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Edevaldo Candido de Morais

VIAGEM AO DESCONHECIDO: DESVENTURAS NA OBRA REUNIDA DE CAMPOS DE CARVALHO

PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS

Teoria Literária e Crítica da Cultura

São João del-Rei

Junho de 2015

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Edevaldo Candido de Morais

VIAGEM AO DESCONHECIDO: DESVENTURAS NA OBRA REUNIDA DE CAMPOS DE CARVALHO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação: Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del- Rei, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura

Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Orientadora: Professora Doutora Eliana da Conceição Tolentino

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO: MESTRADO EM LETRAS

Teoria Literária e Crítica da Cultura 2

Junho de 2015

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Programa de Mestrado em Letras

Dissertação intitulada Viagem ao desconhecido: desventuras na obra reunida de Campos de Carvalho, de autoria do mestrando Edevaldo Candido de Morais, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

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Professora Doutora Eliana da Conceição Tolentino – PROMEL/UFSJ – Orientadora

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Professor Doutor André Monteiro Guimarães Dias Pires – FACLET/UFJF

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Professora Doutora Melissa Gonçalves Böechat – FIH/UFVM

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Professor Doutor Anderson Bastos Martins

Coordenador do Programa de Mestrado em Letras da UFSJ

PROMEL/UFSJ

São João del-Rei, junho de 2015

Praça Dom Helvécio, 74 – Dom Bosco, São João del-Rei - MG, 36301-160 tel.: (32) 3379-2422

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A um fantasma que vi dia desses, a um sobrevivente que ouvi, ao Ivo que viu a Uva, a/o leitor/a interessado/a.

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Agradecimentos

Agradeço ao gênio de Campos de Carvalho que me inspirou com sua literatura em um intento acadêmico a seu respeito, contando-me por vezes histórias absurdas, mas que me soaram demais verdadeiras e dignas de relatar aqui.

À minha orientadora, Eliana, pela paciência com o desenvolvimento desse texto que qual o objeto que o prenuncia, se esbarra em labirintos quase intermináveis, desde a teoria ao romance carvalhiano em si - a mim também, quem sabe, tão confuso quanto. Agradeço a ela sobretudo pela carinho, amizade e atenção com que desempenha seu papel de orientadora comigo, desde sempre, ao que me parece.

Aos amigos, velhos, novos, de sempre, para sempre, agradeço-os pela paciência em ouvir minhas divagações a respeito do “perigoso” sujeito que li em Carvalho (e pela paciência com tudo o mais): Aline Drummond, Laís Maria, Ir, go, Luciano, Ana Paula, Gustavo, Ana Elisa, Débora, Jackeline, Carlinha.

Ao amor que me trouxe até esse mineiro escritor sobre o qual me debruçaria no mestrado, ao amor que me acompanha nesse trajeto, nessa dissertação que se segue.

Aos meus pais, Luiza e José, meus irmãos, Edemilson e Edinei, mais do que queridos, minha outra parte, pelo que investem em mim, desde sempre, não só financeiramente, mas antes por tentar sempre, e sempre, aprender e ensinar da mesma forma. Como me ensinaram muito, sobre questões nem sempre acadêmicas, a eles devo esse compromisso, inclusive contratual, de lhes retornar em ensinamento, em conhecimento, o que eu porventura experenciar, estudar, enfim, na minha trajetória misteriosa de vida.

À CAPES e à Universidade Federal de São João del-Rei, que sempre me acolheram nesse sonho e ambição de se aventurar pelas letras: bolsista desde o início de minha travessia acadêmica, ainda graduando, como bolsista de extensão, agradeço imensamente ao Mestrado em Letras da UFSJ (PROMEL) e ao CNPq, por acreditar no projeto que aqui se transfigura em texto (aparentemente) definitivo.

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“Ao vermes...”. Não, não partirei para o óbvio, apesar de querer algum efeito parecido. Quero agradecer, finalmente, à conjunção astrológica que contingentemente me pôs para escrever uma dissertação, e também por poder existir, de se pegar, e fazer parte disso, essa coisa louca, indecifrável, que se chama vida. Valeu!

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Resumo

Fantasma ou literatura menor: Campos de Carvalho e sua obra além do tempo

Ainda que pareça incongruente relacionar a literatura de Campos de Carvalho, a teorizações que viriam acontecer décadas depois acerca de autores e artistas europeus, como aquelas em torno de contemporaneidade, sobrevivência e literatura menor, há bastante similitude aí, entre diversos conflitos que se dizem contemporâneos e as personagens e os enredos algo fragmentários dos sujeitos que desfilam na escrita frenética de Carvalho. As diversas dissertações que se seguiram à publicação dos quatro livros do escritor mineiro em 1995 indiciam o curioso interesse exercido por esses livros que acontece só agora, e que não raro foram vistos como “malucos”, inacessíveis, incompreensíveis ou meramente reproduções à brasileira do surrealismo de época. Agora, seriam exemplares de um texto de marginalidade flagrante que denuncia diversos aparelhos ideológicos que se mantêm na sociedade, e que mantêm da mesma forma espaços de reclusão social e, claro, ideológica, com seus fantasmas por atormentar, pois que tudo sabem, e nos quais tudo coincide.

Atentarmos à obra de Carvalho, desta forma, não é apenas prestigiar algo que é tão importante quanto qualquer manifestação cultural e se retificar diante de uma obra que, por motivos diversos, acabou por se empoeirar em estantes de livros jamais lidos, amaldiçoados que foram. A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz SutilI (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro (1964) podem ser percebidos como retratos literários de um tempo de tensão e de revisionismos que ajudariam a elucidar muito do que se discute hoje em dia, acerca de novas subjetividades, novos espaços de cultura, novas emergências liminares. Mas não só, é claro.

Os personagens sem nome de Carvalho – que por vezes possuem diversos nomes e genealogias – são bastante similares aos sujeitos em crise de nosso tempo sem parâmetros – ou de revisão, fantasmas destes -, de modernidade líquida. Mas líquida não apenas em razão daquilo tudo que teria surgido de diferente e que não encontra tempo hábil para se solidificar: são também

9 sujeitos que atravessam o tempo em busca de uma gramática própria, que seja flexível aos seus devires e às suas próprias estórias, agora passíveis de serem narradas, ainda que esses o façam de maneira fluida e aparentemente desarranjada, e que esta seja incapaz de superar a experiência traumática de sua origem rasurada.

Palavras-chave: Campos de Carvalho, Literatura Menor, Sobrevivência, Contemporaneidade, Literatura Brasileira.

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Abstract

Journey into the unknown: misadventures in the Campos de Carvalho gathered works.

Although it seems incongruous to relate Campos de Carvalho literature to theorizations that would happen decades later about Europeans authors and artists, such as those around contemporary, survival and minor literature, there‟s enough similarity among those. The characters and the plots reveal something fragmented from the subjects that pass in the Carvalho‟s frantic writing. The many essays that followed the publication of four books of the mineiro writer in 1995, indicates its curious interest exercised by these books that comes to happen only now, and that often were viewed as "crazy", inaccessible, incomprehensible or merely reproductions of a brazilian surrealism. Now would be copies of pulp words exposing ideological systems that remain in society and which maintains the same way spaces of social commitment and of course, ideological, with its ghosts haunting it because is all they know, and which all coincide.

Seeing the work of Carvalho, in that way, it‟s not only a way to honor something that is as important as any cultural event and testify that. For so many reasons, these books ended up in dust as never read books. They were cursed. A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) and O Púcaro Búlgaro (1964) can be seen as literary portraits of a time of tension and revisionisms that would help clarify a lot of what‟s discussed today, about new subjectivities, new spaces for culture, new emergencies injunctions. Not only that.

The nameless characters of Carvalho, which sometimes have different names and genealogies, are very similar to the people in crisis of our fickle time of liquid modernity. But liquid not just because of what would have emerged from different and which has no time to solidify: they‟re also subjects who cross time

11 in search of its own grammar, that must be flexible to their becomings and their own stories, now that is possible to tell them, although these do so flowing and seemingly unsettled way, and that it is unable to overcome the traumatic experience of her scrabble origin.

Keywords: Campos de Carvalho, Minor Literature, Survival, Contemporaneity, Brazilian Literature.

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Sumário

1. Iniciais Considerações...... 16

2. Aparição...... 25

3. CAPÍTULO I: O espírito à espreita...... 27

1.1 O fantasma das ditaduras: a ditadura civil-militar do Brasil e da Moral...... 41

1.2 Perseguidos, loucos e renegados: apresentando Campos de Carvalho...... 44

4. CAPÍTULO II: A literatura de Campos de Carvalho e a literatura maior...... 58

5. CAPÍTULO III: Quatro livros em um: a assombrada obra completa de Campos de Carvalho...... 79

3.1 A lua que vem da Ásia...... 90

3.2 A vaca que tem nariz sutil...... 109

3.3 A chuva que é imóvel...... 126

3.4 O púlgaro que é búlgaro...... 136

6. Finais Considerações...... 151

7. Referências Bibliográficas...... 154

8. Anexos...... 156

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A liberdade é traiçoeira que nem amor de menina se amoita em cada amoita se esquiva em cada esquina.

(Sobre a Liberdade – Vicente Barreto e Tom Zé)

I„ve seen God in the Sun I‟ve seen God in the street God before bed and the promise of sleep God in the puddles And the lane beside houses I‟ve seen God Shinning out from her reflection...1

(The Ghost of Rockschool – Belle and Sebastian)

1 O Fantasma da Escola do Rock - Eu vi Deus no Sol/ Eu vi Deus na rua/ Deus antes de deitar e a promessa de sono tranquilo/ Deus no lamaçal/ E nos becos ao lado das casas/ Eu vi Deus brilhando no reflexo dela. Tradução livre, adaptada, minha. 16

Iniciais considerações

Quem é Campos de Carvalho?

Bem, um escritor mineiro que fez pouca fama em meados do século passado na cena cultural metropolitana tupiniquim. O relançamento de sua obra completa em 1995 pela editora José Olympio trouxe de volta às discussões da academia aquele sujeito esquivo, irônico, debochado e polêmico, de literatura maldita e biografia desconhecida, que foi Carvalho em vida e obra.

A respeito do polêmico que o caracteriza, sua literatura causa estranheza logo no primeiro contato, seja pelos títulos insólitos que deu a seus quatro romances, seja pela narrativa nada convencional e de atualidade cruel que merece leitura cuidadosa e contemporânea. São eles: A Lua vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro (1964).

Falar de Campos de Carvalho, porém, não é remeter meramente a algum verbete literário sobre os quês e porquês de seus escritos, sua “escola literária”, suas filiações e genealogias. Muito menos exigi-los, pelas sombras relegadas por longo tempo aos seus escritos.

Pelo contrário, seus romances fogem propositalmente do lugar comum ou do cômodo lugar da tradição: romper e desconstruir o tempo todo parece ser o mote da linguagem e das estruturas materiais e imateriais de seus textos. Ainda que a literatura seja por natureza um espaço de transcendência para o real, na obra carvalhiana tal estratégia é posta em xeque constantemente no jogo entre ficcionalidade e realidade empírica que contrasta com texto literário. E que é levada muitas vezes ao extremo da retórica e da libertação dos sujeitos na relação corpo/ linguagem (material) e alma (imaterial). Para Roberto Navarro, acerca de Carvalho e sua obra, pode se encontrar um “descompromisso com o realismo”, não por capricho, ou „não para “desrespeitar a verossimilhança realista‟, mas para com ela rompe” (2008, p.6). Ou antes, como seria o caso das literaturas menores, desterritorializar o espaço de cultura do senso comum.

Continuaria Navarro, acerca da representação na obra de Carvalho:

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Mas em seu trajeto o narrador protagonista de A lua vem da Ásia parece querer por vezes saltar para fora além de toda e qualquer idéia de representação, mesclando o humor a uma cadeia textual difícil de ser precisada nas cadeias do sólito e fazendo fronteira com a imantação advinda do lirismo – mesmo que suspeitemos por vezes de uma aproximação com o kitsch, a simples presença deste torna mais inquietante a própria mescla. (p.7)

Se o distanciamento para literatura, “o lirismo”, é gozar do privilégio de um espaço crítico e atemporal, Carvalho faz do extremo a sua premissa de se distanciar da realidade que o compõe: na literatura e no personagem narrador, com a linguagem própria pela qual se comunica, narra suas histórias esquisitas e malditas; com as identidades que se sobrepõem a cada cena, com diversas genealogias e nomes de registro, mais as locações em cena que nem sempre remetem a alguma temporalidade ou espaço geográfico definíveis, muito menos a um gênero literário definido. A saber, em cena, diversas “obsessões”, “frenesis”, “histerias”, “esquizofrenia” e, claro, assombrações das mais variadas, que rompem com o estabelecido.

Quem é Campos de Carvalho?

Um escritor de quatro romances, com outros textos mais publicados, sendo alguns não reconhecidos por ele, como o Banda Forra (data) e Tribo (data). A nuance surrealista da escrita carvalhiana acabou por lhe reservar uma pecha nada confortável e insuficiente de “escritor surrealista”. Algo mais conciliador, no entanto, comparado a outros epítetos que o acompanhariam, como maldito, talvez pelos enredos que costuma (d)escrever, acerca de loucos e marginais, ou, como se poderia esperar, a de “escritor pornográfico”.

Juva Batela, pensando na literatura de Carvalho, coloca-nos outra questão, bastante curiosa e oportuna sobre esse literato brasileiro não raro desconhecido pela maioria: quem tem medo de Campos de Carvalho? Pergunta, aliás, que dá título a um livro de Batella (2004), fruto de uma dissertação sua, em que ele se aventura a condensar algumas leituras e propor alguns caminhos nos rastros fragmentados e confusos deixados por Carvalho em sua obra labiríntica.

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Em meio a essas reflexões, sobrepõem-se outras, que nem sempre podem ser facilmente respondidas. Como: por que, enfim, seria a obra de Campos de Carvalho injustamente pouco conhecida? Pelo medo que causa, como sugere Batela acerca das temáticas de Carvalho e de seus textos de complexa assimilação e de potência “maldita”? Ou porque, como diz Antonio Prata (data), o autor se faz ouvir através de um “dialeto que seria reconhecido” apenas na possibilidade de um futuro?

Se não se lê, é porque talvez cause certo receio sobre. Mas que medo é esse que amedrontaria um suposto leitor ingênuo, incauto e/ ou cristão? Medo de fantasmas, quem sabe. Daquilo que se pensa sepultado em definitivo mas que se presentifica, tomando corpo ou não, no presente imediato no futuro por vir.

Pois se há textos que são lidos e referenciados, qual a razão para existirem outros, infinitos, “menores”, que não desfrutam do mesmo privilégio, sem sequer serem conhecidos, citados, lidos, descritos? E esses personagens reais ou imaginados, quem os conhece?

Cabe dizer que Carvalho coloca em cena personagens nada convencionais em sua dramática do ambíguo que nos cerca e da vigilância dos poderes estabelecidos nos corpos e mentes dos sujeitos imersos na sociedade moderna. E ele o faz também da maneira que não goza de nenhuma convencionalidade. Há um eu comum em sua obra, que paradoxalmente ressoa diversas identidades, múltiplas, diluídas no texto de caráter “esquizofrênico” e amoral, em personagens fragmentadas, que nos relata carregar consigo muitos nomes e origens.

Personagens, aliás, de difícil definição. Já que não é apenas de Campos de Carvalho e sua literatura de que se fala, mas também dos desprivilegiados de um espaço discursivo em que reina certo ordenamento burocrático em que não cabe qualquer objeto desviante da técnica, menos ainda aquele que traz consigo a marca da subversão e da marginalidade. Pensa-se a respeito desses, como se pensasse por eles, e nunca ao contrário, como tal.

E esses personagens carvalhianos, como Astrogildo, que é também, Ruy Barbo, o coronel encostado, André/ Andréa, o mochileiro da Bulgária? Quem

19 sabe e quem poderá falar por eles, sobre eles? Não são personagens de bom gosto, que representem a cultura como deve ser, hegemônica, simbólica, direta e representativa de um todo, coletivo – ou de um poder sobrepujante e destruidor de diferenças. A cultura que demostram nas linguagens e performances de seus relatos anda em paralelo a essa que a isola em seu universo particular, mas expõe com a mesma intensidade em que é silenciada, as estruturas que a condicionam ao isolamento perante a rua, a praça, os bares, os espaços de convivência comuns. A cultura menor, de uma literatura menor, nem sempre é bem vista pelo belo essencial e de tradição, pois é sujo, fedorento, cheio de chorume eliminado pelos canos das casas ou prédios construídos verticalmente, de maneira ordenada, para comportar de maneira equilibrada as estruturas da família tradicional.

Em literatura, se em um romance moderno, como diria uma exegese acadêmica tradicional de compêndio ou enciclopédia, de cânone, por exemplo, define-se e delineia-se perfis pensados como “personagens complexas”, em oposição aos modelos chapados e vazios quase sempre ultrarromânticos, do período que se nomeia “romântico”. Já no texto e no caso de Carvalho, por exemplo, os sujeitos são sim complexos, “realistas”; mas complexos em demasiado, a ponto de serem também românticos, ultrarromânticos, e sempre modernos, ultramodernos, quase inenarráveis. Além de outras categorizações, que ocorrem, qual a de maldito, pornográfico, pitoresco.

Como lidar com eles, esses sujeitos sujos de literaturas que não são lidas, se não cabem em uma estratégia literária comum localizada no tempo e no espaço? São personagens que também mostram empatia pelos dilemas humanos versados pela literatura, como o “ser ou não ser” hamletiano clássico; ou a loucura, em textos como o de Machado de Assis ou Lima Barreto, poucas décadas antes de Carvalho, ou o grande Dom Quixote de la Mancha de Cervantes; ou, por fim, a morte e sua ambivalência em relação à vida e existência, além das ressonâncias dela no imaginário íntimo e coletivo, como em Fausto, de Goethe, ou a obra infinita de memória de Proust.

Entretanto, as comparações mais íntimas se dão com outros escritores mais desviantes e menos equilibrados na sua prática literária profissional do que

20 aqueles que o cânone consolidaria ao longo dos séculos. Como o contemporâneo secular Franz Kafka e o fantasma da burocracia e da vigilância que ronda os corpos dos sujeitos sempre no limiar de sua literatura menor: da mudez, da loucura, da “razão”, do animal e do humano.

Campos de Carvalho, em uma entrevista, quando perguntado da comparação natural com Kafka, diz que “o detesta”, porque não há humor ali. Depois de tal afirmação tipicamente carvalhiana, continuaria Carvalho, dizendo “sou o anti- Kafka”. Reconhece, no fim, que em um texto do autor ele veria semelhanças com seu projeto literário: “têm a mesma maneira trágica e humorística de encarar a vida” (p.126). É nesse sentido, portanto, “na maneira trágica e humorística”, à maneira porventura do odiado Kafka, que Carvalho tece a escrita de personagens malditos e amaldiçoados pela história. Mas não é Carvalho, nem Kafka, só esse limite. Ao contrário, é antes o um fragmento do espaço de fronteira para o qual caminham as literaturas desses autores.

Em resumo, se possível apontar algo que se expresse como característico da literatura de Carvalho, suas desventuras narradas em formas de romance, porém, não sugerem a linearidade comum às narrativas dessa natureza, a do romance tradicional, tanto no ritmo dos acontecimentos, quanto na linguagem, na manifestação das personagens, nos conflitos em desenvolvimento ou por se desenvolver a qualquer momento. Não há uma trajetória que seja em linha reta, com começo, meio e fim, do ponto A ao ponto B. Não há um leitmotiv. O que se observa e parece se pretender é diverso disso. Nunca se sabe ao certo o que nos fala, de onde nos fala, para onde nos leva, ou quando nos relatou aquilo.

Assim, como é sugerido logo no início de seu primeiro romance, pelo Capítulo Primeiro de A Lua vem da Ásia, fugir do cartesianismo e do que isso significaria em termos de posturas cotidianas e de dominações de corpo e espírito – pelo Estado, pela sociedade, pelas Ideias etc – é questão de sobrevivência para os sujeitos em cena nos livros de Carvalho. Daí a linguagem insólita com que a narrativa se desenrola, do título às incontinências verbais do romance, assim como os espaços narrados e as trajetórias absurdas e que soam fantasiosas e até imorais para um imaginário de valores essencialmente realistas, científicos,

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à parte de um sujeito carvalhiano – ou essencialmente “lógicos” e “etno- eurocêntricos” como a dos primórdios do romance burguês.

Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. (CARVALHO, 2005, p.36)

De outra maneira, mais do que isso tudo, os mesmos personagens de Carvalho, em geral, sobrevivem atormentados por imagens borradas de seu passado, que são recobradas no presente diálogo entre o leitor e o narrador acerca dessas experiências sombrias, e que nem sempre são motes literários ou políticos na grande literatura, mas assombram a literatura de Carvalho e a realidade do leitor. Episódios de memória que se constroem e se confundem por fragmentos de trauma e deslumbre juvenil, perturbando-os, levando-os à extrema alucinação (lírica) em que é rememorada e, portanto, narrada da maneira algo confusa a seus interlocutores humanamente cúmplices.

A forma, no entanto, a estrutura dessa linguagem de memória em escrita nem sempre será “lógica”, clara ou linear consequentemente, já que a história narrada não é de outro, a partir de um narrador distanciado que pudesse organizá-la por ele. Iriam convergir e se confundir no texto as instâncias críticas do sujeito autor com a do sujeito personagem, quando é o próprio narrador que faz literatura de suas ideias e suas memórias em monólogo, na mesma medida em que escreve o seu romance e o encena, faz performances de sua agenda político-literária por intermédio de seus personagens interlocutores do monocórdio discurso desse narrador uno e universal carvalhiano. A alternativa de linguagem desconfigurada dos padrões de uso comum, como o humor escrachado, é mister de sobrevivência contra a seriedade do ritual canônico, assim como os deslocamentos de identidade única promovidos pelo narrador que vocaliza múltiplas perspectivas de subjetividade.

Mais do que literatura suja, maldita e pornográfica, como características e pré- conceitos, pressente-se também uma denúncia kafkiana que se delineia depois de percorrida a trajetória confusa proposta por Carvalho: rebelam-se os

22 sujeitos, intimamente e na sociedade, por não se identificarem com o espaço que lhes cabe, às vezes imposto (como o manicômio ou o trabalho mecânico e alienante), às vezes recosto (como o próprio manicômio e tais trabalhos). O que tem por consequência as demais rebeliões e revoluções pela história, encenadas na literatura, na forma da escrita e do que é escrito, mas também nas violências por trás desses episódios de aparência heroica e gloriosa transfigurados em linguagem literária. Violências que por vezes são tema carregado de melancolia simbólica em Carvalho, acerca do humano, e também em Kafka, nos labirintos de sua literatura menor e mutante.

Muitas são as pistas que se insinuam nestas poucas e estratégicas palavras, a propósito do sentido geral da Obra reunida. Uma obra que se anuncia, já na primeira frase, sob o signo da violência. De violência na sua forma extremada: o assassinato. Mera frase de efeito? Não creio. Pois para além do seu impacto inicial, que se poderia associar apenas ao intento de fazer rir, muitas – e inquietantes – são as conclusões que ela suscita, considerados o contexto e a situação em que aparece.

(PEREIRA. Roberval Alves.1999. p.28)

Não por acaso, no livro segundo da obra reunida, em A Vaca de Nariz Sutil, convivemos em um pensionato ao lado de um ex-general e seu cotidiano deprimente, de “surtos”, remembramentos inesperados dos períodos gloriosos de guerra, em que sua virilidade coincidia com a patente, e assim justificaria sua existência humana e masculina. Ao lado do passado que ressoa e o assombra na forma de fantasmas do front, existe o inquietante presente “real” não tão festivo e viril, de “quartinho de pensão”, tendo que conviver com inimigos do dia a dia sem que possa se impor enquanto sexo masculino ou general armado com um objeto fálico em mãos a serviço de um ideal maior e significativo para sua existência humana e masculina em sociedade. Ideal que se vende e se pretende no imaginário social preponderante, como dito, do masculino sobretudo. Logo de início, iria desabafar o narrador desse livro, um ex-combatente aposentado:

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Sei que poderia aplicar-me em outras coisas, mas todas inúteis: tudo é inútil. Levei milhões de anos para chegar a esta sórdida conclusão, eu e meus antepassados; deve significar alguma coisa. Também fiz trapaças, e sobretudo comigo, para converter- me a alguma coisa, em alguma coisa: dizia o Credo em voz alta, todos os credos, postava-me de joelhos, de cócoras, as pernas para o ar, batia-me no peito como numa porta: o mais que consegui foi enrijecer estes músculos, o que será um dia o meu cadáver, ou já é. Lia nos jornais as grandes descobertas mas descobri que não me valiam de nada, nem a ninguém – era a mesma a condição humana o vazio sobre a cabeça e sob os pés, e sobretudo dentro, dentro da alma. (CARVALHO, 2008, p.156-157)

É por trás desses limites que se esconde o texto amaldiçoado de Carvalho, que vive rodeado por esses fantasmas da tradição e obrigação, sempre ironizados por ele, sempre vistos de maneira absurda por seu olhar cômico e às vezes trágico do contexto humano de sociedade capitalista e totalitária, ou de modernidade em crise. Na ótica de Carvalho, o progresso vem acompanhado de fantasmas de guerra, de prisão, de tortura, de apocalipse, hecatombe, limbo, imagens menos assépticas e mais demoníacas.

Nos outros romances de Carvalho, aliás, vemos diversos “loucos” que questionam o pensamento definitivo, como científico e o religioso; personagens que professam suas próprias ideias subversivas, estupram à própria vontade e desejam seus próprios parentes, como a irmã, quando a lei não os significa, pelo contrário, costuma reprimi-los de seus desejos; ou, de outra forma, sujeitos autônomos para além dos autômatos que pretende denunciar. Por outro lado, as possibilidades humanas nem sempre agradáveis de se observar em cena, seriam desnudas na linguagem do absurdo que serve ao tipo carvalhiano, que são vários.

Autonomia do “inconsciente” que aqui, em Carvalho, se dá pelo menos no âmbito do relato literário, de romance crítico dos vícios e das virtudes, a partir da estrutura, à narrativa em si, na história aparente que se tem sempre por contar. Fora dali o limbo aos renegados, esquecidos, pouco lidos e lembrados pela memória pretensamente coletiva, quando não nacional.

Alguns sujeitos carvalhianos, em uma leitura contemporânea, se assemelhariam aos zumbis tão fetichizados nas estéticas do cotidiano pós-

24 guerra: uma guerra que submeteu a humanidade a sequelas irreversíveis e fantasmáticas, mais a agonia de existir enquanto cadáveres adiados e ambulantes, alienados de sua própria condição de subordinado/ submisso. O que aproxima, aliás, esses seres desalmados e que vegetam aos personagens de Carvalho, porém, é outra questão: a vida e a morte em ambiguidade flagrante – a aporia da sobrevivência. Ou ainda, o terrorista ou o muçulmano na sua mudez, diante desse dilema filosófico de tempo e espaço, no campo político da existência contemporânea “globalizada” e múltipla. A questão local em seu texto de desmanche e refundação, é imediatamente relacionada a um imaginário coletivo, transcendente, sem lugar, nem hora.

O que fizeram de mim está feito, o que eu mesmo fiz de mim, este estrangulamento perfeito, eu este pêndulo morto e no entanto ainda vivo, este cérebro latejando dentro de mim e eu dentro dele, esta minha consciência muito mais eu do que eu quando nasci, sem exterior, ou ao mundo interior. O dono desse cadáver sou eu mesmo, mesmo que o reclamem os outros não o reclamando, os donos do mundo agora deste submundo, se é que ainda existem sobreviventes para sobreviver e alguma coisa, e não tenham sido todos colhidos pela hecatombe – e colhidos e agora recolhidos como eu.

(ÍDEM, p.306)

Se parâmetros de vida vigentes na modernidade e além dela costumam por tradição, como vimos, serem meritocráticos e utilitaristas – ou sanitaristas, como nas políticas atuais das metrópoles – deve-se então pensar em André, de A chuva imóvel ou Astrogildo, de A lua vem da Ásia, ou em qualquer outro do romance de Carvalho como o oposto disso. Na verdade, são como vítimas ou sobreviventes do caos em que resta o relato encenado pela leitura.

Na vida que constroem para si, de maneira lírica ou impositiva, os cerceamentos das tarefas orgânicas do corpo e do espírito por parte de outros, inimigos, parecem ser o receio divido por todos eles, injustiçados por um sistema que não compreendem e que também custa a aceitá-los. Têm assim, por consequência, a necessidade de se construir liricamente, como nos livros de Campos de Carvalho, seus espaços de segurança, que vão da linguagem estranha e com cadência própria do que dizem e deixam de dizer, ou que

25 vivem, ou que optam não viver; aos absurdos e desvarios que nos testemunham, reais ou não, presentes ou passados, o que não nos interessa saber, sob outro tempo e espaço narrativo e de linguagem possíveis.

Finalmente, falar de Campos de Carvalho, porém, não será tarefa fácil.

Primeiro, é preciso apresentá-lo, já que não há nada que possa nos remeter à sua literatura, logo de imediato, qual discurso de propaganda ou, na literatura, como têm feito as narrativas heroicas e reconhecidamente nacionais ou de tradição, como a da Shakespeare ou de Machado de Assis, que podem apontar sua literatura para um local discursivo geograficamente delimitado pela história, língua, cultura oficiais.

Depois, contextualizar um interlocutor acerca dos enredos do escritor mineiro também não será algo simples e direto: é preciso ter olhos abertos e ouvidos atentos para um sujeito pouco confiável a um incauto, porque contar uma história da maneira tradicional não parece ser o projeto de Carvalho na voz dos sujeitos que operam por sua literatura maldita. É preciso fugir do mesmo modo da leitura surrealista ou moral que se faz dele, para que sua literatura possa emergir com a potência subversiva, destruidora e irresistivelmente contemporânea que vibra dela. Na verdade, a leitura que se desenvolve não é a de uma narrativa tradicional na forma de um romance narrativo, antes uma pulsão por desestruturar o texto linear, como nos surrealistas, arranjada em um relato mais metafísico e pulsional (passional) do que o realista.

Aliás, colocar o tradicional e o realista em evidência, poderia ser uma ideia inicial para se compreender a literatura de Carvalho, vista como maldita e obscena, pelo que esconde (moralismo) e também denuncia (o mesmo moralismo) acerca da humanidade em tempos de desenvolvimento humano e tecnológico que tanto se vende progressista – a tradição, portanto, mais a modernidade que a deve atualizar. Estratégia que, contudo, pode levar a obra de Carvalho a leituras muitas vezes redutoras, quando a vê como surrealista apenas, por realizar essas experiências de sujeitos pensados aqui como contemporâneos além de modernos, ao extremo da linguagem (literária) e da vida (em sociedade e em matéria).

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Em seguida, seguem-se outros caminhos, nem tão seguros, inesperados, como se esperaria, pois que trazidas por esses fantasmas inauditos à espreita, que tudo sabem, e que se revelam em outro tempo, que não o nosso, imediato e presente.

Um deles partiria da ideia de contemporaneidade nos textos de Carvalho, por servir de exemplo pertinente de um enredo trágico da arte e da literatura para questões da atualidade, inseridas nos Estudos Culturais, mas que tão bem são universais, anacrônicas e atemporais enquanto arte. Seguirão em paralelo outras temáticas próximas e relevantes a essas superficiais que se pretende ensaiar brevemente a partir de sua Obra reunida como a do sobrevivente e das literaturas menores.

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Aparição

Mas a minha idade não tem muita importância, contanto que eu não me olhe no espelho, e o que vale é esta juventude perene e esse contínuo assombro em que me vejo diante das coisas do mundo, sobretudo as coisas invisíveis e mais certas, como Deus por exemplo e seu partenaire o diabo.

A lua vem da Ásia.

Walter Campos de Carvalho, apesar de não ter suas obras literárias conhecidas da maioria dominante e da maioria das cartilhas de literatura, velhos manuais de literatura, produziu às sombras um texto bastante representativo para se pensar esse espaço às escuras da nossa sociedade, bem como os sujeitos – ou seres – em que lá habitam.

Nesse sentido, a existência de certo sujeitos humanos, ou como aqui será compreendida, as sobrevivências que seguem silenciadas pela vida e pelo registro oficial acerca delas – metaforizados no gauche drummondiano, no flaneur baudelairiano, no sujeito benjaminiano também das cidades. Não que carecessem de discurso oficial que as legitimasse, ou, em questões mais práticas, pudesse provê-las de registro civil e de algum status de cidadania, humano social, coletivo, “enciclopédico”. Muitos menos uma anamnese para medicação de efeito imediato. É antes de tudo uma questão de política, um ato revolucionário, de justiça, sobretudo em tempos ditos tão progressistas como o de agora, de ditos avanços inimagináveis todo o tempo.

Por razões complexas, intrincadas, são alguns sujeitos subjugados e então postos à margem das “vistas viciadas” por razões de etnia, de comportamento, de língua, de ideia, de controle higienista e muito mais, na cor e no sabor da maneira capitalistas, sempre infinitas na sua gana de eliminar a ameaça aos motores das estruturas, cooptando os desviantes a se transformarem em algo de mais “bom gosto”. Seres marginalizados por se confrontarem com ideais de

28 vida e sociedade muito mais poderosos e combativos que os devires menores, sujos, que os obsidiam a cada dia, no embate entre espírito que lhe guia e corpo que lhe reprime, pois que é infinito, e é reprimido, pelo exterior. Seus relatos, portanto, seguem muitas vezes às escuras do senso comum que legitima na sociedade a existência e a sobrevida de qualquer que seja.

Não lhes cabe um registro, mas não que necessitem, ou busquem em vida algum reconhecimento utilitário. Pelo contrário, antes corresponder à demanda da própria lei do espírito é o mote da vivência que lhes serve. Não resistir é justamente ceder ao domínio imperial do outro que me julga e quer me destruir. Só me reconheço naquilo que conheço, e não no que não me significa, nem me representa. Sobre-viver é preciso: à margem, à esquerda, enjaulado, enclausurado, encarcerado, pois lá me sinto bem e entre os meus.

E o corpo, nesse ínterim, representa as barreiras simbólicas a que esse espírito se submete em planos materiais, quando à luz da ciência e da inteligência humana racionalista e pragmática das estruturas institucionais estabelecidas de poder. Como falar de sujeitos que são impossibilitados de falarem por si, quando não enclausurados do convívio comum por um desvio qualquer? Como ouvir sujeitos que são sequer vistos ou reconhecidos como igual, meu semelhante?

Veja Marx e o espectro que nos apresentou e que ressoa imortal e perigoso até os dias de hoje a qualquer um que o ouse exorcizar, no combate pela terrível e temível ressureição de uma nova internacional, como o que disserta Derrida em um texto seu. Teme-se, como diz o filósofo, antes de tudo as metamorfoses que Marx tanto falaria, sendo para o alemão aliás a sua “palavra favorita”.

Na literatura, em seu espaço discursivo relativamente distanciado, a discussão em torno dos espaços marginalizados de sobrevivência persiste como um fantasma, que caminha paralelo, em outro plano, à linearidade de uma narrativa convencional, asséptica, contrapondo-a, colocando-a em xeque em tempo real e imediato seu higienismo localizado, como faria o marxismo em relação às estruturas que denuncia: será sempre um ponto de vista temporal; será sempre uma linguagem imaterial e sensível transposta a um plano chapado e material; será sempre uma escolha em detrimento (ou favor de

29 outra); será sempre uma recepção a ser atingida; será sempre um público por vir.

Podemos evidenciar no visível aquilo com que se assemelha aos fantasmas da sociedade moderna contemporânea, a Ocidental, claro, nos marginalizados do progresso da metrópole, por exemplo, na ideia e no território: os zumbis que caminham pela cidade grande, sem “onde cair duro”, ou os usuários de alucinógenos que seguem delirando pela vida e pelos becos; loucos, esquecidos, abandonados; os sujeitos queer.

Seria “muito pouco”, infelizmente, apontar no presente, algo que se arrasta pelas existências humanas todas, pelo que a condiciona enquanto tal: moléculas, células, órgãos, micromatéria e a imensidão do universo que também existe às escuras, “partículas de deus”. Novamente, será sempre uma visão que nos inculcará uma realidade imaginada palpável e verossímil, que apraz. Mais dificultoso é caminhar pelo trajeto inverso, pôr-se em uma experiência outra, contrária. Algumas realidades (imaginadas), portanto, seriam melhores que as outras, em que não cabem fantasmas, sequer supô-los entre nós.

No cotidiano, o conflito de existência empírica e realidade paralela espectral não é tão difusa e natural quando nas pulsões dos seres em seu dia a dia: antes há que ouvir e enquadrar seus desejos, e não necessariamente ouvi-los e atendê-los como pretensão de vida. É antes a contenção e não a expressão absoluta, explosiva, de uma verdade incontrolável e contraditória, mas real, dolorida, que se dá no cotidiano das relações humanas e dos humanos com outros seres, com o espaço que lhe abarca. Antes o controle do que a própria pulsão, o próprio desejo de vida que se propaga, o tesão de ser viver indiferente às estruturas de poder que nos condiciona seu próprio viver.

Na disciplina do conhecimento, seja qual for a faceta que ela toma para se materializar na memória coletiva, há a perspectiva histórica, antropológica, filosófica e a matemática, sem contar a religiosa, que acomodam muitas evidências e assim harmonizam na aparência os conflitos existentes ou por vir com o diferente. Cabe reconhecer e evidenciar as diferenças já que o diferente

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é ameaça, me “desdiz”, me contradiz, me coloca nu, fragilizado. É preciso compreendê-lo, para que se saiba lidar com isso.

A psicologia, em sua história nem sempre progressista como apregoada pela ciência, justificou diversos essencialismos do suposto humano que somos, pela perspectiva a que deve tributo, essa mesma ciência, que serve aos privilégios do pensamento dominante, quase sempre reafirmando-o, ou, como é o caso, justificando-o de maneira assertiva, sem que se possa questioná-lo com um instrumental que não se reconheça científico, que não seja legítimo ou pelo menos aparente. Uma temática que caberia aqui e em Campos de Carvalho, a dos “clinicamente loucos” e os espaços de reclusão que são reservados a esses.

Mesmo que apagado do retrato familiar, não capturado pelo frame 3x4 do registro civil, ou de um selfie com a turma ou em um evento coletivo, o fantasma do contraditório seguiria aterrorizando sem identidade o pensamento definitivo – pensamento que inclusive não acredita em fantasmas, talvez porque não lhes pareça algo muito racional. A metafísica é seu o contraponto. A razão tem muitas facetas, e as mais visíveis são sempre essas de ordem, lei, progresso, como se definitivas e que significassem a todos uma empatia de valores, de causa, de paixão em comum. O que contradissesse isso, logo, não cabe num registro ordenado, vertical, meritocrático, científico, nem sequer de classe, de pertença.

Com qual paradigma devo nivelar o caos que me significa? Ou com qual exegese devo falar do fantasma que me obsidia com imagens confusas e fugidias ao registro? Ou de que maneira uma literatura menor, de minoria, deve nos parecer também literatura como outra qualquer?

Ainda, o que é sanidade e quando ela não o é? O que é um louco e quem não o é? O que é maioria, e quem não o é? O que é minoria e o que cabe nela? Essas questões sempre nos aparecem, nas entrelinhas, nos quatro livros de Walter Campos de Carvalho: no primeiro, há o louco (aparentemente) de fato, trancafiado num asilo de doidos, mas que viaja e nos leva junto a embarcar com ele para o extraordinário; no segundo, há um sujeito traumaticamente afetado, perdido entre a memória da dor e de luta e o presente castrado e

31 conformado; no terceiro, há um sujeito dúbio, perdido entre identidades fixas, como a do masculino e feminino; no quarto e último diversos sujeitos em cena, como num revival carvalhiano, todos desajustados para encenar uma moral técnica e pragmática, mas apaixonados por uma verdade em comum, mais imperiosa: a da Bulgária e seus púcaros curiosos.

Em comum, nos livros, o mesmo texto intimista, e sujeitos, que, no fim, se assemelham a um mesmo incompreendido, que nos relata seus absurdos que irá nos atrair ao escatológico, que o significa, antes de nos repelir pelo absurdo e repugnante de bom gosto. Se nos relata sua história “doentia”, com o ardil retórico de um criminoso, o que ressoa no seu relato é antes a busca de compaixão, de um ouvir cúmplice, do que o seu desprezo; de semelhança entre os irmãos, a compaixão, em vez de diferença.

Fica claro, assim, pela potência maldita de seus ensaios sobre humanidade e vida social, que dar voz a verdades silenciadas pode representar uma ameaça muito séria à própria existência daqueles, personagens de romance ou não, que ousarem caminhar em direção a um instinto perigoso, a um devir absoluto. Por isso sobrevivem, mortos-vivos, zumbis pela cidade, ou zumbi no manicômio, entre quatro paredes psiquiátrica e/ ou carcerária, ou ainda exilados em outras paragens, por vezes entre nós. Pior: ao nosso lado, entre a gente nossa. Ou somos nós todos os loucos, qual a inversão operada na prosa machadiana de O Alienista?

E na história, os guetos, os idioletos, e as histórias por vir, nos fantasmas a serem vistos, encarados de frente, pois que nos significam tudo isso, o que cabe e o que não cabe, o que é ou que não é, além de aparição que toma corpo, que confronta sem pedir licença. Mais: compensar porventura a falta de antes, de um tempo imemorial, que é silencioso, mas grita e ressoa como trauma recalcado em um dia qualquer, e reencarna como verdade ameaçadora, perigosa, destrutiva.

Assim nos parece uma literatura menor, a partir de Deleuze e Guattari, mas também em Carvalho, como resposta que cabe, de narrativa (alternativa) ao registro que os condiciona a taxionomias e línguas não-oficiais de pouco valor

32 de prestígio, mas que muito significam naquilo que restringem: as narrativas malditas porque desvelam verdades ocultas de um imaginário preponderante de maioria, de perfeição, de completude, de essência, de verdade absoluta e definitiva, “oficial”.

Uma literatura, que, por fim, como faz Campos de Carvalho, desterritorializa os saberes estabelecidos, quando se faz uso de uma gramática própria e de uma sintaxe estranha a ordem canônica e asséptica, a fim de conciliar suas narrativas subjetivas e coletivas impróprias, e assim registrá-las, ou melhor, fazê-las ressoarem como imaginário tal como as que são impostas pelas instituições de poder dominantes: com suas ideologias que buscam abarcar indiscriminadamente os sujeitos de uma mesma sociedade.

No caso de Carvalho, o humor e o discurso de moral própria, de crítica a posturas tradicionais na sociedade, e a constante transformação (metamorfose) de linguagem, nos aparecem em seus personagens como a força destrutiva de sua literatura: ao encenar sujeitos esquivos, estranhos, “loucos”, “sobreviventes”, há também uma literatura dessa natureza que se materializa finalmente, à parte do “valor” e do “prestígio” que se dê a ela. Ela existe, como muitas outras, e pode, como qualquer outra, se tornar legível e significar igualmente, feito uma literatura maior, de uma nação que se reconheça. Ou feito literatura apenas, no caso, literatura menor de sobreviventes e relatos malditos, “menores”, mas de seres humanos demasiadamente humanos “em demasiado”, incontáveis e incompreensíveis que são, e que carecem do relato e da memória.

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Capítulo 1. O espírito à espreita

Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo.

A Chuva Imóvel.

Por falar em tormentos, atormentados e obsidiados, há um espectro que ronda a sociedade brasileira. Clichês marxistas à parte, ele transcende não apenas a própria ideia de materialidade ou de ciência empírica, mas também os espaços que costuma assombrar, coabitando para além de cemitérios, banheiros masculinos de escola ou casas mal assombradas. Aliás, não é e nem se fala de uma historieta de fantasmas, um romance com final conciliador e feliz. Não é tampouco ficção. No mais, o que se sabe é que há muitos dizeres a respeito, relatos, testemunhos, sobreviventes. O que resta. Os ouvintes, no entanto, só aos poucos é que se deixam ouvir, escutarem tais relatos e testemunhos. E no fim a pergunta que sobra é a seguinte: que espectro ou espectros, qual a relevância deles, se espectros houver.

Falar de espíritos ou espiritualidade é transitar por um terreno pantanoso, que não só prende lama aos pés, mas também acaba respingando pelo corpo, pela alma e pela mente daquele que ousa se aventurar em explicar o inexplicável, dizer o indizível, experenciá-lo ou pior: evidenciá-lo. Os caminhos nem sempre são em linha reta ou bifurcados na travessia: as potencialidades são infinitas, as variantes nem sempre são passíveis de fórmulas ou teorias ou previsões meteorológicas, astrofísicas e filosóficas. Além de colocar em evidência no meio do caminho a nossa linguagem ou que pensamos acerca dela, sua insuficiência na pretensão de transcrever fenômenos e supostas essências da vida em signos, letras, palavras, memória, registro.

Curiosamente, a respeito disso tudo, são os espectros que o sabem: habitam diversos espaços, “são e não são”, “estão e não estão”, “estiveram e estão”, não carecem de escrita, comprovação científica, muito menos se utilizam do

34 signo verbal para se fazerem ouvir. No entanto, suplementam tais discursos na maneira fantasmática com que se apresentam, como vozes e memórias silenciosas, ressonantes nas certezas do imaginário comum, na ideologia, no dia a dia, na política, na economia, na sociedade, entre os vivos.

Falar de fenômeno espectral é portanto coincidir com espaços nem sempre coincidentes, com temporalidades nem sempre sincrônicas, com imagens borradas ou invisíveis, em definições mal resolvidas de vida e de morte sobretudo. É o contraditório que o define, na incerteza que coloca em xeque a própria existência em sua materialidade racional: se não existe, não há; se não há, não há como existir. Além do mais, contextualmente, deve-se pensar no que seria o existir e no que não o seria, pois ao que parece, a espiritualidade é indiferente a isso.

Os espectros existem, invariavelmente, seja lá o que isso signifique. Se ainda há a necessidade do empírico científico para comprová-los, ora, a atual ciência quântica e sociológica contemporânea, bem como a fenomenologia, fez da ideia do antes indizível um fenômeno natural e orgânico da existência, evidenciando não apenas a possibilidade agora científica, teórica, de se reconhecer existências de “dois planos paralelos”, mas inclusive tudo o que se pensava a respeito deles, como teorias e ciências seculares, pagãs, negligenciadas até então.

De outro modo, submergem da mesma forma outras imagens desorganizadas, paradoxais, que se chocam com a ideia do definitivo, acabado. Cabe dizer ainda que é o fenômeno espectral cotidiano nas tecnologias cada vez mais populares e inseridas na intimidade dos sujeitos, através das micro-ondas e das ondas eletromagnéticas, que carregam infinitas memórias no trânsito cotidiano de informações e transístores.

Por outro lado, ainda sobre os espectros que assombram, o alemão Karl Marx falou de um deles, que não é desses de fantasma de blockbuster hollywoodiano, apesar de que costuma igualmente amedrontar e perseguir mentes incautas e guardar seus cadáveres trancados no armário escuro e empoeirado. A partir de uma metrópole da tecnologia e do conhecimento humano da cultura ocidental, Marx colocou luz nas sombras da sociedade

35 europeia de época, direta e indiretamente, elucidando diversas tradições sombrias, espectrais e possessivas da cultura metropolitana da modernidade que se desenvolvia a passos largos e “imorais”. Um paradoxo infeliz para a ideia de um todo dominante, ou seja, um contraponto posto no ringue de ideias conflituosas que iriam submergir em plena era da modernidade: paradoxo de tempo e de espaço, quando a realidade metropolitana se vangloriava por seus supostos avanços sob intermédio das inteligências reinantes e dos poderes estabelecidos.

Logo no início, com aspecto sensacionalista e ideológico do gênero, Marx e seu amigo Engels anunciam no famigerado Manifesto Comunista (1999) a sentença que colocaria em evidência o que era até então absolutamente indizível: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papo e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha” (1999, p.5).

Novamente, se espectros, se espíritos, não vivem no tempo nosso de cada dia de relógio de ponto, em matéria: convivem com nossa materialidade do dia a dia, só que em um tempo infinito, imortal, espiritual. São deste tempo, ao passo que remetem a outros, passadios e que convivem com o tempo perigoso do cotidiano do agora. O que nos impede de vê-lo é a visão histórica condicionada de nossa cultura, que nos impõe um “efeito de viseira”, em que não há um campo de visão completo, mas antes restrito, seguro, diante da ameaça de uma amplitude menos compreensível, mais visível ao contraditório.

Segundo Jacques Derrida em Espectros de Marx (1994), essa “coisa” inominável, o fantasma de outros ou vários tempos, não seria uma “coisa” qualquer, simplesmente incomunicável, sem linguagem. Para ele:

Esta Coisa que não é uma coisa, essa Coisa invisível entre seus aparecimentos, não a veremos mais em carne e osso quando ela reaparecer. Esta Coisa olha para nós, no entanto, e vê-nos não vê-la mesmo quando ela está aí. Uma dissimetria espectral interrompe aqui toda espetacularidade. Ela dessincroniza, faz- nos voltar à anacronia. A isto chamaremos efeito de viseira: não vemos que nos olha. (p.22)

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Diante das anamneses clínicas e críticas, sobre procedimentos médicos ou de médiuns, não há como eliminar espíritos por intermédio deles, no espaço da materialidade, sem ignorar a metafísica e a microfísica do universo, em suas potencialidades infinitas, que subjazem ao fenômeno em questão, em paralelo e dissincronizado. Um espaço- tempo paradoxal, em que há ao menos dois tempos paralelos, com suas complexidades, o de quem nos vê, e de quem não vê que (m) nos vê.

Há como conjurá-los porém, esses espíritos amaldiçoados, transformá-los, pensá-los em termos de luz e conhecimento. Ou, do contrário, como possibilidade moral, persegui-los na forma de “Santa Aliança” como a sugerida por Marx e Engels, de modo a prevenir ou remediar as moléstias e sequelas das possessões por ideias subversivas que subjazem ao que é silenciado por contingências nem sempre contingentes, como as ditaduras reais ou imaginárias do espírito.

À filosofia alemã coube em algum momento uma anamnese: toda a teoria marxista e o que ressoa a partir dela, como a Escola de Frankfurt, a psicanálise, na filosofia da contemporaneidade – inclusive, o que não deixa de ser curioso, não mais no “centro”, com a periferia também como protagonista de relevância para os discursos, com as “Espistemologias do Sul” de Boaventura de Sousa Santos, e também diante de novos protagonismos na geopolítica ordinária da sociedade capitalista, alternativos ao eixo nortista predominante.

Assim, não há como se pensar na superação do marxismo, uma ideia que tem sido alimentada comumente, na medida em que se vê ampliação no contemporâneo, da atualidade de sua manifestação polêmica, nos espectros que rondam a sociedade dita pós-moderna ou tecnologicamente avançada, em que discussões como essa marxista estariam superadas, datadas, velhas e empoeiradas.

Mas em que medida esses avanços significam progresso real e indiscriminado? Em que instâncias isso se daria de maneira plena? Caberia a todos gozar das benesses da civilização avançada? Que fantasmas escondem o discurso do progresso, da lei, da ordem, da democracia, de certa forma obsidiados estes

37 por demandas de outros tempos? Já não haveria mais fantasma rondando a Europa?

O filósofo Jacques Derrida, porventura, escreveria uma obra cuja abordagem é pensar a teoria marxista, nessa ótica do espectro, apontando para a permanência de Marx e Engels na atualidade. Em Espectros de Marx, Derrida conjura a teoria que hoje em dia, se não é polêmica, é ao menos vista como superada ou coisa má, qual os espíritos que coabitam a existência de existentes. Falar de Marx é falar de comunistas, e falar de comunistas é falar de malditos, é falar de fantasmas que vivem no escuro.

Segundo ele próprio:

Espectros de Marx: o título desta palestra incitaria primeiramente a falar de Marx. De Marx mesmo. De seu testamento ou de sua herança. E de um espectro, a sombra de Marx, a aparição e o seu retorno, que tantas vozes se erguem em nossos dias para conjurar. Pois isto parece-se a uma conjuração. Em razão do acordo ou do contrato firmado entre tantos sujeitos políticos que subscrevem cláusulas tanto ou quanto claras e tanto ou quanto secretas (trata-se sempre de conquistar um poder ou de ter à mão as suas chaves), mas, principalmente, porque uma conjuração dessa está destinada a conjurar. É preciso, magicamente, expulsar um espectro, exorcizar o retorno possível tido por si maléfico e cuja a ameaça demoníaca continuaria a obsidiar o século. (1999, p.133)

Marx, com seu testemunho ou herança, como diria Derrida, corajosamente expiou em roupagem de manifesto a culpa humana acerca do fascínio pelo poder na história das sociedades, que fundamentaria a divisão social de classes, por exemplo, justificando assim hierarquias, patronado, dominações de corpos e mentes. São alguns desses fantasmas que diluídos se configuravam um espectro de Marx. Dominações arraigadas em infinitas instâncias sociais e que nem sempre são claras para aqueles que vivem alheios às “grandes negociações” sob um status quo aparentemente pacífico e libertário como o das narrativas das democracias do século XXI.

Derrida, por exemplo, reconhece e nos apresenta esse fato das sociedades atuais, atemorizadas pelo fantasma da potência destrutiva do marxismo enquanto linguagem possível e futura, imagem de tempos dispersos e conflitivos.

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Para Derrida:

Ninguém, ao que me parece, pode contestá-lo: um dogmatismo busca instalar sua hegemonia mundial em condições paradoxais e suspeitas. Há hoje no mundo um discurso dominante, ou antes, em vias de se tornar dominante, acerca da obra e do pensamento de Marx, acerca do marxismo (que é talvez outra coisa), acerca de todas as figuras passadas da Internacional socialista e da revolução universal, acerca da destruição um tanto quanto lenta do modelo revolucionário de inspiração marxista, acerca do desmoronamento rápido, precipitado, recente das sociedades que tentaram empregá-lo, pelo menos aí no que por enquanto chamaremos, citando ainda o Manifesto, a “velha Europa” etc. Esse discurso dominador assume repetidamente a forma maníaca, jubilosa, encantatória, que Freud distinguiria em certa etapa dita triunfante do trabalho de luto. A encantação repete-se, ritualiza-se, empenha-se por fórmulas, como requer toda a magia animista. Recai na repetição e no refrão. Ao ritmo cadenciado de um passo, proclama: Marx está morto, o comunismo está morto, de fato morto, com suas esperanças, seu discurso, suas teorias e suas práticas; viva o capitalismo, viva o mercado, sobreviva o liberalismo econômico e político! (p.76)

São fantasmas da natureza humana e de sua trajetória que assombram e desqualificam muitas vezes a história que comumente se conta dela. Daí o espectro que rondaria a Europa e sua sociedade à época e que nos persegue até hoje no infinito além-mar, por isso a necessidade de alguma mágica ou entendimento legítimo que fosse e que pudesse expulsá-los e livrá-los da ameaça maldita, como fala Derrida.

O mote desses autores, tanto Marx (o afamado), Engels, quanto Derrida, nesse contexto de dominações pela política e pela palavra na ação cotidiana, acabam, paralelamente, confrontando os parâmetros da tradição burguesa, que é dominante: a verdade no singular e no plural, na política e na palavra, pelas instituições que funcionam a favor de uma “minoria” privilegiada e reinante, e que burocratizam as relações entre elas e os sujeitos e os sujeitos além eles, nas escalas hierárquicas de valor e poder que existem por aí. No caso, uma verdade espectral, paralela, que causa estranhamento e temor aos alicerces da cultura hegemônica, no caso eurocêntrica, que suplementa os discursos oficiais “metropolitanos” e “coloniais”, quando vem reconhecer pelo ato contínuo de

39 dominação, uma divisão de classes como essa nossa, tão concentrada e ao mesmo tempo difusa, e que se arrasta pela existência humana.

Essa verdade silenciada, espectral, mas em evidência a cada dominação de potências globais e emuladas nas microesferas da realidade das ruas e suas esquinas; a cada comportamento de indiferença e de segregação dentro de casa ou no bar; a cada palavra “maldita amaldiçoada”. Por fim, o conflito entre classes poderosas e seus hábitos e valores, em choque com outros “menores” e de supostos vícios e imoralidades, de que só os fantasmas sabem a respeito, pois que indiferentes à moral cotidiana média. Conflito que serviria na história porventura de engrenagem perpétua para a máquina realmente imoral do capitalismo selvagem e para a solidificação do estado burguês, que se estabelece como mediador dessa falsa ideia de diferenças entre os sujeitos, a partir, por exemplo, da diferença pelo acúmulo, que é bem visto, benquisto e de valor (de mercado).

No fim, os espectros de Marx são espectros ainda, porque não seria diferente, dada a natureza ambígua com a temporalidade e com a existência que diz respeito aos espíritos e o contraditório que têm a nos dizer; e assim, não deixariam de ser uma sombra apavorante para as culturas capitalistas e totalitárias do ocidente e para a humanidade como um todo do agora.

O que decorre dessas elucidações posteriores aos primórdios da conhecida teoria marxista se contextualiza com a das modernidades tardias do século XXI, na medida em que se amplifica não apenas a ideia do espectro do comunismo, como as leituras possíveis efetuadas posteriormente, algo além do que o materialismo histórico registra, mas as “novas” raízes ideológicas e econômicas, nós de conflito, que se desenvolveriam em rizomas de novas dimensões globais e íntimas.

Contextualmente, o século anterior viveu obcecado por esses espíritos trazidos à luz por Marx. Até uma guerra houve entre os que criam nele - malditos, satanistas e comunistas, versus os democratas e os que tinham Deus no coração. A teoria marxista, que talvez nem seja uma teoria, demonizada pela maioria que se faz dominar, acaba se confundindo e se perpetuando como ameaça no inconsciente coletivo dos sujeitos do século seguinte, com traumas,

40 sequelas e diversos discursos interditados, só desvelados e trazidos à luz com as “anistias” dos regimes democráticos que se seguiriam aos banhos de sangue.

Não se fala aqui apenas do Marxismo Real ou Utópico, mas sim, como em Derrida, fala-se de uma potência destrutiva, como a da linguagem e das imagens, que se pressentirá com ele (mais Engels nesse texto do “espectro”) e com os escritos chamados de marxistas, de infinitos pontos de fuga.

Desta forma, a leitura social a partir da teoria marxista se ampliaria em um horizonte menos vertical de sociedade, como na leitura de Derrida, de Foucault, Zÿzek, Bauman, Boaventura de Sousa Santos entre outros. Leitura que pretende muitas vezes elucidar a natureza maldita desses escritos renegados que não são dignos de literatura, muito menos serviriam de relato que os mencione, pela má influência que guardariam, malditos que são, amaldiçoados que foram.

Curiosamente, Marx agora é um espectro que sua própria “teoria”, que versa a respeito de um deles, acabou por torná-lo um por ironia: um fantasma nem tão agradável, de ideias e deslumbramentos pluripotenciais, que ainda sobreviveriam em paralelo na atualidade sem cheiro de paletó guardado de defunto – é talvez o próprio defunto que vaga incompreendido pelo efeito de viseira, jamais incompreensível no seu próprio tempo-espaço de paradoxos e incertezas. O contexto de suas ideias ampliou-se hoje para dimensões que se dizem globalizadas, mas que transcendem isso: continuam humanas e demasiado universais e profundamente íntimas, reais. São os espectros de Marx que obsidiam a teoria e a prática contemporânea do hoje em dia, globalizadas.

Sobre o anunciado espectro brasileiro especificamente, o mundo na dimensão do filósofo alemão era muito menor do que o de hoje em que a sociedade brasileira também é protagonista do cenário mundial da economia e da política. Comparar os cenários deve ser feito de maneira cuidadosa. Antes, por exemplo, o poder era mais facilmente dimensionado, assim como o espectro evidenciado por Marx, pela visão de mundo restrita àquele tempo.

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Mas e nos famigerados anos 2000? Em que medida ainda há a persistência dessas assombrações da história recente europeia? Seriam os espectros do Brasil do século XXI diversos daquele exposto de maneira panfletária na Europa em forma de manifesto no século XIX? Aliás, qual a relevância do texto marxista hoje em dia? Qual a relevância dos espectros, em tempos de vícios em tecnologia e de imagem em alta resolução?

No caso do hemisfério sul, o espectro que ronda especificamente a sociedade brasileira carrega consigo diversos testemunhos de uma urbe de silenciados, que apenas o distanciamento histórico permitiria retirar das sombras. Se Marx falava de operários, hoje os operários podem ser entendidos como sujeitos diversos que também operavam pela história suas narrativas malditas, menores, mal vistas, aterrorizando as vistas viciadas para além da Velha Europa – tanto pela má leitura, quanto a leitura do mal que reservavam costumeiramente acerca delas.

A recepção a seus textos excêntricos e suas memórias interditadas se reconhece aos poucos, por ora: violências simbólicas e outras, nem tanto.

1.1 O fantasma das ditaduras: a ditadura civil-militar no Brasil e da Moral

Em abril de 2014 completaram-se 50 anos de um enredo muito contraditório da história recente do Brasil, o que traria de volta certas ressonâncias emblemáticas do passado que obsidiam o presente desenvolvimentista dos governos democráticos dos últimos anos. Em abril de 1964, mais especificamente no dia primeiro, no dia da mentira, uma verdade que não era mentirosa colocaria o país em tensão: decretava-se a ditadura civil-militar. Alguns anos depois do golpe militar, essa imagem traumática de nossa sociedade iria tomar forma em vários discursos ao longo de 2013, nas chamadas “Jornadas de Junho” e nas eleições de 2014. O velho confronto entre esquerda e direita retoma à cena da opinião pública. Um paradoxo digno da espectralidade iria se impor: Marx parece reviver ali, novamente.

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Á época do 31 de março de 1964, a pátria brasileira vivia então outras tensões menores, que coincidentes, acabaram deslindando para o que hoje se repensa, meio século depois, sob a realidade conflitante da democracia anistiada. Tensões que ocorriam em diversas esferas, como na política, na economia, nos conflitos em âmbito internacional que coincidem para que o cenário pré-64 fosse construído. Na cultura, sobretudo, haveria tensões tão gritantes como as do cenário político-econômico, que sempre aparece mais, porque valem “mais”. Posteriormente, com o acesso um pouco maior aos dados daquela época, percebe-se a complexidade dos eventos que transcorriam, bem como a dimensão ampla de personagens e histórias pouco conhecidas que não raro foram enterradas juntos com os corpos silenciados em valas comuns.

Ao menos o testemunho dos sobreviventes, antes de se tornarem fantasmas finalmente, podem elucidar ou esclarecer muito do que foi interditado nesse período na produção cultural e nas manifestações políticas e ideológicas, já que o cadáver enquanto matéria permaneceria silenciado, cabendo também aos espectros remeter a eles, seu território e suas memórias.

Os espectros da ditadura são infinitos e permeiam os nossos corpos e mentes e vão além do texto marxista de conflito entre capitalistas e comunistas: há obviamente os que coincidem com os relatos da história (oficial); há, contudo, outros mais, desconhecidos, por se descobrir e ouvir; e outros ainda, silenciados de vez, sem testemunho ou sobrevivente que possa encarná-los em si, capaz de conjurá-los da obsessão pela memória.

Em paralelo aos testemunhos dos sobreviventes, cadenciam-se tensões para além do material e do imaterial, corpo e espírito, ou do que possam significar de mau ou bom os espectros em termos de individualidade. Não se diagnostica algo claro e facilmente tratável, mas uma metástase de múltiplos fronts de doença de espírito (de outras vidas) e de corpo (desta e de outras): as ditaduras intratáveis, decretadas e as congênitas, sombrias e por vezes invisíveis. É desse tempo que se ocupa o fantasma: aqui, lá, acolá, mas nem um nem outro, ou ambos e outros mais.

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O que assombra nesses relatos e nesses sobreviventes dos estados de exceção é justamente o que evidenciam sob o universo do coletivo: os fantasmas do contraditório que coabitam a moral política e cultural do país e seus habitantes, que são demasiadamente humanos. Fantasmas, ou quando há a sorte de um sobrevivente, que encarnam em si ou nos testemunhos as verdades sombrias, contraditórias, paradoxais de enredos oficiais de nossa história, quiçá a história da humanidade.

Narrativas malditas, sujas, cujo lirismo escapa à assepsia da tradição anistiada. Histórias enredadas por personagens anti-heróicos que nada se parecem com heróis ou heroínas da cultura pop, hollywoodiana: antes zumbis, quando não terroristas, que são os marginalizados às vezes em porões de sanatório, em presídios ou em prisões de si mesmo, nas incompreensões cotidianas que os vitimam, os alienam, entorpecidos na própria dúvida, na própria exclusão e no credo da lei que se arrasta, se impõe e os obcecam. Marginalizados sobretudo pela vigilância que se impõe aos corpos rasurados, sempre em contradição com os desvarios do espírito, leve e fugidio, ou da mente confusa e sem lugar no tempo e espaço que lhes cabe, à margem.

Sobre o Brasil ainda, há alguns fantasmas por se anunciar. Há o fantasma da colonização. Há o fantasma da escravidão. Há o do “vira-lata” rodrigueano. Há o do subdesenvolvimento. Há o latino-americano. Há todos aqueles que não cabem no discurso oficial, nos enciclopédicos, científicos, etno e historiográficos, como os relatos indígenas que se perderam pelo pensamento utilitarista.

Atormentam, perseguem, assombram. São inúmeros. Indefinidos. Pois se definidos, se à luz da ciência, já não são mais espectros de vida e de morte: são a vida empírica, pragmática, esquematizada de história oficial. E os espíritos, pelo contrário, nada têm com isso e com essa linguagem que os afugenta da luz.

No entanto, no caso da ditadura iniciada em 1964 no Brasil, os fantasmas do regime civil-militar, dos campos de concentração, dos porões de tortura, da história interditada, não serão exorcizados por qualquer anistia, de pretensa

44 conciliação. Menos ainda com medicação controlada, tratamento psiquiátrico ou espiritual. A permanência do relato, bem como a sua atualidade, não permite conjurá-los facilmente, de maneira simples, direta, indolor. A justiça pelo Direito é da ordem da matéria, e na querela entre carne e espírito, ela só é bem resolvida com a primeira, jamais com o segundo. Os sobreviventes e os espectros que o digam.

O relato, ao menos, o testemunho, serve para lembrar pela memória comumente negligenciada em forma de narrativa, que as soluções pragmáticos-científicas da política, mais aquelas cartoriais, nem sempre são impassíveis ao contraditório, de suas próprias verdades submersas e silenciadas.

À sua maneira, na literatura, em outro espaço da sociedade, o cultural, muitos foram os que atormentavam o país no cenário daquelas décadas. Hoje já não causariam tanto espanto, pela mercantilização do cotidiano como a pensada por Walter Benjamin no texto O Capitalismo como Religião (2013) e a ideia de religião nas sociedades de época, mesmo que curiosamente estejam essas criaturas relegadas ainda a espaços pouco confortáveis de promoção de suas literaturas e outras artes e credos, bem como a memória do que são e que foram. Curioso, já que as conquistas da democracia e das sociedades neoliberais, a priori, deveriam construir um cenário de pluralidade para as manifestações artísticas – favorecidas, aliás, pelo potencial econômico de tais atividades em meio a sociedades de consumo.

Assim, caberia reflexão da ausência ou não de mercado para esses tipos de “mercadorias” que não se encontram usualmente nas gôndolas, bem como os contextos de recepção (que não possuem). Na era da liberdade de expressão, tanto na ditadura quanto hoje em dia, ela (a liberdade), pareada com a verdade, também pode ser vista como espectro, um espectro de Marx, que se desfez de um maldito em algum porão abandonado ou em um quartinho no exílio.

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1.2 Perseguidos, loucos e renegados: apresentando Walter Campos de Carvalho

Em artigo publicado mês de abril de 2014 no jornal Folha de S. Paulo, o jornalista e biógrafo Ruy Castro, rememora à sua maneira aquele mês tortuoso de que tanto se fala. Intitulado Antes do 1º de Abril, Castro enumera alguns conflitos da “chuva de eventos” pelos 50 anos ora rememorados e às vezes até comemorados. Ao lado dos mais reconhecidos, para ele, teatro, cinema e literatura seriam igualmente significativos para se compreender a efervescência política e cultural que se desenrolava país a fora. Aqueles artistas, propositalmente fantasiados, seriam tão relevantes para o enredo de época quanto os fardados que não se fantasiavam, antes se impunham à moral que lhes era devida aos maltrapilhos comunistas/subversivos que pouco se importavam com que vestir.

A arte dialoga igualmente com a política e a economia de uma sociedade, pensá-la como memória desse período, como faz Castro, é alternativa para se reconhecer outras linguagens e modos de pensar e dizer não só a literatura, a arte, mas a cultura, a política, a economia e a sociedade, e desvelar os sujeitos escondidos e silenciados da história pelas suas histórias ainda por se contar.

A importância que lhes diz respeito é de flagrante significância para resguardo daquilo que não se evidencia no óbvio, pois que espectrais, e não são vistos facilmente, por vezes interditados: é na sutileza literária, na poética de uma geração, que se verificam as experiências indizíveis do ser, instransponíveis para a linguagem cotidiana, mas mimetizadas pela experiência artística ou pelo relato suprimido de memória do dia a dia de relógio de ponto ou de pulso.

Ao lado das grandes obras que são citadas pelo articulista em seus textos, há atrizes e cineastas e escritores. Personagens que andam em paralelo com as questões caras ao país, alguns diretamente, politizados, outros mais à distância, vistos como alienados por alguns, ainda segundo o biógrafo. Castro aponta os cineastas Glauber Rocha, Ruy Guerra e Cacá Diegues no cinema; e e Carlos Heitor Cony na literatura.

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Cinquenta anos depois, como propõe Castro, caberia reflexão não apenas no óbvio ululante sobre os idos de primeiro de abril de 64 e o drama de cruz e fardas, mas também no que a memória às vezes custa rememorar. Ao lado da política e dos políticos, e das questões socioeconômicas, na música, no cinema e na literatura sobreviveriam testemunhos e testemunhas igualmente “valorosas” para a compreensão do Brasil de cinquenta anos atrás. Na literatura nacional, entre os citados pelo biógrafo em seu artigo, um desses personagens que a memória custa recobrar é sobre o mineiro Walter Campos de Carvalho.

Finalmente, o sujeito-autor desconhecido Walter Campos de Carvalho. Inclusive, quem é Campos de Carvalho?

Castro inclui Carvalho em sua lista, já que em abril de 2014, uma das obras de Carvalho, a última delas, também comemora meio século nesse ano: O Púlgaro Búlgaro. A relação do escritor, no entanto, com o regime que se seguiria não se dá de maneira direta - Carvalho era avesso a manifestações públicas e às vezes a qualquer tipo de sociabilidade. Sua obra, no entanto, por vezes mal compreendida e vista como maldita pode recuperar, contudo, bastante do cenário social brasileiro acerca de suas questões espectrais, além de avançar em outras mais, nem sempre temporalmente demarcadas. Ela se insere não só no contexto daquela época, já que as peças literárias também se relacionam com outro ideal de espaço comunitário, mais universalista, atemporal e contemporâneo. E a literatura de Carvalho colocaria isso em evidência a cada capítulo de sua literatura de margem, ou seja, aquilo que é demasiadamente humano, acerca de outras ditaduras pouco rememoradas, humanas, universais, infinitas, não necessariamente demarcada pela geografia ou pela história oficial dos vencidos.

A obra completa de Campos de Carvalho, composta de quatro romances (por ele reconhecidos), causam estranheza assim como é natural se assustar frente aos fantasmas que nos obcecam ou com sujeitos que não estão usualmente entre aqueles de nossos círculos de segurança. Estranheza que começa logo pelos títulos jocosos, provocadores, curiosos ou absurdos. A saber: A Lua vem da Ásia, A Vaca de Nariz Sutil, A Chuva Imóvel e O Púcaro Búlgaro.

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Ademais, o texto do escritor mineiro não é de fácil assimilação para uma leitura que se pretende analítica: desconstruir parece ser a premissa maior do narrador que se divide em quatro romances e em diversos e insólitos personagens recriados constantemente. Há um elenco de personagens estranhas, “loucas”, “esquisitas”, amalucadas que se travestem de diversas genealogias, com nomes que se alternam assim como a personalidade escorregadia e sensível entre os infinitos espaços de narração, ora fantasiosos, ora geograficamente demarcados. À literatura carvalhiana, pouco importa diferenciá-los da realidade. Enredos que são contados em fragmentos e se colocam abruptamente no texto, sem fim nem começo, e aparentemente sem porém nem porvir: são blocos, segmentos narrativos, que brotam à maneira do sentimento e do desejo de nossos narradores. Em meio às digressões sobre o cotidiano, o sujeito de Carvalho nos enreda por uma trama densa e desconexa, através de sua linguagem política e transformadora de fazer um testemunho de seu caos existencial.

Num trecho de A lua vem da Ásia, a personagem do livro nos fala sobre o lugar onde vive e sua visão própria de mundo e da realidade em sua volta, tanto pavilhão de detentos quanto front de guerra em andamento, ou até mesmo um hotel de luxo:

O que me parece aliás inconcebível, neste hotel, é a separação arbitrária que fazem entre homens e mulheres de ambos os sexos, não nos permitindo nunca, ou quase nunca, ver o que se passa no pavilhão que fica à esquerda da minha janela e onde, a julgar pelas vozes, deve reinar uma alegria tipicamente feminina – entremeada, é bem verdade, de um ou outro grito de pavor. Não fossem as empregadas do hotel, que são muito delicadas mas nem sempre bonitas, e nem sei como haveria de arranjar-me um dia para contar aos meus amigos, lá fora, as muitas aventuras frascárias e sentimentais que sem dúvida ainda estão por acontecer- me no futuro. Penso que mais uma vez é o caso de formular o meu mais veemente protesto contra a maneira estranha por que nos vêm tratando, a todos, neste hotel que nem sequer um nome decente tem, ou se tem não é do nosso conhecimento nem consta das colchas e das fronhas que nos dão para dormir. (2005, p.45)

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Em termos de estrutura, se assim for permitido e for interesse pensar, no texto de Carvalho, os enredos se desenrolam temporalmente na medida do fluxo de memória esquizofrênica a que se assemelham as lembranças dos narradores: no primeiro livro, por exemplo, A Lua vem da Ásia, geograficamente, a trama se desenvolve do Brasil à Europa, e novamente para a América do Sul, às vezes em um mesmo dia ou em uma mesma tarde ou manhã.

No segundo, A Vaca de Nariz Sutil, as memórias mal resolvidas de um ex- combatente conduz o romance para locais reais ou imaginários, forjados partir de episódios de trauma e glória ressuscitados nos meandros da memória e do pensionato onde mora a personagem. Enquanto isso, as personagens transitam em constância inclusive entre identidades sociais, sexuais e de estados de espírito.

Assim como recontar hoje a ditadura militar no Brasil é também observar nesses romances fantasmas atrás de ombros daqueles que posam em retratos oficiais, reler a literatura carvalhiana é se deparar inevitavelmente com um universo mais amplo do que o de época, que o da fotografia que ilustra o verbete de Campos de Carvalho nas (poucas) antologias sobre ele. É também um fantasma inaudito, porque costuma acompanhar outros pares e tipos como o seu, feito um carma de exclusão herdado pela vida. Não foi por acaso que o mineiro pôde escrever em uma época como aquela, tão conflitiva e ao mesmo tempo tão hipócrita com o que o desenvolvimento acelerado das metrópoles deixaria à margem da convivência e da conveniência.

Carvalho, aliás, foi por muito tempo um renegado: sua obra era vista como pequena, cômica ou pornográfica. Maldita, enfim, restrita a um círculo pequeno de iniciados e de pouca importância. Ele viveria por escolha recluso, no ostracismo, dado a poucos encontros, quando muito, com pessoas restritas ao seu círculo de relações e confiança de sempre. Só nunca renegando mesmo os seus passeios pelo bairro de Higienópolis, em São Paulo, onde passaria seus últimos dias, e morreria ironicamente em um de seus caminhares de rotina por lá. O mesmo Ruy Castro, um desses poucos que conseguiram ouvi-lo sobre a vida e a literatura, em um perfil sobre o autor na extinta revista Manchete em 1968, em texto chamado de A arte de ser maldito, traz um relato de Carvalho

49 que permite compreender um pouco as suas peculiaridades do sujeito e de sua literatura.

Castro começa seu texto logo com o dizer de Carvalho que conseguiu registrar, pensando quem sabe em uma ideia central para se compreender melhor aquele personagem curioso e confuso que seria entrevistado por ele, já que aos jornalistas, caberiam especulações dessa natureza: “Até os 40 anos fui um imbecil completo: lia Anatole France, Voltaire, Stendhal. Depois, descobri que a gente precisa esquecer tudo que se aprende nos livros”. (Revista Manchete, 1968)2

O comentário irônico e de efeito dado por Carvalho esconde as sutilezas de sua própria literatura, vista como maldita por Castro em seu texto, relembrando alguma das pechas de que gozaria o autor mineiro a respeito de sua obra literária. Segundo o biógrafo, “um romancista a quem se convencionou chamar de maldito”.

Seria preciso desaprender para aprendê-lo; seria necessário esquecer para apreendê-lo. Revisitar, assim, a tal pecha de maldito, para compreender melhor as razões disso, ou ao menos, a experiência que faz com que o autor mineiro carregue essa marca por sua vida e depois de sua morte. Por trás do enciclopédico e noticioso acerca de Campos de Carvalho, ou ao lado do figurativo, como nas poucas imagens que há do mineiro, há espectros refratários a leituras rasas e imagens de alta resolução, pois são indefiníveis e espectrais; naturalmente invisíveis – o indizível, o que há e não há. Especular sobre eles é perder-se numa imensidão de contrapontos sempre desconfortáveis a uma linearidade narrativa como pretensão de linguagem.

Segundo Castro, ainda sobre a personalidade “real” e arredia de Carvalho: “Na vida real, um homem amargurado, de olhar duro e sofrido, que tem a fama de não dar entrevista, de não receber ninguém em sua casa, de passar a maior parte do tempo trancado em porões, sem nunca chegar à janela”.

2 O texto em questão foi encontrado em um blog sobre literatura, num rasurado fac- símile da página publicada, sem que pudesse ser aqui referenciado de outra forma, da cópia original. Ver anexo II. 50

Seria então Carvalho personagem de si mesmo? Pelo que registra em sua literatura, questioná-lo sobre isso parecia patético e risível. Sua obra responderia por ele, ainda que respondesse coisa alguma que fosse direta, explicável, ou relevante para perfis biográficos. Seu interesse é o desinteressado, que o repórter encarna aqui como inimigo dessa dinâmica fluida e questionadora da personalidade de Carvalho e no caso, também a de seus personagens e de sua literatura. Em seu primeiro livro, aliás, o personagem de Carvalho de muitos nomes sempre ironiza os discursos de opinião pública, como o de jornais e cartas ao leitor, e outros gêneros de discurso institucionalizados.

Agora sobre a obra precisamente, que caminha ao lado do excentrismo do autor em vida, algumas leituras apontam claras influências das escolas surrealistas, a saber, o predomínio do onírico, do delírio e de técnicas como a da escrita automática. Carvalho costuma referenciar autores dessa literatura, não por acaso. Mas isso não seria suficiente para lê-lo como se deveria, meramente surrealista e cheio de humor. Na intimidade, a leitura da obra do mineiro desvela outros caminhos, nem tão simples, diretos ou realistas, muitos menos surrealista apenas, como se tudo se justificasse pela “ilogicidade” do onírico ou do delírio.

Também não por acaso, há uma recorrência nos livros de Carvalho de uma imagem refratária, às vezes dupla, ambígua, de ordem “imaterial” do espírito, que manifesta a dualidade dos sujeitos narrados, divididos em seus problemas existenciais, de Deus e o Diabo, céu e inferno, pecado e salvação, o outro, o gêmeo.

Em A Chuva Imóvel, o seu terceiro romance, ouvimos o relato de André, que é irmão gêmeo de Andréa, e que nos faz cúmplices de seu desejo incestuoso pela irmã e de sua melancolia de existir na dúvida, na ambiguidade. Desejo e martírio que o persegue, que o assombra, que o leva ao conflito com sua outra parte, que é sua, de nascença e que é inatingível pelos códigos de ética e de moral, pelos movimentos maquímicos redundantes que obsidiam sua psique. No meio dessa narrativa, as identidades do narrador André se ampliam e se confundem com a de sua irmã gêmea, seu oposto tão igual a si, mas de outro

51 sexo, com o agravante de ser objeto de seu desejo amoroso e sexual inalcançável.

No caso de André/Andréa, além das leituras de transsexualidade possíveis, percebe-se que o testemunho do narrador evidencia a repressão do espírito e do corpo nas sociedades, naquilo que aflige o comportamento desviante da ordem comum. Tema que é constantemente denunciado pelos locutores das histórias de aparência desconexa na literatura carvalhiana, encarcerados em manicômios, pensionatos ou na própria obsessão e dor que está em tudo e todos, enclausurada em si mesma.

Além dos enredos e personagens, até na linguagem do romance surgem alternativas de rompimento com os mecanismos invisíveis de dominação e silenciamento e conjuração definitiva de fantasmas e outros assombramentos: pela gramática própria e gêneros discursivos próprios a que recorrerem os narradores, e a moral também pessoal, “amoral”, por assim dizer, como gestão autônoma do espírito, independente do tributo que se possa pagar a posturas de tradição estranhas.

No último romance, O Púcaro Búlgaro, o mais claramente “piadista” deles, mas nem por isso menor, uma expedição que jamais se organiza com destino à Bulgária, coloca em cena diversas personagens estranhas ao cotidiano em sociedade, que se unem pelo mesmo projeto de viagem (que nunca se realizaria). As recorrências e as similitudes com os outros livros se dão aqui pelos “absurdos” da narrativa, na linguagem e na enunciação, mas também por outros aspectos “menores” recorrentes: seriam sujeitos loucos aqueles? Estariam conspirando alguma fuga dos espaços distópicos que os castram e os impedem de viver em absoluto a auto-gestão de seus corpos e espíritos, que no caso poderia ocorrer na Bulgária mítica do púcaro de museu?

Afora essa solução poético-sideral, que ainda continua sendo a minha, não há porque esquecer aqui a dos que desvairadamente procuram ver na Bulgária o inatingível país dos antípodas, ou o não menos inatingível terceiro hemisfério, ou ainda o sétimo ou o oitavo continente, ou aquele reino de Cólquida onde está e sempre esteve o Tosão de Ouro, ou o Paraíso Terrestre do Gênese, ou o Sete no Dado, ou o Sangri-La com que sonham os insones, ou o Cabo Sim em vez do Cabo Não – de qualquer modo a TERRA NOBIS IGNOTA de que sempre falaram os

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cartógrafos antigos e que forçosamente terá que ser muito mais bela e humana do que esta Terra aterradora na qual vivemos desterrados e onde seremos um dia finalmente enterrados.

(O Púcaro Búlgaro, 2005, p.346)

A Bulgária, no fim, é o trajeto final, utópico, daquele trem que aparece nos quatro romances anteriores: fuga no primeiro, o embarque no segundo, parada e desembarque no terceiro e projeto definitivo de libertação e viagem no último, para a desconhecida e transcendente paragem búlgara.

Além de Carvalho, claro, muitos foram os autores que ficaram desconhecidos durante a ditadura militar e depois dela, à força ou pela força de vontade por livre espontânea pressão: “só aparece o que é bom, só o que é bom aparece”, diria Guy Debord em Sociedade do Espetáculo, publicado em 1967 e filmado anos depois, a respeito do espetáculo e da lógica capitalista do mérito e do utilitário, que se convencionam totalitários em suas demandas de poder. Porém, são conhecidos os enredos sombrios que subjazem à “revolução” que alguns militares e ufanistas insistem em dizer ao se referirem à ditadura, esquecendo-se de suas vítimas silenciadas.

No caso de Carvalho, não que sua obra representasse uma ameaça mortal como a comunista, já que ele sequer teria sido perseguido pelo regime e assim como seus personagens, demonstrava certa repulsa a política tradicional. A ameaça que guarda a literatura dele é de outra ordem igualmente subversiva, maldita, menor, de potência tão infinita como a própria teoria do comunismo. Daí o desconhecimento e o limbo que lhe coube, impostos pelas ditaduras reais ou imaginárias do cotidiano lógico denunciado por Carvalho, que não são apenas as políticas: são ideológicas, imateriais, do campo metafísico.

É notório que as revoluções, no entanto, não aconteciam, nem acontecem apenas no palco da grande política. Ocorriam por geração espontânea nas microesferas que orbitavam os grandes centros políticos de poder, em territórios nem sem alcançados por esse domínio devastador, como o do espírito e da alma. Nas artes, como na literatura, eram gestadas espontaneamente as suas reais revoluções naquele abril assombrado e tão complexo, como a literatura curiosa e explosiva de Campos de Carvalho.

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Se na política e na economia o que se encenava era o extremo da tradição oligárquica e militarista de nossas raízes coloniais, nas políticas do cotidiano e nas políticas dos sujeitos ditos modernos, se reproduziam outras ideias naturalmente conflitivas, no caso, com qualquer manutenção de gestões autoritárias sobre o corpo ou qualquer discurso intimatório acerca do espírito e das almas do sujeito. Diversos movimentos, como o Maio de 68, os movimentos feministas, os de esquerda, o movimento camponês, os de negros, das mulheres e dos homossexuais poderiam metaforizar as demandas do período, além de infinitas obras artísticas, como as literárias e os livros de Campos de Carvalho.

Por outro lado, se impedidos por alguma razão política ou outra que fosse, seria também no terreno da arte da literatura é que poderia florir a turba de malditos que fosse, as outras revoluções, que sobreviveriam à sua maneira, mesmo que não fossem lidas ou estudadas de imediato. Historicamente mal lidas, mas eternizadas no corpo-palavra de versos de poesia suja, de romance libertário e confessadamente contestador, nos testemunhos e testemunhas que restam em imagens de memória e livro.

A respeito de Campos de Carvalho ainda, tal como os idos de abril daquele ano fatídico, complexo também é o enredo de sua literatura. Como um fantasma que desajusta nosso tempo imediato, o texto de Carvalho se mostra intricado, prolixo, irônico, dramático, nem sempre nos situando frente um lugar e um tempo-espaço definíveis, capazes não só localizar espacialmente ou historicamente as cenas, mas que guiasse com segurança uma leitura linear de começo, meio e fim. Leitura direta que pudesse também, nos enquadrar seu texto a algum momento literário de tradição e de conforto. Oposto a isso e às aflições que se seguem à leitura de seus romances, há interrogações por se fazer a todo momento, quais as de seus personagens sempre em conflito consigo e com seus fantasmas, e com o meio que os atormenta e reprime.

Nas quatros obras de Campos de Carvalho, não seria possível reconhecer ali uma espacialidade crítica ou até mesmo aumentada: são universos particulares, definidos de acordo com a psiquê e com o cotidiano dos narradores. Nesse sentido, seus personagens se situam em uma

54 temporalidade lírica que transcende a sincronia do calendário e do relógio, ou da geografia cartográfica, que localizasse longe e latitudinalmente a Bulgária por exemplo, tanto pela potência dos traumas recorrentes que são ecoados pelo romance, quanto pela atitude pessoal de confronto por se viver contrariamente a uma lógica impositiva nem sempre cadenciada pelas paixões do espírito e pelos desejos do corpo. É pelo relato, pela memória, em um espaço de reclusão, que se viaja e se divaga pelas ideias e pelo mundo desconhecidos. A Bulgária a ser conquistada pelos desbravadores de O Púcaro Búlgaro relembrada por Castro em seu artigo é de foro íntimo, assim como Carfanaum de André em A Chuva Imóvel, o pensionato do ex-militar em A Vaca de Nariz Sutil e as diversas moradas do personagem de diversos nomes de A Lua vem da Ásia. Não se pode encontrá-las nos dicionários ou nos mapas por aí, a não ser na cartografia ou na taxionomia própria que constroem para si, à vontade de seus desejos imediatos ou futuros.

A respeito dos narradores em Campos de Carvalho, aliás, em todos os livros eles se parecem com um mesmo, com um único sobrevivente que testemunha suas memórias e psicologias embaçadas, confusas e não-lineares. Além disso, as similitudes e os conflitos por eles desenvolvidos se arranjam nos livros da linguagem à estrutura, das personagens aos seus conflitos, na forma de um mesmo relato, ainda que sob contextos diversos em cada obra.

Sobre eles, os personagens, apresentam-se ao interlocutor por intermédio de um discurso “esquizofrênico”, com linguagem e gramática próprias, que costuram ilogicamente diversos discursos, entremeado a memórias confundidas com traumas passados e recentes, mais as epifanias de lembranças juvenis. No terceiro livro, A Chuva Imóvel, André, o sujeito autor nos relata sua travessia posterior à chegada em uma cidadezinha do interior: no livro de antes, A Vaca de Nariz Sutil, há um trem nas cenas finais.

A seguir, o segundo parágrafo do terceiro livro de Campos de Carvalho, quando André chega a uma parada por ele desconhecida ou acorda de um sonho lúcido, por um caminho percorrido sobre trilhos:

Quando o trem desapareceu sob o túnel, senti de súbito que estava perdido: chamei-me pelo nome para sentir minha presença, em vão busquei o último cigarro sob o paletó: os

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trilhos, apenas os trilhos por todos os lados. Não era noite nem era dia, as lâmpadas não sabia se estavam acesas ou estavam apagadas, um portão luzia ao fundo e todas as setas se dirigiam para ele. Sentia-me tão lúcido que nem um instante me ocorreu a hipótese de estar sonhando, dormindo, ou mesmo morto: agora as minhas pernas me levavam contra a minha vontade, eu estava a cavalo sobre mim mesmo, era um centauro e meu nome já não formava qualquer sentido: mesmo se houvesse uma parede em frente eu a transporia sem qualquer dificuldade. (p.224)

Em A Chuva Imóvel, percebe-se com a leitura do “diário” de André que os desbravamentos que ele nos relata não vêm de fora, não são de natureza aventureira, nem têm a ver com a cidade para onde ele fugiu e chegou de trem. A jornada íntima de André poderia ser relacionada com todas as demais, divididas na obra completa de Campos de Carvalho, na forma de testemunhos de quatros narradores que se confundem em suas histórias, trajetórias, traumas, conflitos, rasuras e obsessões de corpo e espírito. Conflitos que se evidenciam com a vigilância que os reprime e os enclausura, e que por isso denunciam; pelas anamneses escorregadias e pertinentes aos discursos totalitários e convenientes a ações político-militares em estados de exceção, reservadas aos desviantes como eles.

Desta forma, toda a espacialidade e historicidade com que se possa desenvolver as obras de Carvalho devem se situar para além da geografia cartográfica de tradição ou de verbetes enciclopédicos ou dicionarizados, para longe do linguajar cartorial ou judicial – neste caso específico, Waltinho (como o escritor e dramaturgo Mário Prata o chamava), que se graduaria na área do direito, costumava ironizar sempre, provocador que era na vida e na literatura.

Mais do que psicanálise, ou surrealismo absoluto, o romance do autor mineiro não cabe em si, tamanhas as potencialidades com que se apresenta ao leitor. Por lidar com conflitos maiores, ainda que situados às vezes localmente quando publicados, na cultura de época, eles também parecem significar algo de caráter universal, pelas temáticas humanas sobre as quais busca se debruçar, como é da natureza transformadora da arte e da literatura consequentemente, e também pelos aforismos que são construídos pelo discurso do narrador que desterritorializa seu espaço de pertencimento e sua linguagem narrativa.

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Juva Batela (2004) iria comentar a dificuldade de se pensar a obra de Carvalho frente aos mistérios e pistas falsas que se seguem à leitura dela, por aquilo tudo com a qual ela se assemelha, mais aquilo com a qual ela se diferencia. Segundo ele:

De que maneira, então, olhar para Campos de Carvalho? Autor intimista, romance psicológico, prosa subjetivante – estas categorias devem funcionar a posteriori, como um ponto de chegada, como o produto de uma análise, e não simplesmente como um ponto de partida. Uma prosa poderá ser lida como objetiva e/ ou subjetiva, um romance poderá apresentar-se como psicológico e/ ou social, a depender da intensidade de uma tensão. A tensão brotará de um específico conflito. O conflito é antigo, confunde-se com a própria história das literaturas e das artes, e nós o conhecemos bem: é o herói em trajetória de superar- se a si mesmo apenas na medida em que se torna capaz de superar a sociedade que o oprime. Homem versus homem.3

(2004, p.53)

A contemporaneidade dos textos do escritor mineiro é outro aspecto a se incluir dentro das importâncias latentes dos enredos que ele nos conta em seus quatro livros – ao menos os quatro que ele reconhece. O duplo, o subalterno, o maldito, o sobrevivente, a literatura menor se configuram como algumas das palavras-chave do universo de contemporaneidade que lateja na obra de Campos de Carvalho e que ressoa para além do escuro das cinzas do cárcere real ou imaginário às vezes reservado para os desviantes.

Algumas leituras sobre Campos de Carvalho costumam situá-lo entre autores brasileiros conhecidos por características literárias de suas obras que se assemelhariam com a das produções surrealistas, como as francesas, ou romances subjetivantes como os de Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Teles, segundo Batella.

É pouco e inverídico perceber tal literatura como manifesto exercício de um tipo à brasileira de maneirismo surrealista ou de escrita intimista. Nas sombras é que o espectro de Carvalho se esconde, feito os demais que vivem às escuras e para os quais ele dá voz, longe felizmente das vistas viciadas, míopes de tanto enxergar, pelo “efeito de viseira”, como o que hoje se nota a respeito da ditadura.

3 Grifo do autor. 57

Carvalho teria dito: descobriu em vida que seria preciso esquecer para aprender. Não seria mera casualidade que mais de cinquenta anos depois, Castro recupere em um mesmo texto diversos momentos da história do Brasil, como o cenário cultural daquele ano pré-regime militar. Há a probabilidade dessa miopia ter sido mantida por esse tempo, mesmo cinquenta anos depois, sem que se pense em mudança a curto prazo. Desaprender, desta forma, seria imprescindível para apreender o que teria ficado escondido do dicionário e da política. E aprender, se interessar.

Espectro, Marxismo, Ditadura e Literatura e Campos de Carvalho estão mais próximos do que se possa imaginar, assim como reconhecer Carvalho como um escritor importante e bastante atual e contemporâneo, após se ultrapassar despudoradamente a estranheza do título de seus livros e da perversão de linguagem e temáticas de suas histórias. Romances, cabe dizer, que no fim não se mostram nada surrealistas, nem perversos, do ponto de vista da humanidade e do homem em sociedade, mero absurdo ou delírio artístico. Antes são instrumentais ou potências de linguagem. Melhor: são fantasmas destes e desses homens.

Mas qual relação, finalmente, haveria entre eles? De que fantasmas se fala? De que sombras? Em que medida se relacionam?

Enfim, quem é Campos de Carvalho e quem é que tem medo dele e de suas assombrações “imorais/amorais”?

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Capítulo 2. A literatura de Campos de Carvalho e a literatura maior

As sobrevivências, por sua vez, concernem apenas à imanência do tempo histórico: elas não têm nenhum valor de redenção. E quanto a seu valor de revelação, ele nada mais é do que lacunar, em trapos: sintomal, em outras palavras. As sobrevivências não prometem nenhuma ressureição (haveria algum sentido em esperar de um fantasma que ele ressuscite?) Elas são apenas lampejos passeando nas trevas, em nenhum caso o acontecimento de uma grande “luz de toda luz”. Porque elas nos ensinam que a destruição nunca é absoluta – mesmo que ela fosse contínua -, as sobrevivências nos dispensam justamente da crença de que uma “última” revelação ou uma salvação “final” sejam necessárias à nossa liberdade.

Sobrevivência dos Vagalumes de Didi-Huberman

Como se um leigo pensasse de repente em literatura, diversas imagens são sugeridas em seu imaginário, também social, relacionadas ao cotidiano dessa arte na sociedade do Ocidente, ao longo de sua história. É comum pensarmos nela hoje, ontem e sempre, por exemplo, como refúgio ou escapismo, ou mero entretenimento; ou coisa de gente culta ou até mesmo de gente “à toa”, em um meio supostamente iletrado em que não há prestígio significativo com a escrita e a leitura. Outra ideia comum seria a de “disciplina”: conteúdo humanístico exigido em exames pré-vestibulares ou em jogos de tabuleiro, que existem, cabe dizer, a partir de um pressuposto essencialista vulgar do homem entremeado a sociedades modernas. Sendo assim, nesse sentido, o conhecimento de ciências humanas e exatas, algo imprescindível para uma cultura desse tipo, pragmático-científica, sobretudo se pensada sob a ideia marxista de acúmulo ou uma ideia de valor.

De qualquer maneira, mais uma imagem que nos sobrevém acerca desse universo seria a literatura memorialística, de suspiros e saudosismos, de texto de caráter intimista, que costuma povoar também o imaginário acerca de literatura.

Há outras ideias, no entanto, que perceberiam um caráter mais social e coletivo para ela, quando não outro mais politizado, cultural. Poderia se pensar ainda em literatura como uma instância cultural bastante “poderosa” e relevante, na

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medida em que se produz com ela uma “revelação” ou um “deslocamento”; e que ela só existe em um espaço “terceiro”, deslocado e distanciado, bem mais universalista do que intimismos de um sujeito lírico podem deixar de entrever.

Enfim, sendo as naturezas da literatura algo que se ocuparia com o universo de todas as disciplinas de ciência, o que fica claro em tais repercussões do senso comum é a necessidade primitiva de se contar e ouvir histórias; de se relatar histórias/Histórias/estórias, na mesma medida em que outras são construídas a partir dessas narrativas primeiras que são herdadas, além das consequências sociais, políticas e culturais que são demandas desses eventos da experiência humana (a narrativa): na tradição canônica que elege seus heróis e nos exilados de parâmetros tradicionais de valores e morais.

Em artigo recente publicado no jornal Folha de S. Paulo, o cronista e biógrafo Ruy Castro, novamente relembra alguns personagens da sociedade metropolitana e cosmopolita no país, nos idos do fatídico ano de 1964, em plena tensão política por que passava o Brasil, que iria descambar finalmente no famigerado golpe civil-militar. Entre esses, do cinema, estaria Glauber Rocha e seu Deus e o Diabo na Terra do Sol e Ruy Guerra (Os Fuzis). Na música, Vinicius, Nara, Carlos Lyra e Zé Kety. Já nas rodas de literatura, citados por Castro, versava-se sobre Cony, Lispector e o mineiro “ermitão” Campos de Carvalho.

Em meio aos “remembramentos” inevitáveis do regime militar, como os que ensaia o articulista, Castro dirá que dificilmente o momento atual se compara com aquele, pré-golpe, agora 50 anos depois. Havia, segundo ele, um “zum zum zum” cultural que disputava atenção com “o crescente e sinistro rumor de sabres”.

Exageros de cronistas à parte, na mesma medida em que se conspirava aquele regime militar, havia claramente uma efervescência tão ou mais em evidência no cenário cultural da época, que irromperia pelos meios de produção e divulgação de arte. Diversos artistas seriam vistos como “divisores de água” ou, de outra forma, aqueles que acabariam por consolidar uma imagem própria ou diferenciada do que se pensava como cultura e arte até então, e da literatura no caso.

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Heloisa Buarque de Holanda iria construir um relato daqueles tempos, em uma obra sua, Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde 1960/70 (2004), em que define o cenário criativo e poderoso de época infinita, da seguinte forma:

Por sua vez, a produção cultural, largamente controlada pela esquerda, estará nesse período pré e pós-64 marcada pelos temas do debate político. Seja no nível da produção em traços populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da modernização, da democratização, o nacionalismo e a “fé no povo” estarão no centro das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética. (2004, p.21)

O cotidiano daqueles dias, inclusive o internacional e primitivamente globalizado, contribuiria também, cabe dizer, para que diversas ideias fossem intercambiadas e eventualmente transmutadas na obra de um desses personagens que cita Castro em seu texto, durante o momento político e cultural efervescente e revolucionário do país descrito por Hollanda, lembrando eles de maneira que nos convém esse outro Brasil de 1964.

Campos de Carvalho, ou Walter e todo o resto, citado por Ruy Castro na “grande imprensa”, é um escritor bastante representativo para se pensar não apenas o Brasil de época, como igualmente a literatura que emergiria dali e que se construiria, como outras imemoriais, de posicionamento crítico a parâmetros essencialistas acerca da criação artística e da existência.

As quatro obras reconhecidas pelo escritor, além de seus textos dispersos, dialogam criticamente com uma sociedade similar àquela do Brasil de “cinquenta anos em cinco”, “rico”, “desenvolvimentista”, ou com qualquer outro espectro de ingerência de instituições fantasmáticas da política e da economia internacional ou de grande história de cunho eurocêntrico: as posturas tradicionalistas da história recente – não apenas as econômicas – manteriam as desigualdades sociais, que persistiam nas diversas instâncias de linguagem nacional e cultural em que os sujeitos devem se (re) organizar cotidianamente.

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O passado é agora desconstruído, acerca do progresso e da modernidade que tanto se vendia pela história recente dos países colônia pelos colonizadores de primeiro mundo. A lógica progressista costuma maquiar o outro lado do desenvolvimento científico, que nem sempre é benéfico para a sociedade, pelo que se traduz, nessa mesma sociedade, como comportamento científico: posturas de imposição, conflito de ideias.

Para Edgar Morin, em Ciência com consciência, acerca do pensamento científico, há esse outro lado a se pensar na história do desenvolvimentismo do século passado, sobretudo no que diz respeito aos perigos que esconde. Em seu texto, Morin discute, numa conclusão de raciocínio sobre esse assunto:

Enfim, sabemos cada vez mais que o progresso científico produz potencialidades tanto subjugadoras ou mortais quanto benéficas. Desde a já longínqua Hiroxima, sabemos que a energia atômica significa potencialidade suicida para a humanidade; sabemos que, mesmo pacífica, ela comporta perigos não só biológicos, mas, também e sobretudo, sociais e políticos. Pressentimos que a engenharia genética tanto pode industrializar a vida como biologizar a indústria. Adivinhamos que a elucidação dos processos bioquímicos do cérebro permitirá intervenções em nossa afetividade, nossa inteligência, nosso espírito. (2005, p.18)

Como consequência, há assim as “violências simbólicas”, que negligenciam nas instâncias de manifestação de cultura e linguagem os registros e existências desviantes do discurso totalitário, supostamente uníssono e inequívoco. Por outro lado, há uma potência dolorosa e infinita que desvelada, no caso aqui de Carvalho, em literatura menor, desestabilizadora e perigosa.

Continuaria Morin, sobre a ciência nem sempre “com consciência”, efetuada pelas performances históricas disciplinares. No seu livro, nos conta sua leitura política do progresso científico, que existe desde então para o bem ou para o mal:

Mais ainda os poderes criados pela atividade científica escapam totalmente aos próprios cientistas. Esse poder, em migalhas no nível da investigação, encontra-se reconcentrado no nível dos poderes econômicos e políticos. De certo modo, os cientistas

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produzem um poder sobre o qual não têm poder, mas que enfatiza instâncias já todo-poderosas, capazes de utilizar completamente as possibilidades de manipulação e de destruição provenientes do próprio desenvolvimento da ciência. (Idem) Os personagens de Carvalho, por exemplo, não por acaso são sujeitos que se veem constantemente em confronto com esse dia a dia, ladeados ainda pelos fantasmas pessoais, que parecem forjados durante as circunstâncias de vida no front, quase sempre marginalizados em sanatórios, isolados em pensionatos, vagantes pelas ruas tortas, divididos em papéis sociais múltiplos, de genealogias infinitas, de constante reflexão sobre o status quo de vigilância e punição para alguns poucos e (des)afortunados eleitos.

Castro questionava-se sobre o tempo de antes, comparando com o de agora, pensando que o segundo não se assemelharia tanto “ao que fervilhava” nos três meses que antecederam o primeiro, o primeiro de abril de 1964, o dia da mentira da convenção, como o ambiente cultural e político da época como um todo, descrito em imagens também por Hollanda. Desta forma, caberia uma reflexão acerca do que se movimentou ao longo desses cinquenta anos, bem como inconstâncias e eventuais permanências ou deslocamentos desses valores e posturas pela sociedade, mentirosos ou não, ressonantes no hoje em dia. Se há fantasmas, portanto, há inevitavelmente imagens que se repetem e que se impõe para o confronto com o estabelecido, com as vistas viciadas pela viseira na nossa cabeça.

Ainda acerca de literatura, de outro modo, mesmo que se fale de movimentos característicos da sociedade como a conhecemos, ao menos a ocidental, percebe-se curiosamente que esses rituais literários “menores” e “engajados”, essas narrativas sem tempo nem lugar, persistem por algumas razões, algumas políticas e econômicas, e todas elas culturais, históricas e sociais em primeira instância; ou seja, infinitas sempre. No entanto, nem todos os sujeitos podem usufruir disso, não podendo forjar a literatura, à sua maneira, enquanto registro, seguindo desconhecidos da memória oficial: se há a ideia essencialista do texto literário, como o referencial de valor (cânone), há que se preservar tal natureza, na medida em que se constrói ou se mantém modelos,

63 e esses o são repetidos, das mais diversas formas, tanto (no) autor quanto (na) obra. Tudo o mais é sombra, fantasma, “coisa”.

Há um espaço que é de privilégio, e outro de margem, por razões escusas que Morin apresenta como cenário da sociedade contemporânea em seu livro, além da ciência, mas que são efeitos/causas da mesma, na forma de “progresso”: “progresso inédito dos conhecimentos científicos, paralelo ao progresso múltiplo da ignorância; progresso dos aspectos benéficos da ciência, paralelo ao progresso de seus aspectos nocivos ou mortíferos; progresso ampliado dos poderes da ciência, paralelo à impotência ampliada dos cientistas a respeito desses mesmos poderes.”. (Ibidem)

Seria assim a natureza viciada e excludente do arquivo canônico, como se arte coubesse em uma estrutura que a “restrinja” para si, única e uniforme, de se catalogar. A permanência, na cultura, de discursos sobreviventes que seguem a assombrar as existências conflituosas dos sujeitos, colocam em questão os institutos de dominação através da linguagem e do poder que se esvai através dela, por diversos espaços, que a tudo contamina, e que censura seu contraponto.

Da mesma maneira, naturalmente, alguns textos de origem marginal seriam escamoteados do cânone, pelos desvios que apresentariam em suas “essências”, às vezes nenhuma que “preste” à assepsia, em comparação com essas “essências” devidas. Além, claro, de injustamente mal lidos pela história e pelas instituições e sujeitos pensantes a quem isso lhes cabe. Mas sobreviveriam, no entanto, transformados, como é da sua natureza a pulsão de transmutar um espaço de restrição por outro mais flexível e confortável. Daí, por exemplo, Castro pensar na não-continuidade dos movimentos de outrora, na atualidade. Talvez, por um lado, a persistência e a vitória dos valores mais tradicionais frente aos liberais; por outro, um cenário realmente diferenciado daquele de 1964, que não poderia ser facilmente ilustrado como querela entre comunistas e democratas, os de esquerda e os que vivem à esquerda da sociedade e os que andam direito à direita.

Leyla Perrone-Moisés, em Altas Literaturas (2009), reflete justamente acerca dessas dinâmicas da literatura ao longo de sua história, em especial aquela em

64 que se pensa a crítica e a recepção das produções literárias. Segundo a teórica, esses rituais de tradição se manteriam de maneira inevitável. No caso da crítica literária, a sua relação de trabalho com a literatura já delimitaria diversos “pré-julgamentos”, ou escolhas, em detrimento de outros registros. Esse evento, desta maneira, faz parte da ritualística da universidade de ideia tradicional, nas suas performances de leitura e de leitura do conhecimento comum e particular, pela ótica da ciência empírica, o “empirismo”, a máquina de guerra, como lembraria eventualmente Morin.

Segundo Perrone-Moisés, acerca do valor e do julgamento nesses comportamentos, como dinâmica natural da crítica literária:

Ora, se um discurso sobre as obras literárias continua a existir, seu autor não pode evitar a questão do valor e o exercício de julgamento, mesmo que este seja tácito. Assim, juízos continuam sendo emitidos, mesmo quando se evita pudicamente a explicitação de seu fundamento, isto é, suas leis. Qualquer que seja o “método de análise”, cada vez que uma obra é eleita por alguém como objeto de discurso, essa escolha já é a expressão de um julgamento. (p.10)

O problema em questionamento da/na crítica e sua tradição, desta forma, diante do que nos afirma Perrone-Moisés, encontra rasura em sua origem e se realiza em seus métodos de trabalho e de tradução insuficientes para abarcar a polifonia dos discursos em literatura, quiçá os de cultura como um todo. A escolha e o julgamento se darão, inevitavelmente, no exercício da escrita e nos posicionamentos e comportamentos que são delineados a partir disso, em âmbito literário – como a inevitabilidade de se eleger alguns, em meio a outros, infinitos, com significativas e relevantes importâncias em termo de Memória ou Literatura, a partir de parâmetros nem sempre autônomos, às vezes repetidos pelo uso e pelo valor. Escolhas que, por outro lado, significam também negligência para o resto, que não caberia em parâmetros pré-estabelecidos, puristas e definitivos, convenientemente políticos.

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A história da literatura, felizmente, sempre contou em paralelo com o espírito de enredos mais plurais, mais democráticos, em que persistem literaturas “menores” e de “minorias”, graças à natureza da literatura enquanto arte, enquanto manifestação social que porventura chamamos de cultura: tanto registro, memória, manifestação cultural; quanto, de outra maneira, todos esses signos, mas pensados numa ótica de sobrevivência e permanência, de valores sobre a existência e a existência sob alguns valores.

Sobrevivência na persistência de registros outros, que não os oficiosos, que “sobreviveriam”, iriam “persistir” e, consequentemente, “permanecer” na história da humanidade, às vezes marginalizados das narrativas heroicas da Grande História, irrompendo ainda sim em um dia qualquer, como uma iluminação epifânica que transfigura toda a trajetória em metafísica ou em drama a ser encenado no palco, na literatura.

Suas histórias, a desses sujeitos que não cabem à “normalidade”, são sim marginais e marginalizadas, pelas contingências diversas da sociedade sempre em conflito e constante negociação, mas isso não as diminuiria, em grandeza, ou relevância histórica, literária, cultural.

Quando se pensa em literatura de minoria, a única pequenez de que se pode falar, é aquela do sujeito leigo que se põe a pensar literatura e define o marginal como algo menor em número e valor em relação a uma maioria, a de número maior e portanto aquela que goza institucionalmente de maior valor e legitimidade. Reconhecê-la menor frente a maioria que se faz dominar, não é o mesmo que desvalorizá-la por isso, dentro da lógica tradicional de cânone e valores de tradição arraigados pelas elites dominantes: é percebê-la como sobrevivente e necessária para história da arte e da humanidade, ainda que “recolhida” em menor número, pois a suplementa como fenômeno da experiência humana, na literatura e na cultura. Enquanto uma literatura maior exemplifica seus valores morais e de classe, aquela menor não contem em si as contradições todas que se impõe na linguagem e na ideologia que se utiliza dela; a mesma certeza do todo de um, é a angústia da falta e ausência em outro.

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Para Perrone-Moisés (1998), por exemplo, servindo como sugestão de resposta a questionamentos provocados antes, a partir de Castro, o que haveria nos dias de hoje é um questionamento maior e constante dessa tradição crítica que se segue dentro da literatura e da sociedade em geral, no que ela percebe como pós-modernidade, seja o que ela for, na medida em que se amplifica as imagens dos fenômenos de cultura da humanidade, com a democratização do conhecimento.

Assim, haveria espaço no discurso contemporâneo, entretanto, para que as discussões acerca das incongruências dessas posturas sejam renegociadas e reapreciadas e portanto viabilizadas de alguma forma pela sociedade por meio da luta. Tanto pelos avanços reais com a comunicação ou com as sociedades e seus regimes político-econômicos, como é claro no cotidiano do século XXI, quanto pelo que se desnuda daí, qual os processos mecânicos de controle e de sobreposição das instituições de poder. Comenta a autora no trecho que segue:

O exame dos padrões sobre os quais se esteiam as escolhas dos escritores-críticos modernos levará a uma discussão sobre a questão dos valores na pós- modernidade. A modernidade se caracteriza, entre outras coisas, pelo conceito de “projeto”, que implica a questão da escolha e do valor. Na pós-modernidade, a recusa da unidade, da homogeneidade, da totalidade, da continuidade histórica, das metanarrativas, impede, em princípio, o julgamento estético, e torna a teoria e a crítica improcedentes. Entretanto, o julgamento continua a existir, na medida em que esses contravalores tendem a positivar-se (em oposição aos valores da modernidade) e a servir de base ao estabelecimento de novos cânones. (p.16)

Sobre as literaturas pouco conhecidas e lidas de nossa cultura, nesses discursos do senso comum sobre o outro que não o da propaganda, não raro fogem na sua concepção sobre elas à complexidade pluripontencial de uma minoria. Sobre literatura marginal, textos de “minoria”, a preocupação em relevo é com o caráter inovador desses textos bem como com a impossibilidade imanente nesses escritos, de serem traduzidos para uma

67 gramática banal, ou uma leitura simplória que os pensaria apenas como um registro histórico de tempo, linguagem ou até mesmo de cultura, raça ou folclore; enquanto manifestações estanques, isoladas entre si, passíveis eventualmente de verbete de enciclopédia. Caso contrário, de cima para baixo, a leitura desses textos não se efetuará da maneira que se pretende minimamente nua e libertadora, como no ato íntimo de leitura, pois que na origem rasurada desses textos estranhos quanto a valores hegemônicos, não há preocupação com tais parâmetros de grande literatura ou de arte maior, por assim dizer, para não falar de escatologias. Há antes uma demanda de deslocamento e desterritorialização, sobretudo de linguagem. Aliás, seria um contrassenso partir como princípio norteador apenas as perspectivas restritivas da tradição que os renegaria e os fizesse fantasmas pela história da humanidade.

A respeito da literatura menor, em Kafka: Para uma literatura menor (2003), Félix Guattari e Gilles Deleuze tentam ensaiar de uma maneira mais justa, esses registros literários de escritores que nem sempre ocuparam espaços dignos de funcionários de palavras e letras. Seja porque foram de fato perseguidos por suas literaturas insólitas e malditas, seja pelas temáticas polêmicas que lhe servem de infinito leitmotiv e de motivo de isolamento nas prateleiras de livros das escolas e das livrarias, ou ainda por suas posturas desviantes de artistas, enquanto autores, de sobrevivência na rotina caótica das cidades.

Na leitura social dos franceses, há uma faceta coletiva nos porquês de um romance “menor”, por exemplo. Assim, fica bem clara a relevância da literatura enquanto linguagem possível e, portanto, mecanismo criativo de tecnologia de linguagem aventado ao longo da evolução humana; e também enquanto discurso e representação social, sob fundamentações coletivas nas suas razões de ser, suas origens, suas linguagens, suas estruturas, suas intermitências críticas e suas potências infinitas. As literaturas menores também são dignas de leitura, como texto e imagem que ressoam poderosos por meio delas, e contêm a mesma potência e infinitude de arte ou da dita literatura maior que seja, pois são produzidas na realidade social e humana que as constrói, que define. Como sugere Perrone-Moisés, um espaço de

68 produção narrativa e de leitura que constrói seus próprios cânones, no caso aqui da literatura menor, desestabilizando o texto maior que se impõe.

Na leitura de Guattari e Deleuze, por exemplo, a literatura menor se apresenta, como alternativa de linguagem e comunicação para representações de imagem que não as dominantes, através de algumas características básicas que poderiam ajudar na compreensão de seus significados para uma sociedade em que a literatura maior seria o padrão de moral literária e civilização. Prosseguem eles, acerca das categorias que envolvem tal literatura estranha à maioria:

As três categorias da literatura menor são a desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato político, o agenciamento coletivo de enunciação. O mesmo será dizer que “menor” já não qualifica certas literaturas, mas as condições revolucionárias de qualquer literatura no seio daquela a que se chama grande (ou estabelecida). Até aquele que por desgraça nascer no país de uma grande literatura tem de escrever na sua língua, como um judeu checo escreve em alemão, ou como um Usbeque escreve em russo. Escrever como um cão que faz um buraco, um rato que faz a toca. E, por isso, encontrar o seu próprio ponto de subdesenvolvimento, o seu patoá, o seu próprio terceiro mundo, o seu próprio deserto. Houve muitos debates sobre o que é uma literatura marginal? Assim como o que é uma literatura popular, proletária, etc.? Os critérios são evidentemente muito difíceis enquanto não se passar primeiro por um conceito mais objetivo, o de literatura menor. (p.41-42).

A escrita menor pensada por eles surge como alternativa, sob “condições revolucionárias”, mas igualmente legítimas, de empreitada de comunicação artística ou não, a partir de uma cultura que nem sempre pode falar por si, à maneira que gostaria, pelo cerceamento que sofre em suas performances cotidianas. Utilizando-se ela portanto de mecanismos linguísticos e políticos que lhes cabem recorrer para o ofício narrativo, em situações de discurso que se construam de maneira mais benéfica e confortável para aqueles que não se enquadram dentro da maioria estabelecida. A saber, o deslocamento da

69 linguagem esperada pelo senso comum de uma língua dominante ou o que os franceses chamariam de desterritorialização; a ligação íntima com o político do agora (a sobrevivência) e o agenciamento coletivo da enunciação cultural e política desses espaços nem sempre visíveis de discurso e de testemunho do caos.

No entanto, a cultura cientificista da sociedade moderna, denunciada de certa maneira tanto por Perrone-Moisés quanto por Deleuze e Guattari e Edgar Morin (além dos desconhecidos romances de Campos de Carvalho), acabou por significar “postura” para alguns, servindo de modelo de ideal de modernidade, replicado por razões de hegemonia política e econômica, além de fundamentação para outros modelos sociais que já são adaptados ou “comprados” pela dinâmica sociopolítica da vez, sempre de poder e de controle – feito as histórias míticas de Carvalho, no seu próprio espaço-tempo onde a lógica é ilógica, e o senso, o contrassenso.

Pensar longe dessa lógica, da maneira carvalhiana (ou de Kafka) que se propõe de aparência ilógica, pode custar caro em um tempo por vir, mais ainda para uma cultura que se vê imiscuída com a acumulação do capital e com os contratos da sociedade com o estado de bem-estar social (e moral). Esses mesmo, “hipócritas”, denunciaria um personagem de Carvalho, que vivem sob a falsa ideia de estabilidade, “confiança” ou liberdade contrapostas pela vigilância constante e da imposição de valores e posturas “de bem”, para “o bem”. Os fantasmas de Marx iriam lembrar a posteridade contemporânea a respeito do contraditório nisso.

Refletem os franceses, sobre isso, acerca das posturas que se repetem perante as manifestações das línguas e das performances do sujeito através dela, cabendo a ele aceitar ou aceitar (!) os códigos contratados socialmente para que se faça ouvir e relatar sua história:

Talvez o estudo comparado das línguas seja menos interessante que o das funções da linguagem que podem ser exercidas por um mesmo grupo através de línguas diferentes. (...) Porque o estudo das funções encarnáveis em línguas distintas só toma diretamente em conta factores sociais, relações de força, centros de poder muito diversos; escapa ao mito “informativo” para avaliar

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o sistema hierárquico e imperativo da linguagem como transmissão de ordens, exercício de poder ou resistência a este exercício. (2003, p.50)

Nesse sentido, não há como não se pensar e não se questionar hierarquias, valorações, segregações, quando o cenário da realidade para além da miopia do texto literário canônico se demonstra distópico e despótico para as utopias indiscriminadas que se efetuam incondicionalmente na escrita de literatura. A língua e a linguagem poderiam apontar diversos desses mecanismos de dominação e controle que se reproduzem no cerne das relações humanas cotidianas, não só com a mensagem por elas deferida na forma de literatura, mas também pelos signos abstraídos e negociados na sobrevivência que se faz relato. Estruturas encarnadas e que são angustiantes para as performances dos sujeitos emissores e narradores desses enredos que não cabem em um todo puro e coeso, como nas literaturas menores, nas de minorias.

No jogo da língua, desta forma, como entre menor e maior, se esquece de atentar também para outras dinâmicas observáveis no tabuleiro, mais as formas e as estruturas impositivas com que as peças são delineadas e customizadas a fim de se estruturar e definir ou objetificar aquilo que é por essência fluido e fugidio, como a língua. A língua nos foge sempre à regra pela onda que ela é e assim se propaga sem controle; pela dificuldade de se conciliarem as potencialidades infinitas da criação da linguagem humana que se movimentam em energia constante, em sintonia com os próprios devires humanos.

Na arte da escrita, em suma, se a proposta aqui é a de se pensar literatura a partir de uma ideia social, como realização comunitária de arte, causaria preocupação a esse sujeito leigo ou desocupado como o do início, que se põe a pensar literatura, na ficção ou na realidade, a simples tentativa de se relacionar o contexto com o seu co-texto: se o que é literário é aquilo que se supõe comunitário e universal, o que se restringe desse discurso, deve se supor algo que não se enquadra nesse parâmetro de ordem essencialista acerca da cultura, da arte e do homem – ou das Altas Literaturas, pensando-se na obra de Leyla Perrone-Moisés. “O que não é”, seria então algo de menor

71 apreço por consequência, de menor valor, de menor prestígio, “que não significa nada”, cabendo a elas se enquadrarem na língua e na linguagem, ou simplesmente não existir ou vagar em paralelo pela história, nas sombras, feito fantasmas, assombrações, espíritos. Eis o imbróglio e o drama por se contar, entre os escolhidos e os malditos, entre os benquistos e os indesejados, os maiores, os menores e o enredo de entre-lugar.

A contingência da realidade a-histórica, contemporânea4, no entanto, não impede de que essas literaturas permaneçam vivas e ameaçadoras, graças à potência e às alternativas sempre revolucionárias que lhes cabem desbravar e que lhe restam para a sobrevivência, ainda que em sua roupagem contingente de minoria ou de sombra, fantasma sem voz nem imagem, que nem sempre é palatável, legítima ou “legível”, visível. Mas que existem e que podem testemunhar.

Continuam os pensadores, Deleuze e Guattari, referindo-se às alternativas cabíveis aos sujeitos envolvidos nas tramas de produção de uma literatura menor, diante do imperioso universo dominante de literaturas e de línguas oficiais:

Servir-se do poli-linguismo na sua própria língua, fazer desta um uso menor ou intensivo, opor a característica oprimida desta língua à sua característica opressora, encontrar pontos de não-cultura e de subdesenvolvimento, zonas linguísticas de terceiro mundo por onde uma língua se escapa, por onde um animal se enxerta, ou um agenciamento se conecta. Quantos estilos, gêneros ou movimentos literários, mesmo pequenos, que só têm este sonho: preencher uma função maior da linguagem, fazer ofertas de serviço enquanto língua de Estado, língua oficial (hoje em dia, a psicanálise pretende ser dona do significante, da

4 O contemporâneo é pensado aqui como a ausência de um tempo sincrônico e linear. Para Giorgio Agamben (2009): A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (p.59)

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metáfora e do trocadilho). Ter o sonho contrário: saber criar um devir-menor. (p.55-56).

Para eles, a partir dessa ideia inicial de espaços de tradição, de alguma forma, essas literaturas menores, em vez de buscarem enquadramento, sonham forjar um espaço próprio em que pudessem falar das suas tradições, da maneira que for, na língua que lhes couber, reinventada, reapropriada. Ao lado disso, a estranheza a partir desses registros outros de literatura só acontece quando se distancia e se naturalizam funções e sensos de linguagem dados como essenciais, incontestáveis, negligenciando possibilidades alternativas e possíveis como essas “menores”, ensaiadas por esses autores em suas literaturas próprias e alternativas. Não há como falsear um comportamento impositivo para muitos que o sentem provocar a dor de existir e sobreviver à marginalidade de sua própria língua, alma, seu senso de existir confortável em comunidade, ou em corpo presente, na encarnação que lhe mantém.

Kafka, por exemplo, eleito por Deleuze e Guatarri, além de escritor dividido entre a língua do coração e a oficial, parece transpor para sua literatura os limites de existência com os quais os sujeitos se defrontam no cotidiano, incapazes por vezes de se comunicarem minimamente, de se fazerem ouvir, ou de outra forma, impossibilitados simplesmente de existir.

Campos de Carvalho, por sua vez, em sua literatura estranha e singular, iria à sua maneira bem-humorada e ácida, prestigiar esses desalmados e esquecidos do discurso. Carvalho acaba cedendo-lhes espaços para suas próprias gramáticas e ideologias, nem sempre claras para um olhar viciado, nem sempre legível para um leitor de uma língua única e vista como legítima, mas o faz da maneira que lhes cabe e que lhes convém nos narrar.

No mais, as razões para que alguns textos sejam escamoteados dos registros oficiais são as mais diversas e existem também em culturas que não as ocidentais – quiçá uma postura comum ao homem em sociedade, nessa gana de censura e poder, desejo e repressão, como recordam Deleuze e Guattari (“linguagem de poder”). A pluralidade da natureza, da linguagem e da ilógica da existência não se enquadram nos moldes restritos e impeditivos da ordem, do poder e do controle impostos a ferro e fogo, por mais poderosos que eles

73 sejam. Surge assim o confronto, o imbróglio, e como consequência, todos esses enredos (e sujeitos) marginais suplementares, menores, mal vistos e pensados como maus exemplos, maus comportamentos, maus gostos, más literaturas, ou literaturas menores, literaturas de minoria. Literaturas menores, mas que continuam resistindo e existindo como alternativa perigosa e ameaçadora para os espaços de elocução de assepsia canônica e ortodoxa, fantasmas que são deste e de tempos outros.

A natureza desses registros não-oficiais faria sentido, por outro lado, no espaço da literatura, nos textos que permaneceriam e ainda permanecerão, na ânsia de sobrevivência cara aos homens e também às minorias invisíveis entres eles que também querem se fazer ouvir, da maneira que for. Cara, em razão da literatura enquanto arte, na sua persistência em forma de memória, como em textos forjados pelo homem para que signifiquem além dos tempos, dos próprios textos e dos homens. Textos sempre pertinentes e sempre significativos acerca do que é demasiadamente humano, como a arte e a literatura invariavelmente o são; textos que nos lembram pelo limite outras formas de dizer e outras formas de existência e experiência (humana) possíveis, quer ela seja de pretensão literariamente maior, quer não.

2.2 O ESCRITOR DESCONHECIDO CAMPOS DE CARVALHO

Como possível motor à reflexão no aniversário de um dos livros malditos de Walter Campos de Carvalho, obra citada por Ruy Castro em seu artigo, cabe reconhecer que o autor mineiro raramente chegou a ser presenteado com um espaço no registro ou na coluna social. E quando isso acontecia, reservavam- lhe um verbete bem pequeno para uma literatura que na realidade não cabe em si. Em vida, chegou a militar com suas crônicas ao lado de outros sujeitos esquivos no famoso periódico O Pasquim, no qual lutava com seus companheiros através da linguagem subversiva contra a ordem vigente da censura nos escaninhos de literatos como Carvalho.

Sua obra reunida, como nos parece, apesar de fragmentária, une quatro romances que formam, no fim, um contínuo de um texto só, “maldito” e desconexo, sempre narrado em primeira pessoa, onisciente ou em voz que faz relato de memória e de ato presente no instante do instinto.

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Mais especificamente, em linhas gerais, um texto de natureza intimista e descontínua, picaresco, irônico e perturbador, cruelmente crítico, ao mesmo tempo de arremedos lírico e poético, como outros tons que se observa nas cartas e crônicas publicadas no periódico Pasquim ao longo da década de 70.

Em tempo, nas cenas que são narrativa, uma personagem que não é única, mas diversos personagens que se assemelham, extravasadas na voz de um único narrador pluriforme, que transitam entre identidades disformes e múltiplas, forjando da mesma maneira desarranjada a narrativa por se contar.

Juva Batela (2004) comenta sobre a obra de Campos de Carvalho e da sua complexidade de temas e estruturas, na sua narrativa desenfreada de sujeitos amalucados e sem moral “de bem”:

Os quatro romances referidos são narrados em primeira pessoa – uma primeira pessoa sempre em guerra, uma primeiríssima pessoa sempre em guerra, uma primeiríssima pessoa a debater- se e a debater a si mesma diante de uma sociedade problemática e massificante. As primeiras pessoas de Carvalho – o alienado, o ex-combatente, o irmão enamorado, o expedicionário esquisito ou qualquer outra caracterização que se lhes dê – não praticam uma distância mínima entre a própria narração e aquilo que narram. O resultado já se vê. O material narrado cede lugar à crise de sua própria representação. É a possibilidade de se representar o que quer que seja que se acha em crise – dos atos cotidianos às coisas, da sociedade à subjetividade. (p.39) No registro, rotulam-no como surrealista ou humorista. Quem sabe pelo que “ridículo” e “escatológico” que costuma narrar, desvarios, imoralidades e non- sense, coisas de mau gosto para uma etiqueta fina.

Não é uma literatura pornográfica, nem surrealista: mas é isso tudo pelo polêmico que provoca e que lhe é motor, pelo poder de desestabilizar as posturas de tradição, de moral, de civismo. Os valores da maioria não significam nada a eles, servindo apenas para desterritorializar, desconstruir de modo a expor os mecanismos que os condicionam ao isolamento.

Em O Púcaro Búlgaro, a obra que aniversariou meio século em 2014, uma das personagens iria desabafar ao leitor suas angústias com os valores que

75 confrontam sua realidade que lateja. No capítulo de título e conteúdo irônico, o “Explicação desnecessária”, diz o sujeito carvalhiano:

E como a Verdade paira acima de quaisquer verdades, sejam elas quais forem, como se ensina até nas escolas primárias, aqui ficam definitivamente entregues à posteridade – precária e efêmera, pouco importa – estas páginas escritas com sangue e suor, e agora também com raiva, para que sobre elas se debrucem os historiadores e os contadores de histórias de todos os tempos, os poetas e adivinhos, e todos quantos se interessem por outra coisa que não seja o seu próprio interesse, como é o caso edificante do autor. (2008, p.314-315)

A ironia mordaz pode ser percebida como uma outra aliada de Carvalho em sua literatura de natureza subversiva, desconstruindo não só a linguagem formal da qual se utiliza, mas igualmente o conteúdo ideológico (moral) do fato narrado, das ideias de sociedade transcritas para o papel. Ao lado disso, o medo do fantasma da lei que se pretende como verdade nas posturas cientificistas e nos comportamentos heroicos de propaganda moral e por vezes religiosa da sociedade fragmentada entre ideais de classe e de cultura dominante, donde brota esse estranho Carvalho, dois Kafka, três Lima Barreto, outros tantos Arthures Bispos dos Rosários. A ironia é só uma das possíveis formas de sobrevivência e transformação possível de linguagem.

A verdade enquanto utopia a se perseguir é ridicularizada pelas personagens de Carvalho, na medida em que constroem suas realidades a partir de pensamentos próprios que desenvolvem acerca da “verdade” que é por eles concebida – verdade diversa daquela que os reprime e os isola em espaços de clausura.

Como no trecho citado do último romance de Carvalho, não parece ser o ideal de vida da personagem definir uma verdade absoluta, pois que não caberia a ele fazê-lo: já haveria quem os fizesse pelos demais e por demais, delimitando com isso o que seria bom e visível para uma maioria. Aos textos menores, desta feita, os espaços menores que lhe cabe revolucionar e tensionar.

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Em termos de verdade nas exegeses acadêmicas de tradição canônica, nas posturas científicas viciadas da tradição qual as discutidas por Morin, João Felipe Gonzaga (2008) comentaria a dificuldade de se pensar a obra de Carvalho a partir desses parâmetros essencialistas de literatura, “canônica”, bem como reduzi-lo a registro de época, de linguagem ou escola literária. Segundo ele:

Que elementos, então, buscar na obra de Campos de Carvalho que traduzam sua literatura como uma escrita surrealista? O autor explora o humor, o nonsense levado às últimas consequências, trabalhou temas como a loucura, valeu-se da sua imaginação delirante, criando cenas alucinatórias que desprezam a lógica, disse que escrevia ao correr da pena, sugerindo o artifício da escrita automática, e declarou-se anarquista e surrealista (...). No entanto, no que se refere ao modo da escrita automática, Campos de Carvalho parece ter empregado mais as oposições entre o concreto e o abstrato do que propriamente esse modo de escrita proposto pelos surrealistas. Sua originalidade está exatamente na expressão de imagens estranhas, abstratas e ao mesmo tempo concretas. Acima de tudo, a sua narrativa é extremamente concisa em sua lógica do absurdo e da subversão. O todo formado pelos enredos é inseparável das partes, na mesma medida em que há coerência entre o texto escrito e a conduta do autor. Por meio do jogo de oposição entre elementos concretos e abstratos, cria um duplo movimento: converte o abstrato em concreto e vice- versa, assim subvertendo-os. (2008, p.69).

O relativo (auto)exílio5 a que se viu condicionado, tanto autor quanto obra, se deve ao não lugar que ocupam com outros, enquanto temáticas existenciais desviantes da história da literatura do país e de seus cidadãos marginais. Mas se a literatura é a persistência desses discursos de minorias, na sobrevivência que se garante pela arte e seus fantasmas que os obsidiam, Campos de Carvalho seria lido, posteriormente, e relido e situado em outras leituras para

5 Walter Campos de Carvalho viveria grande parte de sua vida isolado da convivência social, especialmente daquelas que demandam as tradições literárias, contra as quais ele sempre se posicionou de maneira crítica, e talvez por isso a escolha por viver à parte dos círculos de literatura e culturais da sociedade metropolitana que se erguia a passos largos. Em texto publicado na antiga revista “Manchete” em 1968, “A arte de ser maldito”, o mesmo jornalista (e biógrafo) Ruy Castro, já recolhia impressões sobre aquele sujeito arredio, dizendo que Campos de Carvalho era “um homem amargurado, de olhar duro e sofrido, que tem a fama de não dar entrevista, de não receber ninguém em sua casa, de passar a maior parte do tempo trancado em porões, sem nunca chegar à janela” (ver anexo II). 77 além do tempo, igualmente pertinentes, como essas legítimas e fartamente reconhecidas. Desde que se portem de maneira ilógica, libertária.

No início de sua primeira obra reconhecida (pelo autor), no capítulo primeiro de A Lua vem da Ásia, lê-se uma sentença, que nos serve de pista, nem sempre segura, para a leitura do texto todo que se seguirá, divido em quatro partes (romances): o assassinato do professor de lógica. Coloca-se em evidência, desta forma, as razões e os significados disso (a lógica) para um sujeito estranho preso a uma sociedade em que há um claro apreço por cientificismos na compreensão da existência e do estado de ser e de estar das coisas e dos seres humanos: extrema confusão e nenhum reconhecimento.

A ciência e a religião, por exemplo, aparecem como discursos paralelos para significações da experiência humana em sociedade, no planeta Terra, nessa galáxia, nesse Universo, e são desta forma criticados, descontruídos e ironizados por Carvalho em seus textos com ares espetaculares e astrológicos de sua mítica pessoal de sujeito humorista. Longe, claro, de qualquer refinamento ou moral conservadora consolidada, mas a que lhe cabe àquele momento, em sua retórica ainda que ilógica, mas “concisa”, segundo Gonzaga.

A literatura, por sua vez, entremeada a esses outros discursos de maioria, constrói e reproduz outros tantos, servindo ou não a modelos ainda por se constituir, tanto de língua quanto de linguagem, pela postura esperada pela lógica como religião.

Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. (CARVALHO, 2008, p.36).

O narrador-personagem de Carvalho, em sua proposta de sobrevivência revolucionária na sociedade que lhe serve de crítica e de repulsa, abole a lógica como essência absoluta da dinâmica de vida: não se deve pagar tributo nem a genealogias, nem a hierarquias, à lógica muito menos. Sua empreitada para dar cabo a esse domínio opressor que lhe angustia é simplesmente

78 assassinar o professor de lógica que, por sua vez, no imaginário de assassino, teria assassinado inconscientemente outros sujeitos e suas histórias à margem da cultura geral. Questão de justiça, portanto, ainda que verdade íntima e pessoal, deslocada dos valores de moralidade castiça.

O desafio que é colocado aos que se defrontam com a literatura de um sujeito esquivo a uma leitura linear e tranquila é: como ler assim, logicamente, um texto que se propõe ilógico, e que reserva a pensamentos dessa natureza lógica ou acadêmica a morte ou a destruição como desejo?

Surrealista? Hiper-realista? Art brut? Impressionista? Rótulos, rótulos, e a vida que sorri de escárnio diante deles. Assim, percebe-se que estamos diante de um texto de difícil explicação teórica e até mesmo narrativa para uma leitura ortodoxa, já que seus propósitos e ambições são outros e tornam paradoxais as razões de ser das explicações das essências e naturezas, sobretudo as literárias, de ser e existir no mundo e na literatura. Há um conflito em jogo, encenado nas dinâmicas de descoberta e transformação dos personagens carvalhianos, entre ser ou não ser, a questão que eis aberta.

Nas narrativas, tanto na forma quanto no conteúdo, a cadência de suas histórias também fugirá à regra, sobretudo à gramatical e da cartilha de moral cristã e burguesa.

Segundo Juva Batela (2004), a esse respeito:

O primeiro parágrafo de A Lua vem da Ásia, de todos os que Campos de Carvalho escreveu, é dos mais citados por toda a imprensa. Trata-se de apenas dois períodos a formar uma bela síntese do que virá. O narrador- personagem dirige-se a alguém disposto a ouvir-lhe as memórias – alguém que não parece, à primeira vista, e tampouco aparece ao longo de todo o romance. A esta confissão6corresponde todo o material narrado. Sua primeira declaração é, aos dezesseis anos, o assassinato de seu professor de lógica. Mais adiante, a venda da sua alma ao diabo. Morta a lógica, morto o professor, restam igualmente mortos a possibilidade de coerência cartesiana, a linearidade e o rigor do pensamento positivista, assim como a ideia subjacente à figura do professor: a possibilidade de transmissão, não apenas de

6 Grifo(s) do autor. 79

conhecimentos, mas de experiência. O crime aos dezesseis anos marca o ingresso do narrador- personagem na independência intelectual 7que o caracteriza e que pode ser entrevista no caráter fortemente afirmativo que exibe todo o texto. (p.65-66)

Melhor mesmo ouvir da boca um Carvalho, do que ouvir falar dele por um outro que não lhe interessa. Dispostos e precavidos, haveremos de embarcar em suas histórias profundas pelo periscópio de sua linguagem, entre imagens vislumbradas que transitam entre a hilaridade óbvia e rasgada, ao lado da depressão profunda, feito a vida no colorido de possibilidades nem sempre cinza, nem sempre ensolarado na vida e obra de Van Gogh, na angústia do drama assombrado hamletiano.

Capítulo III: Quatro livros em um - a assombrada obra completa de Campos de Carvalho

Os labirintos que são percorridos na obra completa de Campos de Carvalho, levam-nos por caminhos obscuros, sombrios, algumas vezes curiosos e picarescos, para não dizer paradoxais, mas também imaginários, imaginados, confusos e em certas vezes perversos. Não é um romance convencional pelo que nos parece: é antes a reinvenção dele pelo posicionamento crítico demonstrado diante do gênero pelo narrador carvalhiano, que o permite então reinventá-lo, desconstrui-lo, re-territorializá-lo. Muitos escritores já o fizeram, isso de “desconstruir”, e não necessariamente nesse ou no século passado, como o movimento (transformação) é da natureza da arte, é-lhe assim natural em todas suas facetas, em todas as épocas. Quem sabe a natureza criativa da linguagem humana não impossibilita a leitura fechada, bem como as performances possíveis de língua e de cultura em sociedade, sempre caóticas e em movimento, que acabam por colocar em questão nas suas práxis cotidianas, a literatura para fins críticos e porventura pragmáticos, as supostas

80 essências e deveres da vida – e portanto, a literatura maior, de uma língua maior, ou a literatura simplesmente enquanto mera taxionomia. Aliás, o que é literatura e para que (m) ela serve?

O romance, no caso, é repensado na escrita de Joyce, talvez o mais citado parâmetro de escrita “revolucionária” dessa natureza dos últimos tempos, pelo seu lugar de discurso de costumes de tradição e pela sua ação de ruptura na sua arte literária; ao Sul do hemisfério, o Guimarães Rosa e seu romance sertanejo universalista, “revolucionário” por sua vez, ao imbricar tradição e ruptura nos limites entre vida e morte. Borges, então, outro latino-americano infinito, como aquele sujeito húngaro-polonês Franz Kafka. Pessoa e suas pessoas, algumas bem carvalhianas, aliás. Há outros, cada qual com suas peculiaridades de cultura e política, desses e outros tempos. Sempre se expandindo para além das fronteiras das categorias, das uniformidades, de um pensamento estritamente racional. O que é comum nessas literaturas, no texto desses sujeitos não raro vistos como estranhos a ideal nacionalista, tradicional, por exemplo, de suas literaturas nativas oficiais, é que se encontram nelas os limites para além das barreiras impostas pela tradição letrada e pelos costumes, como o da cultura dominante, da linguagem escrita/ falada, o da política pública, o da vida pública/ privada e, claro, o da economia que se sobrepuja sobre os demais.

Portanto, não há nada de novidade em se deparar com os labirintos cheios de fantasmas expostos pelo escritor mineiro Walter Campos de Carvalho, as trajetórias sempre escorregadias de seus romances sujos: do sujeito, do espaço, do Cronos, do páthos, da psiquê. Algumas leituras mais tradicionalistas de época, em meados do século XX no Brasil, que eram claramente preconceituosas, viam em Carvalho uma literatura menor (inferior), de cunho erótico-piadista. Não que isso não fosse verdade, dependendo do ponto de vista do lugar de fala. Mas restringi-lo a essa ideia de literatura menor, como se “imoral” aos bons costumes e irrelevante a uma “literatura maior” de seriedade, é além disso no mínimo desatenção desinformada ou falta de humor. Má vontade? Má fé? Mau humor?

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A ideia de literatura menor, se for o caso apontar nela um Campos de Carvalho, é outra, mais do que é superficialmente discutida aqui. Deleuze e Guattari, por exemplo, amparados na obra igualmente enigmática de Franz Kafka, parte dali para discutir aquilo que é chamado por eles de literatura menor. Além de uma leitura óbvia, de contrastes e de valor (menor/maior), há outras ideias por trás desses fenômenos sociais e culturais, como a demanda por justiça e a questão íntima de liberdade e ao mesmo tempo coletiva de “menor”, de sobrevivência, seja, no caso, do testemunho particular, de pertença a uma comunidade, ou de um registro cultural, universal, qual a arte e a natureza criativa e transformadora da humanidade.

Para eles, essa literatura menor passa pelo que chamam de “desterritorialização da língua”. Mais do que o território material que delimita os espaços sociais de ação humana, outras influências de dominação territorial se é pensada, como a territorialização da linguagem, nas formas impostas pelo uso e pela regra algo eclesial. Na literatura de Kafka, e também nas circunstâncias de sua produção, a linguagem em constante movimentação e transformar-se aparece como solução alternativa e natural à escrita de aparência peculiar de um projeto de literatura e de vida que não se alicerça na tradição, antes a questiona pelo que silencia no conflito. Assim, na literatura menor, “desterritorializa-se” a língua, a linguagem que oprime, de modo a amplificar suas zonas de intensidade, e expor assim, algumas imagens variantes de expressão cultural ou psicológica silenciada pela norma repressora. A partir de Kafka, portanto, dizem os filósofos:

Os critérios são evidentemente muito mais difíceis enquanto não se passar primeiro por um conceito mais objetivo, o de literatura menor. É a única possibilidade de instaurar de dentro de um exercício menor de uma língua mesmo maior que permita definir literatura popular, marginal, etc. Só desse modo é que a literatura se torna realmente máquina coletiva de expressão, apta a tratar e exercitar conteúdos. (2003, p.42)

Assim, o que é alternativa de literatura, por vezes malvista e mal falada, acaba como espaço de identidade próprio e natural para as literaturas marginalizadas,

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“populares”. No caso da obra de Kafka, apontariam os franceses, é na relação confusa entre a língua maior (alemã) e outras menores, menos “legítimas”, como o uso vulgar dela, que se configuram pontos de fuga a um ideal de totalidade a um ideal de todo como o de nação. No caso, quando se fala de Kafka, essa questão da língua e linguagem põe em vista previamente as potenciais temáticas do escritor, qual a lei, a razão, a estética, a linguagem portanto, a cultura x a natureza.

Outro componente das literaturas menores seria o caráter político. Para eles, tudo em uma literatura dessa natureza possui em si um caráter universalista, em oposição aos textos subjetivos, individualizados. O que resta ali não é mera questão individual, como família, identidade, identidade supranacional, casamento, mas antes a sociedade em suas sombras, nessas suas performances do cotidiano em que se silenciam diversos textos, de diversos sujeitos, viventes pelos descaminhos que lhes cabe. No âmago desse objeto íntimo, menor, de aparente “minoria”, há sempre linhas de fugas que contêm outras narrativas por se depurar, nem sempre sob o idioma nacional, sequer lineares ou heroicas como um romance nesse idioma “maior” ou uma narrativa de guerra dos vencedores. Diz Deleuze e Guattari:

A literatura menor é completamente diferente: o seu espaço, exíguo, faz com que todas as questões individuais estejam imediatamente ligadas à política. A questão individual, ampliada ao microscópio, torna-se muito mais necessária, indispensável, porque uma outra história se agita no seu interior. É nesse sentido que os triângulos, comerciais, econômicos, burocráticos, jurídicos, que lhes determinam os valores. (...) Não se trata de um fantasma edipiano, mas de um programa político. (2003, p.39)

A última categoria é o caráter coletivo das narrativas menores, para Deleuze e Guattari. As enunciações pessoais dessa espécie, enquanto indissociáveis de seu contraponto coletivo da maioria que se faz dominar pela linguagem, contaminadas essas pelo campo político e social de repressão, carrega positivamente o signo revolucionário na sua intimidade, seja ele de uma coletividade marginal ou de menor. O íntimo e particular são questões coletivas e políticas de manifesto e de sobrevivência. A situação de risco de uma

83 comunidade, desta feita, a partir de seu local discursivo de conflito, vê-se em posição de transformar sua realidade de maneira positiva, preenchendo esse contexto movediço com uma enunciação coletiva potencialmente destruidora das categorizações e imposições hierarquizadas e legítimas por um código que lhes é estranho – e repressivo. Para os filósofos:

A máquina literária reveza uma máquina revolucionária por vir, não por razões ideológicas mas porque esta está determinada a preencher as condições de uma enunciação coletiva que falta algures nesse meio: a literatura é assunto do povo. É exatamente nestes termos que o problema se coloca para Kafka. (2003, p.40)

No caso da literatura de Kafka e de Campos de Carvalho, guardadas as proporções e potências que sobressaem em relação ao outro, não bastasse o labirinto que nos confunde a leitura de rotina, há ainda a persistência dos fantasmas que nos perseguem a cabeça confundida pela doutrina da hora e vez: espectros de tempos outros que nos desorientam do caminho perfeito de sonho e ilusão capitalistas, fantasmas nem sempre situados geograficamente, pelo contrário. Seria o fantasma da tradição ou o do comunismo?

No caso de Kafka, como o desnudado pelos franceses, a questão individual/ coletiva pode ser localizada nos episódios de conflitos regionais daquela região da Europa, frente aos imperialismos de sua história, nos quais se forjaram e se manifestaram diversos espectros dos discursos que não cabem e não convêm à sociedade hierarquizada, diferenciada pelo poder e tradição que se impõem a ferro, a fogo, na pele, na alma dessas gentes desafortunadas. Sua literatura, assim, a sombra kafkiana, surge como aparição nesse meio tensionado, em que brota na experiência de autor e de sujeito coletivo uma alternativa crítica e literária possível de sobrevivência/ existência para além do direito que os condiciona à marginalidade.

Uma literatura possível que lhe signifique mais do que a que se impõe enquanto tal, maior que seja, no seu poder de controle e de extinção do ameaçador, da língua pura e de “prestígio”. Daí, portanto, os conflitos

84 sugeridos por Deleuze e Gattari, como o da língua e linguagem, além do caráter político e coletivo das enunciações de literatura menor, próprias de seus textos, mas também próprios dos espaços conflituosos e marginalizados de elocução de origem, perturbados pela tradição hegemônica estrangeira, de território e de língua exteriores.

Há outros ensaios (insights) também, mais específicos da obra kafkiana, que, como observam alguns, teriam um aspecto triangular, ressoante nas obras como A torre, O Castelo e O Processo. Os títulos em si, aliás, já indiciariam os eixos apontados por Deleuze e Guattari, de conflito entre uma ordem “verticalizada” (ponta) e um devir “horizontal” (base), reprimido e ressonante (fantasmal). Não seria possível, assim como em Carvalho, ver apenas nesses horizontes (de leitura) da literatura de Kafka, um único eixo norteador, como o edipiano ou sexual, que não contivesse em si essas outras “linhas de fuga”, ou narrativas silenciosas e invisíveis que ressoam pela linguagem e pela própria literatura, e que são reconstruídas por estas.

Para os franceses, cabe dizer, Kafka intentava o contrário do acabado definitivo:

“Quantos estilos, gêneros, ou movimentos literários, mesmo pequenos, que só têm esse sonho: preencher uma função maior da linguagem, fazer ofertas de serviço enquanto língua de Estado, língua oficial(...). Ter o sonho contrário: saber criar um devir-menor. (2003, p.56)

Novamente, de volta ao escritor menor tupiniquim, mineiro, nos últimos anos, qual a aparição de Kafka nos tempos recentes, a obra de Carvalho tem sido relida, trazendo atenção àquele texto em grande parte esquecido nas últimas décadas, jamais exorcizado pela tradição canônica de literaturas nacionais ou “maiores”. Além da academia, com dissertações, artigos, ensaios, há diversos registros atuais de obras dramáticas encenadas a partir de textos dos livros do autor. Segundo , a partir de Antonio Prata, ambos amigos e entusiastas do escritor, aquele teria dito à época da publicação de A lua vem da Ásia, que o desconcertante Campos de Carvalho “só seria compreendido pela juventude dali a 30 anos”. Quem sabe não haveria ali uma profecia, ao

85 lado da ironia amadiana que faz colocar em xeque o atraso cultural e social de uma cultura hegemônica que renega a diversidade cultural de seu país e das suas linguagens possíveis, potências de arte e literatura.

A atualidade do texto de Campos de Carvalho não se deve apenas a um tempo supostamente favorável a esses escritos marginalizados da historiografia oficial, tempos então mais progressistas, por suposto; mas sim igualmente pela potência filosófica e literária infinitas que são pressentidas em textos dessa natureza dita “marginal” ou “menor”, cujo o interesse não é o grandiloquente impositivo e definitivo, antes o deixar agir um devir-menor, como diz Deleuze e Guatarri.

Segundo Antonio Prata, os livros de Carvalho surpreendem por essa sua força destrutiva. Para ele:

“Quando os lemos pela primeira vez, com os pés no chão, achamos que são completamente loucos. Ao nos aproximarmos e entrarmos na sua escrita, no entanto, vamos percebendo que o louco não é ele, somos nós (“só é louco quem não é”). No fim, seu texto parecerá a única coisa reta num mundo que, agora percebemos, está completamente torto”. (2006, p.13)

Os vícios da leitura acadêmica, pelo valor e poder dela em termos de capital cultural, costuma negligenciar outros textos e leituras tangenciais visíveis ao se movimentar o campo de visão, por motivos vários, que caberiam reflexão adequada. Os fantasmas do positivismo são exemplos mortos-vivos disso, “coisas” que já há tanto são teorizadas e das quais se busca libertação, na modernidade tardia, na pós-modernidade, o que seja. Posturas e sombras de vida e de escrita que angustia, por exemplo, um sujeito centrado, racionalista, como o do ideal burguês ou posteriormente o existencialista, capaz ainda de escrever um romance. A “naturalização das incertezas”, se pensarmos numa ciência mais progressista como as recentes no campo de humanidades e biológicas, revelaria possibilidades outras, propondo eixos outros, rizomáticos, que dessem conta de fenômenos “marginais” e contivesse por um tempo controlado a infinita angústia humana de se questionar o estabelecido e transformá-lo para si.

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Nesse contexto, como o das ciências do século XXI, filosofias como a das “epistemologias do sul” ou “pós-moderna”, os debates em torno dos gêneros (enquanto sistema), literaturas e artistas antes renegados, agora conquistam finalmente seu lugar de fala, quando na atualidade se renegociam constantemente, pelos avanços tecnológicos e pelas movimentações naturais da sociedade, as demandas do cotidiano. A luta sempre existiu, a maior visibilidade dela não significa novidade, antes conquistas a duras e penosas penas. O fantasma de Carvalho, como o de Kakfa, bem o sabem. As demandas, mesmo assim, não se restringem a meros direitos conquistados em plena democracia, ou em uma comunidade que vem. Há os devires jamais conciliados pelo status quo que se pretende definitivo ou exemplar. São vitórias em uma batalha que se arrasta e leva consigo seus fantasmas procurando seus corpos nos rastros de valas comuns.

Acima dos subjetivismos esquizoides que possam parecer a uma tradição de moral burguesa e assepsia enciclopédica, como se o estranho, “o queer”, “o marginal” fosse na literatura texto sem qualidades ou “intimista”, paixão, dor, emoção, escatologia são caras às leituras de textos literários menores porque são sensíveis à dor humana que neles é bem maior, indizível e infinita. Seja essa mais intimista, tipo o de Carvalho, ou antinarrativos da escrita kafkiana ou a de Joyce, ou fantásticos como Murilo Rubião, pois que a representam de fato, a literatura menor que os significa. São relatos literários que conseguem sua conquista, vitória, quando efetuada a leitura desses textos por uma sociedade leitora que se reflita e se critique ali. Conquistas no livro e na cultura para posteridade mesmo que realmente pequenas diante da trajetória que se arrasta pelo trauma que os trouxe até os dias de hoje – e que se reinventa todo o tempo.

Não são literaturas de cartilha, manuais, nem de clínica, não atendem a uma ordem verticalmente superior e divina nem laboratorial, canônica, que representasse valores como os de classe ou de nação maior, ou ainda: de uma língua maior. Se for o caso, a dor de manifestar por necessidade urgente e se perder em si no frenesi narrativo da narrativa de sobrevivência que se faz em vida é a força superior que rege suas verborragias de espírito, e nunca um ato

87 reflexo, mecânico, inconsciente. O pessoal é político, o íntimo é coletivo, no caos que lhe representa.

No caso da literatura de Campos de Carvalho, o clima visceral em que se desenvolve os quatro livros de sua obra reunida, não contém em si qualquer postura que fosse, etiqueta para se enunciar o que seja. Não lhe cabe rótulo algum que não o de própria consciência. Não: o grito é por demais intenso para se conter em sintaxes impostas a ferro e o fogo, e que sempre lhe reprimiu de dizer o que quer, na forma como quiser. Para que me leiam, se assim o quiserem, que me entendam, parece ser algo adequado para se pensar uma alternativa de leitura que não fosse desrespeitosa com a literatura desses sujeitos que se busca conhecer e que se aparentam a fantasmas do cotidiano asséptico e regular/regulado de uma sociedade viciada no discurso e nas práticas de progresso e desenvolvimento.

Quanto a uma de suas peculiaridades de literatura menor, como o discurso intimista e de sintaxe confusa e desviante, uma postura literária desse tipo não torna o texto mais hermético, vide Joyce, já que pensar dessa forma é ignorar as estratégias que pululam do outro lado, de sobrevivência, de literatura menor que requer sua própria leitura, assim como nossa capacidade deslocada de ler/decodificar as imagens que nos são estranhas no primeiro momento. Literaturas que versam sobre um tempo-espaço diferenciado, único, terceiro, de deslocamento de certezas e categorias. Há que se deixar ouvir e ser penetrado pela voz melíflua do humorístico e sedutor personagem de Carvalho, se quiser entender, se quisermos avançar para um diálogo.

A melhor maneira de se ler Campos de Carvalho seria se entregando completamente ao que escreveu nosso romancista desconhecido nos quatro livros de sua obra completa, observando e sentindo emergir ali os espectros que perturbam tais escritos e que sobrevive e se repete em cada um deles: A Lua vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963), O Púcaro Búlgaro (1964).

Se pensarmos, de início, já em seu primeiro livro, o título nos parece então bastante insólito. A um leigo, soa provocativo: como assim a lua vem Ásia? Qual o por quê disso? Vencida a provocação, aquele que se arriscar a folhear o

88 livro, se sentirá ainda mais provocado, a cada página e capítulo: que texto é esse? Que capítulos esquisitos. Que bizarro.

Se ainda sim houver leitura futura após imagens indignas a uma moral cristã conservadora, instigado de curiosidade pelo misterioso e sombrio, conquistado finalmente pela retórica carvalhiana, o fluxo em que a narrativa lida se dará não será nada tranquilo. Há diversos caminhos em falso, justificados, se pensarmos assim, com ironia e humor do tipo mais sádico, que impossibilitam um percurso narrativo como o de um romance tradicional, mesmo o de Proust ou de Joyce.8

Sem sujeitos a se delimitar e se espraiar, sem um cenário de locação, sem um espaço de discurso afeito ao tradicional, Carvalho iria levar essa tradição e essas posturas em que ela se insere ao extremo em sua literatura de desvio, demandando de quem o lê, o mesmo deslocamento constante de seu lugar confortável de certezas (narrativas) e de certezas confortáveis (existenciais). É o deslocamento, pois, efetuado pela movimentação de uma literatura menor, quando faz seu próprio idioma e país à vontade dos seus, espíritos e irmãos entre a vida.

Em A lua vem da Ásia, acompanhamos desde o início a trajetória de um anti- heroi picaresco que não desconstrói ou desterritorializa apenas o seu lugar nas tramas novelescas da tradição literária, feito comédia blockbuster pastelão, pelo simples efeito cômico. A viagem até essa lua será mais complexa do que isso. Quem nos narra o enredo curioso de morte e vida será um sujeito de muitos nomes, Astrogildo, Heitor, Ruy Barbo, Adílson, que remetem a muitos eus e existências diversas e divergentes.

O personagem carvalhiano não é um anti-herói como os de sempre, da massa, desorientado pelos poderes e desmandos que o expropriam da própria existência harmônica com sua com a sociedade ou comunidade; mas ainda sim um “herói” com um impulso coletivo de utopia que o confunde entre a realidade de ação imediata, de impacto cruel e desumano, e o sonho de um porvir conciliador e espiritualista. A expropriação da linguagem em jogo é rosiana: é

8 Nesse caso, pelo privilégio desses autores em escrever em idioma “legítimo”, no caso o idioma anglo-saxão e o francês (chegar origem), que até hoje imperializa a linguagem enquanto manifestação política. 89 mágica, transcendental, é o da própria alma multifacetada na matéria que lhe convém, moldando-se às necessidades que a vida lhe coloca na sua trajetória. Além disso, tanto matéria quanto espírito, universo e planeta Terra, o mundo vasto mundo, parecem bem claros aos sujeitos de Carvalho, que transitam naturalmente entre isso, em lugar privilegiado de deslocamento, de aparência imortal, infinita.

Assim, o texto de Carvalho, com a mesma estratégia reconhecida de humor e ironia de uma novela piscaresca, desvela em paralelo nos seus romances não apenas o jugo dos poderes sobre os corpos molestados da massa pela máquina dos poderes escusos, pois que explorados pelo sistema depredatório como o capitalista ou um regime assumidamente autoritário com os desviantes clínicos e críticos. Carvalho enveredaria por outros caminhos, que não lineares se possível, como trajetória de enredo literário: as vozes que ecoam de seu texto são dispersas, diversas, quase sempre “sujas”, intraduzíveis, “demoníacas”. Ou assumem de outra forma, suas outras formas “menores” ou “fantasmáticas” que vierem a ter.

Carregam sim traumas de outro tempo, que nos relata em alguns momentos de maior “lucidez”, ao passo que silencia outras memórias recalcadas, em delírios que brotam sob a pressão demoníaca da mente perturbada pelo espaço exíguo de submissão e alienação do próprio condicionamento de subalterno. Astrogildo, de A lua vem da Ásia, vive, pelo que nos diz, em um sistema que nada significa para si além da dor de existir e a necessidade diária de buscar alternativa para continuar existindo, sobrevivendo às intempéries que se impõem nas condições de isolamento.

Desabafa, logo de início, o narrador desse primeiro livro de Carvalho, demonstrando a clara lucidez que lhe é renegada quando aprisionado como interno, acerca de suas intenções diante de seus interlocutores, os leitores, ouvintes de seus relatos, ou até mesmo seus fantasmas que o perseguem e estão todo o tempo junto dele (s):

Tudo isso do meu passado eu conto para que se possa ter uma ideia exata da minha situação presente, depois que me deram por excêntrico e me jogaram nesse hotel de luxo onde os

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garçons, o gerente e o subgerente andam todos de branco, e têm também os dentes brancos e não vermelhos ou amarelos como toda gente. Conto, também, porque o dia aqui para mim tem 72 horas, e às vezes mais até, e eu necessito ocupar-me com qualquer coisa que não sejam os mosquitos da sala ou a minha coleção de palitos de fósforo, de há muito superada e já vendida a um nababo hindu que mora no quarto ao lado. Descobri que, escrevendo a história da minha vida, antes que a escrevam, estarei prestando um serviço enorme não só à cultura, por isso que ---”. (2008, p.37)

Segundo Carlos Felipe Moisés, em introdução à sua obra completa, apesar do caráter humorístico farto em Campos de Carvalho e que lhe serviu de “etiqueta”, sua literatura não intenta o contrário disso, quando “no âmago da questão”. Mas ela vai além. Por trás da faceta humorística, talvez persista alguma estratégia de sobrevivência que lhe cabe e que lhe faça bem ao espírito arredio a posturas de tradição e rotulação, ou pior: de controle do espírito jovem e irrequieto. Para ele, o teórico da obra carvalhiana:

A busca de identidade, em meio ao desencontro da vida moderna, mas essa busca só é explícita nas raras e discretas passagens do narrativo para o reflexivo, correndo-se o risco de toma-lo por mais uma excentricidade do narrador, e aí se perderá de vista a dimensão alegórica de A lua vem da Ásia assenta sobre um mecanismo simples: de um lado, a equação bem amarrada, loucura-manicômio; de outro, a sugestão machadiana de que há mais loucos fora do que dentro do hospício. (2008, p.16)

Para Moisés, assim, há um duplo na literatura carvalhiana, que se esconde no humor e na “excentricidade” pelo contraponto da melancolia, que pode ser negligenciado em uma leitura superficial, esse outro lado mais sombrio e assombroso, melancólico e filosófico por trás do riso fácil. Como anuncia o primeiro texto do primeiro livro de Carvalho, a relação entre lógica e a ilógica orienta de início nossa leitura da obra, tipo a relação com a loucura e a sanidade, mas não nos deve condicionar a ela. Esse duplo, no entanto, não passa de pontos em meio a constelação de experiências de linguagem e narrativa do texto de Carvalho, “menores”, de pulsão constante de renovar-se (e não se contentar) sempre, no labirinto de sua narrativa.

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Ao mesmo tempo em que se contrapõem, é na relação entre si que significam: há que existir lógica, para então romper com ela, e vice-versa. A questão é: aonde se inicia um e termina o outro, assim também na vida e na morte, porventura no romance de Carvalho? E no meio do caminho da trama narrativa, a travessia, que não é nem um, nem outro, às vezes.

Afirma Moisés sobre a obra de Campos de Carvalho e suas temáticas afins:

O resultado é quase sempre uma centena de páginas de um humor muito especial. No entanto, continuamos a ler aí, quase sempre nas entrelinhas: há mais loucos fora do que dentro do hospício, mais mortos fora do que dentro do cemitério... Em momento algum esse humor pucaresco-bulgárico abre mão do ideário crítico do escritor, baseado em ceticismo, idealismo e indignação. (2008, p.24)

3.1 A lua que vem da Ásia

No pacto de leitura desse primeiro livro, devemos assumir a provocação inicial de Carvalho de colocar o ponto de origem da Lua, imagem das noites e dos místicos, lá na Ásia. Já anunciado aqui por Moisés, o livro A Lua vem da Ásia, o primeiro da série de relatos menores de literatura de Campos de Carvalho, que nos põe diante das intimidades de um sujeito em trânsito constante, em “desencontro com a vida” moderna, repressora dos comportamentos vistos como desviantes e inoportunos. Mais do que a vida moderna, com a amplitude lírica e desconcertante da literatura de Carvalho sobressaem-se os sintomas de “biologismos” e os “essencialismos” que acabam por condicionar alguns sujeitos a espaços reclusos na sociedade, sem direito à linguagem própria para se comunicar, quando não a própria sociabilidade é cerceada (literalmente) pelo Direito e pela Ordem vigentes.

Em cena, um sujeito em que devemos confiar para nos enredarmos nessa viagem ao desconhecido, em busca de algum senso real ou mesmo filosófico nessa ideia de que a lua vem realmente da Ásia, como um romance “comum” nos prepara com algo a dizer pelo título, nos seduzindo pela narrativa que deve

92 se vivenciar ao longo dela. Ledo engano. Só há pistas em falso, no labirinto de performances, experiências de linguagem e de vida possíveis.

O sujeito, veremos ao longo do livro, atende por vários nomes, alguns emblemáticos e sugestivos para a literatura de Carvalho, como o de Astrogildo, e vive, ao que nos parece, uma vida de devires e picardias não tão politicamente correta na sociedade em que vivemos. Acerca do território de pertencimento da lua, a mesma consequência: nada de histórico ou mitológico sobre ela aqui, a não ser na historicidade “mítica” criada pelos personagens de Carvalho para que pudessem efetuar a performance de suas personas silenciadas pelo senso comum e o pré-conceito. É a lua que vem da Ásia, da constelação Astrogildo.

Ao lado da comédia escrachada e “vulgar” dos costumes sobretudo burgueses ou aristocráticos como uma leitura possível, potencial, o texto de Astrogildo ainda nos faz embarcar em uma viagem algo lisérgica, psicodélica, em que devaneios e posturas pouco “tradicionais” servem de motor à lógica desconstruída. A lógica, por sua vez, quando desconstruída, serve aos devaneios que costuma aplicar em vida o nosso personagem-narrador, ao transformá-la em delírios líricos em que se metaforiza a experiência humana de si, a partir do próprio relato de narrador perturbado (a do sujeito marginal) e que carece de escrita, de relatar freneticamente seu testemunho do caos.

O contexto externo dessa obra, e das outras três, é o do pós-guerra, ou seja, o do fragmento, de cenário descontruído (ou destruído), em que irrompe sujeitos sobreviventes da hecatombe geopolítica, com narrativas fragmentadas e malditas que encerram o contraditório e fogem ao ordenamento oficial, da lei, do “romance”. Tantos nas suas crônicas quanto nos romances de Campos de Carvalho, vemos esse posicionamento crítico do autor perante os conflitos que se estendem pela modernidade ou pela existência, com seus mortos insepultos. Como diria o outro em uma de suas crônicas, “só me resta, só nos resta gritar por socorro”. (2006, p.95). E do grito se fez o trágico, o drama a se encenar, seja nas novelas carvalhianas, seja em outros textos do autor ainda mais livres e complexos em relação aos gêneros literários.

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Há, desta forma, não só um desapreço pelo status quo de conflito político e econômico nas personagens carvalhianas, mas também uma repulsa a ele com suas posturas amarradas e violentas, que na realidade prática do cotidiano, constroem espaços privilegiados para alguns, em detrimento de outros; que criam discursos privilegiados e de potência supostamente maior, em detrimento ainda de outras manifestações discursivas, desviantes, potencialmente menores, “descontrutivas” de um ordenamento superior, maior, essencial. O perigo que reside nesses relatos consiste no abrigo que se faz ali, nesses textos obscuros, de fantasmas desse período de entre guerras, conflitos, de mortos e sobreviventes que se arrastam na memória coletiva sem um obelisco que o recorde em alguma data oficial, pois não cabem numa história oficial heroica os enredos de subversão moral a que se submetem.

Na literatura menor de Carvalho, são assim os sujeitos descritos, que não se comunicam de maneira tradicional e asséptica, regulamentada, antes se utilizam com ardil das mesmas estratégias da “maioria” para se fazer ouvir, existir, como na forma de um romance escrito e humorístico. Desconstruindo os paradigmas de lógica e de linguagem convencional, além da “moral e bons costumes”; reconstruindo seus desejos e memória à sua maneira, à maneira do seu desejo e suas pulsões humanas, por vezes no limiar com o animal, com a natureza em sua imensidão.

Há um capítulo, por exemplo, em A lua vem da Ásia, chamado “Carta aberta ao Times”, em que a nota de imprensa tão comum no cotidiano burocrático das instituições serve ali de subterfúgio para um discurso que é de outra ordem, que não a vigente, de opinião pública, diários oficiais, decretos e afins. Mesmo na forma de um discurso de gênero oficial, as demandas e a estrutura desse manifesto seriam de outra ordem, “desconstrutiva”, capaz de expor nos limites da própria estrutura de linguagem, os espaços de opressão que não aparecem, que existem no entrelugar do discurso de aparência oficial e legítima a uma maioria.

Sobre a “Carta”, a personagem multifacetada desse livro de Carvalho, depois dos infortúnios e desventuras que se seguem ao longo de seu relato transnacional e metafilosófico, decide enviar ao “Times”, algumas ideias que

94 imagina urgentes para a realidade humana do mundo. Assim, nada mais adequado do que reclamar diretamente àquele que imagina ser reconhecido pela sociedade como reserva moral de valores e costumes, a ponto de ceder espaço em seu semanário para as demandas de justiça ali apontadas pelo narrador, pela virtude simples de uma imprensa livre. Ou o caso é outro para esse remetente: estratégico.

No capítulo de enigmático número 333, segue-se um trecho da “Carta aberta ao Times”:

Embora de pijama, veio-me obrigado a representar VV.Exas. contra o abuso inominável de que vimos sendo vítimas, eu e outras pessoas igualmente respeitáveis, num campo de concentração dentre os muitos que devem existir por este mundo concentrado de hoje, e que não sei dizer se fica na Europa ou na Ásia ou mesmo na Polinésia, pois justamente este é o segredo maior que paira sobre as nossas cabeças, enquanto ainda as tempos. Aqui todos falam todas as línguas, cada um a sua, naturalmente, e o que pode parecer estranhável é que nem sempre é o inglês quem fala o inglês, o francês que fala o francês, o russo quem fala o russo, e assim por diante, sendo ao contrário comum que um embaixador da Abissínia, por exemplo, nunca tenha ouvido falar o abissínio em toda a sua vida, ou que um legado do papa não sabia sequer dizer amen em latim, ou ainda que um descendente de Napoleão Bonaparte só conheça em francês os nomes das boates mais famosas, como Folies Bergère ou Mandarin e outras semelhantes. Eu mesmo, que sou iraniano, ou pelo menos me sinto iraniano esta manhã, não sei dizer ao certo nem onde fica situado o Irã no mundo conturbado de hoje, embora já tenha viajado muito no passado, sobretudo em imaginação. (2008, p.72):

Apesar da formalidade, o texto que se segue foge ao ritualístico do gênero, pois foi escrito por um “leigo”, primeiramente, um “doido”, adoentado de hospício. A sua postura em cena, desde o início, quebra algumas dessas expectativas de hierarquia, como não só a do gênero textual como valor na nossa sociedade, mas também possiblidade uma alternativa ao sujeito, ou no caso ao sujeito narrador que se põe a escrever uma missiva para ser publicada em uma grande mídia. Há outro valor ali de escrita que se sobrepuja ao de literatura maior do senso comum. Não é alguém de relevo, algum político ou estrela da vez. É um personagem menor da sociedade.

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Continuaria assim, na mesma carta, encerrando o relato a ser enviado ao “Times”, para que o mundo tenha consciência da realidade paralela, na denúncia que nos narra esse sujeito carvalhiano, injustiçado pela vida:

Mas tudo isto é trágico, eu bem sei, e o pijama não é o traje apropriado para considerações de tal transcendência, mesmo num mundo em que o absurdo é cada vez mais a regra geral, ou tende a sê-lo pelo menos. Em outra oportunidade (caso me arranjem uma outra garrafa) voltarei ainda ao mesmo assunto, que pode parecer monótono a VV.Exas. Mas que para nós é vital e direi mesmo único, já que a morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a morte do corpo, e que o homem privado da sua liberdade de pensar e de amar, vale menos do que a sua sombra num muro – a menos que se trate naturalmente de um muro junto ao qual ele esteja sendo fuzilado, com os olhos bem abertos e cabeça erguida. Respeitosas saudações. (Idem, p.74)

Se a sociabilidade é restringida a alguns sujeitos que se desviam de uma norma legítima, vem naturalmente daí a necessidade urgente, por exemplo, da denúncia ao “Times” ou algum meio que se faça ouvir o seu grito. Na “prisão” do corpo e da alma restritas a dependências sombrias de uma ambiência marginalizada em manicômios ou mesmo nas ruas, outras alternativas então acabam por aparecer para tais sujeitos esquivos, por questões de sobrevivência, seja nos discursos ou nas suas escolhas rotineiras de vida. Sujeitos para os quais o direito não lhes cabe, não lhes representa, e portanto, não lhes serve de modelo – a não ser que seja, e assim o é na cultura marginalizada, para ser desterritorializado nas suas manifestações culturais e políticas.

Nas cenas de A lua vem da Ásia é antes um devir, um desejo que se manifesta constantemente, da forma que lhe convier, do que uma trajetória retilínea prevista na ordem das coisas, como rezaria alguma cartilha a respeito, de valor (bom, ruim), em que o “nome faz a função”, ou num universo burguês de romance de tradicional, como os de Dickens, Goethe, Flaubert, ou nacionais típicos, como José de Alencar e Machado de Assis. Registros literários que em diversas medidas, conciliam diversos ideais de sociedade que são privilegiados e se mantém pelos discursos e pelas instituições que o representam, mesmo

96 que “intelectuais” e eventualmente críticos do meio social em que vivem. Lima Barreto era jornalista, escritor e o que contava mesmo como narrativa de vida sempre nos pareceu a “caricatura” negra e louca de um sujeito marginal que é mais do que lhe dizem ser ou estar. Mesmo que de maneira a ironizar ou criticar, ainda resta o ranço de categorizações e hierarquias que lhes diz respeito, e nos quais não cabe literaturas menores, caóticas, confusas, que rompem com a maneira de se fazer ou de pensar o objeto literário. Lima Barreto que o diga, Vandré, Sérgio Sampaio, enclausurados pela loucura que sempre lhe disseram doença em de potência criativa ou de espaço privilegiado de arte.

Para alguns, é valor maior, valor digno do capital nas sociedades modernas a literatura maior, como tudo o é no capitalismo, que são representativas de alguma forma da moral de divisão de classes e de sujeitos em classes sociais (altas literaturas/ literaturas menores); para outros, é definitiva questão de sobrevivência, alternativa que se impõe como texto ou como denúncia para dar vida a vozes de fantasmas que obsidiam as mentes confusas entre uma moral falsificada, exterior, e uma ordem sensível ulterior, ambas impositivas nas suas linguagens de valores e de concepções de mundo e de percepção de arte (literaturas menores).

Desta maneira, não há como construir alguma exegese definitiva a respeito do livro de Carvalho, ou outro maldito que seja, colocando no eixo uma personagem como orientação para a leitura, por exemplo, como se de outra forma fosse o texto do autor e de muitos outros pejorativamente ilegível, intimista ou “surreal”, no qual tudo se justifica pela loucura de um lunático Astrogildo. O que está em jogo, parece-nos, é justamente a orientação fixa de um sujeito, de um autor, na literatura, na sociedade, como nas leituras que se faz deles, ou até mesmo da sociedade qual um todo equânime e divido nas desigualdades consequentes.

Difícil definir ali em Campos de Carvalho, um sujeito uno, com um encaminhamento direto e presumível no seu caminho pela vida, que nos relata em discurso intimista e arredio às normatizações, parece-nos desrespeitoso e infeliz. Antes um desencontro com sua sujeição definitiva a diversos protocolos

97 que lhe são impostos em vida é que dá o motor aos desenredos do anti-heroi carvalhiano e à sua literatura estranha e curiosa para um leitor ingênuo ou cheio de pudores cristãos.

Portanto, a literatura de Carvalho está sempre por fazer em meio ao jogo e ao jugo da ciência, entremeada à memória afetiva e o presente sombrio e inóspito em conflito, como na imagem paradisíaca e imaginária da Bulgária em O Púcaro Búlgaro. Nos delírios, sob as memórias que lhe surgem ao acaso de um dia comum, os tempos são outros, mais conflituosos, menos apaziguadores ao espírito irrequieto que busca alternativas de se satisfazer em vida, sem conciliações esperadas no futuro, sempre por fazer, sempre por virem, no porvir misterioso e pouco otimista.

Mesmo se fosse possível definir e desta forma se nortear pelos diversos enredos vastos que subsistem ao texto principal, que seria o registro ou de diário íntimo de um sujeito enclausurado em uma casa de sanidade mental, seriam infinitas as histórias a serem elencadas, reunidas, desconexas entre si, ainda sim. Histórias que não guardam semelhanças umas às outras, já que a personagem que nos relata seus episódios de vida se veste no momento de fala com a identidade do instante epifânico de suas experiências, reais ou não, atendendo no cotidiano de convivência social por vários nomes, várias genealogias, várias performances na ação de prazer e de dor.

Como confiar no seu relato e pensá-lo realidade empírica? Relato clínico? Literatura humorística? Romance marginal? Muito menos um romance tradicional, ou texto meramente de cunho intimista (diário). Uma novela de humorística de folhetim? Em que momentos é geograficamente inverossímil, e em que partes não o é? Qual o enredo por se contar? Qual a moral da história?

Questionamentos inevitáveis na situação, mas que não interessaria dar qualquer continuidade nessa leitura, pois ela se perderá na lógica que não cabe no texto que na origem renega qualquer significação que lhe possa exorcizá-lo no dicionário. O personagem de Carvalho assassina a “lógica” logo no início de seu relato.

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Sua narrativa é do tempo do fantasma que surge dessa temporalidade inesperado: nem aqui, nem agora, nem amanhã, brota como um desejo no porvir, de um dia qualquer, de dor, de luta, mas também de alegria e de felicidade extrema. Comporta nas linhas que o constroem literatura, diversas potências que se almeja transfigurar em palavras, mas que é incapaz de reproduzir realmente a experimentação pessoal do narrador, como um tipo definível e uniforme.

É a partir desses movimentos de repressão e de expurgação, entre esses limites, que se dá a literatura de Carvalho, nunca confortável no texto de leitura que se pretende definitiva ou romântica, como se houvesse conciliação para algo imemorável, quando não uma memória imaterial e indizível em letras, traumatizada pela repressão. São rompantes líricos estratégicos, como a “Carta ao Times”, efetuados por uma das subjetividades possíveis que servem aos sujeitos carvalhianos como persona de sobrevivência na performance subjetiva diante do leitor seja ele crítico ou daqueles que busca entretenimento.

Em um desses momentos de revelação lírica, o sujeito de Carvalho, em A lua vem da Ásia, iria nos revelar alguns de seus intentos em vida, se possível for assim concebê-los em meio ao caos e incertezas que os constitui e os abriga enquanto identidade múltipla e confusa de si:

Preciso escrever uma infinidade de livros para desintoxicar-me, e as minhas espinhas são os livros que não escrevi até hoje, embora já tenha escrito muitos. A palavra foi dada ao homem para blasfemar contra o seu destino, e a palavra escrita é a verdadeira palavra, como o defunto é o único homem verdadeiro, em sua mudez total. (Mudez ou nudez, leiam como quiserem). (2008, p.111)

Primeiramente, relembremos, o anti-herói de Carvalho são muitos, “escreveram vários livros”, dão-se muitos nomes, contam-nos muitas histórias contraditórias entre si, episódios fantásticos e paradoxais, que não nos permite olhá-lo por um ângulo único e definitivo. Talvez apenas o morto e seu cadáver, como sugere o narrador no trecho citado, com sua mudez absoluta, poderia dar seu relato de homem sobre homem. Em vida, além de homens diante de sua

99 humanidade, há em paralelo os fantasmas de outros homens, que suplementam o conflito existencial da mesma “humanidade” sensível e frágil.

Em A lua vem da Ásia, com seus cenários geograficamente paradoxais, há viagens relatadas no livro pelo narrador, entre o mundo, ao redor de um dia, entre Paris, Colômbia e o Brasil novamente, que se confundem com os diversos mapas de suas identidades várias, infinitas na nacionalidade e livre na sua potência de ser e agir. Suas facetas e peripécias são diversas, e seu asco e sua pulsão assassina de início, em relação à lógica, por exemplo, dá-nos uma pista do que se segue e do caminho que se pretenderá seguir: não me entendam por sua cartilha pragmático-matemática, nem por seus mapas cartográficos imperialistas: a minha cartografia é outra.

Na parte inicial do livro, “Primeira parte: Vida Sexual dos Perus”, como se fôssemos nos colocar diante de um texto científico naturalista, desabafa o narrador para seu ouvinte silencioso acerca de seu estado de espírito em vida:

Há momentos em que me sinto mais lúcido, e há outros em que pelo contrário sinto uma presença estranha dentro de mim, como se devêssemos ser gêmeos e houvéssemos nascido dois num corpo só. Esse meu irmão sepulto em mim leva-me a cenas de verdadeiro ridículo, quando não de desespero, como aconteceu ainda há pouco, quando eu queria dormir e ele teimava em ensaiar um novo passo de balé, rodopiando pelo quarto inteiramente nu. (Idem, p.54)

O duplo, que é recorrente no texto do autor, com os signos e discursos constantes de morte e vida ou de identidade confusa, aparece aqui como justificativa possível do narrador para seus conflitos, ou a busca de um senso comum a respeito de suas experiências nem sempre tranquilas ou confortantes, pelo contrário, algo como uma possessão ou sob domínio de um sentimento ou persona inelutável exterior e mais poderosa. A esse respeito, continua Astrogildo a nos confidenciar:

Se há os que acreditam em metempsicose, eu tenho o direito de acreditar nessa dualidade de meu ser, ou antes, nessa existência oculta de meu irmão gêmeo dentro de mim e que um dia irá brotará de meu corpo como um dente de siso retardado.

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Muitos me julgarão excêntrico por isso, e eu sei que julgam, mas o fato é que sou apenas sincero e não costumo ocultar as perplexidades a que me submete minha natureza, como fazem as outras pessoas. (Idem, Ibidem)

Se a lógica não cabe, a “ilogicidade” seria capaz de reunir essas partes confusas e fragmentadas de sujeitos incontidos que desfilam na voz de um único narrador, na “aparência” lógica de um texto de literatura como fim para se justificar e fazer justiça. Como a metempsicose e as ciências ocultas, sugerida no romance de Carvalho, estudos de pouco prestígio para um discurso (científico) de natureza positivista, porque nega a ciência como religião.

Não é um sujeito narrador culto, escritor de prestígio, que escreve à maneira convencional e que nos conta seus ardis, antes alguém para o qual esses limites de valor na cultura sempre significaram um obstáculo para o pleno sentimento de pertença e realização em vida, seja a um território físico ou um outro espiritual, ou ainda um imaginário ideológico, político alternativo.

Afinal, para os personagens de Carvalho, ainda que se diga o contrário, a lua vem da Ásia, irremediavelmente. Aliás, seriam fantasmas que o atormentam e que se reproduz no texto frenético do diário que é lido, e que, “incorporado” por essas obsessões, escreve para/ por ele? Como trazê-los a luz se fogem dela, encará-los de vez, se são temidos e reprimidos durante o dia e a noite? Com qual sintaxe se deve relacionar algo para o que não se nomeia, sequer é visto ou reconhecido? É essa a empreitada de Astrogildo, para quem, segundo ele, é “apenas sincero” e que por isso não guarda em si as “perplexidades” de seu espírito.

Enquanto reprimido na matéria pela ordem vigente de corpo e espírito, a lei se faz presente na prisão que o condiciona a escrever em quatro paredes, e em paralelo à sua realidade de exclusão, imaginativa e delirante. Há no entanto o universo que ressoa por todo aquele espaço, que o atormenta, seja alguma memória traumática, seja alguma influência que lhe chega de súbito, “como perplexidade” ou “revelação”, que o arrasta por outros tempos e outros lugares do globo ou do universo.

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Experiências de vida que o levam à ação atemporal em um espaço próprio de literatura em que não mais se busca restringir o movimento e as performances íntimas ou coletivas do corpo. Ação que, a despeito do cerceamento das paredes opressoras, de um “hotel” ou “campo de concentração”, o faz divagar por sua própria história, entre os fantasmas que vem lhe perturbar: sem arreios, amarras, viaja e age por contrária própria, à maneira de sua própria lógica, de seus devires menores, malditos.

Histórias na literatura que transcendem sua vida cerceada no espaço de um asilo e adquirem um caráter libertário e de geografia infinita, colocando em xeque a própria ausência de legitimidade em suas histórias menores: um sujeito “maluco” (um louco que escreve) que nos narra suas memórias imemoriais. Já não importaria mais aqui qualquer ideia de ficção e realidade como fenômenos dissociados entre si, mas como instância própria da intimidade do sujeito em que ambas temporalidades ali convivem, dos sujeitos, em nenhuma norma externa consegue dar conta de reger.

Nesse espaço próprio que criam para o relato e que nos é narrado pelo narrador, não lhes importa mais se o oprimem por algo que digam, nem que o molestem por suas escolhas, desvios da “normalidade”. Afinal, não importa o que dizem os “entendidos”, a lua vem da Ásia, e isso lhes parece bastante claro. Dizer que a lua vem então da Ásia, porque é desse lado “leste” que um enclausurado como Astrogildo veria o céu e o universo, é não embarcar nas viagens possíveis do relato desse sujeito que nos afirma que a lua se encontra e vem até ele lá das paragens asiáticas.

A esse respeito, pelo que lhe julgam “os algozes”, Astrogildo iria desabafar novamente, sobre a impossibilidade de se desfazer de seu universo único e universal, mesmo que lhe imponham o contrário, ainda que tenha que se calar publicamente, sob censura e claustro:

Aliás, estou decidido a calar-me agora mais do que nunca, a fim de não proporcionar aos meus algozes o espetáculo de uma covardia que não tenho e jamais será minha. Torturem-me até a mutilação, ponham-me nu quantas vezes queiram, eu que já vivo nu sem que eles o percebam; deixem-me incomunicável em minha cela como se eu fosse um anacoreta, eu que de fato sou

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um oásis cercado de deserto por todos os lados; - força nenhuma me fará abdicar de minha força ou mesmo de minha fraqueza, como nenhum me fará sair da minha pele, que afinal é a minha cidadela. Posso gritar, e acredito mesmo que venha a gritar muitas vezes, já que para isso foi dado o grito ao homem e o grito é apenas uma forma de defesa como outra qualquer; jamais, porém, me farão dizer A quando é B ou J que eu deva dizer, nem me crucificarão impunemente, sem que eu lhes responda com um riso de escárnio na boca ensanguentada. (2008, p.61)

Astrogildo não irá necessariamente se calar, mas nos leva a embarcar em sua viagem ao desconhecido, através de diversos enredos, nem sempre ligados entre si, que nos demonstram a confusão em relação à maioria da sociedade, além daquela rotina ordinária que se aparenta um centro de tratamento psiquiátrico para um alheio à realidade que vige em suas dependências sanitárias. O espaço concreto com que se aparenta a normalidade de um hospital, nada mais é do que um simulacro, na lógica, na psique, na moral cotidiana da sociedade avançada e tecnocrática, muito mais complexas em relação ao que omite do campo de visão. Porém, confusão na aparência da linguagem com que se apresenta, mas que comporta nas suas engrenagens diversos motores e devires poderosos e infinitos, suas pulsões de paixão e dor de existir transfigurados em literatura sobrevivente e crítica de uma sociedade repressora.

Antes de um diário de um louco, como muitas leituras dizem de A lua vem da Ásia, é um discurso menor de um sujeito acerca de seu universo vasto e particular. A estratégia para tal, será a mesma que se convenciona na aparência, que é o de se fazer algo grandioso, de valor de ciência, ou da ideia que se desenvolve na escrita, em um livro para se tornar registro: algo de valor, que legitime saber, culturas, ideias, comportamentos. Mais: seja capaz de colocar em xeque, da mesma forma, os mesmos valores e estruturas aos quais se é necessário submeter ao crivo de uma ordem superior, de uma postura de etiqueta. “Desaprender, para aprender”, disse Carvalho certa vez.

O que tem o sujeito para nos relatar, não cabe apenas em um livro, em palavras, parágrafos, períodos, romances, gêneros, formas, fórmulas, formatos. São potências múltiplas, das quais sobrevêm-nos algumas, nos relatos dos

103 personagens de Carvalho, como o descrito pelo narrador de A lua vem da Ásia e os sujeitos igualmente “estranhos” que contracenam com esse contador de histórias malucas e amorais. Warburg tinha no Atlas Mnemosyne essa obsessão por imagens da história da arte que se associam no infinito; Benjamim construía a seu tempo suas “Passagens”. A qual sintaxe recorrer para que minhas experiências e a de outras existam nesse plano exterior, imaginário comum às minhas experimentações cotidianas, conflitivas, ambíguas, “imorais”? Que gênero literário ou que mapa é capaz de servir de suporte ou mapeamento das narrativas de minhas dores e amores pela vida imensa e vasta?

A morte (da lógica) que anuncia o primeiro livro de Campos de Carvalho é a assombração que caminha com a vida da(s) personagem(s), que sobrevive(m) sob angústias e melancolias, marginalizada(s) (d)à história e de si mesmo, que caminham pela existência incompreendida(s). Isso quando não são ridicularizada(s), invisibilizada(s), constrangidas em espaços fechados pela incompreensão tacanha, a injustiça, sob o signo da morte a rondar suas escolhas de aparência ilógica para uma maioria dominante, poderosa na força, e que se faz dominar e repreender.

Diz o sujeito de A lua vem da Ásia, diante de um dia chuvoso e cinza – momento adequado e carvalhiano, propício às especulações dessa natureza:

Por outro lado, não é verdade que os mortos hão de sentir-se apavorados dentro da terra encharcada e gotejante, sobretudo os mortos recentes e que ainda não estão acostumados com a sua solidão? Eu, depois de morto, tanto se me dá que chova ou que deixe de chover, mas aquela frase do meu amigo não deixa de ser bela e profundamente inspiradora. Não acredito que a sede seja o que mais importune os mortos no meu silêncio, mas a poesia é sempre necessária e é bom que os poetas estejam lembrando-se dos mortos nos dias de chuva, como uma mãe de seus filhos. (2008, p.41)

Para Juva Batella (2004), em Campos de Carvalho, o que estaria em questão entre a vida e a morte são sempre os limites que se impõem diante do sujeito em sua trajetória de existência terrena. O que acaba representando na prática cotidiana daqueles personagens os entraves à sua liberdade de espírito, como

104 para a poesia e os poetas da morte, que diz o personagem narrador de Carvalho, diante da imagem recobrada da inesperada das gentes em um dia chuvoso.

Para ele, Batella, A lua vem da Ásia, seria um “livro-limite”, pois “o que está durante todo o tempo por um fio é a capacidade do homem de ser livre e pensar livremente”. Por consequência, os “personagens limites” e seus discursos absurdos, fantásticos, amorais e libertários – e, claro, políticos, politicamente “menores”.

Bem como a literatura de Carvalho entre limites, resumiríamos, há sempre esse confronto em cena entre o jogo da encenação literária e, metaforicamente, e a tragédia das performances de vida de marginais da sociedade.

Já para Natalino da Silva de Oliveira (2014), há um jogo efetuado na narrativa, que pede um pacto com o leitor, para aceitação dos desvarios que se seguirão, pela trajetória dispersa que faz caminho. A linguagem desvairada que toma corpo ao longo do livro é encenada a nós pelo que Oliveira chama de “labirintos performáticos”, na forma que o sujeito se manifesta em sua multiplicidade ideológica e imaginária na busca de uma “crítica contundente” em seu posicionamento frente ao mundo. Para o teórico:

A lua vem da Ásia é um constante apontar de dedos, uma abertura de cicatrizes. A força crítica da narrativa está na constante presença da liberdade ou da busca por esta. E a ironia é reforçada pelo sujeito que empreende esta busca, um louco que carrega em si o perfil do bêbado, do clown, da criança, para repetidamente afirmar que o rei está nu. Perante a incerteza de um tempo em que tudo é questionável, a literatura provoca o leitor para um processo de crítica contundente. No romance de Campos de Carvalho há uma fragilização das fronteiras entre sonho e realidade, sanidade e loucura com objetivo de afastar o receptor do sonho da razão. Desta forma, o narrador se assume escritor estabelecendo com o leitor um pacto que aceite esta situação”. (2014, p.183)

Se fôssemos sumarizar o enredo desse título de Campos de Carvalho, encontraríamos dificuldades absurdas em trazer alguns eixos principais que são reunidos no livro, em busca de qualquer linearidade que seja, para fins

105 didáticos. Pelo contrário, como já se sabe das condições de proposta pouco racionalista do narrador de nossa obra aqui pensada, o texto que nos é apresentado, com caráter intimista, confessional, não seguirá, já se esperaria na leitura, cadenciando episódios lineares e temporais da vida do sujeito, como num diário qualquer dividido em memorialística de tempo linear. De outra maneira, a literatura de Carvalho irromperá à maneira das angústias fantasmais de seus personagens, travestidas com a verborragia algo lírica da trama, que não tem tempo nem lugar no “espaço-nave”, trem sempre em movimento, lugar em trânsito onde brota o lirismo espetacular do narrador em conflito.

Daí, talvez, o “limite” de que fala Batella, pelas situações em jogo serem extremadas, ou de intensidades líricas passionais, confessionais, como já dito, ou situações extremas, de sobrevivência em meio ao naturalmente desarranjado. Ao passo que o narrador nos conta suas filosofias amarguradas que alimenta na solidão, divide conosco também episódios insólitos de sua vida que nos parecerão estranhos e inesperados, seja a partir dessas reflexões primeiras, nem sempre lógicas ou “bem comportadas”, seja por algum evento que surge do nada, que muda a trajetória dos fatos contados ao leitor.

À maneira que matuta suas próprias ideias aparentemente confusas, com seus traumas e recalques em paralelo, é que se constrói essa narrativa que busca “definir” o espaço de onde se vê a Ásia como ponto de origem da Lua. Não é a lógica da tradição cartográfica, leste/ oeste, norte sul, nem a literária, no ato reflexo de um romance que se pretende como tal, tradicional. É sim um texto que brota do imaginário que transita entre a realidade pouco hospitaleira e os delírios geográficos e filosóficos que se impõem na vida e na escrita do narrador, como movimentação libertária e desestabilizadora, acompanhada de diversos fantasmas que o inspiram e sussurram os dizeres malditos, levando- os por caminhos esquecidos pela conformidade.

Diria o narrador de Carvalho nesse livro, a respeito de sua natureza gauche, numa espécie de mea culpa, bastante irônico - postura que aliás é bastante comum aos narradores de Carvalho - vistos em uma primeira leitura comum, moral, como desviantes e desajustados:

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“E é esse clown que agora me faz suportar com a devida filosofia esta prova de fogo a que me submetem os carrascos de todos os tempos, ao tentarem arrancar-me a verdade, que em mim está bem à flor da pele. Se eu vivesse no tempo de Pilatos certamente seria crucificado hoje mesmo; mas os tempos hoje são outros, e se contentam em deitar-me numa cama confortável, com um capacete alemão a contrapeso. O objetivo, porém, é sempre o mesmo – a Verdade – como se eu tivesse uma única verdade e não muitas, todas à flor da pele e lutando entre si como num campo de batalha. É verdade que nem todos leem a minha verdade plural, escrita em linguagem simples, e eu não me sinto obrigado a dizê-la de viva voz, como quem recita uma lição de catecismo; eles que me leiam sem complicações, como se eu fora apenas um homem e não um poço de hieróglifos”. (2008, p.61)

Ao lado de um texto de origem rasurada, pela loucura ou obsessão, a narrativa de Carvalho esconde assim outras possibilidades, além de um discurso controverso de um sujeito ensandecido, que nos relata suas novelas brotadas nas dependências de um manicômio ou não. O lugar-comum da estratégia de dar voz a um louco, que faz com que “tudo se justifique”, transparece mesmo assim noutras narrativas “peculiares” e “hiper-realistas”, mas de potência infinita, sobretudo de confrontação política.

Posicionar-se de uma maneira não-convencional faz com que a ordem seja colocada em xeque, de maneira crítica, assim como ideias de valor, de tradição, de ordenamento na sociedade do Ocidente por que percorre os narradores de Carvalho, que curiosamente, não nos fala muito sobre a Ásia. É necessário, portanto, revisitar primeiro essas estratégias subjacentes ao texto, que são mais do que uma estratégia qualquer, simples, de fazer rir ou impressionar um leitor incauto. Essa literatura menor demostra as engrenagens ocultas dos sistemas a que as sociedades se submetem e que nem sempre é explícita na forma de um contrato como os demais que são tão comuns ao cotidiano da sociedade capitalista.

As ideias malditas e menores ressurgem, como na literatura e na escrita de Campos de Carvalho, pois que ultrajadas na sua origem, retornam a fim de se harmonizarem na confusão espectral que a meteram, tentando refugiá-la definitivamente nas sombras. Há vida além da luz, ou da aridez desértica de qualquer realidade pouco exemplar para uma classe que se impõe na divisão e

107 no poder hegemônico de classes, que não indicie logo na aparência viciada a natureza viva que dali reluz.

É para se realocar, como uma placa tectônica, no espaço geográfico das estruturas sociais – e para tal, há que deslocar-se e provocar algumas ondas que ressoam perigosas e destrutivas – que parecem se movimentar os personagens multifacetados de Carvalho. Movimentar para sobreviver, diante de fantasmas atormentados e que também atormentam, e que se movimentam, ressurgem, caminham pela “eternidade”, órfãos de um relato seu.

Oliveira (2014) concordaria com isso em sua dissertação, e diz ainda que as viagens relatadas em A lua vem da Ásia significam mais do que um texto confessional de um diário de um sujeito frente a memórias e aflições assombradas. Em paralelo ao texto intimista e inconstante da aparência, há outro movimento que se efetua, a partir de sua leitura: é a própria realização da escrita carvalhiana, de suas estratégias inesperadas de humor e desestabilização dos “totalitarismos”, com a “apropriação da liberdade” como ideal a ser vestir. Para Oliveira:

Assim como o espaço delimitado que a personagem ocupa não a impede de viajar, o romance de Campos de Carvalho, sem criar pirotecnias mirabolantes consegue levar o leitor a viagens. E são estas viagens que proporcionam para aquele que ler o questionamento de sua situação, de sua existência. Dar voz ao louco é por um lado criar um personagem que questiona velhas estruturas, alegorias, leis, costumes e por outro uma forma do escritor apropriar-se da loucura como instrumento de liberdade e fazer de sua literatura um elemento crítico e político. (2014, p.184)

A lua vem da Ásia não é um texto “a priori”, ou seja, um projeto de romance, muito menos uma “novela”, que se dá no “presente” da leitura, ainda que o texto de Carvalho descreva infinitos episódios picarescos que se assemelham a uma. Não é um texto futuro, pois que se agudiza, na mesma medida que explode em lírica poética, culta muitas vezes, mas que não se pretende ligada ao ideal artístico como na tradição castrada do cânone tradicional. É sim um texto interditado, que se configura como emergência a partir desse espaço de

108 cerceamento seja físico (claustro) ou imaginário (ideias). Espaço em paralelo no qual os limites se dão livres, em fluxo, em contemporaneidade flagrante, sem sincronicidade histórica, sem, por fim, historicidade comum. É um texto confessional, como nesse enxerto em que o personagem divaga acerca da morte, mas que não se configura um simples rabisco de diário, antes um delírio literário, ou um texto assumidamente ilógico, menor, político, que surge de condições adversas, de sobrevivência em meio a fantasmas e mortos-vivos do passado assombroso.

Assim, o texto carvalhiano parece expor os limites imaginários ou não em que a liberdade realmente se dá no cotidiano, a capacidade de pensar autonomamente e de ser, e portanto, viver feito um sujeito livre para suas escolhas e para experiências de seu desejo e devir, além da ambiguidade inescapável e sempre presente de vida e morte, o utilitário e o inútil. Não há lógica capaz de reunir os anseios da alma e de um espírito retirante, bem como uma estratégia eficiente de devolver a vida a um espírito perdido sobre um cadáver putrefado em vala comum.

Em referência ao primeiro episódio de A lua vem da Ásia, Batella nos apresenta o romance contraditório de Carvalho, logo nos seus primeiros indícios – o que ele dirá, aliás, ser um bom caminho a se percorrer de início frente às infinitas imbricações por surgir. Para ele, “o narrador-personagem povoa todos os cantos do planeta e tudo que acontece com qualquer um lhe diz respeito” (2004, p.67). Estamos diante, portanto, de um universo egóico e igualmente universal, bastante escorregadio, com seus próprios mapas e cartografia própria, suas identidades desvairadas nas suas performances de linguagem encenada, escrita.

Não só a narrativa se desenrola em espaço geográfico multirreferencial e às vezes concomitante, um espectro que opera em espaços diversos, “ao mesmo tempo”, como também as impressões do sujeito sobre o mundo, sobre si, sobre o outro, alternam-se sob a mesma paisagem geográfica de sua intimidade no claustro e de sua realidade marginalizada do convívio em sociedade. Impressões que, quando relatadas, sempre estão sujeitas às intempéries da censura do outro, mais poderoso, mas nunca capaz de roubar o narrador

109 carvalhiano de suas histórias de si, de universo seu que existe e que nos é narrado à sua maneira, à maneira que lhe cabe, à maneira que lhe serve.

Continua Batella:

Seu personagem reflete o complexo da cultura de massa – um comportamento marcado pela desmaterialização da realidade e pela fragmentação do indivíduo. Ruy Barbo ou Astrogildo, participa dos dois movimentos, pelejando para permanecer coerente em um mundo estilhaçado, e ao mesmo tempo recusando toda a espécie de totalização imposta por seus semelhantes. (2004, p.69)

É a ordem do discurso que está em jogo, naquilo que significar, na ordem das coisas, exclusão, injustiça, ressentimento, “totalização”. O que se negocia, é porventura outra relação na sociedade, menos opressiva, repressora, longe daquela vulgarizada pelo uso que parte de princípios éticos essencialistas para segmentar as diferenças. Ato contínuo do uso que acaba diminuindo o potencial transformador das relações e dos próprios desejos humanos – sempre contraditórios e inconciliáveis.

Em alguns momentos na obra carvalhiana, como lembra Batella, os personagens, nessa natureza subversiva que os define, se posicionariam como “comunistas”, “subversivos” e também se reinventam diante disso, de uma categoria que possa servir, por questão de sobrevivência. O espectro de Marx, que apontou as divisões sociais da sociedade moderna, na sua história rasurada pelo poder dominante, se manteria no imaginário ressonante da posteridade, nas categorias e no comunismo como ideal subversivo.

Recorda Batella:

A desenvoltura com que Campos de Carvalho leva seu personagem a engajar-se em uma revolução comunista aos gritos de Morra a oligarquia!” e “Viva a revolução” é a mesma que podermos testemunhar, fracassado o movimento revolucionário, sua adesão à causa oposto, aos gritos de Morra a liberdade! e Viva a oligarquia! (...), demonstrando repudio do narrador a todo projeto coletivo”. (Idem, Ibidem)

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Carvalho, portanto, encena justamente essas escolhas e experiências, que nem sempre são conciliáveis para o espírito em relação a ordem vigente da matéria, dos costumes, da moral, da lei. Assim, como continuaria Batella, seus personagens são igualmente “limites”, ou limítrofes – não por acaso, em A lua vem da Ásia são sujeitos vistos como loucos os que tentam vocalizar os discursos dissonantes e espectrais da obra de Carvalho (a loucura, a culpa, a lei, a ordem).

Um espaço em sociedade que não seja atormentado por fantasmas do passado, recalcados, que sobrevêm num lapso de contingência no ato das experiências humanas. Um lugar tranquilo, no seu próprio espaço-tempo, que se possa dormir em paz. Eis que desabafa, esse sujeito carvalhiano, em A lua vem da Ásia, acerca disso, de suas angústias que não o permitem viver tranquilamente, a ponto de dormir deveras:

Assombra-me (sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se houvessem suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. Parecem bonecos de corda a que de repente faltasse a corda, e a sua consciência é também uma simples questão de corda a mais ou menos, como o é também a sua voz, em tudo igual à de um boneco que fala mamãe. Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre me pareceu mais penoso e meritória do que a do Himalaia, ou mesmo do monte Everest”. (2008, p.40)

A vaca que tem um nariz sutil

Enquanto no primeiro livro de Carvalho a lua vem da Ásia, diz-nos os narradores múltiplos do livro homônimo a este fato constatado na obra citada, veremo-nos a seguir diante de outra imagem pitoresca por se compreender e embarcar na ideia, como a de uma “vaca de nariz sutil”. O título, em uma leitura ingênua, pode nos remeter a algum enredo de temática infantil, ou outra tão em voga hoje em dia como a agroecologia.

Perguntado sobre o título curioso desse seu segundo livro, Campos de Carvalho disse remeter sua obra a um quadro que teve oportunidade de

111 observar, e apreenderia ali, naquela imagem que lhe pareceu também curiosa – como a que veremos de um vaso do tipo “púcaro búlgaro”, título de sua última obra -, e que carecia de alguma explanação literária, digna da sutileza do nariz daquela vaca. O quadro em questão, se isso importar, é real, existe, e tem mesmo nome, do pintor francês Jean Dubuffet9.

O quadro nada tem de sutil, é aquela “arte bruta”, observará quem se colocar diante da historiografia do quadro que é aqui referenciado. Escuro, distorcido, pode-se observar nele mais uma narrativa trágica de arte, de conflito dialético e dialógico com a existência, a arte, a cultura, a natureza, do que uma pintura figurativa mais clara e pacificadora no estilo, de se expor em coleção de arte.

Além do claro/escuro barroco, caberá notar ainda o caráter desconexo e confuso da imagem, que torna paradoxal inclusive a relação do título da obra com a obra em questão (vaca/nariz/sutil). Há um limite, desta forma, posto em jogo na leitura primeira que se possa fazer do quadro, ingênua e primitiva, pelo menos entre a “lógica e a ilógica”, a partir da leitura de seu título, assim como na literatura provocativa de Campos de Carvalho e sua Vaca com a mesma “sutileza” inesperada de nariz do quadro, como se lê em seu texto que toma emprestado o título da pintura de Dubuffet.

Nos meandros dessa imagem de arte, dessa vaca de nariz sem igual do pintor, em um plano pictórico, a figura de uma vaca que parece gritar, expande-se para dimensão do observador do quadro, antes de qualquer sutileza contemplativa aludida no princípio, com o título. O título assim se compõe à pintura como retrato paralelo, em que o todo nem sempre configura a parte, ou melhor, nem sempre o sentido é o primeiro que se estabelece em um jogo discursivo entre nome e função. Eles ocorrem em paralelo, em suspensão crítica no momento de leitura de um quadro. Leio, observo, sou provocado e reajo ao que observo.

Em questão, a princípio, duas imagens: uma afirmativa, concreta, o “todo”, e outra “sutil”, “fragmento”, crítica, sensível, desestabilizadora de princípios definidores do que quer seja, como de arte maior, ou de um nariz menos sutil

9 Conf.: Anexo III. 112 de outra vaca. Uma vaca nada sutil que se nomeia sutil, ironicamente, pelo nariz tão dilacerado como todas as outras partes que a compõem animal dessa espécie em comparação com um exemplar desse num catálogo de biologia vulgar ou numa selfie pelo pasto. Quem sabe é de outra vaca de que se fala, metafísica, epifânica.

Por que da sutileza de um nariz de uma vaca? A vaca de que se fala é outra ou é essa esquisita do pintor francês? Questionar a vaca, em si, em suas essências, em seu porte, matriz genética, é o mesmo que questionar as razões do trânsito da lua a partir da Ásia, e não da Europa, nem das Américas. Não veremos em cena, na obra de Carvalho com esse título de A vaca de Nariz Sutil, nenhum animal contracenando entre si como humanos, tipo o texto de uma fábula; nem o mamífero vaca como motor de uma tragédia humana em forma de um romance, tipo Revolução dos Bichos. É mais um “labirinto performático”, segundo Oliveira (2014), com a qual se defronta o leitor nas leituras carvalhianas. Nada é o que parece ser, nem nunca será, já que se um dia o for, definitivo em suas leituras condicionadas, não haveria mais o que provocar nem desestabilizar, o que é completamente diverso da realidade construída por ou para esses sujeitos arredios à norma regradora.

Segundo Juva Batella, é a morte que ronda o narrador de A vaca de nariz sutil, e ele então vai nos contando suas aflições diante de sua imagem ressonante no dia a dia. Ao lado disso, a solidão do pós-guerra, não necessariamente histórico, de um romance histórico, mas representativo ainda acerca de um período marcado pelo conflito, pela emergência do decadente e o fragmentário.

Para ele, Batella, além da crítica carvalhiana às guerras, a morte é o tema recorrente, seja para trazer vida a narrativa, pela memória que traz de volta, à luz, o passado que é sombra fantasma no presente de melancolia; seja inclusive a morte de fato, pelo fantasma que assombra e que não dá vida alguma, antes forja a melancolia do presente, pelo passado que ressoa como trauma, ou de outra maneira, a vida como negação de si, de sua identidade e sua memória íntima, destroçada pela dúvida, pelo remorso.

Segundo Batella, sobre essa questão:

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A morte é o tema recorrente de VACA DE NARIZ SUTIL. A morte em vida do narrador, a morte que o cercará em sua existência quotidiana e a morte que foi por ele tantas vezes praticada na guerra, de que saiu fisicamente ileso. Seus sinais esparram-se por todo o romance. Logo ao início o narrador conta de seu encontro com um zelador de cemitério: “Onde o senhor dorme? No Hotel Terminus”. (2004, p.121)

A literatura que brota das esquisitices aparentes desse escritor são o motor de sua escrita e de sua revelação libertadora, quase sempre denúncia de cerceamento institucional das liberdades de espírito dos sujeitos ditos desviantes das cartilhas dos bons costumes burgueses, das morais dessa mesma burguesia estabelecida e parasitária. Não há conciliação fácil do ponto de vista do sujeito vitimado, no caso, cerceado de sua pulsão de vida e de um espaço comum de performances para suas narrativas por se contar e viver, em que se faça facilmente justiça. O trauma não se dilui de uma hora para outra, como se um fantasma esconjurado em ritual para esse fim. Seu tempo, sua narrativa são outras, por vezes dispersas e desarranjadas daquilo que se pensa no senso comum, por isso não seriam libertados tranquilamente sem que nenhuma revolução houvesse, sobretudo por parte de quem os lê e os observa sem intervir.

Em A Vaca de Nariz Sutil, é um sujeito que encena na literatura, que escreve sua trajetória de luta na guerra, ou antes o medo constante na luta contra a morte que o ronda. Seu corpo, dirá Batella, é em si a “metáfora da guerra” (2004, p.126): “praticamente uma sobra da guerra, ou uma sombra da morte vivida na guerra.

Logo no início do livro, no capítulo 3, a esse respeito, o narrador nos afirma, como se sintetizasse seu conflito dialógico de existência humana, entre fantasma da morte ou de vida, ou ainda a estratégia narrativa de efeito, quase proverbial, como irá lembra Batella (p.123): “pago a pensão com a pensão que o Estado me paga pelo meu estado”. É desta maneira suspeita, conflitiva, ao mesmo tempo de aparência trágica, que irá se desenrolar o romance de intensidades A vaca de Nariz Sutil.

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Mesmo que por segurança emocional se negue a existência deles, ainda restariam fantasmas, vários, insepultos e perdidos na memória e no tempo. Acerca disso, o narrador de A Vaca de Nariz Sutil conta-nos em um momento, em uma espécie de autoafirmação para si: “não existem fantasmas” (2004, p.155). Se há morte, há fantasmas, ainda que não apareçam, nem se queira vê-los de perto, senti-los habitar o corpo que lamenta a ausência da experiência perdida no tempo e na memória. Em comparação desonesta, enquanto Astrogildo sob a lua asiática demonstra uma tranquilidade com o seu espírito juvenil cheio de vida, o ex-combatente já é morte adiada, o cadáver à espera da cerimônia fúnebre e da lápide.

É no conflito, na dúvida, da ausência, que se faz o mister de escrever, como estratégia de sobrevivência, de lidar com imagens sobreviventes e ressonantes no imaginário encarcerado: ali, na página nua de um romance passional, pode- se desnudar a memória enlutada na maneira que dizem os fantasmas em seus ouvidos, na sua cabeça confusa, perdida no espaço-tempo do agora e do antes recente e pesaroso. Astrogildo lidaria melhor com seus conflitos, no mundo imaginativo que constrói ao seu comando, do que o militar de dias gloriosos que hoje vegeta, inerte, feito o morto definitivo que Ruy Barbo, uma das personas encenadas em A lua vem da Ásia disse, aquele que é mudo de vez.

Em relação ao texto de Carvalho nesse seu segundo romance reunido na Obra Reunida do autor, Josiane Gonzaga de Oliveira iria definir de tal maneira as imagens e as sombras que se sobressaem do movimento de expressão lírica em A Vaca de nariz sutil, caso possível, ou mesmo necessário, efetuar alguma linearidade ao se contextualizar a leitura do livro:

Em Vaca de nariz sutil, temos um relato pessoal de um ex- combatente de guerra esquizofrênico, obcecado e atormentado pela ideia de morte e pelo vazio de sentido da existência humana. O protagonista, que não possui um nome, apaixona-se por Valquíria, uma adolescente de quinze anos, filha de um zelador de cemitério e que possui algum tipo de deficiência mental, deficiência essa não percebida ou, pelo menos, não considerada pelo protagonista. Depois de algum tempo vivendo em segredo o seu amor por Valquíria, o ex-combatente a possui sobre a laje de um túmulo no cemitério da cidade, onde é surpreendido por uma moradora da pensão em que vive e acusado por ela de ter violentado a menor. O narrador-

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personagem é preso, interrogado, porém libertado devido à sua condição de herói de guerra. Logo em seguida, é banido da cidade e a narrativa termina em uma estação desconhecida, cujos trilhos conduzem o protagonista ao seu “desrumo”. (2013, p.89-90)

Vê-se, portanto, como resumiria Oliveira (2014) e Batella (2004), a morte como signo a rondar a existência desse narrador-personagem traumatizado pela guerra e a solidão do presente de melancolia. Se os fantasmas remetem a ausências e rasuras, no tempo próprio em que habitam no espectro da realidade, se escrever é remeter aos mortos, igualmente de fantasmas e de morte que se movimenta a arte, e a literatura, no caso. É na literatura que igualmente se movimentam essas imagens, que elas sobrevivem pelas narrativas, e se imiscuem no texto aparentemente imóvel nas palavras e nos gestos.

É por isso que na arte, para Georges Didi-Huberman (2013), haveria uma evocação dessa ausência perdida no tempo presente: presente de um tempo misterioso, fugidio, como o condensado no processo artístico ou até mesmo numa escrita de conforto ou expiação na reclusão qual ao de um narrador carvalhiano. Diz Didi-Huberman a esse respeito:

“Os próprios gregos, ao menos na suposição de Wickelmann, nunca fizeram a história “viva” de sua arte. Essa história começa, revela sua primeira necessidade, no exato momento em que seu objeto é pensado como objeto morto. Tal história será vivida, portanto, como um trabalho do luto (História da arte entre os antigos, trabalho do luto da arte antiga) e uma evocação sem esperança da coisa perdida”. (2013, p.17)

Desde a arte pensada e trabalhada na Grécia da tradição, como recordou Didi- Huberman, pensar esse ofício curioso da história da humanidade já colocava diante do trabalho da filosofia da arte uma questão temporal ou de existência natural: o presente, da obra, com o passado ausente, no trabalho de luto que opera o artista, na evocação da “coisa perdida”, ainda que não exista com isso esperança alguma de finalmente encontrá-la e poder ressignificá-la com suas mãos. É outro tempo, talvez utópico, da ideia possível, em outra relação

116 temporal, que seja suficiente para as pulsões invariáveis do espírito, no nascer e transformar-se da trajetória de uma obra de arte; transitar a partir de uma intensidade que brota e suplementa o real cotidiano, do tempo-espaço simultâneo.

Como na vida, a morte é luto presente e definitivo, parecerá incontrolável à ciência racional. Na arte, a morte se faz presença diante do fazer artístico, como coisa a se movimentar e transformar. No caso de A vaca de Nariz Sutil, a escrita que se reproduz pelo delírio e melancolia alimentados pela morte que o cerca, traduz coisa perdida da memória enlutada de um sujeito do trauma e da dor lancinante que não se traduz facilmente em anamnese ou remediação ou reclusão. A guerra se foi, mas na assombração dela, da morte que com ela caminha, a mesma guerra se mantém na sua solidão conflituosa, de existência desconfiada do “Estado”, do seu “estado”, e principalmente, a repreensão da vida pela condição social ou até filosófica de marginal, “estuprador”.

Enquanto o lugar de discurso parecer o mesmo, discriminatório e indiferente com as diferenças latejantes da alma e transbordas por vezes no discurso do outro, enquanto o estabelecido ainda se render à ordem burocrática e hierárquica de subjugação de poderes inferiores, ou a afamada meritocracia como religião seguir inspirando mentes perdidas, ainda persiste da mesma forma que esses espaços de reclusão persistirão e farão sentido ao lado deles. As minorias escondidas, os enredos silenciados de memória que não convêm ao ideal de um todo uníssono e unívoco cultural, nacional, linguístico, literário continuariam à sombra, como sobra. Em paralelo, aos sujeitos que enredam narrativas escondidas, e que seguirão existindo, transformando o tempo e o real à sua maneira, sem esperança de reaver o tempo perdido na memória fluida.

Sobre isso, tal angústia com qual convive e deve se confrontar nas performances cotidianas de sujeito desviante dos bons costumes, iria desabafar o personagem desse segundo livro de Campos de Carvalho, em meio a uma constelação de divagações existenciais, entremeadas às memórias do front que o apavoram:

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Minha memória era perfeitamente lógica, e isso os desnorteava e a mim principalmente. Tinham me ensinado tanta e tanta coisa que eu me julgava um animal pensante, capaz de criar pensamentos para enfrentar esta ou qualquer vida, como um deus em miniatura, com alma imortal e tudo; de súbito fui virado pelo avesso, quem me virou não sei, o médico disse que fui eu mesmo, e as coisas mais simples se tornaram terrivelmente complexas, como viver por exemplo, ou dormir sobre o lado esquerdo, como havia feito desde sempre. Até copular, que era a minha distração predileta, tornou-se um problema sério, de quase impossível solução, e isso sem falar nas suas consequências mais remotas, que eu transferia aos fabricantes de preservativos ou de anjos, como fazia toda a gente: o problema era saber como duas pessoas podiam fazer de conta que eram apenas uma, ou nenhuma, mesmo e se tratando de xipófagos, só porque se punham nuas uma sobre a outra, ou a outra sobre uma, com ou sem auxílio de vaselina. (2008, p.198).

Já no título do quadro do francês e da obra de Carvalho há essa provocação que nos leva a essas questões seminais não apenas da literatura, mas talvez da filosofia humana, no seu motor automático de pensar e lidar com às intempéries da vida, por vezes pragmaticamente, confrontando-se com desejos inomináveis. A lógica, como sugerida pelo personagem carvalhiano, tanto nesse quanto no outro livro, A lua vem da Ásia, aparece como fantasma que o persegue, que se revela para si, que o condiciona ao medo e o faz agir ao contrário do esperado pelo senso comum, por uma estratégia que lhe é natural, de sobrevivente do caos que lhe significa. O ex-combatente, no cenário de guerra, teria se mostrado “ativo” para as demandas que lhe cabiam; no futuro incerto, contudo, das memórias desse tempo de sombras, o presente se mostraria castrado, sem desejo que o movimento à ação de prazer e satisfação.

A lei, a norma, neste caso, contrapondo-se a uma pulsão animal problemática que constantemente se renega pelo que parece de primitivo no comportamento de espécies “inferiores”, que não são reguladas nem se guiam por uma ordem divina, superior, conciliatória. O homem é o dito animal racional, capaz de organizar finalmente o caos universal estabelecido. Mas é o homem também que abala e rearranja seus próprios mandos em desmandos, às vezes com a

118 mesma consciência racionalista que deveria diferenciá-lo dos demais seres vivos do tipo animal.

Na guerra, os limites entre o animal e humano, entre a cultura e a civilização, se colocam para os soldados que combatem pelo que creem verdadeiro, em cada lado. O homem, único até agora, que pensa, mas que também pode fingir não pensar, dissimula na trincheira da guerra sua racionalidade de acordo com a demanda que lhe bem servir, quando em situação limite, de sobrevivência, de vida e morte em suspensão. O único que intervém e contamina culturalmente através da linguagem, não apenas pela violência simbólica ou pela semeadura da repetição. No entanto, suas pulsões, seus desejos, dores e martírios, colocam em xeque na existência evoluída de ser humano o seu estatuto definitivo de ser evoluído, maior das espécies, porque é o humano mais poderoso e dominante perante outros seres. Assim como o espaço em que o ser humano habita está suscetível a transformações que fogem ao seu controle quando em estado de poder perante o mais vulnerável.

Em A vaca de Nariz Sutil de Carvalho é nesse limite que transita o personagem que nos narra seu dia a dia, entre o dever humano por se cumprir, mais o desejo e o devir contraditórios que o põem confuso com sua moral então estabelecida e com a ação que se dá em contraditório. No seu relato de cotidiano em uma pensão de subúrbio, as histórias que nos contam o narrador podem ser vistas como perversas ou doentias ou mórbidas a uma moral de classe média tradicional em seus costumes - como a de um estupro no cemitério -, mas será no entanto o cotidiano narrado, a história por se contar do narrador menor carvalhiano, que iria desvelar e desnudar essa mesma moral da cultura dominante “média” que o repreende e o angustia na dor: morte, guerra, fantasma, sexo, perversão, tortura, dor, sangue que escondem os motores invisíveis da desigualdade dispersa pela existência.

A narrativa nesse romance é contada sempre na memória, enlutada, diante de um passado que ressoa com suas imagens fantasmais interditadas de morte, diante de um presente atormentado por fantasmas sanguinários do passado, alguns conhecidos por ele, feitos espectros por sua virilidade em guerra. No presente instantâneo, a prisão da aposentadoria forçada, trancafiado com sua

119 racionalidade técnica, maquinário de guerra. Quando o insight é finalmente no presente, são nessas circunstâncias de perversão em que também nos vemos, como se o refúgio de seu espírito fosse o caos que o significa: o voyeurismo diante de fechaduras, o ato solitário de prazer onanista frenético; a violência com o outro, o ódio e a inconformidade com o cotidiano daqueles com os quais convive; pouco ou nenhuma empatia com o “superior”; a infinita frieza com a existência, nenhum temor em relação à morte.

Ao menos na imagem que quer registrar de si, o sujeito carvalhiano que não se nomeia nesse livro, parece seguro de suas identidades múltiplas, senhor de suas ideais na afirmação de suas escolhas próprias, sem que houvesse conflito real com o horror que nos é relatado em suas narrativas fragmentadas, de guerra conveniente do poder estabelecido e de realidade em conflito eterno entre poderosos e subalternos, e eles no entremeio, os que não cabem no senso comum. É curioso, assim, que uma de suas assertivas inicias seja a de que “não existem fantasmas”, e como continuaria, “se ele mora num cemitério é porque tem lá as suas razões”. O cemitério talvez tenha aí a mesma dimensão metafísica aspirada pela obra de Carvalho em questão, sem nenhuma reprimenda de significado realista, e, portanto, se ampliaria aqui a sua dimensão geográfica e sensível, em outros espaços que não os reservados de fato aos cadáveres definitivos, mas também aquele em que habitam os cadáveres adiados.

Se há cadáveres adiados, como se verá, na figura e nas histórias assombradas de um ex-combatente de trajetória ambígua e trágica de vida, é porque eles restam também em outras lápides, caminhantes em seu tempo único, de formas inexequíveis, na cidade, ao lado de seus transeuntes. O hotel, pensão, na cidade em que mora nosso intrépido narrador aparece-nos com o sugestivo nome de Hotel Terminus.

Essa pensão, “paga pelo Estado” por seu “estado”, é cenário da narrativa de a Vaca de Nariz Sutil, onde habita os fantasmas do narrador, e de onde partem as histórias que nos conta, os delírios que brotam no enfrentamento cotidiano entre seus pares no pensionato. Mesmo que não haja os fantasmas para ele, como o narrador nos disse em autoafirmação racionalista, ele nos ambienta

120 invariavelmente como se diante de uma casa mal-assombrada, atentada pelos mesmos fantasmas que renega na sua estratégia de sobrevivência pela autoafirmação e pelo discurso lírico e intimista.

Inicia-se a A vaca de nariz sutil:

Onde o senhor dorme? No Hotel Terminus. Mas aqui não há nenhum Hotel Terminus. É o que o senhor pensa.

Passava das onze, chovia; imperceptivelmente fomos caminhando até o portão do cemitério. Aqui fico – disse-me, estendendo a mão fria: Boa noite! Não sou supersticioso mas confesso que foi, como direi?, um tanto ou quanto, como direi... Tinha a sensação de que ainda trazia presa à minha aquela mão, quando liguei o comutador e entrei no quarto. Tolice! – eu repetia com o cigarro no canto da boca, também ele frio e apagado. Tanta filosofia, para isso! (2008, p.155)

Se no outro livro, o primeiro da série desse sujeito que nos parece o mesmo desse da Vaca, o narrador se encontra em um asilo de loucos, como se loucos fossem outros, nesse segundo livro vemos algo similar à ideia machiada em O Alienista, como se os loucos estivessem fora dali de fato, dos manicômios e lares de exclusão, de quartos de pensionato, de esquinas e becos por aí afora, gente como a gente. Mais: além de loucos, talvez os mortos e os fantasmas deles convivessem com a gente, no nosso dia a dia de rua e no conforto de nosso lar, numa pensão de subúrbio de metrópole.

A questão da loucura ou do delírio, bem como a de vida e morte, sempre aparecerá nos comportamentos descritos, nas irrupções líricas do narrador- personagem, feito condição de literatura e de vida do seu relato. Na sua situação limite “morta-viva”, escreve para um porvir inesperado a história por se compreender e se manter enigma em outras cabeças que não apenas a sua. No caso, a memória destroçada de guerra, que não hesita em acrescentar sempre uma historieta ou outra por se lidar, é o que dá motivo para que fale o que tem para dizer e expurgue assim o sapo que engole por algum rancor e dor, e não simplesmente como se receituário terapêutico de auto-ajuda ou mesmo narrativa heroica digna de leitura por uma posteridade, com potência de ensinamento para uma geração futura.

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Escreve para se compreender diante de algo tão incomensurável, que não cabe em si, na cabeça perturbada pela rotina de reclusão que lhe serve e vozes que obsidiam no claustro, pela dor do martírio que lhe reprime e que volta feito trauma. É a guerra que desconfigurou sua narrativa e existência humana já desconfigurada pelo condicionamento de vida, sempre inferiorizado pela superioridade de uma força infinita e absoluta, como o do papel de sujeito masculino, ativo, patrão e provedor, que não dá brecha a sensibilidades.

Na guerra, o dualismo entre bem e mal, vencedores e derrotados, coloca em cena, no mesmo momento, todas as contradições do entrelugar. Na performance bélica, os personagens em batalha são mais potências do consciente humano em ação, do que o ato performático de um jogo, com papéis marcados entre inimigos históricos. Na guerra, há também um tempo- espaço próprio, e uma moral adequada às encenações do conflito, entre bombas e cadáveres, heróis e inimigos, em que os papeis que lhes cabem na mística dual cristã transitam entre os sujeitos.

Em tempos pacíficos, há outra ritualística por se representar entre os outros, mais diplomática, da convivência, que repele a guerra, o conflito. Nesse ínterim, onde colocar um sujeito pós-guerra? Sujeito que retorna ao passado que vinha como fantasma no front, e que hoje é o presente pacificado, com os mesmos fantasmas forjados no front, quem sabe um próprio fantasma que vaga pelo imaginário social.

Na linguagem dos personagens carvalhianos, além daquela divisão entre linguagem do trauma e um texto legível e esperado por uma leitura canônica da tradição estabelecida, como a analítica de uma psicanálise e um diagnóstico no porvir, há outra aparência desse limite que se impõe e que seja o mais claro deles nesses romances do escritor: o da guerra e o do pós-guerra, em que a lei e a ordem encontram-se suspendidas. Lemos o relato assustado de um ex- militar, que rememora com melancolia, suas experiências em campos de batalha, cindidas pela dor de não-compreensão do passado e do presente condicionado, castrado e deprimente de quartinho de pensão. Antes, a glória de se fazer existir a partir de um ideal maior, qual a de uma nação pacificada, a

122 autoafirmação masculina pela força física e pela máquina de guerra. Depois, perseguido por um passado que o assombra.

Assim é com Valquíria, um espectro, violentado por ele no passado, que ainda vive nas sombras entre as escadas e os quartos de sua pensão, os mortos dizimados pelos conflitos sob os olhos cúmplices dos combatentes. Nosso ex- combatente agora vive só, com suas memórias, mesmo que às vezes convivendo com outros, no seu cemitério particular Hotel Terminus. Nesse sentido, iria desabafar o narrador em pleno delírio e libertação da lógica repressora:

Um homem só, ou vira anarquista ou vira louco, louco não vira, já é – assim me explicaram. E mais: esqueça a primeira pessoa do singular, se preciso faça a barba fora de casa, compre um túmulo e mande gravar nele seu nome, e o sobrenome, com retrato de criança e de adulto para evitar dúvidas, e coloque-o no ponto mais visível do cemitério – se possível em todos os cemitérios da redondeza, um em cada um, dois em cada um se o permitir a lei e mesmo que não o permita. (2008, p.160)

Mais especificamente sobre a guerra, mais à frente de seu texto, iria nos desabafar ainda diante da ausência complexa que não se nomeia na vida do presente enlutado:

E fui perder justamente a infância! Por que a guerra não me roubou por exemplo a razão, como eles pensam que me roubou, ou então a velhice, os últimos trinta anos de vida – e não me deixou com a minha infância para poder revivê-la dia após dia, com redobrada força, e cada vez mais, como um filme mudo sempre eloquente? Não sei se perdi a inocência, e serei o último a sabê-lo, mas quero crer que meus testículos guardem a reminiscência de episódios realmente fabulosos, como os que me sugerem essas coxas de um glabro só encontrado num mármore, entre o róseo e a cor do infinito. O tédio que sinto diante das coisas chamadas adultas, vômito mais que tédio, deixa entrever o que de maravilhas se apagou para sempre no campo da minha consciência, tão diverso daquele menino arrastado em pranto sobre as sepulturas, ou sentado como um fantoche diante de um método Schmöll. Se eu era o que sou com toda esta falsa barba, tivera eu a quinta ou a décima parte desse arroubo que ainda me faz por vezes buscar o impossível – não tenho dúvida de que fui sordidamente espoliado pela guerra e de que o Estado, mesmo pagando-me mil pensões, jamais

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poderá reparar todo o dano que me fez, roubando-me o único filho que tive e a quem realmente poderia, saber amar”. (Idem, p.176-177)

O relato ne texto de Carvalho é o mais seco e doloroso dos quatro livros seus, mesmo que o mais curto deles, de poucas páginas. Além disso, se pensada na trajetória inicial de seus personagens, em seu primeiro livro, aquele da lua, não há mais aqui na Vaca, como lá, a fuga como opção, nem o presente que se faz ao próprio gosto, como opção de sobrevivência, de vida em meio a morte que ronda. O passado, bem como o presente e futuro nos parecem feitos, definidos, um tempo único e definitivo de castração: o seu quartinho de pensão, em que a temporalidade de sua memória é imóvel, apenas deslocado por fantasmas imemoriais na trajetória presente de sujeito que se arrasta pelo “hotel terminal” onde vive.

Em outro desabafo do personagem, a respeito de sua condição e situação excepcionais diante de um passado de suposta glória e luta dignificantes, vemos o mesmo contraponto de presente vazio que já se anunciava na memória de antes, de uma existência que não se vê presa à vida mecânica que a orienta e a mantém no jogo, na dinâmica de transformação dos tempos e das coisas. Dirá ao seu ouvinte, no caso, o leitor de seus desabafos crus e melancólicos em retrospecto de seu passado de militar condecorado:

A princípio, diziam, era a amnésia, depois a esquizofrenia – tantas palavras belas para camuflar esse vazio, esta cratera de suas bombas que se abriu dentro de minha consciência: um buraco, eis o nome. Puseram-me uma medalha no peito, não se havia um Cristo nela, veio o arcebispo e disse algumas palavras em latim, depois falou um vice já nem lembro do quê, falou um outro, e ainda um outro – todos estavam eufóricos, havia música no ar, muitas bandeiras, alguns foguetes, um beijo estalou-me na face direita. Por dentro eu estava que era só vazio, nem era o momento de lembrar-me de coisa alguma, poderiam tomar-me por um traidor com medalha e tudo estava chorando no meu canto, sem uma tristeza, chorando simplesmente, como se me derretesse ao sol – atrás de mim havia um muro, lembro-me bem. Todos me saudavam como um herói, conhecidos e desconhecidos, e eu era para mim mesmo um desconhecido – um desconhecido que chorava sobre o meu rosto, sem ao menos se cobrir com as mãos. (Ibidem, p.157)

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O tempo narrativo de A Vaca de Nariz Sutil se condiciona ao dessa memória enlutada por uma identidade fixa fugidia do passado, quem sabe da infância, que não mais serve, nem nunca serviu, ao corpo agora velho do presente, castrado, subjugado a um espaço marginal de fantasmas seus e fantasmas dos outros. É o espaço ainda de reclusão e conflito inevitável frente aos seres de boa aparência da sociedade que não estão ali com eles, presos, que são sim vistos e que caminham de cabeça erguida pelas instituições. Não há portanto nesse livro, se comparado aos demais, a pulsão geográfica de domínio de tempo, lugar e linguagem no mundo, no mundo todo, como em A Lua vem da Ásia ou O púcaro búlgaro. De outra maneira, há sim uma recapitulação do intelectual possível de Carvalho sobre a picardia e a ousadia juvenil dos personagens de vários nomes de A lua.

Assim, a narrativa opera no tempo da memória que surge com o relato, e não é o tempo da narrativa como relato presente, qual um diário de memórias cotidianas, ou um romance em capítulos lineares, rígido com o ordenamento dos capítulos. É o relato da dor e do rancor que opera na sua escrita melancólica a a ausência recuperada no verbo. Não há interesse em se fazer diário de bordo de uma viagem existencial obscura ao desconhecido, como a desse ex-militar, mas antes desabafo frio, sincero e direto das imagens que recobra na vida que lhe resta à deriva, agora que já não enfrenta mais a morte cara a cara, e sim, lado a lado.

Juva Batella (2004) observa nessa obra de Carvalho o cenário cindido do narrador-personagem entre o imaginário burguês de sociedade que critica pela fechadura e o de guerra como memória dolorida da sociedade presente, “pacificada”. Para ele, como se o único registro que houvesse de discurso concreto no texto do escritor. Seu consciente, sua memória, se contrapõe na confusão e no fragmento à objetividade e ao pragmatismo das leis humanas, das leis da guerra principalmente e dos “tempos de paz”.

No mais, à parte dessas imagens que sobrevêm desconexas a esse narrador em seu cotidiano presente, o caminho por se percorrer na leitura pelo interlocutor não será mais o de memória concreta lúdica e hiper-real: antes o delírio, o etéreo, o fantasmal, portanto, antes o limiar entre a racionalidade

125 técnica de guerra e o cotidiano de classe média que convive assombrada pelos domínios poderosos das instituições, o Capital e pela violência humana, nas ruas das metrópoles, nas esquinas delas, nos morros, nos bairros e distritos periféricos, ou pior: dentro de suas próprias casas entre seus pares tão indistintos. Assediada o tempo todo por uma moral que não lhe representa a intimidade desvairada. Ou, como metáfora o é diretamente na guerra ou no confronto, o signo da morte constante na vida cotidiana, pela máxima que diz que “para morrer, basta estar vivo”. Ou, como irá nos dizer o narrador que aqui se discute, um tempo diverso, “meu mundo acaba onde eu acabo, se me viro para a direita a esquerda já não existe” (2008, p.218).

Discute o de novo Batella sobre esse livro de Carvalho, A Vaca de Nariz Sutil:

A morte é o tema recorrente de VACA DE NARIZ SUTIL. A morte em vida do narrador, a morte que o cercará em sua existência quotidiana e a morte que foi por ele tantas vezes praticada na guerra, de que saiu fisicamente ileso. Seus sinais esparram-se por todo o romance. 10(2004, p.121)

Um sobrevivente, portanto, narra ao leitor seus traumas em vida que o condicionam e se esparramam por uma existência obsidiada pela morte recorrente em seu imaginário febril, traumatizado pela memória pungente do cenário rememorado da guerra e das mortes que acometeu, e outras com as quais ainda convive, algumas em forma de fantasmas pelos corredores de sua morada mórbida e definitiva (terminal). Se sobrevivente, transita entre os espaços ditos de vida, ativos, e outros de morte, imateriais, subjetivos, imaginários, impalpáveis, inteligíveis, paralelos.

Sobrevivente de guerra, guarda em si, em seu corpo, as cicatrizes do inaudito: o que é silenciado e que jamais será rememorado, a memória viva, latente, do campo de guerra, a olhos nus, qual a experiência de uma guerra real. Se inaudito, não há como dizê-lo em imagens concretas, que possam ser amenizadas pelo relato. Não há como organizar algo que se deu no passado também de forma desarranjada, desorientada. Na guerra, há a falsa oposição

10 Maiúscula do autor. 126 que vige de acordo com o discurso midiático ou ideológico de cada contraparte, mas ambos convivem com o fantasma da própria morte, de um tempo desconhecido e incerto, a contemplá-lo em sua performance imediata de guerra: é preciso vencer e sobreviver, ser melhor que o outro, esquecer aflições de espírito, e assim germinar pela história algo que faça justiça pelo sofrimento do passado de meus antecessores, na dor presente, do tempo presente, no tempo do fantasma: antes, agora e amanhã, porventura, sempre dolorido e superficial, ao mesmo tempo que silencioso com a diferença do outro.

Em A vaca de nariz sutil, tão desfigurado quanto o quadro de Dubuffet ou uma memória recobrada de guerra, será a memorialística recolhida do narrador. Dor, trauma, fantasma, morte. A sutileza da narrativa carvalhiana é aquela irônica, inesperada, que diz respeito ao sensível e não ao superficial da imagem de propaganda ou de um atlas geográfico, antes o atlas de Warburg. Não é sutil, não passará despercebida a vaca carvalhiana. Como no quadro, não há vaca robusta que pastoreia pelos campos verdes, à espera da ordenha, antes de ser abatida em processo de seu próprio devir, para cumprir outro anseio da contingência de vida natural.

É desse relato do caos que o significa, de que a sutileza se faz fantasma em meio a destroços, quando não há imagens belas, concretas e assépticas por se mostrar, antes o horror em confronto, no fragmento, para com a vista viciada e confortada na harmonia. É uma forma também de rearranjar o esperado confortante, exibindo de forma nua o inesperado cruel e perturbador possível da realidade. Uma vaca deslocada, enfim, sutil apenas no que lhe cabe, que é o nariz.

No capítulo 10, desse livro de Carvalho, desabafa o narrador atormentado, em seu fluxo próprio de consciência, realidade e narrativa:

„Hoje, função à meia-noite! ’ Eu é que lá não apareço, faço-lhe publicidade mas quero distância, vômito por vômito arrumo-me em casa e sem qualquer despesa: depois aquela fumaça toda lembra-me momentos que prefiro esquecer, não consigo mas prefiro, já é alguma coisa. Os únicos siameses nascidos no Sião! – a coisa é meio difícil mas explica-se, pode-se até pôr um retrato dos ditos na vitrina, em ponto grande: E QUEM GARANTE QUE SEJAM IRMÃOS? – Isto não é mais comigo, eu 127

apenas trago o letreiro, abram alas para o novo Lúcifer, este sim autêntico, embora sem querer. Nem me façam mais perguntas! 11(2008, p.202)

A chuva que é imóvel

Nesse livro de Carvalho, a chuva do título não se parece com a que é invocada quando se ouve tal palavra no dia a dia, nas previsões do tempo do telejornal, nas linguagens populares de ditos quais “tá na chuva para se molhar” ou “choveu na minha horta”. Chuva, numa imagem direta como nessas, corriqueira, nos aproxima do movimento transformador dessa experiência na natureza: para que ocorra chuva, há que se transitar por um processo constante de transformação, até que a chuva cadencie outros, com água que jorra das nuvens carregadas, intensas, breves, que podem se prolongar.

A chuva é movimento. É transição. Um dia ensolarado precede o nublado, o nublado precede a chuva, e é assim às vezes não necessariamente nessa ordem lógico-matemática.

Se a chuva de Carvalho é imóvel, ela não se parecerá em nada com a da imagem banal em nosso imaginário, tanto de redenção, na seca, ou de tragédia, dada suas intensidades possíveis de temporal, tempestades, tufões, catástrofes. Uma chuva imóvel não seria nem redentora, porque não se movimenta, menos ainda trágica, pois que indiferente. Como se num outro espaço-tempo, a chuva pudesse ser percebida sob ângulo diverso, imóvel, fragmento da ação no seu ato (de chover). Seria o mesmo papel que cabe ao leitor, deslocado com as temáticas e arranjos de linguagem do narrador sobrevivente do caos.

Nessa temporalidade do fenômeno imóvel, as percepções e experiências com a chuva se colocam de outra maneira, deslocada, caótica. As narrativas sob esse tempo único estruturam-se de forma a condensar, complementar os

11 Marcação do autor. 128 discursos e as línguas estrangeiras, em uma outra instância, terceira, impessoal e coletiva. Não há relação de binarismo que não seja complexa a uma temporalidade própria de um “movimento imóvel”, de ação social e narrativa. Chuva imóvel é um paradoxo, um paradoxo de tempo-espaço, que desconfigura os matizes da tradição sobre a natureza (chuva) e a cultura que nos significa e representa e nos faz representar em torno de eixos de poder (imóvel).

Apesar do título paradoxal e provocativo do lirismo carvalhiano de seus títulos e obras como um todo, A chuva imóvel não será narrativa, como se poderia apreender dos outros dois livros de Carvalho, um sobre um sujeito em sua condição de isolamento no asilo, que veria a lua vinda da Ásia, outro de um ex- militar aposentado, recluso num pensionato, tão confuso e sombrio quanto o quadro sujo que tem o nome de Vaca de Nariz Sutil. Todos assombrados pela vida e pelos fantasmas do inaudito. É no delírio lírico e filosófico que se conforta geograficamente e tudo o mais o/a André/Andrea.

Nesse romance, o sujeito André, num mise en scène de sobrevivência, coloca- se diante do conflito existencial de sua vida, de maneira trágica, numa expurgação de seus pecados, desejos, memórias recalcadas. Qual um Hamlet obsidiado pela dúvida moral e filosófica entre morte e vida, justiça e verdade, trazida por um fantasma numa noite assombrada, André refletiria em um momento sobre sua condição de pouco conforto, estranha à maioria, mesmo de mortos, não só de vivos, como se pertencesse a um outro espaço porvir, desconhecido.

Essa fosforescência, esta nitidez, não pode ser a de um morto, nada tem a ver com o fogo-fátuo, nem mesmo a de um moribundo ou a de um condenado à morte, pela forca ou cremação coletiva, dos cadáveres e dos ainda não-cadáveres, no deserto de Nevada ou no que já foi ou será Nova york ou Moscou. Esta premonição defunto nenhum a pode ter, menos ainda quem nem ao menos foi defunto, não se lembra de ter sido – mas e apenas este vulcão assim nascendo, este vulcão, grávido de si mesmo e de tantas coisas, grávido ele e não a terra ou a sua mãe, fruto da partenogênese apesar da cópula e do cordão umbilical: da geração espontânea e não da

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partenogênese.

No princípio era o Caos, e está sendo o Caos”. (Idem, p.294)

Pensando na obra completa de Carvalho como trajetória de um sujeito que se mascara com a forma da vez que lhe aparece sob seu devir, A chuva imóvel aqui discutida é a passagem transitória daquele trem que é sugerido, vez por outra, nos dois livros antecessores. É a parada. Parada também do humor escrachado, do utópico como realidade possível.

Neste, o trem para de vez, num aparente fim purgatório, de expiação: dor, culpa, ressentimento, serão motores líricos dos escritos de André. A viagem será de outra ordem, metafísica, quem sabe do confronto entre o espírito indelével e o corpo em trânsito e em conflito material com a existência cerceada pela dúvida e incompreensão de si e de outros. “Saí do túnel ou ele saiu de mim (p.285) ”.

Logo de início, nos relata o narrador, sobre sua viagem num trem sem destino. Diz-nos o sujeito:

Quando o trem desapareceu sob o túnel, senti de súbito que estava perdido: chamei-me pelo nome para sentir minha presença, em vão busquei o último cigarro sob o paletó: os trilhos, apenas os trilhos por todos os lados. Não era noite nem era dia, as lâmpadas não sabia se estavam acesas ou estavam apagadas, um portão luzia ao fundo e todas as setas se dirigiam para ele. Sentia-me tão lúcido que nem um instante me ocorreu a hipótese de estar sonhando, dormindo, ou mesmo morto: agora as minhas pernas me levavam contra a minha vontade, eu estava a cavalo sobre mim mesmo, era um centauro e o meu nome já não formava qualquer sentido: mesmo se houvesse uma parede em frente eu a transporia sem dificuldade. CARFANAUM – dizia a tabuleta em vermelho, de repente azul. (Ibidem, p.224

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Nessa história de Carvalho, há outro sujeito estranho que nos põe diante de seu relato conflituoso por testemunhar. Sua história não é a de um romantismo barato, de amores incestuosos bem-sucedidos, que a tudo superam pela felicidade do casal de brilho. Nem uma tragédia clássica acerca do amor entre irmãos, entre aparentados. Como uma figura surrealista na imagem, olhar uma descrição qual a de André sobre sua condição no momento de sua fala, é confrontar-se com a perspectiva distorcida, confusa entre o real e o ficcional de um delírio, um sonho ou seja qual for a experiência pós-morte ou delirante que se tenha. Conta-nos: “Aqui não há nenhum horizonte, há apenas esta rua e estas paredes, este beco sem saída ou com saída. (2008, p.283)”.

Diz André ainda, confuso na ideia sobre a temporalidade que lhe cabe, sobre o espaço que observa de suas vistas perturbadas pela dúvida: “sonhando, dormindo, ou mesmo morto”.

Sonhar, dormir ou morrer, estados em que a vida como vemos orgânica por aí, produtiva, se vê em suspensão nos seus valores de certeza, parece-nos a condição de sobrevivência desses sujeitos que desfilam na narrativa provocadora de Campos de Carvalho. Sonhar, dormir ou morrer são para tais condições que permitem o deslocamento não só de temporalidades (morte/vida), ou ideias (sonho e delírio) para sobreviverem com o que lhes cabe, mas também estados em que o humano se vê desterritorializado de suas bases motrizes de vida em sociedade. Sonhar, dormir ou morrer é o entrelugar das narrativas de Campos de Carvalhos, por onde transita os seus personagens deslocados do mundo e de si.

Não por acaso, mais do que uma jornada espiritual de auto-descoberta diante da existência, André nos ambienta em um espaço que é justamente é esse de entrelugar, de vida e morte, sonho e ilusão, desejo e repressão, animal e humano. André não se prende aos próprios desejos na sua retórica descrita no relato que lemos. Mesmo que porventura nos omita algum relato real de vida, ele nos conta o diferente, mostra-se crítico ao meio que habita, com seus valores estranhos a si, menores que sua individualidade conflitiva.

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André não se identifica com o senso-comum que lhe aplicaram na experiência vivida, antes se renega acabado, vê-se como um sujeito em trânsito, dividido nas escolhas, nos afetos, nos sentimentos de si e em relação aos outros diferentes dele. Assim, dirá ele: “De que me valem essas árvores e essas janelas, e esta sombra sobretudo, se a cada passo me assalta esta certeza, esta incerteza, apesar de toda a experiência ou por isso mesmo? ” (Idem, p.227)

Nesse sentido, ao longo de sua jornada, iria nos relatar em reflexão a sua auto- imagem, auto afirmando-se sujeito estranho que é para um “estranho” a ele. Diz ao seus interlocutores por vir:

Posso ser um estrangeiro, isto não discuto, um estranho – mas se necessário vomitarei até o estômago para provar que sou humano, ou quase, tanto quanto se pode ser nestes dias trágicos. Nem me vejo tão diferente assim nestas águas, nem os peixes se mostram tão assustados com a minha aparição: sou eu mesmo tal como me conheço, com as minhas memórias todas, até datas se for preciso. E ainda esta temperatura que é bem minha, 36 graus no mínimo, mesmo à sombra – e este pulso que não me deixa mentir. (2008, p.227).

André chega de trem a cidade de sua memória, de título sugestivo Carfanaum12, na qual se verá diante dos fantasmas alienados de sua consciência. Um desses é seu contraponto sexual e familiar, sua irmã, Andréa.

No desejo contido pela irmã, há sim a sexualidade desvairada da amoralidade dos sujeitos carvalhianos, que fazem o seu sexo de acordo com a natureza de seus instintos e desejos que irrompem de forma natural pelo outro. Mas há também um componente “transexual”, aludido pelo jogo entre os nomes André/ Andrea. Além disso, a questão da dualidade, do duplo, é aparente na obra de Carvalho, não só em relação à sexualidade, e sim com mais um de seus desarranjos alternativos cultural e de linguagem, ao dar voz ao sujeito em conflito existencial, que faz morada no caos.

12 Cidade ou aldeia em que o relato bíblico registraria a passagem de Jesus por aquelas terras, provendo alguns milagres, e depois amaldiçoando o mesmo lugarejo. 132

A primeira parte do romance, por exemplo, coloca-nos diante dessa imagem dúbia, provocadora, quase mitológica, como a da vaca ou da lua: “O Centauro a Cavalo”.

Andrea é o desejo transcendente de André, mais do que o sexual reprimido, que de uma forma ou de outra, conseguiria expiar seu gozo de maneira banal. “E safei-me para os braços de Dolores, a puta do 106. (p.273).” André é Andrea, na medida em que se coloca no discurso de seu relato como obsessão, imagem que é sempre recobrada na sua fala, e como uma parte indissociável sua, rasurada no sexo e na vida. André só é (seria) o que pensa de si, pareado com Andréa, sua metade, aquilo que o torna inteiro, um só que são dois, masculino e feminino, a princípio. Desaba André: “Triste coisa o amor, Andréa, quando não se pode amar nem mesma a uma irmã de carne, e mais do que de carne, de placenta, quase que a mesma criatura, a mesma criatura, como se me houvesse feito hermafrodita (...). (2008, p.268)”.

Num espaço de reclusão, ou de desilusão com a realidade que reprime a consciência deslocada no caos que lhe abriga, só os seus irmãos-gêmeos, irmãos-siameses, transsujeitos, Andréa, poderiam confortar um sujeito alter sem lugar na realidade repressora. Estes com os quais poderia se identificar e realizar sem censura o discurso da sua dor. Nessa situação de entrelugar em que se vê restringindo de uma vida tranquila, André se enxerga o “centauro a cavalo” do título, um sujeito estranho, “desfigurado”, que expressa na forma condicionada e no sexo ambíguo o limiar do animal e do humano, do espírito e da matéria, da natureza indiscriminada e da cultura que de alguma maneira o discrimina de seus verdadeiros instintos. Assim, conta-nos sua aflição: “Não fora eu o cunhado, André-Andréa, até as mesmas feições para lembrá-lo a toda instante, e o mesmo passo felino como se pisasse sobre plumas ou simplesmente pisasse (Idem, p.242)”.

Eis o que iria desabafar André, logo após desembarcar da locomotiva “espacial” que o trouxe até aquela cidadezinha de ambiência bíblica, de sombra, de martírio, de memórias dolorosas como a do irmão Medeiros

133 acidentado na infância, e que morreria por isso; além de outros traumas que o faz se descrever como um “lobisomem”. Limiar do animal e do humano, André Medeiros assim se descreve, estranho que se sente em sua condição deslocada de sujeito uno:

À meia-noite viro lobisomem; a solução então seria não sair do quarto, se possível nem de mim: mas isso não é uma solução. Ficar uivando e raciocinando ao mesmo tempo, as garras sobre a testa, o focinho afiliado junto ao peito – falta-me a paciência e sobretudo a vocação, o que sou eu mesmo é um homem e voltarei a ser: questão apenas de tempo e confiança, antes de mim já houve o dilúvio e eu aqui estou, a licantropia não me assusta mais do que o meu estado de gêmeo, tanto sou assim como dentro de Andréa, os dois em um ou em nenhum”. (2008, p.246)

Mais do que os outros dois livros, A chuva imóvel é assumidamente um relato lírico que transborda os paradoxos de Carvalho, como o de identidade subjetiva, de gênero, assim como desloca com isso os parâmetros de literatura maior: sem sujeito definido, sem espaço-tempo localizado, sem ordem capitular de linearidade, sem temáticas maiores, André cede espaço no seu discurso ao delírio de existir, sem conciliações com a linguagem formal, nem a forma com a qual se “apresentar”. O lobisomem a quem André se referencia quando fala de si, “licantropo”, é o próprio texto que nos é apresentado à leitura, homem- animal que se põe a escrever e questionar o mundo a partir dessa sua condição terceira de vida, deslocada, marginal, sombria, homem e animal. Ouvimos dizer: “O que pensem, o que eu pense, já não interessa: só importa o testemunho. (2008, p.233)”

Segundo João Felipe Gonzaga, é desse cenário inóspito e desconfigurado, que o leitor de Carvalho se torna cúmplice de seus testemunhos de dor, e se põe também a questionar os lugares-comuns do senso comum, do mundo exterior tão criticado por André, e com isso consegue ver o mundo feito a forma disforme dos personagens de Campos de Carvalho. Para ele, “Dado esse cenário inóspito, tornamo-nos cúmplices da personagem em sua dor existencial”. Continua Gongaza dizendo que, “por outro lado, o texto assenta-se

134 também na observação do mundo exterior, novamente amarrando o leitor num tom confessional” (2007, p.36).

André usa nos seus relatos o mesmo “tom confessional” de Astrogildo por exemplo, pois é o que lhe conforta durante sua exposição narrativa, por ser esse mais afeito aos desvios da norma, em uma conduta de pretensão literária, como é a sua, com um texto cheio de transbordamentos líricos e políticos. Se os sujeitos dos outros livros, da Lua e da Vaca, fazem o mundo à sua forma, da linguagem à ação, ironizando as posturas de tradicionais da cultura moderna, do gênero às posturas dos atores sociais, nesse da Chuva, André é o resultado da castração em meio a um espaço tecnocrata, de toda sua potência infinita de humano criativo, que acaba transcendendo categorias, como a de humano propriamente e animal. Andre é antes um animal humano, segundo a sua definição de si, um lobisomem. André que é igualmente Andréa, e é ainda um lobo em forma de homem, ou vice-versa.

André é animal, no entanto, no plano discursivo, já que ele não “possui” Andrea feito presa, só mesmo nas brincadeiras de infância, mas pode vocalizar seus sentimentos humanos materializando-os pela linguagem literária seu sentimento selvagem pela irmã. Se animal, não é um animal qualquer, é um animal escriba. Não é aquele símio, nosso ancestral, que chega à academia e se transforma num sobre-humano, tipo o narrado num texto de Franz Kakfa, que promove o mesmo deslocamento social e cultural na ambiência favoravelmente deslocada da literatura. É um animal, antes de tudo, pois que inferiorizado pela “força superior” da humanidade que o condiciona ao isolamento no seu martírio de confusão entre o que é ou não humano: ser ou não ser? Segundo a imagem que faz de si, “um animal sem pernas (2008, p.281) ”.

Ainda sobre a chuva em relação à obra de Carvalho, Batella afirma ser ela outra coisa, de outra ordem, quem sabe essa força superior como a temida por André. Batella dirá que “a chuva imóvel tudo será, menos chuva”. Não se revela no escrito do sujeito que se põe a testemunhar nada que se assemelhe a um relato de tal fenômeno da natureza. Continuaria o teórico, sobre o texto

135 carvalhiano, dizendo que “se há nesse título uma chuva, sua função é referir um fenômeno que, como a chuva, vem de cima, se afigura maior, mais poderoso e inescapável, como a chuva – embora chuva não seja (2004, p.166)”.

Apesar de ser o primeiro personagem narrador de Carvalho que atende por um nome fixo, André não nos coloca diante de um terreno fixo sobre a sua trajetória por narrar, antes a questiona porque é também Andréa, e na mesma medida dúbia nos conta, ou versa sobre uma experiência recobrada pela memória, sem temporalidade fixa ou narrativa cadenciada por episódios em sequência. Batella, mais uma vez se referindo a essa obra sobre a chuva que é imóvel, nos coloca agora a essência desse texto mais melancólico e menos humorístico que os demais. Diz ele observar nesse enredo de Carvalho, algum tom do discurso mitológico, que junto com o confessional, possibilita um rearranjo do real sob a forma diversa de uma possibilidade imaginada e maleável às alternativas de sobrevivência.

Sugere Batella, sobre esse que é também um Locus Discursivo (deslocado) possível de A Chuva Imóvel:

O que é que foi sem ter sido, ou o que é e não é? Este é um capítulo mitológico, e o mito parece encaixar-se nesta definição: o que é e não é ao mesmo tempo. O mito é impalpável, não possui existência concreta ou histórica, não aconteceu a ninguém e ninguém o viu, e no entanto carrega em si toda a história, um complexo de significados indispensáveis à compreensão da existência. (2004, p.173)

É na temporalidade irregular do mito que uma narrativa desviante de um sujeito menor, de uma literatura menor faz sentido e se reconhece, por ser esse espaço-tempo adequado para o trânsito infinito e pluripotencial da arte, e do sujeito artista na sua trajetória de criação. “Podem ser elefantes e podem não ser, assim se arrastando como se fossem em busca de um esconderijo para morrer”, diz André acerca de imagens em fluxo de “manada” que lhe aparecem no delírio.

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É na temporalidade favorável do mito que personagens desviantes do cotidiano em sociedade emergem com suas narrativas que imprimem valores e sentidos ao cabedal infinito de leituras acerca da vida e da existência. No caso, o relato de um sobrevivente, do caos, que escreve à maneira caótica do espaço pelo qual se desloca, incerto, escorregadios, ladeado de incertezas e fantasmas de confrontos mal resolvidos. “Um vulto”. (CARVALHO, 2008, p.282)

Continuaria Batella acerca disso, em outro momento. Mais especificamente, comenta o sujeito perdido em si e no mundo, André/ Andréa, dizendo ser esse narrador dessa chuva “um apocalíptico para quem a atualidade será sempre um caos, para quem o passado, seja ele qual for, permanecerá preferível porque bem mais distante do que é e vai ser o fim do mundo”. (2004, p.174)

Divido em três partes, a Chuva Imóvel é o mais poético dos romances de Carvalho em sua obra completa, pois assume o lirismo na forma de prosa delirante do sujeito André/Andréa, sem uma narrativa ensaiada num lugar, num tempo, numa ideia que se transborda na leitura. Serão vários os episódios, em fluxo, de sentimento e recordações, divagações sobre o mundo e sobre o seu reflexo no espelho, o duplo encarnado nele, bruto, “centauro à cavalo”. Só mesmo a poesia, na forma de filosofias e aforismos, é capaz de cadenciar o pathos aflitivo do personagem em busca de uma trajetória tranquila de vida, de amor e sombra, de desejos realizados e de epifanias no dia a dia.

Na última parte, com o título de “Girassol, Giralua”, os capítulos começam então uma contagem regressiva: o número de traz para frente, com a exclamação que expressa uma intensidade de urgência. Como se nascesse ao contrário, qual o personagem de Fitzgerald naquele conto filmado recente por Hollywood, André começar a delirar pelas palavras, aprendendo novamente a se comunicar por palavras, e nos descreve um ambiente de sonhos e assombrações alternadas, “criaturas humanas, posso distingui-las perfeitamente: quase humanas”. (CARVALHO, 2008, p.282).

Diz André sobre outra viagem em que embarcará no final da sua narrativa: “Esta estrada, esta rua, lembra um desfiladeiro – com estas montanhas que de

137 repente parecem assim emergir de cada lado: a menos de um metro de onde estão os meus pés, que finalmente decidiram voltar”. (Idem, Ibidem)

O fim do romance da chuva que é imóvel é a lírica imagem de uma corda pendurada, que balança para lá e cá, um pêndulo a marcar o tempo presente, ocioso e de futuro inesperado. Cabe-nos colocar uma indagação, em meio ao aflitivo confronto entre o personagem em conflito André/ Andréa: que tempo é esse, o de penas capitais? Do suicídio?

A corda é também outra imagem, o símbolo da morte, mas também de vida em ambiguidade. É no martírio de sua dor que André pode viver, deslocado, e (sobre)vive no delírio e na hiper-realidade da trajetória até Carfanaum, desembarcando nos relatos de seu interior humano caótico e sem lugar. Sempre com a corda pendurada, acima de sua cabeça, a esperá-lo em pulsão de desespero.

André se matou com tal corda? Ou teria ele ou ela nascido novamente, corpo e alma ligados na placenta, do útero, parido para um outro final possível, ao lado de Andréa, siameses, no trajeto final de sua trajetória castrada pelo desejo inatingível de amor impossível pela irmã gêmea?

De qualquer forma, morto, vivo, no delírio do sonho acordado ou sonhando no sono, André ainda cospe suas verdades sujas e imortais, na imobilidade do seu texto lacunar. Acaba assim demonstrando que seu tempo, espaço e lógicas são mesmo outras, tipicamente carvalhianas: chuva que desestabiliza e recondiciona as estruturas da linguagem e a imagem à sua maneira de perturbação desviante da maioria idealizada.

Ouviremos dele:

Levarão séculos para me içar, se é que estão realmente içando, e enquanto dure esta longa ascensão do meu cadáver, mas também do que está dentro dele, eu e não ele – continuarei minuto a minuto a cuspir-lhes do fundo da minha consciência, com esta corda no pescoço mas cuspindo, em sinal de protesto e sobretudo de nojo – por mim e por todos esses que morreram

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nos meus testículos, que morreram ou que estão morrendo, juntamente comigo morrendo, nesta matança de inocentes. (CARVALHO, 2008, p.306)

André ainda profetiza no processo de seu apocalipse, no escurecer de seu relato, o retorno de si enquanto conflito insolúvel, suas imagens de dor e confusão, e a volta de “inocentes” nascidos, abortados e por nascer: “Mesmo morto continuarei dando meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo”. (Idem, Ibidem)

O púcaro que é búlgaro

Finalmente, o começo do fim, ou o recomeço de uma nova era, ou o tempo de antes, só que diferente. Sai a utopia do frenesi e da loucura clínica, a distopia do claustro e da solidão, o limbo do martírio, chega a fantasia ensolarada de paragens paradisíacas, indiscriminadas, o sonho possível de uma narrativa própria, de uma gramática adequada à ânsia de perseguir o desconhecido, o misterioso segredo que parece se revelar a cada momento. Desbravar e desbravar.

O narrador que nos leva a embarcar com ele nessa jornada, não é necessariamente diverso do que já se conhece há três romances de Carvalho: é tão desvairado/ desvirado quanto. Contudo, vemos algo que se modifica e que reluz, faz brecha, abre um oásis na paragem desértica de um narrador sobrevivente da aridez, da secura humana. Longe da melancolia, embarca agora numa viagem mais aprazível e de alegria cômica. No último livro de sua obra, Campos de Carvalho deixa de lado as sombras dos lugares escuros e malditos, de personagens sujas e disformes, cheio de assombramentos, e joga luz e humor sobre o derradeiro personagem da sua saga imemorial, sujeito quase definitivamente heroico, de picardias mil e aventuras engrandecedoras de um povo. Os personagens de Carvalho, na mesma medida que intensificam sua dor no relato trágico, é capaz de transfigurar em luta e trajetória vitoriosa

139 os anseios de alma inquieta dos sujeitos que desfilam em sua literatura.

O narrador não terá um nome fixo, mas sim uma ideia fixa, que é não apenas o motor de seu texto, como é também a forma estabelecida para que sua textualidade flua. Será um trabalho íntimo, de busca, e em paralelo um projeto científico, diário de um experimento da humanidade pelas ciências empíricas. É um projeto de vida e um projeto de ciências.

Segundo Caroline R, Heck (2007), o clima humorístico desse romance de Carvalho é aquele confortável enfim para os personagens conflitivos que estavam antes em cena. Há outro clima narrativo, outra linguagem, mas a crítica redundante, feroz, ácida, persiste agora no absurdo assumido, na ilogicidade do humor desenfreado como única opção possível. Não mais sobrevivência, de luto incontornável na dor e no trauma, é tempo agora de experienciar a vida em toda sua potência sem limites em relação ao futuro. Sem estímulos repressores aparentes, castradores da caçada mítica empenhada pelos desbravadores desse romance de Carvalho, pode-se viver intensamente o sonho que se deseja realizar e viajar para onde quer que seja. Mesmo que o cenário de realidade pareça inóspito para a empreitada que ao espírito aprouver realizar, agora poderei fazê-lo à minha maneira, como um caçador de pérolas raras, no mar imenso da linguagem possível e que me caberá vestir.

Assim, iria dizer Heck a esse respeito, sobre O púcaro búlgaro em relação às obras anteriores de Campos de Carvalho, mais sombrias e melancólicas, na sua denúncia acerca do arrocho criativo do engessamento, numa fórmula única, verdadeira:

Um texto que revela uma profunda insatisfação de Campos de Carvalho com seus contemporâneos. Contudo, revela sua insatisfação de forma distinta do que fizera antes, em A lua vem da Ásia e também nos dois romances que escreveu antes de O púcaro búlgaro, Vaca de nariz sutil e A chuva imóvel. Nos três livros, mostra, apesar da mordacidade de seu humor corrosivo, uma amargura cortante que não encontramos em O púcaro. No último livro, ele destila seu senso de humor de forma totalmente

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“escrachada”, como se nos dissesse que não abandonou suas posições firmes e conclui que, contra tudo e contra todos, só o riso pode vencer. (2007, p.96)

Na forma, já sugerida no todo da literatura de Carvalho, em contraponto às essências que se critica na literatura do autor, há o gênero do tipo burocrático desconstruído pela potência do humorismo carvalhiano, em especial aquele tipo que registra dados, observações, coleta informações através de taxionomias ou categorizações, descrições idealizadas fidedignas de objetos, sentimentos. No caso de O Púcaro, melhor seria dizer, em vez disso, que entre as performances dos sujeitos carvalhianos dos livros antecessores, este se parece mais assumido com o da linguagem algo direta e referencial de um script de uma comédia para se encenar: um texto costurado para a encenação, que se utiliza do humor como uma estética cênica e o texto como potência revolucionária e transformadora no tempo da representação.

O romance ou peça é prefaciado com “Explicação Necessária”, um resumo irônico da obra e dos absurdos que estariam por vir, para que se tranquilizasse o leitor sobre as incoerências e porventura maluquices com as quais irá se deparar na leitura do “diário” do viajante sonhador. É o coro que nos tranquiliza sobre as imagens encenadas, no seu discurso didático que nos orienta na história em paralelo.

Pelo menos por ora, somos convidados pelo personagem de Carvalho a embarcar na viagem idílica costurada pelos sujeitos que não se portam nem se expressam da maneira esperada, e aceitamos simplesmente a situação encenada aos nossos olhos como se perdido, preso num sonho ou entre a vida e a morte, vagante feito fantasma, indiferente à realidade material do relógio de ponto. Tais apartes funcionam como a introdução do drama a ser encenado no relato, já apontando ali a estratégia do humor absurdo do texto que seguirá ao lado das peripécias dos intrépidos viajantes, um atalho para a linguagem que se opera no trajeto à Bulgária tão sonhada e tão retórica.

Seguem ainda antes do “teatro do absurdo” começar, abrir suas cortinas de vez, dois apartes mais, “Os Prolegômenos” e por fim “Explicação

141

Desnecessária”, que também sugerem um trabalho do tipo acadêmico como inspiração para o desenvolvimento do seu texto: não é um registro de um ensandecido, perturbado, feito André que é Andréa, ou Astrogildo que são vários, porque quem escreve é antes um pesquisador, alguém para o qual a ciência é pulsão absoluta da vida que lhe move, e não a inconsciência. Se antes a ciência enclausurava, impondo a vista míope de uma lua que vem da Ásia, aqui na voz desse narrador expedicionário ela também fascina, seduz, ilude, feito púcaro búlgaro na epifania “geonomástica” do narrador: há possibilidades ampliadas na banalidade de um vaso de exposição, no nome que se dê a ele, ao seu lugar de origem, sua história, seu passado. É possível fazer humor de um vaso, e assim fundamentar uma crítica profunda acerca da existência e da humanidade na sua sede de poder e dominação, a ponto de deixar alienada da maioria, a Bulgária que tanto fascina os sujeitos nessa missão urgente.

Para que se registre pela ciência uma descoberta extraordinária quanto ao dos quarks ou o transístor, é preciso documentar e fazer um relatório das atividades promovidas pela excursão científica de viagem à Bulgária, que ficasse de registro a posteridade tão curiosa quanto eles. Veja só como nos alerta o autor expedicionário do relato que se segue, num aparte, discorrendo em cima do texto dramático que encenaria a seguir o seu diário de viagem - produzido ao longo da expedição real ou ilusória à afamada Bulgária:

Aqui o que se procura é apenas relatar, com o máximo de fidelidade, a experiência pessoal que – quase a contragosto e com o espírito sempre o mais elevado – teve o autor a oportunidade de empreender em torno dessa mirífica e cada vez mais nebulosa disputa geográfica: ou, para dizer com mais exatidão, em torno desse espanto geonomástico, como tão bem o definiu um famoso historiador búlgaro. Se bem ou malsucedida essa experiência, face aos poucos prováveis resultados que dela possam advir para o progresso da astrofísica ou da astrologia, este já é um assunto que por sua natureza escapa aos limites da presente obra, embora sejam eles tão evanescentes e imaginários quanto os do próprio reino da Bulgária. (CARVALHO, 2008, p.310)

No primeiro aparte, qual anunciação, há indiciado uma espécie de tese que será discutida ao longo do livro, sobre tais questionamentos urgentes em que

142 se movimentarão as discussões filosóficas das personagens em cena. Afinal, existe ou não tal Bulgária da imagem de um museu? Existindo ou não, há que se saber a princípio, pela potência revolucionária guardada nesse lugar misterioso, controverso e impressionante, que lhe apareceu na forma de uma aparição ofuscante na forma de um intrigante vaso, de nome e origem curiosas, que “veio decidir, de uma vez por todas, sobre o destino do autor” (2008, p.311):

No verão de 1958 o autor visitava tranquilamente o Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia quando, ao voltar-se um pouco para a direita, avistou de repente um púcaro búlgaro. A impressão causada pelo estranho acontecimento foi tamanha que no dia seguinte ele embarcava de volta no primeiro avião, deixando a mulher no hotel sem dinheiro ao menos para pagar as despesas”. (Idem, ibidem)

Se antes o tempo dos personagens era esse do fantasma, deslocado e sem lugar, para o do narrador que especulará acerca da Bulgária, este seria o simultâneo do teatro, no tempo de agora, na encenação entre o dia e a noite. Discurso que sugere imagem atemporal no texto, de caráter lírico e vulgar, próximo ao ideal de um “senso comum” universalista, na voz de um narrador único que é o autor da comédia em ação no palco. É um projeto quem sabe para buscar alternativa de se conhecer de fato o fantasma que obsidia o tempo confortável do agora, reagindo a ele com a postura tão cara a dos tempos modernos sem ilusões, quais sejam a cientificista e pragmática. É encará-lo de frente. Como dirá Batella acerca da desenvoltura com que os personagens se colocam na retórica, com efeitos de humor na peça do narrador de O Púcaro, é a potência transformadora de arte da língua, que constrói e reconstrói realidades, ideias e universos complexos no imaginário social, dizendo que “o personagem central [nesse livro], porém, à roda do qual giram as características que fazem dos demais, cada um a seu modo, principais e graciosos, é a linguagem. (2004, p.239)

No texto, notadamente a questão da linguagem como potência criativa e a possibilidade política de reconstrução do imaginário coletivo da sociedade por

143 intermédio da intervenção vernácula, o narrador expedicionário refletiria acerca da Verdade sempre ambicionada pelos pesquisadores, como conquista absoluta do bem sobre o mal. Diz ele a respeito da pesquisa por acontecer, no espetáculo que estamos assistindo a partir do ato cômico de desventura em torno de um vaso enigmático e pluripotencial na sua territorialidade física, astrofísica, astrológica:

E como a Verdade paira acima de quaisquer verdades, sejam elas quais forem, como se ensina até nas escolas primárias, aqui ficam definitivamente entregues à posteridade – precária e efêmera, pouca importa – estas páginas escritas com sangue e com suor, e agora também com raiva, para que sobre elas se debrucem os historiadores e os contadores de histórias de todos os tempos, os poetas e adivinhos, e todos quantos se interessem por outra coisa que não seja o seu próprio interesse, como é o caso edificante do autor. (CARVALHO, 2008, p.315)

No enredo, o caráter dramático do livro, com suas “descrições de cena”, o discurso direto das personagens, mais a divisão temporal em capítulos (dias, meses), reafirma nesse exemplar de Carvalho uma forma possível de escrita semelhante àquela da encenação do teatro. As falas das personagens soarão alegóricas, assumirão no texto a forma de discurso direto. Alegóricas feito os próprios personagens em seu jeito de ser, agir, sugeridos já no nome que anuncia sua função ideológica ou figurativa na trama (o doutor Professor Radamés e Uivo que viu a uva são exemplos de deslocamento de papéis). Batella comenta sobre isso:

Campos de Carvalho não faz nada a não ser reutilizar o quinhão morto da língua, cristalizado em seus usos proverbiais e anedóticos, em suas frases feitas e ditados populares, de modo a que, nesta reutilização o leitor se reencontre com a sua própria linguagem sob um novo prisma, e a subverta, como se subitamente se desse conta de seu inesgotável potencial. O PÚCARO BÚLGARO produz um desvio de linguagem, e o professor Radamés comporta-se como o agente desta mudança, provocando e assim contribuindo para que o narrador e leitor revejam suas ideias fixas sobre a maneira como falam,

144

escrevem e pensam – e, assim, escrevam, falem e pensem a realidade de um modo como nunca antes falaram, pensaram e escreveram. (BATELLA, 2004, p.240)13

Quem nos guia pela trama, é o narrador em primeira pessoa, autor do diário científico que nos serve de passagem para a viagem alucinada daqueles personagens em ato de encenação. Hilário, nome dado a Batella ao personagem de O Púcaro, é o autor do anúncio em busca de companheiros para a sua jornada até a Bulgária, que transita no texto entre a onisciência da cena, dos personagens em jogo relatados por ele na sua ação, e a sua consciência em representação, no projeto coletivo dele e dos outros. Da mesma forma em que observa os seus, é também observação no intento de coletividade que se faz registro, da jornada ao desconhecido maravilhoso e redentor.

Aqui, quem atua é próprio Hilário, que contracena com um psicanalista:

13 de novembro

Fui ao psicanalista e ele me fez deitar num divã, sem o paletó, a gravata e os sapatos.

- Está se sentindo confortável? - Muito. E o senhor? -Desaperte o cinto. -Quer dizer que já subimos? (CARVALHO, 2008, p.327)

Neste trecho, vemos outra cena dramática, quando já equipado com seus expedicionários e sede de conhecimento, Hilário, o dramaturgo que opera a linguagem da encenação, agora no palco, trabalha copiosamente no seu intento de ordem “geonomástica”, com a vaidade artística que lhe cabe. A realidade das coisas, como dirá Batella (2004), é a realidade das palavras rearranjadas:

30 de novembro

13 Marcação do autor. 145

“Estava à janela quando vi parado na esquina o que me pareceu ser o expedicionário Expedito. Com o binóculo no ombro e mandei que subisse: -Que história é essa? Pensa em descobrir a Bulgária ficando na esquina como um valdevinos qualquer? – e gostei daquele vadelvinos. O professor Radamés levantou os olhos do Diário Mercantil, não sei se para censurar o meu ceticismo ou se o valdevinos, ou apenas para tomar conhecimento do recém-chegado. -É que sou muito tímido, sem expediente – disse afinal Expedito, após ruborizar-se do assoalho até o teto. E olhou para o olhar do professor com um medo pânico. (Idem, ibidem, p.337)

Nas descrições de cena e nas falas reproduzidas é que se dará a viagem especulativa em torno desse país imaginado por eles, bem como o processo de produção criativa daquele sujeitos obcecados por aquele trabalho intelectual de valor, que têm como demanda humanitária, necessidade premente de vida livre em plenitude: a Bulgária, é preciso sabe-la melhor, na forma, na cor e no sabor. É preciso viajar até a Bulgária, e não se ater a ela, a partir de uma imagem empoeirada de museu ou de registro antigo de cartografia. A viagem em si, ao que se sabe, nunca se realizará, se mantendo no discurso desconexo da empreitada dividida entre sujeitos Radamés, Expedito, o próprio Hilário, Pernacchio, Ivo que viu a uva e Rosa. Na trajetória, uns fugirão no meio do caminho, outros se perderiam, muitos nem iriam embarcar na ideia da Bulgária possível dos sonhos.

No texto de O púcaro búlgaro, vemos um drama se desenrolar a partir desse objeto curioso de museu, sempre numa leitura analítica ou museológica do mundo, assim como é nessa cena em que o Professor explica a um de seus companheiros de jornada, as modernidades do mundo contemporâneo, do desbunde da tecnologia, sem que as mudanças tenham ocorrido de fato, sequer a Bulgária seja conhecida - depois das Américas, a África e o transístor (a eletrônica).

Em ato do drama de Hilário, tentaria responder Radamés, a partir do roteiro que se segue, efetuado pelo dramaturgo da grande narrativa de viagem. Observa-se o movimento, os contrastes, as descrições, como se reduzidas ao

146 extremo, tem que o dever de ser direto, objetivo, tal a ambição universalista da expedição. Já nos anunciava Hilário que seu intento é “o mais pormenorizado e o mais honesto possível” (CARVALHO, 2008, p.313):

Diz Radamés:

-Professor, como se explica que até mendigo hoje tenha transístor? O professor estava muito ocupado em observar com suas poderosas lentes os seios, as ancas e a bunda propriamente dita das mulheres, e não ouviu a pergunta.

Tirante as mulheres, que não sacrificam a elegância a nada, nove entre cada dez transeuntes levavam o seu rádio transístor colado ao ouvido, alguns mais discretos trazendo a tiracolo, ligado no volume máximo. Cada criança trazia também o seu, as menores de chocolate ou de matéria plástica, as outras um dos modelos recém-lançados com estardalhaço pela FNT (Fábrica Nacional de Transístores) com desenhos de heróis de histórias em quadrinhos ou de filmes de bangue-bangue, a preços convidativos. Até um cachorro, se não foi ilusão de ótica, passou com um aparelho adaptado à coleira e que presumo seja algum modelo especial para cães, de fabricação japonesa ou norte-americana, infelizmente ainda difícil de encontrar. (Idem, ibidem, p.352)

O púcaro, em tempo, é um vaso típico, daquele “com asas”, banais por ali para quem o coleciona ou se interessa por objetos dessa espécie, de louça ou cerâmica. Alguém indiferente a esse universo acabaria se indagando que diabos seria isso, esse tal de “púcaro”, e se haveria outros exemplares de lugares diferentes ao do topos búlgaro que assombrou o nosso herói navegante, expedicionário do infinito azul.

Nota-se aos poucos que O púcaro búlgaro é mais um título insólito de efeito humorístico, para um romance narrado em primeira pessoa carvalhiana, que desconfigura e rearranja as expectativas de linguagem em sua literatura, cuja missão é efetuada aqui nesse romance por um aventureiro dramaturgo, que se pretende o contrário do autor de um diário íntimo. Quer ser porventura um

147 dramaturgo que roteirize o drama universal, ser na linguagem um mágico e no discurso soar feito verdade unívoca, quando nos enreda ao longo de sua viagem desejada a realidade possível de uma Bulgária ainda por se conhecer. Já dizia o autor viajante, o dramaturgo ou escrevente da grande expedição, “que muito mais importante do que ir à Lua é ir ou pelo menos tentar ir à Bulgária – ou, quando menos, descobri-la. (CARVALHO, 2008, p.310)

Em cena, é como se lêssemos o diário de Hilário em sua jornada de descoberta, de busca desenfreada por espaços ainda não colonizados da cultura. Foi um vaso justamente, inesperado, feito fantasma na aparição, que muda a trajetória do sujeito. Foi através de um objeto de origem desconhecida, Búlgara, que tem o autor-narrador do diário-drama, a epifania que lhe movimenta a embarcar nessa viagem de desbravamento da realidade de língua à realidade da palavra. O expedicionário que nos conduz por sua viagem, deu- se num dia qualquer com esse curioso objeto, que lhe chama à atenção e enfia na linguagem, a ponto de rompê-la e reorganizá-la pelo uso: Púcaro Bulgaro, Púcaro, Búlgaro, Pú, Bú, Pú, Bul, Ca, Ga, Ro, Ro. São imagens que, além da ideia aparentemente contraditória, mostrando um jogo estratégico de organização da língua, não faz senão provocar e modificar no leitor, no espectador, a sua percepção do estabelecido. É no rearranjo que se coloca em evidência, as contradições de um sistema maquínico, de repetição. Feito criança que brinca com a linguagem em formação, o púcaro búlgaro colocou como possibilidade ao narrador, no relato de sua experiência com o objeto no museu, a potência criativa que subsiste ao seu desejo de desbravar. É preciso descobri-la, nos disse, antes de conhecê-la. Decide, então, viajar até lá, ao lugar descrito na geografia através de verbetes do dicionário. Mas antes, é preciso depurar a ideia, porque será um trabalho sério, de intenções maiores, algo científicas. É preciso também, como numa boa narrativa grandiosa de navegação, os interlocutores, os antagonistas que darão valor universal ao texto que surgirá, da aventura da descoberta de um lugar desconhecido, visto pela primeira vez no mapa desenhado por um vaso com asas.

Com aquilo em mente, segue para a casa, pensando, entra em contato com o museu, ainda se mantém obcecado por aquelas duas imagens estranhas que

148 então se sobrepuseram sobre sua vida medíocre: o púcaro, qual seja, a Bulgária, o que seja. Assim, espalharia anúncios pela cidade, na busca de sujeitos que dividissem o mesmo sonho de argonauta.

Além do vaso estranho, há essa paragem desconhecida para nosso expedicionário. Com a provocação do objeto de museu, que legitima a história e as certezas de fatos, memórias, Hilário iria conspirar uma viagem para esse lugar, a fim de se certificar da origem e a existência do vaso em questão, além da Bulgária, país, cidade, seja o que for. Para ele, os mapas expandem-se do dicionário, da carta cartográfica que delimita, antes de convidar a conhecer. Se os outros personagens de Carvalho se mostram obcecados pela dor e o trauma, reclusos que estão na geografia de um lugar só, inescapável, este último é perseguido pela sensação premonitória de uma revolução por acontecer, de fuga, após o “espanto geonomástico” de origem. Uma revolução que seja positiva e transformadora.

Se nos outros livros de Carvalho observamos nas sombras o caminhar de sujeitos desviantes dos quadros de prestígio do pensamento científico e filosófico, nesse último romance seu, estão presentes, de maneira desterritorializada, os mesmo cientistas algozes de antes, como agentes na ação de transformar o mundo. O expedicionário em questão, Hilário, possui como obsessão o seu sonho próprio de “moto-perpétuo”, que se materializado, possibilitasse viajar realmente para um lugar imaginado, voasse para a Bulgária imaginada de um vaso de museu. É um cientista sagaz, ao lado de um dramaturgo piadista, e de um escrivão de uma viagem jamais imaginada pela humanidade: a Bulgária, não se conhece, o homem a descobriu sem conhecê- la.

Na arqueologia de objetos de acervo, cabe o olhar antropológico acerca das performances em sociedade, como a que leva à manufatura de um púcaro búlgaro desse tipo de postura artística ou “científica”, na sua prática social privilegiada: um vaso ostentado no museu, em exibição ao público. Na antropologia de Hilário, qualquer sujeito antropomorfo poderia intentar uma obra científica que lhe guiasse ao desconhecido misterioso e na descoberta do

149 impulso de desejo infinito. O museu em O Púcaro abandona a sua função comum de espaço de “antiguidades” em exposição, por se observar e estudar, para compreender o espaço cênico de desconstrução dos valores tradicionais, muitos exibidos em museus, penhorados na ideia de arte como valor comercial, um bem para poucos que podem consumi-lo na sua mesa de escrever. Foi na recepção de uma obra artística, que um sujeito espectador pode intervir e agir positivamente, para a construção de um espaço terceiro, distanciado, realidade possível. A Bulgária e o Púcaro estavam materialmente no museu, feito peça empoeirada no antiquário, esquecida, abandonada, mas ao que parece, estão por todo o lado, mais ainda na cabeça, na mão, no corpo e na alma sequiosa de nosso argonauta da gaia ciência.

Em paralelo, podemos pensar O Púcaro Búlgaro de outra maneira: enquanto Carvalho narra com ironia suas divagações e o universo íntimo da trama e dos personagens, na voz do sujeito Hilário, já desqualifica, ou antes reposiciona o valor disso (ciência) em outro lugar possível de discussão, deslocado e próprio a subjetividade de fantasia. No museu, o contemplativo pouco pede para ação política, em nada alimenta o espírito aventureiro que transborda em vitalidade. No palco, aquelas vidas em cena, acabam encenando a tragédia humana da busca pelo desejo inalcançável, talvez de sobrevida, diante da morte, na ausência de espírito jovem e sequioso por descobertas; quem sabe não é aquela espera infinda, por Deus, pelo passar do tempo num lapso, como Godot perdido numa paragem confusa, contracenando com personas que nada lhe acrescentam na ânsia pela resposta à dúvida de existir tranquilo, sem querer para si uma verdade confortável.

Curiosamente, a viagem acaba, justo quando começa. O autor nos enreda na sua travessia, ao longo de meses, dias, e conseguiu reunir o que queria, segundo ele, inclusive no mesmo século, dentro da divisão temporal da obra e do tempo processual decorrido na empreitada em torno das imagens desconhecidas, borradas, quem vem da Bulgária, nos vasos que parece que existem por lá. Há os apartes, a obra em si, o material usado, as pessoas envolvidas, o referencial teórico que desenvolverão no discurso ilógico, de aparência aforista, que justifica suas ações. A viagem, no entanto, não ocorre

150 aos nossos olhos, será também imaginada na ideia, antes de relato geográfico ou literatura dessas que cantam a glória dos navegadores em suas conquistas territoriais pelo mundo.

Com os provimentos em mãos, de caleidoscópio a “uma cabra bem fornida” (CARVALHO, 2008, p.373), o passageiro dessa viagem em rumo ao mistério da realidade porvir, seguirá no seu fardo em partida à Bulgária. Os outros, apenas Pernacchio e Radamés, o acompanham n‟”A Partida” (título do capítulo final).

Na experiência forjada no relato ao longo do romance, O Púcaro Búlgaro é o roteiro difuso do drama encenado no derradeiro romance carvalhiano, que faz piada sobre a vida de conquistadores de mares nunca dantes navegados, ou que já o foram, mas que padecem de fato desconhecidos, como o vaso, púcaro, e sua origem geográfica (onomástica) búlgara, na Bulgária. É no absurdo que se encontra a leitura tranquila da imagem de um vaso que assusta e que provoca o observador: é um vaso outro, não esse, objeto. É de instância metafísica, nunca escavada numa missão de antropólogos. É preciso um outro intento científico, geográfico, linguístico, onomástico, discursivo, que dê conta de registrar, se possível, a Bulgária que se desconhece e que Hilário buscou conhecer indo até lá.

Em ato último, observamos atentos o diálogo fantástico que se segue, do episódio final da saga a que assistimos, cúmplices de seus desvarios geográficos e vocabulares. Na cena, um diálogo non sense que cadencia as peripécias de linguagem e de ideia, desenvolvidas na pesquisa sobre a Bulgária, a Bulgarologia e onde mais houver uma sombra dessa imagem búlgara a nos perseguir e provocar.

“O RELÓGIO (passando das 11h50mim para as duas) - Tic-tac, tic-tac,tic-tac... RADAMÉS – Eu sempre desejei conhecer a Bulgária. PERNACCHIO, EU – Mas o sr. não é búlgaro?! RADAMÉS – Saí de lá muito criança, meses apenas. Me dê três. O tal cearense conseguiu convencer meu pai de que o Ceará

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existia mesmo, e meu pai organizou a primeira expedição búlgara para descobrir o Ceará. EU – Me dê uma. E descobriu? RADAMÉS – Se descobriu, não sei. O fato incontestável é que moramos em Quixeramobim e em Quixadá durante quarenta anos. O que não deixa de ser uma prova de peso. PERNACCHIO – Vou pedir uma. Então quer dizer que o Ceará também existe? RADAMÉS – Sou eu quem fala? – Que diabo, se nem o Ceará nem a Bulgária existem, então eu fico mesmo num mato sem cachorro. Bato mesa. Mas como dizem que quem não tem cão caça com gato, eu pelo menos tenho o meu gato para caçar um jeito de sair dessa enrascada. EU – Mesa, também. O diabo é que o seu gato não é de nada, professor. E ele, pelo menos – nasceu em algum lugar? RADAMÉS – Presumo que no cu da gata, para não dizer pior. Quanto a não ser de nada, só por causa do seu ar ausente, digo que Deus é o rei dos ausentes e nem por isso você é capaz de dizer que ele não exista. EU – Existe tanto quanto o Ceará ou a sua Bulgária. PERNACCHIO – O que não quer dizer absolutamente nada. Bato. (CARVALHO, 2008, p.382)

A Bulgária tão procurada é outro país, se país o for, com outro idioma, que não o búlgaro, e para encontrá-la em definitivo faz-se necessário deslocar os papeis de ciência, arte e literatura, como se planeja fazer no drama representado em três atos divididos entre o aparte, na pesquisa em desenvolvimento e na partida, no fim, na peça cômica em forma de romance. Os naufragados se restringem à Lua, à Vaca e à Chuva. Aqui é o intrépido navegante a desbravar além da enseada.

“Navegar é preciso, viver é preciso”. É preciso, se tempo houver, conhecer a Bulgária, deixar (des)cobrir-se por ela.

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Finais Considerações

Assim, quando se pensa na literatura fantasmática de Campos de Carvalho, falamos de um terreno sinuoso, de infinitas incertezas, de “independência intelectual”, de conceitos e ideias desestabilizados, pois são sujeitos descritos que não são apenas esquisitos para alguns, estranhos no romance e na vida, como a maioria das minorias fora dele para um discurso convencionado: são seres socialmente repulsivos, que não apenas repelem em contraponto a sociedade moralmente constituída no status quo, como também são vistos com certa repulsão pelos que se constituem a partir dessa moral quase sempre ocidental, cristã, burguesa, preconceituosa, “positivista”, injusta ou, de outra forma, “lógica”.

Injusta pelas justificativas “lógicas” que sempre ocorrem para qualquer fenômeno de qualquer natureza, simplesmente porque devem ocorrer e se explicar cientificamente, o que delimita os terrenos de segregação e sombras. Defini-lo, portanto, a partir da lógica dessa tradição literária e moral poderia reduzir a complexidade não apenas de (“desterritorialização” de) linguagem em seus personagens e histórias amalucadas, mas também a ideológica, a independência crítica, como a da potência literária e política, a um mero verbete explicativo ou a uma fórmula matemática. É preciso fazer justiça com as próprias mãos, com a arma e com a caneta – ou pena, no pergaminho, hoje no laptop, e por aí se segue.

Do contrário, haveria oposição, justamente, com o ideal literário do texto do autor mineiro, como Batella (2004) apontaria a negação do narrador- personagem da ideologia cartesiana como ideal, meta de vida, que reproduzam assim os lugares de reclusão e silenciamento de minorias. E do próprio Carvalho, cabe dizer, em suas posturas arredias com os rituais de tradição literária das grandes metrópoles.

Juva Batela ainda comenta a literatura de Carvalho, naquilo que ela possui de não-assimilável ou compreensível, “ilógico”. Segundo ele, há no texto a intenção de desestabilizado, da “armadilha”, que se aproxima dos deslocamentos efetuados pelo Surrealismo e Dadaísmo enquanto estéticas

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artísticas. Na verdade, esses recursos funcionariam como elemento chamativo e provocativo na escrita carvalhiana, que acompanha o texto crítico que se seguirá na obra como um todo e que a justifica.

Nesse sentido, em relação ao livro A Lua Vem da Ásia, a primeira obra de Carvalho, Batella afirma que:

Trata-se de um livro-limite. (...) O que está durante o tempo todo por um fio é a capacidade do homem de ser livre e pensar livremente, mesmo que este pensar subverta uma determinada espécie de razão dominante, em nome de outra. O porta-voz desta racionalidade alternativa é um personagem-limite, encerrado na voz de uma primeira pessoa narrativa que inicia seu ambicioso projeto de libertação a partir da linguagem. (2004, p.65)

O que mais, senão uma literatura menor, iria relatar o cotidiano de um ex- militar, ex-combatente de guerra, que vive em uma pensão e se masturba, vez ou outra, com uma imagem do cotidiano burguês, na privacidade e no fetiche da fechadura (A Vaca de Nariz Sutil) dos outros quartos onde vive? E os amores incestuosos entre irmãos gêmeos (A Chuva Imóvel)? E os assassinatos que se dão como uma chuva que se põe de pronto num dia ensolarado? Quem mais daria voz a desajustados, clowns melancólicos, loucos, hereges, sodomitas, ateus, entre outros discursos (d)e personagens menores? Quem mais senão sujeitos que não seriam lidos ou o seriam tempos depois, passada a calmaria do choque e tensão causados por seus enredos sujos e mal-ditos e porventura relidos e adaptados numa posteridade mais favorável ao indiscriminada?

Em suma, se possível, um resumo disso: a não contensão de si e a angústia pela independência do corpo e do espírito, em meio a um jogo cheio de regras nem sempre assimiláveis para alma, como a de um manicômio ou a de códigos de ética e de moral das casas, ruas e esquinas, serve como estratégia de mote para os desvarios verbais e líricos dos sujeitos impressos por Carvalho em sua obra.

Em A Chuva Imóvel, seu terceiro livro, ouviremos de André/Andréa, por exemplo, um relato desacreditado e desenfreado de um sujeito conflituoso em

154 relação à sua existência castrada e humilhante, ao mesmo tempo múltipla, diante de um amor incestuoso impossibilitado pela moral reinante:

De qualquer forma tenho que dar testemunho, para isso estou aqui, assim fui eleito: inútil fugir de mim – dos outros! Fugi do ventre e não adiantou de nada, andei como um sonâmbulo por terras e mares estranhos, acabei caindo nesta ilha, neste quarto com esta luz ofuscando-me nesta escuridão: sou eu a lâmpada, não consigo apagar-me: o vagalume depois de morto continua aceso – também as estrelas. A isto eu chamava de insônia, mas mesmo dormindo eu continuava insone, em verdade não me lembro de ter dormido em toda a minha vida: meus pés sim, e minhas pernas: eu, nunca! Agora estou acuado, todos esses refletores em cima, já não adianta meter-me debaixo da cama para fugir de mim, voltar-me contra a parede como fazia em criança – ainda hoje. Ou entro logo num hospício e digo que não sou eu, como sei de muitos que se acovardaram no instante decisivo e se submeteram a lavagens do cérebro e dos intestinos, e se entregaram de mãos atadas aos seus algozes, o riso alvar na cabeça enfim oca. Mas esses não tinham uma alma, eram apenas filhos, ou irmãos dos outros, seu desespero nada tinha a ver com este desespero, podiam dar-se ao luxo de aprender tudo de novo – como se acabassem de sair da vulva, a cartilha debaixo do braço. (2008, p.233).

Por último, não se pretende apenas atentar-se à forra na obra de Carvalho que foi renegada injustamente, e não é apenas prestigiar, num “mea-culpa” que nos coubesse, algo que é tão importante quanto qualquer manifestação cultural e se retificar assim diante de uma obra que, por motivos diversos, acabou por se empoeirar em estantes de livros jamais lidos. Mais do que isso, é se permitir ler um registro atemporal que nos desvela uma potência bastante cara aos tempos que se diz incertos e escorregadios como o de hoje, pós-modernos: a de outro tempo de fantasma, de Guerra Fria, e o de agora, de Guerra de Tecnologia da Informação. Os conflitos de antes que persistiam, resistem nas formas de relacionar da sociedade, persistem nos espaços de reclusão do desviante, seja no discurso, seja na materialidade de um tribunal kafkiano de justiça e na liberdade de espírito quase impossibilitadas nas práticas subjetivas dos sujeitos pelo fantasma da burocracia e da morte na ordem vigente.

Seja o tempo que for, A Lua Vem da Ásia, Vaca de Nariz Sutil , A Chuva Imóvel

155 e O Púcaro Búlgaro poderão ser percebidos como retratos literários de um tempo de tensão e de revisionismos que ajudariam a elucidar muito do que se discute hoje em dia, acerca de novas subjetividades e novas realidades e demandas culturais. Também novos espaços de manifestação de cultura, novas emergências liminares, novas demandas de leitura, já que os espaços pré e pós-revolucionários, de “tensão” e intermitência ainda existem e persistem, sem que nenhuma guerra aparente ou estado de sítio esteja à vista. Espaços (desviantes) que nunca foram novos, apenas não são lidos como manifestação natural de cultura e ideologia diversa do senso comum, na história oficial.

Assim como outros citados por Ruy Castro no texto “Antes do 1º de Abril”14 constituiriam sua importância para a história das manifestações humanas de arte ou de política, a literatura dos personagens sem nome de Carvalho – que por vezes possuem diversos nomes e genealogias –, são bastante similares aos sujeitos em crise de nosso tempo de hoje, aparentemente sem parâmetros – ou de revisão destes -, de modernidade líquida. Talvez por isso a relevância de sujeitos para os quais Carvalho dá voz em seus escritos e o ressurgimento de sua obra “ao acaso”. Eles, por vezes, tanto autor quanto obra, não comportam em si a existência às sombras, tampouco iriam se contentar com espaços, com registros únicos e definitivos que lhe deveriam caber ou como forma de se manifestar político e artisticamente.

É em razão disso tudo que a leitura surrealista que se faz comumente da literatura de Campos de Carvalho e de muitos outros, bem como leituras absolutas da maioria das literaturas de minorias como registro local de cultura, não pode ser definitiva, já que se debruçar ao menos no que escreveu o autor mineiro “exemplar de marginalidade”, permitiria recolher diversos indícios de que a ordem do ordenamento ou dos bons costumes, nem a da temporalidade convencional, ou por fim o da passividade perante a tradição herdada por uma geração, não é o que pretende na literatura que ali se vê, que ali se lê e deverá ser lida.

14 Conf. anexo I. 156

É antes o movimento, do que a morte definitiva da potência criativa que motiva a existência do sujeito que escreve, relata a sua dor no ato político de sua escrita marginal. Antes é questão de sobrevivência desconstruir o estabelecido que os oprime e os aliena de si mesmos e dos outros, da sua própria história e das possibilidades de criação e reinvenção de sua linguagem que pulsa, em consonância com suas pulsões e desejos vastos e contraditórios como, porventura, a morte a rondar e às vezes de vida que explode, em poesia.

Daqui sairei eu e vivo, tenho certeza, apesar do frio e deste peso quase insuportável que suporto sobre os ombros, como se suportasse todo o peso do mundo. Valeu-me ao menos para isso a minha experiência de afogado, a minha inexperiência – e sobretudo o que me ficou da calma do irmão em cima e fora da sua bicicleta, o irmão, respirando e andando comigo desde que o enterraram dentro de mim. – É possível que este seja o seu mundo e ele me tenha arrastado até aqui, preso a essa corda que eu comprei e armei julgando ser minha: a corda justamente que se atira ao afogado para que não se afogue, não se afobe – assim como eu ainda há pouco, antes de atingir esta praia. (CARVALHO, 2008, p.278).

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Anexos

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Anexo I

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Anexo II

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Anexo III

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