Álvaro Cunhal

Álvaro Cunhal

ASECUNDA VOA DE ÁLVARO CUNHAL Serão as comemorações do centenário do nascimento do dirigente comunista um novo PRJíC - Processo de 'R^eescrita' em Curso? O que pensam historiadores sobre o olhar atual com que se vè o legado, o que acham os críticos literários e de arte plástica sobre a obra artística e o que vale o pensamento teórico do líder. Págs. 8 a IS ç<^> por João Céu e Silva OPIOFLDIA NA VI DA DE ÁLVARO CUNHAL As comemorações do centenário do ex-secretário-geral do PCP fazem o filme de uma vida em que a palavra mito é suficiente para o retratar. Apesar da multiplicidade de imagens, textos e livros sobre Àluaro Cunhal, a análise ao valor da sua arte plástica, o propósito da sua literatura e a dimensão do pensamento teórico escapam à profundidade certa para o fixar definitivamente na história do século XX por João Céu e Silva ENTRE O EMARANHADO de gabinetes que existem nos vários andares da sede do Partido Comunista Português em Lisboa havia um que noutros tempos era muito reservado, o de Ál- (1) varo Cunhal . Situava-se no sexto andar do edifício da Rua Soeiro Pereira Gomes, quase num vão de escada, sem paredes, rodeado de es- tantes repletas de pastas, livros em russo, foto- grafias da filha e dos netos, um peluche e um pirilampo mágico, dois discos compactos de Chopin, e uma secretária muito arrumada e sem nada para prender o 01h0... É essa a memó- ria que tenho do vislumbre de poucos minutos permitido ao gabinete do então secretário-ge- ral do PCP em 1991, para efeito de uma repor- tagem sobre as sedes dos principais partidos. O "santuário", entretanto desmantelado, era onde o dirigente trabalhava. Inacessível a olhos extra-Partido e que só muito excecionalmente foi permitido observar e fotografar. Cunhal não estava presente. A palavra "santuário" era coisa que irritaria Cunhal decerto, como observei numa paragem de campanha eleitoral feita em Torre de Coe- lheiros, onde uma fotografia do próprio estava entre as garrafas de uma prateleira da tasca em que o dirigente comunista foi beber uma água a meio da corrida política. Não gostou do que viu e desviou o olhar. Homenagens destas não faltavam no Portugal profundo aonde ia em su- cessivas vagas de atividades políticas ou em ro- magem a "santos" da ideologia comunista, como a Baleizão de Catarina Eufemia, o Forte de Peniche de onde escapou à prisão de mais de uma década pelo Estado Novo, ou, entre uma lista de muitos exemplos, as cooperativas que teimavam em manter-se como herdeiras da re- forma agrária. bem vincado o seu perfil histórico. Com essa imagem bem clara de Álvaro Cu- - Não vejo intervenção do meu camarada nhal na tasca de Torre de Coelheiras, a virar os com essa preocupação. Mesmo ao escrever os olhos à sua mitificação em vida, vale a pena romances, ele dizia que não era escritor, que perguntar o que pensaria Cunhal desta galeria queria intervir na base das suas convicções, da de homenagens em curso a propósito do seu sua conceção do mundo e do homem, naquilo centenário de nascimento? Nada que o seu tes- que entendia que era melhor para o povo por- fúnebre não tamento confirme, ao pedir para tuguês, para o País e para o mundo. Mas não es- cremado cinzas ser e que as sejam espalhadas crevia ou desenhava a pensar nos galarins da na terra ou canteiros de flores do cemitério. Um história. aviso fica registado: "É também minha vonta- O ex-secretário-geral prefere retratar Cu- de, que peço ao meu Partido que respeite, que nhal com a ajuda de outro episódio: "O minis- no funeral não sejam pronunciados quaisquer tro do Trabalho, Costa Martins, pediu-me en- discursos." quanto seu secretário de Estado, para o repre- Não estando cá para evitar homenagens pós- sentar num Conselho de Ministros. Foi de re- tumas, o rio de memórias que desagua na pra- pente e nem tive tempo para me preparar além ça pública até amanhã, dia do centenário do dos minutos da viagem de carro até à reunião. nascimento, é ininterrupto. Além de vários li- O que estava em causa era a discussão da Lei vros e fotobiografias sobre o dirigente, mostras dos Partidos, onde Salgado Zenha avançou e debates, uma grande exposição organizada com um número bastante elevado de assinatu- várias matérias está pelo PCP, com inéditas, a ras para a constituição de um partido. O próprio País confirmar percorrer o e ao mesmo tempo a Mário Soares terá ficado espantado com aque- que a longa vida de Cunhal exige espaços gi- la proposta, enquanto Cunhal dizia que era um gantes para ser retratada em condições. número muito elevado e que havia até perigo A primeira pergunta que surge perante todo em entregar uma lista de nomes de membros este aparato é se se está a reescrever a história de um partido que tinha estado até há pouco na de Álvaro Cunhal? A refazer o percurso do ho- clandestinidade. Para se ver como era o cama- mem que se isolava no seu gabinete na Soeiro, rada, considerado tão formal e institucional, mas que também conversava ao balcão do bar mas que não deixava de ter o seu humor e uma existente no rés do chão da sede com os cama- maneira descontraída de intervir, ele disse ao radas que ali estivessem na mesma função. Um Zenha que era preciso baixar o número e que o momento de alguma quase religiosidade, sem- poderia fazer como na lota: com o chui que de- pre aproveitado para alguns mais afoitos mete- terminava os preços do peixe. Então, o Zenha de rem conversa a propósito algum assunto por começa a descer o número de militantes neces- ficavam discutir, enquanto outros com a sensa- sários. Baixou, baixou, até que o Cunhal diz de dia terem estado a centíme- ção ganho por 'chui!' E foi assim que ficou determinado o nú- do camarada. benefi- tros Até José Saramago se mero de inscrições. Soares, que assistia a tudo ciou de um desses momentos de balcão para divertido, riu-se e ficou satisfeito." ouvir de Cunhal sobre livros a opinião os que Se Carlos Carvalhas não quer tocar no assun- decidiu escrever após ter saído da direção do to da autorreescrita da história pessoal do ante- Diário de devido do 25 de No- Notícias, ao golpe cessor, pergunta-se qual terá sido no seu enten- vembro de 1975, por não encontrar emprego der o principal erro e acerto de Álvaro Cunhal partidário. a nível político. A segunda questão, a de ter reescrito a sua - Nunca pensei nisso. Creio que acertou no própria história ainda em vida, é assunto tabu essencial. Certamente também errou ou fa- para os seus sucessores no cargo de secretário- lhou mas não sei apontar um exemplo. -geral dos comunistas portugueses. Basta ques- Outra opção, a maior ilusão e desilusão de tionar o primeiro a ocupar esse lugar, Carlos Cunhal? A resposta também não surge: "Em- <2> Carvalhas , para se sentir alguma desconfian- bora falasse muitas vezes com o Álvaro, em ça no tema. Quando se lhe o pergunta, Carlos reuniões periódicas semanais ou em muitas Carvalhas responde com outra questão, pois viagens juntos para comícios, essas questões nem entende a formulação. nunca foram abordadas. Falávamos de econo- - Tornar a escrever? Podia pensar-se que ele mia e finança e, também, de aspetos culturais. já tinha escrito uma história! Ele gostava de cinema, mas não tinha tempo A resposta era para ficar por aqui, mas insis- para ir, enquanto eu continuava a fazê-lo todas te-se que Cunhal teve preocupação em deixar as semanas. Por isso perguntava-me se eu tinha humanidade não passa pelo capitalismo mas visto este ou outro filme e o que achara." Como pelo socialismo. diz não se recordar de nenhum filme em parti- Quanto à reescrita da sua própria história, a cular sobre o qual tenham falado, prefere rema- resposta segue os passos da resposta de Carlos tar a conversa assim: "Álvaro Cunhal era um Carvalhas: "Ele nunca agiu por conta própria, é homem de grande confiança e não virado para um ator da história que não procurou reescre- a desilusão. Não era um homem que apareces- ver coisa nenhuma e a sua luta tem um fio con- desiludido de deixar abater. Nem de se ou se dutor, que está expresso no que escreveu e afir- grandes euforias." mou. Não reescreveu a história, antes pelo con- Tenta-se apontar a desilusão mais fácil, ter trário, muitas vezes repôs a verdade histórica assistido fim do ao império soviético, a que res- em algumas das suas obras. Não digam que Ál- ponde com a cassete: "A luta processa-se com varo Cunhal reescreveu a história." avanços, recuos e com situações mais ou Não será Carlos Carvalhas nem Jerónimo de menos positivas, que trazem Sousa que assumirão a intenção em Cunhal de tristezas. ele alegrias e Mas ti- ter reescrito a própria história em vida como o nha muita e isso vê- confiança biógrafo "oficial" de Cunhal, José Pacheco Pe- -se quando diz que nem o capi- <4> reira , dirá claramente. talismo resolve os problemas - Evidentemente que reescreveu a sua pró- da humanidade nem o socialis- pria história, aliás eliminando que na constru- mo deixa de ter validade. É uma ção da história oficial do PCP Cunhal tem um síntese dá uma ideia do que que papel importante. É uma história perfeita des- continuava a Dá uma pensar. tinada a engrandecer a instituição e tudo aqui- ideia." lo que de alguma maneira representa as contra- As mesmas feitas ao perguntas, dições, as fraquezas, as fragilidades e onde os er- atual secretário-geral do PCP, Jeró- ros são diminuídos.

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