Verger, Bastide E Métraux: Três Trajetórias Entrelaçadas Angela Lühning
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textos VERGER, BASTIDE E MÉTRAUX: TRÊS TRAJETÓRIAS ENTRELAÇADAS Angela Lühning oger Bastide, Pierre correspondências que ocorreram nas décadas Verger e Alfred Mé- de amizade que se estenderam até a morte dos traux: três homens seus amigos, tendo sido Verger aquele que com origens, trajetó- viveu por mais tempo. O lócus das reflexões rias e histórias muito é em maior parte o Brasil, mas a extensão diferentes, cada um geográfica da relação profissional e humana conhecido pelas suas entre os três amigos passa por vários países, pesquisas sobre as culturas africanas na Di- já que especialmente Verger e Métraux se áspora e na África. Cada um tendo deixado deslocam com muita frequência para cuidar Rimportantes contribuições para a antropolo- de seus assuntos profissionais. Isso causa tan- gia, a sociologia e a história do século XX, to intensas trocas de cartas, quanto encontros conhecidas nas suas respectivas áreas. Menos mais eventuais em outras partes do mundo, conhecidos são seus interesses em comum, embora o centro convergente seja o Brasil. criando convergências que alimentaram co- A intensidade dos contatos torna-se sur- laborações profissionais profícuas e amiza- preendente, levando-se em conta que foram ANGELA LÜHNING des pessoais profundas, que permitem novas realizados em uma época na qual se contava é professora de interpretações, objetivo destas reflexões. para a comunicação apenas com a carta, pois Etnomusicologia da Escola de O centro de nosso enfoque é Pierre Fa- a telefonia era ainda rara. Portanto, a base das Música da UFBA tumbi Verger, no ponto de encontro entre Mé- amizades são as intensas trocas de corres- e diretora da Fundação Pierre traux e Bastide. As reflexões incluem a aná- pondências entre Verger/Métraux e Verger/ Verger (Salvador). lise de vivências em pesquisas e as trocas de Bastide. O meio epistolar é usado por cada 128 REVISTA USP • São PAUlo • n. 95 • P. 128-141 • SETEMBRo/oUTUBRo/noVEMBRo 2012 Pierre Verger em Bom Jesus da Lapa (foto de Gautherot, 1950) Fundação Pierre Verger Pierre Fundação REVISTA USP • São PAUlo • n. 95 • P. 128-141 • SETEMBRo/oUTUBRo/noVEMBRo 2012 129 textos um dos três tanto para dialogar sobre ques- 1946, primeiro em Nova York e depois, a partir tões profissionais gerais e discutir questões de 1950, na Unesco em Paris. Seguiu, assim, específicas, quanto para fazer desabafos de uma carreira política, com intensa atuação ordem pessoal. Esse material torna-se uma de pesquisa com muitas publicações resul- das fontes principais deste texto (Métraux tantes. Suicidou-se em abril de 1964 na Suíça. & Verger, 1994), além do livro Itinéraires, Com Bastide e Métraux, Verger estabele- publicação póstuma com anotações pessoais ceu intensa correspondência: são 115 cartas de Métraux (1978) e um tanto controvertida trocadas com Métraux em dezessete anos, por ter sido considerada pessoal demais1 e de 1946 a 1963, publicadas em 19942; e com cujo impacto impediu a publicação do segun- Bastide são 227 cartas em vinte e sete anos, do volume, inicialmente previsto. Também de 1947 a 1974, com tom bastante profissio- foram consultados vários livros sobre Ver- nal, aguardando a publicação em breve. ger e Bastide (Reuter, 2000; Peixoto, 2000; A relação de Verger e Métraux era mais Verger, 1993, 2002, 2004; Lühning, 2008; afetiva, a ponto de se tratarem mutuamente Ravelet, 1993; Le Bouler, 2002). de gêmeos3 pelo fato de terem nascido qua- se na mesma hora – Verger no dia 4/11 em OS INTERLOCUTORES Paris e Métraux no dia 5/11 em Lausanne, EM LINHAS RÁPIDAS com apenas cinco horas de diferença – e pelas semelhanças de suas personalidades. Roger Bastide, de origem protestante do Porém, há também muitas diferenças: Mé- sul da França, o mais velho entre os três, traux veio de sólida formação universitária, nasceu em 1898. Sociólogo, com sólida car- enquanto Verger foi autodidata, incansável reira acadêmica, lecionou dezesseis anos no observador do mundo do qual virou aos pou- Brasil, na Universidade de São Paulo, entre cos seu descritor e escritor. É uma amizade 1938 e 1954, fato importante para a formação feita por muitas cartas, encontros rápidos e 1 Informação pessoal de de muitos sociólogos e antropólogos no país. algumas visitas mais longas4. A correspon- Edgardo Krebs, pes- Também realizou várias pesquisas de campo, dência inicia-se em 1946, evidenciando em quisador do Smithso- nian Institut (Washing- com especial interesse pela cultura afro-bra- geral um tom bastante pessoal. ton), em fevereiro de sileira, que resultaram em inúmeras publica- Em 1946, quando Verger conseguiu fi- 2011. ções. Morreu em 10/4/1974 na França, logo nalmente sua permanência no Brasil, ele 2 Le Pied à l’Ètrier, editado por Le Bouler, 1994. após sua última viagem ao Brasil em 1973. também conheceu Bastide, este já residente Pierre Edouard Léopold Verger nasceu em São Paulo desde 1938, lecionando socio- 3 “A Pierre Verger frére en Scorpion et en Guinée em 4/11/1902 em Paris. Fotógrafo autodida- logia na Universidade de São Paulo. Bastide avec l’ámité de son ma- ta, iniciou a sua itinerância após ter perdido assumira o lugar de Claude Lévi-Strauss, que rassa”, dedicatória ma- nuscrita de Métraux no sucessivamente todos os membros de sua fa- tinha sido da primeira geração de professo- livro Le Vaudou Haitien, mília até 1932. Sua atuação dificilmente cabe res daquela instituição, fundada em 1934. Em evidenciando a consi- deração mútua como em alguma categoria, pois não construiu uma 1944 Bastide já tinha realizado a sua primeira gêmeos. “Marassa” são carreira no senso comum. Tornou-se doutor pesquisa de campo em viagem pelo Nordeste loas, entidades infantis em estudos africanos pela Sorbonne, pela brasileiro, que resultou na publicação de Ima- haitianas de gêmeos, correspondendo aos modalidade terceiro ciclo, especialista em re- gens do Nordeste Místico. Esse livro emble- termos “ibeji” ou “ma- lações transatlânticas, mesmo sem formação mático foi lançado primeiro em português e, baço”, ambos utiliza- dos no Brasil. acadêmica convencional. Optou por morar apenas muitos anos depois, em francês. As 4 Como exemplo cita-se de forma definitiva em outro país e morreu fortes impressões dessa pesquisa fizeram o encontro de 1947 em Salvador (Bahia) em 11/2/1996. Bastide recomendar de forma enfática a ida em Recife, por oca- Alfréd Métraux, nascido em 5/11/1902, na de Verger à Bahia para se instalar lá. E foi a sião de uma rápida passagem de Métraux Suíça, mas criado na Argentina, foi antropó- partir das observações de Verger sobre o livro pelo aeroporto, onde logo, professor em várias universidades fora que se iniciou a intensa correspondência de os dois amigos se en- contraram por poucos da Europa, tendo ingressado em uma carreira ambos, uma vez que Bastide pediu a seu novo instantes. nas Nações Unidas, onde trabalhou a partir de amigo para apontar questões a completar. 130 REVISTA USP • São PAUlo • n. 95 • P. 128-141 • SETEMBRo/oUTUBRo/noVEMBRo 2012 Verger em cerimônia em Ifahin Fundação Pierre Verger Pierre Fundação nos anos 50 A correspondência com Bastide à primeira linésia. Ambos tinham viajado para lá, mas vista pode parecer mais técnica do que a tro- para lugares diferentes: Métraux, a Rapa Nui, cada com Métraux, no sentido de discutirem Ilha de Páscoa, e Verger, a Rapa Iti, Taiti. amplamente temas de pesquisas, realizadas Métraux também fotografava nas suas via- individualmente ou em parceria, que se trans- gens e, através da solicitação do museu para formaram em várias publicações em conjunto. Verger ampliar as fotos de Métraux, ambos Os encontros pessoais entre ambos também se conheceram (Verger, 1992a, p. 175). são esporádicos e em grande parte completa- O segundo assunto em comum foi cons- dos e/ou substituídos pelas trocas epistolares. truído pelos dois a partir de pesquisas con- secutivas e refere-se à Diáspora africana TEMAS EM COMUM (Guiana Holandesa, Haiti e Brasil) e à Áfri- ENTRE OS TRÊS ca, incluindo uma pesquisa em conjunto no Daomé em 19525. Esse assunto certamente Verger conheceu primeiro Métraux. constitui a temática central mais frutífera em 5 As respectivas fotos Durante o primeiro encontro em 1935, no relação aos resultados. encontram-se no iní- cio do livro Le Pied… Musée de l’Homme em Paris, os dois per- Já no contato com Bastide o assunto em (Métraux & Verger, ceberam logo um assunto em comum: a Po- comum quase exclusivo está ligado à temá- 1994). REVISTA USP • São PAUlo • n. 95 • P. 128-141 • SETEMBRo/oUTUBRo/noVEMBRo 2012 131 textos Fundação Pierre Verger Pierre Fundação Verger e Bastide, entre dois amigos, no aeroporto de Cotonou, em 1958 (por ocasião da única viagem de campo de Bastide na África, por intermédio e com acompanhamento de Verger) tica afro-brasileira, com ênfase às questões retorno à França, em 1954, como professor religiosas, abordadas não somente em cartas, da Sorbonne6; e Métraux como funcioná- mas também nas poucas visitas de Bastide rio da ONU e, mais tarde, da Unesco. O a Salvador e nas pesquisas realizadas em menos “comprometido” institucionalmen- conjunto, além dos vários textos escritos a te, aparentemente, é Verger. Seus vínculos quatro mãos, embora nem todos publicados institucionais constroem-se a partir das em vida (ver Verger & Bastide, 2002). experiências acumuladas depois de ele ter Serão escolhidos alguns períodos nas tra- completado 45 anos, primeiro como bolsis- 6 Entre 1951 e 1954, Basti- jetórias entre os três personagens que repre- ta do Institute Foundamental da Áfrique de ficava um semestre em Paris e um semes- sentam momentos-chave para a compreensão Noire (Ifan) em Dakar, a partir de 1949, tre em São Paulo, até das relações profissionais e pessoais que ofe- chegando ao ponto de ter sido pesquisador retornar definitiva- mente à França no final recem vários caminhos de interpretação: 1) o do Centre Nacional de Recherche Sciénti- de 1954.