REID, 1984) e peixes (RIBEI- seus padrões de distribuição espacial dentro e entre as 25 unidades RO, 1986), além de prospecções sobre o meio físico da RECOR (DETER- fi siográfi cas identifi cadas por Cochrane e outros (1985), com base na MINAÇÃO..., 1978). São desse período também, os primeiros estudos distribuição geológica dos solos, do relevo e do clima. Esse zoneamento sobre o fogo como agente ecológico no Cerrado (FILGUEIRAS, 1981; biótico do Cerrado permitiu ainda indicar, com critérios científi cos, as HERINGER; MENDONÇA, 1982; NEGRET, 1985; DIAS, 1987); os pri- melhores áreas para a implantação de novas unidades de conserva- meiros estudos sobre a importância econômica da biodiversidade do ção no Planalto Central do País (FELFILI; SEVILHA; SILVA JÚNIOR, 2001). Cerrado (PEREIRA, 1984; FILGUEIRAS, 1986; HERMANS; HERINGER, Produto-síntese dessa parceria, a publicação Cerrado: ecologia e fl ora 1986); além do primeiro inventário das plantas invasoras da RECOR – volume 2, que apresenta a fl ora vascular do Bioma Cerrado com uma Pesquisas científi cas na (PEREIRA; FILGUEIRAS, 1988). RECOR e seu acervo de lista de 12 356 espécies, integra o esforço do Brasil para o cumprimento Coleções Biológicas. Em 1987, com execução conjunta de pesquisadores de sua Di- das Metas Nacionais para 2010 da Convenção da Diversidade Biológica visão de Estudos Ambientais do Cerrado e da Divisão de Geociên- – CDB (MENDONÇA et al., 2008).

cias do IBGE – GO (oriundos do Projeto RADAM), teve início o mais De forma análoga, o projeto Biogeografi a de Peixes do Bio- completo estudo integrado de uma unidade de conservação até então ma Cerrado, desenvolvido desde 1986, com protocolos padronizados no Brasil. Com metodologia inédita para a escala de 1:10 000, foram de coleta, tem inventariado e testado hipóteses sobre a distribuição de produzidas informações sobre geologia, solos, geomorfologia, hidro- peixes em bacias hidrográfi cas do Bioma Cerrado, em função de diver- grafi a, vegetação e fl ora, dinâmica da paisagem, qualidade ambiental sos fatores físico e biótico que atuam em sinergia em uma complexa e capacidade suporte dos ambientes, além de um zoneamento am- hierarquia de escalas temporal e espacial. A partir de 1998, em parceria biental da RECOR, para orientar a execução de seu Plano de Manejo com a Universidade de Brasília e a Fundação Sustentabilidade e Desen- (ZONEAMENTO..., 1995). A partir desse estudo, os inventários bióticos volvimento – Fundação SD vem testando a hipótese de hierarquização na RECOR ganharam suporte inédito para testar hipóteses sobre os pa- de ecossistemas aquáticos, segundo Higgins e outros (1998). O estudo drões de organização da biodiversidade nos diferentes ecossistemas abrangendo 520 estações de coletas amostradas, nas bacias hidrográ- terrestre e aquático. fi cas do Distrito Federal e sua Região Integrada de Desenvolvimento foi No fi nal dos anos de 1980, tiveram início também os estu- pioneiro e o mais intensivo já realizado em ecossistemas aquáticos no dos comparativos em escala regional. O projeto Biogeografi a do Bioma Brasil com essa fi nalidade. Tem subsidiado os governos federal e distrital 146 na indicação de áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade – Bioma Cerrado. Esse acervo inclui ainda aproximadamente 170 ho- aquática (RIBEIRO, 1998; RIBEIRO et al., 1999; 2007), para a execução de lótipos de espécies novas de plantas do Cerrado (RESENDE; GUIMA- planos de manejo em unidades de conservação consolidadas (RIBEIRO, RÃES, 2007). A coleção de peixes, iniciada em 1984, contém o principal 1994; RIBEIRO et al., 2001; 2005; 2008) e planos de manejo para espé- acervo das cabeceiras das três bacias hidrográfi cas brasileiras, com cies ameaçadas de extinção (RIBEIRO; LIMA, 2008). 135 mil exemplares de 360 espécies, 118 gêneros e 27 famílias da região. Compõem esse acervo, também, de importantes coleções de Foram, também, pioneiros os levantamentos de aves migra- mamíferos (320 exemplares), aves (750 exemplares), insetos (66 560 tórias do Distrito Federal (NEGRET; NEGRET, 1981) e das aves de sua exemplares montados e identifi cados e cerca de 2 milhões coletados), Região Geoeconômica (NEGRET et al., 1984). e invertebrados aquáticos (1 075 exemplares). Uma litolaminoteca, em Para validação das informações sobre a diversidade bioló- implantação conjunta com a Gerência de Recursos Naturais do IBGE gica mantém-se a exigência da conservação de um “holótipo” (indiví- em Goiás, abriga 25 000 amostras de rochas coletadas pelo RADAM- duo completo, bem preservado que mais se aproxima do “tipo ideal” Brasil, além de lâminas delgadas, descrições petrográfi cas e mapas de da espécie) e de uma série – tipo (grupo de indivíduos que indicam a serviço em escala 1: 250 000. abrangência de variação morfológica e geográfi ca da espécie), depo- sitados em coleções científi cas. Por razões históricas, a maioria dos As transformações de uso e ocupação da terra no Planalto Cen- tipos das espécies brasileiras coletadas entre o Século XVIII e início do tral, que motivaram a criação da RECOR e seu programa de pesquisas, Século XX encontram-se dispersos em diferentes coleções da Europa têm levado a modifi cações profundas na estrutura e funcionamento e Estados Unidos, difi cultando os estudos sobre nossa biodiversidade. dos ecossistemas do Cerrado (KLINK et al., 2002). Essas constatações Entre as alternativas mais importantes para essa questão, destaca-se resultam dos projetos de estudos de impactos ambientais induzidos a formação de coleções de referência bem organizadas, com acervos pelo homem sobre o Bioma Cerrado desenvolvidos na RECOR, em par- identifi cados por especialistas por comparação direta com os espéci- ceria com inúmeras instituições nacional e estrangeira, desde o fi nal da mes-tipo (LEWINSOHN; PRADO, 2002). Como exemplo bem-sucedido, década de 1980. Experimentos controlados em parcelas instaladas em a Reserva Ecológica do IBGE abriga importantes coleções de referên- diferentes tipos de ecossistemas na RECOR, manipuladas para simular cia para os principais grupos de plantas e animais inventariados desde condições de alterações antrópicas, e monitoradas por longos períodos,

o início das coletas em sua área e no Bioma Cerrado. têm permitido testar hipóteses sobre importantes fontes de ameaça ao Exsicatas histórica: a primeira exsicata (Aeschynomene nana) coletada na área da RECOR pelo botânico da Missão Cruls Cerrado (GONZALES et al., 1997). Auguste François Marie Glaziou (1894) – depositada no O Herbário IBGE foi criado em 1977. Devido à dinâmica de cole- Museu de Paris, França. ta e de identifi cação científi ca do material coletado, possui um acervo As infl uências de queimadas frequentes sobre a estrutura e fun- de aproximadamente 70 000 exsicatas, criteriosamente identifi cadas cionamento do Cerrado e sua biomassa de raízes, seus efeitos sobre eredas..de VBrasília por especialistas de mais de 100 herbários em todo mundo, sendo as comunidades animais e interações ecológicas e seu potencial para considerado um dos melhores do Brasil dentro da área de sua atuação alterar padrões regionais ou até globais de ciclos da água e nutrientes, 147 eredas..de especialmente carbono, entre outros aspectos, são testadas em par- bém estudados em três parcelas experimentais na RECOR, que dife- V celas experimentais do “Projeto Fogo”, desde 1989. Duas áreas de 50 rem na densidade de plantas lenhosas e na manipulação do regime Brasília hectares, sendo uma de cerrado sensu stricto, e outra de cerradão e nutricional (FRANCO, 1998). uma área de 20 ha de campo sujo, foram selecionadas. Cada área foi As mudanças climáticas globais poderão ocasionar aumento dividida em cinco parcelas (200m x 500m para cerradão e cerrado e ou redução das precipitações no Bioma Cerrado, com modifi cações 200m x 200m para campo sujo) e, cada parcela foi submetida a um na estrutura e dinâmica dos ecossistemas e paisagens. Os efeitos tratamento experimental que simula diferentes épocas e frequên- provenientes do aumento das precipitações estão sendo testados cias de ocorrência de queimadas no Cerrado (MIRANDA et al., 1997). em parcelas experimentais localizadas na zona de transição da mata Utilizando essas mesmas parcelas experimentais, Klink (1999a) testa de galeria – cerrado, que recebem diferentes regimes de irrigação, os efeitos do fogo sobre a dinâmica de ecossistemas, grupos funcio- projeto batizado como “Molha Cerrado” (FRANCO, 2006). Para testar nais e populações de plantas do Cerrado, para verifi car se alterações os efeitos inversos, o projeto “Seca Cerrado” monitora alterações nos processos ecológicos dos ecossistemas podem ser previstas a no funcionamento do Cerrado, decorrentes de reduções de preci- partir de características das espécies que o compõem. pitações, em experimentos realizados em trincheiras cavadas e es- A estrutura e funcionamento de savanas tropicais também pecialmente preparadas para exclusão de chuvas na RECOR (KLINK, sofrem infl uências de fatores limitantes, como nutrientes e água. As 1999b). infl uências sobre o Cerrado e sobre as mudanças climáticas, pro- Foram também implantados na RECOR experimentos não ma- venientes do acréscimo de nutrientes, sobretudo de nitrogênio, a nipulativos. Um desses estudos monitora os efeitos de um incêndio partir da conversão da vegetação nativa em pastagem ou área agrí- acidental ocorrido na RECOR em outubro de 1994. A RECOR, que cola, acompanhado pela expansão do cultivo de plantas fi xadoras estava protegida contra incêndios fl orestais há mais de 20 anos, de N atmosférico (como a soja), pelo aumento do consumo de fer- 2 sofreu as consequências de uma queimada que teve início em área tilizantes nitrogenados, pelo crescimento populacional e pela rápida vizinha, e ao atravessar o aceiro da RECOR consumiu rapidamente urbanização, sã testadas em parcelas experimentais do projeto de o material combustível acumulado por todos esses anos. As matas “Adição de Nutrientes” (BUSTAMENTE, 1999). de galeria dos córregos Pitoco, Monjolo e Taquara foram atingidas.

Exsicatas histórica: a primeira exsicata (Anacardium humile) co- Experimentos visando estabelecer os efeitos dos usos da terra Desde então, estão sendo acompanhados os efeitos desse incêndio letada na área da RECOR pela equipe do IBGE (Ezechias Paulo He- ringer, José Elias de Paula, Roberta Cunha de Mendonça e Anajúlia sobre a economia de água no Cerrado são desenvolvidos na RECOR, sobre a regeneração da mata e sobre a estrutura e organização da- Elisabete Heringer Salles, em 26 de setembro de 1977), tombada no Herbário IBGE, Reserva Ecológica do IBGE, com o número 14. em comparação com outras áreas de savanas neotropicais (FRAN- queles ecossistemas. Como essas matas já vinham sendo monito- CO, 2001). Os efeitos dos usos da terra e das mudanças climáticas radas anteriormente ao incêndio, um experimento não manipulado globais nos ciclos biogeoquímico e hidrológico que determinam a intencionalmente foi iniciado desde então naquelas áreas afetadas estrutura e o funcionamento dos ecossistemas do Cerrado são tam- (SILVA JÚNIOR, 1995). Outro estudo monitora os efeitos de queima- 148 das no cerrado sensu stricto, por meio da avaliação fi tossociológica uma biblioteca especializada em ecologia e laboratórios diversos, do estrato arbustivo-herbáceo após um incêndio acidental (SILVA; além de alojamentos para até 30 pesquisadores (LUCARELLI, 1992). NOGUEIRA, 1999). Na RECOR estão instalados também importantes componentes do Sistema Geodésico Brasileiro: uma Estação de Monitoramento Em outro experimento análogo, os dados produzidos com pro- Contínuo do Global Positioning System - GPS, que integra a Rede tocolos padronizados sob condições protegidas dentro da RECOR são Global do International GNSS Service - IGS e uma Rede Geodésica comparados àqueles advindos de áreas submetidas a diferentes tipos Passiva formada por 25 Estações Altimétricas, 15 Estações e magnitudes de perturbações provocadas pelos projetos de desen- Planaltimétrica e a Estação de Gravidade Absoluta The National volvimento humano. Nesse escopo, enquadram-se os estudos dos Oceanic and Atmospheric Administration - NOAA. Em convênio impactos dos usos e ocupação nas bacias hidrográfi cas sobre as pai- com o Observatório Nacional do Rio de Janeiro, estão em fase de sagens terrestres, as zonas de transição terrestre–aquática e sobre os implantação uma Estação da Hora Certa e uma Estação Absoluta ecossistemas aquáticos (regime hidrológico, qualidade da água, há- para estudo do campo magnético terrestre. bitats aquáticos, comunidade de peixes e organização trófi ca). Sob a abordagem de risco ecológico, respostas dos componentes, processos Em se tratando de pesquisas científi cas em unidades de con- e padrões de organização dos ecossistemas (integridade ecológica) servação, a RECOR tem se destacado ainda pela iniciativa pioneira de em áreas sob infl uência da agricultura, urbanização e represamentos organizar um sistema de gestão que permite o acompanhamento do (fontes de ameaças), são comparadas àqueles “padrões esperados” em ciclo completo das pesquisas, desde o cadastramento do projeto, sua áreas de controle não alteradas. Modelos preditivos estabelecendo as aprovação pelo Conselho Científi co do Centro de Estudos Ambientais relações “causa – efeito” das alterações servem para orientar o mane- do Cerrado, sua implementação em campo e entrega dos produtos jo adaptativo de ecossistemas alterados (para diminuir sua vulnera- gerados (publicações) pelos pesquisadores responsáveis. Esse siste- bilidade), bem como para simular cenários de risco ecológico a partir ma de gestão compreende além do módulo de acompanhamento de de alterações futuras nos usos e ocupação da terra (RIBEIRO et al. projetos, a normatização dos procedimentos de pesquisas na RECOR, a 2005). manutenção da infraestrutura para as pesquisas e atividades acadê- micas oriundas, uma base de dados bibliográfi cos sobre os produtos A RECOR conta com boa infraestrutura e serviços de apoio às gerados, um Sistema de Informações Geográfi cas – SIG sobre a RECOR atividades de pesquisa. Ainda em 1978, com o objetivo de garantir a e um sítio na Internet (INAZAWA; SABBAG, 2009). O sistema de ges- segurança da área, foi criada a Brigada Contra Incêndios Florestais, tão está regulamentado pela Norma de Serviço no 23/99 da Diretoria com funcionários voluntários, treinados periodicamente pelo Corpo de de Geociências do IBGE. Bombeiros Militares do Distrito Federal e com curso de reciclagem nos Estados Unidos. Em 1979, foi implantada uma estação meteorológica, Ao longo desses 35 anos de existência, a RECOR notabilizou-se eredas..de Infraestrutura para pesquisas científi cas V com leituras diárias de parâmetros às 09, 15 e 21 horas e integrada à como a área protegida mais bem-estudada do Bioma Cerrado (mais Brasília e Gestão Ambiental na RECOR. rede do Instituto Nacional de Meteorologia – INMET. Constam ainda de 250 projetos de pesquisas realizados por um contingente supe- 149 rior a 670 pesquisadores cadastrados, provenientes de uma gama de também é integrante fundamental da Reserva Ecológica do IBGE, e zonas urbanas. Curiosamente, deve tornar-se o remédio de seu Veredas..de instituições nacional e estrangeira, e fontes de fi nanciamento diversas) dando suporte às atividades de pesquisas ecológicas e coordenando algoz: o melhoramento genético da soja e outros grãos, a partir de Brasília e com intensa produção científi ca (com mais de 970 publicações cien- seu Sistema de Informações Geográfi cas. Em 2010, Ano Internacional seu cruzamento com variedades de plantas do Cerrado resistentes tífi cas cadastradas). Cumpre destacar, ainda, a relevante contribuição da Biodiversidade, a Geociências completa 50 anos de pesquisas aos extremos de calor e seca, pode salvar o agronegócio, ameaçado para formação de novos pesquisadores. Somente entre os anos de 2000 científi cas na Reserva Ecológica do IBGE. Outro enlace histórico com pela escassez de chuvas com o aumento de dois a cinco graus Celsius e 2009 foram desenvolvidas 118 dissertações de mestrado e 48 teses Brasília. previsto para o Planalto Central, ao longo deste século. Cerrado de doutorado na RECOR. Por reunir esse conjunto de condições, a RECOR protegido, pode virar sinônimo de economia próspera e bem-estar integra redes nacional e internacional de centros de referência em pes- humano (DECONTO, 2008; PELLEGRINO; ASSAD; MARIN, 2007). quisas científi cas, entre as quais destacamos: “Sítio de Pesquisas para o Bioma Cerrado do Programa Pesquisas Ecológicas de Longa Duração – Paisagem em movimento O Plano de Lúcio Costa já apresentava essa percepção. Os PELD, do CNPq” e Sítio de Pesquisas para o Bioma Cerrado do Programa chapadões de topografi a suave, levemente inclinada, testemunharam No princípio, era a paisagem típica dos chapadões do Large Biosphere-Atmosphere Program – LBA, coordenado pela National a engenharia urbana curvar-se ao seu relevo. Uma borboleta Planalto Central. Sua história é interminável: pela dimensão Aeronautics and Space Administration - NASA. Suas contribuições têm inspirou-lhe a forma, o céu e o horizonte, sua orientação espacial, geológica, remonta, no mínino, a 1 bilhão de anos; pela escala sido importantes para a formulação de políticas públicas que visam à a simplicidade de suas linhas e do fl uxo de suas vias. A natureza biológica, pelo menos aos últimos 20 milhões de anos, com direito a conservação e ao uso sustentável da biodiversidade do Bioma Cerrado, batizou seus monumentos. O clima tornou-se ainda mais ameno períodos alternados de expansão e retração geográfi ca; pelo tempo em consonância com as diretrizes e metas da Convenção sobre Diversi- com o lago Paranoá, formado pelo represamento do Torto, Bananal, arqueológico, as infl uências indígenas podem retroceder a 12 mil dade Biológica e do Programa Brasileiro de Mudanças do Clima. Riacho Fundo e Gama (ORICO, 1960). As cabeceiras desses riachos de anos e a colonização luso-brasileiro-africana teria no mínimo dois águas abundantes e de ótima qualidade, que Glaziou recomendara Cumpre salientar, fi nalmente, que a Reserva Ecológica do séculos e meio, fazendo proliferar a civilização, ecologicamente permanecer sob a proteção do Cerrado pujante, para garantir o IBGE abriga o Centro de Estudos Ambientais do Cerrado – CEAC, diferenciada, do “Homo cerratensis” (BERTRAN, 1994, p. 248). O manancial hídrico da nova capital (CRULS, 1995), conceberiam a bacia unidade da Diretoria de Geociências no Distrito Federal, responsável Bioma Cerrado é vasto (ocupa mais de 200 milhões de hectares), do Lago Paranoá, demarcada pela via expressa da Estrada Parque pela supervisão das atividades de pesquisa da Gerência de Recursos mas compõe-se de sistemas ecológicos diferenciados (sendo Naturais – GRN/DF e da Gerência de Geodésia e Cartografi a – GGC/ reconhecidas mais de 25 unidades fi siográfi cas, segundo Cochrane Contorno, como “faixa sanitária” protetora de Brasília (BRASIL, 1977). DF. À Gerência do CEAC/DF cabe ainda a gestão da unidade de e outros (1985) e um número ainda maior de ecorregiões, de acordo Nascia assim, no altiplano central do Brasil, a cidade vanguarda que conservação e de todas as pesquisas realizadas na área, sobretudo com Felfi li, Sevilha e Silva Júnior (2001), que conformam eco- exerceria fascínio mundial, como elemento renovador da qualidade pelas instituições parceiras. A GRN/DF executa parte substancial do histórias sutilmente distintas, todas fortemente associadas à terra de vida. O encanto da nova capital vai além da simplicidade de suas programa de pesquisas pioneiro da RECOR e mantém suas coleções e aos seus recursos naturais. A transferência da capital viabilizou linhas, da sua arquitetura monumental, da harmonia com as artes científi cas. Primeira unidade do IBGE na área do Roncador, com longa a vocação agrícola da região, que fez riquezas às expensas de plásticas – “Síntese das Artes”, como lhe atribuiu o crítico Mario tradição em pesquisas e liderança em redes nacional e internacional suas excepcionais diversidades biológica e cultural. De grão em Pedrosa; “obra mais ousada que o ocidente já concebeu”, segundo geodésica e cartográfi ca, e precursora da ideia de implantar na área grão, o Cerrado perdeu espaço (ALHO; MATINS, 1995). Paisagem André Malraux; “Capital do Ano 2000”, batizada por James de Coquet, um centro científi co de grande repercussão nacional, a GGC/DF fragmentada, “ilhas” imersas em uma matriz de agroecossistemas jornalista do Fígaro (ORICO, 1960). Na visão de seu idealizador, 150 Brasília deve ser percebida não como simples orga- e Decreto Distrital no 11.137, de 16 de junho de 1988), os três maiores nismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as fragmentos remanescentes de Cerrado no Distrito Federal, áreas - nú- funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como urbs, mas como civitas, possuidora dos atribu- cleo da Reserva da Biosfera do Cerrado (Lei Distrital no 742, de 28 de tos inerentes a uma capital”... “resulta daí a harmonia de exi- julho de 1994). Reservas da Biosfera têm como princípio conciliar os gências aparentemente contraditórias: sendo monumental é também cômoda, efi ciente, acolhedora e íntima. É ao mesmo desafi os de proteção da natureza com o bem-estar humano e são tempo derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e fun- concedidas pela UNESCO às áreas com patrimônio ambiental relevante. cional (COSTA, 1957). No caso de Brasília, esse patrimônio ambiental, rico e diversifi cado, confere, também, proteção à sua área tombada – Patrimônio Cultural Cidade-Parque que congraçou o urbano e a natureza do Cer- da Humanidade (UNESCO, 2000). O IBGE tem participação ativa nos rado protetor, em busca do bem-estar humano. Cidade sustentável, Conselhos dessas áreas protegidas. por extrair da harmonia dos contrastes a estabilidade resultante. Por suas características únicas, Brasília foi a primeira cidade do Século XXI Segundo Orico (1960), as cidades só começam verdadeiramente a receber a distinção de Patrimônio Cultural da Humanidade da United a ser cidades depois de discutidas. E negadas. Brasília, não escapou à National Educational, Scientifi que and Cultural Organization - UNESCO, regra. Desde o Império, teve de vencer obstáculos e desafi ar as críticas. em dezembro de 1987. Rito de passagem da esperança à realidade, seu desafi o mais recente será manter a integridade ambiental e a cultural de Brasília, equacio- Curiosamente, o IBGE foi a primeira instituição pública a se nar as crescentes transgressões a esses patrimônios impulsionadas instalar dentro da “faixa sanitária”, testemunha o registro cartográfi - pela explosão demográfi ca a partir dos anos de 1980, e promover o co do IBGE (1961). Transformada em Reserva Ecológica, não tardou a bem-estar humano. No Distrito Federal, a ocupação desordenada foi exercer sua infl uência para que outras áreas protegidas fossem imple- responsável pela conversão de 57,65% da vegetação original do terri- mentadas (DIAS; NEGRET; PEREIRA, 1984). Seus pesquisadores foram tório, entre os anos de 1953 e 1998, com refl exos diretos sobre as uni- decisivos na proposição da Área de Proteção Ambiental Gama – Ca- dades de conservação que protegem a área tombada (UNESCO, 2000). beça de Veado (Decreto Distrital no 9.471, de 21 de abril de 1986), onde Motivaram um alerta da UNESCO (2001, p. 20): “mudanças expressivas a RECOR está inserida e forma, com áreas protegidas vizinhas, 10 118 ha na estrutura do território, com danos muito sérios às unidades de que compõem sua Zona de Vida Silvestre. A Zona de Vida Silvestre da conservação, podem comprometer testes futuros de Autenticidade e APA forma com o Parque Nacional de Brasília – 42 389 ha (Decreto Integridade do Patrimônio Cultural de Brasília.” no 241, de 29 de novembro de 1961, modifi cado pela Lei no 11.285, de Espécimes na área da reserva 08 de março de 2006), os maiores blocos protetores dos mananciais A Reserva Ecológica do IBGE é uma síntese desse desafi o. A do Lago Paranoá que abastecem a população da capital. Por sua vez, RECOR abriga grande diversidade de tipos de vegetação, típicas da re- eredas..de VBrasília esses dois blocos compõem, com a Estação Ecológica de Águas Emen- gião nuclear do Bioma Cerrado: Cerrado Denso, Cerrado Típico, Cer- dadas – 10 500 ha (Decreto Distrital no 771, de 12 de agosto de 1968 rado Ralo, Campo Sujo, Campo Limpo, campos de Murunduns, Brejos 151 e Veredas, bem como Matas de Galeria são bem representados na área nistério do Meio Ambiente – MMA). Cumpre destacar que, para a área antropizada, em 1953 (SANTOS, 2003) e aproximadamente 300 Veredas..de (RESERVA..., 2004). A sua fl ora vascular também é muito diversifi cada borboleta Magnastigma Julia e o peixe Pirá-Brasília Simpsonichthys espécies de plantas exóticas, restritas às áreas das antigas chácaras de Brasília e representativa, contendo 30% das espécies e 78% das famílias de boitonei, a Reserva Ecológica do IBGE é a única área de vida dessas posseiros (PEREIRA; FILGUEIRAS, 1988). Passados 50 anos de adminis- plantas encontradas em todo o Bioma Cerrado (UNESCO, 2003). Sua espécies, e, portanto, a conservação dessas espécies depende total e tração do IBGE, houve redução da área antrópica, que passou a ocu- fauna também é bastante representativa e é especialmente rica em es- unicamente da conservação da própria RECOR. A Reserva Ecológica do par 0,59% da RECOR, e redução do número de espécies de plantas exó- pécies: Inventários faunísticos demonstram que a riqueza de inverte- IBGE e a Zona de Vida Silvestre da APA Gama – Cabeça de Veado são as ticas, mas com aumento das plantas invasoras. As queimadas, prática brados e de vertebrados terrestres da RECOR é comparável às de regiões únicas Unidades de Conservação do Distrito Federal que protegem a comum dos fazendeiros a cada dois anos, que atrasavam o processo de tamanho equivalente na Amazônia ou Mata Atlântica, consideradas formiga Quenquém Acromyrmex diasi, o Cachorro-do-Mato-Vinagre de sucessão, passaram a ser combatidas com efi ciência pela Briga- as mais ricas do Brasil (DIAS, 1992), ou mesmo às de outras regiões de Speothus venaticus, o gato Palheiro Oncifelis colocolo, a Onça Parda da Contra Incêndios Florestais dos voluntários da RECOR. Conquistas importantes da gestão interna. Por outro lado, o avanço desordena- fl orestas tropicais com alta diversidade, como a Estação Biológica de Puma concolor e a Onça Pintada Panthera onca. Outras quatro espé- do das áreas urbanas sobre o território não passou despercebido na Barro Colorado – a maior ilha de fl oresta tropical do Canal do Panamá, cies de mamíferos e três espécies de aves ameaçadas de extinção que área. O rebaixamento do lençol freático provocou a retração de brejos, a Estação Biológica de La Selva – Costa Rica, e a Estação Biológica de ocorrem na RECOR e na Zona de Vida Silvestre da APA Gama – Cabeça veredas e matas de galeria (perda de 3,3% de área), e a respectiva ex- Cocha Cashu – no Sudeste do Peru (RIBEIRO, 1996). de Veado estão protegidas também no Parque Nacional de Brasília e pansão dos cerrados e campos. Dois incêndios de grandes proporções na Estação Ecológica de Águas Emendadas. A RECOR ainda abriga 15 espécies da Lista Ofi cial de Espécies atingiram a área (1994 e 2005), provocando expansão na distribuição da Fauna Ameaçadas de Extinção, também conhecida como “Lista Dois séculos de colonização da antiga Fazenda Santa Bárbara de plantas exóticas invasoras. Vermelha” (Instrução Normativa no 5, de 21 de maio de 2004 do Mi- deixaram cicatrizes na área da Reserva Ecológica do IBGE: 0,92% de Mesmo populações consideradas protegidas dentro de unidades de conservação podem se extinguir localmente quando essas áreas não são grandes o bastante para manterem populações viáveis de todas as Paisagens da RECOR em movimento: 1953 – 1978 – 2009 espécies que abrigam ou se encontram isoladas na paisagem. Ao longo desses anos, o IBGE acumulou tentativas frustradas de expansão de sua área de proteção, ao mesmo tempo, em que via crescer as ameaças de isolamento entre as unidades de conservação, perda de hábitats crí- ticos, efeito de borda, atropelamentos, incêndios fl orestais, introdução de espécies exóticas e extrativismo ilegal de plantas e animais.

Todavia, existem ainda oportunidades geográfi cas (RODRIGUES et al., 2006; FELIZOLA, 2005) e amplo amparo legal (CONSELHO CIEN- TÍFICO DA RESERVA ECOLÓGICA DO IBGE, 2009), para a constituição de corredores ecológicos. Do ponto de vista ambiental, esses corre- 152 dores ecológicos interligando os três maiores fragmentos fl orestais Referências CRULS, Luiz. Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Bra- sil: relatório Cruls. Ed. especial. Brasília, DF: Companhia do Desenvolvimento do Distrito Federal promoveriam o necessário fl uxo gênico entre as do Planalto Central, 1995. espécies ameaçadas e permitiriam à Reserva Ecológica do IBGE con- ALHO, Cléber J. R.; MARTINS, Eduardo de Souza. De grão em grão, o cerra- DECONTO, Gesisky Jaime (Coord.). Aquecimento global e a nova geografi a tinuar sua tradição de pesquisas científi cas em busca de soluções de do perde espaço: (cerrado-impactos do processo de ocupação). Brasília, DF: da produção agrícola no Brasil. 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1. Carta de Mário Augusto Teixeira de Freitas ao Dep. João d’Abreu (representante do Es- tado de Goiás), a propósito de um discurso na Assembléia Constituinte, em 15 de junho de 1946.*

2. Carta de Mário Augusto Teixeira de Freitas ao General Djalma Polli Coelho (Chefe do Serviço Geográfi co do Exército e Presidente da Comissão de Estudos para a localização da nova Capital do Brasil), contendo palavras de agradecimento, em 09 de junho de 1947.*

3. Entrevista de Mário Augusto Teixeira de Freitas ao Diário Trabalhista, do Rio de Janeiro, publicada em resumo em sua edição de 13 de setembro de 1948, sob o título “Brasília, capital do Brasil”.*

4. Texto de Alain Ruellan (fi lho de Francis Ruellan), “A localização de Brasília: papel das Expedições Geográfi cas de junho a setembro de 1947”, em novembro de 2005. NEXOS eredas..de VBrasília

* Documentos subscritos por Mário Augusto Teixeira de Freitas, na qualidade de Secretário Geral do IBGE, a propósito

Imagem de abertura do anexo: Marco Comemorativo da mudança da capital (extraídos do relatório A localização colocado em Planaltina, no Planalto Central, por da nova Capital da República, impresso no Serviço Gráfi co do determinação do presidente Epitácio Pessoa Acervo de Alain Ruellan IBGE, em 1948) 158 eredas..de VBrasília 159 eredas..de VBrasília

160 eredas..de VBrasília 161 eredas..de VBrasília

162 eredas..de VBrasília 163 eredas..de VBrasília

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188 eredas..de VBrasília 189 A localização de Brasília: papel das 1 - A Comissão Polli Coelho Rapidamente, a chamada Comissão Polli Coelho come- Veredas..de Expedições Geográficas de ça a trabalhar, mas desde o inicio ela se divide entre aqueles Brasília Depois da missão do Dr. Luiz Cruls, durante muitos anos junho a setembro de 1947* que queriam apenas ratifi car e detalhar as opções da Missão nada de concreto aconteceu ... exceto o lembrete regular da im- Cruls e aqueles que queriam recomeçar o processo completo: Alain Ruellan** portância de construir uma nova capital ... e a implantação em na verdade, é a divisão entre aqueles que queriam a capital no 7 de setembro de 1922 da Pedra Fundamental próximo à Planal- Estado de Goiás e aqueles que a queriam no Estado de Minas tina, local que já tinha sido escolhido pela Missão Cruls. No Século XVIII, já se falava de mover a capital do Brasil Gerais. para o interior. Tiradentes foi um dos pioneiros. Na verdade, as prioridades política e econômica eram ou- Os “Mineiros” acabam prevalecendo, e em 1947 o Pre- tras: Rio de Janeiro não queria perder o seu papel como Capital Mas foi só em 1891 que, na Constituição da jovem Re- sidente da Comissão, general Djalma Polli Coelho, decide en- Federal e o Estado de Minas Gerais pressionava para que a futura pública, foi marcado o desejo de mudança da capital para o tão retomar os estudos de campo; e para a realização desses capital fosse instalada em Minas e não em Goiás. Planalto Central. Esta decisão foi rapidamente concretizada em estudos ele os solicita ao Conselho Nacional de Geografi a. 1892 - 1894 pela expedição liderada pelo Dr. Luiz Cruls, que fez Mas houve a Segunda Guerra Mundial, de 1939-1945, O objetivo era propor espaços que poderiam ser adequados uma primeira delimitação, no Estado de Goiás, do futuro Dis- que confi rmou a fragilidade do Rio de Janeiro como capital. para a implementação da nova Capital Federal do Brasil; quer trito Federal, chamado “Quadrilátero Cruls” (14 400 km2 = área dizer, na sequência das decisões constitucionais de 1891, re- Houve também o desejo político de acelerar a unida- recomendada pela Constituição de 1891). O Relatório Cruls foi tomar e ampliar os resultados da Missão Cruls, que datam do de do Brasil, pela ocupação do seu interior1 e pela criação de reeditado pelo Senado Brasileiro, em 2003. novas vias de acesso às áreas remotas, especialmente para a fi nal do Século XIX. Em 1894–1895 aconteceu a segunda Expedição Cruls Amazônia. Era esse o papel-chave de uma nova capital no Pla- para selecionar, no Quadrilátero, os locais possíveis para a fu- nalto Central. 2 - As duas expedições geográficas de 1947 tura capital; os trabalhos dessa 2a expedição foram interrompi- A Constituição de 1946 reedita o artigo determinando a dos devido a uma mudança na Presidência da República. Duas expedições paralelas foram então organizadas sob construção de uma nova capital no Planalto Central, entre as a autoridade do Dr. Christovam Leite de Castro, então Secretá- prioridades do Brasil; e o presidente da República, Eurico Dutra, rio Geral do CNG e membro da Comissão Polli Coelho. decide então retomar o processo. Em novembro de 1946, ele

* O texto original está em Francês no site de Alain Ruellan, no endereço: . . Esta versão em Português foi feita pelo próprio au- tor e nos foi enviada em 19 de março de 2010, com a devida autorização para publicação Nova Capital do Brasil”. Essa comissão é composta por 12 confi adas a Francis Ruellan, então professor de Geografi a na neste livro, não tendo sido objeto de tratamento técnico, seja de normalização ou revi- são, como os demais textos inéditos desta publicação. [Nota do organizador] pessoas e presidida pelo general Djalma Polli Coelho. Faculdade Nacional de Filosofi a da Universidade do Brasil, Rio

** Alain Ruellan (1978), de nacionalidade francesa, é Professor Emérito de Ciência de de Janeiro, e professor no Conselho Nacional de Geografi a. Esta Solo. Viveu no Brasil, com os pais Francis e Annette Ruellan, de 1941 a 1950. Desde 1944, participou de muitas das excursões organizadas por Francis Ruellan no interior do expedição aconteceu em 1947, exatamente entre 27 de junho Brasil. Se formou em Agronomia e Pedologia na França. Desenvolveu as suas pesquisas científi cas e as suas atividades universitárias na Africa e na França. A partir de 1979, e 1o setembro daquele ano. Eu participei dela durante o mês de voltou regularmente no Brasil, colaborando com diversas universidades, institutos de 1 Em 1946, o Brasil possuía 50 milhões de habitantes, a maioria vivendo em uma faixa pesquisas, ONG. costeira de 500 km. julho. Eu tinha apenas 16 anos. 190 A organização e a direção da segunda expedição foram • uma região já povoada e em desenvolvimento; • Geomorfologia, Geologia, Pedologia, Topografi a; confi adas ao Dr. Fábio de Macedo Soares Guimarães, do • uma região quase deserta; • Climatologia, Biogeografi a, Hidrologia; e Conselho Nacional de Geografi a. Elas aconteceram entre 4 de • uma região politicamente infl uente; e • Geografi a humana, Economia, Potencialidades agrícolas. julho e 22 de setembro de 1947. • uma região a se desenvolver. Verdadeiramente equipes multidisciplinares. Por que duas expedições paralelas? Para poder comparar De fato, dentro desta vasta região, a Comissão já tinha Cada equipe tinha: uma dúzia de assistentes, dois cami- os resultados, sabendo que os objetivos e os métodos de traba- selecionado oito áreas prioritárias. Os critérios para a escolha nhões, equipamentos de camping, etc. lho das duas equipes eram diferentes. Os resultados foram, de dessas oito áreas foram, principalmente: fato, signifi cativamente diferentes. • climáticos: altitude acima de 700 metros; Cada equipe tinha a seu cargo o estudo de duas zonas • Expedição Ruellan: mais volumosa, multidisciplinar, envolven- • políticos: quatro áreas no Triângulo Mineiro e quatro no Estado selecionadas pela Comissão. do dezenas de pessoas, incluindo 40 cientistas, com o objetivo de Goiás. de estudo detalhado de oito pré-áreas selecionadas, mas tam- Como os mapas e as fotos aéreas faltavam, especialmente São essas oito áreas que foram estudadas detalhada- bém das regiões situadas entre essas áreas, a fi m de propor sí- em Goiás, foi necessário adotar o seguinte método de trabalho: tios específi cos. Politicamente, essa expedição é neutra, mesmo mente pela expedição Ruellan, mas todos os 200 000 km2 fo- • em cada área, percorrer caminhos entre pontos conhecidos por quando Francis Ruellan, em seu relatório, deixa transparecer sua ram cobertos pelas duas missões. suas coordenadas astronômicas; preferência por uma escolha mais para o interior do País, logo, em favor de Goiás. Seria interessante descobrir como essas oito áreas fo- • parar a cada 200 a 400 metros para fazer medições topográfi - cas e observações científi cas (relevo, geologia, solos, vegetação, • Expedição Guimarães: mais leve (nove cientistas), essencial- ram selecionadas e demarcadas pela Comissão: é provável hidrologia e atividades humanas): percorrendo de 5 a 10 km por mente geográfi ca (sete geógrafos, um pedólogo e um botânico), que os critérios políticos foram fortes. O primeiro passo foi dia (de modo que mudou o local de acampamento diariamen- com o objetivo de melhor compreender o Planalto Central e fa- 2 delimitar o Planalto Central em si (2 000 000 km : trabalho te); zer, segundo critérios geopolítico e técnico, um ranking das oito feito pela subcomissão encarregada dos estudos geográfi - áreas pré-selecionadas (sem o propósito de determinar sítios • todas as observações científi cas foram, assim, geografi camente precisos). Politicamente Fábio foi altamente infl uenciado pela cos); a Comissão decidiu, então, concentrar as suas escolhas situadas; corrente “Mineira”. no quarto sudeste do Planalto Central: é ai que as oito áreas • sempre que necessário, se fazia alguns caminhos adicionais; e foram selecionadas, pela Comissão. O tamanho da região que foi indicada às duas missões • no total as quatro equipes fi zeram 1 760 km de levantamentos de precisão e percorreram com mais rapidez, com auxílio da bús- para serem estudadas em dois a três meses foi signifi cativo 2.1 - A expedição Ruellan sola, em torno de 3 000 km. (cerca de 200 000 km2): Para fazer o trabalho, Francis Ruellan apelou aos seus Eu mesmo participei da equipe 1 que fez o percurso Aná- • 500 - 900 km de sul a norte, desde o Rio Grande no Sul (limite entre Minas Gerais e São Paulo) até, mais ou menos, o atual li- alunos e ex-alunos formados em Geografi a, mas também es- polis-Planaltina-Formosa, na Zona G (Quadrilátero Cruls). Eu es- mite entre Goiás e Tocantins; pecialistas em Geodésia, Vegetação, Fauna, etc. tava encarregado de um dos dois levantamentos topográfi cos. • 200 - 400 km de leste a oeste; Ele formou quatro equipes: duas para trabalhar em Goiás Na quinta equipe, dita de direção e administração, esta- Veredas..de Brasília Isso quer dizer que o objetivo era, basicamente, a explora- e duas em Minas Gerais. Cada equipe foi constituída por três vam Francis Ruellan, meu pai, e Annette Ruellan, minha mãe, ção do Triângulo Mineiro e do quarto sudeste de Goiás, a saber: grupos de 2 a 3 pesquisadores: encarregada dos Serviços Gerais, apoiados por uma pequena 191 equipe científi ca e administrativa. Com dois caminhões, este para os níveis de erosão intermediários com relevo ondulado; de comunicação com as diversas regiões do Brasil, dando prio- Veredas..de grupo de direção ia de uma equipe para outra e, portanto, per- • Recursos hídricos ao redor: para as necessidades de água da ridade às comunicações para as regiões as mais desenvolvidas; Brasília correu as regiões abrangidas entre as oito áreas. população e para gerar eletricidade. População estimada em a proximidade de um limite interestadual. Estes três critérios 500.000 pessoas no máximo; No total, a expedição envolveu mais ou menos uma cen- levam a privilegiar as zonas propostas em Minas Gerais. • Potencialidades agrícolas nas proximidades, em especial, o po- tena de pessoas. Ela viajou cerca de 18 000 km, na sua maioria tencial do solo (agricultura e pecuária); Os oito critérios técnicos de Fábio foram: topografi a; cli- por caminhão (nas estradas de terra), mas também a cavalo, a • Proximidade de materiais de construção: madeira, areia, casca- ma; abastecimento de água; proximidade de fl orestas; energia pé, de avião. Foi verdadeiramente uma aventura. lho, tijolo, pedra calcária, pedra de cantaria; elétrica; materiais de construção; natureza do subsolo; paisa- • Canais de comunicação: tornar a capital um novo nó, uma estre- Em conclusão do trabalho feito, Francis Ruellan pro- gem agradável. pôs 15 locais possíveis para Brasília: cinco em Minas, dois la, de onde se partiriam facilmente estradas (incluindo estradas de ferro) para todas as principais regiões do Brasil. O relevo deve No total, ele propõe que se mantenham apenas 3 das 8 no limite Minas-Goiás, oito em Goiás, sendo sete no Quadri- permitir a fácil construção de vias de comunicação saindo da látero de Cruls (Zona G). Ele não classifi cou os sítios como capital; e zonas: uns melhores e outros piores, porque acreditava que essa • Mão-de-obra disponível para a construção da nova capital. • C: Uberlândia - Tupaciguara (MG); classifi cação se basearia, além de critérios técnicos, em crité- • D: Alto Paranaíba e Patos de Minas (Minas Gerais); e Francis Ruellan descreveu as vantagens e desvanta- rios geopolíticos, que não eram de sua competência. O local • F: Goiânia - Anápolis (GO). gens de cada um dos 15 sitios que ofereceu. Ele se recusou, fi nalmente escolhido para abrigar Brasília (em maio de 1955: no entanto, a classifi cá-los em relação uns aos outros. Mas, o Sítio Castanho, conforme está no relatório Belcher e no re- 2.3 - A síntese de Leite de Castro lendo o seu relatório, sente-se bem que dentro dele Francis latório da Comissão José Pessoa), depois de muitos outros de- Ruellan dava preferência ao norte, a Goiás, ao papel pioneiro, bates técnico e geopolítico, foi um dos sete sítios propostos Em seu curto relatório-síntese (de novembro de 1947), por Francis Ruellan localizados dentro do Quadrilátero Cruls: desenvolvedor e unifi cador, da futura nova capital: para ele, o Dr. Christovam Leite de Castro assumiu a responsabilidade acontece que eu estava na equipe 1, chefi ada por Alfredo Brasília deveria contribuir fortemente para a construção da de classifi car os 15 sítios propostos por Francis Ruellan (depois Nação brasileira como um todo. Porto Domingues, que percorreu o Quadrilátero Cruls: então de discutir com ele): eu provavelmente acampei em Brasília em 1947 ...!!! 2.2 - A expedição Guimarães - Os muito bons: Para propor os 15 sítios, Francis Ruellan se baseou nos • sítio de Rio Claro (zona A) (Minas Gerais); e O relatório apresentado por Fábio Guimarães é diferen- seguintes critérios: • sítio entre Anápolis e Silvânia (caixa F-G) (Goiás). te, muito mais geopolítico. Ele não propôs locais específi cos, • Clima: altitude mínima de 700 metros; encostas expostas, prin- cipalmente para o nordeste e sul; topografi a suavemente ondu- mas ofereceu um ranking das oito áreas, relacionando-as umas - Os bons: lada, facilitando o fl uxo de ar; com as outras. • sítio de Santana dos Patos (área D) (Minas Gerais); e • Relevo: evitar planaltos (chapadas) muito planos (pouca circula- • sítio de São Marcos localizado no limite Minas-Goiás. ção de ar), mas também evitar os relevos fortes de dissecção des- Os três critérios geopolíticos de Fábio foram: a localiza- tes planaltos (difícil de construir); portanto, a escolha se orientou ção central em relação às áreas povoadas do Brasil; a facilidade - Os medianos: os outros. 192 Ele decide não escolher nenhum dos cinco sitios pro- Em 12 de agosto de 1948, o relatório da Comissão Polli projeto de localização da capital no Planalto Central quer dizer no Estado de Goiás, avança: já se fala em situá-la no intervalo postos no centro e leste do Retângulo Cruls,... sitios que tinham Coelho foi apresentado ao Presidente da República Eurico Du- entre os paralelos 15 e 16, a 3 000 pés de altitude, na divisão das a preferência secreta de Francis Ruellan ... tra, que o encaminhou imediatamente ao Congresso (21 de águas do Amazonas, do Prata e do São Francisco ...O Parlamento debate várias vezes. agosto de 1948): no encaminhamento do relatório, o Presiden- E em sua conclusão fi nal, ele escolhe as propostas de • 15.11.1889: A República decreta que o Rio de Janeiro será “tem- te Dutra sugere as duas possíveis localizações (Goiás e Minas), Fábio Guimarães (que são conforme as suas próprias escolhas, porariamente” a sede do Poder Federal. mas apoia a solução Goiás. já escritas em 1946: ver artigos publicados em 1946 e 1947)2. • 1891: A Constituição estabelece que a futura capital do Brasil será no Planalto Central, dentro de uma área de 14400 km2 (400 As decisões fi nais serão outras ... Léguas) a ser delimitada. Nota - Foi um pouco difícil localizar o relató- • 1892 - 1894: Estudos da “Comissão de Exploração do Planalto 3 - As conclusões da Comissão Polli Coelho rio completo da Comissão Polli Coelho, publicado em Central”, presidida por Luiz Cruls. Delimitação, ao fi nal de dois 1948 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografi a e Es- anos de trabalho (uma grande parte deles em trabalho de cam- tatística). Os relatórios escritos por C. Leite de Castro, po), dos 14 400 km2 do futuro Distrito Federal = “Quadrilátero Com base no trabalho das missões Ruellan e Guimarães, F. Ruellan e F. Guimarães, foram achados na biblioteca Cruls” (conforme relatório publicado no fi m de 1894) (Kubits- e depois de muito debate político, a comissão votou em 21 de de F. Ruellan (na sua casa, na França), acompanha- chek fala em seu livro, p. 21, dos dois relatórios de Cruls: 1893 dos por alguns mapas. Agora, eles estão no Fundo F. e 1894). julho de 1948 para a escolha entre duas propostas para a loca- Ruellan, da Universidade de Haute Bretagne, Centro de lização do Distrito Federal: Estudos Portugueses, Brasileiros, e da África Lusófona, • 1894 – 1895: Trabalhos da “Comissão de Estudos da nova Capital em Rennes). O relatório fi nal (3 volumes) da Comissão da União” presidida por Luiz Cruls. A Segunda missão de Cruls • Uma expansão do Quadrilátero Cruls (especialmente ao norte), Polli Coelho, entregue ao Presidente da Republica em em campo, a fi m de localizar a futura capital no Quadrilátero de que abrange 77 250 km2, e está localizado inteiramente dentro 12 de agosto de 1948 e ao Congresso, em 21 de agos- 14 400km2. Os trabalhos foram interrompidos por mudança na do Estado de Goiás, com áreas escassamente povoadas; alguns to de 1948, esta no Senado e no IBGE. Portanto, nos Presidência da República (fi m de governo de Floriano Peixoto, dos limites desta zona são geografi camente naturais; é a proposta livros que traçam a “arqueologia” de Brasília, a Comis- um grande defensor do projeto de uma nova capital, sendo subs- em favor do papel desenvolvimentista e unifi cador da nova capital são Polli Coelho é mencionada, mas nada se fala sobre tituído por Prudente de Moraes, que tinha pouco interesse nisso), (essa proposta contava com o apoio de Francis Ruellan); as expedições Ruellan e Guimarães. mas propostas de localização foram possíveis. • Uma localização no Triângulo Mineiro (6 000 km2, em área loca- • 07.09.1922: Implantação perto de Planaltina, da “Pedra Funda- lizada principalmente em Minas Gerais): proposta da construção mental” (para marcar o primeiro centenário da independência de uma cidade enraizada no Brasil já povoado (esta proposta era 4 - Marcos da “pré-história” de Brasília brasileira). Esta implantação foi feita ao abrigo de um Decreto- a preferida por Fábio Guimarães e Christovam Leite de Castro). Lei (de Janeiro de 1922), reafi rmando que a capital brasileira • 1 763: Transferência da capital do Brasil, da Bahia para o Rio de será, oportunamente transferida para o Planalto Central (em Por sete votos a favor, cinco votos contra, a Comissão Janeiro. respeito a Constituição de 1891). O decreto foi assinado pelo então Presidente da República Epitácio Pessoa. escolheu Goiás, ou seja, contra as propostas feitas por Leite de • 1789: Tiradentes e “Inconfi dentes” sugerem que a nova capital • 1933: A Sociedade de Geografi a do Rio de Janeiro confi rma a Castro. do Brasil seja em São João del Rei (Minas Gerais). escolha da Comissão Cruls. • Século XIX: Vários precursores para “interiorizar” a capital do 2 Em suas palestras e escritos entre 1946 e 1947, Christovam Leite de Castro argu- • 1934: A nova Constituição reafi rma, sem convicção, a necessi- Brasil = Hypólito da Costa (jornalista, editor do Correio Bra- menta que a futura capital precisava estar intimamente relacionada à parte já po- dade de uma nova capital; a escolha de Cruls é contestada: para voada do Brasil, na fronteira entre as áreas povoadas e pouco povoadas. Ele con- ziliense, em Londres) (1813), José Bonifácio (Político) (1821) siderava que a região era povoada, em média, ao longo da costa, numa faixa de localizar a futura capital, não se fala mais do Planalto Central, Veredas..de 500 km de largura: é preciso, segundo ele, instalar a capital na parte mais a oeste e (faz a proposta do nome de Brasília), Adolpho de Varnhagen mas de um “ponto central do Brasil”; uma nova comissão foi norte dessa faixa litoral, mas não fora desta faixa. Em sua palestra, depois publicada (Visconde de Porto Seguro) (1839), Holanda Cavalcanti (Sena- prevista para propor diversas localizações: parece que essa co- Brasília em abril-junho de 1947, ele apoiava claramente a hipótese de que Brasília deveria se localizar em Minas Gerais. dor, 1852), Dom João Bosco (em sonho, em 1883). No total, o missão não chegou a existir. 193 • 1937-1945: Ditadura de Getúlio Vargas: impasse sobre a nova • Setembro de 1956: criação, pela Lei, da NOVACAP - Companhia Planalto Central”. Revista Brasileira de Geografi a, ano VIII, n. 4, p. 133-138, Veredas..de capital. Urbanizadora da Nova Capital do Brasil. O nome de Brasília é outubro-dezembro de 1946. formalizada pelo Congresso. Brasília • 1946: A nova Constituição prevê que “a capital da União será - Christovam Leite de Castro: “A mudança da capital do país à luz da ci- transferida para o Planalto Central do País”. • 21 de abril de 1960: Inauguração de Brasília por Juscelino Ku- ência geográfi ca”. Revista Brasileira de Geografi a, ano IX, n. 2, p. 123-129, bitschek. • 1946-1948: Acontecem os trabalhos da Comissão de Estudos abril-junho de 1947. para a Localização da Nova Capital Federal”, chefi ada pelo Ge- neral Djalma Polli Coelho. - Christovam Leite de Castro: “Relatório preliminar da Seção Especializada • 1947: No âmbito da Comissão Polli Coelho, acontecem duas ex- de Estudos Geográfi cos do Comissão de Estudos para Localização da Nova pedições de campo, lideradas por Francis Ruellan e Fábio Gui- 5 - Referências Capital do Brasil”. Novembro 1947; transcrito 7 p. marães. - Christovam Leite de Castro: “A mudança da capital do País”. Revista Brasi- • Agosto de 1948: Decisão do Presidente da República Eurico Du- 5.1 - Livros e documentos leira de Geografi a, Ano X, n. 3, p. 117-119, julho-setembro de 1948. tra por um Distrito Federal de 77 250 km2, incluindo o Quadrilá- - Luiz Cruls: “Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil. tero Cruls. Envio desta decisão para o Congresso. - Christovam Leite de Castro: “Nova Capital do Brasil”. Anais da primeira Relatório apresentado a S. Ex. O Sr. Ministro da Indústria, Viação e Obras consulta do Panamericana reunião sobre geografi a (12-24/09/1949), vol. ?, P. • Janeiro de 1953: Congresso e Governo decidem que os estudos Públicas. 1894. Republicado em 2003 pelo Senado Federal, vol. 22, 360 p. 3-5, Rio de Janeiro, 1952. defi nitivos para a localização exata de uma cidade de 500.000 - Departamento Administrativo do Serviço Público, Serviço de Docu- 2 habitantes, serão conduzidos sobre uma área de 52 000 km : mentação: “O Relatório Técnico sobre a Nova Capital da República” (Relató- - Dora Amarante Romariz: “Notícia sobre alguns estudos geográfi cos que Quadrilátero Cruls + região de Anápolis e Goiânia + Município de rio Donald J. Belcher). 1957, 2 ª edição, 291 p. antecederam uma criação de Brasília. Março de 2004, transcrito 5 p. Unaí, em Minas Gerais. A área proposta em 1948 é reduzida e ela - Hosanna Campos Guimarães: “Entrevista”. In: “Planaltina ...Relatos” p. e um pouco modifi cada para incluir um pedaço de Minas Gerais - Alain Ruellan, Denis Ruellan e Samy Adghirni Leal: “A capital, que nas- 19-48. Museu Histórico e Artístico de Planaltina, 1985. ...! Esta nova área é chamada de “Retângulo do Congresso”. ceu da terra”. Em “Narrativas a céu aberto, modos de ver e viver Brasília, por - Hosanna Campos Guimarães: “Planaltina, sua origem, sua história e sua • Junho de 1953: criação de uma”Comissão para a localização da Cremilda Medina (Organizadora), p.13-20. Editora UnB, 1998. gente”. Em “História do Planalto, p.157 - 181. Academia de Artes e Letras do Nova Capital Federal”, presidida pelo General Aguinaldo Caia- Planalto, Luziana GO - 1996. do de Castro, e em seguida, pelo Marechal José Pessoa (em - Francis Ruellan: “Relatório preliminar da Primeira Expedição geográfi ca ao abril de 1955, Fábio de Macedo Soares Guimarães é membro da - Juscelino Kubitschek: “Por que Construí Brasília”. 2 ª edição, 2002. Senado Planalto Central”. Março 1948 (?) P. 51 digitado + Mapas. comissão). Federal, Coleção Brasil 500 anos, 477 p. - Francis Ruellan: “Alguns problemas da expedição para encontrar locais - Adirson Vasconcelos: “A mudança da capital, Brasília, 1978 (edição do • Estudos da aerofotogrametria para a localização exata da capital para a nova capital federal dos Estados Unidos do Brasil”. Boletim da Associa- são confi ados à empresa norte-americana Donald J. Belcher and autor, escrito e revisado por S / A Correio Braziliense, Impresso no Senado ção dos Geógrafos francês, No. 194-195, p. 90-100, maio-junho de 1948. Associates. Federal). 375 p. • Fevereiro de 1955: Donald Belcher oferece cinco áreas de - Francis Ruellan: “Trabalhos da Primeira Expedição Encarregada de Esco- 1 000 km2 cada: duas destas já haviam sido propostas por Fran- 5.2 - Textos sobre as missões geográficas de 1947 lher o local para a instalação da nova Capital Federal dos Estados Unidos do cis Ruellan, em 1947 (Sítio Castanho e Sítio Azul). Brasil”. Anais da primeira reunião panamericana do consulta sobre geografi a - Fábio de Macedo Soares Guimarães et al.: “Relatório preliminar da se- • Abril de 1955: Comissão José Pessoa escolhe o Sítio Castanho gunda expedição geográfi ca ao Planalto Central do Brasil”. 1947; datilogra- (12-24/09/1949), vol. II, p. 40-59, Rio de Janeiro, 1952. para ser o centro (Plano Piloto) de Brasília e delimite, para o fado. 76 p. 2 - Francis Ruellan: “A futura capital do Brasil que destrona Rio de Janeiro “. Distrito Federal, uma área de 5 800 km . - Fábio de Macedo Soares Guimarães: “O Planalto Central e o problema da Entrevista no jornal Ouest France. Fim de 1959 ou início de 1960. • Dezembro 1955: A Comissão José Pessoa se transforma na mudança da capital do Brasil. Revista Brasileira de Geografi a, Ano XI, N º 4, p. 3-69, outubro-dezembro de 1949. “Comissão de Planejamento da Construção e Transferência da - Francis Ruellan: Alguns textos de palestras 1948-1954 sobre o Planalto Capital”. Foi presidida por José Pessoa até maio de 1956 e, em - Fábio de Macedo Soares Guimarães: “Trabalhos de campo e de gabinete Central: geomorfologia, colonização... (ver fundo Ruellan da Universidade de seguida, por Ernesto Silva. da segunda expedição geográfi ca ao Planalto Central”. Revista Brasileira de Rennes II). • No início de 1956: Juscelino Kubitschek toma posse como Pre- Geografi a, Ano XI, N º 4, p. 145-149, outubro-dezembro de 1949. sidente da República. - Christovam Leite de Castro: “A Transferência da capital do País para o 194 Centro de Documentação e Disseminação de Informações David Wu Tai

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Assistente de pesquisa Marco Aurelio Martins Santos Pesquisa iconográfi ca e roteiro de imagens Marco Aurelio Martins Santos

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Gerência de Documentação Pesquisa e normalização bibliográfi ca Ana Raquel Gomes da Silva Bruno Klein Carlos Roberto de Alcantara Corrêa (estagiário) Catia Vasconcellos Marques Solange Oliveira Santos

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Gráfi caDigital Impressão EQUIPEQQUIPUIP TÉCNICA Ednalva Maria do Monte