34º. Encontro Anual da ANPOCS

Caxambu/MG, 25 a 29 de outubro de 2010

Escritores e cientistas portugueses exilados no Brasil. Cosmopolitismo e identidade nacional (1945-1974)

Douglas Mansur da Silva (Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Viçosa)

Trabalho Apresentado no ST21 – Migrações em trânsito: produção, circulação e consumo em questão 1. Introdução

É recente a tendência teórica que tende a realizar análises que tenham em conta as contribuições de migrantes (e de exilados) para a construção de um espaço discursivo cosmopolita como uma perspectiva experiencial, que descreve um modo particular de se relacionar com o mundo que é complementado por – e também concorre com – outros modus vivendis. (SEN et all., 2008; WERBNER, 2008). Os estudos sobre o cosmopolitismo tendem a analisá-lo como um projeto implementado exclusivamente por agentes coletivos supranacionais, o que faz ressaltar o seu aspecto normativo. Neste sentido, o presente texto procura analisar as relações entre cosmopolitismo e identidade nacional na abordagem da temática do exílio presente nas trajetórias, obras e discursos de escritores (, e Vitor Ramos) e cientistas (António Aniceto Monteiro, António Brotas, Alfredo Pereira Gomes, José Morgado e Ruy Luis Gomes) portugueses radicados no Brasil entre 1945 e 1974.

A circulação internacional de cientistas e escritores portugueses, exilados durante a vigência do em , contou com o apoio de redes profissionais, de amizade, de parentesco ou de filiação ideológica no campo da oposição, mas foi também resultado de formas de expulsão do país de origem e de impedimentos à atuação, tanto em Portugal quanto no estrangeiro. Assim, em um primeiro momento, o foco do presente paper recai sobre as trajetórias pessoais e coletivas dos personagens e suas experiências, e como estas teriam relação com as fronteiras de pertencimento que estabeleceram ao longo da vida. Nesta perspectiva, procuramos refletir sobre as fronteiras como algo construído no tempo, em relação e a partir de classificações e categorias diferenciais atribuídas ou auto-atribuídas. As fronteiras da circulação também serão aqui pensadas em duas dimensões: 1) como demarcação de pertencimento (simbólico) e 2) como limite político (entrave à ação) que, no caso analisado manifestou-se concretamente em termos burocráticos.

No que concerne às fronteiras simbólicas, serão privilegiadas as categorias e formas de classificação relativas: 1) ao trabalho intelectual (tais como escritores, cientistas, matemáticos, movimento matemático, cientistas, intelectuais, estrangeirados); 1

2) à condição migrante (exilado, emigrante, imigrante, diáspora, colônia); 3) ao pertencimento nacional (português, brasileiro, exilado, estrangeiro).

2. Redes sociais e fronteiras da circulação de cientistas e escritores

2.1 Gênese do “movimento matemático”

Entre as décadas de 1930 e 1940 um pequeno mas eminente núcleo de matemáticos obteve sua formação no estrangeiro, no quadro das políticas de bolsas do Instituto para a Alta Cultura (IAC), órgão pertencente ao então Ministério da Educação Nacional, do Estado Novo. A exposição à ciência, tal como praticada naqueles países reforçou a percepção quanto ao atraso científico português tanto quanto que a ciência era uma “obra coletiva” e que dependia de infra-estrutura e investimentos. O caso do grupo “Bourbaki”, do qual participou o matemático António Monteiro, é exemplar, uma vez que as obras eram assinadas com o nome grupo e não os nomes pessoais de seus investigadores. O depoimento do físico Manuel Valadares também aponta nesta direção:

“Esta laboração colectiva da investigação científica constitui sem dúvida um dos factores primaciais do alto investimento que a investigação atingiu nos últimos anos (...) ao fazer-se a história da Física contemporânea há que atender, para ser justo, ao apreciar a obra de cada um, não só aquele que assinou mas ainda à obra de carácter colectivo em que tomou parte. A primeira é sempre a mais notória mas a segunda, por vezes, não é menos útil à humanidade” (Valadares, 1940)

Após o retorno, a atuação em Portugal foi marcada por conflitos, pelo que representavam de desafio aos cânones e à renovação do conhecimento científico. No plano ideológico, pela recusa da ideologia ruralista, anti-desenvolvimenta e cunho autoritário tradicional-conservador do Estado Novo. No âmbito acadêmico, o termo “estrangeirados”, atribuído por terceiros, é representativo das tensões vivenciadas por

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aqueles jovens pesquisadores (PEREZ, 1997). A percepção de que constituíam um grupo de “cientistas” à parte e com visões em comum, fez com que se empenhassem na iniciativa de formação do “Núcleo de Matemática, Física e Química” que, na prática, constituiu-se numa tentativa de organização de seminários. Contudo, apesar do Núcleo conseguir realizar algumas sessões, viu-se impedido de atuar, por conta de restrições burocráticas da própria academia.

Quadro 1: Principais membros do Núcleo de Matemática, Física e Química (bolsistas ou não)

Nome Bolsa/Instituição António Aniceto Monteiro (UL) (1907-1980) 1933-1936/Universidade de Paris Manuel Zaluar Nunes (UL) (1907-1967) 1934-1937/Universidade de Paris Manuel Valadares (UL-Fis) (1904-1982) 1929-1930/Instituto do Rádio de Genebra 1930-1933/estágio no Laboratório Curie (Paris) Aurélio Marques da Silva (UL-Fis) (1905-1965) 1935-1938/estágio no Laboratório Curie (Paris) Manuel Teles Antunes (UL-Fis) (1905-?) 1933-1935/ Inst. Nac. Fís. e Quim. (Madri) e Instituto de Física Teórica de Giessen (Alemanha) Pedro José da Cunha (UL) (1867-1945) Não António da Silveira (IST-Fis) (1904-1985) 1929-1932/estágio no Laboratório de Física do Colégio de França Ruy Luis Gomes (UP) (1905-1984) Não Bento de Jesus Caraça (ISCEF) (1901-1948) Não Aureliano de Mira Fernandes (ISCEF) (1884-1958) Não Caetano Beirão da Veiga (ISCEF) Não

Em contrapartida, tais impedimentos reforçaram o sentimento de coletividade, no que veio a ser a gênese do que veio a ser chamado, pelos seus próprios integrantes, de “movimento matemático”. Em um curto espaço de tempo, entre 1937 e 1940, levaram adiante iniciativas como a edição das revistas Portugaliae Mathematica (de cunho acadêmico) e Gazeta de Matemática (voltada para o ensino liceal), além da fundação da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM).

“Era uma obra coletiva. E o que havia de interessante nisso era que havia realmente, digamos, mal considerado, uma sociedade original, é que se tratava de um grupo coeso e que atuava conjuntamente, com objetivos bem definidos e pertinentes. Quero dizer que foi assim que se pôde fazer obra durável, que significa aqui, posso dizer, o conjunto destes três órgãos (...) por terem sido simultâneos e por terem sido complementares: a Gazeta de Matemática, a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Portugaliae Mathematica, que depois

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eu me propus, depois do 25 de Abril, a reconstituir, e tive inúmeras dificuldades para isto..., mas consegui”. (Depoimento de Alfredo Pereira Gomes)

Portugaliae Mathematica n.1 Gazeta de Matemática n.1

Outras iniciativas, sob a direção de Bento de Jesus Caraça, foram a edição da Biblioteca Cosmos, uma enciclopédia, e retomada do funcionamento da Universidade Popular Portuguesa que, em conjunto, cumpriram o papel de difusão do conhecimento científica à população em geral.

Quadro 2: Personagens que estiveram à frente das principais iniciativas do “movimento matemático”

Nome Participação/Iniciativas

António Aniceto Monteiro - Universidade de Seminário Matemático de Lisboa (Seminário de Lisboa (UL) Análise Geral)

Centro de Estudos de Matemática de Lisboa (CEML)

Portugaliae Mathematica

Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM)

Gazeta de Matemática

Junta de Investigação .Matemática (JIM)

Manuel Zaluar Nunes (UL) Seminário Matemático de Lisboa (Seminário de Análise Geral)

CEML

Portugaliae Mathematica

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Gazeta de Matemática

Pedro José da Cunha (UL) CEML

SPM

Ruy Luis Gomes – Universidade do (UP) Centro de Estudos de Matemática do Porto (CEMP)

Portugaliae Mathematica

JIM

Bento de Jesus Caraça – Instituto Superior de Centro de Estudos de Matemática Aplicada à Ciências Econômicas e Financeiras (ISCEF) Economia (CEMAE)

SPM (comissão pedagógica)

Gazeta de Matemática

Biblioteca Cosmos

Universidade Popular Portuguesa (de Lisboa)

Aureliano de Mira Fernandes (ISCEF) CEMAE

JIM

Caetano Beirão da Veiga (ISCEF) CEMAE

Hugo Ribeiro (UL) CEML

Portugaliae Mathematica

Gazeta de Matemática

José da Silva Paulo Portugaliae Mathematica

Gazeta de Matemática

Maria Pilar Ribeiro SPM

Augusto Sá da Costa (ISCEF) CEMAE

SPM

José Morgado (CEMP) Gazeta de Matemática

Alfredo Pereira Gomes (CEMP) Gazeta de Matemática

No início da década de 1940 foram estabelecidos como centros de pesquisa o CEML, o CEMAE e o CEMP, o que viabilizaria, de maneira continuada, a realização de estudos e a formação de investigadores. Contudo, a aproximação do “movimento matemático” com outros movimentos do campo da cultura (escritores, artistas, jornalistas, cientistas de outras áreas de conhecimento, entre outros) e da oposição 5

política, fez com que passassem a perceber sua atuação não apenas como “cientistas”, mas também “intelectuais”. O emprego da categoria é singular na obra do comunista Bento de Jesus Caraça (CARAÇA, 1970). Assim, aos sentidos do trabalho do cientista, de inovação e difusão do conhecimento, associava-se o civismo em torno da causa de “tirar Portugal do atraso”, o que pode ser percebido no emprego continuado de expressões como “tarefa”, “missão”, entre outras, para referi-se à atuação do cientista atento e atuante nas questões do seu tempo. Em contrapartida, a ofensiva do regime se deu, em 1943, por cortes no apoio financeiro aos Centros emergentes. Diante disto, o movimento precisou ser rearticulado, o que se deu através da criação da Junta de Investigação Matemática (JIM), iniciativa precursora em Portugal, por ter seu orçamento oriundo do capital privado. Por ocasião da formação da JIM, Antonio Monteiro destacou seus objetivos, em um programa de rádio, em termos como no trecho que destacamos abaixo:

“Os matemáticos portugueses conscientes das suas responsabilidades perante o País e perante a cultura, resolveram unir-se para a realização que o dever lhes impõe. Em 4 de outubro de 1943, um grupo de investigadores portugueses fundou a Junta de Investigação Matemática e definiu os seus objetivos nos seguintes termos: - 1º. promover o desenvolvimento da investigação matemática;

- 2º. realizar os trabalhos de investigação matemática necessários à economia do país; - 3º. sistematizar a inquirição dos matemáticos portugueses; - 4º. vincular o movimento matemático português com o de outros países e, em especial, com o dos países ibero-americanos; - 5º. despertar na juventude estudiosa portuguesa o entusiasmo pela investigação matemática e a fé na sua capacidade criadora”. (Gazeta de Matemática, n.20, agosto de 1944, p. 1, grifos meus)

Em outros momentos do seu discurso e em posicionamentos posteriores, empregou termos como “dever”, “responsabilidade”, “consciência”, “missão”, “tarefa”,

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para se referir ao compromisso ético-político do cientista, além de expressões como “atitude crítica”, para se referir a características do investigador. Por fim, está presente em sua fala, como em diversos textos dele e de outros membros do movimento, um enunciado civismo.

“Estão hoje reunidas nesta Junta de Investigação Matemática a quase totalidade dos investigadores portugueses que têm dado provas de sua capacidade (....). Trata-se, portanto, de uma organização que representa as forças vitais dessa cultura, o que revela uma consciência profunda da hora presente” (ibid:.1, grifos meus)

“Ser investigador é um dever de todo cidadão consciente das suas responsabilidades perante a sociedade, porque ser investigador é adoptar uma atitude crítica, perante a vida e o conhecimento, para chegar a novas conclusões” (Gazeta de Matemática, n.21, 1944, p.1, grifos meus).

Cientes de que o financiamento da JIM poderia não ser renovado, intensificaram- se os contatos e as redes de relações com outros cientistas de diversas partes, sobretudo dos Estados Unidos, França, Suiça, Espanha, Brasil e Argentina. António Monteiro acabou por ser o primeiro a vir para o Brasil, em 1945, mas os contatos para sua vinda iniciaram-se dois anos antes. Em 1947 uma leva de cientistas foi “afastada” – terminologia do regime para se referir às demissões – numa série de “expurgos” que visavam reprimir quadros e organizações da oposição. Muitos desses cientistas sequer haviam se manifestado como opositores, e é possível que as listas dos demitidos tenham partido de dentro da própria academia, incluindo desafetos pessoais (Depoimento de Alfredo Pereira Gomes). O “movimento matemático” viu a maioria dos seus membros partir para o estrangeiro. Dentre as poucas exceções estava Bento de Jesus Caraça, que veio a falecer no ano seguinte.

2.2 Escritores

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Diferentemente dos matemáticos, os escritores aqui abordados – Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena e Vitor Ramos -, não integraram um mesmo e singular coletivo, em Portugal, tal como o “movimento matemático”, mas participaram de diferentes iniciativas e mobilizações no campo da cultura e da política. A trajetória dos três se entrecruza no exílio, mais precisamente na atuação conjunta nos Institutos Isolados de Ensino Superior de São Paulo (mais tarde, Unesp), de Assis (Sena e Ramos) e Araraquara (Casais e Sena), e na oposição política ao regime, sobretudo nas páginas do periódico Portugal Democrático.

Adolfo Casais Monteiro pertenceu à geração seguinte à dos republicanos liberais e das direitas conservadoras ou radicais. Nasceu em 1908, às vésperas da implantação da República, da qual admirou sempre sua parcela de valores cívicos e democráticos. Empenhou-se, ao longo da vida, em animar e intervir na vida cultural portuguesa, e mais tarde na do Brasil, seja como poeta, ensaísta, crítico literário ou de arte e professor. Formado em Ciências Históricas e Filosóficas pela Universidade do Porto, participou, a partir de 1928, na mesma cidade, da direção da revista A Águia, ao lado de Leonardo , de quem foi discípulo, e Sant´Anna Dionísio. No mesmo ano iniciou sua colaboração na publicação de que seu nome se tornou inseparável, a revista Presença, que também editou suas primeiras obras de poesia: Confusão (1929), Poema do Tempo Incerto (1934) e Sempre e Sem Fim (1937). Nesta fase inicial também publicou Correspondência de Família (1933), em colaboração com o poeta brasileiro Ribeiro Couto, o que indica suas estreitas relações com escritores brasileiros já naquela altura. Em 1931 seu nome passou a figurar entre os diretores da Presença, ao lado de José Régio e João Gaspar Simões, em substituição a Branquinho da Fonseca. A tarefa principal que buscou levar adiante foi a de estabelecer para a revista um direcionamento crítico à sua proposta de intervenção que a transformaria de “órgão dum grupo de estudantes, em único órgão estável da vanguarda das artes e das letras portuguesas” (MONTEIRO, 1995:20). De fato, a revista alcançou reconhecimento, sobretudo como espaço privilegiado, por mais ou menos uma década, para a discussão de autores e obras, conferindo-lhes muito de suas interpretações e parte de suas legitimidades. Apesar de a publicação ter um ponto de vista relativamente consensual em torno da defesa da arte como forma de expressão sincera e individual do artista – o que a levou a ser acusada de

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defender a “arte pela arte” – Casais Monteiro ressaltou ao longo de sua vida, em vários escritos, a heterogeneidade no pensamento dos seus diretores e a “diversidade do espírito presencista”: a “unidade” estaria presente no “aspecto pedagógico que sempre teve pelo menos uma parte de sua actividade (...)” (ibid.: 21), mas sempre ao lado de uma perspectiva de abertura a autores e formas de expressão variadas, ao destacar que a revista compartilhava “uma primordial duplicidade entre uma unidade crítico-polêmico- pedagógica e o tácito reconhecimento da independência mútua fora desta acção” (ibid.: 24). Talvez pela liberdade que se dava de se expressar abertamente sobre temas culturais e políticos, e apesar de nunca ter exercido quaisquer cargos de direção em organismos políticos, Casais Monteiro foi afastado, desde os anos 1930, da atividade docente nos liceus. Em seguida, foi interditada a citação de seu nome e, por conseguinte, a publicação de quaisquer escritos seus, a não ser sob pseudônimos. Apesar disto, manteve sua contribuição em diversas publicações periódicas e a partir de 1933, sem abandonar a poesia, publicou livros de ensaio e crítica que o tornaram bastante conhecido no exterior, sobretudo no Brasil, aproximando-se da segunda geração de modernistas neste país. Jorge de Sena (1919) e Vitor Ramos (1920) pertencem a um período em que a Presença fora afastada do centro das preocupações literárias, com a emergência de novas orientações literárias, cujas poéticas, neo-realista ou surrealista, opunham-se ao esteticismo distanciado da realidade social ou da verdade do indivíduo irredutível a uma expressão subjetiva. Jorge de Sena consagrou-se, sobretudo, como poeta e Vitor Ramos como especialista em literatura francesa. Apesar de serem da mesma geração, suas trajetórias não se cruzam em Portugal. Por outro lado, a intensa participação de Sena e Casais em diversos periódicos literários e o interesse por temas da literatura e cultura portuguesa, fizeram com que se conhecessem e participassem de círculos próximos naquele país. Assim como a maioria dos membros do “movimento matemático”, foram todos contemporâneos do declínio da oposição republicana como alternativa à derrubada da ditadura e da reorganização do PCP, que se tornou a vertente política clandestina melhor articulada no campo da oposição. Sena manteve um contínuo posicionamento de combate a uma visão estreita de que a arte deveria estar a serviço de uma ideologia e, deste modo, polemizou com setores do comunismo e da oposição em geral, em Portugal e no exílio. A crítica a uma concepção instrumentalista, no seu caso, não significou afirmar que estivesse alheio às 9

questões éticas de pertencimento do poeta ao mundo, uma vez que a manifestação de preocupação político-social é recorrente em suas obras, ao lado da apropriação de técnicas surrealistas. Dialogou com o neo-realismo e o surrealismo, embora tenha preservado frente a ambas correntes uma relativa autonomia. Engenheiro de formação, exerceu a profissão em Portugal embora almejasse dedicar-se exclusivamente às letras. Por conta disto, encontrou dificuldades em viver da atividade literária. Somava-se a isto a situação política em Portugal, de restrição e censura. Embora seja reconhecido, sobretudo, como poeta, sua vasta obra é bastante diversificada, marcada pelo interesse nas criações espirituais e artísticas da humanidade. Seu primeiro livro de poesia, Perseguição, foi publicado em 1942. Antes de sua decisão de exilar-se no Brasil, tinha já editado obras em prosa e poesia, teatro, crítica, ensaios, além da tradução e do acompanhamento de perto dos temas correntes na cena literária portuguesa, sobre os quais escreveu em contribuições na imprensa periódica literária. Vitor Ramos formou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1950. Ao longo de anos trabalhou como jornalista, sobretudo como redator da agência France Presse. Nos anos 1940 entrou para o PCP e pertenceu ao MUD Juvenil (Arquivo PIDE/DGS, ficha de Vitor Ramos), onde exerceu intensa atividade no movimento estudantil, através de “reuniões, palestras, projeções de filmes e distribuição de manifestos” (ibid.). Em 1947 foi um dos signatários de um manifesto “contra a prisão de estudantes e recente expulsão das Universidades de diversos professores, entre eles vários matemáticos” (ibid.). Após formado, atuou como redator em língua estrangeira na França, mantendo o vínculo como correspondente internacional da agência France Presse, ao mesmo tempo em que deu continuidade aos seus estudos, na Sorbonne.

2.3 Redes, circulação internacional e inserção na sociedade brasileira

A presença de exilados da ditadura portuguesa que teve início em 1926 se deu já no ano seguinte, com a chegada do militar e escritor republicano João Sarmento Pimentel. Em um primeiro momento, no Rio de Janeiro, participou de iniciativas do Centro Republicano Dr. Afonso Costa, como a publicação do jornal Portugal Republicano. Entre 1930 e 1945, já em São Paulo, editou, como Ricardo Severo, a 10

Revista Portuguesa, que exerceu um importante papel de aproximação entre intelectuais, sobretudo escritores, portugueses e brasileiros, e no mútuo conhecimento do movimento literário modernista em ambos os países. As redes sociais entre escritores eram também dinamizadas por trocas de cartas, envio e divulgação de publicações, além de convites para palestras e participação em congressos. Além disto, a constituição e ampliação de Universidades, bem como a institucionalização de diferentes áreas de conhecimento no Brasil, tornaram possível a vinda de diversos escritores e cientistas estrangeiros, dentre os quais portugueses. Contudo, a inserção na sociedade brasileira e nos meios acadêmicos e literários também experimentou momentos em que as fronteiras e os entraves burocráticos e políticos se impuseram. Em 1954, a existência de Casais Monteiro em Portugal estava cada dia mais difícil do ponto de vista material. Convidado a participar da programação do IV Centenário de São Paulo, acabou por ficar no Brasil, numa articulação que envolveu diversos contatos, de brasileiros e portugueses (GALVÃO, 2002). O mesmo se deu com Jorge de Sena em 1959, por ocasião de um Colóquio organizado em Salvador (RIBEIRO, 2002). Vitor Ramos, por sua vez, contou com redes comunistas. Em Paris, durante a participação em um congresso da juventude comunista conheceu a brasileira Dulce, com quem mais tarde se casou. Chegou ao Brasil em 1953, mantendo-se como correspondente da France Presse até o início de sua atividade docente e conclusão do doutoramento, ambos no Brasil. Em 1964, Vitor Ramos, recém contratado pela USP, apoiou a vinda de outro amigo e companheiro de partido para a mesma Universidade, o historiador Joaquim Barradas de Carvalho, cuja trajetória também envolvia o circuito Lisboa-Paris-São Paulo. De fato, e diferentemente da maioria dos matemáticos, o exílio no Brasil representou para Casais, Sena e Ramos o início da atividade de docência e pesquisa em instituições universitárias.

Quadro 3: Circulação internacional e profissional de Casais Monteiro, Jorge de Sena e Vitor Ramos

Adolfo Casais ●●→ ●→ ●→ ●→ ●→ ● → ●→ ● Monteiro (1908-1972) Porto Coimbra Lisboa R. Janeiro Salvador Araraquara Califórnia S.Paulo Jorge de Sena (1919- ●●→ ●→ ● → ● 1978) Lisboa Assis Araraquara Califórnia Vitor Ramos (1920- ●● → ●● → ●→ ●→ ●→ ● 1974) Lisboa Paris Assis S.Paulo Califórnia S.Paulo ● Formação em Portugal ● Bolsista no exterior ● Atuação profissional ● Atuação profissional no Brasil

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Assim como com os escritores, os matemáticos puderam em alguma medida contar com uma rede de apoios para suas vindas e colocações profissionais. Contudo, a vinda de António Monteiro - primeiro membro do “movimento matemático” a chegar ao Brasil -, foi marcada por incertezas, desde antes de sua chegada. Apesar dos contatos antecipadamente firmados com matemáticos e físicos brasileiros e com Anísio Teixeira, entraves burocráticos adiaram a sua partida: “... depois de me mandarem preparar a viagem em 20 dias, deixaram-me 15 meses sem notícias e sem tomarem uma decisão” (trecho da carta a José Leite Lopes, de 22 de março de 1950 apud SILVA, 1997). Ao final, Monteiro partiu para o exílio em 1945 e lecionou por dois anos na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, tendo ali formado alunos que mais tarde se tornaram eminentes matemáticos e físicos brasileiros. Durante sua estada no Rio de Janeiro, morou em Santa Teresa, no antigo Grand Hotel Internacional, então recém-comprado pelo casal de artistas plásticos Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, mais conhecida como Vieira da Silva; ele judeu húngaro, ela, portuguesa. O casal transformou a residência em ateliê e em hospedagem para pintores e outros artistas plásticos, muitos deles estudantes. Contudo, o contrato de Aniceto Monteiro junto à Universidade do Brasil não foi renovado por pressões da Embaixada de Portugal junto à Reitoria. Em 1949 deixou o Brasil aceitando o convite inicial da Universidad de Cuyo, na Argentina. Apesar de sua curta estadia no Brasil, Monteiro irá se tornar o nó da rede que irá trazer os outros membros do “movimento matemático” ao Brasil, uma vez que seu aluno, Leopoldo Nachbin, foi um dos personagens centrais na vinda desses matemáticos a Pernambuco.

Foram as redes de relações acima mencionadas que possibilitaram a vinda do grupo de matemáticos que compuseram, cito “a melhor escola de matemática formada por portugueses”, que “não é a do Porto, nem a de Lisboa, nem a de Coimbra, mas sim a do Recife, aqui no Brasil, com Ruy Luís Gomes, Manuel Zaluar Nunes, Alfredo Pereira Gomes, José Morgado e António Brotas”, como escreveu Joaquim Barradas de Carvalho em um de seus artigos no Portugal Democrático (CARVALHO, 1974:16). De fato, a chegada de Alfredo Pereira Gomes e Manuel Zaluar Nunes, em 1952, possibilitou ao longo de duas décadas a realização e/ou continuação de projetos científicos iniciados em Portugal pelo “movimento matemático”. Assistente de Ruy Luiz Gomes na Universidade 12

do Porto, Alfredo Pereira Gomes coordenou por alguns anos a seção da Gazeta de Matemática intitulada “Movimento Matemático”, com notícias das atividades de seus membros. Desde o final dos anos 1940 era pesquisador do CNRS, em Paris, altura em que recebeu o convite de Luiz Freyre (primo do antropólogo Gilberto Freyre) - correspondente e colaborador em algumas das iniciativas do “Movimento Matemático” e então Diretor da Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife -, para contribuir na formação de uma faculdade de matemática em Pernambuco. O convite era extensivo a Manuel Zaluar Nunes, que também se encontrava em Paris – desde sua demissão do Instituto Superior Técnico, de Lisboa - e ali atuava como pesquisador do CNRS e diretor da Gazeta de Matemática. Em depoimento, Pereira Gomes afirmou que, em um primeiro momento, recusou o convite, pois não tinha quaisquer planos de vir a trabalhar no Brasil. Entretanto, cerca de um ano depois mudou de idéia, por estar insatisfeito com o Laboratório do qual fazia parte na França e por pareceres favoráveis de brasileiros, além do seu então cunhado, o escritor Adolfo Casais Monteiro (Alfredo era irmão do escritor neo-realista e comunista , e da escritora Alice Pereira Gomes, que foi casada com Casais até pouco antes da vinda do escritor ao Brasil). Assim, procurou de volta Luiz Freyre para saber se a proposta mantinha-se de pé. Atrasos na instauração do curso de matemática na Universidade do Recife possibilitaram sustentar a proposta (depoimento de Alfredo Pereira Gomes).

Nos anos seguintes vieram Ruy Luís Gomes, José Morgado e o físico António Brotas. Ruy Luís Gomes, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, demitido deste cargo por motivos políticos, foi candidato à Presidência da República nas eleições portuguesas de 1951 pela oposição articulada em torno do MND, mas viu-se forçado a deixar o país após sua terceira passagem pela prisão, em decorrência do apoio retirado em favor da autonomia de Goa, uma das então colônias portuguesas em 1954. Trajetória semelhante foi a de José Morgado. Um dos mais importantes dirigentes do MND, passou alguns anos na prisão até vir ao Recife em 1960. Ruy Luís Gomes chegou ao Brasil dois anos depois, após uma breve passagem pela Argentina, onde atuou a convite de António Monteiro, já na Universidad del Sur, em Baía Blanca. Por fim, António Brotas, último a chegar ao Recife, doutorou-se em Física Teórica pela Universidade de Paris como bolsista do CNRS após ter sido demitido do

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cargo de professor assistente no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. O convite partiu dos demais matemáticos já radicados no Recife. Assim, em um espaço de pouco mais de uma década (1952-1963) vieram os matemáticos portugueses e o físico que ajudaram a constituir a matemática e a física no Recife. A maioria aí permaneceu por muitos anos. Ruy Luís Gomes e José Morgado encerraram tal ciclo quando dos seus retornos a Portugal, em 1974, após o 25 de Abril.

Quadro 4: Circulação internacional e profissional dos matemáticos e físicos portugueses que atuaram no Brasil

António Aniceto ●→ ●→ ●→ ●→ ●→ ● → ● Monteiro (1907-1980) Lisboa Paris Lisboa R. Janeiro Cuyo B. Blanca Lisboa (33-36) (36-45) (45-49) (49-57) (57-75) (77-79) Manuel Zaluar Nunes ●→ ●→ ●→ ●→ ●→ ● (1906-1967) Lisboa Paris Lisboa Paris Recife Lisboa (34-37) (37-47) (47-52) (52-65) (65-67) Ruy Luis Gomes ●●→ ●→ ●→ ●→ ● (1905-1984) Coimbra Porto B.Blanca Recife Porto (28-33) (33-47) (58-62) (62-74) (74-81) Alfredo Pereira Gomes ●●→ ●→ ●→ ● → ● (1919-2006) Porto Paris Recife Nancy Lisboa (46-47) (47-53) (53-64) (62-72) (72-97) José Morgado (1921- ●→ ●→ ●→ ● 2003) Porto Lisboa Recife Porto (45-47) (60-74) (74-91) António Brotas (1930) ●→ ●→ ●→ ●→ ● Lisboa Paris Recife Argel Lisboa (?-63) (63-64) (64-67) (70...) ● Formação em Portugal ● Bolsista no exterior ● Atuação profissional ● Atuação profissional no Brasil

3. Exílio, cosmopolitismo e identidade nacional

3.1 “Exilados”, cosmopolitas

Nos depoimentos sobre suas trajetórias pessoais, identificações e pertencimentos, os escritores e cientistas aqui abordados tenderam para um discurso cosmopolita, com a recorrente afirmação de um humanismo, manifesto tanto em uma abertura ao mundo quanto pela solidariedade e identificação com questões comuns à condição humana.

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Contudo, com poucas exceções, tais laços com a humanidade não significaram a rejeição do pertencimento nacional ou a formas de nacionalismo, senão contra uma forma específica de nacionalismo e patriotismo hegemônicos. Também é importante apontar que tal perspectiva é experiencial, pois parte de suas histórias de vida, posicionamentos e trajetórias pessoais, bem como descreve um modo particular de se relacionar com o mundo que é complementado por – e concorre com – outros modus vivendis. A exposição a um ultra-nacionalismo de inspiração tradicional e conservadora contribuiu para uma demarcação/fronteira e para um estranhamento/recusa frente a este nacionalismo hegemônico. Neste sentido, foram recorrentes as afirmações de que o exílio iniciou-se, ao menos subjetivamente, ainda em Portugal. Frases como a de Jorge de Sena, “sempre fui um exilado, mesmo antes de sair de Portugal” (SENA, 1978), ou de Casais Monteiro, “em Portugal, nos tempos de Salazar, era impossível ser-se dignamente português” (MONTEIRO, op.cit.), expressam tais sentimentos de alienação frente à sua sociedade nacional de origem, como um estranhamento e uma recusa daquela forma específica de ser português, sem necessariamente significar a recusa do pertencimento nacional.

Tais impressões subjetivas foram reforçadas com a aproximação militante com o campo da oposição ao regime e com a ausência de perspectivas profissionais – tanto por não encontrarem liberdade de expressão, amparo institucional, de infra-estrutura ou políticas de investimento suficientes em educação, ciência e cultura, quanto pelas demissões/”afastamentos” dos quais foram alvo privilegiado. De fato, o diagnóstico de que em Portugal não encontrariam condições favoráveis não foi visto como um entrave definitivo, mas como um desafio a ser superado.

“Voltando ao País com esta convicção de que me deveria entregar à obra de criar, ou contribuir para criar um Centro de Investigação em Física, estava naturalmente indicado a fazê-lo na escola onde era assistente. Aqui não havia, de facto, material algum que servisse para trabalhar no domínio onde me especializara, nem quase havia lugar para trabalhar. Eu já vinha, aliás, preparado para me deparar com tal situação e não sofri por isso desânimo algum: era preciso começar fosse em que condições fosse: começou-se” (Carta de Valadares a Ruy Luis Gomes in VALADARES, op.cit.)

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Foram as sucessivas levas de “afastamentos” que os impulsionaram a buscar alternativas no estrangeiro. Manuel Valadares, doutorado em Física na Paris, chegou a trabalhar como taxista após ser demitido pelo regime, retomando, a seguir, sua carreira na França.

No Brasil, enfrentaram novas fronteiras e entraves burocráticos. De um lado, a presença corporativa do Estado Novo junto às associações de imigrantes fez com que não se identificassem com tais organizações e suas lideranças, nem com a maioria dos membros da “colônia”, preferindo a auto-atribuição como “exilados”, “emigrantes” ou “diáspora”, em contraposição aos demais “imigrantes”, de modo a destacar o caráter político do fluxo e do vínculo com o país de origem (SILVA, 2007). De outro, a demora nas contratações e as dificuldades em se instalar no país podem ser encontradas tanto no caso de António Monteiro, quanto na vigilância e suspeição de que foram alvo em diversas ocasiões. Neste sentido, o depoimento de Alfredo Pereira Gomes, ao se referir a uma situação que vivenciou por ocasião da vinda de José Morgado e Ruy Luís Gomes a Recife, a seu convite, é elucidativo:

“Fui chamado ao Consulado de Portugal e o Cônsul pretendia que eu assinasse o compromisso ´de que o Sr. Dr. José Morgado não viria fazer política no Recife’. Respondi-lhe prazenteiramente: ´Oh, Sr. Cônsul, eu nem a meu respeito assinaria um compromisso desses! Mas peço que me diga, sinceramente, se durante estes sete anos a minha actuação e a do Professor Zaluar Nunes melhoraram ou pioraram a imagem de Portugal no Brasil´. Ele acabou por concordar que era preferível arriscar...” (GOMES, 1997: 78)

Sena também trata da situação de exílio, quando de seu processo de obtenção de cidadania brasileira, concedida em 1963, e do sentimento de marginalidade tanto em Portugal como no Brasil, quando comenta que seu nome teria sido afastado de premiações como escritor brasileiro, em razão de ser estrangeiro (SENA, 1988, p.10 e 11).

“(...) No Brasil, porque continuei sempre a ser, o escritor português que não podia deixar de ser, sistematicamente se ignorou e ignora que eu seja um cidadão brasileiro. Se eu fosse estrangeiro de outra origem, talvez isto se não ignorasse

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tanto, mas sou português, qualidade mais do que suspeita para lá de almoços oficiais que sempre combati, de um lado e de outro do Atlântico” (Ibid, p.10).

Tal situação é reveladora de alguma das tensões que vivenciaram na sociedade brasileira, e de certo é também decorrente da secular relação entre os dois países, e do passado colonial. Acusações de postura “colonialista” estiveram presentes nas críticas de Sérgio Buarque de Holanda aos comentários do filólogo Manuel Rodrigues Lapa, sobre os estudantes universitários mineiros, onde lecionava (SILVA, 2007). Em algumas de suas cartas, Sena refere-se aos impedimentos que sofreu quanto à submissão e aprovação de seu doutorado, que lhe daria condições plenas de exercício da profissão no Brasil, e chega a acusar Afrânio Coutinho (SENA, 1991). A preocupação com o cuidado quanto à postura a adotar frente a certas situações, de modo a não assumir um tom colonizador, está presente no depoimento do escritor e artista plástico Fernando Lemos, amigo de Casais e Sena:

“... já tinha uma noção de que não devia manifestar-me de maneira nenhuma como um colonizador. Eu que várias vezes tive cargos de uma certa importância, fui diretor do Centro Cultural, e outros...outras secretarias de cultura onde eu trabalhei com gente e tudo, muitas vezes eu cheguei a pensar: ´É engraçado, Seu Fernando Lemos, cuidado! Porque essa coisa de você estar fazendo tudo e os outros não sabem fazer, estão te aproveitando. Você ensina, você tem uma experiência, tudo bem, mas você está sendo um colonizador!`. Então eu tive que tomar cuidado para que isso não se transformasse numa coisa, assim, de senhor e escravo, ‘Estou ensinando o escravo porque esses coitados não sabem fazer as coisas’. Muitas vezes eu quase que tinha razão, porque as pessoas estavam tão despreparadas para fazer as coisas que havia pequena experiência profissional e foi mão na roda prá eles! Ajudei gente a se formar, a se fazer coisa... Mas eu tive um pouco esse complexo. (Depoimento de Fernando Lemos)

Outro acontecimento exemplar se deu com Casais Monteiro, por conta da reação nacionalista que enfrentou de alguns críticos brasileiros, que “protestaram contra o fato de uma coleção antológica chamada Nossos Clássicos ter sido iniciada por um volume dedicado a ”. (MONTEIRO, 1961, p.139). Casais, que organizou tal volume, ficou indignado com as críticas, uma vez que considerava por “nossos” os clássicos da língua e da portuguesas, o que ultrapassava os limites nacionalistas de Brasil e Portugal (PERRONE-MOISÉS, 2003, p.57).

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O antinacionalismo no que se refere à arte e à literatura encontra-se manifesto nas obras de Casais e Sena, e nos estudos de crítica literária de Vitor Ramos. Para Sena e Casais, a universalidade da literatura e das artes é manifesta também pelo exílio interior, drama essencial do artista, condição para a seu incoformismo e criatividade. Para alguns analistas de Sena, os seus escritos sobre o exílio, sobretudo o livro Exorcismos, expressam sua identificação com uma pátria para além dos nacionalismos, a pátria da literatura (FAGUNDES, 1999; GÂNDARA, 1999; SANTOS, 1999). Em Casais, diversos textos falam do poeta que se vê como um exilado em seu próprio país e da atitude do escritor em se colocar como “estrangeiro”, título inclusive de sua última obra poética, O Estrangeiro Definitivo. Vitor Ramos, por sua vez, elegeu para seus estudos uma plêiade de autores e textos que, de alguma maneira, abordavam a temática do exílio, como contingência e como atitude do escritor e do artista perante a vida (OLIVEIRA, 2009). Quanto aos cientistas aqui abordados, a referência à universalidade da linguagem matemática é uma constante em seus depoimentos. Referem-se, sobretudo, às possibilidade de diálogo e troca de conhecimentos em uma linguagem que, a princípio, transcende particularidades nacionais e locais, o que teria facilitado sua circulação internacional, bem como a interlocução no exílio. Contudo, também é possível encontrar depoimentos, como o de António Brotas, que fazem menção às dificuldades encontradas na implantação de certas áreas de estudos da física e da matemática no Recife, o que, de certo, nos remete para as disputas de poder e legitimidade internos ao âmbito acadêmico local. Outras situações, práticas, que reforçavam o sentimento e a percepção do exílio e de que, portanto, se é estrangeiro em qualquer parte, foram as contínuas recusas de concessão de vistos para viagens ou, senão, “válidos apenas para Portugal”, o que acabaria por intimidar muitos a pediram a cidadania brasileira. Casais Monteiro chegou a ter vistos recusados até mesmo para entrar em Portugal (Portugal Democrático, nº. 48, 05/1961, p.8). Em outras situações, como de Manuel Zaluar Nunes e Alfredo Pereira Gomes, o retorno a Portugal exigia a redação de uma carta solicitando o indulto. O fato é que a situação de exílio não era cômoda, mesmo quando a inserção no país de recepção foi relativamente bem sucedida.

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3.2 Portugal: o lugar a não se perder de vista

Apesar dos personagens que temos abordados neste texto terem colaborado para um espaço discursivo cosmopolita, e de, em alguma medida, compartilharem da ideia de que são cidadãos do mundo, em nenhum momento perderam de vista o país de origem. No caso do Brasil, tal situação apresentou algumas peculiaridades. Ao lado das possíveis acusações de colonialismo e de manifestações de nacionalismo de que poderiam ser alvos, o estranhamento quanto à figura do cientista e do intelectual português eram constantes, face ao acionamento de estereótipos de “atraso” e “ignorância” relacionados à presença de Portugal no imaginário popular. Assim, ao comprometimento com a situação das ciências e da cultura, de modo geral, em Portugal, manifesto através de categorias relacionadas aos significados do trabalho intelectual – como “dever”, “tarefa”, “missão”, entre outras – a que já nos referimos, tais atribuições seriam agora entendidas como desterritorializadas. Assim é que podemos pensar que a intensa circulação internacional desses intelectuais não apenas representou um cosmopolitismo, mas esteve de alguma maneira também associado à afirmação do ser português no mundo, do pertencimento nacional associado a uma ideologia nacional alternativa (FOX, 1990).

No Brasil, a inserção em redes sociais para além daquelas do meio profissional, como a militância no campo da oposição - sobretudo a participação em iniciativas dinamizadas pelo jornal Portugal Democrático (editado a partir de São Paulo), como o Comitê dos Intelectuais e Artistas Portugueses Pró-Liberdade de Expressão, as celebrações do 5 de Outubro e a elaboração de dossiês anuais de denúncia da Guerra Colonial, apresentados à ONU (que tinha sempre como primeiro signatário o matemático Ruy Luis Gomes) – reforçaram tanto o vínculo com o país de origem quanto com a condição de “exilado”. Acusados de serem “antipatriotas” e “traidores” por imigrantes e associações apoiadores do regime, manifestavam-se, em contrapartida, como “patriotas”, embora defensores de “um outro patriotismo” (SILVA, 2007). Do mesmo modo, a reivindicação de autonomia intelectual e artística para além de nacionalismos, não significou estar alheio à pátria ou a recusa de uma identidade nacional.

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Página do Portugal Democrático com a íntegra do texto de apresentação do dossiê anual de denúncia da Guerra Colonial em África, dirigido à Assembléia geral da ONU (Portugal Democrático, 153, set/1968)

Na maioria dos casos aqui analisados, o exílio representou a continuidade de projetos pessoais e/ou coletivos, inviabilizados em Portugal, mas também da estreita relação entre atuação profissional e política e civismo. Assim temos, como exemplo, a manutenção da periodicidade da Portugaliae Mathematica e da Gazeta de Matemática, a partir do exílio, primeiro a partir da França e depois do Brasil (Manuel Zaluar Nunes esteve à frente de ambas até sua morte em 1967, tendo sido retomadas posteriormente após um interregno). A edição do Portugal Democrático por quase duas décadas (1956 a 1975) deu suporte e continuidade a uma militância no campo da oposição que, na maior parte dos casos, teve início antes da partida para o exílio. Jorge de Sena, Casais Monteiro,

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António Monteiro, entre outros, conseguiram, embora com entraves, levar adiante suas carreiras.

Assim, podemos identificar duas tendências aparentemente contraditórias, mas complementares: de um lado, uma perspectiva cosmopolita (não somos de um lugar específico, nosso lugar é o mundo, a matemática ou a literatura) e um nacionalismo, (apesar de diferenciados da ideologia nacional hegemônica, somos portugueses). Neste sentido, não se era tão somente escritor, cientista ou intelectual, mas escritor, matemático e intelectual português, na medida em que havia um comprometimento não apenas com a causa científica, da literatura ou das artes per se, mas também com o país ou, mais apropriadamente, com a cultura portuguesa. Tal difusão do que se pode chamar, em linhas gerais, de “cultura portuguesa”, não estaria restrito a uma atuação em Portugal, embora houvesse uma preocupação e um empenho na melhoria das condições e dos acessos ao conhecimento, de maneira ampla, naquele país. Com o fim da ditadura, a maioria dos intelectuais exilados que alcançou o 25 de Abril de 1974 tentou um retorno e uma recolocação em Portugal, mas alguns desistiram, não quiseram ou não insistiram em tal projeto. Ouvi de Alfredo Pereira Gomes, que retornou antes do 25 de Abril, a frase: “... uma vez exilado, para sempre exilado”. Havia um certo tom amargo em sua fala, ao ressaltar as dificuldades enfrentadas no retorno, e também um certo estranhamento do país, mesmo após a instauração de um regime democrático. Os escritos de Jorge de Sena, que tentou um retorno, mas decidiu por continuar nos Estados Unidos também são reveladores dessas tensões, e de um apontamento na direção de que não era necessário estar em Portugal para contribuir com a cultura portuguesa. Ser intelectual português, nesta concepção, compartilhada, significava levar ao mundo – e não apenas a Portugal – um modo peculiar de perceber o mundo e de produzir conhecimentos; representações estas, embora expressas em linguagens, senão universais, traduzíveis em diferentes contextos históricos e sociais. O uso continuado, no exílio, de termos como “tarefa”, “missão”, etc..., para se referir ao trabalho intelectual e a um comprometimento com o país e com a ciência, ressignificou a própria prática profissional. A despeito da circulação por diferentes países, essas fronteiras de pertencimento, concebidas como desterritorializadas, reforçaram-se.

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Outras fontes

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Arquivo

Biblioteca Museu República e Resistência: - pasta “Estado Novo Oposição no Estrangeiro”; - pasta “Estado Novo Oposição no Estrangeiro – Imprensa”; - pasta “Escritores e Exílio”.

Instituto de Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (Arquivo PIDE/DGS), Lisboa, Portugal. Registro: Victor de Almeida Ramos SC Bol – 7975; SC SR 833/47 2603.

Entrevistas

Fernando Lemos: 16 de junho de 1999, São Paulo/SP

Dulce Helena Pessoa Ramos: 14 de julho de 1999, São Paulo/SP

Alfredo Pereira Gomes: 15 de julho de 2005, Lisboa

Antonio Brotas: 22 de julho de 2005, Lisboa

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