ASECUNDA VOA DE ÁLVARO CUNHAL

Serão as comemorações do centenário do nascimento do dirigente comunista um novo PRJíC - Processo de 'R^eescrita' em Curso? O que pensam historiadores sobre o olhar atual com que se vè o legado, o que acham os críticos literários e de arte plástica sobre a obra artística e o que vale o pensamento teórico do líder. Págs. 8 a IS

ç<^> por João Céu e Silva OPIOFLDIA NA VI DA DE ÁLVARO CUNHAL As comemorações do centenário do ex-secretário-geral do PCP fazem o filme de uma vida em que a palavra mito é suficiente para o retratar. Apesar da multiplicidade de imagens, textos e livros sobre Àluaro Cunhal, a análise ao valor da sua arte plástica, o propósito da sua literatura e a dimensão do pensamento teórico escapam à profundidade certa para o fixar definitivamente na história do século XX por João Céu e Silva

ENTRE O EMARANHADO de gabinetes que existem nos vários andares da sede do Partido Comunista Português em Lisboa havia um que noutros tempos era muito reservado, o de Ál- (1) varo Cunhal . Situava-se no sexto andar do edifício da Rua Soeiro Pereira Gomes, quase num vão de escada, sem paredes, rodeado de es- tantes repletas de pastas, livros em russo, foto- grafias da filha e dos netos, um peluche e um pirilampo mágico, dois discos compactos de Chopin, e uma secretária muito arrumada e sem nada para prender o 01h0... É essa a memó- ria que tenho do vislumbre de poucos minutos permitido ao gabinete do então secretário-ge- ral do PCP em 1991, para efeito de uma repor- tagem sobre as sedes dos principais partidos. O "santuário", entretanto desmantelado, era onde o dirigente trabalhava. Inacessível a olhos extra-Partido e que só muito excecionalmente foi permitido observar e fotografar. Cunhal não estava presente. A palavra "santuário" era coisa que irritaria Cunhal decerto, como observei numa paragem de campanha eleitoral feita em Torre de Coe- lheiros, onde uma fotografia do próprio estava entre as garrafas de uma prateleira da tasca em que o dirigente comunista foi beber uma água a meio da corrida política. Não gostou do que viu e desviou o olhar. Homenagens destas não faltavam no profundo aonde ia em su- cessivas vagas de atividades políticas ou em ro- magem a "santos" da ideologia comunista, como a Baleizão de Catarina Eufemia, o Forte de Peniche de onde escapou à prisão de mais de uma década pelo , ou, entre uma lista de muitos exemplos, as cooperativas que teimavam em manter-se como herdeiras da re- forma agrária. bem vincado o seu perfil histórico. Com essa imagem bem clara de Álvaro Cu- - Não vejo intervenção do meu camarada nhal na tasca de Torre de Coelheiras, a virar os com essa preocupação. Mesmo ao escrever os olhos à sua mitificação em vida, vale a pena romances, ele dizia que não era escritor, que perguntar o que pensaria Cunhal desta galeria queria intervir na base das suas convicções, da de homenagens em curso a propósito do seu sua conceção do mundo e do homem, naquilo centenário de nascimento? Nada que o seu tes- que entendia que era melhor para o povo por- fúnebre não tamento confirme, ao pedir para tuguês, para o País e para o mundo. Mas não es- cremado cinzas ser e que as sejam espalhadas crevia ou desenhava a pensar nos galarins da na terra ou canteiros de flores do cemitério. Um história. aviso fica registado: "É também minha vonta- O ex-secretário-geral prefere retratar Cu- de, que peço ao meu Partido que respeite, que nhal com a ajuda de outro episódio: "O minis- no funeral não sejam pronunciados quaisquer tro do Trabalho, Costa Martins, pediu-me en- discursos." quanto seu secretário de Estado, para o repre- Não estando cá para evitar homenagens pós- sentar num Conselho de Ministros. Foi de re- tumas, o rio de memórias que desagua na pra- pente e nem tive tempo para me preparar além ça pública até amanhã, dia do centenário do dos minutos da viagem de carro até à reunião. nascimento, é ininterrupto. Além de vários li- O que estava em causa era a discussão da Lei vros e fotobiografias sobre o dirigente, mostras dos Partidos, onde Salgado Zenha avançou e debates, uma grande exposição organizada com um número bastante elevado de assinatu- várias matérias está pelo PCP, com inéditas, a ras para a constituição de um partido. O próprio País confirmar percorrer o e ao mesmo tempo a Mário Soares terá ficado espantado com aque- que a longa vida de Cunhal exige espaços gi- la proposta, enquanto Cunhal dizia que era um gantes para ser retratada em condições. número muito elevado e que havia até perigo A primeira pergunta que surge perante todo em entregar uma lista de nomes de membros este aparato é se se está a reescrever a história de um partido que tinha estado até há pouco na de Álvaro Cunhal? A refazer o percurso do ho- clandestinidade. Para se ver como era o cama- mem que se isolava no seu gabinete na Soeiro, rada, considerado tão formal e institucional, mas que também conversava ao balcão do bar mas que não deixava de ter o seu humor e uma existente no rés do chão da sede com os cama- maneira descontraída de intervir, ele disse ao radas que ali estivessem na mesma função. Um Zenha que era preciso baixar o número e que o momento de alguma quase religiosidade, sem- poderia fazer como na lota: com o chui que de- pre aproveitado para alguns mais afoitos mete- terminava os preços do peixe. Então, o Zenha de rem conversa a propósito algum assunto por começa a descer o número de militantes neces- ficavam discutir, enquanto outros com a sensa- sários. Baixou, baixou, até que o Cunhal diz de dia terem estado a centíme- ção ganho por 'chui!' E foi assim que ficou determinado o nú- do camarada. benefi- tros Até José Saramago se mero de inscrições. Soares, que assistia a tudo ciou de um desses momentos de balcão para divertido, riu-se e ficou satisfeito." ouvir de Cunhal sobre livros a opinião os que Se Carlos Carvalhas não quer tocar no assun- decidiu escrever após ter saído da direção do to da autorreescrita da história pessoal do ante- Diário de devido do 25 de No- Notícias, ao golpe cessor, pergunta-se qual terá sido no seu enten- vembro de 1975, por não encontrar emprego der o principal erro e acerto de Álvaro Cunhal partidário. a nível político. A segunda questão, a de ter reescrito a sua - Nunca pensei nisso. Creio que acertou no própria história ainda em vida, é assunto tabu essencial. Certamente também errou ou fa- para os seus sucessores no cargo de secretário- lhou mas não sei apontar um exemplo. -geral dos comunistas portugueses. Basta ques- Outra opção, a maior ilusão e desilusão de tionar o primeiro a ocupar esse lugar, Carlos Cunhal? A resposta também não surge: "Em-

<2> Carvalhas , para se sentir alguma desconfian- bora falasse muitas vezes com o Álvaro, em ça no tema. Quando se lhe o pergunta, Carlos reuniões periódicas semanais ou em muitas Carvalhas responde com outra questão, pois viagens juntos para comícios, essas questões nem entende a formulação. nunca foram abordadas. Falávamos de econo- - Tornar a escrever? Podia pensar-se que ele mia e finança e, também, de aspetos culturais. já tinha escrito uma história! Ele gostava de cinema, mas não tinha tempo A resposta era para ficar por aqui, mas insis- para ir, enquanto eu continuava a fazê-lo todas te-se que Cunhal teve preocupação em deixar as semanas. Por isso perguntava-me se eu tinha humanidade não passa pelo capitalismo mas visto este ou outro filme e o que achara." Como pelo socialismo. diz não se recordar de nenhum filme em parti- Quanto à reescrita da sua própria história, a cular sobre o qual tenham falado, prefere rema- resposta segue os passos da resposta de Carlos tar a conversa assim: "Álvaro Cunhal era um Carvalhas: "Ele nunca agiu por conta própria, é homem de grande confiança e não virado para um ator da história que não procurou reescre- a desilusão. Não era um homem que apareces- ver coisa nenhuma e a sua luta tem um fio con- desiludido de deixar abater. Nem de se ou se dutor, que está expresso no que escreveu e afir- grandes euforias." mou. Não reescreveu a história, antes pelo con- Tenta-se apontar a desilusão mais fácil, ter trário, muitas vezes repôs a verdade histórica assistido fim do ao império soviético, a que res- em algumas das suas obras. Não digam que Ál- ponde com a cassete: "A luta processa-se com varo Cunhal reescreveu a história." avanços, recuos e com situações mais ou Não será Carlos Carvalhas nem Jerónimo de menos positivas, que trazem Sousa que assumirão a intenção em Cunhal de tristezas. ele alegrias e Mas ti- ter reescrito a própria história em vida como o nha muita e isso vê- confiança biógrafo "oficial" de Cunhal, José Pacheco Pe- -se quando diz que nem o capi- <4> reira , dirá claramente. talismo resolve os problemas - Evidentemente que reescreveu a sua pró- da humanidade nem o socialis- pria história, aliás eliminando que na constru- mo deixa de ter validade. É uma ção da história oficial do PCP Cunhal tem um síntese dá uma ideia do que que papel importante. É uma história perfeita des- continuava a Dá uma pensar. tinada a engrandecer a instituição e tudo aqui- ideia." lo que de alguma maneira representa as contra- As mesmas feitas ao perguntas, dições, as fraquezas, as fragilidades e onde os er- atual secretário-geral do PCP, Jeró- ros são diminuídos. Todas as contro- (3) questões nimo de Sousa , não fogem à car- versas na história do PCP foram sempre meti- tilha de respostas próprias do que das debaixo do tapete, sei-o porque quando co- devem ser as dos líderes máximos do Partido mecei a escrever a biografia de Álvaro Cunhal O principal erro e acerto de Álvaro Cunhal? muitas das pessoas ou não me falavam ou não - Não consigo definir o chamado pior ou me faziam parte da história. Uns tinham desapare- lhor, até porque Álvaro Cunhal mesmo na con- cido ou eram tidos como traidores, outras de al- tradição, muitas vezes perante a derrota ou re- guma maneira tinham sido afastadas, sempre cuo, era um camarada que tirava ilações e ensi- de forma quase caluniosa, e Cunhal, na cons- namentos e nunca um homem amargurado trução desta história social, tem um grande pa- pela circunstância. Creio que aquela expressão pel. Uma das razões que mostram que o PCP que ele usava - "as vitórias não nos descansam tem muita dificuldade em lidar com a sua his- e as derrotas não nos desanimam" - marcava a tória vê-se no facto de uma parte dos seus ar- sua forma de olhar para os problemas e encon- quivos não estarem abertos ou com os seus di- trar o rumo em relação a cada momento con- rigentes reagirem muito epidermicamente creto. sempre que alguém contesta a sua versão da Quanto à ilusão e desilusão? história. Uma visão criada pela própria organi- - Não se trata de ilusão quando ele acreditou zação e um instrumento utilitário dela, basta no desenvolvimento do processo revolucioná- ver o caso do Pavel, que foi secretário-geral sem rio no valor das grandes conquistas e das trans- ter a função formalmente, mas dirigiu o parti- formações do 25 de Abril. Naturalmente, pode do durante vários anos, e era uma memória de ter sentido alguma desilusão em relação às der- que se sabia muito pouco, apesar de ainda estar rotas do socialismo, mas no aspeto dos aconte- vivo e ter vindo a Portugal. cimentos e não quanto ao ideal. A convicção que manteve até ao fim é a de que o futuro da Óleo de Álvaro Cunhal, com a particularidade de nas costas ter uma outra pintura

Ilustração de Cunhal para Esteiros de Soeiro Pereira Gomes Confrontado com a pergunta sobre se o 1. O HOMEM mito que a produção partidária promove neste PERFEITO anos de centenário um eclipse de outros histó- ricos do PCP em detrimento do destaque con- Entre as oficiais do centenário do homenagens cedido a Álvaro Cunhal, Manuel Rodrigues re- nascimento de Álvaro Cunhal está Fotobio- a cusa essa opinião. editada grafn pela Editorial Avante!, um espes- - Não tenho essa ideia de Álvaro Cunhal so volume de trezentas onde centenas páginas como um mito, antes uma figura ímpar nas de documentos relatam fotografias e o percur- suas características e com uma intervenção e so e o do comunista. O texto tempo dirigente uma mensagem muito atual. A palavra mito é suave com o alegado branqueamento da para tem uma carga sobrenatural e não o concebo vida interna do PCP, ausente de rostos incómo- desse modo. dos nas e focado no líder. Para Ma- (5> ilustrações Sobre o mito, o investigador Joaquim Vieira nuel Rodrigues, o responsável do coletivo tem outra opinião, refletida até na capa da sua elaborou a Fotobiografia, e que biografia ilustrada, que intitulouÁZuaro Cunhal um dos membros da hie- - O Homem e o Mito. À questão sobre se lhe foi l rarquia do PCP, não houve difícil fazer essa separação numa situação que em valorizar o intenção po- desde muito cedo se funde na vida do dirigen- lítico ou mitificá-10. É assim te, e nunca mais se separam, Joaquim Vieira facto de que responde ao se partilha de outra visão. considerar o retrato de Cunhal - Homem e mito fundem-se, como muitas feito no volume como o do "ho- vezes acontece com figuras públicas da dimen- mem perfeito". são que Cunhal atingiu. A opinião pública fica - Procurámos dar uma ima- a saber mais do mito do que da pessoa. No caso fiel e nas suas várias verten- gem do líder histórico do PCP, criou-se uma certa tes como homem inte- comunista, ideia de infalibilidade, cultivada sobretudo pelo lectual e artista, sem em esquecer partido e os seus militantes. Tentei por isso hu- nenhuma delas os de e fidelidade traços rigor manizar a figura de Cunhal, procurando referir do ele foi ao longo da vida. que também erros, falhas de avaliação ou aspetos da Quando se apontam casos revelar, é rápi- por sua vida pessoal que estavam longe da perfei- do a "há responder que sempre aprofundamen- ção idealizada por muitos. tos a fazer". Tal como a justificar as partes que tinha de " Segundo o autor, a opinião que já não no livro: tem os aparecem AFotobiografia Cunhal não se alterou com este trabalho de 3 3 0 momentos marcantes e com grande significa- páginas: "Aprofundei o conhecimento de algu- do na vida e luta de Álvaro Cunhal mas não os mas facetas da sua vida e do percurso político isso de meia dúzia de esgota, para precisaríamos que conhecia menos bem. Concluí também livros. Quanto às críticas à linha con- seguida, que era um institucionalista, mais do que um sidera "são leituras não que que correspondem revolucionário, pelo que muito dificilmente (e à fazemos", admitindo "um documen- que que apenas em circunstâncias muito favoráveis, to deste género é suscetível de opiniões dife- que nunca se reuniram) Cunhal seria capaz de rentes". conduzir uma revolução em Portugal." Quan- Para Manuel a tanto à ex- Rodrigues, receção to a revelações, o que mais o surpreendeu foi "a oficial do PCP como con- posição turbulência da sua vida sentimental, que sem- firma "Álvaro Cunhal continua a ser um que pre fez por ocultar, e agora consigo perceber homem vida, e luta marcam cuja pensamento porquê". o nosso e com projeção no futuro ser tempo por Ao longo desta biografia ilustrada são impres- uma nas várias áreas em personalidade própria sos vários exemplos dessa vida sentimental, teve intervenção e pelos distintivos que traços que confirmam o lado sedutor do dirigente co- fez. Daí atraia no que que esse legado a atenção munista durante toda a sua vida. É o caso dos de muitos sectores da sociedade, o reco- que bilhetes em que propõe a uma camarada parti- nhecem como e não só vi- importante, sejam lharem a mesma cama numa casa clandestina sitantes leitores comunistas e os interessados, do Partido durante a década de 40. Este lado de há elementos confirmam a Foto- pois que que Cunhal, que também tem eco em algumas dos é de vários biografia adquirida por pessoas qua- seus escritos literários sob o pseudónimo de drantes". Manuel Tiago, com descrições claramente au- tobiográficas, é situação que a Fotobiografia, nem a restante produção oficial, nunca alu- sinalo, de qualquer forma, uma coisa curiosa: dem, mesmo que se saiba que neste âmbito Cu- Soares sempre admitiu que Cunhal lhe deixou nhal tenha sido prolífico em paixões e paixone- uma marca profunda, e o mesmo nunca diria tas. Tanto durante os tempos de clandestinida- Cunhal de Soares. de antes da prisão; da relação com a mãe da sua Quanto à posteridade, Joaquim Vieira recu- filha poucos dias após a fuga do Forte de Peni- sa que após estas comemorações do centenário, che, bem como de uma relação no exílio em Pa- Cunhal entre no limbo do esquecimento públi- ris, sempre apagada da biografia. co: "Não creio. Cunhal deixou uma profunda Poucos meses antes de Joaquim Vieira ter impressão entre os portugueses, mesmo junto lançado este trabalho sobre Álvaro Cunhal, edi- daqueles que nunca foram comunistas. Essa tara uma biografia sobre o seu único rival polí- impressão manteve-se após a sua morte, inde- tico no pós-Revolução dos Cravos, Mário Soa- pendentemente de atos celebratórios, e vai res. Pergunta-se qual o protagonista que o continuar. Toda a gente, mesmo os seus adver- marcou mais. sários, reconhece nele um perfil especial, que - São duas figuras que não se podem compa- mais se agiganta quando se fazem comparações rar. Personalidades nada tinham em co- que com os políticos da atualidade. E há que reco- mum não ser o de derrubar o sala- (a objetivo nhecer que a crise que o País atravessa faz que cada uma exerceu a e marcou zarismo), política muitos olhos se virem para Cunhal como o ho- o seu de maneiras diferentes. Existe tempo mem que, afinal, talvez tivesse razão sobre mais em Soares, o desa- transparência pelo que muitas coisas. Não é que fosse forçosamente as- fio de na de Cunhal é penetrar opacidade capaz sim, mas essa ideia vai permanecer por muitos de se tornar mais estimulante. Mas isso não si- e bons anos, tantos quantos aqueles em que maior As- gnifica apreciação pela personagem. Portugal vai sofrer até sair do buraco." O PROCESSO DA MITIFICAÇÃO EM CURSO

PCP mostram da linha 2. O INTELECTUAL "que a oscilação políti- ca conforme as épocas", os textos de interven- (IN)COEFIENTE ção a partir do 25 de Abril, ensaios e artigos do período mais jovem, os dos anos 30: "Quando A exposição pública da vida de Álvaro Cunhal não era publicamente tido como artista fora de não ficou apenas nas mãos do PCP, até a Biblio- círculos reduzidos, como é o caso das conversas teca Nacional de Portugal decidiu montar uma com Mário Dionísio, e a ilustração esporádica grande mostra subordinada ao tema "A o pena, do livro Esteiros de Soeiro Pereira Gomes." Con- pincel, o punho", que conta com o selo do apoio sidera que "como a dimensão física da obra po- do "Governo de Portugal" entre os patrocina- lítica forma um todo, a exposição não poderia dores. A justificação para a realização desta ex- virar costas ao centenário". posição é simples para o comissário responsá- Também neste caso não existem revelações: <6) vel, Luís Costa Dias : "A obra e a trajetória de "O único material inédito seriam cartas e bilhe- Cunhal constituem um todo em conjunto tes existentes no espólio da Biblioteca Nacio- com as dimensões artística e literária. Sendo a nal, como troca de correspondência com escri- exposição essencialmente bibliográfica e sobre tores, como é o caso de Urbano Tavares Rodri- as dimensões literárias e artísticas vocacionadas gues, mas como são inócuas não têm interesse para a obra impressa, enquadra-se no perfil da para expor." Costa Dias aponta outro caso, o de Biblioteca Nacional." textos dos anos 40 escritos para a Biblioteca Segundo Luís Costa Dias, a mostra reúne Cosmos que, segundo lhe disse Álvaro Cunhal, parte do espólio da instituição, como textos e "eram sobre a História das Técnicas [tecnolo- desenhos editados, informes aos congressos do gias] e que o passar do tempo os deixou comple- uma posição literária e artística deste tipo. É tamente desatualizados". uma afirmação forte, a ser contextualizada, Quanto à opinião pessoal sobre o dirigente mas que foi feita". comunista, que conheceu por via do seu pai, Entre os estudos que o centenário permitiu Luís Costa Dias faz um retrato com críticas à pa- publicar está o Álvaro Cunhal- Política, História lavra coerência, sempre vigente em Álvaro Cu- e Estética, coordenado pelo ex-militante do nhal, mas no que respeita a conceções estéticas. PCP José Neves. Entre as razões que explica - Figura fundamental do século XX portu- para "participar dos esforços destinados a assi- guês, representa uma perspetiva para ideia e nalar a efeméride" com este volume que reúne prática de democracia coerente com as ideias vários ensaios está o facto de contrariar o silêncio que defendia. Como artista e ficdonista, tem querer por de várias considerar apetências artísticas e literárias excecionais, parte instituições e ser pos- sível acrescentar de novo. não podendo afirmar que alcance uma posição algo Segundo José retratos sobre Cunhal de grande relevo porque há autores com mais Neves, os traçados por ocasião do centenário são de "uma estátua perícia do ofício das letras e das artes, mesmo os devíamos que construa uma obra relevante e interessan- que contemplar, simplesmente inju- riando ou idolatrando a sua daí con- te. Quanto à coerência, diria que nem sempre figura", que sidere ser necessário elaborar discursos críticos. o foi do ponto de vista estético, já que foi capaz O seu texto inicia-se com a de escrever na polémica com o José Régio que próprio afirmação de Cunhal de ideia de his- mais vale um mau artista que saiba entender a que "partilhava uma tória em a do homem» era realidade do que um bom artista que lhe vire que figura «grande valorizada" é "à luz dessa costas. Esta afirmação é absolutamente radical pouco mas que mes- na maioria das Álvaro Cu- e tem muito pouco a ver com arte. Percebe-se ma figura que, vezes, nhal sido dado a ver". o que representa se se contextualizar a afirma- tem Uma situação que, vem dos finais da década de a ção porque nessa mesma época ele escrevia so- explica, já 1930, bre o papel do intelectual e da necessidade do partir da qual "Cunhal foi objeto de atenção e seu empenhamento mas, em rigor, fez uma cuidados sempre especiais" e em que a sua tremenda confusão entre artista e intelectual. "opinião não era simplesmente tida como uma É certo que vem a rever essa posição no livro A entre as outras". Arte, o Artista e a Sociedade, e acaba por admitir Neste volume há muitas outras opiniões so- que o gesto mecânico pode produzir arte inde- bre o conjunto de facetas do homem Cunhal. pendentemente da relação direta com a ativi- Como a de João Arsénio Nunes que refere que dade cívica de quem mexe o punho, o pincel e após "quase dez anos do seu desaparecimento, a pena. Só que como a Bíblia diz, o que está es- a imagem parece essencialmente marcada pelo crito está escrito. perfil ético"; a interpretação da questão agrária Será uma afirmação panfletária ou provoca- em Portugal por José Luís Garcia e Frederico tória? Segundo Luís Costa Dias, "não é apenas Ágoas; a ambição do ensaio O Partido compare- provocatória, principalmente quando se a colo- des de Vidro por André Barata; e um conjunto de ca no âmbito da polémica com Régio, até por- análises sobre a interpretação política da arte que escritores teóricos dessa época, como Má- por Maria-Benedita Basto, Miguel Cardoso e rio Dionísio que rejeitava tudo o que afirma- Manuel Deniz Silva. vam os homens da Presença, nunca tomou desenvolvida 3. da. Temos o grosso dessa prática O ARTISTA durante o tempo da prisão e antes tinha havi- DESCONTINUADO do desenhos muito bonitos e expressivos para a primeira edição de Esteiros de Soeiro Pereira O espaço dedicado no referido conjunto de en- Gomes. Ele faz principalmente desenhos, o saios dedicados ao Álvaro Cunhal artista de- quadro e o óleo são mais raros, sendo que este monstra como esse lado da sua personalidade levanta questões diferentes do desenho. Rela- se posiciona com grande determinação ao lado tivamente à posteridade, diga-se que sendo do agente político. Daí que valha a pena enten- uma prática que não teve desenlace e consu- der o verdadeiro valor de Cunhal enquanto ar- mação se pode perguntar o que é que está ali? tista e do desta no todo. O profundo peso parte cruzam-se m Naquela expressividade plástica conhecedor António Pedro Pita , do Centro de coisas muito interessantes, daí que se possa la- Estudos Interdisciplinares Século XX, começa mentar que não tivessem tido desenvolvi- por definir o quadro em que se deve analisar o mento, como uma expressividade de pintura político enquanto artista: "É importante subli- muito próxima da inspiração cinematográfica; nhar que a questão da arte para a geração a que o uso do branco e preto, das figurações ora mui- pertence Cunhal é de grande importância e to nítidas ora esfumadas. Essa experiência de não transitiva, ou seja, não é meramente ins- inspiração que vem do lado do cinema cruza-se trumental. A arte tem para aquela geração, e às ou conjuga-se com outras, certamente a dos vezes esquecemos que ele tem a mesma idade muralistas mexicanos em algumas representa- que Mário Dionísio, José João Cochofel ou Car- ções de corpos desproporcionados nas mãos e los de Oliveira, e que também mergulha no pés, que entroncou em algum neorrealismo mesmo caldo de cultura que vem do mestre de pictórico português. Existe um primado cons- todos - Bento de Jesus Caraça - e de uma gera- ciente da figuração realista sobre outro tipo de ção anterior. É gente que chega à maioridade opções possíveis do ponto de vista pictórico nos num período entre as duas guerras e que toma anos 40 e 50, num ou noutro aspeto por vezes consciência de si e do mundo como vivendo muito conjugada com conceções quase fantás- uma crise preanunciadora de uma viragem ci- ticas e muito próximas de uma espécie de ex- vilizacional. Sobretudo depois da experiência pressionismo que se encontra em desenhos so- da Revolução Russa e do crash financeiro de bre o Carnaval. Onde, quem se aproximou des- 1929, os anos 30 serão como o momento de ta questão, diz que poderá não ser alheio a uma transição do capitalismo para o socialismo, em certa receção compreensiva de Brueghel. O que que era preciso luta e organização." é interessante é reparar nesse voo em relação ao Para António Pedro Pita, a arte tem um papel irrealismo quase fantástico que às vezes roça o fundamental no cenário histórico em que vive sobrerrealismo. E, ao mesmo tempo, como Cunhal: "É um meio importantíssimo de apro- pano de fundo, fica muito nítido uma espécie ximar as pessoas. Há até uma expressão que cir- de laicização da transcendência, como no caso cula muito em Portugal nesses meados dos do quadro em que reproduz o pós-crucificação anos 30, muito utilizado por Tolstói nas refle- e que a evocação crística é a de um operário ro- xões sobre o que é a arte: a arte gera comunida- deado dos seus companheiros de trabalho. Do de e aproxima as pessoas e de uma maneira só- ponto de vista estético, o que me parece mais lida e cúmplice, mais do os princípios jurí- que importante é o não reconhecimento de uma dico-políticos." Ou seja, acrescenta, "para Cu- história autónoma das formas. A arte em Cu- nhal e os outros, a arte é primacial. Pinta desde nhal é, em última instância, o que se poderia sempre, tem polémicas de índole estética com chamar uma redução ao antropológico. A mão, José Régio - que necessita ainda de alguma para usar um ponto importante na polémica ponderação no futuro para se saber se tem mais com Mário Dionísio, isto é a consciência, a von- ou menos importância do que a que se lhe atri- tade, tem sempre o primado sobre o espírito e bui -, tem um grande envolvimento com a pode não ser premeditado. Até que o domínio arte, aproveita as viagens ao estrangeiro para é sempre da mão, da vontade e da consciência, conhecer todos os museus, convive com artis- mesmo nos casos em que depois se possa veri- tas e tem a sua própria prática das artes". ficar que há autores que exprimem plástica e li- Chegados aqui, é hora de questionar o estu- terariamente posições sociais que são antagóni- dioso sobre a representatividade da arte pinta- cas às que tem conscientemente. Em último da por Cunhal? estágio, o que é verdadeiramente decisivo é a - É preciso compreender que é descontinua- importância da dimensão consciente daquilo a que ele desde muito cedo chama vontade." fazer, seja desenhando, pintando, escrevendo ficção, relatórios, ou dirigindo uma organiza- 4.AINCpNFIDÊNCIA ção, para ele é um continuum. E houve sempre LITERÁRJA nos dirigentes comunistas uma certa vontade de atingir a totalidade através da arte, basta re- Quanto à literatura de Álvaro Cunhal ela é edi- cordar que Brejnev foi Prémio Lenine da Lite- tada durante muito tempo sob o pseudónimo ratura à conta de umas memórias que foram de Manuel Tiago e, mesmo dentro da Editorial consideradas na altura pelo Partido Comunis- Avante!, a maioria dos funcionários desconhe- ta Francês uma grande obra literária. Há no co- ciam a verdadeira identidade do autor, mistério munismo formado nos anos 30 uma visão glo- que só desvenda em 1994. Segundo o professor bal de tudo, a do homem novo na sua integra- <8) e crítico literário Miguel Real , a obra literária lidade e por isso a ficção ao abranger o aspeto de Manuel Tiago é a de "um bom escritor" e que criativo, não apenas a gestão de quotidiano, era deve ser "publicada mesmo fora do seu tem- fundamental para dar esta noção de totalida- po". Entre as razões que apresenta, está a de de". que "todos os seus textos literários, de grande Até que ponto é que Cunhal se desvenda por qualidade, obedecem a uma mensagem estéti- via dos livros? ca neorrealista, dotada de uma unidade de tem- - Cunhal mantém sempre uma posição de po e de espaço ao modo clássico, com persona- reserva pessoal e de não querer que houvesse gens desenhadas igualmente ao modo clássico, qualquer vislumbre do culto da personalidade, alimentados por um vocabulário coloquial refe- embora pense que essa atitude não pode ser rido ao quotidiano". aceite dessa forma simples porque quando va- Continua, sob o ponto de vista cultural. mos ler a autobiografia não admitida, chame- - Os seus romances e contos refletem as po- mos-lhe assim à ficção de Cunhal, em que pra- lémicas literárias das década de 40 e 50 (José ticamente todos os aspetos principais da sua desvio esteticista da revista Régio e Vértice) e, vida estão lá, já a maneira como se retrata a si na sublinham mais o linguagem neorrealista, próprio não é sequer um problema de culto de conteúdo do forma. Intentam evidenciar que a personalidade, está antes na criação de uma fi- os e as do mundo e a luta aleijões injustiças epo- gura que é perfeita num certo sentido. A ma- dos caminho da liberta- peica oprimidos no sua neira como se autorretrata na ficção em episó- entendida ao modo socialista e comunista. ção, dios que são da sua própria vida tem sempre A da década de literatura evoluiu partir 50, a um elemento de enorme perfeição e, sob esse formas estéticas para novas (Vergílio Ferreira, ponto de vista, Cunhal ajudou a criar o seu pró- neorrealismo Agustina Bessa-Luís), o próprio prio mito. Ele praticamente conta a vida toda, criou romances de nível de Oli- grande (Carlos o que desfaz a ideia de que Cunhal não reescre- Uma Abelha Fernando Namo- veira, na Chuva; veu a história e não fez uma autobiografia. Fá- O e o novos autores com ra, Trigo Joio), surgiram -lo de forma ficcional, onde tem uma grande li- uma visão mais esteticista na década de 60 (Jo- berdade em tratar as personagens que são ele sé Cardoso Urbano Tavares Pires, Rodrigues, próprio, como quando narra a sua estada em Es- Maria Velho da Maria de Carva- Costa, Judite panha, quando fala da sua prisão, da experiên- lho, Isabel da e Manuel deixou Nóbrega) Tiago cia clandestina ou das fugas. A personagem Cu- cristalizar a sua escrita estri- segundo categorias nhal, criada pelo autor Cunhal, é de facto de tamente clássicas. Quando a começou publicar uma enorme perfeição e desse ponto de vista Até Cinco (1975, Amanhã, Camaradas; Dias, há um certo tipo de vaidade. É uma autobiogra- Cinco a literária deixa- Noites, 1975) já evolução fia escrita da forma mais ambiciosa possível ra muito trás o neorrealismo clássico. para porque não fica preso pelos pormenores histó- Se literariamente Real a Miguel justifica ricos e pode contar acontecimentos que são de Álvaro Cunhal, José Pacheco Pe- criação para biográficos, reconstruir a sua própria persona- reira essa atividade do insere-se numa dirigente gem em cada livro. Em cada sua obra de ficção perspetiva de "um homem se formou nos que está Cunhal personagem, que é quase sempre anos é um intelectual - nunca deixou 30, que a pessoa mais modesta, corajosa e dedicada, a de ser um intelectual - e tem uma visão da que que melhor personifica o espírito do Parti- ação de um comunista como total. Desse pon- do. to de vista, tudo aquilo que entende que pode 5. O HOMEM de prisão e de tortura, transforma-a num ma- nual de comportamento - Sefores preso, cama- CONDICIONADO rada - que vai moldar o comportamento dos comunistas perante a polícia, mais sob o lado de Um aspeto sobre o qual se teima em passar ao moral comunista e de moral política do que lado na interpretação das múltiplas facetas de propriamente de psicologia, que era algo a que Álvaro Cunhal é o modo como a privação de li- não se dava importância na altura. Portanto, há berdade - por prisão, tortura, clandestinidade e uma intransigência em Álvaro Cunhal que é exílio - se reflete no condicionamento da ação necessária para quem vive em clandestinidade e do pensamento logo que aos 17 anos adere ao e precisa de ter armas contra a polícia e instru- PCP. Segundo a investigadora Irene Flunser Pi- mentos de defesa contra a o levará a (9> PIDE, que mentel , salvaguardando o facto de não ser uma intransigência muito grande relativamen- psicóloga, considera que não há dúvida sobre a te a outros militantes. influência das torturas a que foi sujeito na cons- Se esta privação de liberdade aguçará outros trução da sua personalidade: "Especialmente sentidos artísticos, segundo a historiadora tam- em 1935, que foram torturas sobretudo físicas, bém reforçou bastante o lado dogmático em até que a polícia se apercebeu que não poderia Cunhal, que poderá ter sido apurado por essa retirar nada da boca dele. Nas outras várias pri- razão. sões de 1939/1940, a polícia teve outra inter- - A sua convicção comunista, que é fortíssi- venção e, a partir de 1949, apostou sobretudo ma e que por vezes resvalava para o dogmatis- no isolamento. Que, aliás, o próprio Álvaro Cu- mo, pode advir de a pessoa ter vivido essas ex- nhal considera que é a pior das torturas. Ele periências e ser-lhe necessário agarrar-se de pôde comparar e saber o que mais tarde se vem uma forma forte a determinadas certezas. Ao a determinar, que a privação do movimento, de fim ao cabo, que idade é que ele tem quando contacto com outras pessoas e de dormida são chega à liberdade? Uma idade já muito avança- as torturas mais eficazes." da, em que é muito difícil fazer a reconversão O que não tiveram foi eficácia em Álvaro Cu- para uma situação de liberdade. Não é por aca- nhal, diz a historiadora: so que o PCP tem praticamente o código gené- - Resistiu sempre, o que mostra que teve de tico da clandestinidade, contrariamente a ou- se socorrer de uma vida interna muito forte. tros partidos comunistas, que não o espanhol, Houve tempos, um ano, em que não teve aces- porque viveu muito tempo desse modo. Ne- so sequer a leitura, seguido de outros dez em nhuma ditadura subsistiu tanto tempo como a isolamento. Essa situação irá ter consequên- portuguesa e a espanhola, sendo que a portu- cias, mesmo que após esse tempo privado de li- guesa durou muito mais tempo e a clandestini- berdade e sem contacto com outras pessoas, ele dade do PCP é anterior ao próprio salazarismo, fuja da cadeia em 1960 e torne-se secretário-ge- existe a partir da ditadura militar. É, certamen- ral do PCP, impondo uma nova linha política, te, um código genético fortíssimo. que é a que perdura até ao 25 de Abril. Há ou- tro lado que é importante, após a experiência

Exemplar original de Rumo à Vitória, autografado posteriormente por Cunhal Uma página de Cadernos da Prisão Cunhal enquanto corrécio

Qual a razão para se dedicar tão pouco espa- 6. DESILUSÃO DO ço à data? É que o resultado eleitoral do 25 de 25 DEABR.IL DE 1975 Abril de 1975 será trágico para as expectativas do PCP: 12,46% dos votos expressos. Mesmo Se o dia 25 de Abril de 1974 estará entre os mais que o jornal República dê como título à sua pri- felizes da vida de Álvaro Cunhal, o mesmo dia meira página a seguinte conclusão: "Insofismá- um ano depois poderá ser o seu mais infeliz. Na vel vitória do povo." Daquele povo que enche- Fotobiagrafia seria de esperar uma ampla repro- ra os comícios do PCP mas que entregará ao dução desse dia em que pela primeira vez o Par- PS 37,87% dos votos, aoPPD (PSD) 26,38%, ao tido Comunista Português vai a votos e em que CDS 7,61 e ao MDP 4,14% . É o momento em o povo português elege os seus representantes que Álvaro Cunhal falará da via revolucionária de da para a Assembleia Constituinte em liberdade, como fator conquistas em detrimento via eleitoral à mas não é isso que acontece neste álbum que nos meses que restam vanguarda po- voa rápido neste caso. Do imenso texto dedica- lítica de esquerda e de extrema-esquerda para do à biografia do dirigente comunista, aquele fazer avançar o processo revolucionário em até que refere o dia eleitoral contém apenas duas curso, ao golpe final nas suas pretensões frases, em que se escreve: "Eleições para a As- com o 25 de Novembro. sembleia Constituinte: o PCP obtém 711 935 Se as reações ao resultado eleitoral são as votos (12,46%) e elege 30 deputados." A nível mais diversas, o silêncio do PCP nas horas que de fotografias existe apenas uma, a que mostra se seguem é anormal e os contactos como os o momento em que Cunhal deposita o seu responsáveis do PCP são impossíveis. O Repú- voto na urna. Apesar do pouco destaque desse blica escreverá: "Apesar de nos termos desloca- dia na fotobiografia oficial, basta olhar para a do por três vezes à sede do PCP (ontem à noite imagem para se ver a importância do momen- e esta manhã), visitas precedidas de vários con- to, sendo difícil descortinar o próprio Álvaro tactos telefónicos, a partir das 17 horas de on- Cunhal no meio de tantos fotógrafos e jornalis- tem, não foi possível encontrar o secretário tas que captam o ato. Também a sua legenda é nem qualquer membro do Comité Central." As do PCP seriam 20% curta: "Álvaro Cunhal vota nas eleições para a expetativas superiores aos , Assembleia Constituinte." que, em conjunto com os esperados mais votos do MDP/CDE, dariam a esta frente de esquer- da um peso real na nova sociedade. sava em Portugal, tanto que a decisão de regres- Se há um dia mau na vida de Álvaro Cunhal, sar só foi tomada no dia 28 de abril. Conhecia- este poderá ser dos piores. Ou o pior, já que toda se a composição da Junta de Salvação Nacional a formação de um homem de várias facetas cul- que, à distância a que se estava, provocava vá- rias Conhecia-se o turais e políticas, o percurso de rebelião políti- interrogações. pensamento de sentimento de ale- ca constante contra o Estado Novo, a prisão su- Spínola... Mas o enorme à dúvidas cessiva, o exílio longo e a elaboração de uma gria chegada ultrapassa essas porque carreira política internacional é confrontada há uma grande manifestação do Partido, a pri- meira onde Álvaro com o sentido do voto de um povo que Cunhal pública permitida ao PCP, Cunhal lê discurso avião. quis sempre libertar da ditadura de Salazar e o que escrevera no Onde havia duas ideias Do- Caetano e lhe dá esta resposta. Nas horas que claras, segundo Abrantes. se seguem ao apuramento dos votos da primei- mingos - O derrubamento do de Caetano não ra eleição livre em Portugal, o silêncio de Álva- regime ro Cunhal é total, face à maior contrariedade significava o fim do fascismo, o que foi visível imediata dis- que acontece ao seu Partido. Nem a "repressão na conversa com Spínola, na qual fascista" terá feito tanta mossa ao PCP e ao seu se que não podia haver partidos nem a foice e o martelo. E o ao 1." de o momen- líder como esta eleição, que fixará eternamen- apelo Maio, to as vão havia te a fasquia de representação que poderá repre- em que massas intervir, porque sentar o PCP, e mesmo todos os acontecimen- um sentimento muito profundo de confiança Cunhal da tos que se sucederão a nível mundial não o fa- em no quadro intervenção popular. rão sofrer como este: a queda do Muro de Ber- Diga-se que a revolução portuguesa introduziu várias lim, o fim da União Soviética e a desagregação originalidades, tal como o papel partici- dos militares. Cunhal o le- generalizada da promessa do socialismo. pativo previra que vantamento nacional de fosse Apesar de sempre desmentida, a entrevista massas apoiado que concedera à jornalista italiana Oriana Falla- pelas forças militares, que as espingardas e os canhões se ao lado do ti- d, torna-se uma metáfora sobre o seu pensa- poriam povo porque mento sobre a realidade nacional. Segundo a nha a ideia que não era possível derrubar o fas- jornalista, Cunhal dirá sobre as eleições para a cismo sem a ajuda dos militares. Há historiado- Assembleia Constituinte: "As eleições para res que dizem que o Álvaro se enganou porque mim não têm qualquer importância, nenhuma a ordem foi inversa, um levantamento militar mesmo. Se pensa que a questão pode ser redu- a anteceder o das massas, mas não é verdade zida a percentagens de votos recebidos por um porque essa hipótese também está no seu tex- partido ou outro, está a enganar-se a si própria to. redondamente. Se pensa que o PS, com os seus Para Domingos Abrantes, uma das preocupa- 40% e o PPD com os seus 27%, compõem a ções que dominava Cunhal era a de conseguir maioria, está a cometer um erro. Eles não têm que a Revolução fosse tão profunda como a de a maioria. ( ) A Assembleia Constituinte certa- 1917, de forma a "não só liquidar o fascismo, a mente que não será um órgão legislativo e cer- censura, a PIDE, as prisões, como a base social tamente não será uma Câmara de deputados." que o apoiava". Outra das ideias originais que Esta entrevista à jornalista italiana ainda lhe atribui é a de "criar a Aliança Povo-MFA". <10) hoje irrita Domingos Abrantes , um dos mais Quanto ao PREC, Domingos Abrantes conside- antigos camaradas de Álvaro Cunhal. Nega que ra a posição do Grupo dos Nove um "recuo ao Fallaci tenha reproduzido de forma correta as processo revolucionário" e vê no embaixador palavras do secretário-geral e alega que ela norte-americano Carlucci "alguém que perce- truncou afirmações e publicou inverdades. Se beu muito bem que conseguiria fazer suceder sobre esse assunto, algumas imprecações justi- os seus intentos através de Mário Soares". ficam o fim do tema, no entanto no que respei- Quando se lhe repete a afirmação de que Cu- ta à memória de outros momentos sobre Álva- nhal era o outro lado de Salazar, Abrantes recu- ro Cunhal Domingos Abrantes tem a certeza de sa: "Isso é um insulto! Não basta as pessoas se- como eles aconteceram. É o caso do regresso a rem coerentes, austeras e terem empenho to- Portugal a seguir à Revolução dos Cravos, mo- tal, Salazar construiu uma imagem que era mento que partilhou com o dirigente por ter muito de mentira e basta ler o diário dele para vindo no mesmo avião que interrompia o exí- se ver a sua hipocrisia." lio de ambos em Paris. Quanto ao pior dia na vida de Álvaro Cunhal, - Havia sentimentos contraditórios porque o do resultado eleitoral para a Constituinte, Do- existiam muitas incertezas sobre o que se pas- mingos Abrantes recusa e diz: "O termo pior momento não se aplica a uma pessoa como Ál- tido de uma pessoa firme nos princípios, gos- varo Cunhal, que viveu momentos de grande tasse ou não. Todos sabiam o que ele pensava e dificuldade a par dos de grande exaltação, fugas, pagou um elevado custo pessoal pelas suas op- grandes acontecimentos nacionais e interna- ções". cionais." Quanto ao pior dia, também o atual secretá- Sobre o resultado eleitoral em si, refere. rio-geral do PCP discorda. Jerónimo de Sousa, - É evidente que qualquer comunista pensa- que conheceu a existência do seu antecessor va que os resultados seriam superiores, ainda desde antes do 25 de Abril devido à sua militân- que houvesse exemplos na história sobre o cia no movimento sindical, das campanhas de peso do passado, da Igreja e da estrutura social exigência de libertação de Álvaro da prisão, da e económica. Isso pode ter sido subestimado. leitura de O Avante!, a primeira vez que está Naturalmente, o resultado das eleições tiveram perto de Álvaro Cunhal é no estádio onde se um efeito de certo modo negativo, confirman- realiza o comício do I.° de Maio de 1974, onde do que não existia compatibilidade entre a di- se impressiona com a intervenção, "numa li- nâmica revolucionária e a eleitoral. Na altura, nha de rigor, de análise, de profundidade mas as sondagens era débeis e não antecipavam o simultaneamente de perspetiva e de confian- que víamos em comícios monstros - até hoje ça". fomos o único partido que fez um comício no Discorda de que exista uma mitificação à vol- Estádio das Antas e os resultados não tiveram ta de Álvaro Cunhal: "Acho errado chamar-lhe correspondência. O que se avançou nas con- mito, mas de facto há uma grande admiração quistas foi pela via revolucionária e, aliás, a não só por aquilo que fez, o que foi a sua vida, Constituição consagra esses valores. Não é por a sua luta, o seu pensamento, mas do homem acaso que certas forças políticas tentaram até à que tinha uma particular capacidade para ouvir última hora que ela não fosse promulgada, ten- os outros e esperar sempre pela contribuição, do-o sido devido a Costa Gomes e a uma parte por mais modesta que se possa pensar." do Movimento das Forças Armadas. A Consti- Ao questionar-se o resultado eleitoral de tuição correspondeu a uma correlação de forças 1975, Jerónimo de Sousa diz que "não tinha ex- que alguns setores achavam que se tinha alte- periência de resultados eleitorais". rado com as eleições e era um obstáculo aos - De qualquer forma houve fatores, particu- seus planos. Não é por acaso que ainda hoje a larmente subjetivos que ainda resultavam do Constituição está no centro do debate! Mas Cu- tempo do fascismo, particularmente do pre- nhal tinha por certeza que após a alteração da conceito anticomunista e do papel da hierar- correlação de forças era a Constituição o garan- quia da Igreja, que apontavam o comunismo te da Revolução. como papão e onde se usavam os argumentos Quanto ao ambiente de desilusão pós-eleito- e as imagens mais terroristas. Também dificul- ral, Abrantes não se recorda: "Passaram-se tan- tou objetivamente a ideia do socialismo ser de- tos anos que não me lembro. No dia a seguir es- fendido pelo PS e até pelo PPD desta. Parecia távamos noutra, sempre foi o nosso timbre. Até que toda a gente defendia muito o socialismo. porque nessa fase ainda não estava tudo deci- Mas não, não me senti angustiado pelos resul- dido. As eleições introduziram mudanças e na tados. Mesmo sendo um candidato a deputado própria Assembleia o PS e o PPD quiseram im- à Constituinte, não tinha definido uma fas- por um ritmo diferente. Tinham a consciência quia. Mas isso não condicionou a atividade do de que havia legitimidade eleitoral para come- partido porque na altura vivíamos num proces- çar a contrariar." Também garante que não foi so revolucionário onde a componente da luta o fim de uma utopia começada a viver no inte- de massas e a intervenção do partido demons- rior do avião que um ano antes trouxera deze- trou que era muito superior à taxa de influên- nas de comunistas de volta a Portugal: "Não, de cia eleitoral. Nesse sentido, medir o PCP apenas modo nenhum. Havia partidos, MFA e massas pelos seus resultados eleitorais é uma visão in- populares, e Álvaro Cunhal e o PCP sempre completa. Admito que esperávamos mais, aliás confiaram no processo em curso, tanto que ain- é um sentimento que passado quase 40 anos, da houve nacionalizações seis meses depois ainda digo, meio a serio meio a brincar, que se com Pinheiro de Azevedo e a descolonização. a simpatia e a influência se traduzissem em vo- Cunhal sempre teve uma ideia muito clara da tos, tínhamos quase uma maioria absoluta. Ad- correlação de forças, não era um aventureiro. mito também que o peso eleitoral não corres- Ele era e é para todos nós um inspirador no sen- ponde ao peso social e político do PCP. PRJVADO DE LIBERDADE, CkESCE O DOGMATISMO

lamento do PCP se continuasse com as forças 7. O ESTALINISTA mais progressistas dos militares. Ele anteviu o CONSTANTE perigo antes de toda a gente e não teve oposi- ção à sua opinião. O segredo de 1975 foi nego- Se Mário Soares tem o título de fundador "pai ciar, mesmo que tenha ficado muito compro- da democracia Álvaro Cunhal portuguesa", a metido no PREC, muito mais do que desejaria. esse estatuto é de conceder. A impossível razão, Quanto à "coerência" de atitudes que é atri- historiador Rui Ramos U) é fácil de para o , en- buída ao dirigente comunista, Rui Ramos diz contrar: "Reconhecer de Álvaro que o objetivo que "Álvaro Cunhal manteve sempre a mesma construir Cunhal não era um regime político atitude estalinista: tentar adaptar-se às cir- como o que temos hoje em Portugal não é uma cunstâncias, evitando a inflexibilidade da ex- mas analisar o seu acusação simplesmente que trema-esquerda. Não era por acaso que em era outro e ao da melhor projeto abrigo tradição França, Raymond Aron escreveu que era im- comunista. Não é fundador deste um pai regi- previsível acertar no que um líder comunista me em que vivemos atualmente porque não o iria dizer no dia seguinte. O inimigo de um dia queria, nem se sentiria realizado com ele." era o amigo na manhã seguinte e isso obrigava Para Rui Ramos, Álvaro Cunhal tinha outra à submissão total dos militantes, que defen- estrutura política para Portugal, daí que se te- diam a nova posição de forma a torná-la reali- nha aliado a vários sectores sociais e políticos dade aceite. O que acontecia com Estaline é o para os atingir. que se passa no PCP: a coerência é a incoerên- - Cunhal é um estalinista e os estalinistas ad- cia. Veja-se o caso de António Sérgio que um dia mitem a alteração das suas alianças em termos era um agente da CIA e no outro um progres- de tática, mesmo que se admita erradamente a sista, ou o que se passou com Humberto Delga- identificação estalinista com a ortodoxia. Bas- do". atender às atitudes da de Es- (U| ta política externa Para Francisco Louçã , a divergência entre taline, que fez alianças primeiro com Hitler e a teoria e a prática é uma situação que Álvaro depois com os aliados, que tinha inicialmente Cunhal acaba por tentar eliminar através do como inimigos os sociais-democratas e depois seu pensamento teórico: "O Partido com Pare- os fascistas. Álvaro Cunhal, em 1974, 1975 e des deViãro é publicado em 1985, antes da que- 1976 revela a mesma flexibilidade nas alianças da do Muro de Berlim, em 1989, e do fim da com Spínola, Vasco Gonçalves, aproxima-se do União Soviética, em 1991, um livro no qual Grupo dos Nove e depois de Eanes, afastando- existe uma tentativa de afirmar critérios de for- -se posteriormente de todos eles. No entanto, ma a mostrar um partido mais aberto, mesmo foi essa capacidade tática e o modo como agiu que com muitas regras. É um esforço grande de que evitou em 1975 a guerra civil em Portugal. reciclagem de imagem e ao mesmo tempo de Se fosse o lado romântico da extrema-esquer- doutrinação." da a vencer, a do tudo ou nada, hoje nada seria Para Louçã, "Cunhal foi o mais importante igual no País. Cunhal decidiu optar por defen- construtor da teoria da direção do PCP, preocu- der as posições conquistadas através de nego- pação compreensível por ter vivido no quadro ciações, tanto que se em novembro de 1975 não de uma luta que ele desenvolveu no contexto tivesse sustido os militantes do PCP tudo teria da Guerra Fria, vivendo entre Moscovo, Paris e sido diferente. Ele agiu da maneira mais segu- Praga, muito marcado por confrontos ideológi- ra e sem arriscar. Não é um apostador que colo- cos e grandes transformações". que as fichas todas no mesmo número e apos- - Ele viveu o conflito sino-soviético, viveu o te tudo de uma vez, arrisca pouco. Tende a fa- conflito da União Soviética com Tito, e tomou zer análises realistas das situações, não deixan- posição nessas questões, mesmo que fosse ao do jamais isolar o PCP. Isso ficou demonstrado nível teórico e de posição ideológica, o que mar- na reunião do Comité Central em Alhandra, ca imenso a historia do seu partido. Diga-se que há forte cunha- onde alertou em discurso para o perigo de iso- um contraste entre a tradição lista na forma de reflexão sobre Portugal e a re- muito porque era simultaneamente uma figu- volução portuguesa, a que dedicou vários livros ra mítica dentro do PCP e na política portugue- - o Rumo à Vitória, o texto mais clássico, e um sa. de 1976, A Revolução Portuguesa -, onde realiza Quanto à produção de pensamento teórico toda uma reflexão sobre a articulação de classes em Portugal, Louçã considera que foi dos que e o projeto do PCP, um tipo de reflexão que mais fez em Portugal no aspeto político: "É cer- quase desapareceu hoje no debate político, in- tamente uma das figuras destacadas, apesar de cluindo no próprio PCP. Digamos que na come- no PCP haver grandes vultos intelectuais, que moração do centenário do Cunhal não é esse o não tinham uma ambição estratégica mas fo- ponto forte, é mais a tradição antifascista, a ex- ram muito importantes: Bento de Jesus Cara- periência politica e a resistência do que a refle- ça, Maria Lamas, Lopes-Graça e outros que dei- xão sobre Portugal. xaram marcas fortíssimas em certas áreas espe- Francisco Louçã aponta razões para que este cíficas. Na política, por exemplo, Mário Soares debate teórico esteja hoje quase desaparecido, escreveu o Portugal Amordaçado, mas que é, apesar de ser um "aspeto importantíssimo no como a atividade do próprio, um livro de inter- trabalho de Cunhal". venção. últimos sido Francisco (a) - Ele foi durante a sua vida desafiado por Nos anos, tem Melo uma importante decisão do PCP, a de Francis- a organizar grande parte do espólio teórico de Álvaro co Martins Rodrigues nos anos 60 e por um pe- Cunhal para os vários volumes das Obras Escolhidas do do queno número de pessoas envolvidas. Ele era ex-secretário-geral PCP, editadas Avante!. uma espécie de delfim do Cunhal, uma pessoa pela Editorial Já vai no IV vo- muito considerada pelo comité central pela sua lume e ainda terá pela frente, segundo as suas participação ideológica, mas que se vai aproxi- contas, pelo menos quatro mais. Pelas suas mar das posições chinesas nos anos 60 e fazer mãos têm passado centenas de páginas manus- uma crítica ideológica muito forte a Cunhal. critas, apontamentos, cadernos da prisão e Este responde com vários livros, entre os quais obras teóricas, um trabalho que exige cotejar Ação Revolucionária, Capitulações e Aventura, de edições e emendas, sobre o qual diz. 1994, porque dá uma enorme importância a - À medida que vou avançando na publicação esse debate ideológico. O que prova que Cunhal das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, três as- ao voltar a este debate, mesmo que tantos anos petos sobressaem: por um lado, a sua capacida- depois do 25 de Abril, quando já o Francisco de de apreender rapidamente as alterações da Martins Rodrigues tinha um papel político pe- situação política nacional e internacional (mui- queno após se ter afastado da UDP e era um ge- tas vezes prevendo-as mesmo e vindo os acon- neral sem tropas, mantinha-se de uma enorme tecimentos a confirmar essas previsões) e en- importância para a marcação ideológica de Cu- contrar as respostas adequadas, quer no domí- nhal. Tal como volta, com muito cuidado, no nio teórico quer no das medidas organizativas referido Partido com Paredes de Vidro, a fixar - capacidade reveladora não só da sua superior uma versão sobre o episódio da saída do PCP da inteligência, mas também do seu profundo co- Internacional Comunista nos anos 30. Que es- nhecimento e maestria na utilização do mar- teve na base de uma acusação de que alguns di- xismo-leninismo como instrumento de análi- rigentes, entre os quais Pavel, tinham fugido da se da realidade na perspectiva da sua transfor- prisão demasiado facilmente e poderia haver mação; por outro lado, a coerência do seu pen- alguma ligação com a polícia. É uma acusação samento político e da sua atividade revolucio- que Cunhal diz que é totalmente falsa, mas o nária ao longo de uma história em profundas PCP foi expulso e não voltou a ser readmitido mudanças, mudanças que não abalaram antes porque em 1943 a Internacional é dissolvida consolidaram em todo o decurso da sua longa por Estaline, embora o PCP voltasse à órbitra da vida as convicções que Álvaro Cunhal cedo proximidade soviética. O que Cunhal escreve abraçou sobre o papel libertador da classe ope- no livro é "se perguntarem isso, é assim que se rária e dos trabalhadores a partir das próprias deve responder", porque do ponto de vista po- possibilidades inscritas nas contradições ine- rentes ao este é de re- lítico ele focou-se muito em grandes debates, capitalismo, que incapaz solver só importantíssimos na época, e mesmo depois, pela sua própria natureza, e que a de uma sociedade socialista abrirá o situação que não é propriamente o aspeto mais construção caminho da sua a realçado do Cunhal hoje porque é uma forma superação; finalmente, supe- rioridade da sua reflexão teórica e da sua esta- de reflexão estratégica que está quase ausente moral revelam do debate político português. Cunhal marcou tura que se claramente, por exemplo, nos confrontos polémicos com os sendo o projeto readaptado porque deixa de seus adversários e inimigos. contar com essa colaboração." Para Francisco Melo, além deste aspetos, há Para José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal outros que irão sendo cada vez mais evidentes tem uma dimensão no pensamento teórico com a continuação da publicação das Obras Es- que vai além do espaço nacional: "É mais do colhidas, designadamente "a capacidade teóri- que um teórico português, em particular no ca de Álvaro Cunhal a ser reconhecida a nível Rumo à Vitória, que é de facto o documen- nacional e internacional como um dos maiores to mais importante do ponto de vista polí- vultos do pensamento revolucionário marxis- tico do Cunhal e uma obra bastante sui ge- ta-leninista". Em anteriores declarações sobre neris na história do movimento comunista É de o trabalho de investigação para estes volumes, mundial. a defesa uma queda violenta no caso dos Cadernos da Prisão, Francisco Me- do regime do Salazar, em que Cunhal pre- lo explicara que este projecto de publicação vi- tende ser consequente e em que desenvol- nha ainda do tempo em que Cunhal era vivo,: ve uma teorização que não tem paralelo. "Começámos nessa altura e com o objectivo de Embora estas coisas sejam muito arqueoló- poderem vir a ser publicados. Depois, como a gicas, Cunhal tem um papel próprio neste âmbito." doença começou-se a agravar e começou a ter dificuldades de leitura e, entretanto, faleceu,

Documentos do Partido Comunista Português do tempo da clandestinidade, impressos em tamanho pequeno e papel fino para se poder esconder ih-shiaçõis aromo joao céu • »

posição e pelas ideias de Cunhal. Mesmo depois 8. A CELEBRAÇÃO de deixar de ser secretário-geral, dada a dimen- ROMÂNTICA são da sua ação e ao facto de ter sido um dirigen- te importante durante várias décadas; de algu- A 24 horas de perfazer um centenário sobre o ma maneira personificar o partido na clandes- nascimento de Álvaro Cunhal, vale a pena tinidade, e de funcionar sempre como uma re- questionar o estatuto de Álvaro Cunhal peran- ferência máxima, tudo isso faz com as pessoas te o partido que liderou durante décadas. Co- vissem Cunhal e por trás o PCP. Mas isso não si- nhecedor do homem e do mito, José Pacheco gnifica que, principalmente na altura em que se Pereira responde sobre se Cunhal ultrapassa e fazem estas comemorações, não seja em gran- condiciona o próprio PCP? de parte uma figura já mítica, que está além da - Num certo sentido sim, dependendo das própria ação concreta de Cunhal na direção do épocas. Ele é o dirigente mais importante do Partido Comunista. Aliás, esta mitificação de PCP na parte final da década de 40 e perde esse Cunhal é de facto já não apenas do domínio da estatuto durante o tempo em que está na pri- história mas também do domínio da propagan- são. Depois da fuga em 1960, então sim assume da, da ação politica e da agitação. em pleno o estatuto de liderança e fã-lo pratica- Quanto ao papel político internacional? mente até abandonar a direção. Desse ponto de - Depende das épocas. É preciso ter em con- vista, especialmente na fase desde 1960, o PCP ta que quando Cunhal vai para a União Sovié- e Álvaro Cunhal não seriam uma e a mesma tica em 1961, as suas ideias eram vistas com sus- coisa porque seria injusto em relação a muita peita na medida em que quando saiu da cadeia gente que ajudou também a fazer o partido, estava a combater ideias que eram muito pró- mas é um facto de que todas as questões funda- ximas das do Partido Comunista da União So- mentais são moldadas pela personalidade, pela viética. Do ponto de vista dos partidos comu- Cunhal é um mito com pés de barro? nistas europeus, o italiano, em particular o es- - É evidente que o Cunhal que o PCP está a panhol, e até do francês, era suspeito um ho- comemorar, e que muita gente à direita tam- mem aparecer a combater um desvio de direi- bém, é em grande parte uma personagem ta e a defender a necessidade de uma transição construída até com aspetos românticos: amigo violenta. Portanto, nessa fase, grande parte do da família, da filha, um homem de corpo intei- seu prestigio internacional devia-se às circuns- ro, um grande artista... É uma criação em gran- tâncias heróicas da fuga da cadeia. No ponto de de parte artificial porque o Cunhal verdadeiro vista do papel internacional de Cunhal, ele é re- não corresponde a este mito! É um mito ins- levante a partir de 1964/1965 e, como se viu trumental para o PCP, porque os partidos co- mais tarde na questão do eurocomunismo, em munistas precisam de personalidades que te- nham sentido nacional que é o seu critico mais ativo e o mais fiel de- e que ultrapassem a fensor do papel geopolítico da União Soviética. própria dimensão do comunismo. Cunhal tem basta Mais até que no socialismo real, porque Cunhal essas características, ver o seu funeral, é um crítico só do socialismo real, tendo mani- que é uma grande manifestação e que está além do PCP. festado insatisfação quanto ao modo como es- muito para Diga-se que nesta Álvaro sas sociedades funcionavam mas nunca pondo construção mitológica de Cunhal, a di- em causa, bem pelo contrário, o papel funda- mensão concreta e real do personagem perde- mental da existência de um campo socialista se, tal como o próprio sentido político da sua dirigido pela União Soviética. É por isso que ação. Agora, se se quiser fazer a história do sé- tendo simpatia por algumas ideias dos chineses culo XX português, Cunhal é uma figura fun- desenvolveram no início da década de 60, nun- damental. ca hesitou um segundo em apoiar os soviéticos.

Fotografia de Álvaro Cunhal ainda jovem (í) Álvaro Cunhal (1913-2005) Em 1931, com 17 anos, filia-se no PCP. Em 1934, é eleito representante dos estudantes no Senado da Universidade de Lisboa. Em

1935 torna-se secretário-geral da Federação das Juventudes Comunistas. Em 193 6, é cooptadopara o Comité Central do PCP. Na década de 1930 colabora com a Seara Nova e o O Diabo e nas publicações clandestinas do PCP. Em 1940, apresenta a tese de licenciatura em Direito sobre o aborto, tendo no júri MarceUo Caetano e sendo aprovado com 16 valores. Em 1960, participa da Juga de Peniche, tendo-se exilado em 1962 em Moscovo e depois Paris. É secretário-geral do PCP entre 1961 e 1992. O seu funeral contou com mais de 250 milpessoas. (2) Carlos Carvalhas (1941) Economista, adere ao PCP

em 1969, foi secretário de Estado do Trabalho nos I, 11, Hl, IV e V Governos Provisórios, deputado ao Parlamento Europeu. Sucede aÁlvaro Cunhal como secretário-geral. (3) Jerónimo de Sousa (1947) Operário metalúrgico desde os 14 anos, foi ativista sindical. Em 1974 adere ao PCP, pertencendo ao Comité Central apartir de 1979. Foi deputado à Assembleia Constituinte, várias vezes eleito para a Assembleia da República. É secretário-geral do PCP desde 2004. (4) José Pacheco Pereira (1949) Historiador, professor universitário, político e comentador. Foi fundador da

secção norte do PCP(m-l). É autor da maior biografia sobre Álvaro Cunhal e o PCP e de vasta bibliografia. (5) Joaquim Vieira (1951) Jornalista e ensaísta. (6) Luís Costa Dias - Comissário da Mostra sobre Cunhal na Biblioteca Nacional de Portugal (7) António Pedro Pita - Professor da Faculdade de Letras da Universidade de e investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX. (8) Miguel Real (1953) Ensaísta, escritor, professor de filosofia, mestre em Estudos Portugueses e crítico literário. Recebeu o Prémio Literário Fernando Namora.

(9) Irene FlunserPimentel (1950) Doutorada em História Institucional e Política do Século XX, investigadora do Instituto de História Contemporânea. Foi Prémio Pessoa e autora de vasta obra.

(10) Domingos Abrantes (193 6) Militante e dirigente do PCP, onde exerce altasfunções durante décadas após uma vida de clandestinidade.

(11) Rui Ramos (1962) Licenciado em Históriapela Universidade Nova de Lisboa e doutorado em Ciência Política pela Universidade de Oxford. Autor de vasta obra histórica.

(12) Francisco Louçã (1956) Economista, professor universitário, investigador e político. Adere à LCI em 1973 efoi coordenador do BE. Autor de vasta bibliografia. (13) Francisco Melo - Militante do PCP e editor das

Edições Avante!.