Dominguinhos E a “Invenção” Do Nordeste Cosmopolita
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
Dominguinhos e a “invenção” do Nordeste cosmopolita Gustavo Alonso 1 Eduardo Visconti 2 TEORIA E CULTURA Resumo Através da biografia do acordeonista Dominguinhos, a partir do início dos anos 1970, há dados musicais e biográficos que sinalizam uma transformação estético-musical em sua trajetória. Esta seria levada a cabo por interesses musicais do acordeonista e pelo contato com os tropicalistas, sobretudo ao participar da gravação do disco “India” (1973), de Gal Costa, assim como de sua turnê. Tais mudanças apontam para outra representação da ideia de Nordeste que parece emergir em sua obra. Essa região deixa, ainda que parcialmente e com tensões, de ser um local mítico, rural e herdeiro de valores do catolicismo popular, consagrada na obra de Luiz Gonzaga, para tornar-se um Nordeste urbano e cosmopolita. Palavras-chave: Dominguinhos; acordeon; cosmopolitismo; urbano; Nordeste The accordion of Dominguinhos and an “invention” of the cosmopolitan Brazilian Northeast Abstract Through the biography of the accordionist Dominguinhos, from the beginning of the 1970s, there are musical and biographical data that signal an aesthetic transformation. This would be carried out by the musician himself nad the contact with the tropicalistas, mainly when participating in the disc and of the tour of the disc “India” (1973) of Gal Costa. Such socio-aesthetic-musical changes have connections with another representation of the idea of Northeast that seems to emerge in his work. This region leaves, even if partially and with tensions, to be a mythical, rural place and heir of values of the popular Catholicism, consecrated in the work of Luiz Gonzaga, to become an urban and cosmopolitan Northeast. Keywords: Dominguinhos; accordion; cosmopolitanism; urban; Northeast ¹ Doutor em História, professor do Departamento de Comunicação da UFPE/Caruaru. Professor do Programa de Pós- -graduação em Música da UFPE (PPGM-UFPE). ²Doutor em Música, professor do Departamento de Música da UFPE/Recife. Professor do PPGM-UFPE. 198 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) TEORIA E CULTURA TEORIA E CULTURA Em um dia de gravações de 1973, 1973, quando era sanfoneiro na turnê do LP Dominguinhos entrou no estúdio da RCA no Rio “Índia”, um dos mais emblemáticos da carreira de Janeiro com um acordeon diferente. Muitos da baiana7. Segundo Marcos Farias, amigo acharam esquisito o case do instrumento, que do sanfoneiro e filho da forrozeira Marinês, não era quadrado, como uma mala, mas tinha o Dominguinhos a comprou em Londres mesmo formato do instrumento, algo incomum depois de fazer alguns testes com as sanfonas na época3. oferecidas pelo lojista. Ele se encantou com as Tratava-se de um instrumento importado. possibilidades modernas que aquele instrumento Isso não era novo no meio dos acordeonistas, permitiria e sentiu que poderia vir a calhar acostumados a tocar com marcas italianas como nas futuras experimentações timbrísticas que Scadalli, Dallapé ou alemães como Hohner. vinha formulando. Grande parte dessa vontade O acordeon trazido do exterior era de marca de se reconstruir como artista vinha dos novos italiana, Giulietti, mas quase ninguém conhecia contatos, e o trabalho ao lado do novo disco de esta marca no Brasil. Durante muito tempo, foi Gal selava estes laços. uma das marcas preferidas pelo acordeonistas Em quase tudo que cercava os tropicalistas jazzistas americanos, e os EUA se tornou seu havia a modernidade contracultural, algo principal mercado no mundo4. No Brasil, desde tão diferente das origens de Dominguinhos, os anos 1940/50 o acordeon ficou relegado a natural de Garanhuns, interior de Pernambuco. gêneros rurais, seja forrós nordestinos, música Na capa do disco Índia, aparecia um close das caipira e sertaneja no Centro-Sul e vanerões partes íntimas de Gal, coberto por um pequeno e canções gaúchas no Sul do país5. Poucos tapa-sexo. No show India, Gal radicalizava sua sanfoneiros no Brasil tinham contato com o jazz postura rebelde e contestatória e sentava-se num americano. banquinho e tocava violão com as pernas bem Quando Dominguinhos tirou o acordeon abertas, de forma a afrontar a tradicional família Giulietti modelo Super Modell do case e começou brasileira moralista que apoiava a ditadura. Ela a tocar, nem todos perceberam de imediato o apresentava-se bronzeada, em trajes indianos significado daquela mudança na obra do artista e com um “esquálido bustier e saia tricotada a partir daí. Desde então, este se tornou seu como rede de pescador” (“Que pena”, Veja, principal instrumento e, a partir do fim dos anos 24/04/1974). Seu repertório, seguindo as matrizes 1970 apareceu constantemente nas capas de seus tropicalistas, misturava diversas influências e LPs6. Dominguinhos praticamente introduziu instrumentos, da sanfona de Dominguinhos à esta marca no Brasil, que hoje é talvez a preferida guitarra com distorção e bateria marcada pela de grande parte dos acordeonistas nacionais, ao matriz do rock, gênero criticado nos anos 1960 lado da tradicional Scandalli. como “imperialista” pela esquerda folclorista da Mas o que tinha aquele instrumento de época. Já incorporado nos anos 1970, o rock era diferente? antropofagizado pelos tropicalistas. No palco Dominguinhos trouxe a Giulietti da Europa, e no disco, Dominguinhos dividia espaço com onde estivera ao lado da cantora Gal Costa em instrumentistas modernos como Toninho Horta 3 Parte considerável deste relato foi feito por Marcos Farias, sanfoneiro, músico de estúdio, que trabalhava nos estúdios de gravação com vários forrozeiros, entre eles, Dominguinhos. Farias concedeu entrevista ao autor em setembro de 2018; 4 Para um debate sobre a importância do acordeon na música americana, ver JACOBSON, 2012. 5 Para um mapeamento da música interiorana no Brasil, ver cap. “A disputa pelo Brasil”, IN: ALONSO, 2015. 6 Em verdade houve um breve interregno nas capas com a sanfona Giulietti. A partir do disco de 1996 (“Pé de poeira”) até 2002 (“Chega de mansinho”), Dominguinhos passou a ostentar outras marcas. Segundo várias entrevistas feitas com amigos, parentes e sanfoneiros, em meados dos anos 90 Dominguinhos sentiu-se no direito de pedir vantagens à fábrica Giulietti e tornar-se o que se chama entre os músicos de “sponsor”, alguém que recebe benesses e produtos e divulga uma marca, papel que ele já vinha realizando na prática. No entanto, a fábrica Giulietti não se interessou e Dominguinhos passou a não ostentar o instrumento, embora o utilizasse sempre em seus shows. E retirou a marca da sanfona de seu instrumento e colocou seu próprio nome escrito. 7 Para a menção da viagem ao exterior, ver: Gal Costa entrevista Dominguinhos, Diário de Cuiabá, 22-05-2008: http:// www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=317509 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 199 na guitarra, Roberto Menescal ao violão, Wagner diferenciados para ambos os lados. Esta nova Tiso no órgão, dentre outros. O inventivo maestro leitura do Nordeste realizada por músicos nos Rogério Duprat cuidara de parte dos arranjos do anos 1970 nos permite repensar um tema batido, disco de Gal9. A geleia geral de gêneros nacionais mas que frequentemente é subestimado por parte articulados com estrangeiros parece assumir na considerável da bibliografia cultural nacional: por trajetória de Dominguinhos um outro sentido que o Nordeste urbano e cosmopolita é menos para a música regional, que utiliza as conquistas tematizado pela bibliografia? jazzísticas para revelar um regional mais urbano Resta então saber como chegamos até este TEORIA E CULTURA e menos folclorizado. cenário. Quem é este sanfoneiro interiorano O show teve grande repercussão naquele ano. que se interessou pela modernidade hippie e se Segundo a revista Veja, o público era composto encantou pela sonoridade e timbres jazzísticos? pelos “hippies de sempre”, jovens afinados à Quem são esses artistas tropicalistas, modernos modernidade musical dos anos 70, admiradores e vanguardistas, que paradoxalmente voltaram da transformação operada na MPB pelos a repensar o arcaico? Por que esta conjunção baianos em fins da década anterior10. A crítica foi possível só aí, na primeira metade dos anos comportamental e estética de Gal encontrava eco 1970 e não antes? Qual o significado de uma em seu público e amigos. A revista fez questão sanfona jazzística ser incorporada num meio de demarcar que Wally Saillormoon, poeta e avesso a inovações, como é o forró tradicional? amigo dos baianos, “compareceu à estreia do Quais os ganhos e disputas em cada uma dessas espetáculo (...) de brincos, boca pintada e vestido searas para que esta conjunção pudesse ocorrer? como odalisca”11. Índia tornou-se um marco da Este artigo visa responder parcialmente estas trajetória da cantora baiana, que havia se tornado questões. Parcialmente, pois são questão de a porta voz preferencial das canções dos exilados grande complexidade e também porque este Gilberto Gil e Caetano Veloso entre 1969 e 1972. artigo é fruto ainda inicial de uma pesquisa sobre Em 1973, Gil gravou “Eu só quero um xodó”, a trajetória do sanfoneiro Dominguinhos. de Dominguinhos (em parceria com Anastácia), um dos grandes sucessos comerciais daquele ano, * * * transformando o interiorano de Garanhuns no “sanfoneiro-pop”, como definiram vários meios Filho de família de 16 filhos,