Organizadores Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Piccinin

Narrativas Midiáticas Contemporâneas

Sujeitos, Corpos e Lugares

Santa Cruz do Sul 2019 Editora Catarse Ltda Rua Oswaldo Aranha, 444 Bairro Santo Inácio Santa Cruz do Sul/RS CEP 96820-150 www.editoracatarse.com.br facebook.com/editoracatarse Copyright© dos autores

N234 Narrativas midiáticas contemporâneas: sujeitos, corpos e lugares [recurso eletrônico] / Organizadores Demétrio de Azeredo Soster, Fabiana Piccinin - Santa Cruz do Sul: Catarse, 2019. 296 p. : il.

Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web.

1.Narrativa (Retórica). 2. Jornalismo. 3. Comunicação de massa. 4. Jornalismo – Aspectos políticos. 5. Mídia social. I. Soster, Demétrio de Azeredo. II. Piccinin, Fabiana. III. Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas.

ISBN: 978-85-69563-40-2 CDD: 808

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Capa, projeto gráfico e diagramação: Mirian Flesch de Oliveira Revisão: Nexus Acadêmico Edição: Demétrio de Azeredo Soster CONSELHO EDITORIAL

Ada Cristina Machado Silveira (UFSM) Ana Paula da Rosa (Unisinos) Antonio Fausto Neto (Unisinos) Demétrio de Azeredo Soster (Unisc) Ernesto Söhnle Jr. (Unisc) Eugenia Barichello (UFSM) Eunice Piazza Gai (Unisc) Fabiana Piccinin (Unisc) Fernando Resende (UFF) Gastón Cingolani (Universidad Nacional de las Artes – UNA – Argentina) Jairo Getúlio Ferreira (Unisinos) Jesús Gallindo Cáceres (Benemérita Universidad Autónoma de Puebla – México) João Canavilhas (Universidade de Beira Interior – Portugal) Jorge Pedro de Souza (Universidade Fernando Pessoa – Portugal) Mario Carlón (Universidade de Buenos Aires – UBA – Argentina) Marcos Fábio Belo Matos (UFMA) Natalia Raimondo Anselmino (Universidade Nacional de Rosario – UNR – Argentina) Pedro Giberto Gomes (Unisinos) Raquel Recuero (UFPel) Walter Teixeira Lima (Umesp) SUMÁRIO

Apresentação 7 Jorge Pedro de Souza

Prefácio 16 Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Piccinin

Parte I - Narrativas do outro 18

Narrar o outro migrante: a apreensão das relações espaciais na narrativa 19 jornalística Gabrielle de Paula Cida Golin

Comunicação popular: a narrativa jornalística por outras mãos 33 Luiz Henrique Zart

Afetivações, amorosidade e autopoiese: sinalizadores para narrativas 47 sensíveis de destinos turísticos, em perspectiva ecossistêmica Maria Luiza Cardinale Baptista

Robôs contadores de histórias: análise de um chatbot educativo 62 Emílio Sant’Anna Jéssica Santos Martha Lopes Renato Essenfelder

Pela ingovernabilidade da narrativa: graça e exceção no jornalismo 81 Raquel Wandelli

Biografias de vivos: reconfigurações narrativas da escrita biográfica 94 Rodrigo Bartz

Parte II - Narrativas da resistência 108

O jornalismo opinativo como narrativa de resistência ao panóptico virtual 109 que mira a educação no governo Bolsonaro Eduardo Ritter Carolina Ritter Corpos de 1968: Movimento estudantil e utilização da morte na resistência 124 à ditadura militar Leylianne Alves Vieira

O sentido dos direitos (não) humanos: narrativas midiáticas 140 protagonizadas por Jair Bolsonaro Patricia Regina Schuster

Os suicídios de Mitchell e Christine: do vazio total ao rascunho objetivo 152 Ébida Santos Victor Lemes Cruzeiro

Parte III - Narrativas diversas 165

Entre vídeos e estantes: a narrativa da crítica literária dos booktubers 166 Arthur Breccio Marchetto

As narrativas de bicicleta como fenômeno midiático e a emergência do 181 narrador midiatizado Demétrio de Azeredo Soster

A midiatização e a reconfiguração narrativa do imaginário 197 Ricardo Luís Düren

As organizações sob a ótica narrativa: reflexões e perspectivas de 216 investigação Larissa Conceição dos Santos

Titulação e polissemia: análise dos processos de metaforização e 228 transcriação da narrativa jornalística na seção "esquina", da revista Piauí Maurício Guilherme Silva Jr.

Narrativas e Fotojornalismo: mapeamento de comunicações coordenadas 240 na SBPJor Diogo Azoubel

Corporeidade como ato de complexidade em jornalismo 258 Mayara de Araújo

Narrativas do viajar e do ser viajante em livros-reportagem produzidos por 275 estudantes de Jornalismo José Carlos Fernandes Myrian Del Vecchio-Lima

Quem são os autores 290 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

APRESENTAÇÃO

Tem o leitor em mãos o terceiro livro da Rede de Pesquisa em Narrativas Mediáticas Contemporâneas (Renami). Organizado por Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin, é um livro coletivo que contribui para mapear, no Brasil, este campo de pesquisa. Adequadamente intitulado Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares, vive de uma pluralidade de abordagens, expressa em dezoito capítulos, escritos por 25 pesquisadores. O livro incide, principalmente, sobre narrativas não ficcionais. Em particular, sobre narrativas jornalísticas. Orientando-se o jornalismo para a exposição da verdade dos factos, para o relato objetivo de determinadas singularidades do passado recente, as narrativas jornalísticas, mesmo quando recorrem a técnicas da ficção literária ou visual, encontram-se entre as mais evidentes narrativas não ficcionais que fluem quotidianamente nas sociedades contemporâneas. Sendo essas narrativas problemáticas, merecem análise e pesquisa científica. Inclusivamente, para que se possam propor e discutir os conceitos, também eles problemáticos, de verdade, facto e objetividade. Esta obra coletiva persegue, precisamente, esse objetivo – contribuir para a análise das narrativas não ficcionais e, em particular, das narrativas jornalísticas. Na busca de sentido para a sua existência, os humanos produzem e consomem narrativas. Ora, como já alertava George Orwell no seu célebre romance 1984, quem controla as narrativas, sejam estas as mediáticas, nomeadamente as jornalísticas, sejam estas as da história, tem um enorme poder de controlo sobre a sociedade. Talvez, na atualidade, as redes sociais tenham, nas sociedades livres, obstaculizado esse controlo – ainda que outros males resultem das narrativas descontroladas que por aí pululam. Ainda assim, o estudo das narrativas, dos discursos que circulam socialmente, é fundamental para se desvelarem as relações de poder e os mecanismos sociais e comunicativos de ação-reação, incluindo aqueles que podem ser encarados como mecanismos de domínio e resistência. E esse estudo é tanto mais importante nos tempos que correm. A humanidade estará, talvez, a viver uma mudança de ciclo, mas não de um ciclo curto. A crise atual é muito mais do que a repercussão da crise económica iniciada em 2008. A perda da centralidade europeia no mundo e a revolução digital são transformações de ciclo longo que só têm equiparação na ascensão da Europa à condição de “centro do mundo” e na revolução da imprensa, ambas ocorridas há cinco séculos, ou na Revolução Industrial, iniciada na alvorada de Oitocentos. A tecnologia, ontem como hoje, coloca os seres humanos sob pressão, ou mesmo ameaça – não apenas no que respeita à perda

7 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de empregos para robôs, mas também perante o desenvolvimento hipoteticamente ameaçador da Inteligência Artificial, conceitos que são abordados num dos textos deste livro. Ao mesmo tempo, vivenciamos algo inédito: um tremendo impacto da humanidade sobre o clima do planeta, a ponto de colocarmos em risco a existência da nossa própria descendência. Quem, perante estas transformações de mudança de ciclo, fabricar narrativas a que as pessoas adiram, em busca de sentido para as suas vidas e para o que lhes está a suceder, sobretudo quem mastigue narrativas que proponham receitas fáceis e prêt-à-porter, tem, como temos presenciado, uma via facilitada de acesso ao poder. Se as pessoas precisam de soluções, precisam, igualmente, de sentido. Daí o potencial e o perigo das narrativas e a necessidade premente do seu estudo. Para que os seres humanos do presente possam celebrar um novo contrato com o planeta e com as gerações futuras. Um novo contrato que é urgente e desafiante e que necessita de ser sustentado por narrativas de humanidade e generosidade e de compromisso com a natureza, sem perda das liberdades. A narrativa não ficcional existe desde que seres humanos começaram a contar a outros seres humanos determinadas singularidades ou sequências de singularidades do passado, mais antigo ou mais recente, com ambição de verdade. Narrar é, pois, algo inerente à humanidade e, num certo sentido, tão antigo quanto a própria humanidade. Narrar torna a humanidade humana. Perante o caos do mundo, que não tem qualquer sentido a priori, os seres humanos procuraram encaixar as suas experiências individuais e coletivas de vida em enquadramentos suscetíveis de dar, a posteriori, sentido a esse mesmo mundo. A narrativa tem por detrás essa força, esse desejo, quiçá, essa necessidade humana, derivada da angústia, de impor sentido a uma realidade caótica e sem sentido a priori. Narrar é, pois, uma forma de impor discursivamente, por meio de dispositivos como as palavras e as imagens, sentido ao mundo. As primeiras narrativas humanas que sobreviveram ao tempo são, principalmente, literárias e ficcionais, mesmo quando inspiradas por alguns factos reais. As obras fundadoras da literatura ocidental, a Ilíada e a Odisseia, ou mesmo a Epopeia de Gilgamesh e vários dos livros bíblicos constitutivos do Antigo Testamento, podem, entre outros, ser citados como exemplos de narrativas ficcionais que, misturando factos e mitos, contribuíram para que os povos dessem sentido ao seu mundo. Essas narrativas legaram à posteridade o seu conteúdo excecional, que nos permite, hoje, entender melhor o passado e como pensaram e olharam para o mundo os nossos antepassados; e legaram, igualmente, muitos dos formatos narrativos, das formas de narrar. A narração diacrónica (em sequência temporal), a pirâmide (formato habitual do conto, da novela e do romance, com o desenlace no final) e mesmo a pirâmide invertida (formato habitual da narrativa jornalística) são formas de organização do texto que se encontram nessas obras literárias do passado1. Mas do passado também emergiram as primeiras narrativas não ficcionais, de re-

1 Cf. SOUSA, Jorge Pedro. Uma história breve do jornalismo no Ocidente. In: SOUSA, Jorge Pedro, org. Jor- nalismo: história, teoria e metodologia da pesquisa. Perspetivas luso-brasileiras. Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2008, p. 12-93. 8 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares corte historiográfico e geográfico, que muito contribuíram para, séculos mais tarde, do- tarem o jornalismo do seu principal valor – a verdade2. Heródoto terá sido, na sua obra que ficou simplesmente conhecida por Histórias de Heródoto, o primeiro autor a narrar o passado com ambição de fidelidade aos factos e intenção de desvendar as causas dos acontecimentos, na sua história sobre a invasão persa da Grécia. Embora tenha sido acusado, mesmo por outros historiadores da Anti- guidade, de ser impreciso, inventivo ou exagerado, possivelmente sempre pretendeu narrar a verdade do que tinha acontecido. O seu problema – central para o jornalismo e para a história – foi o de não ter feito uma crítica consequente das fontes a que recor- reu para construir a sua narrativa histórica3. O seu juízo histórico também nem sempre foi o mais correto. Por exemplo, Heródoto atribui, inconsistentemente, as causas dos conflitos entre gregos e persas aos lendários raptos de mulheres de parte a parte e não à rivalidade entre dois poderes crescentes e expansionistas, o grego e o persa. Também concede muito peso ao Oráculo de Delfos na decisão do rei Cresos em combater o rei persa Ciro. Segundo Heródoto, Cresos terá decidido combater Ciro após o Oráculo de Delfos lhe ter assegurado que um grande império desapareceria na contenda. Cresos estava confiante de que seria o de Ciro, mas aquele que desapareceria seria o seu. Ora, provavelmente as palavras de Heródoto são verdadeiras, no sentido de que Cresos terá, possivelmente, consultado o Oráculo, opção natural para um grego daquela época, mas Cresos também não teria hipóteses de fugir ao conflito com Ciro, dado o caráter expan- sionista do império persa. Apesar de tudo, nas Histórias de Heródoto encontram-se pas- sagens que revelam desejo de fidelidade aos factos e um estilo próximo do atual estilo jornalístico, como acontece, por exemplo, no relato da batalha das Termópilas. Muito do que hoje em dia se sabe sobre as guerras entre gregos e persas deve-se, aliás, ao labor historiográfico de Heródoto. Outro autor importante para a fixação da narrativa não-ficcional escrita – maioritariamente, ao tempo, de caráter historiográfico – foi Tucídides. Na sua obra sobre a guerra do Peloponeso, esse historiador grego da Antiguidade foi o primeiro a descartar- se totalmente dos deuses para explicar o curso da história, o primeiro a contrastar e avaliar as fontes com espírito crítico para ponderar a sua credibilidade e ainda o primeiro a atribuir com clareza os motivos de um acontecimento histórico à ação dos homens, quando apontou como principal razão para a guerra entre Atenas e Esparta o medo desta cidade-estado perante o aumento do poderio ateniense e não as razões que os espartanos e atenienses esgrimiam. A partir de Tucídides, lendas, mitos e religião puderam deixar de contaminar a historiografia, ou pelo menos a historiografia que enformou as ciências históricas contemporâneas e que deu ao jornalismo os seus valores e algumas das suas

2 Não se irá discutir aqui o conceito de verdade, mas somente assinalar que tem sido, desde a Modernidade, am- bição do jornalismo narrar acontecimentos com verdade. A verdade é, para todos os efeitos, uma referência e um valor jornalístico. Mesmo que seja uma verdade plural, resultante da apresentação dos vários lados com interesses atendíveis numa questão. 3 O exame crítico das fontes, importado das regras historiográficas, também se converteu num clássico procedi- mento jornalístico. O jornalismo deve muito à historiografia, nos valores e nos procedimentos.

9 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares primeiras formas narrativas4. Efetivamente, quando, no final do século XVI e inícios do século XVII, os primeiros periodistas e gazeteiros começaram a escrever e publicar periódicos noticiosos, os seus referentes foram os autores clássicos da Antiguidade, como Heródoto e Tucídides, conforme se pode constatar lendo-se a pioneira tese doutoral de Tobias Peucer5, a primeira que se conhece que elege os periódicos noticiosos como objeto de estudo. Daí que tenha sido a historiografia clássica da Antiguidade a dar, séculos depois, ao jornalismo emergente os seus valores, nomeadamente o seu valor central, o respeito pela verdade, e algumas das suas regras de procedimento, como a contrastação e exame crítico das fontes, tanto quanto a literatura e a retórica clássicas da Antiguidade fixaram algumas das formas narrativas de que o jornalismo se serve desde a Modernidade. Encontramos a mesma ideia de fidelidade de Tucídides ao facto histórico eà verdade na narrativa da epopeia de Alexandre Magno e dos seus generais-herdeiros da autoria de Calístenes de Olinto, bem como, posteriormente, nos historiadores romanos (especialmente entre o século I a. C. e o século III d. C), como Diodoro Sículo, ou Diodoro da Sicília, que fala sobre o líder lusitano Viriato, um resistente luso à conquista romana da Península Ibérica. Essas obras, como outras, podem ser criticadas por erros, inconsistências e anacronismos, em parte motivados pela ausência de crítica às fontes e da sua contrastação e, por que não, por alguma ingenuidade dos primeiros historiadores num tempo em que a historiografia dava os seus primeiros passos e em que se tinha pouco conhecimento do mundo. Mas o que certamente não lhes terá faltado foi a ambição de verdade, que se afirmava como o valor-padrão da historiografia, tal como o viria a ser, por importação, do jornalismo. Também hoje em dia os jornalistas são quotidianamente intoxicados pelas fontes de informação, nas quais por vezes confiam mais do que seria desejável, sem que por isso mereçam ser acusados de falta de intenção de verdade no relato noticioso, assumidamente não-ficcional. Os jornalistas falham, como falham e falharam os historiadores. Mas, maioritariamente, são honestos e responsáveis e tentam relatar os factos com intenção de verdade. Outros exemplos de narrativas não-ficcionais de pendor histórico da Antiguidade são as obras de Xenofonte Anábasis (A Retirada dos Dez Mil) e Ciropedia. Em ambas as narrativas dá-se pela primeira vez a conhecer a um povo, o grego, os feitos e costumes de outro, o persa. Ciropédia, uma biografia historiográfica, dá a conhecer a vida do rei persa Ciro, o Grande6, que viveu mais de um século antes do livro ser escrito; o livro 4 Essa tendência para misturar lenda e mito com história não acabou. Em Portugal, até Alexandre Herculano, a meio do século XIX, fixar as normas do labor historiográfico e da narrativa histórica científicos, circulava a lenda fundacional – surgida no século XV e reinventada pelos monges de Císter para justificarem a Restauração da Inde- pendência de Portugal, em 1640 – de que Cristo teria aparecido ao primeiro rei português, D. Afonso Henriques, anunciando-lhe que venceria a batalha de Ourique (1139) e que teria o favor divino para a constituição do Reino de Portugal. Teria sido nesse momento que D. Afonso Henriques teria adotado as cinco chagas de Cristo como bandeira, os mesmos símbolos – quinas – que ainda hoje constituem o núcleo central da bandeira portuguesa. Os mitos têm muita força. 5 PEUCER, Tobias. Os relatos jornalísticos. Comunicação e Sociedade, n.º 33, p. 199-214, 2000. (Tradução de “De relationibus novelis, tese de doutorado. Leipzig: Universidade de Leipzig, 1690.) 6 Esta obra também tem incongruências, anacronismos, imprecisões e erros, o que, provavelmente, ter-se-á devido mais à ausência de crítica às fontes por parte de Xenofonte do que a qualquer intenção de fuga à verdade.

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Anábasis, ou Anábase, dá a conhecer a saga de dez mil guerreiros gregos no território persa e sua retirada em direção à Grécia7. Entre outros exemplos que poderiam ser dados das narrativas da Antiguidade que contribuíram para a solidificação das narrativas não-ficcionais encontram-se as obras geográficas. O terceiro livro da Geografia de Estrabão, por exemplo, descreve com alguma precisão os lusitanos, um dos povos que habitava o atual território português aquando da conquista romana e que, mitologicamente, é associado ao povo português como seu direto antepassado. As narrativas não-ficcionais têm, pois, uma longa e rica história que passa pela historiografia, pela literatura e pela retórica. A sua tradição foi alimentada, por muitos séculos, por meio de cartas e crónicas, nomeadamente na época medieval. Alguns dos primeiros relatos noticiosos chegaram ao público, já na Modernidade, sob a forma de narrativas não-ficcionais, publicadas em manuscritos ou em impressos ocasionais, conhecidas por folhas volantes e relações, entre outras denominações. A Relação [História]8 da Muito Notável Perda do Galeão Grande São João em que se Recontam os Casos Desvairados que Aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa de Sepúlveda, e o Lamentável Fim que Ele e Sua Mulher e Filhos e Toda a Mais Gente Houveram, o Qual Se Perdeu no Ano de 1552, a 24 de Junho, na Terra do Natal, cuja primeira edição poderá ter sido de 1555 ou 15569, foi a primeira, ou uma das primeiras, dessas relações impressas escritas em português, que contribuíram para o sucesso da indústria tipográfica. Essas relações, como outras narrativas não-ficcionais do passado, têm pontes evidentes com o género jornalístico da reportagem10, cujos formatos foram sendo atualizados a partir do século XIX, devido ao movimento de industrialização, popularização e profissionalização do jornalismo, que estimulou a adoção de práticas jornalísticas mais estandardizadas, rotineiras e burocratizadas. Nesse contexto, não podem ser esquecidas as primeiras reportagens de guerra, escritas e visuais, como as crónicas enviadas da Crimeia pelo repórter William Howard Russell, para o Times, entre 1854 e 1855, que inauguraram a reportagem jornalística de guerra, e as fotografias (autocensuradas) de Roger Fenton do mesmo conflito, que, passadas a xilogravura, tiveram ampla divulgação nas revistas ilustradas. Efetivamente, foi também no século XIX que, graças à litografia, à xilogravura e às técnicas de impressão direta de fotografias, as narrativas visuais de intenção não-ficcional se vulgarizaram na imprensa, embora tenham sobrevivido múltiplos exemplos de narrativas visuais de intenção não-ficcional muito anteriores – da Antiguidade (Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma...), da Idade Média e da Idade Moderna. 7 A crítica mais comum à Anábase é não a ausência de ambição de verdade, mas o retrato algo idealizado que Xenofonte, um dos líderes dos dez mil soldados, apresenta de si mesmo na narrativa. 8 Manteve-se a designação Relação, conforme surge na História Trágico-Marítima, mas Lanciani (1979) usa a designação História, original. 9 LANCIANI, Giulia. Os Relatos de Naufrágios na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa da Secretaria de Estado da Cultura, 1979, p. 11. 10 Cf. SOUSA, Jorge Pedro. Antes do periodismo, as publicações ocasionais: a Relação da Muito Notável Perda do Galeão Grande São João. In: SOUSA, Jorge Pedro, org.: Notícias em Portugal: estudos sobre a imprensa informativa (séculos XVI-XX). Lisboa: ICNOVA – Instituto de Comunicação da Nova, 2018, p. 5-26.

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O final do século XIX foi um período igualmente importante para o desenvol- vimento da reportagem jornalística, o género jornalístico mais identitário, aquele em que mais sobressai a capacidade narrativa não-ficcional do repórter. Assim o denotam, por exemplo, as matérias do principal escritor realista português de Oitocentos, Eça de Queirós, para a imprensa portuguesa e brasileira, como De Port Said ao Suez, conjunto de reportagens para o Diário de Notícias sobre a abertura do canal do Suez (1870), de- pois editada em livro, e as crónicas coligidas nos livros póstumos Cartas de Inglaterra (1905), Ecos de Paris (1905) e Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1907). Ou, noutro lugar e noutro estilo, as primeiras grandes reportagens publicadas na segunda geração da imprensa popular estadunidense (primeiro movimento de “Novo Jornalismo”), da autoria de grandes repórteres, como a famosa Nelly Bly, que se internou num hospício para expor as deploráveis condições de vida dos enfermos nos hospitais psiquiátricos e viajou pelo mundo em 72 dias, para bater o record ficcional de Júlio Verne. Essas re- portagens também foram, mais tarde, publicadas autonomamente nos livros-reportagem Ten Days in a Mad-House e Around the World in Seventy-Two Days. Os anos 1960 assistiram, por seu turno, ao desenvolvimento do segundo Novo Jornalismo, conforme a denominação cunhada por Tom Wolfe no seu livro The New Journalism11, importante contributo para o desenvolvimento da narrativa não-ficcional, conforme desenvolvida em livros-reportagem como In Cold Blood, de Truman Capote, tido por pioneiro. Conhecer as origens e o desenvolvimento das narrativas não-ficcionais ajuda a compreender as suas formas e conteúdos no presente. Passando da Antiguidade, da Idade Média, da Idade Moderna e da Idade Contemporânea para o exame de casos do presente, o livro que o leitor tem em mãos é, também ele, de grande valor para o estudo da narrativa e, em particular, da narrativa não-ficcional de índole jornalística. Os dezoito capítulos repartem-se por três categorias: narrativas do outro; narrativas da resistência; e narrativas diversas. Mostram, na sua variedade, a complexidade do ato de narrar não apenas por texto verbal, mas também por texto visual – e das suas vastas implicações. O capítulo que abre o livro e a secção dedicada às “Narrativas do outro” é da autoria de Gabrielle de Paula e Cida Gollin e debruça-se sobre as narrativas jornalísticas sobre migrantes e migrações – problema bem atual –, considerando que a subjetividade e as consequentes escolhas do narrador permeiam a objetividade da narrativa jornalística, produzindo, necessariamente, significados sobreos outros, para o caso os migrantes. Luiz Henrique Zart trata, por seu turno, da comunicação popular e do seu entrecruzamento com um jornalismo “que represente e sirva o povo”, nomeadamente os grupos marginalizados, pelo que o jornalista, segundo o autor, deveria assumir, na sua função social de mediador, o papel de educador, esclarecendo o obscuro e atuando eticamente, fazendo valer o interesse público. Já Maria Luiza Cardinale Baptista, autora do terceiro texto, reflete sobre como o

11 WOLFE, Tom. The new journalism. San Francisco: Harper & Row, 1973. 12 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares afeto, a amososidade e a autopoiese podem funcionar como sinalizadores em narrativas de destinos turísticos caracterizadas pela sensibilidade autoral. Emílio Sant’Anna, Jéssica Santos, Martha Lopes e Renato Essenfelder afastam- se um pouco da trilha aberta pelos três textos iniciais para procederem à análise das potencialidades educativas dos chatbots educativos, por meio do exame da aplicação “Fabi Grossi”, financiada pela Unesco no Brasil, em 2018, reconhecendo as suas insuficiências e debilidades, mas também a sua capacidade de criar uma “personagem factível dentro de um mundo virtual plenamente verossímil”. Os autores evidenciam, na sequência, as implicações dos chatbots para o jornalismo, lançando, sob a forma de perguntas, filões de pesquisa a explorar: “que organizações jornalísticas estão adotando chatbots, com que finalidade e com quais resultados? Oschatbots são como Fabi Grossi, ou seja, fortemente narrativos (contadores de histórias), ou, ao contrário, enciclopédicos, do tipo que busca responder perguntas objetivas (como robôs usados em serviços de atendimento ao consumidor, por exemplo)?”. Raquel Wandelli, no quinto texto, procura demonstrar que o jornalismo pode ser um contrapoder, quando os repórteres, exercendo a sua liberdade de pensamento, materializada em liberdade de escrita, e com arte e sensibilidade, multiplicam narrativas que desafiam a “máquina antropocêntrica do Estado”. No último capítulo da secção sobre “Narrativas do outro”, Rodrigo Bartz explora o género biográfico, considerando que as teorias existentes não abarcam a sua complexidade presente e que as biografias-memória, elaboradas em pouco tempo, têm ganho terreno às grandes biografias clássicas, numa contemporaneidade caracterizada pela efemeridade e pelo constante afluxo de novidades. O segundo agrupamento de textos do livro incide sobre as “narrativas de resistência” e começa com um capítulo de Eduardo Ritter e Carolina Ritter sobre o jornalismo opinativo como dispositivo de resistência ao poder quando este busca marginalizar a dissidência. Segundo os autores, o governo Bolsonaro, nos primeiros seis meses de ação, procurou vigiar e punir os discursos dissidentes, classificando-os como criminosos. O setor da educação foi particularmente visado. Nesse cenário, as narrativas de resistência protagonizadas por pesquisadores e jornalistas foi essencial para garantir a pluralidade de visões na esfera pública. Leylianne Alves Vieira, por sua vez, a partir da cobertura de casos semelhantes de assassinatos no contexto da resistência estudantil à Ditadura Militar no Brasil, mas com diferentes repercussões mediáticas e não mediáticas, reflete sobre a utilização das fotografias de corpos mortos no jornalismo e seu papel na memória ou no esquecimento. No terceiro texto desta secção dedicada às narrativas de resistência, Patricia Regina Schuster estuda os sentidos do conceito de “direitos humanos” no discurso de Jair Bolsonaro enquanto protagonista mediático revestido de autoridade simbólica, considerando, provocativamente, que para o Presidente do Brasil, “os referidos ‘direitos’ não são de todos os ‘humanos’, quiçá sejam de ‘humanos’”. A encerrar a secção, Ébida Santos e Victor Lemes Cruzeiro refletem sobre a

13 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares comunicação de suicídio, a partir de dois casos em que os suicídios foram públicos e planeados, um deles num direto televisivo, e em que os suicidas deixaram notas de despedida, uma delas breve e seca (uma notícia sobre o próprio suicídio), outra um trabalho de 1905 páginas sobre o niilismo. Os autores exortam os jornalistas a encontrarem um meio-termo para falar de suicídios mediatizados, destacando a “inutilidade de se falar de mais” mas também a “necessidade de falar algo”. A última secção do livro, que contempla mais capítulos, é, justamente, sobre narrativas diversas. E bastante diversos são os oito textos que a integram. O primeiro, de Arthur Breccio Marchetto, elege como objeto de estudo a crítica literária protagonizada por booktubers. O autor sustenta que o campo do booktube, estando em construção, ainda não criou regras nítidas sobre o aceitável e não-aceitável, e que a interação dos booktubers com os inscritos nos respetivos canais, frequentemente moldada pela ideia de orientação, contribui para a definição identitária de comunidades, estabelecidas tanto pelas opções de fruição estética quanto por vínculos afetivos. Demétrio de Azeredo Soster, um jornalista e pesquisador devorador de quilómetros em bicicleta, aborda um tema da sua predileção: as narrativas cicloturísticas que se convertem em fenómenos mediáticos, mercê da sua mediatização em sites, redes sociais, livros e noutros suportes, e, neste contexto, a mediatização do cicloturista-narrador. Conclui o autor que a mediatização afeta as narrativas já que, se obriga ao recurso a formas canonicamente reconhecidas de narrar, também lhes abre novas possibilidades, sobretudo num contexto contemporâneo, no qual o narrador mediatizado é “multifacetado e plurivocal”. No terceiro texto, Ricardo Luís Düren examina a mediatização do imaginário no caso Kliemann, dois assassinatos interligados de um casal, que ocorreram em 1962 e 1963, a partir da cobertura jornalística realizada ao tempo e da sua recuperação, 45 anos depois, pelo jornal Gazeta do Sul. Para o autor, por conta da mediatização em tempos diferentes, o imaginário sobre as ocorrências deverá ter sofrido reconfigurações, não sendo, portanto, coincidente. Tema diferente é trazido à colação por Larissa Conceição dos Santos. A autora considera que o exame das narrativas produzidas pelas organizações e direcionadas aos seus públicos-alvo, por meio de linguagem específica e com objetivos pré-determinados, é um filão promissor de pesquisa. O quinto texto da secção volta à narrativa jornalística. O seu autor, Maurício Guilherme Silva Jr., escreve sobre a análise dos processos de metaforização e transcriação de narrativas jornalísticas na revista Piauí, a partir dos títulos. Considera ele que os títulos e bigodes analisados seguem os quatro elementos necessários às narrativas jornalísticas transcriadas: exposição do contexto; diálogo com o leitor, no caso, principalmente, pela exploração de paradoxos; estímulo polissémico; e preocupações éticas e sociais. Diogo Azoubel, num registo diferente, mapeia as comunicações coordenadas sobre narrativas fotojornalísticas nos congressos da Associação Brasileira de Pesquisadores em

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Jornalismo (SBPJor), apresentando minuciosas estatísticas sobre a filiação institucional dos autores, as palavras-chave escolhidas para a categorização das pesquisas, as referências bibliográficas e a titulação de quem as assina. No texto seguinte, Mayara de Araújo aborda o lugar do corpo no jornalismo, a partir da análise do caderno especial Viúvas do Veneno, do Diário do Nordeste, onde se denuncia o impacto mortal dos agrotóxicos. Demonstra a autora que na narrativa estudada existem marcas de complexidade, materializadas, com a liberdade de autoria providenciada pela forma da matéria, na espessura das personagens – corpos biológicos, psíquicos e emocionais – e na presença implícita do próprio corpo do jornalista, que se envolveu, com afeto, na produção da matéria. O último texto desta obra coletiva, da autoria de José Carlos Fernandes e Myrian Del Vecchio-Lima, reflete sobre o imaginário da viagem em seis livros-reportagem elaborados por estudantes de jornalismo orientados pelos autores. A elaboração dessas narrativas, asseguram os autores, é como um rito de passagem da universidade para a profissão, num momento em que os estudantes ainda cultivam um ideário de jornalismo livre dos constrangimentos do mercado. Trata-se, portanto, de um conjunto de textos resultante de pesquisas com timbre brasileiro que, desde diferentes perspetivas, colocam o leitor perante o inquietante e permanente desafio do desvelamento em profundidade das narrativas que circulam na sociedade.

Jorge Pedro Sousa Universidade Fernando Pessoa e ICNOVA Agosto de 2019 [email protected]

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NARRAR E RESISTIR

O terceiro livro da Renami, que ora chega às suas mãos, caro leitor, cara leitora, tem cheiro, forma, cor e anatomia do que, talvez seja a força mais importante desse confuso tempo. Falamos da resistência, e de como a edição ganhou vida pelas mãos dos autores e organizadores que entenderam que, quando cansados de tantos disparates, deviam descansar, mas nunca desistir. Pelo que representa, a narrativa, que não serve às aplicações práticas cotidianas e, portanto, não “tem utilidade nenhuma”, é que a entendemos como objeto de pesquisa sempre de estratégica importância, especialmente pela dificuldade que enfrentamos de enxergar aquilo a que se chama real com algum apuro em momentos particularmente adversos. A narrativa é indissociável da experiência de viver. Faz os homens que não se conhecem, reconhecerem-se como humanos (Harari, 2019), lembrando que vivemos no mesmo mundo sob, de maneira geral, as mesmas condições e limitações de espécie, como a finitude, por exemplo. É sempre uma ilusão (necessária) em alguma medida, mesmo quando tratamos das narrativas midiáticas jornalísticas, responsáveis que são por ofertar os fatos que acontecem e como acontecem, ao nosso redor. Por isso, nunca foi tão oportuno entender o papel do narrar e sua capacidade de ofertar empatia nesse reconhecimento das limitações humanas, para a acolhida do outro num contexto de excessos e fundamentalismos. Em razão disso, ou especialmente por isso, para além do discurso sobre a desimportância das ciências humanas, nosso investimento nas pesquisas acerca da narrativa e suas repercussões no âmbito do sistema midiático e de seus usuários, será sempre objeto da nossa observação e análise. Neste caso, numa perspectiva potencializada, porque o observado acontece em rede. A estrutura rizomática qualifica, conecta e fortalece as investigações porque reafirma o que se tem em termos do avanço do estado da arte a respeito, ao mesmo tempo em que desafia pelo que apresenta de novo e diverso. Assim, a narrativa exige que não assumamos a postura da ingenuidade, a tomando por um saber menor como armadilha frequente, mas avançando nas pesquisas sobre o tema para que nos tornemos mais e melhores no diagnóstico das feições e configurações das narrativas midiáticas e as interpretações do mundo que oferecem. Sobretudo porque, como bem aponta nosso prefacista, Jorge Pedro de Sousa, quem controla a narrativa, controla o mundo. E os jornalistas são narradores fundamentais. Posto isso, desejamos força e vida longa à RENAMI, sempre. À sua produção

16 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares bibliográfica, lugar de encontro dos textos resultantes das resistentes pesquisas, que essas narrativas científicas das narrativas midiáticas nos mantenham conectados e em persistência. As boas histórias, são criadas é justamente nas frestas de luz. E é preciso saber detectá-las.

Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Piccinin Santa Cruz do Sul, inverno de 2019

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Parte I: narrativas do outro

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NARRAR O OUTRO MIGRANTE: A APREENSÃO DAS RELAÇÕES ESPACIAIS NA NARRATIVA JORNALÍSTICA

Gabrielle de Paula Cida Golin

O narrar como fato cultural As narrativas permeiam a existência humana desde sempre, seja na vida individual ou coletiva, levando o conhecimento do mundo por meio de relatos factuais ou ficcionais nos atos de fala, nos livros, nos filmes, nas telenovelas. A necessidade de organizar o cotidiano e de apreender o tempo nas suas variações faz com que o ser humano queira compartilhar e contar as situações e suas experiências de vida. As histórias que contam com a memória do indivíduo são histórias inventadas, pois, mesmo real, uma história quando é contada é construída por meio de visões de mundo, da sociedade e da cultura pela qual o sujeito está inserido. Assim, acreditar e defender que uma narrativa seja neutra, ainda que o seu objetivo seja esse, é desconsiderar que estamos conectados à nossa subjetividade. O narrar é um fato cultural, correspondente às relações sociais do espaço naturalizadas ao longo da vida e às formas de representação do diferente. Desse modo, a compreensão narrativa dos acontecimentos e dos sujeitos caminhará junto à compreensão de que há tempos e lugares para tudo na sociedade, na qual estruturas sociais e culturais se manifestam em elementos de distinção. Essas distinções ficam mais perceptíveis quando estamos/somos confrontados com as diferenças. Acolhida ou hostilizada, a diferença sempre despertou estranhamento ao longo da história. Ainda que o ser humano não consiga viver isoladamente, o contato com o indivíduo diferente sempre carrega o potencial de gerar conflitos, já que durante nosso desenvolvimento acabamos por integrar o espaço de determinados grupos sociais e culturais. De acordo com Stuart Hall (2016), o contato com o diferente propicia que pensemos a produção de sentidos na cultura e nos valores sociais vigentes, sendo a diferença fundamental não só para compreensão da alteridade, mas também da nossa própria presença, através da mediação do outro. Sendo assim, em um processo inconsciente da formação da subjetividade, a marcação da diferença é o que fabrica as identidades e as formas da linguagem presentes na cultura.

19 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares A maneira como representamos o espaço social afeta o modo como vemos e interpretamos o mundo e como agimos em relação a ele. Dessa maneira, as narrativas são lugares nos quais as representações não podem ser apartadas da forma como são mediadas. No campo jornalístico, o esforço é acolher esse espaço de representação a partir da consciência de qual lugar os jornalistas constroem suas instâncias narrativas. No caso da reportagem, ela se configura como um tipo de narrativa que possui características próprias estabelecidas desde o surgimento de sua prática. Além disso, o jornalismo detém a função de produzir as narrativas para a sociedade, muitas vezes partindo de produções feitas por grupos compostos de pouca ou nenhuma diversidade. Os anos de 2014 e 2015 representaram o período de maior entrada de estrangeiros no Brasil na última década. De acordo com dados da Polícia Federal, em dez anos, o número de imigrantes aumentou 160%, com um ranking liderado por haitianos, seguidos por bolivianos e colombianos1.Nesse sentido, muitas reportagens acerca do tema ocuparam mais tempo no noticiário internacional e local. O estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, foi fortemente marcado por imigrações, desde o início da colonização europeia em 1824 até a nova onda migratória de africanos, asiáticos e caribenhos trazidos para cidades da serra gaúcha nos últimos dez anos. Publicado em 2018 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), o relatório World Migration Report2 revelou que, entre 2010 e 2015, a população de migrantes que vive no Brasil cresceu 20%. São 713 mil estrangeiros residindo no país, dos quais 207 mil vêm de outros Estados sul-americanos – tendo a presença dos estrangeiros vindos desse subcontinente também aumentado 20%. Apesar de nosso país ser fundamentalmente formado por migrantes de diversos lugares, a chegada desses estrangeiros é, muitas vezes, vista como uma ameaça. Principalmente porque os processos de migração atuais são de pessoas negras, não brancas e não ocidentais nos termos pós-colonialistas. Em um Estado-Nação que tem suas bases econômicas e culturais fundadas no patriarcalismo e no racismo, as espacialidades apreendidas nas narrativas também serão determinadas por essa condição. Tendo em vista esse cenário, à luz dos Estudos Culturais, de elementos da teoria pós-colonial, de argumentos da Geografia crítica e dos estudos da narrativa associados ao jornalismo, buscamos em nossa pesquisa de mestrado estudar a representação do espaço do imigrante na narrativa jornalística de Zero Hora, principal periódico do Rio Grande do Sul, analisando quatro grandes reportagens publicadas entre 2014 e 2015.3 As reportagens analisadas foram: Os Novos Imigrantes (17.08.2014), de Carlos Rollsing e Humberto Trezzi, que destaca o novo processo migratório que começa a vingar no Rio Grande do Sul; Inferno na terra prometida (07.06.2015), de Carlos Rollsing e Mateus Bruxel, que acompanha a viagem dos haitianos que entram no Brasil pelo estado do Acre; Destino Incerto (04.10.2015), de Carlos Rollsing, que, após um ano, revisita os novos imigrantes que foram entrevistados na reportagem de 2014; e Refugiados: Uma História (11.10.2015), de Letícia Duarte, que traz o caminho percorrido por uma família síria para fugir da guerra. Este capítulo apresenta parte dos resultados da investigação, detendo-se especificamente

20 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares em uma das grandes reportagens, aquela que se revelou mais polissêmica nos modos de narrar o espaço do outro.

O espaço como relação social e a mediação do jornalismo Frente a um mundo globalizado como o que temos hoje, são muitas as possibilida- des de acionamento do termo cultura. Da mesma maneira, o entendimento do conceito espaço também é vasto e abordado por diferentes áreas do conhecimento. Esses concei- tos, portanto, são instrumentos que nos auxiliam a visualizar as estruturas presentes na sociedade e as formas como nos relacionamos com ela e com o diferente. As transfor- mações históricas também representam mudanças no cotidiano da vida das pessoas. Por exemplo, o cenário contemporâneo, no qual milhões de pessoas de culturas diferentes se deslocam pelo globo, expõe a crise migratória atual e coloca em xeque não só a acei- tação do outro, mas também a construção da narrativa que será feita sobre ele. O espaço gerado pela aproximação com os nativos é permeado por estranhamento e até mesmo desinformação. Mas o aprofundamento de nosso olhar nos dá a dimensão de que essas pessoas carregam mais do que marcas de fuga. Tais narrativas não são somente de dor: são de famílias, paixões, laços, saudades, derrotas e vitórias. Para compreendê- las, é necessário ir muito além dos estigmas estabelecidos pelo espaço social. Com a chegada do outro no espaço, instala-se, assim, um choque de significados e uma busca por novas interpretações. Pois para além dos elementos topográficos e físicos, o espaço também é o território socialmente construído, que envolve questões subjetivas e culturais, no qual as interações dos indivíduos imprimem suas marcas no cotidiano. Ou seja, o espaço é sempre uma relação social (BOURDIEU, 2007; HARVEY, 1992; SANTOS, 1988). Rogério Haesbaert (2004) acrescenta que as expressões “identidade” e “território” estão relacionadas, uma vez que a identidade cultural passa por um sentimento de pertencimento comum em relação ao espaço social e, por consequência, recebe influência do território onde o indivíduo se encontra como base significativa. Dessa maneira, exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar funções quanto para produzir significados. Já Bourdieu (2007) se refere ao efeito de naturalização, que corresponde às relações do espaço que naturalizamos ao longo da vida, introjetando estruturas sociais e mentais que manifestam até mesmo o tempo e o lugar das pessoas na sociedade (BOURDIEU, 2007). Para Harvey (1992), o espaço também é tratado como um fato “naturalizado” do cotidiano que pode até ser medido, pois há lugares definidos para certas atividades nos quais determinadas interações sociais prevalecem. Assim, todo sistema de representação é uma espécie de espacialização. Nesse processo social, com a necessidade intrínseca do ser humano de saber o que acontece, o jornalismo está legitimado para identificar, classificar e contextualizar os acontecimentos noticiosos. O papel institucionalizado da mídia faz com que as pessoas

21 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares deleguem aos profissionais que trabalham nos veículos de comunicação a missão de lhes narrar/dizer o que é relevante. Ao mesmo tempo em que define para a população quais fatos são significativos, o campo jornalístico também oferece as interpretações acerca desses fatos, já que muitas vezes eles são inesperados e as informações são apresentadas pela primeira vez (HALL et. al., 1999). Ou seja, o jornalismo ocupa um lugar privilegiado para narrar histórias, e suas narrativas são construídas a partir do espaço social que a instituição jornalística é integrante. Em decorrência das práticas jornalísticas terem como paradigma o moderno- positivista, ocorre até hoje uma histórica negação da existência da subjetividade. Adota- se a noção de Olho de Deus, típica do cientificismo, e suas estratégias de apagamento do sujeito cognoscente na leitura da realidade – neste caso, o jornalista (VEIGA, 2015). A escrita na terceira pessoa, os tipos de fontes e a linguagem adotada são algumas das estratégias utilizadas que, na busca pela objetividade, acabam delineando os temas de maneira reducionista e simplista, até mesmo para pautas mais complexas que envolvem a sociedade. Por outro lado, as reportagens carregam conquistas, acidentes e conflitos humanos que tornam os relatos mais dramáticos, com efeitos de sentido que geram comoção, sentimentos, subjetividades; fazendo com que a característica narrativa seja possivelmente identificada. A partir de representações mentais próprias, o leitor busca dar coerência à história que lê, vê ou escuta. O sentido narrativo se estabelece pela construção feita pelo narrador-jornalista integrada aos conceitos culturais e sociais, bem como pelo espaço referenciado pelo leitor. Essas identificações culturais, os chamados mapas de significados, são oque dão sentido aos acontecimentos noticiados pelos jornalistas. No tipo de sociedade que estamos inseridos é como se existisse uma única perspectiva cultural, sem qualquer discrepância nos mapas de significados e nos interesses, fazendo com que a mídia seja uma instituição cuja prática está amplamente baseada em um consenso, no qual supõe-se que todos nós entendemos a forma como os acontecimentos são enquadrados e narrados (HALL et. al., 1999). Seguindo Wenceslau Oliveira Júnior, que problematiza as geografias do cinema (2014), os locais narrativos, também no jornalismo, são versões editadas do mundo, um modo de dizer esse mundo. Cada narrativa não nos mostra um lugar, mas nos remete a ele, alude ou evoca paisagens, certos sentidos e formas deste lugar. Ou seja, os territórios são construídos pelos olhares dos personagens, da câmera e do narrador.

Os modos de narrar o espaço do outro nas reportagens Por meio do método de análise narrativa (CULLER, 1999; MOTTA, 2013), a pesquisa objetivou responder que estratégias de objetivação e subjetivação são produzidas pelo jornalismo ao representar as espacialidades físicas e simbólicas nas reportagens sobre migração, identificarquem fala e quem vê e apontar quais os conflitos

22 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares e as aproximações presentes nas espacialidades da narrativa.4 O estudo realizado nos permitiu refletir e observar que, no conjunto das reportagens, as vozes presentes nas narrativas indicavam que o jornalismo recorre à estrutura do espaço social para explicar tais fenômenos ao público. A fala do outro, por vezes, aparece de maneira fragmentada, a fim de legitimar o discurso do próprio narrador.5 Quando a produção da reportagem foi realizada localmente, demonstrou-se que em geral o planejamento editorial serve para tematizar as transformações no espaço social local, caso das matérias Os Novos Imigrantes e Destino Incerto. Na primeira, o foco da narrativa está na mudança do cenário a partir da chegada do imigrante ao mercado de trabalho, principalmente nas fábricas das cidades do interior do Rio Grande do Sul e, na segunda, as dificuldades enfrentadas por quem não conseguiu emprego e precisou ir para a capital, Porto Alegre. As narrativas apresentam dados (número de estrangeiros nas cidades, mapas com a origem), fotografias com manifestações culturais, descrições dos novos usos do espaço e a serra gaúcha como espaço do imigrante europeu. Há também a presença de estereótipos acerca dos estrangeiros e a hesitação do narrador em mencionar conflitos entre imigrantes e nativos, como, por exemplo, os casos de xenofobia e racismo que são tratados como “isolados” ou apenas como “polêmica”. Assim, espaço do imigrante é representado preponderantemente pelo narrador e, em geral, representado de acordo com a estrutura do espaço social: as fontes que detêm o poder de voz são especialistas, pesquisadores, diretores de Recursos Humanos de fábricas, atendentes de serviço de saúde e, em diversas circunstâncias, são essas vozes que determinam o comportamento do próprio imigrante, são vozes que falam pelo outro. Sobretudo, a condição de mão de obra do imigrante é o que ganha maior espaço na narrativa. Em Inferno na terra prometida e Refugiados: uma história, as narrativas são construídas fora do território gaúcho, e os repórteres acompanham o caminho percorrido pelos imigrantes e refugiados. Na primeira, o repórter embarca para o estado do Acre para acompanhar o deslocamento de imigrantes haitianos e senegaleses para outros estados brasileiros. Ainda que a linha de apoio na capa do jornal anuncie que iremos acompanhar o caminho percorrido pelos imigrantes, o texto inicia com a chegada deles, o ponto final da travessia, São Paulo. Já a segunda reportagem, traz o caminho percorrido pela repórter junto a refugiados sírios que tentam chegar à Alemanha. Nessas experiências, o narrador é capaz de alcançar uma maior humanização dos relatos e maiores descrições sobre o outro. Assim como o deslocamento do jornalista, que, em travessia, surpreende ao evidenciar a sua própria constituição enquanto sujeito. Sendo o lugar um espaço narrado, as noções alteradas de espacialidade parecem ter sido reconfiguradas, abrindo as duas reportagens a acontecimentos inesperados e à potencial intervenção do outro. Dessa maneira, quando o narrador está em deslocamento, ou seja, fora do estado do Rio Grande do Sul, a sua própria subjetividade frente ao outro transcende os estigmas construídos pela narrativa.

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Refugiados: uma história Como exemplo iremos observar a narrativa construída pela reportagem especial “Refugiados: Uma história”, de Letícia Duarte,6 publicada em 11 de outubro de 2015, ano considerado emblemático para a crise migratória.7 Um mês antes da publicação, a repórter embarcava para a cidade de Bodrum, na Turquia, onde o menino sírio Aylan foi encontrado morto em uma praia após um naufrágio,8 para dali partir para a ilha de Kos, na Grécia, e acompanhar a trajetória de uma família síria até a Alemanha. A reportagem é dividida em subtítulos que procuram antecipar o tema que será destacado. Os subtítulos que seguem são: “A pequena grande travessia”, “Um mar de insônia”, “Esperança sobre trilhos”, “Impasse sem fronteiras”, “Protegidos por céu e chuva”, “Territórios de sangue”, “Percurso cumprido” e “Gente de alma grande”.

Figura 1: Abertura da reportagem, ZH, 11.10.2015, p. 2.

Fonte: Zero Hora

A começar por esses títulos, percebemos a forte proximidade que o caráter narrativo dessa reportagem apresenta com o gênero literário, desde a escolha das fontes até como se dá o desenvolvimento do enredo. A família escolhida é composta por Ghazi, Razan, Tala e Mohammad: pai, mãe e um casal de filhos. A aproximação com aquilo que é – geralmente – considerado uma família tradicional, induz o leitor a buscar suas próprias referências e a identificar-se com os personagens. Além deles, outros sete refugiados compõem o grupo de peregrinos, com o qual a jornalista se integra para a viagem. O trecho de apresentação após o primeiro título diz: 24 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Ghazi, Razan, Tala e Mohammad: pai, mãe e um casal de filhos partiram de Raqqa, primeira capital de província síria a cair nas mãos do Estado Islâmico, rumo a uma vida nova na Alemanha. Zero Hora os acompanhou nessa moderna odisseia (DUARTE, Refugiados: Uma história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 2).

Como se estivéssemos abrindo as páginas de um livro, o texto inicia com a frase: “Mohammad vê as lágrimas escorrendo no rosto do pai e se aproxima, como a consolá- lo”. Não há lide jornalístico no primeiro parágrafo e nem ao longo da narrativa, a matéria segue descrevendo o motivo do choro desse pai.

No dia anterior, eu havia estado na praia onde o corpo de Aylan foi encontrado, na Turquia, e comentei com o pai sobre a história, imaginando que lhe fosse familiar. Ao ver a imagem, começou a chorar. Para Ghazi, ela não era apenas um símbolo. Era a encarnação de seus maiores temores (DUARTE, Refugiados: Uma história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 3).

Então, somos recebidos por esse narrador que se coloca na história, não apenas como observador dos fatos, mas também como um agente no enredo. Ao acompanhar a travessia do grupo de sírios, a repórter de ZH opta por se colocar como uma narradora- personagem. Ao longo de toda a reportagem, encontramos o pronome na primeira pessoa, “eu”. Nesse início, especificamente, chama a atenção o episódio da história de Aylan e do choro que dá força à abertura da matéria. Como vimos anteriormente, exercemos domínio sobre o espaço também para produzir significados. Assim, ao mostrar a fotografia de Aylan na tela do celular, a narradora cria um contexto no qual as estratégias de objetivação e subjetivação de comunicação podem contribuir para a instauração de uma outra espacialidade. Ou seja, a intervenção da jornalista neste aspecto é direta, de maneira objetiva, mas também subjetiva, não sendo uma mera relatora dos acontecimentos do espaço social. Há também neste caso um apelo constante para gerar a sensibilização/comoção do leitor, relacionando a idade do menino Mohammad com a de Aylan. Relação novamente encontrada em trechos como: “A família partiu da cidade natal em 4 de setembro, mesmo dia em que o corpo de Aylan era enterrado, em Kobani”. No movimento de compreensão do paradigma narrativo proposto por Motta (2013), observa-se que há nas narrativas um projeto dramático de construção da realidade. Justo por isso, sendo a reportagem o gênero jornalístico por excelência, identificar os traços dessa construção mostra-se interessante. Além disso, é necessário destacar que as narrativas são utilizadas para persuadir e convencer (MOTTA, 2013), logo, qualquer que seja o produto cultural que se proponha a narrar o Outro, apresentará tanto para o narrador como para o leitor uma tentativa de acessar o universo da alteridade, seja pela reflexão ou por um chamado dramático. Em geral, o texto apresenta um perfil bastante descritivo, e conforme se desenvolve a narração sobre o ambiente e sobre os personagens, a autora aciona diversas referências

25 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares dos mapas do leitor para aproximá-lo da realidade que está representando.

O pôr do sol colore o céu com tiras alaranjadas quando a família de Ghazi e seus amigos se dirigem para o porto de Kos [...]. No caminho, Mohammad abre os braços como se estivesse fazendo aviãozinho, levando nas costas a mochila azul do Homem Aranha que ganhou de voluntários (DUARTE, Refugiados: Uma história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 4).

O mesmo recurso também funciona para criar contrastes na narrativa. “São pelo menos 800 refugiados acampados neste domingo, 20 de setembro, em Kos, destino turístico de águas cristalinas que viu o tradicional vaivém de barcos e iates luxuosos suplantado pelo afluxo de botes de borracha”. Ao mesmo tempo, as questões objetivas que caracterizam o jornalismo logo tomam espaço na matéria, um modo de demarcar o lugar da fala jornalística, que é apresentar dados, descrições e informações. “Dos 300 mil que já cruzaram o Mediterrâneo rumo à Europa neste ano, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) calcula que 2,5 mil morreram ou desapareceram pelo caminho”. É importante destacar que todos os dados e contextualizações estão na fala da narradora e dos personagens, caracterizando as vozes presentes na narrativa dessa reportagem. Não há a presença das ditas fontes oficiais. Ao todo, dezenove pessoas falam durante a história, seja por citações diretas ou indiretas. Desses, dezesseis são migrantes e três são voluntárias croatas. As falas literais, as chamadas aspas, costumam apresentar o sentimento e as expectativas dos sujeitos e são, em grande parte, frases de bastante efeito, como essa de Ghazi: “A Síria está morta. Não há futuro para meus filhos, não há futuro para ninguém”. A maioria dos personagens é conjecturada a partir do que faziam e do motivo pelo qual desejou se arriscar nessa travessia. Após a descrição do chefe de família Ghazi, é a vez do estudante sírio Musa Amohammed, de 23 anos, que integra o grupo de onze pessoas que a jornalista acompanha. “Na Síria, Musa era estudante de educação física. Passou dois meses na Turquia, trabalhando como carpinteiro, mas diz que desistiu de permanecer lá porque os patrões não pagavam seu salário”. O modelo de apresentação segue com os demais homens do grupo, como o maratonista Mohamed Ali, o estudante de medicina Issa e o jovem Abd, que durante um dos trajetos de barco descreve o caso de um tio que foi decapitado por radicais ao fumar durante o Ramadã, período em que os muçulmanos realizam um ritual de jejum. “Meu tio não era religioso, então prenderam ele. Primeiro cortaram os dedos, depois a cabeça.” Já diante da fronteira entre a Sérvia e a Croácia, a narradora, mais uma vez, de maneira direta, demonstra a vivência pessoal ao citar sua emoção durante a travessia. Em um espaço em que diversas televisões estão ali para produzir imagens, Letícia é amparada pelos migrantes. “Isto não é nada comparado ao que vivemos na Síria. Lá há sangue por todo lugar, a Síria cheira a morte. Qualquer coisa é melhor do que aquilo – assegura o fisioterapeuta Harem Alhamad, 31 anos, de Aleppo.” Ao ser

26 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares separada do grupo na Croácia, já que a imprensa não poderia cruzar o mesmo caminho dos refugiados, a jornalista consegue carona com três voluntárias croatas, que são as únicas personagens que não são refugiadas, mas que dão a dimensão de um outro tipo de narração e do possível conflito entre as diferenças. De acordo com uma das voluntárias, muitas pessoas são contra a vinda dos muçulmanos. “Muita gente diz que esses muçulmanos vão invadir a Europa com mesquitas, vão destruir nossas igrejas. Que já temos nossos problemas, nossos necessitados.” Apesar de uma iraniana que viaja sozinha ser citada e de a repórter conversar com outra jovem no caminho, chama a atenção que as duas únicas mulheres do grupo não possuem espaço de voz durante toda a narrativa. A mãe das crianças, Razan, tem fotos de destaque, mas não é mencionado seu comportamento, nem abordado pela reportagem o que ela sente. A jovem Rama, também integrante do grupo de onze migrantes que a repórter acompanha, é citada apenas no momento da entrada no campo de refugiados de Opatovac.

O irmão da mãe, Adham, 28 anos, e a jovem Rama, 18 anos, que tem um marido a sua espera na Suécia, apresentam-se como um casal aos policiais. Com o vínculo familiar, pensam em facilitar a aprovação de sua entrada. Em poucos minutos, todos têm as cópias de seus passaportes feitas e recebem uma fita para colocar no pulso que dá acesso ao próximo ônibus (DUARTE, Refugiados: Uma história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 11).

O não questionamento a essas duas mulheres e o seu silenciamento deixam dúvidas quanto à maneira como a narradora se coloca diante de seus representados no que se refere ao comportamento de mulheres muçulmanas e à sua representação cultural. Como vimos, os mecanismos de naturalização do espaço também são produtos de relações de dominação. No que concerne ao senso comum e ao pouco que se conhece sobre o islamismo entre a população ocidental, as mulheres ocupam um espaço de expressão limitado frente aos homens. Aqui há um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a presença dessas duas mulheres é visível nas imagens, há uma invisibilidade delas. O que houve neste caso, então? Uma naturalização, um processo de estigmatização do comportamento das muçulmanas? Na verdade, a atribuição de significados por parte de nossa análise também se torna problemática, já que há um absoluto apagamento do perfil dessas duas personagens. No entanto, ressaltamos essa situação incômoda na narrativa que, muitas vezes, tende a buscar uma explicação objetiva do social, cujos sistemas de relações produzem regularidades que não são capazes de trazer à compreensão a complexidade cultural. Como salienta Spivak (2012), há sempre o perigo de o subalterno ser construído pelo intelectual que almeja falar pelo outro. Falar por e representar o outro são movimentos intrínsecos, uma vez que a representação também é um ato de fala. A ausência de um espaço dialógico no processo de representação se dá, não no sentido estrito da expressão, já que todos podem falar, mas pela falta de agenciamento do subalterno em

27 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares falar (SPIVAK, 2012). Ainda assim, em grande parte, o que percebemos é que quem fala e quem vê, do modo como estão dispostos nessa reportagem, apresentam uma variedade de pontos de vista dos ditos subalternos. As espacialidades que permeiam essa narrativa dão à migração um tom de superação, de pessoas em busca de uma vida melhor, ressaltando a sua fé e a sua resiliência. Mas, sobretudo, o que a diferencia é o espaço maior dado à subjetividade dos personagens e da própria narradora, que em alguns momentos até surpreende. O espaço social enquanto espaço de interação é onde os sujeitos se percebem, se conhecem e se reconhecem. Como lembra Hall (2016), a capacidade de atribuir significado aos comportamentos individuais integra um processo comunicacional intrínseco às narrativas. Ao descrever um ex-soldado integrante do grupo, que não quis se identificar, a repórter relata que para se distrair o jovem lhe dá aulas de árabe.

Tomo notas do que escuto e repito as frases aprendidas “Ana asme Letícia, Ana mean al Brazil, Ana sahafea” (Meu nome é Letícia. Eu sou do Brasil. Sou jornalista). Eles riem do meu sotaque árabe, e involuntariamente viro motivo de diversão para o grupo, enquanto o tempo passa (DUARTE, Refugiados: Uma história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 5).

A relação desse eu com esse outro aparece em diversos momentos em relação à narradora. “Agora você também é uma pessoa suja”, diz um refugiado a ela. “Sem banho há três dias, rimos juntos”. A todo instante a repórter também descreve sua trajetória e, muitas vezes, demonstra seus próprios sentimentos, como o constrangimento ao compartilhar da comida dos refugiados. Ela comenta a constante iniciativa das pessoas em oferecer alimento a “uma pessoa estranha e com bloquinho na mão”. Talvez porque, mesmo sendo jornalista, Letícia estava vivendo, ainda que por um período, a mesma situação que aqueles indivíduos. Mas, logo entendemos, por meio da explicação da narração, que esse é um costume árabe e que negar a oferta de comida é uma ofensa aos muçulmanos. A informação jornalística nessa relação de alteridade funciona como ferramenta para a desconstrução daquilo que é apenas suposição e para a aproximação de culturas distintas. O contexto político e social também é apresentado no diálogo com a voluntária croata Sonja que, assim como os sírios, se considera “refugiada” após a guerra que separou a antiga Iugoslávia. “Por causa das memórias da guerra recente em seu próprio país, Sonja tem a impressão de voltar no tempo quando vê as imagens da Síria bombardeada. Ainda hoje se assusta com sirenes e estampidos.” Outra estratégia narrativa de apreensão das espacialidades está no recurso de lin- guagem. Mesmo que as línguas sejam absolutamente diferentes, e neste trecho a dife- rença seja justamente para evidenciar esse contraste da relação narradora e personagem, a construção do texto busca a referência da língua do leitor para surpreendê-lo:

Sentado à minha frente, o ex-soldado que intercala suas frases com “fucking” brinca com Mohammad, sorridente. Depois me conta que ainda tem uma bala

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alojada na perna. E que recebeu “três estrelas do Exército”. Carrega a guerra no corpo. Não quer mais falar sobre isso. Diz que não tem mais sentimentos, que não sente mais nada. Como todos, quer esquecer o passado. E estudar psicologia na Alemanha. Para passar o tempo, volta a tomar minhas lições de árabe, fazendo as perguntas ensinadas na calçada horas antes, como é seu nome, quantos anos tem, de onde você é. Invertemos o jogo e pergunto a ele em árabe qual é o seu nome “Ma hwa asmak?”. E aí finalmente ele revela sua identidade. O soldado que diz não ter sentimentos se chama Ammar (DUARTE, Refugiados: Uma história, Zero Hora, outubro de 2015, p. 5).

Durante todo o caminho, a narradora conversa com as pessoas nas mais diferentes situações: depois de um banho, na hora da janta, na fila da revista. O artigo que encerra a reportagem, “Gente de alma grande”, demonstra uma tentativa da repórter de colocar- se no lugar do Outro, ainda que isso não seja plenamente possível, mas, sobretudo, evidencia um exercício da jornalista em refletir sobre a própria subjetividade, se seu trabalho era mais um fardo para os refugiados ou se foi algo diferente na vida deles; o que não é comum nas narrativas jornalísticas, já que as reportagens prezam pela objetividade. “Quando parti de Porto Alegre rumo à Grécia para produzir esta reportagem, em 17 de setembro, tentava me preparar para ouvir toda a dor de quem foge de uma guerra. O que sequer suspeitava é que iria deparar com tanta generosidade no meio desta jornada de fuga.” Com a forte marca de um sentimento de esperança, comum na maior parte de matérias que abordam imigrantes e refugiados, a reportagem encerra como se concluísse o enredo de um final feliz, mesmo que esse não seja propriamente um fim, já que o jornalismo é uma narrativa em movimento e raramente se fecha (MOTTA, 2013). Sob o título de “Percurso cumprido” e ao relatar a chegada do grupo à Alemanha, a última frase da reportagem é: “Às 15h, embarcam num trem vermelho sem saber qual será o destino. Pelo menos desta vez, partem com a confiança de quem já chegou”. Ainda que a narrativa esteja baseada no modelo jornalístico tradicional, apresentando mapas da travessia, dados e fotografias com foco nas situações vividas, a linguagem mais literária, o caráter descritivo e os contrastes na narrativa permitem uma melhor contextualização da vida dos personagens. A narradora integrante que dá destaque e espaço de fala maior aos refugiados, optando pela ausência de declarações das fontes oficiais, mostrou que há um tipo de abertura na narrativa jornalística que possibilita um maior protagonismo do sujeito ao abordar suas próprias questões a partir da sua voz e das suas particularidades, ainda que a representação cultural do outro esteja sempre sujeita à construção de quem narra e do espaço social.

Considerações

A cultura na qual estamos inseridos é dinâmica devido às transformações históricas que representam mudanças no cotidiano da vida das pessoas, como, por

29 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares exemplo, as migrações. Por conseguinte, as representações que são produzidas das relações em sociedade também são construídas por significações preestabelecidas pela cultura e pelo espaço. Assim também compreendemos que o espaço é sempre uma relação social, no qual há lugares determinados para as atividades e também para as pessoas. É necessário refletirmos sobre como esses efeitos de naturalização se manifestam a partir do contato com a diferença, já que é esta relação de contraste que estará presente na construção das narrativas, sejam elas entre os sujeitos ou ori- undas de produtos culturais. Por fim, entendemos a narrativa jornalística como forma de constituir a realidade humana, com o jornalismo ocupando um espaço autorizado para ordenar as experiên- cias e situações de vida na sociedade. Sem a pretensão de assinalar caminhos certos ou errados, cair no risco do prévio julgamento do trabalho do jornalista ou sintetizá-lo arbitrariamente, visamos, a partir dos traços analisados, apresentar como as apreensões espaciais narradas revelam que por trás do recurso objetivo da narrativa sempre há uma subjetividade, seja porque por si só já se trata de uma escolha de representação do nar- rador, seja pelos significados que potencialmente gera sobre o outro.

Notas ______1 Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/em-10-anos-numero-de-imigrantes- aumenta-160-no-brasil-diz-pf.html . Acesso em: 18 mai. 2017. 2 Fonte: https://www.iom.int/wmr/world-migration-report-2018 . Acesso em: 17 dez. 2018. 3 O período selecionado para análise representa os anos de maior entrada de imigrantes no Brasil nos últimos dez anos, de acordo com dados da Polícia Federal. O jornal Zero Hora foi escolhido por ser o principal periódico local e por integrar o grupo dos cinco jornais de maior circulação no país, segundo a Associação Nacional dos Jornais (ANJ): média impresso + digital 210.661. Fonte: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do- brasil/ . Acesso em: 25 jul. 2018. 4 Diante das diversas perspectivas relacionais apresentadas pela fundamentação teórica, definimos alguns procedimentos indicados por Motta (2013), como: compreender os efeitos do real na narrativa e compreender o paradigma narrativo, já que por meio das estratégias de objetivação e subjetivação, os fatos culturais e sociais explicitados pelo jornalismo podem ser observados a partir dos esquemas textuais e expressões do narrador. Em uma perspectiva mais profunda, o pesquisador pode observar elementos e recursos de linguagem utilizados de forma consciente ou inconsciente pelo narrador no plano da expressão para observar os conflitos e aproximações nas espacialidades. Assim, a performance do narrador no plano da história destacará o enredo apresentado, além de mostrar se há um exercício de encontro com a diferença. No que se refere ao enredo, Culler (1999) diz se tratar do material que é apresentado ao público a partir de

30 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares um ponto de vista. Assim, selecionamos as variáveis quem fala (narrador) e quem vê (vozes presentes na narrativa) sugeridas pelo autor para nos auxiliar a entender o espaço do outro e a representação de culturas e indivíduos ditos subalternos no jornalismo. 5 As chamadas aspas no jornalismo, que correspondem às declarações literais das fontes, são apresentadas em pequenos fragmentos. Nas narrativas analisadas, as frases servem para comprovar/confirmar o que está sendo apresentado/construído no texto da reportagem. 6 Letícia Duarte, depois de atuar treze anos em Zero Hora, período em que ganhou o Prêmio Esso em 2012 pela reportagem “Filho da Rua”, atualmente trabalha como jornalista internacional independente. Morando nos Estados Unidos, ela já publicou uma matéria feita no México a respeito do novo perfil de imigrantes deportados pelo país norte-americano. 7 O ano de 2015 é emblemático para a crise migratória, pois o número de refugiados no mundo atingiu 60 milhões, um recorde histórico, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Também é o ano da divulgação da imagem do menino sírio Aylan, encontrado morto em uma praia. 8 Foto chocante de menino morto revela crueldade de crise migratória. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/09/foto-chocante-de-menino-morto-vira- simbolo-da-crise-migratoria-europeia.html Acesso em: 25 abr. 2018.

Referências

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COMUNICAÇÃO POPULAR: A NARRATIVA JORNALÍSTICA POR OUTRAS MÃOS

Luiz Henrique Zart

Do povo, pelo povo e para o povo. Se fosse possível expressar mais com menos, esta poderia ser uma síntese próxima ao ideal utópico da Comunicação popular. Além disso, distinguir e interpretar, inclusive, divergências entre concepções dos termos popular, alternativo e comunitário em suas expressões. Em especial quando mediada pelo jornalismo, sob a premissa que pretende-se abordar neste espaço, se distingue, mas não se divide, em dois núcleos – a comunicação e o popular, aos quais cabe uma breve conceituação antes de tratar de seus significados na composição de uma narrativa traçada por outros sujeitos. Por mãos que, por vezes invisibilizadas, submissas ou presas a grilhões econômicos, políticos e sociais, não têm vez. Por isso mesmo, suas demandas são sufocadas: não têm voz. Não se expressam, não podem se fazer ouvir. Um jornalismo que represente e sirva ao povo pode ser visto como uma utopia. Neste sentido, a comunicação popular tem se apresentado como alternativa de retorno às origens da profissão: ao interesse público e à comunicação como um bem comum. A partir desta premissa, pretende-se abordar a potencialidade de estímulo ao pensamento crítico empreendido pela comunicação popular na constituição de mediações culturais manifestas na mídia, exercendo um papel contra-hegemônico. Por meio da reflexão, vislumbra-se um horizonte mais democrático no sentido de oferecer voz, vez e espaços de expressão aos sujeitos a partir da ação da comunicação popular, alternativa, comunitária e da função social do jornalista, criando narrativas protagonizadas por outras mãos.

Sobre qual comunicação: do que é comum à ação É realmente possível se falar, neste contexto, em uma comunicação plena? É a partir destas perspectivas que a comunicação, do latim ‘comunis’, pretende tornar comum, partilhar, dividir ideias e atitudes e, mais que isso, “estabelecer uma comunidade com alguém”. Uma troca em sintonia, conforme propõe Gomes (1990, p. 21). Para Beltrán (1981 apud GOMES, 1990, p. 27-28), a comunicação é um “processo de interação social democrática [...] sob condições de acesso livre e igualitário, diálogo e participação”. Então, além da definição tradicional, limitada ao processo de transmissão de mensagens,

33 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares a comunicação popular muda estruturalmente o sentido: no intercâmbio simbólico, envolve o acesso à expressão, participação horizontal e diálogo, sobretudo: ela torna todos interlocutores (ibidem, p. 28). Entretanto, diz-se que o cenário é ainda distante porque a comunicação comunitária atua contra a corrente, em um sistema contra-hegemônico, inclusive quando se choca às práticas jornalísticas contemporâneas, pautadas não no valor de uso da informação como elemento transformador da realidade, mas com valor de troca, como mercadoria. Assim, por vezes, diante de uma construção viciada e deturpada da informação, cabe ao jornalismo comunitário e popular lutar contra arbitrariedades – que deveria ser papel de todo jornalista:

Os profissionais do jornalismo, no exercício de sua profissão, têm, antes de tudo, um compromisso com a sociedade. Compromisso de trabalhar pela verdade, pela justiça, e pela cidadania, pela (in)formação da opinião pública e pelo nivelamento das desigualdades sociais. Suposto isso, voltam seus olhares para as tendências e oportunidades do mercado de trabalho. Tendências essas que habilitam o profissional do jornalismo a exercer condignamente sua profissão (VICCHIATTI, 2005, p. 53).

Neste sentido, o conceito de comunicação popular, por vezes, é confundido com a comunicação alternativa ou comunitária. Cabe esclarecer os motivos, uma vez que, “ao mesmo tempo outros vieses vão se configurando” e entrelaçando as referências. A comunicação popular surge como uma forma alternativa de caráter mobilizador nas manifestações de movimentos sociais, operários e populares nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil – período de transição e turbulência social e política, onde a classe trabalhadora teve papel fundamental (PERUZZO, 2009, p. 2). De acordo com Regina Festa (1984, p. 170), “em suma, a Comunicação Popular refere-se ao modo de expressão das classes populares de acordo com a sua capacidade de atuar sobre o contexto social no qual ela se reproduz”. Configura-se assim, naturalmente, como questionadora, contestadora, contra a dominação, em todas suas esferas. Quem interpreta esta forma característica de expressão é Gomes (1990, p. 45), quando indica que a condução do processo de comunicação é tão importante quanto o cenário onde se insere. Deve haver um contexto, para o autor, “que una aquilo que o capital desune”. Para isso, prevalece uma forma de diálogo “de contextualização, reunificação, de temporalização, que localize as pessoas no espaço e no tempo, e nas relações com a circunstância que as rodeia”. Desta forma, prossegue: “[...] o problema da comunicação popular não é tanto o que dizer, mas como dizê-lo” (Ibidem, loc. cit.).

O que faz com que uma comunicação seja popular é sua inserção num contexto alternativo, de forma a potencializá-lo. Um contexto alternativo caracteriza-se por sua tendência a romper com a ordem do capital, a integrar aquilo que o capital fragmenta. Este é o desafio que se apresenta à Comunicação Popular: conceber-se realmente como elemento de um processo mais amplo e criar, inventar as formas de inserir-se nele sem pretensões de gerá-lo (MARTINEZ TERRERO, 1982, p. 45).

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Atuando como um meio¸ esta forma de comunicar tem seus resultados na prática, em seus efeitos. Na contramão do modelo proposto pela mídia hegemônica, seria “libertadora, conscientizadora, mobilizadora, como uma função que parte da idéia de ‘dar a palavra ao povo’” [sic] (MARTÍNEZ PARDO, 1981 apud GOMES, 1990, p. 43, grifos do autor). Como um meio porque deixa de ser atividade-fim: não apenas informa e mobiliza, mas envolve a produção e difusão de mensagens enquanto “processo educativo e de criação coletiva” (SEQUEIRA; BICUDO, 2007, p. 13). Por sua vez, a comunicação alternativa, por orientação político-ideológica con- testatória, em especial representada pela esquerda intelectual de classe média, flores- ceu entre 1960 e 1980, com pontos de vista à margem da imprensa dita tradicional alinhada à ditadura militar, com veículos como O Pasquim, em busca de protagonis- mo (PERUZZO, 2006, p. 7). Contra o poder instituído, é “contracomunicação” num período de criatividade e efervescência cultural – na onda das revoluções francesas de 1968, da contracultura e do underground – levada à frente por folhetins, de lingua- gem coloquial, que usam de ironia, charges e da música popular, mas, sobretudo, em períodos históricos – como o contemporâneo – de supressão de liberdades formais (GRINBERG, 1987, p. 19; ROMANCINI; LAGO, 2007, p. 140-141). Portanto, “al- ternativa indica uma relação com outro, um ‘alter’ que chama a si os que se desviam de um caminho inicial, no caso, imprensa tradicional” (CAPARELLI, 1986, p. 45 apud GOMES, 1990, p. 58, grifos do autor). Entende-se, a partir de então, que são necessárias duas condições para que se concretize uma comunicação verdadeiramente alternativa, de acordo com a posição adotada por Festa (1984, p. 196): a capacidade de reconhecer as mensagens como próprias, além de respeitar princípios de igualdade e participação. Elas dispostas, o meio alternativo pressupõe a existência, a partir de uma noção de sociedade dividida em classes, que há setores privilegiados, detentores do poder, seja político, econômico ou cultural; e que a comunicação alternativa é uma opção frente ao discurso dominante, à comunicação massiva, baseada na ideia da luta por uma sociedade que considere classes populares como detentoras de direitos além do papel (GRINBERG, 1987). Isto porque o jornalismo não existe “como fenômeno abstrato, fora de todo contexto histórico, que não pode compreender-se fora de suas relações com uma sociedade concreta e da sua estrutura de classe num determinado nível de desenvolvimento” (GOMES, 1990, p. 49). Já a comunicação comunitária é voltada às demandas de estratos sociais: bairros, agrupamentos, coletivos, etc. Há uma série de concepções, especialmente quando se pontua: o que torna uma comunicação popular é seu conteúdo? Meio de veiculação? Linguagem? Contexto? (FESTA, 1984, p. 174-175). Uma mescla: a possibilidade de o povo produzir uma narrativa própria, que circule a partir de si, para si próprio, em uma ruptura do edifício comunicativo hegemônico – abrindo-se a outras perspectivas, linguagens e discursos, tendo o povo como gerador e protagonista (KAPLÚN, 1987, p. 7 apud PERUZZO, 2006, p. 3).

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Desta forma, a produção, a circulação e, acima de tudo, o uso que se faz das mensagens, é elemento preponderante, pois considera a comunicação como “criação conjunta, diálogo, construção de uma realidade distinta na qual o homem seja sujeito pleno” (MATA, 1981 apud GOMES, 1990, p. 41). Por isso mesmo, sua eficácia como elemento emancipador é determinada pela “promoção das classes populares para a liberdade política e social, respeitando profundamente seu sistema de autodefinição, sua iniciativa cultural e seu direito a ser diferente” (GIMÉNEZ, 1978 apud Ibidem, p. 36).

A produção de meios de comunicação pode ser para, com ou do povo. [...] a Comunicação Popular faz parte da cultura popular e exerce várias funções: a destruição radical da ideologia dominante; a construção histórica da ideologia da classe dominada a partir de diversas táticas de comunicação popular; ser voz dos sem voz e devolver a fala ao povo; construção do povo como sujeito histórico, social e político (Ibidem, p. 41).

Assim, entre as concepções cruzadas, a comunicação popular já foi denominada como “alternativa, participativa, horizontal, comunitária e dialógica, dependendo do lugar social e do tipo de prática em questão”, mas, em geral, é a forma de expressão de segmentos socialmente excluídos para suprir necessidades de sobrevivência e participação política, tendo historicamente o adjetivo ligado ao povo – não no sentido da comunicação dita como popular, mas pejorativamente sensacionalista: de forma vulgar, enquanto imprensa que apela ao incrível, inesperado, inédito, que procura a empatia do público só com o propósito de vender, usando de muitos recursos, como fotos e títulos chamativos. Daí que se pense o conceito, deste ponto, como apressado e problemático (Ibidem, p. 55).

Poder ao (qual) povo: a comunicação como cultura A expressão popular deve aparecer em outro sentido: para “alterar o injusto, alterar o opressor, alterar a inércia histórica que impunha dimensões sufocantes, através de uma vocação libertadora que se nutria por uma multiplicidade de experiências comunicativas” (PERUZZO, 2009, p. 3). Portanto, liga-se à questão do acesso à cidadania enquanto “exercício dos direitos civis, sociais, individuais e coletivos historicamente conquistados e que possibilitam a digna participação na vida pública”, tanto em eleições – mas não restrita ao sentido político-partidário –, quanto em direitos fundamentais, como moradia, educação e saúde (DUARTE, 2004, p. 19). É daí que remete aos primórdios da profissão, ligada à luta por justiça social, com objetivo de mobilização e esclarecimento (SEQUEIRA; BICUDO, 2007, p. 11). Em que sentido, desta maneira, se compõe o “povo” do qual deriva a comunicação popular? É preciso compreender suas raízes: pode significar o próprio conjunto de cidadãos; nacionalistas que lutam contra um colonizador estrangeiro; empobrecidos – destacados como classe subalterna, “povinho” ou “povão”, com conotação negativa

36 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares atribuída historicamente por opressores (PERUZZO, 2006, p. 8-9). Partindo do mesmo objeto analisado por Peruzzo, Giménez (1978, p. 25-26) entende o povo como “conjunto das classes subalternas e instrumentalizadas submetidas à dominação econômica e política das classes hegemônicas dentro de uma determinada sociedade”, definida também “‘por seus respectivos sistemas de identificação cultural’, pois elas são ‘portadoras (...) de certos comportamentos e concepções culturais diversos e contrapostos aos da classe hegemônica’”. De acordo com uma construção relacional, nota-se que:

A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que essa invocação articula sua exclusão da cultura. E é nesse movimento que se geram as categorias “do culto” e “do popular”. Isto é, do popular como inculto, do popular designado, no momento de sua constituição em conceito, um modo específico de relação com a totalidade do social: a da negação, a de uma identidade reflexa, a daquele que se constitui não pelo que é, mas pelo que lhe falta. Definição do povo por exclusão, tanto da riqueza como do “ofício” político e da educação (MARTÍN- BARBERO, 2013, p. 35).

A proposição de Giménez, de uma “comunicação popular emancipadora”, supõe uma imersão no meio subalterno, de forma que a mudança de “lugar social” ocorra por osmose, traduzindo-se em “denúncia, cólera e testemunho” (GOMES, 1990, p. 35-36). É neste ritmo que ela propõe “organizar o que está disperso, valorizando os elementos progressistas que subsistem no povo. Fundindo-se com as massas, unir a teoria com os aspectos progressistas da cultura popular” (ESPINOSA, 1978, p. 33 apud ibidem, p. 36-37). É libertadora quando assume, seriamente, o propósito de representar as classes oprimidas diante da manipulação.

Em síntese, a comunicação popular e alternativa se caracteriza como expressão das lutas populares por melhores condições de vida que ocorrem a partir dos movimentos populares e representam um espaço para participação democrática do “povo”. Possui conteúdo crítico-emancipador e reivindicativo e tem o “povo” como protagonista principal, o que a torna um processo democrático e educativo. É um instrumento político das classes subalternas para externar sua concepção de mundo, seu anseio e compromisso na construção de uma sociedade igualitária e socialmente justa (PERUZZO, 2006, p. 4).

Deste ponto de vista, a preocupação principal no jornalismo comunitário é com a esfera do micro, do próximo, da realidade real, aquela que vai além do formal. Faz- se como um organismo vivo dentro da lógica cultural da comunidade, fundada por: “processos de comunicação baseados em princípios públicos, tais como não ter fins lucrativos, propiciar a participação ativa da população, ter propriedade coletiva e difundir conteúdos com a finalidade de educação, cultura e ampliação da cidadania” (Ibidem, p. 9). Sobretudo, no direito a uma comunicação ativa e não apenas “passiva como acontece, via de regra, nos meios de comunicação de massa tradicionais e na grande mídia nos quais os cidadãos são representados, em grande parte, como indivíduos anônimos”

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(FERREIRA, 2011, p. 60). Por isso é importante considerar o percurso da América Latina nestes estudos: é uma realidade específica, à qual algumas situações são inerentes. Por aqui, como aponta Grinberg (1987, p. 19), notou-se – como se nota – a estrutura tipicamente unidirecional dos meios de comunicação, especialmente em relação à sua propriedade e controle, em uma detenção monopolista de poder. Em geral, representado pela difusão de determinado discurso, pretensamente autoritário (FOUCAULT, 1996). Sobretudo no sentido de que informa assertivamente, sem, contudo, problematizar a realidade; que confunde informação e persuasão, sendo proselitista, e atuando como proprietária, administradora ou portadora do saber, conforme diz Paulo Freire (GRINBERG, 1987, p. 22). Por este motivo, cabe apontar critérios desenhados pelo sociólogo Herbert de Souza, conhecido como Betinho, que dizia que “o termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação” (SOUZA apud GUARESCHI, 2002). O ativista brasileiro na luta contra a fome e a favor dos direitos humanos – esclarecia, também, os requisitos necessários a uma comunicação democrática:

[1] Igualdade: todas as pessoas [...] são fundamentalmente iguais no que se refere à dignidade fundamental da pessoa, que é igualmente sujeita de direitos e deveres; [2] Diversidade: na igualdade fundamental dos membros, é necessário respeitar as diferenças que constituem e singularizam os diversos membros dessa sociedade. Quando a igualdade elimina as diferenças, acaba-se com a igualdade. Boaventura Sousa Santos, na sua fala ao III Fórum Social Mundial, resume esses dois itens em uma afirmação que ajuda a iluminar essa dimensão ética da democracia: “Devemos ser iguais naquilo que nos inferioriza e devemos ser diferentes naquilo que nos descaracteriza (massifica)”; [3] Participação: numa sociedade todos são sujeitos de direitos e deveres. Como sujeitos devem, por isso, ter voz e vez, ter a oportunidade de poder se manifestar e contribuir à construção dessa sociedade comum. Ninguém quer de graça nem a liberdade, nem a igualdade: tudo isso tem de ser construído com a participação de todos; [4] Solidariedade: todos os valores acima têm de ser permeados pelo sentimento e pela emoção de ser solidário. A solidariedade é a emoção mais forte que a humanidade pode viver e experimentar. Solidariedade significa a convicção de que não somos os únicos; é aceitar a relação, fundamentalmente, a relação da igualdade de todos e dos direitos de cada um; [5] Liberdade: é uma conquista diária, através da participação com os outros. Nunca posso ser totalmente livre, se o irmão ou irmã, a quem devo ser solidário, sofre restrições básicas em sua humanidade. A plena liberdade só é conseguida quando todos os direitos são respeitados (Idem, 2006, p. 34).

Então, fala-se de comunicação popular no sentido mais aberto, contudo ressaltando a possibilidade do uso de estratégias do jornalismo como ferramentas de promoção de educação, autonomia e mobilização social, com a apropriação real dos processos de mediação pelo grupo que utiliza qualquer meio de comunicação (PENA, 2005, p. 185/187). Entende-se, assim, que “(...) uma imprensa só pode ser considerada comunitária quando se estrutura e funciona como meio de comunicação autêntico de

38 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares uma comunidade. Isto significa dizer: produzido pela e para a comunidade” (DE MELO, 2006, p. 126 apud SEQUEIRA; BICUDO, 2007, p. 8).

Sociedade, comunidade e protagonismo: mediação, contra-hegemonia e participação Considerando a reflexão empreendida pelo alemão Ferdinand Tönnies, vale diferenciar comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gessellschaft): a primeira envolve relações vindas de uma vida real “orgânica, comum, verdadeira e duradoura”, enquanto a segunda se estrutura de forma “mecânica e imaginária”, representada como “passageira e aparente”. Assim, “tudo aquilo que é partilhado, íntimo, vivido exclusivamente em conjunto [...] será entendido como vida em comunidade. A sociedade é a vida pública – o próprio mundo” (TÖNNIES, 1995 p. 231 apud PERUZZO, 2006, p. 11). A comunidade, para R. M. MacIver & C. Page (1973, p.122 apud Ibidem, loc. cit.), não abrange simplesmente o aspecto territorial: convém analisar que é a partilha “não deste ou daquele interesse, mas das condições básicas de uma vida em comum. [...] O critério básico da comunidade, portanto, está em que todas as relações sociais de alguém podem ser encontradas dentro dela”. É visualizada compreendendo:

a) um processo de vida em comum por meio de relacionamentos orgânicos e certo grau de coesão social; b) auto-suficiência (as relações sociais podem ser satisfeitas dentro da comunidade, embora não seja excludente); c) cultura comum; d) objetivos comuns; e) identidade natural e espontânea entre os interesses de seus membros; f) consciência de suas singularidades identificativas; g) sentimento de pertencimento; h) participação ativa; i) locus territorial específico; e j) linguagem comum [sic] (Ibidem, p. 13).

É a proximidade e o reconhecimento entre seus membros a principal característica – tanto em relação aos problemas enfrentados, quanto em conquistas ou ritos cotidianos. Assim, conforme indica Campos (apud SEQUEIRA; BICUDO, 2007, p. 8-9), “jorna- lismo comunitário é uma atividade de comunicação originada na comunidade, ad- ministrada pela comunidade e dirigida à comunidade”. A partir da comunicação, o jornalismo comunitário procura, portanto, que comunidade, em que sentido? A partir do entendimento de uma construção histórica e cultural através da qual esta se compõe; uma comunidade – que, como o próprio propósito da comunicação, do ato de dividir, “tem aparecido como investida de um poder de resgate da solidariedade humana ou da organicidade social perdida” (PAIVA, 1998 apud MIANI, 2011, p. 224). O resgate traz a ideia de que uma comunidade requer de seus membros a participação, o pertencimento e a ação mobilizada de maneira coletiva. Através da construção de uma identidade, com interesses compartilhados e ações destinadas a superar dificuldades com o apoio das relações de longa duração entre seus membros. Desta perspectiva, o pensamento de Martín-Barbero (2013, p. 15) sobre as

39 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares mediações é fundamental, uma vez que propõe a ligação entre comunicação e cultura enquanto campo de batalha política – manifesta num cenário em que a política readquire seu sentido original e sua “dimensão simbólica”, de reconhecimento e pertencimento. Em um momento em que a ordem coletiva se corrói, aponta Martín-Barbero (ibidem, loc. cit.), o mercado é apenas simulacro, pois tudo que gera “se desmancha no ar”. Portanto, diante de uma “obsolescência acelerada e generalizada” tanto das coisas quanto de suas instituições, o mercado é incapaz de gerar vínculos entre sujeitos, geradores de sentido. Para o autor, ele opera anonimamente “mediante lógicas de valor que implicam trocas puramente formais, associações e promessas evanescentes que somente engendram satisfações ou frustrações, nunca, porém, sentido”.

A ideia de cultura vai permitir à burguesia cindir a história e as práticas sociais – moderno/atrasado, nobre/vulgar – e ao mesmo tempo reconciliar as diferenças, incluídas as de classe, no credo liberal e progressista de uma cultura só para todos. Durante o século XIX, constata Hobsbawm, a burguesia faz a simbiose do nobre e do popular e concilia não só as classes em sua cultura como também os fins e os meios na unidade de uma só razão que integra cultura e tecnologia: razão instrumental que contudo não poderá desvincular-se de seu estar constituída a partir da negação e da exclusão de qualquer outra matriz cultural não integrável na dominante. Esse caráter de dominação, isto é, de ruptura entre progresso e libertação, as classes populares perceberam muito antes de que fosse convertido em discurso político, o perceberam e o enfrentaram a seu modo nos movimentos que resistiram à enculturação (MARTÍN-BARBERO, 2013, p. 140).

Pensando acerca desta posição, é relevante considerar as colocações de Kaplún (1983, p. 51 et seq apud GOMES, 1990, p. 29). Ele propõe uma comunicação participa- tiva, onde a unilateralidade e verticalidade rompem-se: procura quebrar com paradigmas de opressão e etnocentrismo; na construção de um espaço de representação multicultural e variado. Para Kaplún, a comunicação popular é “libertadora, transformadora, que tem o povo como gerador e protagonista”. A educação e a comunicação, neste sentido, con- vergem a um objetivo: a democratização do espaço público, para que, conforme acredita Kaplún, se tome consciência da própria realidade por meio da reflexão. Gilberto Giménez pensa de maneira complementar quando diz que comunicação popular “implica a quebra da lógica da dominação e se dá não a partir de cima, mas a partir do povo, compartilhando dentro do possível seus próprios códigos” (GIMÉNEZ, 1979, p. 60 apud PERUZZO, 2006, p. 3). O autor acredita que a comunicação que vem do povo deve se contrapor criticamente à comunicação hegemônica, que leve a uma espécie de “conversão” e amadurecimento político, no sentido de situar o público em seu lugar social enquanto classe subalterna. Deve vir, portanto, de baixo para cima (GOMES, 1990, p. 35). A predominância de atores privilegiados no controle da emissão de mensagens, na América Latina e, especialmente, no Brasil, onde poucas famílias dão as coordenadas da comunicação de massa, leva a uma confluência de discursos: recheados de interesses e altamente persuasivos – tanto pela frequência com que povoam o cotidiano do público

40 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares quanto pela repetição de seus argumentos. O jornalismo popular, em destaque diante dos demais, inverte a lógica do processo de produção porque privilegia a participação direta do público, com seus representantes, para fazer valer a discussão de suas pautas. Sobretudo, “o diálogo se manifesta no sentido horizontal (COM) e não na direção diagonal, de cima para baixo (PARA)”, fazendo com que o público saia da posição de mero depositário de informações “escolhidas e traduzidas por um grupo de iluminados e esclarecidos, e passa, democraticamente, a ser encarado como cidadão protagonista, ativo, pensante e atuante” (SEQUEIRA; BICUDO, 2007, p. 10). Esta quebra ocorre por meio de mediações e procedimentos culturais a partir dos contextos onde – e por quem – a comunicação é produzida. Cultura como uma rede de significados construídos historicamente, entrelaçada como um produto cultural da esfera social da vida humana: seja por ideias, crenças, conhecimento, e suas existências em referida sociedade. Segundo o autor, a cultura não deve ser tratada como imune às relações de controle que a caracterizam. Portanto, supõe-se, assim, uma ruptura com a ideologia dominante em dimensão massiva – o que pode parecer contrapor-se ao sentido inicial desta reflexão, mas não o faz, especialmente quando se pensa que:

Massa designa, no movimento da mudança, o modo como as classes populares vivem as novas condições de existência, tanto no que elas têm de opressão quanto no que as novas relações contêm de demanda e aspirações de democratização social. E de massa será a chamada cultura popular. Isto porque, no momento em que a cultura popular tender a converter-se em cultura de classe, será ela mesma minada por dentro, transformando-se em cultura de massa. Sabemos que essa inversão vinha sendo gerada há muito tempo, mas ela não podia tornar-se efetiva senão quando, ao se transformarem as massas em classe, a cultura mudou de profissão e converteu em espaço estratégico da hegemonia, passando a mediar, isto é, encobrir as diferenças e reconciliar os gostos. Os dispositivos da mediação de massa acham-se assim ligados estruturalmente aos movimentos no âmbito da legitimidade que articula a cultura: uma sociabilidade que realiza a abstração da forma mercantil na materialidade tecnológica da fábrica e do jornal, e uma mediação que encobre o conflito entre as classes produzindo sua resolução no imaginário, assegurando assim o consentimento ativo dos dominados (MARTÍN- BARBERO, 2013, p. 175, grifos do autor).

A colocação atesta a necessidade de observação do contexto social do ponto de vista simbólico. Neste sentido, Ciro Marcondes Filho aponta que a sociedade tem incorporado, cada vez mais, um caráter desagregador nas relações sociais, o que a leva a um contato distante, que se abstrai e se esvazia (MARCONDES FILHO, 1987 apud MIANI, 2011, p. 225). O que se caracteriza é uma espécie de individualização do mundo social, que é fragmentado, apropriado, (res)significado e readmitido à matéria do mundo social. Neste processo estão inclusas várias camadas da sociedade, independente de gênero, etnia, faixa etária e tantas outras variáveis. Estes indivíduos participam de uma articulação na significação de conteúdos disponíveis no campo social. Mediação da qual participa ativamente a imprensa.

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Na visão de Miguel (2000, p. 67) – de que a sociedade se funda em classes – é preciso compreender a arena política contemporânea por ele classificada como real, com relações “cindidas por profundas clivagens e desigualdades, inseridas em ambiente transnacionalizado”. Assim, para ele “(...) o acesso à mídia se impõe como um dos principais pontos de estrangulamento das democracias contemporâneas – e, portanto, como um dos principais desafios” tanto para a compreensão quanto para o aprimoramento de sociedades democráticas. Desta maneira, a mídia desempenha um papel cada vez mais influente na esfera pública. Em um primeiro momento distanciada deste campo, ela passou a “mediar” as relações entre os agentes políticos e sociais e, hoje, acaba por fazer parte das discussões, por delimitar as formas com as quais as pessoas terão contato com o que é debatido (MORAES, 2003).

Jornalismo enquanto ator social: uma narrativa remodelada do cotidiano

O desafio, para o jornalismo, é deixar-se passar por outras mãos, ser falado por outras vozes, que não têm a oportunidade de serem ouvidas, estabelecendo uma nova narrativa da realidade. A comunicação deve partir para a comunidade de maneira inclusiva, estabelecendo diálogo e incentivando ações a serem desenvolvidas para o bem das pessoas, através dos representantes da dita sociedade civil: associações, manifestações de jovens, movimentos sociais, de negros, LGBTs, das pessoas com deficiência e de tantos outros estratos marginalizados. Que venha das classes trabalhadoras, dos subalternos, dos oprimidos (GOHN, 2006). Considerando o contexto social atual, de supressão de liberdades, onde o horizonte das conquistas sociais é borrado pelo obscurantismo e pelo conservadorismo, pensar nestas perspectivas é ainda mais relevante. O apagamento das classes populares é uma estratégia tão nefasta quanto corriqueira. Assim, cabe à capacidade crítica do jornalista analisar os conflitos da realidade social: praticando um discurso informativo que signifique; integrando os aspectos éticos, técnicos e estéticos da profissão; com criatividade para superar as diferenças sociais, sem aumentá-las ainda mais (VICCHIATTI, 2005). Mais que isso: compreender de que forma comunicar-se com estratos populares. É de Giménez (1978, p. 25-26 apud GOMES, 1990, p. 32-33) a concepção de que se deve considerá-los “enquanto inseridos em determinadas instituições ou aparelhos direta ou indiretamente ligados à estrutura do poder” – uma vez que fazem parte de uma estrutura hierárquica que, via de regra, deixa à margem segmentos populares. É deles que surge o discurso autoritário fundado em posições de poder: políticas, econômicas, de caráter ideológico, sustentadas pelo status quo (GRINBERG, 1987, grifos do autor). Contra a corrente e a predisposição sumariamente hegemônica da comunicação em tempos pós-modernos, repensar ou refundar a função do jornalismo enquanto atuante socialmente é pontual:

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A importância de interferência dos jornalistas no espaço público é ambígua: predisposto a servir tão somente como mediador, o Jornalismo acaba constituindo e se confundindo como o espaço de debate assumindo em última instância, a própria influência na condução dos diálogos sociais. Por isso, o jornalismo nunca deixa de ser proponente na formação da sociedade, mas jamais assume convictamente essa condição (FOLQUENING, 2001, p. 105).

Sobre isso, Guareschi (2005) quem destaca: não se pode ser cego, surdo e mudo socialmente falando: todo ator social tem responsabilidades éticas, e, sobretudo o jornalista, deve considerar que a objetividade, inclusive, precisa ser reavaliada quando entra em choque com o interesse público, porque “a posição que considera o jornalista um ser separado da humanidade é uma bobagem. [...] Deve-se, sim, ter opinião, saber onde ela começa e onde acaba, saber onde ela interfere nas coisas ou não. É preciso ter consciência (ABRAMO, 2002, p. 109). Ressalta-se, neste ponto, que o próprio Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros indica, em seu primeiro artigo (FENAJ, 2014, p. 1-2), que “tem como base o direito fundamental do cidadão à informação, que abrange seu o direito de informar, de ser informado e de ter acesso à informação”. Conforme determina, em seu artigo sexto, no segundo capítulo, sobre a conduta do profissional jornalista, na garantia do Estado Democrático de Direito, é dever do profissional (Ibidem, loc. cit.): “I - opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; II - divulgar os fatos e as informações de interesse público; III - lutar pela liberdade de pensamento e de expressão”. Mais que isso, o Código de Ética dos Jornalistas ainda aponta a necessidade de “defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias”, no combate a qualquer forma de discriminação (Ibidem, p. 2). Explicar os limites éticos da informação é um trabalho complexo. Contudo, é válido considerar a fala de Claudio Abramo, colocando-se de forma veemente. Para ele: [...]: “A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão, é ruim para o jornalista” (ABRAMO, 2002, p. 109). Deste ponto de vista, como um elemento essencial às democracias, portanto, cabe ao jornalista garantir o direito à comunicação, que significa:

[...] principalmente, o direito a cada um dizer, pronunciar sua palavra, ouvir sua voz, escrever seu pensamento. Temos direito a uma comunicação ativa e não apenas passiva. Temos o direito de sermos sujeitos e não apenas objeto da comunicação. Isso é fundamental. Nós estamos tão acostumados a sermos dominados que nem nos damos conta desse nosso direito básico. Passamos a vida apenas ouvindo, vendo. Se é verdade que as pessoas desenvolvem mais o sentido que mais usam, dentro de alguns anos vamos ter homens com enormes orelhas e olhos bastante saltados, mas com uma boquinha bem pequena, um buraquinho onde cabe apenas um cigarro! (GUARESCHI, 2005, p. 157).

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Então, cabe refletir: se o trabalho desempenhado por jornalistas é o da comunicação social, até que ponto se desempenha o papel de olhos, ouvidos, voz dos cidadãos que almejam mudanças por meio da crítica à realidade social? Para Vicchiatti (2005, p. 29- 30), o papel é o de “despertar consciências [...] evitando a superficialidade e a omissão perniciosa, que só fazem aumentar as diferenças sociais”. Como conector entre a realidade, os acontecimentos e o público, o jornalista – que, no mundo asséptico da lógica profissional seria uma espécie de “máquina fotográfica”, retratando cruamente os fatos – é uma ponte. Um fio que liga o real aos sujeitos. Como aponta Queré (2005, p. 68), o acontecimento é relativo ao que somos e ao nosso sentido do possível, já que somos afetados por ele. Dessa forma, “a singularidade do acontecimento e a identidade dos que o sentem são tecidas em conjunto, uma vez que é através da apropriação dos indivíduos que o acontecimento adquire significação”. Seguindo a proposta de comunicação horizontal de Beltrán, é pertinente usar Paulo Freire como referência, interligando jornalismo ao sentido de esclarecimento do povo: um dos defensores da educação como meio emancipador, em ferrenha crítica ao que ele classificava como “educação bancária”, baseada na opressão. Da ótica de Freire, “os banqueiros representam os ‘ricos’ em conhecimento (...) que lançam ‘depósitos’ nas mentes dos ‘pobres’, os estudantes, que são recipientes passivos da ‘riqueza’ assim transmitida” (BELTRÁN, 1981, p. 24 apud GOMES, 1990, p. 26).

Para Paulo Freire, dentro desta perspectiva de “educação bancária”, “os meios de comunicação de massa são propagadores dos mitos, normas e valores das minorias oligárquicas e, como tais, instrumentos da comunicação vertical e alienante, encarregados de auxiliar na subjugação dos oprimidos” (BELTRÁN, 1981 apud GOMES, 1990, p. 27, grifos do autor).

E se o jornalista é um dos responsáveis por ordenar a significação da realidade, ele deve atuar, na contemporaneidade, contra esta barreira: como um mediador; como um educador, no sentido de que esclarece o que é turvo enunciando informações com o critério da ética e do interesse público, e fazendo valer sua função social. Alberto Dines já entendia desta forma, refletindo que “o jornalista atuaria então como um ‘servidor público’, que ‘ensina a sociedade a pensar’” (ABREU; LATTMAN-WELTMAN; ROCHA, 2003, p. 156). O papel do jornalista, neste sentido, adquire caráter educativo, em um cenário complexo, contemplado por Fausto Neto (2009, p. 19) quando disserta que se: “põe em discussão a essência da pedagogia mediadora do trabalho do jornalista [...]. Além disso, atribui às fontes e aos leitores novas tarefas de ‘gestão discursiva’ da atualidade”. Com isso, a construção de uma nova narrativa da realidade ocorre por meio da capacidade dos indivíduos de transformar o que os cerca. Se dá a partir do momento em que “a comunicação no processo de mobilização é dialógica, na medida em que não é transferência do saber, mas um encontro de interlocutores” (HENRIQUES, 2002, p. 58). A comunicação popular dá voz aos movimentos e à expressão de comunidades, na luta por melhores condições de vida, sendo participativos e protagonistas da construção

44 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de sua própria história, antes feita por eles, mas manipulada por outras mãos. A partir dos anseios da população, pela comunicação popular se constrói uma narrativa de igualdade e justiça dentro de um contexto que abrange muitas particularidades, não retratadas de maneira imparcial pelas grandes empresas de comunicação. Assim, ao mesmo tempo em que se retorna à concepção de jornalismo como um agente político-social, na luta por condições de expressão de grupos marginalizados, estes meios também juntam-se às inovações tecnológicas e ao valor de uso da informação – como poder simbólico capaz de promover mudanças sociais. E, ainda que utópicas, são o que movimenta as vontades de uma parcela considerável de sujeitos com anseios, necessidades, sonhos: o povo que quer se comunicar. Afinal, vale lembrar o que disse Galeano (2001, p. 230, tradução nossa), quando difundiu a mensagem de Fernando Birri: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.

Referências

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46 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

AFETIVAÇÕES, AMOROSIDADE E AUTOPOIESE: SINALIZADORES PARA NARRATIVAS SENSÍVEIS DE DESTINOS TURÍSTICOS, EM PERSPECTIVA ECOSSISTÊMICA

Maria Luiza Cardinale Baptista

Pistas iniciais sobre o encontro de trilhas e sinalizadores Estamos na estação de embarque. Olho em volta e resolvo apresentar elementos da bagagem, preparada para a ‘viagem-texto’. É o convite a um primeiro olhar, que pode ajudar a compreender o caminho, o percurso das reflexões. Assim, como pistas iniciais entrelaçadas, trago: ações que acionam os afetos (afetivações); atitude (ato no todo) que promove o amor, em sentido amplo, como ética da relação, do cuidado (amorosidade); movimento de reinventar-se, autoproduzir-se, autopoietizar- se (autopoiese). Visão ecossistêmica: ampliação do olhar, para o sistema da vida, em teia, em entrelaçamentos muitos. Vamos em frente. Paro e penso que essa é uma bagagem potente e, para mim, é quase óbvia, considerando as opções do caminho, como comunicadora, educadora, pesquisadora, cientista, em perspectiva transdisciplinar ecossistêmica, percorrendo, especialmente, os platôs (planos de intensidade contínua) de conhecimento, conhecidos como Comunicação, Turismo e Subjetividade, nesses mais de 30 anos. Nesses ‘per-cursos’ todos, eu me interesso por afetos, pelo que afeta o sujeito. Assim, me interesso por pessoas e por elas tenho vivido, buscando aproveitar o conhecimento produzido, para gerar um mundo mais amoroso, mais cuidador, mais ético, pautado pelo desejo de acolhimento. Também me interesso por criar condições de reinvenção todos os dias, porque assim fui desafiada, como sujeito do mundo da vida, desde as minúcias da vida pessoal, passando pela experiência profissional de jornalista, educadora e cientista ecossistêmica. Talvez, por isso mesmo, eu tenha sido ‘tocada intelectual e afetivamente’ pelo conceito de autopoiese, de Humberto Maturana e Francisco Varela (1998; 1997), e tenha percebido que ele traz, como matriz, sinalizadores de vida, de pulsação, e de potência, na inscrição e no movimento desterritorializante. Desse modo, o conceito se torna interessante para a reinvenção do sujeito que produz as narrativas, para as narrativas, em si mesmas, também para mim, pesquisadora e produtora de narrativas e desterritorializações desejantes em campos de saberes. Em síntese, penso que há 47 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares que se reinventar as produções e os modos de produção de narrativas, abordadas aqui, mais especificamente, na reflexão sobre as narrativas sensíveis, ligadas a destinos turísticos. A partir do conceito de autopoiese, penso que isso só é possível, como algo resultante do cultivo do entrelaçamento, no sistema, nos ecossistemas, bem como de aberturas para a sensibilidade, para os universos incorporais a-significantes, de que nos fala Guattari (1992), o mundo do inarticulado, tão fortemente discutido por Anton Erenweig (1977), no texto Psicanálise da Percepção Artística. Além disso, venho propondo refletir essa autopoiese, como potência de acionamento da condição inscriacional, termo que inventei, em discussões sobre processos de escrita, referindo- me à possibilidade de inscrever, criar e acionar campos de possibilidades (BAPTISTA, 2000). É a própria narrativa, fazendo fluir potências existenciais, do sujeito, do destino turístico, das tramas existentes entre eles. Tramas expressivas que são entregues, em potência relacional, ao receptor das narrativas. Dizendo isso, também afirmo que meu olhar e minhas produções resultam da compreensão do que Capra (1997) chamou de A Teia da Vida, quando, em texto clássico, retoma o percurso de desenvolvimento da visão sistêmica e oferece substrato teórico conceitual para a compreensão e produção de uma Ciência Holística e do Movimento, como eu chamo, na perspectiva da Ecologia Profunda, proposta pelo filósofo norueguês Arne Naess, no início da década de 1970, e que me foi apresentado por Capra (1997). Naess fez a distinção entre ecologia rasa e ecologia profunda, propondo o abandono do caráter antropocêntrico da ecologia rasa, e a consideração de dimensões mais profundas, na produção do conhecimento, a respeito dos mais diferentes fenômenos. Capra explica: “A percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza [...]” (p.25). Mais adiante, o autor sintetiza: “A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular da teia da vida” (p.26). À teia da vida está associado o meu pressuposto conceitual ‘trama’, que vem transversalizando meus estudos, desde 1996, expressando que se tratam de estudos transdisciplinares, na perspectiva da complexidade ecossistêmica. A propósito, escrevo também desde uma ‘teia da vida’ marcada profundamente pelos saberes amazônicos1, da Floresta Amazônica, pela experiência de ter vivido a oportunidade de me fazer também um pouco amazônida, pelo cultivo de laços e en- trelaços, desde 2010, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Desde uma pri- meira palestra, naquele ano, sobre as minhas produções em Metodologia da Pesquisa – a concepção de paixão-pesquisa, a amorosidade na pesquisa, a estratégia metodoló- gica Cartografia dos Saberes – entendi que a ideia que vinha difundindo, no sentido de que fazer pesquisa é fazer uma viagem na floresta, era uma potente metáfora, não só para as minhas produções e orientações de pesquisa, mas também para a produção de

48 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares textos jornalísticos, para a Viagem mesma, em sentido amplo. Na UFAM, desenvolvi Oficinas de Escrita Científica como Narrativa de Viagem, com vários programas de Pós-Graduação - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia. A partir dessas reflexões iniciais sobre ‘a bagagem’, convido para o percurso, propriamente dito. Trata-se, aqui, de refletir sobre incursões em trilhas conceituais - afetivações, amorosidade e autopoiese – que proponho como sinalizadores, para narrativas sensíveis de destinos turísticos, em perspectiva ecossistêmica. A ideia é ir percorrendo as trilhas e compartilhando os achados, às vezes miudezas conceituais e reflexivas, sinalizadoras do percurso, resultado dos encantos de quem aprendeu a valorizar detalhes e referir bonitezas das incursões teóricas. Conceitos têm sido parceiros existenciais, para mim, que dialogam com meus silêncios internos e ajudam a pensar a vida, o tempo, a Comunicação, o Turismo, os entrelaços subjetivos, o ecossistema. Assim, sigo. Esse percurso narrativo de reflexões produzidas traz pistas que emergiram das pesquisas que venho realizando no Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade, da Universidade de Caxias do Sul (PPGTURH-UCS), no grupo que coordeno, o Amorcomtur! Grupo de Estudos em Comunicação, Turismo, amorosidade e Autopoiese. Também resulta dos projetos desenvolvidos na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), como pesquisadora sênior no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCCOM), como professora colaboradora e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia (PPGSCA). Da UCS, ressalto alguns projetos: Desterritorialização Desejante em Turismo e Comunicação: Narrativas Especulares e de Autopoiese Inscriacional (2013) – contemplado pelo edital universal CNPq; Amorcomtur! Usina de Saberes Luso- Brasileiros. ‘Com-versar’ viagens investigativas interculturais, a partir do acionamento de amorosidade e autopoiese nas rodas de conversa, como dispositivo de afetivação para a pesquisa - UCS-UFAM-UFRN/UC (2015) – este contemplado no edital UCS/ SANTANDER, para intercâmbio com a Universidade de Coimbra; Trama Amorcomtur! Complexos processos comunicacionais e subjetivos, que potencializam o turismo, considerados sobre o viés da amorosidade e autopoiese (2016); Ecossistemas Turístico- Comunicacionais-Subjetivos: Sinalizadores teórico-metodológicos, no estudo de ecossistemas turístico-comunicacionais-subjetivos, considerados a partir de sua característica ecossistêmica, caosmótica e autopoiética (2018 – em desenvolvimento), bem como o Projeto Internacional do Amorcomtur! intitulado: ‘Com-versar’ Amorcomtur - Lugares e Sujeitos! Ações investigativas e narrativas marcadas por amorosidade e agenciadoras de autopoiese (2018 – em desenvolvimento), envolvendo sujeitos em processos de desterritorialização, em diversos países – Brasil, Espanha, Portugal, Itália, México, Colômbia e Egito. Bem, vamos às trilhas!

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Trilha 1 – Afetivações, como acionamento de energia-corpo afetivo Iniciamos, então, pela trilha ‘afetivações’, com uma insubordinação inscriacional, já que venho tratando o termo como afetiv(ações), o que, para mim, o torna autoexplicativo, quase óbvio, para o encontro de sinalizadores, como dispositivos interessantes para narrativas sensíveis de destinos turísticos, em perspectiva ecossistêmica. Assim, afetiv(ações) são ações que afetam, que tocam os afetos. Lembro-me, neste momento, de expressão que li associada à ‘narrativa’ e que sintetiza o que eu penso. Em texto de Muniz Sodré (2006), ele se refere à narrativa como ‘a tradução da experiência vivida’ (2006, p.90). A expressão me parece interessante, especialmente, para pensar narrativas de viagem, em que se tem a experiência vivida no movimento de desterritorialização. Assim, a narrativa ‘narra e ativa’, tratando-se, portanto de ativação de contar, a ação de ativar movimento. Reflito também sobre o caráter subjacente e entrelaçado ao termo, no contraponto de ‘tradução’ e ‘traição’. Então, penso que quem narra traduz e trai a experiência vivida, em certo sentido. Traduz porque representa, cria corpos e materialidades representativas, mas trai, porque vão existir, sempre, níveis profundos, que se escapam às possibilidades de inscrição do que foi narrado. Assim, podemos pensar em narrativas que combinam signos estéticos, elementos representacionais carregados de intensidades. Vale lembrar, contudo, que que intensidades são derivativas, se escapam, dissipam a partir de ‘nós de confluência e de passagem’, para lembrar Prigogine (2001). Há algo que se escapa nesse processo dissipativo das narrativa e que se espera sejam elos que retornam, ritornelos, no dizer esquizoanalítico. (GUATTARI; DELEUZE, 1995) Para refletir sobre afetivações, vamos avançar um pouco com Muniz Sodré (2006, p.90):

[...] a particularidade do signo estético é a pluralidade do sentido, a polissemia, que justifica tanto a abertura do sentido (a possibilidade de a obra mudar de significação, ao longo do tempo) como a relação mutável com o mundo externo. Nesta relação, o signo estético funciona com signo de “comunicação”, abrindo- se para uma semântica do imaginário coletivo, presente na ordem das aparências fortes ou formas sensíveis que investem as relações intersubjetivas no espaço social. O estético – melhor ainda, o “estésico”, para se desembaraçar a estética da tradição filosófica do julgamento de obras de arte ou mesmo industriais – aparece aí, então, como o conteúdo afetivo da vivência cotidiana.

Nesse sentido, parece interessante pensar em afetivações, expressão que venho utilizando há alguns anos, para me referir a ações que acionam os afetos, transversalizadas de intensidades e geradoras de energias, capazes de mobilizar os sujeitos. Afetos são definidos por Sodré (2006, p.25), como “energia psíquica que se deixa ver nas diferentes modulações da tensão no corpo”. Interessante, nesse sentido, especialmente, o momento da discussão apresentada por esse autor, quando ele dialoga com o pensamento de Spinoza e Deleuze. Do primeiro, traz a relação de afeto com afecção: “Entendo por paixões (affectus) as afecções (affectiones) do corpo que

50 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares aumentam e diminuem a potência de agir”. Com Deleuze, Sodré salienta a diferença entre afecção e affectus, destacando, na fala de Deleuze (2002 apud SODRÉ, 2006, p.28), que este último conceito “[...] implica tanto para o corpo quanto para o espírito um aumento ou uma diminuição da potência de agir”. Seguimos, um pouco mais, com Sodré (2006, p.28):

Deste modo, sendo a affectio um estado de corpo afetado por outro presente, e o affectus, uma passagem de um estado a outro, são diferentes as afecções-imagens ou ideias dos afetos-sentimentos. O afeto supõe uma imagem ou uma ideia, mas a ela não se reduz, por ser puramente transitivo e não representativo.

Essas reflexões são interessantes para ajudar a compreender o que venho chamando de afetiv(ações), como o conjunto de ações que acionam os afetos, affectus, ou seja, a energia de potência de agir, envolvendo não só o corpo, mas o todo do sujeito. Na perspectiva esquizoanalítica, corresponde, também, a pulsações do que Rolnik (1986) chama de corpo vibrátil do sujeito, que, por sua vez, extrapola, em muito a materialidade corpórea. Corpo vibrátil não é, portanto, somente o corpo físico, mas a trama de energias em pulsação e movimento, que constituem o sujeito, levando-o, desse modo, à produção de vida, às produções que o provoquem continuamente a continuar produzindo. Em alinhamento ao substrato teórico esquizoanalítico, afetiv(ações) são o próprio agenciamento de forças e fluxos, que proporcionam intensidade, renovando a potência dos territórios existenciais e, ao mesmo tempo, dos universos de referência incorporais, das linhas de fuga, dos fluxos de renovação da vida. Ao longo dos últimos anos, venho propondo o conceito afetiv(ações) desterritorializantes, para pensar o Turismo, a partir da contribuição dos meus estudos relativos ao que chamo de Trama Comunicacional e Subjetiva (BAPTISTA, 2000). A exemplo do que ocorre com a Comunicação Social, o Turismo também é um campo ‘minado’, como eu tenho dito, marcado pela dureza do que Harvey (2005) chama de o capitalismo por espoliação. Nesse sentido, também é alvo de bombardeio de críticas duríssimas, especialmente expressas na expressão ‘turistificação’. Interessa-me, então, propor reflexão sobre esse campo de conhecimento e vivências, buscando contribuir para a construção de perspectiva mais amorosa e autopoiética. Minha origem do ‘mundo’ da Comunicação, mais especificamente do Jornalismo, me provoca a tentar entender quais narrativas podem acionar os afetos, ou seja, produzir mobilizações afetivas, marcadas por amorosidade, no caos contemporâneo, marcado pela lógica desterritorializante, dissipativa, efêmera e mutante, que caracteriza os fluxos informacionais e os deslocamentos vários de seres humanos. E mais, quais os sinalizadores de narrativas de destinos turísticos, que podem ser interessantes para os diversos sujeitos envolvidos, as pessoas do lugar, as pessoas que se deslocam e, em sentido mais amplo, para o ecossistema todo. A associação com os conceitos de amorosidade e autopoiese, nesse sentido, como sinalizadores, me ajuda a pensar na potência de campos, que podem, eles próprios, ser

51 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares sinalizadores de outro tempo, mais voltado para a ética da relação e a emergência de vislumbres de enfrentamento para a situação caosmótica e de barbárie contemporânea.2 Trata-se, então, de pensar as narrativas, como registros da intensidade experiencial vi- vida nas desterritorializações, e, desse modo, potencializar essas duas áreas – Comuni- cação e Turismo -, tanto do ponto de vista da produção de conhecimentos, quanto do de qualificação de suas produções, propriamente ditas.

Trilha 2 - “Amar la trama” - amorosidade como laço ecossistêmico Neste ponto do texto, surge em minha mente o verso de Jorge Drexler: “Amar la trama más que el desenlace”, de sua canção intitulada “Trama e desenlace”. O verso tem me ajudado a falar sobre o amor e a trama ecossistêmica. Na singeleza e intensidade da sua poesia, a canção ensina sobre a importância de valorizar os entrelaçamentos, mais que os desenlaces, as rupturas e separações. É assim na vida, é assim na compreensão do Turismo, da Comunicação e das narrativas sensíveis de destinos turísticos. Vamos avançar: o que pode significar “amar la trama”, aqui, neste texto? Significa primeiro entender o amor, como laço social ecossistêmico. O amor como a emoção que aciona afetos e entrelaça, funda o social e, nesse sentido, potencializa vida em comum, em valorização e acionamento de produção do ecossistema, da teia da vida.3 Considero a amorosidade um sinalizador para a produção de narrativas sensíveis da destinos turísticos, porque o conceito remete a um tipo de sensibilidade e à atitude ética de respeito ao Outro, às diferenças, bem como ao investimento na convivência. Segundo Maturana (1998), o amor é o reconhecimento do outro como legítimo outro na convivência e, por isso mesmo, se constitui na base constituidora dos laços sociais. Assim, recomendo, para a produção de narrativas turísticas, ter como base o pressuposto amoroso, que ensina a respeitar o outro e a investir na convivência, como modo de consolidar laços e de valorizar as condições de interação (BAPTISTA, 2012). A perspectiva ecossistêmica, por sua vez, convida a compreender que esse Outro não é só o outro humano. Como eu venho dizendo nos meus estudos, desde os anos de 1990, ‘o outro é tudo o que é não eu’, ou seja, tudo o que escapa a essa singularidade expressa na materialidade constituidora do si mesmo, mas que representa uma trama de energias, de agenciamentos e potências, que eu chamo de trama subjetiva. (BAPTISTA, 1996) Então, na perspectiva trama, o sujeito que narra é, ele mesmo, uma trama subjetiva, que interage com ‘universos-trama’ (ecossistemas) de destinos turísticos. Esses universos são constituídos, também, pela complexidade ecossistêmica, em que se entrelaçam sujeitos os mais diversos, não só humanos, animais ou vegetais, nem não só materiais, mas também aqueles que se escampam às materialidades. Por isso mesmo, a amorosidade, como atitude ética constituidora de laços, é também referência para a emergência de sensibilidade, no sentido de compreender os liames (também) invisíveis, que são constituidores da ‘alma’ dos destinos turísticos, expressão que tem referência em texto muito interessante, na área do Turismo,

52 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares intitulado A alma do lugar. (YAZIGI, 2001) Assim, é importante refletir que ninguém produz narrativas turísticas, se não se despe um pouco das cristalizações constituidoras do si mesmo, das idiossincrasias inerentes ao seu universo de referências, aos seus territórios de origem. Narrar lugares e sujeitos implica, necessariamente, misturar-se, lambuzar-se com o gosto do outro, dos outros sujeitos, lugares, existências, energias constituidoras do ecossistema todo. Vale aqui, nesse sentido, a fala de Francesco Idotta: “Quem não viaja não muda perspectiva. Não vira as costas para sua terra, para abrir-se a uma outra... Não pode dimensionar os próprios limites”4. A amorosidade é também um convite à viagem, ao mundo do outro, reconhecendo-o como legítimo, ou seja, como alguém ou algo que tem direito de ser outro, na convivência. Desse modo, a partir desse reconhecimento, vale salientar, também, o investimento na convivência implica a disposição para ‘vivência com’, o que pode enriquecer, muito, a experiência turística. Esse enriquecimento está pensado aqui, especialmente, no sentido de desmonte da lógica da turistificação, contribuindo para que a experiência turística deixe de ser vista, vivida e narrada como uma invasão de territórios alheios, para extravazar energias acumuladas e destruir , fazer o que se quiser, sem compromisso e responsabilidade (como acontece, por exemplo, em muitos casos de desterritorializações de turistas em férias, depois de períodos de ‘aprisionamento’ em seus territórios de moradia fixa, vinculados ao trabalho regrado da engrenagem maquínica capitalística). Assim, narrativas de destinos turísticos, na perspectiva da amorosidade, podem ser produzidas com sensibilidade e acuidade, no sentido de produzir informações e promover afetivações dos receptores, de tal modo a convidá-los ao encontro terno, respeitoso com os destinos. Ao mesmo tempo, tendem a significar o espelhamento dos sujeitos do lugar e o reconhecimento de si mesmos, a partir de suas marcas, seus traços, expressos na trama representacional narrativa. Essa perspectiva parece especialmente interessante, como enfrentamento da lógica produtivista do Capitalismo Mundial Integrado (GUATTARI; ROLNIK, 1986), na suposta “evolução” de um modelo de trocas e relações produtivas, que chegou à condição de ser denominado de “capitalismo por espoliação” (HARVEY, 2005). Como eu disse antes, Comunicação, Jornalismo e Turismo são campos minados, contaminados pela engrenagem capitalística. Assim, destinos turísticos se preparam maquinicamente para os turistas, muitas vezes, falseando suas próprias características, em busca de consolidação de apelos mercadológicos, que possam ajudar a ‘vender’ o destino. Em alinhamento a isso, as narrativas jornalísticas que retratam esses destinos, muitas vezes, reiteram as marcas produzidas artificialmente, reforçando estereótipos. O que se o percebe é que o sujeito que narra, em grande parte das situações, não lê o lugar, não vê o lugar, nem o sujeito dali, nem o sujeito turista, muito menos a trama constituidora do ecossistema. Desse modo, não se afeta intensamente pela confluência de traços e energias, que constituem o diferencial desse destino turístico e, assim, fica na superfície, produz narrativas rasas. Desse modo, tantas vezes, gera uma narrativa que produz

53 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares decodificação aberrante (ECO, 1977), distorcendo as leituras e criando pressupostos de imaginário enganosos, a partir dos quais os turistas interagem com os destinos visitados. São vários os pensadores que sinalizam, no entanto, em diversas áreas, a crise, a falência, do modelo com ênfase produtivista a qualquer custo, que espolia, destrói e desconsidera a nossa humana condição e a ecologia em sentido amplo5. Há tempos já se tem claro que há poucas chances de sobrevivência para a humanidade, para o planeta, com a manutenção da lógica evolucionista, racional e objetivista da Ciência Clássica e dos modelos produtivos também mecanicistas. Em várias áreas do conhecimento, vai surgindo a consciência de necessidade de outras práticas relacionais, dos sujeitos entre si, dos sujeitos com o trabalho, com o consumo, com o lixo, com o ambiente em sentido amplo, dos sujeitos com o turismo e os destinos turísticos. Nesse sentido, emerge também importância dos entrelaços, a compreensão do amor, de forma mais ampla e relacional e a produção de narrativas afetivantes, amorosas e autopoiéticas. Maturana explica:

O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. [...] Sem a aceitação do outro, não há fenômeno social (MATURANA, 1998, p. 23-24).

Sem amor, não há aceitação do outro como outro, também não há narrativas sensíveis de destinos turísticos. Falo aqui, portanto, do pressuposto amoroso, como ética da relação. Como exemplo, nesse sentido, costumo dizer que não é possível visitar a cidade de Salvador, capital do estado da Bahia, no Brasil, imaginando o município de Gramado, no Sul do País, porque são ecossistemas muito diferentes, com tramas de traços e energias diferenciadas, que não se comparam. Igualmente, não se produz narrativas sobre esses destinos turísticos, sem aberturas de sensibilidade amorosa, que implique em respeito ao ecossistema em questão. Assim, é preciso ‘amar la trama’ ecossistêmica de cada destino, de cada lugar, mais que o ‘desenlace’ (o que separa, diferencia, desconecta). Os lugares não se comparam. Eles têm sua própria alma, sendo que ela também se transforma um tanto, com nossa presença e passa a ter um pouco de nós. Quando escrevo isso, penso na minha relação com Granada, Espanha, por exemplo. Todas as vezes que produzo uma narrativa sobre Granada, sinto e sei que essa narrativa expressa Granada, mas também inscreve um pouco da alma da Maria Luiza em Granada, como se a cidade fosse transversalizada por mim e eu por Granada, pela mescla de histórias de uma e outra. Lembro-me, então, Buber, em seu texto clássico, Eu-Tu, quando fala do encontro com a árvore e diz:

[…] pode acontecer que simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao observar a árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela já não é mais um ISSO. A força de sua exclusividade apoderou-se de mim. […] A árvore não é uma impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta “em pessoa” diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela. (BUBER, 1974, p.8-9)

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Assim, proponho a amorosidade como sinalizador, na produção de narrativas de destinos turísticos, como atitude ética, que convida quem narra a se ver em relação ao destino turístico, ao mesmo tempo em que procura aberturas de sensibilidade para compreender e respeitar o ecossistema do lugar. Desse modo, a partir disso, é possível buscar elementos constituidores da trama narrativa, amorosa, respeitosa e ética. Os destinos turísticos também não devem ser considerados um ‘isso’, para serem sentidos e narrados como o resultado da trama de olhares e de vínculos existenciais, entre os universos existenciais que se encontram, no turismo e nas narrativas. Por isso, entendo que as escolhas sobre o que dizer, como dizer, que materialidades narrativas reunir para representar os destinos turísticos devem passar, antes de tudo, pelo filtro de amorosidade. Compreendo as narrativas relacionadas a destinos turísticos como narrativas de viagem. Ademais, ressalto que venho discutindo a interface da Comunicação com o Turismo, buscando os nós de confluência, os traços comuns, os semas diferenciadores. Nesse sentido, defendo a metáfora da viagem, como algo que transpassa os campos de saberes e fenômenos, transversalizando-os. Mais que isso, reconheço-a como a metáfora potente, para processos de vida e produção (também a produção da Ciência). Aos poucos, parece-me que ‘tudo é uma viaaagem’, como dizem os jovens, mas isso é algo sério, complexo e desafiador. Assim, a própria comunicação e a produção de narrativas envolvem processos que acontecem, efetivamente, no encontro de corpos subjetivos, corpos sem órgãos, na linguagem esquizoanalítica, no entremear-se, na conjunção significacional. Para que sejam empreendidos processos comunicacionais com qualidade, narrativas interessantes, é necessário que exista uma espécie de “contrato amoroso”. É preciso querer “estar no outro”, viajar para o território existencial do outro, entregar-se, a tal ponto de misturar-se e apreender um pouco dos seus universos de referência incorporais. Assim, é necessária a predisposição de abandonar-se, como território predefinido, em “viagem”, em direção ao Outro – seja a outra pessoa, a sociedade, o outro lugar, o ecossistema. Percebe-se que a trama de amorosidade constitui-se na confluência de universos existenciais – tramas subjetivas em deslocamento, tramas subjetivas do lugar, trama ecossistêmica resultante dos encontros múltiplos. Como trama ecossistêmica turística, compreendo processos complexos de desterritorializações desejantes, envolvendo o acionamento e entrelaçamentos de diferentes ecossistemas. O sujeito que se desloca é também sujeito de transposições e transversalizações ecossistêmicas, que agencia a movimentação e conexão de mundos, de universos de significações, de referências, de produção e consumo. Desse modo, aciona uma teia de materialidades e imaterialidades, desde as potentes tramas econômico-político-sociais-culturais e de prestação de serviços, até os subjacentes fluxos de energias das partículas, de acionamento quântico, que atinge tambémos níveis de afetos. Com o turismo, tudo se movimenta e se transforma, ao mesmo tempo que o movimento de desterritorialização, em si, autopoietiza (reinventa) sujeitos e

55 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares lugares, das dimensões ecossistêmicas envolvidas. Meu pressuposto conceitual de trama e o referencial da Esquizoanálise convidam a refletir sobre as narrativas, como sendo marcadas pela heterogênese, pelo caos, também pelas explosões transmidiáticas, de confronto de universos referenciais. Entendo que a potência está na inscrição diferenciada e sensível, afetivante, nos acionamentos afetivos desterritorializantes e reterritorializantes. Marcas que vão sendo produzidas a partir de ritornelos, elos que retornam e entrelaçam os sujeitos. (GUATTARI, 1992) Essa inscrição, por sua vez, a que marca, que toca os afetos, ocorre com o acionamento desejante e especular (de produção de espelhos, com potência de que os sujeitos e lugares se ‘re-conheçam’), e se qualifica com amorosidade plena, que é geradora de confiança. Ressalto aqui a importância de geração dos laços de confiança e sua potência. Vale citar, por exemplo, estudo muito interessante, de George Akerlof e Shiller (2009), no livro intitulado “O espírito animal: como a psicologia humana impulsiona a economia e sua importância para o capitalismo global”. Os autores resgatam as teorias econômicas de Keynes e explicam que os grandes acontecimentos econômicos da humanidade ocorreram em conexão direta com o sentimento de confiança ou desconfiança. Afirmo, nesse sentido, que o amor, a condição amorosa, aumenta a potência do acontecimento comunicacional, das narrativas de destinos turísticos e, nesse sentido, a potência dos ecossistemas turísticos, com seus múltiplos sujeitos. Isso decorre do fato de que, nas condições de reconhecimento do outro, como legítimo outro na convivência, tende-se a construir cumplicidades nos processos de significação. Desse modo, na sua lógica de acolhimento mútuo – não necessariamente aceitação ou concordância –, essas cumplicidades contribuem para maior entendimento e afetivação mútua, de tal modo a gerar autopoiese dos sujeitos envolvidos. Vamos então para última trilha.

Trilha Autopoiese – a reinvenção dos sujeitos e dos ecossistemas turísticos Autopoiese. Autoprodução. Acionamento de potência de reinvenção. O conceito de autopoiese está no título do grupo de estudos que coordeno, o Amorcomtur. Foi criado por Humberto Maturana e Francisco Varela, mais atribuído a Maturana, mas bastante trabalhado pelos dois autores, em textos basilares, ainda hoje referência para muitos estudos derivados do seu pensamento (MATURANA; VARELA, 1997). Destaco o fato de que a autopoiese, para os autores, diz respeito ao que é essencial do vivo, do ser vivo. A propósito, parece que é esta a questão inerente ao conceito: como ‘sobreviver’? Desde os estudos da célula, os biólogos ofereceram o conceito como matriz metafórica. Muita discussão tem gerado a sua transposição para outros campos, mas considero importante lembrar que a palavra, como signo, carrega em si matrizes de significação sem propriedade totalitária, quer dizer, ninguém é dono absoluto da palavra dita, embora se deva referenciar quem disse primeiro. Depois disso, a palavra ganha mundo e vai sendo ressignificada, ressentida, ressemantizada. Assim, a palavra

56 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares autopoiese, nos meus textos, mantém a origem em Maturana, dialoga com o conceito de máquinas autopoiéticas da Esquizoanálise, especialmente em Guattari, para pensar que a matriz significacional, o grau zero de significação, para mim, está na potência de autoprodução e reinvenção no sistema, ou seja, em entrelaçamentos. Essa matriz, pelo que percebo nos meus estudos, pode ser associada a muitos ecossistemas e processos produtivos, como a produção de narrativas de destinos turísticos. Assim, o sujeito que produz narrativas sensíveis de destinos turísticos se reinventa, ao mesmo tempo que reinventa os lugares, ‘re-presenta’, ‘re-apresenta’ esses destinos em uma produção materializada, em verso, prosa, fotografia, audiovisuais, em tramas convergentes que podem ser disponibilizadas por diversos territórios maquínicos midiáticos. É interessante a definição dos autores:

Um ser vivo não é um conjunto de moléculas, mas uma dinâmica molecular, um processo que acontece como unidade separada e singular como resultado do operar e no operar, das diferentes classes de moléculas que a compõem, em um interjogo de interações e relações de proximidade que o especificam e realizam como uma rede fechada de câmbios e sínteses moleculares que produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem, configurando uma dinâmica que ao mesmo tempo especifica em cada instante seus limites e extensão. É a esta rede de produção de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a produziu e ao determinar sua extensão como um ente circunscrito, através do qual existe um contínuo fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de participar nessa rede, o que neste livro denominamos autopoiese. (MATURANA;VARELA, 1997, grifos meus)

Há aqui algumas pistas que fazem do conceito autopoiese um ponto de confluência gerador de sinalizadores para a produção de narrativas sensíveis sobre destinos turísticos. Primeiro, o fato de reconhecimento de uma dinâmica molecular inerente aos processos de vida, resultado do operar e no operar, das diferentes classes de moléculas que a compõem. Isso implica na percepção de ênfase na interação intensa, em processos de operar, pode-se dizer em procedimentos operacionais, em movimento de produção, dos múltiplos e diferenciados sujeitos envolvidos (no conceito de Maturana, classes de moléculas). Maturana e Varela referem, então, a uma rede fechada de câmbios e sínteses moleculares que produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem, assim como falam em dinâmica de produções. A lógica, então, é a do movimento, do operar junto, no interjogo de interações e relações de proximidade. Tudo em conexão, no processo. Inspirada em Maturana, eu tenho me referido à autopoiese como a reinvenção de si, que se faz no encontro, no entrelaçamento, nas redes de afetos e vínculos, no ‘refazendo’, no processo de vivenciar o ‘estar junto’, a convivência. Assim, como processo, a autopoiese é uma das marcas das produções narrativas, porque elas são inscriacionais. O sujeito que escreve se inscreve, cria e aciona devires. Isso também

57 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares entrelaça outros sujeitos e, mais que isso, as tramas ecossistêmicas de lugares e sujeitos (em sentido amplo, não só humano, não só materiais).

Quem conta um conto, aumenta um ponto... hora do desembarque Este texto não é o início e tampouco se finaliza. Ele resulta de vivências, pesquisas, inscrições e conversas de há muito tempo, com autores, lugares e sujeitos. Percebo que estou, eu mesma, a ‘com-versar’ lugares e sujeitos, quando coloco em diálogo pensamentos vários e aciono minhas narrativas internas, dos mergulhos profundos nos textos acadêmicos e das viagens tantas produzidas, em movimentos desteritorializantes, em deslocamentos geográficos, mas também nas viagens investigativas, minhas e de meus orientandos. Assim, o que tem sido possível é compartilhar esse linguajear produzido em processo, tentar avançar e amadurecer a fala, para oferecer frutos mais doces, eles também, amorosamente produzidos e resultados de autopoiese desta que narra (que tenta), para compartilhar as viagens de conhecimento. Afetivações, amorosidade e autopoiese são sinalizadores e princípios que orientam minhas produções, minhas narrativas científicas – também a minha vida, em sentido amplo. Apresento como proposições, buscando oferecer pistas da conversa mais profunda, que me tem possibilitado compreender os ecossistemas turístico- comunicacionais-subjetivos e defender modos de entrelaçamentos e enfrentamento das rajadas de bombardeios cotidianos. Se entendemos, hoje, que as narrativas criam realidades paralelas6, defendo, como profissional da Comunicação, cientista da interface Comunicação-Turismo-Subjetividade, que possamos valorizar a ‘trama’, mais que o desenlace, como princípio, e fazer isso como forma de reinventarmo-nos, todos, na produção, na vivência, no estudo desses fenômenos. Como tenho dito, nesses tempos de caos, nós só temos uns aos outros. Enfim, por ora... chegamos ao desembarque. Até a próxima (o próximo encontro-viagem-texto)!

Notas ______1 Muitos textos produzidos pelos pesquisadores da UFAM ajudaram a compreender a perspectiva e a reconhecer a aproximação dos meus estudos. Destaco aqui, apenas alguns livros: Comunicação Midiatizada na e da Amazônia, organizado por Maria Ataide Malcher, Netília Silva dos Anjos Seixas, Regina Lúcia Alves de Lima e Ota- cílio Amaral Filho (2011); Estudos e perspectivas dos ecossistemas comunicacionais, organizado por Gilson Vieira Monteiro, Maria Emilia de Oliveira Pereira Abbud e Mirna Feitoza Pereira (2011); Processos Comunicacionais. Tempo, Espaço e Tecno- logia, organizado por Claudio Manoel de Carvalho Correia, Ítala Clay de Oliveira Freitas, Maria Emília de Oliveira Pereira Abbud e Maria Sandra Campos (2012); Co- municação: visualidades e diversidades na Amazônia, organizado por Netília S. dos

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Anjos Seixas, Alda Cristina Costa, Luciana Miranda Costa (2013). 2 Muito interessante, nesse sentido, o documentário ENCRUZILHADAS: Dores de Parto de Uma Nova Visão Mundial (CROSSROADS: Labor Painsof a New Worldview). Direção: Joseph Ohayon, 2012. 63’58’’. Disponível em: . Acesso em 27 nov. 2017. 3 Costumo dizer que falo do amor, em relação à Ciência, e não estou sozinha; muito pelo contrário, estou bem acompanhada - Edgar Morin (2003), Ilyia Prigogine (2001), Humberto Maturana (1998), Luís Carlos Restrepo (1998), para citar apenas alguns autores. 4 Tradução livre do original: “Chi non viaggia, non muta prospettiva, non volge le spalle alla sua terra per aprirsi a un’altra... non può misurare i propri limiti.” (F. Idotta). Disponível em: http://johell.altervista.org/autore. php?id=Francesco%20Idotta. Acesso em 10 fev.2017 5 Interessante, nesse sentido, a perspectiva de Martinez-Alier (2007), com os ciclos do movimento ambientalista e a noção de Justiça Ambiental, que representa um avanço em relação ao chamado desenvolvimento sustentável, que prevê o estabelecimento da correlação de valor, para o ambiente, visando a sua preservação para as gerações futuras. 6 Uma das demonstrações do interesse e relevância mundial da temática está no fato de que a DARPA, agência ligada ao Exército norte-americano vem promovendo estudos aprofundados sobre narrativas e neurociência, por entender que a consolidação de narrativas midiáticas no cenário internacional pode interferir em decisões macro, relacionadas aos conflitos e à reconfiguração geopolítica internacional. Suas lideranças defendem que as narrativas criam a sensação de realidade, a tal ponto que interferem em inflexões de governos, grandes corporações econômicas e significativos contingentes humanos. (GALLARDO, 2011)

Registros de entrelaços de conhecimento (referências) AKERLOF, George A.; SHILLER, Robert J.. O espírito Animal: como a psicologia humana impulsiona a economia e sua importância para o capitalismo global. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. BAPTISTA, M. L. C.. . Ecossistemas Turístico-Comunicacionais-Subjetivos: Sinalizadores teórico-metodológicos, no estudo de ecossistemas turístico- comunicacionais-subjetivos, considerados a partir de sua característica ecossistêmica, caosmótica e autopoiética . Projeto de Pesquisa. Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul. 2018. BAPTISTA, M. L. C.. Trama Amorcomtur! Complexos processos comunicacionais e subjetivos, que potencializam o turismo, considerados sobre o viés da amorosidade e autopoiese . Projeto de Pesquisa. Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul. 2016. BAPTISTA, M. L. C.. ‘Com-versar’ Amorcomtur - Lugares e Sujeitos! Ações

59 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares investigativas e narrativas marcadas por amorosidade e agenciadoras de autopoiese, envolvendo sujeitos em processos de desterritorialização, em diversos países – Brasil, Espanha, Portugal, Itália, México, Colômbia e Egito. Projeto de Pesquisa. Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul. 2015. BAPTISTA, M. L. C.. Desterritorialização desejante em Turismo e Comunicação: Narrativas Especulares e de Autopoiese Inscriacional. Projeto de Pesquisa. Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul. 2013 BAPTISTA, M. L. C.. Jornalismo Amoroso. Quem quer (a)provar?. REBEJ – Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo. Ponta Grossa, v.1, n.9, p. 93-118, jan. a jun. 2012. BAPTISTA, M. L. C. O sujeito da escrita e a trama comunicacional. Um estudo sobre os processos de escrita do jovem adulto como expressão da trama comunicacional e da subjetividade contemporânea. 2000. 440. fls. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. BAPTISTA, M. L. C. Comunicação: Trama de Desejos e Espelhos. Canoas: ULBRA, 1996. BUBER, Martin. Eu e Tu. 2a edição revista. São Paulo: Moraes, 1974. EHRENZWEIG, A. Psicanálise da Percepção Artística: Uma Introdução à Teoria da Percepção Inconsciente. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977. CAPRA, F. A Teia da Vida. Uma Nova Compreensão dos Sistemas Vivos. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1997. CORREIA, C. M. de C.; FREITAS, I.C.de O; ABBUD, M.E. de O.P; CAMPOS, M.S. 2012. Processos Comunicacionais. Tempo, Espaço e Tecnologia. Manaus: Valer, Edua, Fapeam. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1990. ENCRUZILHADAS: Dores de Parto de Uma Nova Visão Mundial (CROSSROADS: Labor Painsof a New Worldview). Direção: Joseph Ohayon, 2012. 63’58’’. Disponível em: . Acesso em 27 nov. 2017. GALLARDO. M. 211. La neurobiología de las narrativas (o cómo contar historias es crear realidades). Disponível em: http://pijamasurf.com/2011/10/la-neurobiologia-de- la-narrativa-o-como-contar-historias-es-crear-realidades/ . Acesso em 20 jul.2014. GUATTARI, F. 1992. Caosmose. Um Novo Paradigma Ético-Estético. Rio de Janeiro: Ed. 34. GUATTARI, F.; DELEUZE, G.. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. GUATTARI, F . ; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. HARVEY, D. O novo imperialismo. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2005. MALCHER, M.A., SEIXAS, N.S dos A., LIMA, R.L A. de & AMARAL FILHO, O. Comunicação Midiatizada na e da Amazônia.. Belém: Fadesp, 2011.

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MARTINEZ-ALIER, J. O ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2007. MATURANA, R.H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998 MATURANA R. H.; VARELA G., F. J. De máquinas e seres vivos: autopoiese e a organização do vivo. 3 ed., Porto Alegre, Artes Médicas. 1997. MONTEIRO, G.V.; ABBUD, M.E de O.P; PEREIRA, M.F. (orgs.). Estudos e Perspectivas dos Ecossistemas na Comunicação. Manaus: Edua, 2011. MORIN, E.. Amor, poesia e sabedoria. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. PRIGOGINE, I. Ciência, razão e paixão. In: CARVALHO, Edgard de Assis; ALMEIDA, Maria da Conceição (org.), Ciência, razão e paixão. . Trad. Edgard de Assis Carvalho, Isa Hetzel. Belém, Pará, Eduepa, 2001. RESTREPO, Luis Carlos. O Direito à Ternura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. ROLNIK, S.. Cartografia Sentimental. São Paulo: Liberdade, 1989. SEIXAS, N.S. dos A.; COSTA, A.C.; COSTA, L.M. Comunicação: Visualidades e diversidades na Amazônia. Belém: Fadesp, 2013. SODRE, Muniz. As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis, Vozes, 2006. YAZIGI, Eduardo. A alma do lugar. Turismo, Planejamento e Cotidiano. São Paulo, Contexto, 2001.

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ROBÔS CONTADORES DE HISTÓRIAS: ANÁLISE DE UM CHATBOT EDUCATIVO

Emílio Sant’Anna Jéssica Santos Martha Lopes Renato Essenfelder

Inteligência Artificial e Narrativas Digitais Interativas (NDI) Os estudos e as aplicações em Inteligência Artificial estão em alta. Nos últimos anos, tanto as aplicações comerciais quanto o interesse acadêmico e do público sobre o tema experimentaram crescimento expressivo. O AI Index Annual Report de 2018, por exemplo, mostra que a quantidade de papers sobre IA em periódicos listados no Scopus cresceu oito vezes entre 1996 e 2017, que a cobertura de mídia favorável a essa tecnologia, em veículos de língua inglesa, aumentou 267% de 2016 a 2018 e que menções ao termo entre legisladores federais nos Estados Unidos, no Canadá e no Reino Unido dispararam nos últimos dois anos (AI Report, 2018). Estudo global da McKinsey & Company publicado em novembro de 2018 mostra que 47% dos respondentes dizem que suas companhias já adotaram ao menos uma solução de IA nos seus processos. Em 2017, esse índice era de 20%. Nenhum dos dois estudos possui um recorte específico para empresas de mídia. Diante desses dados, contudo, é mais do que razoável supor que também elas serão afetadas por tecnologias de Inteligência Artificial nos próximos anos, de maneiras ainda difíceis de prever com clareza. Não estamos considerando nessa afirmação apenas os aspectos econômicos ou relativos ao business do jornalismo. Estamos refletindo também sobre as maneiras pelas quais a IA poderá transformar o modo de contar histórias jornalísticas. Em suma, como a Inteligência Artificial pode contribuir para ampliar as fronteiras do storytelling jornalístico e de não-ficção? Nesse sentido, este artigo analisa o caso de uma aplicação financiada pela Unesco no Brasil em 2018, o chatbot “Fabi Grossi”, considerado um sucesso pela organização, ao alcançar expressivo engajamento de uma audiência jovem. Neste estudo, buscamos mapear o funcionamento do chatbot para entender, a partir da perspectiva do utilizador, quanto da aplicação dependia de recursos tecnológicos sofisticados e quanto dependia de boas técnicas de storytelling, e, além disso, se e de que forma esses recursos poderiam inspirar aplicações jornalísticas.

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Antes de avançarmos, convém primeiro definirmos nosso entendimento sobre o que é a IA e de que maneira essa tecnologia pode dialogar com os estudos narrativos. Cunhado por John McCarty em 1956, o termo Inteligência Artificial (IA) é definido como uma ciência da computação que busca “investigar como fazer com que os sistemas digitais adquiram habilidade em processos nos quais os seres humanos ainda são melhores” (Nunes 2012, p. 1). Sendo assim, os estudos de IA estão relacionados com a aquisição, processamento e manipulação do conhecimento, a exemplo daquilo que os humanos realizam. As contribuições do matemático britânico Alan Turing são consideradas até hoje fundamentais para o desenvolvimento da Inteligência Artificial. Em 1950, Turing propôs um teste que desafiava a capacidade de uma máquina de imitar, de forma convincente, o comportamento do ser humano. No chamado Jogo da Imitação, ou Teste de Turing, um jogador respondia às perguntas de um árbitro que tinha de decidir, após cinco minutos, se o jogador era uma pessoa ou um programa de computador. Em 2014, pouco mais de 50 anos depois, o programa Eugene Goostman passou no Jogo da Imitação de Turing ao conseguir convencer 10 de 30 juízes de que era um adolescente ucraniano, tornando-se um paradigma entre os programas conhecidos como chatbots (Araujo, 2018; Russel, Norvig, 2013). Goostman é apenas mais uma etapa de desenvolvimento na longa história dos chatbots. O primeiro deles foi criado em 1966 no MIT pelo professor de ciência da computação Joseph Weizenbaum. O robô chamava-se Eliza e, simulando um terapeuta rogeriano, que devolve as perguntas ao próprio paciente, era capaz de manter uma conversação com um usuário humano, ainda antes da difusão das telas de computador, por meio de um teletipo conectado a uma das primeiras redes de computadores que se tem notícia. Segundo Murray:

Eliza não foi convincente apenas como uma interlocutora “ao vivo”; ela também foi notavelmente bem-sucedida em seu papel de terapeuta. Para espanto de Weizenbaum, um grande número de pessoas, inclusive sua própria secretária, “solicitaram permissão para falar com o sistema em particular e, depois de conversar com ele por algum tempo, insistiram, apesar das explicações [de Weizenbaum], que a máquina realmente os compreendia”. Mesmo usuários sofisticados, “que sabiam muito bem estarem conversando com uma máquina, logo se esqueciam disso, assim como os espectadores de teatro, dominados pela suspensão da descrença logo esquecem que a ação que estão testemunhando não é ‘real’”. Weizenbaum tinha planejado criar um engenhoso programa de computador e, involuntariamente, acabou criando um personagem verossímil (Murray, 2003, p. 77)

Eliza é o primeiro chatbot de que se tem notícia. Nunes (2012, 3) define chatbots como “programas que simulam uma conversa, como as estabelecidas entre seres humanos, sendo utilizados para fins educacionais, comerciais ou de entretenimento, como um amigo virtual”. O autor explica que esses robôs fazem uso de uma área específica dos

63 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares estudos em Inteligência Artificial: o Processamento de Linguagem Natural (em inglês, conhecido sob a sigla NLP).

Trata-se de um campo interdisciplinar, onde os esforços dos especialistas em Ciência da Computação, somam-se a Linguística e a Psicologia. Seu objetivo e conseguir produzir sistemas capazes de “entender” a linguagem humana, processando-a em tempo real e gerando respostas coerentes. Estes robôs são projetados para que seu interlocutor tenha a experiência de realmente conversar com outra pessoa, imitando, por exemplo, a naturalidade que teríamos durante um agradável bate papo. [...] Por meio de sua base predominantemente associativa, o interlocutor humano tem a ilusão de que o robô tem o domínio dos sentidos do que está sendo conversado. Tal como um bom romance, se bem escrita, a base se faz verossímil (Nunes, 2012, p. 3-4).

Essa habilidade de contar histórias, defendida por Winston (2011) como a linha que separa a inteligência humana da de outros primatas – e também dos computadores – pode ser entendida como um dos grandes objetivos das tecnologias de Inteligência Artificial. É o que também afirma Maturana (apud Primo, 2011, p. 192) ao dizer que a história humana “se dá na dinâmica relacional ao viver em conversações como seres linguajantes”. Murray (2003, p. 9) traduz a narrativa como um dos nossos “mecanis- mos cognitivos primários para a compreensão do mundo”. Segundo a autora, “nós nos compreendemos mutuamente através dessas histórias, e muitas vezes vivemos ou morremos pela força que elas possuem” (idem). Motta (2005, p. 2) reforça que “a partir dos enunciados narrativos somos capazes de colocar as coisas em relação umas com as outras em uma ordem e perspectiva, em um desenrolar lógico e cronológico. É assim que compreendemos a maioria das coisas do mundo”. As formas narrativas acompanham a evolução dos meios de comunicação e ex- pressão e o uso que fazemos das novas tecnologias (Murray, 2007). Assim, se a narra- tiva pode ser entendida, com Medina (2003, p. 47), como uma forma exclusivamente humana de organizar o caos da natureza num cosmos repleto de significado, essa necessidade, que vem desde os primórdios da espécie humana, expande suas possibi- lidades na era digital, em que as narrativas podem combinar características de meios de distribuição massiva com ferramentas que permitem que a história se adapte a cada usuário. É importante ressaltar o verbo: expande. Não se trata, portanto, de fazer terra arrasada do acúmulo de milênios de saberes sobre a arte de contar histórias – desde os mitos atemporais e as considerações de Aristóteles em sua “Poética” (335~323 BC) até as produções contemporâneas. Trata-se, antes disso, de entender de que maneiras o estado da arte da tecnologia e a configuração das sociedades atuais possibilita realizar de modo mais eficiente a missão original da narrativa: transmitir vivências, organizar o caos. Nesse sentido, pretendemos mostrar que a discussão sobre aplicações de chatbots ao jornalismo (e à comunicação social em geral) não deve ser monopolizada pelos aspectos puramente tecnológicos da questão. A introdução dessas ferramentas

64 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares ao conjunto de estratégias narrativas do comunicador não passa apenas por questões de programação, processamento de linguagem natural, aprendizagem de máquina. É, também, uma questão de storytelling. Araújo (2018, p. 3-4) parece concordar com essa perspectiva, ao explicar que o segredo para o chatbot de Eugene Goostman passar no teste de Turing era sua caracterização como personagem em “uma obra de ficção escrita em linguagem de programação”. Para o autor, um chatbot convincente deve ter personalidade, crenças, dúvidas e desejos que sustentem uma narrativa consistente ao longo da conversa.

Tenha em mente que ninguém gosta de conversar com gente chata. Mesmo que seu chatbot passe no teste dando um monte de respostas vagas e ‘profundas’, não fique surpreso se as pessoas enjoarem de conversar com a sua criatura por mais de dez minutos. Ao criar um chatbot, você não escreve um programa, você escreve um romance. Você imagina uma vida para seu personagem desde o início – a começar pela infância dele (ou dela) que vai até o momento presente, conferindo-lhe características pessoais únicas – opiniões, pensamentos, medos, manias. Se o seu chatbot se tornar popular e as pessoas se mostrarem dispostas a falar com ele por horas, dia após dia, talvez você devesse pensar em uma carreira de escritor, ao invés de ser um programador. (ARAUJO, 2018, p. 3-4)

Ao integrar vários fluxos de tecnologia da computação, como visualizações avançadas, processamento natural da fala e agentes autônomos, surgem as Narrativas Digitais Interativas (NDI) para oferecer novos tipos de entretenimento personalizado às audiências do futuro. Definida como “o esforço para desenvolver novas mídias nas quais a apresentação de uma narrativa, e sua evolução, pode ser influenciada, em tempo real, pelo usuário” (Cavazza et al., 2007, p. 1), as NDI se diferenciam das narrativas convencionais ao mudar a linearidade para uma estrutura em que “elementos de história fixos predefinidos pelo autor podem ser organizados, readaptados e moldados continuamente pelo usuário”. Para criar uma experiência relevante para o usuário, os personagens das NDI devem ser “convincentes ao reagir às intervenções do usuário de forma afetiva, social e culturalmente significativa” (Klimmt et al. 2012, p. 190).

Procedimentos metodológicos Considerando que o advento de Narrativas Digitais Interativas (NDI) ainda é bastante recente, não espanta constatar que há pouca literatura científica sobre o tema. Nesse universo, em geral as referências vêm de áreas como a psicologia, a narratologia e o estudo de games, portanto com perspectivas teóricas bastante distintas. Ao estudar duas narrativas interativas digitais, Roth et al (2011) reconhecem que, do ponto de vista que os interessa, isto é, o da experiência dos usuários com as NDI, a modelagem de estudos científicos é “um desafio teórico”. Ao revisar pesquisas naquelas três vertentes – psicologia, narratologia e ludologia – os autores afirmam que a

65 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares conclusão-chave até o momento parece ser a de que:

Provavelmente não há a uma experiência (radicalmente nova) que se possa esperar do uso de um storytelling interativo. Em vez disso, diferentes tipos de experiência do usuário, como o suspense ou a euforia, podem emergir das características específicas de uma dada aplicação. Assim, uma previsão teórica de como pode ser uma experiência de usuário de storytelling interativo é inevitavelmente vaga e carente de melhor elaboração. (Roth et al. 2011, p. 14)

Roth et al trabalham com narrativas ficcionais, porém, como o enfoque de seus estudos é similar ao que ora propomos – ou seja, analisar a narrativa digital interativa sob a perspectiva da experiência do usuário –, buscamos replicar seus procedimentos metodológicos (baseados, por sua vez, em estudos anteriores de Roth, 2009, e de Klimmt, 2010) em nossa análise. O modelo dos autores, elaborado a partir de revisão de literatura e entrevistas com produtores de NDI, prevê que o estudo da peça de storytelling interativo seja dividido em duas etapas compostas por cinco categorias de análise cada uma. Neste estudo, vamos aplicar a primeira etapa, que consiste na determinação dos pré-requisitos de uma experiência significativa, considerando: 1. Usabilidade do sistema (se a interação é fluída, livre de bugs e erros); 2. Correspondência às expectativas (se a interação evita frustração, fazendo ofertas realistas de como o usuário pode intervir na narrativa); 3. Presença (se o usuário estabelece uma relação de pertencimento àquele mundo virtual); 4. Credibilidade dos personagens (se os agentes virtuais da história contribuem para uma experiência coerente e coesa, que não fira a verossimilhança da história); 5. Efetividade (usuários reconhecem quando e como afetaram o mundo da história).

Nossa preocupação será no sentido de avaliar se a narrativa em questão atende aos requisitos mínimos que configuram uma NDI. Em outras palavras, o próprio usuário precisa entender a narrativa como minimamente interativa e envolvente, coesa e fluida, para que a peça seja caracterizada como uma NDI. No desenho desta pesquisa, seguimos o roteiro de Roth et al (2011), com adaptações, para elaborar um estudo exploratório da narrativa interativa do chatbot Fabi Grossi, do Projeto Caretas, desenvolvido em parceria entre a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e a startup argentina Sherpas. O projeto foi criado com o objetivo de informar e sensibilizar o público em geral para os riscos e consequências do vazamento de vídeos íntimos na internet. Para tanto, analisamos a estrutura narrativa do robô, revisando e comparando dez interações completas para identificar a flexibilidade do sistema de inteligência artificial, a diversidade de respostas, a caracterização da protagonista (Fabi Grossi)

66 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares e os recursos narrativos empregados (além de textos, prints de notícias e de telas de celular, vídeos, imagens e áudios). Desse modo, buscamos contribuir para o avanço dos estudos e propostas sobre a utilização de sistemas de inteligência artificial nas narrativas digitais interativas. Pedimos a 20 alunos de meio de curso da faculdade de jornalismo ESPM, em São Paulo, que realizassem a experiência completa de interação com Fabi Grossi por meio do Facebook Messenger da personagem virtual. Antes do pedido, os quatro pesquisadores realizaram e compararam suas próprias interações para ter uma ideia geral do funcionamento do robô e avaliar a duração da experiência. Descobriu-se que a interação completa, desde o momento em que o usuário clica no botão de mensagem e envia um primeiro “oi” para o robô, durava cerca de 48 horas (descontínuas, ou seja, o sistema passa longos períodos de tempo sem se manifestar – e esses intervalos parecem fazer com que o robô se assemelhe mais a um humano do que a uma máquina pré-programada). Dos 20 voluntários convidados aleatoriamente, metade completou a experiência até o fim. Os demais foram descartados porque não haviam completado a interação – ou porque a abandonaram no meio, ou porque a iniciaram com atraso e não cumpriram o deadline estabelecido. Como o registro da conversa fica inteiro gravado no Messenger do usuário, na sequência foi pedido que os voluntários tirassem prints de todas as telas de seus celulares contendo a conversa com o robô e fizessem o upload das imagens, sem identificação de usuário, para dez pastas numeradas no Google Drive. Cada interação resultou em cerca de 30 prints, que foram transcritos pelos autores do estudo em formato de texto, resultando em 10 roteiros de interação, de modo a facilitar a análise. Com os 10 roteiros em mãos, os pesquisadores contabilizaram todas as perguntas realizadas pelo robô. As perguntas foram divididas em duas classes: retóricas e efetivas. Nas retóricas, que denotavam baixo nível de IA, as respostas do usuário não modificam a reação do robô. Nas efetivas, modificam, ainda que sutilmente. Isso possibilitou entender a mecânica de storytelling por trás de Fabi Grossi. Por fim, os alunos voluntários foram convidados a avaliar os cinco quesitos de experiência narrativa elencados (Usabilidade do sistema, Correspondência às expectativas, Presença, Credibilidade dos personagens e Efetividade) dentro de uma escala Lickert de três fatores: atende, atende parcialmente e não atende. Considerando esses dois aspectos, a roteirização (ferramentas de storytelling) e a experiência do usuário, e tendo em vista o sucesso da iniciativa da Unicef, refletimos sobre a possibilidade de iniciativas jornalísticas adotarem sistemas de IA semelhantes.

Histórico Em 19 de fevereiro de 2018, uma parceria entre o Facebook e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apresentou o Projeto Caretas, uma plataforma de

67 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares inteligência artificial que permite que um robô batizado como “Fabi Grossi” converse com os usuários pelo Messenger, o chat do Facebook. Fabi Grossi se apresenta como uma jovem de 21 anos que teve um vídeo íntimo divulgado na internet por seu ex- namorado e, à medida que troca mensagens com o usuário, conta sua história, as repercussões do vazamento das imagens e sua imensa angústia diante do fato. Nesse diálogo, o sistema faz uso de textos, hiperlinks, fotos e arquivos de áudio para manter a narrativa coesa e envolvente. O chatbot pode ser acessado por qualquer usuário maior de 13 anos – a restrição de idade é a mesma praticada pela rede social Facebook. Por meio de comunicado, a Unicef esclarece que o projeto foi uma forma de abordar o tema da segurança e da privacidade nas redes usando ferramentas familiares ao público jovem, segundo afirma a representante da entidade no Brasil Florence Bauer: “[O Projeto Caretas] dá a oportunidade de conversar individualmente com cada adolescente, no ambiente em que ele está presente e na linguagem que ele costuma usar” (Unicef, 2018, online). Dados da entidade sinalizam que o número de crianças e jovens que entram em contato com o ambiente digital é crescente a cada dia – mais de 175 mil deles acessam a internet pela primeira vez diariamente e um em cada três tem menos de 18 anos (Unicef, 2017, online). O informativo da Unicef relata também que a empresa responsável pelo desenvolvimento do robô é a argentina Sherpas, dedicada à criação de soluções de tecnologia para organizações. Seu cofundador, Gastón Gertner, afirma que, além de estabelecer um diálogo com os adolescentes, o objetivo da iniciativa é “entender seus comportamentos [dos jovens], gerando empatia e lhes dando conhecimento para se proteger. O Caretas é um exemplo de como podemos gerar impacto positivo em assuntos fundamentais relacionados à adolescência” (Unicef, 2018, online). Em abril de 2018, entrevistamos por e-mail Nicolás Ferrario (2018), cofundador da empresa argentina, que informou que o projeto surgiu em 2015, com uma pesquisa inicial sobre o assunto e o desenvolvimento de um roteiro. Em 2016, iniciou-se o desenvolvimento da tecnologia; e, em 2017, houve a etapa de teste. Ainda de acordo com Ferrario (2018), Fabi resulta de “uma mistura de técnicas e tecnologias – técnicas de storytelling, próprias de roteiro, para gerar maior empatia, além de tecnologia tipo IA (Machine Learning e Deep Learning) para que compreenda o que estão falando com ela”. Ele também ressaltou que o projeto é uma “peça de entretenimento”, em que “o formato do roteiro mantém a mesma estrutura que qualquer seriado da Netflix. A diferença é que, pela primeira vez, e com ajuda da tecnologia, o personagem principal fala com você”. A ação vai ao encontro das novas estratégias do Facebook, que tem atualizado sua política de privacidade e sinalizado uma maior preocupação em promover segurança na rede depois de ser envolvida em escândalos envolvendo o vazamento de dados de seus usuários (Frier, 2018). O comunicado da Unicef (2018, online) reforça tal posicionamento:

68 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

A segurança das pessoas é a maior prioridade da plataforma e [...] a empresa tem criado ferramentas, entre elas a que impede que as pessoas façam o upload de uma imagem íntima não consentida e a de reconhecimento facial, que avisa a pessoa quando alguém fizer o upload de uma foto que pode ser dela.

Entre os meses de junho e novembro de 2017, no período de testes, a plataforma foi acessada por cerca de 7.400 jovens no Brasil, que trocaram 1,6 milhão de mensagens com Fabi Grossi. Pouco mais de 40% desses adolescentes acompanharam a interação até o final, e a conversa demonstrou alto potencial informativo: antes da experiência, 39,7% dos jovens diziam saber o que era “sexting1” e como se proteger de violências virtuais; contudo, após a vivência, esse número aumentou para 90,5%, segundo levantamento da própria Unicef (2018, online).

Repercussão

Até 10 de agosto de 2019, mais de 314 mil pessoas haviam curtido a página de Fabi Grossi no Facebook. Além disso, a experiência recebera 20 mil avaliações, com nota média de cinco estrelas, a avaliação máxima disponibilizada pela rede social. Os posts da página chegam a 20 mil curtidas e 5 mil compartilhamentos. A história também foi noticiada por grandes veículos de imprensa, publicações voltadas para o público jovem e blogs, que não só reportaram a iniciativa como expressaram opiniões sobre a experiência com a interação. Uma dessas matérias foi veiculada pelo portal da revista “Glamour”, publicação internacional voltada para mulheres jovens e que, no Brasil, é editada pela Editora Globo. O artigo diz:

Tudo não passa de uma encenação. As fotos são de uma atriz e a história é fake, claro, mas tudo foi baseado em histórias reais que sabemos muito bem que acontecem. Em vários momentos, a minha interatividade com Fabi não foi satisfatória, primeiro porque ela fala demais, do tipo “atropelando” o assunto e, também, porque muitas das respostas dela às minhas perguntas não tinham qualquer relação (?!). Mas, tudo bem, o projeto foi lançado na última quarta-feira, 21.02, e, apesar de ter sido testado antes, agora, com o acesso total da rede, muitos “bugs” aparecerão e muitas atualizações da Fabi ainda vão acontecer. No geral, a conversa funciona e a mensagem é recebida. (Alexandre, 2018)

É interessante notar que alguns veículos destacam um suposto caráter suicida do robô, como no caso de uma matéria publicada pelo portal de tendências “Hypeness”, com o título “Perfil de jovem que cometeu suicídio interage com usuários por inbox falando sobre depressão” (Vieira, 2018). Mas essa tendência não foi identificada nas dez interações completas avaliadas pelos pesquisadores nesse estudo. Ao pesquisar por chatbots com as características de Fabi Grossi, nos deparamos

1 Prática de troca de mensagens de cunho sexual por meio de aplicativos ou serviços de texto, como o SMS.

69 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares com poucos projetos que carregam a essência das NDI que não estejam relacionados a serviços de empresas, como companhias aéreas e e-commerce. Dentre os exemplos, temos a Jessie’s Stary, um bot que também interage pelo Messenger do Facebook em uma jornada pelos percalços de uma jovem de 20 e poucos anos em Los Angeles, criada pela equipe da Pullstring, formada por ex-funcionários da Pixar. A avaliação de MacPherson (2016) resume a interação com o robô.

Conversar com Jessie te puxa para o mundo dela. Ela responde quase como se fosse uma amiga íntima, pedindo sua opinião sobre como ela deveria passar o dia, se deveria abandonar um amigo que prometera ajudar a mudar, e atualizá-lo quando tiver que se afastar para pedir um café. Interagir com Jessie não necessariamente “faz” algo para você. O produto é puro entretenimento, explorando o potencial das mensagens e do chat como mecanismo de entrega.

Outro exemplo de chatbot, mas com cunho educativo e informacional, é o projeto da WaterAid que conecta os usuários com Sellu – persona de um agricultor, pescador e pai de três filhos de Serra Leoa – e oferece uma visão a partir de sua perspectiva, com fotos, vídeos, gifs e uma ferramenta de vídeo 360 graus. Após a experiência, é possível entender o impacto do trabalho da WaterAid nessas comunidades. Para o criador da plataforma, que funciona no Facebook:

Era tudo sobre empatia. Que perguntas um defensor teria sobre a vida de Sellu? E quais eram os tipos de histórias que Sellu gostaria de compartilhar? Criamos uma longa lista de todos os tipos de informações que considerávamos relevantes para diferentes públicos, que nossa equipe de coleta de conteúdo coletou em uma viagem à comunidade de Sellu. Depois dessa viagem inicial, mapeamos as diferentes jornadas que os usuários poderiam percorrer pelo bot, dividindo-as em seções que achamos que seriam caminhos naturais para o usuário. Sellu e seus vizinhos foram treinados para usar câmeras, o que criou um fluxo de novos conteúdos que continuamos a adicionar ao bot, transmitindo aos assinantes para mantê-los a par dos desenvolvimentos. Criamos um cronograma de atualizações que progrediria na jornada do inscrito o mais próximo possível do tempo real da Sellu. (The Bot Platform 2018)

Análise A partir do primeiro contato feito pelo usuário, Fabi Grossi inicia uma troca de mensagens, com textos, fotos e arquivos de áudio, em que conta que seu ex-namorado divulgou um vídeo íntimo do casal na internet e divide, ao longo do diálogo, a angústia de ver a repercussão sobre as imagens íntimas, de ter de contar aos seus pais o acontecido e a busca por uma punição ao crime. A fim de compreender a interatividade do sistema, mapeamos, nos 10 roteiros de interação coletados, as perguntas que o robô envia ao usuário e de que forma as respostas a essas questões alteram o curso da narrativa. Contabilizamos um total de 21 perguntas, em que 14 são retóricas, ou seja, em que não há reação do robô a par- tir da resposta do usuário, e 7 são efetivas, em que a resposta do usuário condiciona

70 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares diferentes reações do robô – porém, as variações são extremamente sutis. A seguir, analisamos os pontos em que se dá a interação afetiva entre a inteligência artificial e o usuário.

Diálogos Interativos Após uma apresentação inicial, Fabi diz ter 21 anos e pergunta a idade do usuário. Trata-se da primeira pergunta efetiva, que busca restringir a experiência a maiores de 13 anos – a plataforma interativa segue a política de uso do Facebook. Quando o usuário diz ser mais novo, Fabi procura confirmar se não se trata de brin- cadeira, alerta sobre a restrição e só depois de constatar que o usuário é maior de 13 anos segue a conversa. Nesse ponto notamos também que, em algumas conversas, a robô não reconhece a informação numérica em respostas completas, conforme transcrição abaixo. É preciso que o usuário destaque somente a idade para que o sistema reconheça e siga adiante, o que parece revelar uma falha na usabilidade do sistema, algo que prejudica a verossimilhança da experiência. No exemplo abaixo, notamos que o robô pergunta duas vezes a idade, pois não entende os numerais no contexto de uma frase maior (reproduzimos literalmente a forma como as mensagens foram digitadas pelo usuário e como foram apresentadas pelo robô, incluindo quebras de linha, gírias e expressões incompletas. A personagem fictícia Fabi Grossi é sempre identificada como “Chatbot”, enquanto os usuários estão anonimamente identificados de acordo com um número de 1 a 10).

CHATBOT: Tenho 21 anos E vc? USUÁRIO 2: Eu tenho 22 anos. CHATBOT: Quantos anos você tem? USUÁRIO 2: 22

Em seguida, Fabi avisa que irá compartilhar conosco a situação que está vivendo e alerta: “Se não tiver afim é só escrever PARA, ta? Não quero incomodar”. A palavra “PARA” é a senha, que pode ser usada a qualquer momento da interação, para que a experiência seja definitivamente encerrada. Depois de contar sobre o vazamento das imagens, Fabi pergunta ao usuário se ele conhece alguém que tenha passado por uma situação parecida. Neste ponto identificamos que só há algum nível de interação caso o usuário responda que ele mesmo vivenciou o vazamento de imagens – se afirma que conhece alguém na mesma situação, a resposta é ignorada e a robô dá sequência à narrativa, conforme o diálogo abaixo. A linguagem do robô é sempre casual, repleta de abreviações e gírias.

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CHATBOT: Nunca tinha acontecido perto de mim. foi logo comigo vc conhece alguém q tbm tá nessa bad? USUÁRIO 3: eu conheço ela denunciou para a policia, a família ajudou. O que você vai fazer? o que vc esta fazendo, Fabi? CHATBOT: acho que fiz merda quis dar um susto no meu ex dizendo que fazer a denúncia ele ficou louco!!!

Entrevistas com os desenvolvedores da empresa argentina Sherpas afirmam que Fabi Grossi teria a habilidade de reagir em três situações: se for culpabilizada pelo interlocutor, se nota que o usuário já vazou imagens íntimas de outras pessoas e caso identifique que a pessoa com quem fala também foi vítima do crime – “ela passa a falar menos de si e tenta entender como pode ajudar” (GOMES, 2018). Também de acordo com Ferrario (2018), Fabi segue caminhos diferentes diante do que o usuário diz: “Se você falar que ela é uma vagabunda, ela não vai querer continuar falando com você. É até provável que fique chateada” (FERRARIO, 2018). Entretanto, na interação coletada, notamos que, diante de uma usuária que se diz tendo passado pelo vazamento de imagens, Fabi Grossi apenas lança algumas perguntas – “q aconteceu? foi trollada? acabou bem? teve que sair da escola?” (vide a Interação 3) – e volta à sua sequência narrativa sem mais responder conforme o novo contexto. Nesse caso, a usuária ainda tentou retomar o assunto, contando sobre sua experiência com o vazamento de intimidades, mas Fabi Grossi não respondeu às falas. Nesse sentido, a experiência do usuário no quesito da correspondência às expectativas e na sensação efetiva de interatividade é prejudicada.

CHATBOT: Nunca tinha acontecido perto de mim. foi logo comigo vc conhece alguém q tbm tá nessa bad? USUÁRIO 4: Sim aconteceu comigo CHATBOT: q aconteceu? foi trollada? acabou bem? teve que sair da escola? acho que fiz merda quis dar um susto no meu ex dizendo que fazer a denúncia ele ficou louco!!! ta me ameaçando!

[robô envia um print da tela do celular em que o ex-namorado a ataca]

USUÁRIO 4: eu tive que sair da escola e fiquei bem bad CHATBOT: chegaram umas msg de uns cara que eu não conheço acho que ele espalhou meu numero para todo mundo... esse deu nojo, olha...

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[robô envia outro print da tela do celular, com comentários machistas]

certo que são os amigo do Diego USUÁRIO 4: mas eu fiquei péssima CHATBOT: diz uma coisa... vc acha que eu tenho culpa?

Também é interessante notar que, a respeito dessa última pergunta de Fabi Grossi – “vc acha que eu tenho culpa? –, não há interatividade a partir da resposta do usuário. Nas conversas coletadas, tivemos respostas positivas e negativas, e Fabi não mudou a sequência narrativa a partir das falas – ao contrário do que os desenvolvedores afirmam, pois se trata de um momento em que a ideia de não culpabilizar a vítima poderia ser reforçada. Apesar de se tratar de um ponto em que o sistema busca uma resposta retórica, há a necessidade do recebimento de um retorno para que a narrativa continue. Contudo, nesse trecho, nota-se mais uma falha de usabilidade. Em algumas conversas, diante de respostas complexas, Fabi Grossi responde como se não tivesse recebido retorno. É o caso do diálogo a seguir, da Interação 4 e da Interação 5, em que, diante da resposta “voce nao tem culpa, voce confiou nele, a vítima nunca tem culpa”, a robô reenvia a pergunta, demonstrando falha na compreensão.

CHATBOT: diz uma coisa... vc acha que eu tenho culpa? USUÁRIO 3: voce nao tem culpa, voce confiou nele A vitima nunca tem culpa CHATBOT: ta podendo fala? a culpa é minha? USUÁRIO 3: a culpa não é sua Acredite nisso CHATBOT: (envia arquivo de áudio)

Outra interação, no mesmo ponto, se desenrola sem dificuldade de interpretação pela máquina:

CHATBOT: diz uma coisa... vc acha que eu tenho culpa? USUÁRIO 5: acho que não vc sabia que ele estava filmando?

73 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

CHATBOT: [envia arquivo de áudio]

Outra questão efetiva se dá quando Fabi Grossi pergunta se o usuário já enviou um nude, imagem íntima, para alguém. Nas conversas coletadas, observamos que, se o interlocutor não responde ou dá uma resposta negativa, a robô segue a conversa. Caso dê uma resposta afirmativa, Fabi mais uma vez envia uma série de questões (“que vc fez com essas fotos? mandou para alguém? deletou?”), mas não exibe uma interação efetiva com o usuário a partir de suas respostas, o que novamente prejudica a experiência em termos de credibilidade e correspondência às expectativas. Também há, aqui, falhas de usabilidade: em casos em que o usuário respondeu “já” em vez de “sim” à pergunta sobre as imagens íntimas, Fabi ignorou a resposta, conforme descrição abaixo:

CHATBOT: vc já mandou nude pra alguém? USUÁRIO 2: sim CHATBOT: o que voce fez com essas fotos? USUÁRIO 2: apaguei depois CHATBOT: mandou para alguém? deletou? CHATBOT: Vra!!! Mandei a cópia da denuncia pro Diego e olha o que ele me mandou!!

No mesmo ponto, em outra interação o robô parece não ter entendido “já” como sinônimo de “sim” e simplesmente prosseguiu a narrativa:

CHATBOT: vc já mandou nude pra alguém? USUÁRIO 6: Já CHATBOT: Vra!!! Mandei a cópia da denuncia pro Diego e olha o que ele me mandou!!

Ainda sobre as interações efetivas, Fabi envia algumas mensagens pontuais a fim de confirmar o vínculo com o interlocutor e de dar continuidade à narrativa. São as perguntas: “ta aí?”, “tô incomodando» e «oi…?», que dependem de o usuário responder positivamente para que a robô prossiga com o desenrolar da história. Além das questões efetivamente interativas, mapeamos outros dois momentos em que, a partir de um input do usuário, Fabi Grossi direciona um output diferente. Em uma das conversas coletadas, após enviar uma foto sua (ou seja, de uma atriz contratada para interpretar Fabi Grossi, emprestando-lhe voz em arquivos de áudio e imagem em

74 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares arquivos fotográficos), o usuário elogia a jovem, ao que ela agradece:

CHATBOT: ahhh essa sou eu!

[robô envia uma selfie de uma garota em um elevador]

USUÁRIO 7: Bonita CHATBOT: J obrigada!

Em outro ponto, o usuário pergunta duas vezes de que se trata o vídeo, e Fabi Grossi retoma a narrativa inicial, de que o ex-namorado divulgou imagens íntimas do casal. Trata-se de um output um pouco abrangente, que facilmente se adequaria a qualquer questão a respeito da história.

USUÁRIO 7: Mas que vídeo é esse? CHATBOT: é... preciso pensar direito... olha.. vou ter que sair USUÁRIO 7: Que vídeo é esse? CHATBOT: Diego, meu ex, vazou um vídeo íntimo nosso.

Nas conversas analisadas, em outros momentos do diálogo, a partir de diferentes inputs do usuário, Fabi Grossi não ofereceu outputs específicos, buscando sempre seguir com o fio narrativo com que foi programada. Mesmo em casos de usuários que tentaram enviar mensagens ofensivas, que se adequariam a um dos casos que, de acordo com os programadores, desencadeariam reações diferentes – quando a vítima fosse culpabilizada, por exemplo. Seguem exemplos extraídos de três usuários diferentes. Exemplo 1: usuário é contrário à denúncia de vazamento do vídeo íntimo à SaferNet.

CHATBOT: fiz a denuncia é fácil na real nesse http://www.helpline.org.br/helpline/# Conhece Safernet? USUÁRIO 2: sim Mas acho que vc esta errada.

Exemplo 2: usuário diz que vítima “mereceu” a exposição.

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CHATBOT: por mais que digam que foi ela que se matou foi o namorado e os outros que compartilharam o vídeo. USUÁRIO 2: sim Mas ela mereceu

Exemplo 3: usuário insiste que vítima estava errada em consentir com a gravação de cenas íntimas.

CHATBOT: o Diego publicou meu telefone mesmo USUÁRIO 2: foda hein... Mas ainda acho que vc estava errada CHATBOT: é assim que eles vendem a gente! Primeiro eles te procuram nas redes e depois o vídeo

Em nenhum desses casos o robô buscou conscientizar de maneira diferenciada ou personalizada o usuário que mostrava comportamento machista ou de crítica à vítima. Simplesmente, o robô seguia seu roteiro. Outro ponto que vale destacar é que o final das conversas mapeadas foi sempre o mesmo – Fabi afirma que está conseguindo superar o trauma –, ao contrário do que diz Ferrario. O cofundador da empresa Sherpas afirma que a experiência oferece finais diferentes. Não observamos isso em dez interações de voluntários e mais quatro realizadas pelos próprios pesquisadores. Ele também ressalta que o projeto tem sido ajustado constantemente e que o roteiro muda dia a dia: “Fabi vai aprendendo com o usuário. A tecnologia precisa acompanhar as exigências dos espectadores. Por ser um projeto de inovação, precisamos estudar e melhorar a experiência constantemente” (FERRARIO, 2018), o que seria um exemplo de tecnologia de machine learning em operação. Após a análise de dez interações com perfis bastante diferentes, podemos afirmar com razoável segurança que isso também não é verdade: o robô segue sempre o mesmo roteiro, e a história tem sempre um “final feliz”, ou seja, Fabi se conscientiza de que não tem culpa pelo vazamento e denuncia o ex-namorado abusador. Mesmo considerando que houve um mês de diferença entre a interação dos pesquisadores e dos voluntários, não houve mudança de roteiro.

Experiência do usuário Ainda que a experiência Fabi Grossi tenha um rico conteúdo multimídia e consiga, com uso de gírias e linguajar adolescente, abordar o tema do vazamento de imagens íntimas – a chamada “pornografia de vingança” –, a interação apresenta falhas que prejudicam a usabilidade do sistema e a experiência interativa. O resultado dessas falhas pode diminuir a credibilidade da personagem ao impactar também sua verossimilhança. Respostas pouco específicas e a falta de reações adequadas às interações,

76 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares especialmente as preconceituosas ou ofensivas, também podem acarretar a perda de efetividade da experiência. Uma vez que na maioria das vezes a personagem responde sempre da mesma forma a interações diversas, a sensação de interferir, de fato, no fio narrativo tende a se dissipar. Nesse sentido, considerando os critérios de Klimt (2011) que estabelecemos como categorias de análise (a partir da perspectiva do usuário), acreditamos que, numa escala de 1 a 3, o único quesito plenamente atendido é o da “presença”, que busca medir se o usuário estabelece uma relação de pertencimento àquele mundo virtual. A presença é atendida justamente pela variedade de recursos explorados pelo robô: ele conversa com texto, foto e áudio. Além disso, conversa de forma descontínua – e mais realista –, fazendo longas pausas entre as interações. Após avaliar as 10 interações completas e submeter ao grupo de voluntários cartões contendo a tabela abaixo, para livre preenchimento, chegamos à seguinte média como resultado de análise:

QUADRO 1 – CRITÉRIOS DA NARRATIVA DIGITAL INTERATIVA

Atende Atende Requisito Não atende plenamente parcialmente

Usabilidade X

Correspondência X às expectativas

Presença X Credibilidade dos X personagens Efetividade X Fonte: pesquisa dos autores

Mesmo com as falhas identificadas e a consequente perda de credibilidade, é importante destacar os pontos positivos da iniciativa, como o seu roteiro muito bem estruturado. O contrato de comunicação que se estabelece entre Fabi Grossi e seu interlocutor se completa graças a essas características. “Olhamos para um computador a ‘jogar xadrez’ e não observamos que não há xadrez nenhum para o computador – apenas para nós que montamos o cenário e o interpretamos a partir do nosso horizonte de sentido” (SILVA, 2011). Fabi Grossi atende aos requisitos apontados por Araújo (2018) para um chatbot ser convincente: ter personalidade, crenças, dúvidas e desejos. Por vezes, durante o desenrolar da interação, ela se mostra ansiosa, desesperada, apática ou com outras

77 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares características que reforçam os traços de personalidade bastante humanos e compatíveis com uma garota de sua faixa etária e ao problema apresentado. Dessa forma, a experiência interativa, bem roteirizada e construída como drama, carece de ajustes pontuais que reforcem sua usabilidade e as características de credibilidade e efetividade.

Relações com o jornalismo e questões para estudos futuros Conforme nossa análise, constatamos que o diferencial para o sucesso dessa iniciativa da Unicef não está na programação, pois o sistema de Inteligência Artificial usado não foi capaz de improvisar e de reagir conforme mudanças de contexto. Não há grande sofisticação na programação do recurso: ele tem dificuldades de compreender respostas que não acessem determinadas palavras-chave em contextos específicos (por exemplo, ao perguntar a idade do usuário, o robô só compreenderá respostas contendo apenas um numeral inteiro, sem letras antes ou depois da idade). A prometida capacidade de reagir conforme o contexto e de implementação de tecnologia de machine learning também não foi verificada na análise das 10 interações coletadas. Mesmo quando comparamos essas 10 interações com as 4 realizadas pelos próprios pesquisadores, 30 dias antes do experimento com voluntários, não foi notada nenhuma modificação no sistema. Ou seja: se já machine learning e modificação de comportamento, é em prazo superior a este e pesadamente dependente de ação humana. Nossa principal hipótese de trabalho, portanto, diante dos resultados obtidos, é que, a despeito da euforia dos usuários (inúmeros comentários podem ser lidos, na página da personagem fictícia no Facebook, destacando a emoção da experiência de interagir com ela) e da celebração da própria Unicef, a tecnologia de Inteligência Artificial empregada na experiência Fabi Grossi não é a principal responsável pelo seu sucesso. É apenas um dos fatores, aquele que potencializou um roteiro bem construído, um storytelling de excelente qualidade, engajador e envolvente. É, considerando os quesitos analisados, o fator “presença”, ou seja, a capacidade de a ferramenta fazer com que o usuário estabeleça uma relação de pertencimento àquele mundo virtual. E qual é o mundo virtual de que estamos falando? Ora, trata-se do mundo real, cotidianamente retratado no noticiário, em que eventos como a “pornografia de vingança” e o vazamento de vídeos íntimos de fato ocorrem. A virtualidade desse cenário reside no fato de que Fabi Grossi não existe: é um conjunto de tecnologias a serviço de uma roteirização digna de um palco teatral. O maior valor dessa experiência narrativa está justamente na habilidade dos contadores de história, que souberam criar um personagem factível dentro de um mundo virtual plenamente verossímil – e que se mantém verossímil a despeito das limitações tecnológicas detectadas por nossos testes, e não por causa delas. Quais são as implicações disso para o jornalismo? Estudos futuros podem aprofundar questões como essa e outras: que organizações jornalísticas estão adotando

78 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares chatbots, com que finalidade e com quais resultados? Oschatbots são como Fabi Grossi, ou seja, fortemente narrativos (contadores de histórias), ou, ao contrário, enciclopédicos, do tipo que busca responder perguntas objetivas (como robôs usados em serviços de atendimento ao consumidor, por exemplo)? Por ora, acreditamos ser relevante a constatação de que o argumento dos elevados investimentos e da necessidade de grandes equipes de profissionais altamente especiali- zados para a produção de experiências narrativas com chatbots, como forma de justificar a raridade de experiências do tipo em empresas jornalísticas, não é totalmente válido. Outros estudos poderão detalhar a questão do processo de produção de chatbots desse tipo, já que nos concentramos na experiência dos usuários, mas parece lícito antecipar que experiências de sucesso nesse sentido podem ser promovidas não com base no esta- do da arte tecnológico, e sim no bom e velho storytelling.

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PELA INGOVERNABILIDADE DA NARRATIVA: GRAÇA E EXCEÇÃO NO JORNALISMO

Raquel Wandelli

O jornalismo como máquina de guerra: Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça. (Clarice Lispector, 2004, p. 118)

Jornal do Brasil, 6 de abril de 1968. Esta mensagem informe, desterritorializada entre o não-tempo da literatura e o datado do jornalismo, desprende-se do texto que a antecede em “Estado de graça (Trecho)”: “P.S. Estou solidária, de corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do Brasil”. O recado póstumo assinado por Clarice Lispector (2004, p. 118) precisa chegar do exterior às multidões que carregam o corpo do menino Edson Luís nas ruas do Rio de Janeiro. Quebra do tempo e da diegese, fuga aparente de contexto: a parte aparece ao mesmo tempo separada e contígua ao todo, como um códi- go cifrado que reincide sobre o corpo do texto, ressignificando-o por inteiro. Fraturando, minando a lógica da narrativa, a passagem que sopra do calabouço despista a sua própria localização, pois o trecho que se disfarça como um corpo intruso na máquina da escrita pode ser o território todo. Nesse jogo entre a obra e a dobra, a escrita exerce sua potência de liberdade contra o poder da censura e do controle. Contra o poder da linha dura, a escrita cigana dissimula suas formas e conteúdos, largando pelos caminhos pegadas fantasmas. São sentenças intempestivas que podem ser recuperadas em qualquer época sombria pelo corpo ferido das multidões. Como um epílogo que continua alumiando o aqui agora do narrado e do vivido nas lutas cotidianas. É o confronto entre a “graça de viver”, tão rara para os homens, tão própria do animal, e o estado de exceção, tão atual e tão próprio do homem. Ausentando o centro, a máquina da escrita opera para que a má- quina do jornal não saiba ao certo que trecho pertence ao outro, ou se o texto que ela aparentemente decifra não é, ao contrário, o código cifrado. Aí está o segredo que a guerreira nômade aprendeu com a guerreiro-xamã: ela desloca sem cessar o corpo da máquina para que o Estado não lhe aparelhe a alma. Em outras palavras, ela desapa- relha o jornalismo. Porque nenhum poder se estabelece sem instaurar imediatamente um contrapoder, como mostrou Foucault (2010), toda máquina de dominação carrega o germe da sua

81 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares destruição. No cenário de lutas urbanas, Deleuze e Guattari trazem para o campo do político e do estético o conceito de máquina de guerra. O que essa ideia produz como resultado é a propagação da própria ideia que combate o aparato de Estado como poder político separado do corpo social. Para todo campo híbrido de discurso atravessado no seu fundamento pela política e pela arte, como o jornalismo, esse conceito traz à tona os mecanismos de subversão do aparelhamento ideológico que condena os dispositivos de mídia. Três experiências de Clarice Lispector, Eliane Brum e João do Rio aqui comen- tadas singularizam esse mecanismo. A noção de máquina de guerra nasce inspirada e desdobrada do conceito de “so- ciedade sem estado” de Pierre Clastres (1974), mas afirma como sua melhor efetuação os agenciamentos “bárbaros” dos guerreiros nômades, que retomam e modificam os arranjos secretos dos povos “selvagens”. Faz parte da estratégia de indestrutibilidade que o segredo do aparecimento intempestivo da máquina de guerra não pertença aos nômades com exclusividade, mas que seja clandestinamente disseminado para certas comunidades em luta, como a literatura: “Um movimento artístico, científico, ‘ideoló- gico’, pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento”. (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 95). A máquina de guerra nasce de prontidão para sabotar o espaço de comando do general, mas age de forma dissimulada. O guerreiro nômade desaparece e reaparece sem aviso em lugares inesperados, como os cordões de luzes e tendas, as cidades in- visíveis que os ciganos armam e desarmam quando os viajantes passam. Sua tarefa é distrair o aparelho de Estado1 para que sua forma totalitária não se instale no lugar do poder coletivo, dinamitando-o. Perfazendo o seu deslocamento imprevisto e nômade, a máquina de guerra distrai a humanidade da própria guerra. É porque ela não tem como objeto a guerra, mas o movimento das suas linhas de fuga, assim como o jornalismo, para não se autodestruir como dispositivo de poder, tem por objeto de guerra a sua ingovernabilidade e o trans- bordamento do seu dizer. Assim, o escritor-repórter, como guerreiro nômade, opera no comando da autoria como um chefe indígena, que só ocupa estrategicamente a posição de centro, essa função ausente e conjurada nas sociedades indígenas, para que o corpo social continue exercendo o verdadeiro poder. Um livro de poesia, uma pintura, uma música, um texto informe perdido no jornal podem ser máquinas de guerra. A arte, a escrita, a filosofia só se tornam máquinas de destruição e de morte quando se deixam aparelhar pelo Estado. Então a guerra se torna objeto de sua própria máquina e se volta contra os próprios nômades2. O jornalismo pode-se constituir também como máquina de guerra, se com Agamben (2009) a gente opera a noção de autor inspirada na noção de sujeito de Foucault, como o que resiste ao controle dos dispositivos de subjetvidade. Assim, jornalismo é também o que na resis- tência ao aparelhamento ideológico escapa do corpo a corpo com o poder. Nessa perspectiva se entende como e por que Clarice Lispector só pode tomar a es-

82 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares critura como uma “antiletratura” ou como um “não-jornalismo”. Vida afora, ela escreve para sabotar o aparelhamento do jornalismo e da literatura, conjurando sem cessar a força dominadora que por sua vez só existe para controlar o gesto criativo, produzindo linhas re- tilíneas e hierárquicas que destroem sua potência de metamorfose3: as demarcações de voz e de autoridade, as classificações de gênero, as escolas literárias, as receitas cronológicas, as hierarquias gráficas, as filiações de gênero, as segmentações editoriais. É porque se conecta com outras máquinas abstratas, que produzem não objetos, mas variadas engenharias de guerra, capitais intelectuais de transformação e insubordi- nação que a escrita pode ser vista como máquina. “A escrita e a música podem ser má- quinas de guerra. Um agenciamento está tanto mais próximo da máquina abstrata viva quanto mais abre e multiplica as conexões”. (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 202). Esvaziando a narrativa do seu poder sintático e significativo de dominação, o jornalismo se conecta à sua potência de literatura4 e a outras máquinas com as quais elas se tornam inseparavelmente “políticas, econômicas, científicas, artísticas, ecológicas, cósmicas — perceptivas, afetivas, ativas, pensantes, físicas e semióticas”. As conexões fazem a narrativa forte e incontrolável. Ela se torna ingovernável. Não é por ser abstrata que uma máquina é irreal, alertam os filósofos: do contrário, quan- to mais abstrata mais revolucionária. Nesse caso, escreve-se para desvelar uma matéria não formada do real que passa a tensionar as visões domesticadas e enquadradas da realidade. O regime das máquinas de guerra passa pelo seu fora, pelo enlouquecimento das formas e dos sujeitos. Clarice datilografa para o jornal: “A máquina continua escrevendo. Por exemplo, ela vai escrever o seguinte: quem atinge um alto nível de abstração está em fronteira com a loucura. [...] Agora a máquina vai parar. Até sábado próximo.” (LISPECTOR, 2004, p. 158). Assim como a guerra, a loucura é, por caminhos diferentes, tanto uma medida para a saúde quanto para a doença. Os criadores se realizam com o próprio ato abstrato da loucura. A obra de arte é, em si, um ato de loucura, “só que germina como não-loucura e abre caminho” (LISPECTOR, 2004, p. 171).

Clarice: o post scriptum do calabouço

Uma jornalista-guerreira e nômade, plenamente incorporada a sua escritora-xamã, passeia disfarçada pelo território do livre-pensar e do livre-escrever em “Estado de graça (Trecho)”. Procura a graça de viver por toda a parte, passeia pela inspiração, pela leveza da infância, pela lucidez dos sábios, pela beleza inatingível da vida selvagem. E adentra a dimensão inclassificável da escrita. O texto-ser não teme a errância. Não cessa de se contradizer, de se reentretecer e de se refazer. Ele bordeja a graça resistente a todas as definições, incapturável pela razão, pelos sentidos de véspera ou pela alegria do hábito. Não a encontra em tempos de aridez, justamente quando o estado de graça é mais necessário para contrapor ao deserto uma «espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos intoleráveis»

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(LISPECTOR, 2004, p. 118). É preciso experimentar a graça da arte, da filosofia, da vida, para afirmar por con- traste o horror que traz a notícia de morte embutida no fragmento final. E o que é a gra- ça? “Ternura fluida e fugidia”, mistério que não se explica, “êxtase em calmaria”, pura busca textual, anunciação, liberdade. “Esplendor da irradiação imanente das coisas, das pessoas, dos animais”; “felicidade do vivo que arrebata o ser quando ele menos espera”, diz ainda o pensamento narrativo. Seu acontecimento num mundo onde toda posse na- tural foi sequestrada em favor da propriedade e do privilégio é sinalizado como «suspiro de quem teve o mundo como este é” ou “saudade do estado de quem experimentou ga- nhar um corpo e uma alma e a terra”. (LISPECTOR, 2004, p. 117). A graça não dá seu endereço: não mora no ópio, nem nas religiões, não para em nenhum lugar, não advém da caridade ou do egoísmo. Não pertence a ninguém, nem ao homem. “Não sei por que, mas acho que os animais entram com mais frequência na gra- ça de existir do que os humanos.” (LISPECTOR, 2004, p. 117). Literatura e jornalismo são discursos filhos da mesma fábula-mãe, sempre vulneráveis ao controle do aparelho, mas também abertos à fuga para quem se arrisca. Ao estado de graça, espontâneo, imprevisível, errante, polissêmico, se contrapõe o estado de exceção inequívoco, irrevogável do post scriptum. Na definitude do asfalto jaz o menino guerreiro, exigindo o lamento, o protesto e a espada firme da guerreira que escreve. Um corpo sem vida nos braços do povo é verdade que não se divide, é tragédia que conclama a entrega toda do texto lutador – de “corpo e alma”, como afirma o .S.P Não é a pessoa da jornalista que se manifesta no paratexto final; esta há muito se ausentou no espaço literário (BLANCHOT, 1987). É a guerreira nômade da escritura que dribla a máquina da censura, que morde a mordaça para se fazer ouvir pelos povos que morrem e para usar o seu espaço de autoria em nome dos que resistem. Não é a propriedade do texto que assina a escritora, tão recorrente aos pseudônimos. A assinatu- ra representa o corpo ausente no exterior, onde ela acompanha o marido diplomata, no momento que se segue ao assassinato dos estudantes Edson Luís, de 17 anos, e Bene- dito Frasão, de 20, em frente ao Restaurante Calabouço, no Centro do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que dá o testemunho da tragédia, dedica o que escreve ao outro evocado, os estudantes brasileiros. Nas entrelinhas, o P.S. dá a ver que tudo acima foi escrito em nome desse outro. Não é o tecido social que engendra o aparelho de Estado no jornalismo ou na li- teratura, nem é o escritor-jornalista que cria a máquina. É precisamente o contrário. O aparelho de Estado escreve no tecido social sedentário os seus códigos políticos e, no espaço liso literário, a máquina da escrita escreve as linhas de subjetividade abstratas e desviantes que desorganizam os sujeitos estriados. Essa consciência de guerreira nômade percorre a série “Máquina escrevendo”, publicada pela autora no Jornal do Brasil: “A máquina corre antes que meus dedos corram. A máquina escreve em mim.” (LISPECTOR, 2004, p. 156). Uma narrativa que conjura a máquina de dominação da linha liberta por natural in-

84 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares surgência a literatura da instituição literária, o romance da instituição romance, o jorna- lismo da instituição do jornal. Objeto gritante, primeira versão do poema-ensaio Água Viva, manifestava essa luta de um “ar natural desafiador”: “É só por heroísmo também que publico este livro que vai ser vaiado e cujas intenções de antiliteratura serão capta- das por poucos”. Posicionamentos que estavam dados também em “O relatório da coi- sa”: “O meu jogo é aberto: digo logo o que tenho a dizer e sem literatura. Este relatório é a antiliteratura da coisa” (LISPECTOR, 1999, p. 103). Involução das formas, desestruturação do enredo, da lógica retilínea, da história, do personagem, do narrador, do tempo, do gênero e do pensamento para ir “atrás do que está atrás” (LISPECTOR, 1998a, p. 13). Desagregação de todos os elementos que ajudam a operar a centralidade e o domínio do homem na narrativa em favor do fluxo poético escorregando livre no espaço rígido do jornal para reencontrar essa multiplici- dade escrevente. Uma literatura assim - onde já não se separam a notícia e a poesia, o texto e a obra, o fundo e a forma – alcança o próprio gesto da loucura, pois independe de uma história teleológica, do mesmo modo que uma pintura está livre da figura. Ela se escreve numa “língua que não é mais a das palavras, numa matéria que não é mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos” (DELEUZE; GUATTARRI, 1997, p. 44). É na forma inclassificável dessa narrativa que se engendram a multiplicidade e a indecibilidade do próprio ser. Como a água, que é só um fluxo e um escoar contínuo, a obra viva abraça todas as possibilidades sem se fixar ou se esgotar em nenhuma for- ma. Conto, crônica, comentário, ensaio, novela, romance, poesia, texto? Fluxo, fluxo, sangue, sangue, corpo sem órgãos! “Mistério”, já insistia a escritora nos textos para o Jornal do Brasil. “Vamos falar a verdade: isso aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério.” (LISPECTOR, 2004, p. 157).

Eliane Brum: um povo em busca de coxilhas de vento Como literatura da modernidade, cujo objeto é a infâmia, o anonimato, a clandes- tinidade, a tarefa do jornalismo não o diverge da literature. Pelo contrário: ambos se lançam à enunciação coletiva de um povo menor que cava o seu esconderijo nas fron- teiras de um povo dominante. Ou, como diz Deleuze (1997, p. 15), “de todos os povos menores que só encontram expressão no escritor e através dele”. A repórter Eliane Brum (2006, p. 108) dirá, em A vida que ninguém vê, “um povo em busca de coxilhas de ven- to, desgarrado no que Borges chamou de “vertigem horizontal da planície”. Vanderlei Ferreira singulariza esse povo guacho5 de peões delirantes que resta em tempos de globalização, um povo ao encalce da liberdade, que não sabe andar sobre duas pernas. Ele dorme de favor numa cocheira entre touros e éguas, mas galopa um pedaço de pau – o cavalo que lhe resta. Galopa, desfila, faz provas na Expointer, enfim, se apresenta para o Povo que dele ri: Vanderlei acredita no animal do devir, mesmo sa- bendo que sua vassoura não é um cavalo: “Nunca andei a pé” (BRUM, 2006, p. 110). 85 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

O “guacho órfão, pobre, de origem incerta e indigente”; “o tropeiro de sonhos e perigos”, “vagabundo”, “andarengo de horizontes largos”, “companheiro da liberdade”: todas as definições etimológicas e literárias do gaúcho encontram sua expressão mais perfeita no chamado “louco de Uruguaiana” (BRUM, 2006, p. 108), de onde veio aos 15 anos, um pouco a pé, um pouco com touros de raça, intruso no lombo de um cami- nhão. Analfabeto, nunca foi à escola, mas frequenta a faculdade de zootecnia para ser veterinário como os seus padrinhos de rodeio, que lhe dão banho e desinfetam o couro cabeludo infestado de piolhos. Quer ganhar a vida cuidando dos amigos de cascos. Coube a esse peão dos devires, astro minoritário do grande prêmio Freio de Ouro, fazer valer a força da lenda. “É possível que ele tenha levado o mito mais a sério do que qualquer outro homem do Rio Grande”. Anômalo, não anormal, Vanderlei é um exemplar que não conhece normatizações de um povo e de uma utopia que restam. Dom Quixote de bombacha montado no delírio de um mundo onde tudo também não passa de uma quimera. “É possível que tudo que tenha sobrado da utopia seja um cabo de vassou- ra [...]. É possível até que seja tão louco que tenha inventado um gaúcho” (BRUM, 2006, p. 108). Mas como um gaúcho guacho ou gauche, ele acredita no seu povo: “Vanderlei, você é louco?”, pergunta a repórter. E ele: “A verdade é que quem acha que eu sou louco não raciocina” (p. 110).

João do Rio: no barco da fome negra Se os primeiros repórteres do iluminismo atuam desde a Revolução Francesa como agentes do regime geral de vigilância, os repórteres do escuro da modernidade atuam no lado oposto da torre de controle, denunciando o vigia. Se ver é conhecer, e “o conhecimento é uma forma de conquista”, como anota Delon (1990, p. 13), o jor- nalismo-literatura sempre pode romper com o poder-saber e escapar aos discursos de dominação. Bisbilhoteiros das sombras roubam os segredos das elites, escarafuçam as ilicitudes amorosas dos senhores de família, delatam os desmandos públicos, mas são também eles que denunciam: em Paris, Londres ou no Rio de Janeiro, os trabalhadores têm fome e sono, seus corpos exalam dores e odores. “O suor escorre nas costas dos carregadores e estivadores do Sena, especialmente dos que descarregam a madeira.” (DELON, 1990, p. 14). Ainda que tenha surgido sob a égide da vigilância, o repórter andarilho não há de ser associado ao parentesco com a figura do detetive ou do espião policial, condição de vigilante aderido ao iluminismo ou de colaborador dos comissários de polícia das metrópoles emergentes. O inspetor de polícia, o mouchard (dedo-duro), ou mouche, que significa mosca, não faz parte do bando dele. Justamente porque a sociedade é ocular- cêntrica que todo contrapoder se localiza no questionamento do olhar. Desde a eclosão do império das luzes, esse narrador atua na reinvenção de uma poética da visão que faz desvios à equação vigilância e obediência da máquina antropocêntrica do olhar. Pois a máquina do poder tudo vigia para para conter, para exatamente controlar. Vigia e delata para punir e calar, como nos mostra Foucault (1987).

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Um modo cartográfico de análise requer suspender sequências cronológicas em favor de outras temporalidades não lineares. Atravessar o tempo numa linha anacrônica. Em junho de 1904, João do Rio publicava, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, o texto/reportagem “A fome negra”6. O que ele faz como repórter e poeta, com a lingua- gem, com o faro, com os sentidos todos, nesse retrato compungente de um povo que se formava nas paisagens obscuras e periféricas da Capital da República ainda está por ser visto. Experiência de pura insubordinação à máquina controladora do jornalismo que deixou nenhum herdeiro no ofício. “A fome negra” vai cavar no espaço do jornal lugar para perfilar um ajuntamento anônimo de negros e imigrantes portugueses, sobreviventes de dois tipos de guerra: a estiva e a mineração. Eram embarcados em flamejantes conveses de navios a vapor para recolher o carvão, o manganês e o ferro vindos de Minas Gerais e depositados em entre- postos na Ilha da Conceição, de onde faziam a riqueza escoar para a Inglaterra. Nessa reportagem inclassificável, João do Rio sai da sacada onde a sociedade ca- rioca “janeleira” se debruça, segundo a imagem de Antelo7, e viaja nos navios-operários para dar o testemunho desse povo negro – e o seu próprio – do horror escondido na glória republicana insurgente. E o que espia João do Rio? O trabalho inscrevendo na máquina-corpo o discurso de esperança-riqueza e marcando a ferro e fogo seus direitos sobre o corpo-operário. O trabalho explodindo nos músculos negros a “certeza da mor- te” (RIO, 2008, p. 170). Espia e descreve todos os tipos de excreções dos seres humanos abolidas dos jornais purgando das mãos rachadas e das costas ardidas pelas labaredas do sol e da combustão do minério. Não só o suor, mas também o sangue e o “líquido ama- relado” e as lágrimas e os soluços e o brilho de “ódio de escravo” e de “animal sovado”. A escritura do repórter promote vingança desse povo, descrevendo no seu olhar o brilho de “ódio de escravo” e de “animal sovado” contra o sorriso sórdido do gerente- -feitor, pago para vigiar o trabalho da vida nua do Brasil República. Esse espião a serviço da máquina capitalista de degradação do homem e do meio também controla o trabalho do jornalista, que passa “dias inteiros de bote, estudando a engrenagem dessa vida esfal- fante, saltando nos paióis ardentes dos navios e nas ilhas inúmeras” (RIO, 2008, p.171). E o que permanece nesse trabalho literário de repórter é a sensação de peso, o cheiro de suor, o calor, a fuligem, o sangue, a agonia misturando-se todos numa imensa nuvem de ferro, para que se visualize, em qualquer lugar e em qualquer época, o esmagamento de um povo tratado como prisioneiro de guerra.

Lições finais sobre três máquinas de guerra A vocação minoritária do jornalismo faz dele, como do poeta, um verdadeiro “la- drão de fogo”, um fogo inventor e alheio, como define Rimbaud (2005, p. 82) em “Uma prosa sobre o futuro da poesia”, dirigida a Paul Demeny, em Carta do Vidente: “Se o que traz de longe tem forma, ele dá forma; se é informe, dá algo de informe”. Ao lidar com a coisa informe, o poeta incorpora esse além-do-homem. “Ele é encarregado da hu-

87 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares manidade, dos próprios animais”. Para superar a forma terá que devir até a poeira, até o código do silício, ou como continua a carta, “deverá fazer sentir, apalpar, escutar as suas invenções” (RIMBAUD, 2005, p. 82). Talvez ninguém melhor do que Celan (1996, p. 51) tenha falado com tanta brevi- dade e densidade sobre essa magia: “A arte provoca um distanciamento do Eu”. Se o outro se torna um eu no arrebatamento dos devires onde começa a escrita, ali, na zona de vizinhança onde vive e respira a poesia, é porque “eu é um outro”. Como na crítica de Rimbaud (2005) aos esqueletos ensimesmados que se creem autores, vidente é o poeta que num relâmpago cifrado vê a poesia se vendo outro. A mudança molecular da sintaxe humana na narrativa sempre está por vir, mas as experiências clariceanas nos jornais ainda não foram aproveitadas pelo jornalismo, por exemplo no que se refere à impessoalidade da escrita. Requer colocar intensamen- te em ação o seu ferramental descentralizador do eu e propor modos frasais não gra- maticais, correspondentes a ideações menos narcísicas do sujeito humano. Implantar na língua portuguesa – por apropriação das mais antropofágicas – um pronome neutro e estrangeiro. Com Água viva, o it tornou-se uma materialização singular do lugar de enunciação onde a possibilidade/fracasso de funcionamento do inumano na escritura pode acontecer.

Sou-me. Mas há também o mistério do impessoal que é o “it”: eu tenho o impes- soal dentro de mim e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou um impessoal de caroço seco e germinativo. Meu pessoal é húmus na terra e vive do apodrecimento. Meu “it” é duro como uma pedra-seixo. (LISPECTOR, 1998a, p. 30).

No abandono de todo recurso de individualização dos personagens, a escritura procede um descarnamento da pessoa para que o núcleo se exteriorize, como analisa Florencia Garramuño (2011, p. 109-110): “Mais do que uma despersonalização, trata- -se de alcançar o impessoal, despojando o pessoal de toda distinção particularizante e de todo dado identificador.” O escritor e o personagem somente se afirmam em nome de uma ausência. Todo sujeito, se existe, pressupõe uma presença “por inércia” (GAR- RAMUÑO, 2011, p. 108). Tal escritura se afirma reconhecendo a si mesma como um lugar de anonimato onde o eu só pode se enunciar numa espécie de autoria it: “Na hora de pintar ou escrever sou anônima. Meu profundo anonimato nunca ninguém tocou.” (LISPECTOR, 1998a, p. 34). Um jornalismo espetaculoso, cada vez mais atado à “pavonice” dos apresentadores e repórteres, não entende a impessoalidade ontológica do narrador, a não ser como neutrali- dade política. Por isso, o jornalismo atravessou praticamente todo o século XX investindo em uma discussão, já gasta e improdutiva, pautada pela suposta dicotomia entre objetivi- dade e subjetividade do repórter. Seria preciso aproveitar melhor esses pontos de intersecção com a literatura e a arte para perceber a impessoalidade da autoria que a reportagem experimenta desde os primei-

88 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares ros flâneurs. Pois o foco no problema do famoso trinômio “imparcialidade, objetividade e neutralidade”8 versus parcialidade, subjetividade e posicionalidade esconde uma questão de fundo que escapa a essas antinomias em bloco: como o repórter supera o subjetivismo e como alcança a polifonia (pra não esquecer Bakhtin) de quem fala não no lugar de um indivíduo-autor, atado à própria pessoa ou à miséria de ouvir os “dois lados”, mas em nome de uma multiplicidade? Obviamente, o repórter não pode e não deve almejar a im- parcialidade, mas a política da impessoalidade que implica um posicionamento político do mais alto grau atravessa todas essas pobres aporias. A escrita de paisagem e de pas- sagem habita a multidão, que é seu meio, corpo, casa, como já nos mostrava Baudelaire (2010, p. 30): Máquina de guerra contra as separações que bloqueiam a potência das metamorfo- ses, a escritura está potencialmente predisposta a formar uma comunidade sem regulações políticas ou morais da vida coletiva que nela pulsa. Por imanência ela se insurge contra a máquina estatal e as biopolíticas implodindo a soberania das identidades com a ética dos devires. Assim, o embate entre as máquinas vem para o espaço literário como expressão da luta entre a abertura do devir-inumano, típico da escritura, e o fechamento próprio do porvir-humanista que domina o jornalismo e subjuga o mundo e os seres. Escrever o inumano excetuado pelo Estado é convocar um autor que escreve ras- gando a sintaxe como um animal, cavando um mundo dentro de outro, como o carrapato rasga sua sintaxe de vida no território corpóreo do boi. Escrever como um animal é in- ventar uma nova língua dentro de outra, onde o mundo “há” apenas, sem subordinação ao sujeito da frase. “Eu que não me lembrava de lhe avisar que sem o medo havia o mundo” (LISPECTOR, 1999b, p. 100). É fazer operar na escrita essa multiplicidade de seres, de povos, de rumores e de dizeres que desaparecem para a linguagem. Nesse sen- tido, escrita é túmulo de devires – paradoxo pelo qual ela dá o testemunho do silêncio que permanece vivo na língua morta. Uma escrita animal se produz no modo de insubordinação do encadeamento frásico, no esgarçamento de fronteiras até o limite que a separa de outros territórios, de outros reinos, do não-eu, da não-linguagem ou do não-pensamento. A violência da linguagem acontece em nome da resistência do inumano. Escrever como um animal é fazer da escrita, esse dispositivo de exceção, de separação entre letrados e iletrados, um estado de graça. Sistema de poder é controle e doença, literatura é delírio e saúde. E como delírio, não produz pactos familiares ou privados, mas promove alianças entre minorias políti- cas. Por isso o escritor é uma mulher, um negro, uma criança, uma coruja, um cavalo, um estudante, um povo menor. Por isso o repórter grita, como Rimbaud (2005, p. 82): “Sou um poeta, um animal, um negro...”. Mas se o poeta é “o homem carregado de seus próprios animais”, como na leitura de Deleuze (1988, p. 141-2) do super-homem9, esse pensamento pode nos levar ainda mais longe no ofício de crítica e nos fazer acreditar que, ao fundo, os animais carregam o poeta, assim como os outros carregam o jornalista. Só resta então, dedicar a eles a autoria, como fez Derrida com o poema-ouriço (2001, p.

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113). Não é o autor, não é o jornalista, não é o sujeito, não é decididamente o eu quem escreve o outro. Ele, seja leitor ou iletrado, se expõe animal autobiográfico e dá voz e narrativa ao escritor. Cada presença no mundo é uma quebra de sintaxe, um método, um pensamento, um ponto de vista. E é também uma escritura, uma biografia que se conta. A esta altura podemos dizer: escrever é inumano, é percorrer linhas que escapam e transbordam para todos os lados. É trazer de volta para a literatura e para o jornalismo povos que morrem e “Temas que morrem”10 (LISPECTOR, 2004, p. 183-185) para o jornal, como os da própria morte e do estado de graça que ela discute antes de chegar ao seu Post Scriptum. Constituída na pura experimentação do devir, literatura é potencialmente um lugar onde se pode operar um pensamento, uma estética e uma escrita que devole a posse da linguagem ao mundo. Não é preciso reconciliar-se com a máquina estatal, com a máquina antropocêntrica. É preciso “reconciliar-se com o mundo”, dirá Francis Ponge (1997, p. 69). O escritor se reconcilia com o mundo inumano quando se dispõe a aprender com ele, a se reconciliar com a natureza muda da escrita. As linhas da literatura não se separam das linhas da vida, segundo a lição funda- mental que nos deixou a escrita filosófica do “nós” (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Ultrapassando até o limite a fratura que separa os viventes, a máquina literária combate a máquina antropocêntrica. É porque as aproximações ontológicas e estéticas que ela promove entre as fronteiras são anarquizantes e procuram as revoluções. É porque, en- fim, a literatura perfaz esse eterno retorno ao mito da indiscernibilidade e da comunica- bilidade entre os seres, as coisas e o mundo que compõe, em última análise, a sua visão do escuro e a sua voz do silêncio. Procurar o pensamento anterior, o ser, e o dizer que estão atrás do olhar, atrás do pensamento, atrás do sujeito e atrás da escrita. Afastar-se da Lógica para encon- trar o infinito de lógicas e de sensibilidades. Emperrar, enguiçar a máquina antropo- cêntrica do Estado. Jogar areia no motor, se não se pode pará-la. Pela máquina da escrita talvez seja possível chegar ao que importa, à matéria-prima do livre-pensar tendo-se atingido o livre-escrever.

Notas ______1 Necessário distinguir radicalmente do conceito marxista a noção de Estado que De- leuze e Guattari (2005, p. 16) elaboram a partir da ideia de sociedade sem Estado de Clastres. Ele deve ser compreendido não como a superestrutura de uma base econômica mas, ao contrário, como o grande mecanismo que torna possíveis os processos de pro- dução, os excedentes, a organização das funções públicas e das forças políticas. Enfim, o grande aparelho que “torna possível a distinção entre governantes e governados” e permite o aparecimento do próprio Estado. 2 “A máquina de guerra não tem por si mesma a guerra por objeto, mas passa a tê-la, ne-

90 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares cessariamente, quando se deixa apropriar pelo aparelho de Estado. É nesse ponto muito preciso que a linha de fuga, e a linha vital abstrata que esta efetua, se transformam em linha de morte e de destruição.” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 202). 3 “A ‘máquina’ de guerra (daí seu nome) está, pois, muito mais próxima da máquina abstrata do que, desta está o aparelho de Estado, aparelho que a faz perder sua potência de metamor- fose.” (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 202). 4 O jornalismo é uma paraliteratura de caráter não declaradamente ficcional, conforme argumenta José Miguel Wisnik. Entre inúmeras outras razões, porque cria uma relação ficcional com a realidade pela alteração violenta do mero recorte das cenas do cotidiano para o contexto do jornal (seja meio escrito ou audiovisual), incluindo o próprio efeito de realidade que essa transposição provoca (sob a força de verdade da palavra ou da imagem). Como máquina de destruir e construir contextos, que se vale de elementos extraídos da realidade, o jornal faz bricolagem costurando uma nova plataforma de sig- nificados a partir de materiais com origens e finalidades diferentes, como a literatura e o ensaio também são, de outro modo, bricolagem. “Assim, não só quando um texto é constituído de informações forjadas [...], mas de elementos ‘verídicos’, existe nele uma tendência ‘ficcional’ embutida nos procedimentos de recorte e montagem. Assim tam- bém, mesmo quando não é ‘ficção’, ou exatamente por apresentar-se como não sendo, o efeito de sentido dado pela congruência dos elementos entre si investe-se de uma certa autonomia em relação ao contexto externo, o que torna o texto, também ele, “mais real do que o real.” (WISNIK, 1992, p. 335). 5 Expressão usada nas lides campestres do sul do Brasil, Uruguai e Argentina para de- finir um animal desmamado precocemente, geralmente pela morte da mãe. Segundo o dicionário-gauchês de Douglas Milani, “animal ou pessoa criado sem mãe ou sem leite materno” (MILANI, 2010). 6 Crônica integrada mais tarde à antologia A alma encantadora das ruas (2008a). 7 “Da janela espiamos a intimidade doméstica do burguês. Da janela lemos a psicologia urbana” (RIO, 2008a, p. 14). 8 Desde os estudos pioneiros de Adelmo Genro Filho (1987), compreendemos que o jornalismo lida com subjetividades objetivadas e objetividades subjetivadas e, ainda, que há uma negociação entre os aspectos individuais e os dados externos da realidade objetiva (a cultura, a ideologia, as estruturas de poder e a resistência da própria materia- lidade) no processo de reportar e interpretar a realidade. 9 O super-homem é, segundo a fórmula de Rimbaud, o homem carregado dos próprios animais (um código que pode capturar fragmentos de outros códigos, como nos novos esquemas de evolução lateral ou retrógrada). É o homem carregado das próprias rochas, ou do inorgânico (lá onde reina o silício) (DELEUZE, 1988, p. 141-2). 10 Título de crônica publicada no Jornal do Brasil.

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BIOGRAFIAS DE VIVOS: RECONFIGURAÇÕES NARRATIVAS DA ESCRITA BIOGRÁFICA

Rodrigo Bartz

Percurso de pesquisa e primeiros sintomas A biografia1 – gênero que, de certa forma, percorre os diversos campos do saber – foi afetada, aparentemente sofrendo uma reconfiguração em sua trajetória por uma emergência: complexificada pela introdução de personagens ainda vivos e por uma quebra de barreiras – colocando, por exemplo, Autobiografia da Rita Lee (2016) – Globo livros – como biografia, nas listagens dos mais vendidos, ou seja, com narrativas inacabadas, escritas pelo próprio autor, que antes eram classificadas como autobiografias, além de memórias que atualmente também são consideradas biografias – o que altera cânones conceituais, há muito postos como ferramentas analíticas. Nas primeiras aparições do gênero, com Plutarco, em Vidas paralelas, narrava- se a vida de personagens notórios e famosos; porém, póstumos. Mesmo passando por metamorfoses, já verificadas em outras pesquisas2, como: a hagiografia e, em seguida, abordando aspectos mais psicológicos, realizando, dessa maneira, uma “visita” aos camarins da vida do biografado – criando o que Pignatari (1996) chama de Puzzle biográfico – ainda mantinha sua narrativa relacionada a personagens mortos. Dessa forma, mesmo que o narrador alinhavasse documentos e entrevistas, muitas vezes pelo viés da ficcionalização (com o que, amparados em Roland Barthes e Luciano Bedin da Costa, chamamos de biografemas)3, ainda assim matinha seu enredo orquestrado por um narrador em terceira pessoa. Nesse ínterim, teóricos como Philippe Lejeune, Alberto Dines, Vilas Boas, Mozahir Salomão Bruck, entre outros4, no desenvolvimento de suas teorias, propuseram alguns conceitos, tentando diferenciar os gêneros biográfico, autobiográfico e romanesco. Atualmente, porém, podemos, de certa maneira, “reformular” tais propostas, uma vez que com a emergência das biografias de vivos – nosso interesse de pesquisa – o fazer biográfico se reconfigurou e buscou aparatos outros para se reestabelecer frente ao cenário midiatizado contemporâneo. Dessa forma, nessa reconfiguração contemporânea do gênero, narrativas biográficas vão buscar novos aparatos de sentido – como já ocorrido na escrita biográfica do século XVIII, realizada com maestria

94 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares por James Boswell, com o que Dosse (2009) chama de biografia à moda anglo- saxônica, (desenvolvendo o enredo da pessoa viva) – porém, hoje ela complexifica- se, reconfigura-se – a fim de ganhar legitimidade frente a um cenário editorial, caminho esse que nos propomos a observar, como primeiros passos da pesquisa de doutoramento, no presente momento em um cenário midiatizado, com o Boom de escritas de trajetórias de vidas de personagens vivos, atualmente, com um percurso, de certo modo, “em processo”. Por fim, elas – as biografias Jornalísticas contemporâneas5 – rompem com padrões estéticos e conceituais delineando trajetórias de personagens, famosos e notórios ainda vivos, como, por exemplo, a biografia do escritor e apresentador Jô Soares (mais vendida nos anos de 2016 e 2017)6 e do Bispo Edir Macedo7 (que mesmo contando com um apelo religioso, ainda assim faz parte do gênero, biografia essa mais vendida entre os anos de 2010 a 2017), além da biografia acerca da vida do escritor Paulo Coelho, escrita pelo biógrafo Fernando Morais – O mago (2008) – que teve uma tiragem de 100 mil exemplares na semana de lançamento8. Dessa forma, com uma trajetória desses personagens biografados ainda em andamento, estabelece-se um novo paradigma, demonstrando-se uma fratura às metodologias pré-estabelecidas e cristalizadas. Dito isto, demonstraremos, por meio de uma seminal tabela, como faremos, futuramente, a análise – ou seja, trata-se dos primeiras tentativas de construção de um possível método – por meio de categorias que, na verdade, servirnos-ão como formas de abordagem, porém nunca como cristalização, mas sim meios de reorganizar essas classificações que englobam a biografia e de verificar que há camadas mais profundas de significação.

Cenário contemporâneo das biografias Segundo o Jornal Folha On-line, os livros classificados como memórias lançados em 2017 fizeram o segmento crescer 23,4% em relação a 2016. Em número de exemplares a alta é de 8%. As cinco mais vendidas em 2017 foram: Autobiografia da Rita Lee (2016) – Globo livros; Na minha Pele (2017) – Companhia das Letras de Lazaro Ramos; O Diário de Anne Frank (1995) – Record; Novos caminhos, novas escolhas (2016) – Objetiva de Abílio Diniz e O livro de Jô (2017) – Companhia das Letras de Jô Soares em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr. Segundo Otávio Marques da Costa, Publisher do grupo Companhia das Letras: “Sempre publicamos biografias com sucesso, as nacionais sobretudo. Temos realmente notado um aumento no interesse pelo gênero, mas especialmente nesses livros de memória, o que era menos usual no Brasil” (FOLHA ON-LINE. São Paulo. Diário, 2018). Otávio Marques da Costa pretendia lançar em 2018 a autobiografia de Fernanda Montenegro o que foi adiado em função de um acordo com a atriz. Uma questão relevante – que talvez seja um divisor de águas nessa questão – envolvendo Caetano Veloso, e outros cantores, ocorreu em meados de 2014, quando

95 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) levou ao STF a discussão sobre biografias não autorizadas, dado que somente em solo tupiniquim há um prévio controle desse gênero. Isso ocorreu porque o artigo 20, do Código Civil, exige autorização prévia dos biografados ou de seus familiares, no caso de pessoas mortas, para a publicação de qualquer obra de caráter biográfico. Em resposta à iniciativa da ANEL, um grupo de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Djavan e Milton Nascimento fundaram a “Procure Saber”. O principal argumento desses artistas é o de que biografias não autorizadas ferem o direito à privacidade. Contudo, o curioso foi que após o Supremo Tribunal Federal – STF – liberar biografias não autorizadas no Brasil, em 2015, foram os próprios personagens que resolveram contar suas histórias. Contrariamente ao que se esperava, muitas celebridades, como Renato Aragão, por exemplo, resolveram publicar ainda em vida suas biografias com intuito de participar da edição, pois relataram preferir “fazer” eles mesmos do que correr o risco de ter uma biografia não autorizada póstuma. Do ponto de vista comercial e de produção, há uma vantagem prática nos livros classificados como memórias. Enquanto biografias de mais fôlego como as de Ruy Castro, Lira Neto, Fernando Morais ou Mario Magalhães podem demorar até 10 anos ou mais para serem finalizadas, “uma obra de memória é finalizada em um terço desse tempo” (FOLHA ON-LINE. São Paulo. Diário, 2018). Para exemplificarmos, coloca- mos em pauta duas publicações da Companhia das Letras, lançadas em 2017. O Triste Visionário (2017), biografia de Lima Barreto, escrita por Lilia Moritz Schwarcz, é fruto de 10 anos de pesquisa. Já O livro de Jô (2017), por sua vez, ficou pronto em seis meses – entre o início das entrevistas com o apresentador e a entrega do original. Outro aspecto pertinente é que, segundo a Nielsen BookScan9, empresa que monitora (entre outros mercados) o mercado editorial, cerca de 33 youtubers lançaram títulos nos últimos 12 meses (entre 2016 e 2017). A youtuber Kéfera Buchmann, do canal 5inco minutos, com seu livro Muito mais do que 5inco minutos (2015) – Paralela – vendeu mais de 400 mil exemplares em 2015, o que a colocou em 6º lugar na lista dos dez autores brasileiros com mais vendas de livros naquele ano. Em média, um lançamento de um autor brasileiro contemporâneo fica em torno de 3 mil exemplares vendidos por edição. Já no ano de 2016, no encalço de Kéfera, vieram Julia Tolezano, do canal Jout Jout Prazer, cujo livro Tá todo mundo mal (2016) – Cia. das Letras – vendeu 35 mil cópias em 2016, e Karol Pinheiro, cuja biografiaAs coisas mais legais do mundo (2016) figura entre os 20 mais vendidos da lista de não ficção de 2016 da Nielsen. A mais recente integrante do clube das youtubers literárias é a transexual Amanda Guimarães, do canal Mandy Candy, que acaba de lançar a biografia Meu nome é Amanda – Fábrica 23110. Outro youtuber que aparece nessa lista recentemente é Felipe Neto com Felipe Neto: A Trajetória de um dos maiores Youtubers do Brasil (2017) – Coquetel e com Felipe Neto - A Vida por trás das câmeras (2018) – Pixel (2º livro mais vendido de 2018), que juntamente a seu irmão Lucas Neto, lidera a lista de livros de não-ficção mais vendidos do Brasil11.

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Biografias de vivos: fruto de nosso tempo Leonor Arfuch (2010) salienta que é crescente o interesse na biografia típica de notáveis ou famosos, por desvendar os detalhes de sua vivência, os bastidores. Isso talvez explique o sucesso que fazem os realities shows, revistas e sites de fofocas, que são inúmeros e muito acessados em todo o mundo, afirma a pesquisadora. Como visto, as pessoas se interessam muito mais pelas particularidades “desconhecidas” das personalidades biografadas. Ao tratar dos biografados, é importante que se dê ênfase a “celebridades”, justamente por haver esse interesse da sociedade contemporânea. Dessa forma, a narrativa biográfica contemporânea acaba ocupando o espaço das trocas de experiência perdidas por essa mesma sociedade, ligada estritamente a uma técnica utilitária. Esse gênero, grande filão editorial, mercantiliza esse aparato histórico, como afirma Lipovetsky (2004), acompanhando uma característica hipermoderna – para usarmos o termo do pensador – quando traz a luz um contexto histórico, baseado na vida de personagens históricos e, hodiernamente de vivos, de forma didática e prática, legitimando discursos. Atualmente, vivemos em uma sociedade mutável, a sociedade das transformações, da cultura de massa, da tecnologia, da indústria digital e do consumo, o que segundo Gilles Lipovetsky é a hipermodernidade. Tal era alterou vários setores da sociedade, entre eles a arte, a literatura e, inclusive nossa perspectiva de tempo. De acordo com o autor, nesse ínterim, temos

(1) a passagem do capitalismo de produção para uma economia de consumo e de comunicação de massa; e (2) a substituição de uma sociedade rigorístico disciplinar por uma “sociedade moda” completamente reestruturada pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução permanentes. (LIPOVETSKY, 2004, p. 60).

Assim, com a mesma velocidade com que produzem vídeos em seus canais, youtubers amparados por seus inúmeros seguidores e pela “sede” do mercado editorial no gênero, produzem biografias efêmeras, na ânsia de sanar o apetite de seu público. Deste modo, para Jameson (1997), o que ocorre é que a produção estética está, nos dias de hoje, integrada às mercadorias, atrelada à urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que devem ser sempre novidade, valorizando o efêmero, a utilidade do fato; o utilitarismo. Ao abordarmos esse certo utilitarismo da sociedade hodierna, chegamos a pensamentos da escola de Frankfurt. Isso porque, para Adorno e Horkheimer (1985), o esclarecimento, elemento básico do mito, foi sempre o antropomorfismo, a projeção do subjetivo na natureza. Assim, os Deuses separam-se dos elementos materiais, e passamos a uma espécie de distanciamento do mito e uma matematização do conhecimento, (do utilitarismo a que nos referimos acima): “No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela

97 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade.” (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 21). Nessa perspectiva, chega-se ao saber como aparato de dominação, a universalização dos pensamentos, ou seja, a substituição da herança mágica pela unidade conceitual que exprime a nova forma de vida. Aqui, tudo é rodeado de teoremas matemáticos, por meio do mundo totalmente matematizado com a verdade. Tal pensamento matemático se instaura como necessário e objetivo, transforma o pensamento em coisa, em instrumento, fato esse que, de certa forma, afeta as narrativas biográficas contemporâneas, uma vez que as torna didáticas, quase como um manual de como devemos levar nossa vida, tendo como modelo uma vida exemplar de algum notável ou famoso ou, hoje em dia, de uma pessoa comum que se tornou um case de sucesso, como um youtuber. Tal formalismo matemático, no entanto, segundo Adorno e Horkheimer (1985, p. 30), mantem o pensamento firmemente preso à imediatidade: “O factual tem a última palavra, o conhecimento restringe-se à sua repetição, o pensamento transforma-se na mera tautologia”. Desse modo, as mercadorias perdem suas qualidades econômicas, todavia não seu caráter de fetiche, assim, as agências de produção em massa e da cul- tura servem para introduzir nos indivíduos os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes e racionais, como a narrativa biográfica contemporânea que, na verdade, atua nos seus ávidos leitores como instrumento homogeneizante, isto é, tais narrativas transformam-se em mercadorias, guias práticos, “compras” de saber, transformando vidas em negócio12. Já Lyotard – outro pensador da dita pós-modernidade –, em A Condição pós- moderna (2009) – define o pós-modernismo como o rompimento com qualquer estrutura, segundo o autor, o fim das narrativas-mestras, metadiscursos ou metanarrativas. De acordo com Lyotard (2009), a busca por novos encaixes teóricos enfraqueceu o que ele chama de metadiscurso, uma perda da fé nesse impulso centralizador e totalizante, por exemplo, o discurso universal divino se deslegitima. Aqui, o homem é autor de sua própria história, “cada qual é entregue a si mesmo. Desta decomposição dos grandes relatos segue-se o que alguns analisam como a dissolução do vínculo social e a passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa composta de átomos individuais” (2009, p. 28). Ou seja, faça você mesmo, além de gravar seu vídeo, escreva uma biografia, sua própria história de vida, quando há uma descentralização do discurso. De tal feita, gêneros, antes dispostos à margem, ganham aderência no cenário contemporâneo, isto é, nessas confusões de saber, do tempo presente e passado com um futuro sobreposto, ganham forças narrativas contrárias às metanarrativas, como as narrativas biográficas contemporâneas. Além disso, assistimos, segundo apontamen- tos de Lipovetisky, nesse hipermodernismo

não ao fim de toda crença no progresso, mas ao surgimento de uma ideia pós- religiosa do progresso, ou seja, de um porvir indeterminado e problemático –

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um futuro hipermoderno. As sociedades modernas se constituíram mediante uma imensa ‘inversão do tempo’ que instituiu a supremacia do futuro sobre o passado. (LIPOVETSKY, 2004, p. 67).

Destarte, a narrativa biográfica ganha força nesse cenário. Nesse aspecto, essa narrativa age como aparato desse saber comprado, que ao ser mastigada e digerida melhora as performances desses sujeitos sedentos por legitimarem seus discursos. Ademais, as narrativas biográficas contemporâneas funcionam como uma espécie de mito moderno, quando traz à baila sujeitos de sucesso com suas singularidades semelhantes a de qualquer indivíduo, construindo esse futuro super valorizado baseado em um curto passado de glória e, além disso, exercendo o papel de instrumento distanciador dessa natureza, elencada por Adorno e Horkheimer anteriormente. Aqui, então, há o Boom biográfico – biografia propriamente dita e relatos de experiência13 – que, segundo Leonor Arfuch (2010), são, de certa forma, coletivos, expressões de uma época, de um grupo, de uma geração, de uma classe, de uma narrativa comum de identidade, “é essa qualidade coletiva, como marca impressa na singularidade, que torna relevantes as histórias de vida, tanto nas formas literárias tradicionais quanto nas midiáticas e nas ciências sociais.” (2010, p. 100). Ainda segundo a autora, nesse tempo pós-moderno (ou hiper), “é essa busca, essa proteção em tempos de incerteza, um dos fatores que impulsionam, [...], o desdobramento sem pausa do biográfico.” (2010, p. 75). Por conseguinte, corroborando as afirmações anteriores, a massificação da in- formação, a crise da verdade e das metanarrativas, discutidas por Lyotard (2009) – respeitando as devidas proporções comparativas relacionadas à época – está na atual emergência do gênero biográfico. Para Jaguaribe (2007), contemporaneamente, há um boom das biografias e das escritas do “eu” no meio editorial. Tudo em razão das mui- tas aparições da vida íntima tanto no circuito audiovisual quanto na internet, as quais assinalaram novas mesclas entre o público e o privado, o ficcional e o real, confundin- do esses tempos, como apontado anteriormente. De acordo com os fatos mencionados, segundo Arfuch (2010, p. 37), percebe-se que o avanço irrefreável da midiatização ofereceu um cenário privilegiado para a afirmação dessa tendência, “contribuindo para uma complexa trama de intersubjetividades, em que a superposição do privado sobre o público, do gossip – e mais recentemente do reality show – à política, excede todo limite de visibilidade”. Dessa forma, no momento presente, certa fé foi substituída por uma confiança mutável, em função do cenário: “Motor da dinâmica dos investimentos e do consumo, o otimismo em face do futuro se reduziu – mas não está morto. Assim como resto, a sensação de confiança se desinstitucionalizou, desregulamentou-se, só manifestando- se na forma de variações extremas.” (LIPOVETSKY, 2004, p.70). Amparado nas questões exploradas, até aqui, e na abundância de narrativas

99 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares biográficas nas prateleiras de livrarias e bibliotecas, percebemos que a biografia ganhou notoriedade e conseguiu ocupar um espaço ausente na sociedade pós-moderna. Segundo Leonor Arfuch, esse crescimento não é pelo conteúdo do relato, todavia pelas estratégias – ficcionais – de autorrepresentação, ou seja:

Não tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra; em última instância, que história (qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu. E é essa qualidade autorreflexiva, esse caminho da narração, que será, afinal de contas, significante. (ARFUCH, 2010, p. 73. Grifos da autora).

Isso acontece porque necessitamos dessas experiências narrativas, visto que so- mos seres narrativos e consumimos desenfreadamente biografias não pela sua adequa- ção, ou reprodução de determinado passado, “da captação ‘fiel’ de acontecimentos ou vivências, nem das transformações ‘na vida’ sofridas pela personagem em questão, mesmo quando ambos – autor e personagem – compartilharem o mesmo contexto. Tratar-se-á, simplesmente, de literatura”. (ARFUCH, 2010, p. 55). De acordo com Lipovetsky (2004, p. 85) ao celebrar, na sua grande maioria, o aqui e agora, a civilização consumista ajuda a enfraquecer a memória coletiva. Contrariamente a isso, nossa época “longe de encerrar-se num presente trancado em si mesmo, é palco tanto de um frenesi histórico-patrimonial e comemorativo quanto de uma investida das identidades nacionais e regionais, étnicas e religiosas”. Por isso, a biografia além de ser aparato de constructo narrativo desses narradores contemporâneos que, vazios, buscam nela elementos legitimadores de seus relatos, também é uma espécie de preservação desse patrimônio. Para Lipovetsky (2004, p. 87):

O batismo de ruas e o levantamento de estátuas são doravante suplantados por comemorações exploradas pelas indústrias editoriais e midiáticas, que inundam o mercado com dezenas de títulos novos, de reedições, de histórias em quadrinhos, de filmes e telefilmes. Antigamente, o monumento era um símbolo, e sua conservação, um fim em si mesmo; hoje, justificam-se os encargos com ele em nome dos efeitos financeiros, do desenvolvimento turístico ou da imagem midiática das cidades e regiões. “Jazidas” a explorar e promover, as antigas edificações são seqüestradas, reformadas, transformadas em centros culturais, museus, hotéis, teatros, escritórios; as áreas históricas são enfeitadas e avivadas, convertidas em produto de consumo cultural e turístico. E, por toda a parte, vê-se a aparição de estacionamentos, de lanchonetes, de lojas de suvenires, de espetáculos folclóricos. Na sociedade hipermoderna, o modelo de mercado e seus critérios operacionais conseguiram imiscuir-se até na conservação do patrimônio histórico. Elemento do avanço do capitalismo cultural e da mercantilização da cultura, a valorização do passado é um fenômeno mais hipermoderno que pós-moderno.

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Dessa forma, percebemos que há uma relação da narrativa biográfica com o pas- sado e que são, na verdade, materiais ligados à história ou que interagem com ela, como as biografias, as quais produzem memória de um período e são reelaborados em uma nova narrativa com credibilidade frente à era tecnológica. Isso quer dizer que as biografias contemporâneas são ressignificadas, complexificadas buscando estabelecer uma identificação com seus leitores ganhando, na forma livro, certa eternidade. Dessa maneira, biógrafos, mesmo sem perceberem a hibridização de tais produções, tentam manter a mesma fidelidade a fatos e visões coerentes de mundo em suas produções, mercantilizando esses passados, transformando as biografias contemporâneas em re- flexo do tempo em que vivemos, um tempo midiatizado.

Uma Possível forma de abordagem Como forma de abordagem metodológica, para dar conta de compreender as metamorfoses estruturais das biografias contemporâneas, principalmente com a quebra de divisas e a emergência das biografias de vivos, na sua organização genética, em um primeiro momento, na tentativa de aprofundar a análise, desenvolvemos uma tabela. Assim, para dar conta de nossa pesquisa, em busca de refletir acerca das mudanças teóricas das biografias contemporâneas, faremos uma análise qualitativa, nos moldes de Demo (2000). Ademais, tentamos, dessa forma, construir possibilidades de acesso a biografias pelo viés da teoria da narrativa, pois assim conseguiremos constatar a estrutura, para além dos gêneros e categorias que constituem tais relatos. Com esse intuito, dividimos etapas de abordagem – de forma preliminar – para verificar o que emerge dessas complexificações do discurso biográfico, ou seja, o que faz com que a biografia de pessoas vivas seja possível, por exemplo. Dessa maneira, adentraremos: a) ofertando uma categorização: estabelecendo, assim, características narrativas e de estilo que permitirão contrapor as biografias de personagens póstumos e, por outro lado, biografados ainda vivos; b) notoriedade: explicando quais são os aspectos determinantes para fazer com que uma trajetória mereça ser eternizada como relato biográfico; c) uma diferenciação: das teorias já existentes, acerca do que caracteriza uma narrativa como biografia, diferenciando-a de uma memória, autobiografia, por exemplo; d) temporalidade: explorando como ocorrem as representações desse tempo presente, nesse enredo, de certo modo, ainda inacabado; forçando, dessa maneira, a biografia, no nosso caso com personagens ainda vivos, a buscar outras formas para se legitimar pelo viés da midiatização. A tabela, de forma preliminar, ficou assim disposta:

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Tabela 1 – Forma de Análise

Abordagem Excertos Título Autor Categorização

Diferenciação teórica

Notoriedade

Temporalidade (Predominante)

Fonte: Elaboração do autor

Nesse modelo, a forma de abordagem, apontada na coluna da parte esquerda da tabela, seria preenchida na linha em sua parte direita por excertos das obras analisadas, a fim de delinear semelhanças e diferenças existentes. Dessa forma, a cargo de exemplo, constatou-se, como primeiros passos, que muitas biografias estão alterando suas formas como em;1) Atualmente, muitas biogra- fias trazem seus próprios personagens biografados (ainda vivos) como autores “alia- dos” dos textos ou em parceria com outros, o que muda parâmetros conceituais, que traziam como preceito terceiros como autores – como exemplo, podemos citar o Mago (2008) biografia de Paulo Coelho que fora escrita com contribuições do biografado – cujo nome não aparece na edição como autor ou coautor – e pelo jornalista e biógrafo Fernando Morais; em 2) que grandes personalidades famosas e celebridades estão acompanhando o grande filão de mercado porque, talvez, com medo de ter suas vidas eternizadas em uma biografia póstuma, preferem eles mesmos contar versões de suas trajetórias de vida como O livro de Jô (2017) escrito em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr., o que até então não se tinha notícia, uma vez que o biografado Jô Soares aparece na capa da obra como coautor e intitula a obra como “uma autobiogra- fia desautorizada”; além disso; em 3) que muitos jovens, na sua grande maioria you- tubers com menos de 30 anos, estão lançando suas biografias, como uma extensão de seus canais, ou tentativa de evitar a “própria” vida, hibridizando, com as redes sociais, suas representações e vida “real”; e em 4) que as teorias que englobam os gêneros me- morialísticos, autobiográficos e biográficos servem sim como alicerces, mas não dão mais conta de abarcar as transmutações hodiernas. Mesmo que de forma preambular, como afirmamos desde o início do presente trabalho, essas transformações que nos inquietam, trazem à baila algumas emergências visíveis. Segundo o pesquisador Francisco Rüdiger (2008), essa mescla entre presente e passado nas trajetórias de vida não é nova, uma vez que desde o final do século XIX,

102 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares havia publicação dos diários íntimos de certas personalidades. Entretanto o que ocorre hodiernamente, ainda nas palavras do pesquisador, é que esses diários passaram a ser publicados, “como farsa barata, a serem divulgados mais ou menos em tempo real, via as mídias on-line por milhares de pessoas comuns”. (2008, p. 29). Ou seja, somos o tem- po todo estimulados a suportar o presente, que na verdade tem e muito subterfúgios de futuro. Nesse aspecto, segundo Muniz Sodré (2014, p. 76), o tempo não representa mais o real, uma vez que o imediatismo acaba banindo-o, já que “com a tecnologia eletrônica o tempo encurta e o espaço encolhe”. Com isso, nesse momento, segundo Fausto Neto (2008), os dispositivos deixam de ser apenas meio e passam a representar um novo estatuto simbólico em uma sociedade midiatizada, a qual se instaura nas sociedades industriais com a evolução de processos midiáticos, que chamam atenção para os modos de estruturação e funcionamento dos meios nas dinâmicas sociais e simbólicas. Dessa forma, há uma outra relação, complexificada, entre homem, máquinas e as organizações sociais. Destarte, de acordo com Fausto Neto (2008, p. 92), tais relações levam ao entendi- mento de que as mídias não são mais somente instrumentos condescendentes da organi- zação do processo de interação dos demais campos, não obstante “se converteram numa realidade mais complexa em torno da qual se constituiria uma nova ambiência, novas formas de vida, e interações sociais atravessadas por novas modalidades do trabalho de sentido”. Nesse sentido, com a midiatização há uma reformulação social para conseguir dar conta da emergente esfera de orientação da realidade, apta a transpor as relações sociais por meio da mídia. Assim, segundo Fausto Neto (2018, p. 8) “antigos modelos de transmissão-recepção de sentidos que operavam sob o crivo de instâncias mediacionais, como os mass media14, saem de cena e dão lugar às novas modalidades de contatos”. Nesse contexto, o processo comunicacional funciona em aberto, quando, segundo Fausto Neto (2018), há uma intercambialidade assimétrica, isto é, que não é igual, todavia sim configurada por feedbacks complexos. Então, o que temos, segundo José Luis Braga (2006), é a midiatização como processo interacional15 de referência que passa a “guiar”, de certa forma, os processos subsumidos que começam a funcionar segundo sua lógica. Dessa forma, ainda segundo Braga (2006), esses processos não somem, mas se ajustam. Isso significa que quando um processo se torna interacional de referência, ele se transforma em organizador principal da sociedade e não anula outros. Já que os indivíduos constroem a realidade social através de processos interacionais pelos quais esses mesmos indivíduos, grupos e setores da sociedade se relacionam. Dessa maneira, a sociedade se constrói conforme processos interacionais a que dá maior relevância. Assim, de acordo com Fausto Neto (2008), com a expansão da midiatização como um ambiente, com tecnologias apontando novas formas de vida, com as interações afetadas ou reconfiguradas por modos e formas de organização coloca todos, produtores

103 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares e consumidores, em uma mesma realidade, ou seja: “Não se trata mais da ‘era dos meios’ em si, mas de uma outra estruturada pelas próprias noções de uma realidade de comunicação midiática” (2008, p. 94). Dessa forma, consoante Braga (2012), os campos sociais são atravessados por diversos circuitos. Isso, além de reconfigurar todo sistema social produzem novas gramáticas de reconhecimento: “As referências habituais se encontram deslocadas ou complementadas por referências menos habituais – fazendo com que os próprios circuitos em desenvolvimento elaborem e explicitem os contextos requeridos para atribuição de sentidos aos produtos e falas que circulam.” (2012, p. 49). O que acontece, por fim, para Fausto Neto (2008), é que, os processos de referenciação da realidade – estruturados em torno da midiatização – migram para diversas práticas sociais, não ficam apenas na divisa das próprias práticas midiáticas, o que afeta todo um sistema, em nosso caso, percebido, por exemplo nas biografias contemporâneas. Tais processos de referenciação passam, então, a estabelecer uma condição cujo emprego torna-se obrigatório, de certa forma, para que passem a ser reconhecidas, legitimadas, isto é, uma nova ambiência narrativa se instala na sociedade midiatizada, alterando práticas e cambiando lugares.

Considerações interpretativas

Chegamos ao final do presente trabalho com poucas certezas, e isso é ótimo, uma vez que sabemos que ainda temos um longo e, com certeza, prazeroso percurso até quem sabe alcançar respostas possíveis. O que percebemos, como hipótese, é que as teorias postas, canônicas, da teoria biográfica não dão mais conta; dizendo de outra forma, afirmar contemporaneamente que “a biografia é a vida de uma pessoa (acima de tudo) narrada como artepor outra pessoa” (VILAS BOAS, 2008, p. 22) – não abarca mais a possibilidade de compreender a realidade, tanto pelo boom de biografias de personagens ainda vivos e, além disso jovens, com trajetórias narrativas inacabadas (caso dos youtubers), quanto pelas biografias escritas “em parceria com”, como a biografia do ator, apresentador e escritor Jô Soares. Outro aspecto interessante é observar que o gênero memória, ou que usa as memórias dos biografados – outro que nos debruçaremos subsequentemente com intuito de delinearmos melhor essas divisas – ganha em praticidade em relação às biografias clássicas (embora não nos agrade essa terminologia) dado que seu tempo de finalização é muito menor, corroborando a efemeridade contemporânea, em que necessitamos de novidades o tempo todo. Ainda cabe ressaltar que uma memória, autobiografia, ou mesmo as biografias escritas pelos seus próprios personagens contam com certo apelo de verdade e sejam consideradas pelos leitores como menos ficcionais. Nesse tempo presente, efêmero e utilitário/hipermoderno as narrativas biográficas surgem, conforme Arfuch (2010), como uma espécie de proteção em tempos incertos. Vale afirmar, por outras palavras, que, de acordo com Gomes (2016, p.18), a

104 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares identidade é construída a partir da interação com os meios, isto é, “a pessoa não é um ‘eu’ que usa instrumentos como extensão de seu corpo, mas um indivíduo que se autocompreende como um ser que preza as suas relações e conexões por meio dos instrumentos tecnológicos de comunicação”. Logo, essa sofisticação tecnológica, por um lado, cria um novo modo de vida potencializado pelo uso da tecnologia digital, por outro, sinaliza um novo ambiente social, hodiernamente, quer dizer, “significa um novo ambiente social que incide profundamente nessas mesmas relações, inter-relações, conexões e interconexões que constroem a sociedade contemporânea. A sociedade é em midiatização. O ser humano é em midiatização. Isso, hoje, sublinhe-se, configura um novo modo de ser no mundo” (2016, p.18). Compreender esses aspectos, relacionados às narrativas biográficas contemporâneas – afetadas, alteradas e complexificadas, é tarefa que se impõem a nós como escopo de pesquisa daqui para frente.

Notas ______1 Nosso interesse de pesquisa é a impressa, em formato livro. Deixamos claro esse posicionamento em função de questionamentos sofridos em congressos anteriores, nos quais fomos interpelados acerca dessa questão. 2 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015. 3 Além dessas passagens, a biografia passou por outros câmbios – como no século XVIII com James Boswell acompanhando seu biografado, Dr. Samuel Johnson ainda vivo, por exemplo – mas aqui queremos apenas delinear um pequeno espectro da biografia, para demonstrar que ela, assim como outros gêneros, também alterou seus modos de fazer. 4 Abordamos esses outros teóricos em outras pesquisas, portanto como não é nosso escopo de pesquisa, estamos apenas apresentando como caminho de pesquisa já percorrido, em função do espaço aqui cedido. 5 Em pesquisas anteriores, já aprofundamos tal tema demonstrando que é possível chamá- las de jornalísticas, por suas inclinações narrativas e de estilos. Com isso, queremos apenas obter “portas” de entrada para camadas mais profundas de significação, não obstante nunca o engessamento do gênero. Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015. 6 https://www.publishnews.com.br/ranking/anual/13/2017/0/0 7 http://curiosamente.diariodepernambuco.com.br/project/pesquisa-mostra-livros- mais-vendidos-no-brasil-em-2017-e-nos-ultimos-10-anos/ 8 https://oglobo.globo.com/cultura/biografia-de-paulo-coelho-a-primeira-a-ultima-que- faco-de-uma-pessoa-viva-diz-fernando-3614401. 9 https://www.nielsen.com/br/pt/solutions/how-we-measure/nielsen-editorial/

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10 https://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/08/livros-de-youtubers-viraram-grande- aposta-do-mercado-editorial.html 11 Fonte: Nielsen Bookscan - Relatório TOP 10 mais vendidos na semana. Disponível em: https://www.nielsen.com/br/pt/top-ten/ 12 Destarte, importante salientar que, a razão criticada por Adorno e Horkheimer é o que chamam de razão técnica, dado que, segundo os pensadores, há ali uma desvalorização do pensamento, da filosofia, e apenas tem validade a lógica utilitarista. Dessa maneira, a razão técnica utiliza o número como principal ferramenta, que mantém o pensamento preso à mera imediatidade, tal como se faziam nas guerras da época e na implantação de movimentos totalitários como nazi-fascismo. 13 Gênero extremamente interessante, mas que por não ser nosso escopo de pesquisa, deixaremos para futuros momentos de debate. 14 Conjunto de técnicas de difusão de mensagens (culturais, informativas ou publicitárias) destinadas ao grande público, tais como a televisão, a rádio, a imprensa, o cartaz; meios de comunicação social 15 Conhecimento interacional. É o conhecimento sobre as ações verbais, isto é, sobre as formas de “interação” por meio de linguagem, engloba o conhecimento ilocucional, comunicacional, metacomunicativo e superestrutural. Na leitura, o sentido já está pré- estabelecido pelo autor.

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Parte II: narrativas da resistência

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O JORNALISMO OPINATIVO COMO NARRATIVA DE RESISTÊNCIA AO PANÓPTICO VIRTUAL QUE MIRA A EDUCAÇÃO NO GOVERNO BOLSONARO

Eduardo Ritter Carolina Ritter

Introdução Pedidos para que alunos filmem professores com o objetivo de identificar e punir qualquer tipo de manifestação ideológica de esquerda por parte dos docentes. Punição com o corte de recursos para universidades que se manifestam contra o governo. Denúncias de alunos em ouvidorias de instituições públicas federais contra educadores que publicaram artigos citando o pensador Paulo Freire. Essas são apenas algumas das tentativas de vigília e punição no campo da educação que aconteceram nos primeiros seis meses do governo do presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PSL) em 2019. Essas tentativas de vigília moral e ideológica onipresente e onisciente que deixa o campo criminal para se estender às outras áreas foi uma das características da reforma jurídica e penal realizada na França do século XVIII. O suplício, em que praticamente todos os crimes cometidos até o fim do século XVII tinham como punição a pena de morte com tortura, é trocado por penas que variam de condenações à morte e prisões até multas e pequenas humilhações morais (FOUCAULT, 2014). Assim, surge o modelo do Panóptico proposto pelo filósofo e jurista inglês Bentham e recuperado por Foucault em Vigiar e Punir (2014). Pelo modelo, retomado mais adiante, uma torre controla tudo o que ocorre em 360° dentro do espaço a ser vigiado, seja um presídio, um hospício ou uma escola. Assim, “o Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder” (FOUCAULT, 2014, p.198). O presente capítulo faz uma recuperação do conceito de Panóptico e de vigília intensiva a partir da obra de Foucault (2014) e do romance de Orwell (2009), analisando como o governo Bolsonaro tenta praticar no universo online contemporâneo as mesmas técnicas de vigília e punição da França do século XVIII. A partir disso, surge a seguinte questão: como é possível construir uma narrativa de resistência à essa vigilância ideológica e moral dentro do jornalismo opinativo? Para tanto, foram selecionados dois textos escritos por jornalistas e docentes do Jornalismo: Felipe Pena e Juremir Machado da Silva. Neles foram identificadas narrativas de resistência em um contexto em que o

109 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares conservadorismo e a construção de um discurso que tenta deslegitimar o conhecimento e a pesquisa ganham espaço e são potencializadas em uma sociedade midiatizada. Assim, inicialmente apresentamos a análise de discurso como principal método utilizado para a realização da pesquisa. Posteriormente é explicitada a construção da narrativa de vigília e punição por parte do governo Bolsonaro utilizando a internet como panóptico virtual para, por fim, analisarmos os textos “Diário da Bozolândia - 12 de março de 2019”, de Felipe Pena, e “A educação na mira”, de Juremir Machado da Silva.

Análise de discurso: a disputa do poder pela palavra Inicialmente é pertinente apresentar uma das definições do que é um discurso:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si (FOUCAULT, 2013, p. 46).

Ainda conforme Foucault (2013), o discurso passa a ser um jogo regido por regras (linguísticas, de poderes simbólicos, de técnicas, de expressões e de silêncios) que inclui uma relação de troca entre atores sociais principalmente no contexto de disputa pelo poder. Assim, para se analisar algo discursivamente, é necessário observar alguns princípios. O primeiro é o da inversão, em que além dos papéis positivos, como o do autor, o da disciplina e o da vontade da verdade, também “é preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso” (FOUCAULT, 2013, p. 49). O segundo é o da descontinuidade, quer dizer, para além do discurso proferido há um grande discurso ilimitado, “contínuo e silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado e que nós tivéssemos por missão descobrir restituindo-se, enfim, a palavra” (FOUCAULT, 2013, p. 49). O terceiro, muito importante, é o da especificidade, que faz referência a não transformação do discurso em jogo de significações prévias. Ou seja, é quando o analista se despe de todos os seus conceitos e pré-conceitos para fazer a análise do discurso. A quarta regra é a da exterioridade: “a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras” (FOUCAULT, 2013, p. 51). Todos esses são princípios sugeridos por Foucault (2013), que foram consideradas ao longo da pesquisa sem, no entanto, ser um limitador da análise, pois optou-se por procedimentos metodológicos abertos. Além disso, uma metodologia aberta também faz parte do pensamento foucaultiano: “Em sua tradição de pensamento, Foucault milita contra discursos tidos como absolutos. O conceito de formação discursiva trabalha com o jogo constante e imprevisível de interferências” (BORGES, 2013, p. 83).

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Também consideram-se as premissas apontadas por Orlandi salientando que para a análise de discurso há necessidade de inserir o homem em um contexto histórico, considerando os processos e as condições de produção da linguagem, fazendo “a análise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer” (ORLANDI, 2013, p. 16). Entende-se, pois, que as mesmas frases ditas em lugares e épocas diferentes podem ter significados totalmente distintos, portanto, é importante, para interpretar tal texto, entender o momento vivido pelo Brasil em 2019.

Vigília e punição como apólogo narrativo Winston Smith era um dos servidores públicos que trabalhava para o governo do Grande Irmão, no fictício 1984, escrito pelo escritor inglês George Orwell, em 1949. Nada escapava aos olhos do governo: cada vez que voltava para casa, Winston cuidava se o seu diário iniciado ilegalmente continuava com o mesmo grão de poeira sobre a capa, pois a ausência denunciaria que alguém estivera lá e mexera em suas páginas. O governo do Grande Irmão contava com o Ministério da Verdade, “responsável por notícias, entretenimento, educação e belas-artes” (ORWELL, 2009, p.14), além de queimar qualquer livro ou papel que contasse a história que realmente havia acontecido enquanto reescrevia o passado glorificando o Grande Irmão. O Ministério da Paz, por sua vez, cuidava das guerras, enquanto o Ministério da Abundância se preocupava com economia, e o Ministério do Amor promovia a Semana do Ódio. O Grande Irmão controlava tudo, sem necessariamente ser visto. Agentes se infiltravam em todas as camadas sociais. Maridos, esposas, amigos, colegas de trabalho, pais, filhos e crianças eram incentivados a denunciar possíveis traidores. O romance 1984 hipoteticamente coloca em prática a apoteose da utopia política de tudo comandar, de tudo vigiar e de punir qualquer falta com a finalidade de evitar novas infrações, além de vingar o Grande Irmão. É a mistura dos objetivos dos príncipes do período dos suplícios europeus, que buscavam na tortura uma vingança pessoal e da população sobre o criminoso, e dos magistrados e juristas autores da pós-reforma do século XVIII, que elaboravam as punições no sentido de evitar reincidência, ou seja, para servir de exemplo ao condenado e a qualquer outra pessoa.

O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente. Um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas, e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido: olho perfeito a que nada escapa e centro de direção ao qual todos os olhares convergem (FOUCAULT, 2014, p.170).

Há uma vigilância hierárquica, com divisão de poderes e privilégios, porém, onde se tenta passar a impressão de igualdade, ou seja, todos estariam atuando socialmente sob as mesmas leis. Para haver hierarquia, a disciplina torna-se fundamental. “O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar: um aparelho onde

111 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplica” (FOUCAULT, 2014, p.168). Chega-se, então, ao modelo Panóptico de Bertham, recuperado por Foucault (2014, p. 192), que apresenta a seguinte definição:

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar.

Esse modelo de vigília, aliás, não é exclusivo dos sistemas penais. Foucault (2014) ressalta que a vigilância disciplinar vai perpassar todas as camadas sociais: as escolas, os hospitais, os quarteis, as empresas com jornadas de trabalho, etc.

(Figura 1) O modelo Panóptipo de Bertham recuperado por Foucault (2014, p.194): “O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente”.

Pode-se imaginar, no entanto, um Panóptico digital, onde o controle e a vigília podem ser feitos através das redes sociais. Não se busca aprofundar aqui conceitos como os de cibercultura ou mídias sociais digitais, pois não é esse o foco da pesquisa, no entanto partilha-se a explicação de Fausto Neto (2008) que considera a midiatização como uma nova natureza sócio-organizacional em que a comunicação passa da fase linear para a fase da descontinuidade, com as noções de fragmento e heterogeneidades substituindo a linearidade das tecnologias eletrônicas. Em uma sociedade midiatizada, a utopia política e disciplinar de tudo vigiar para punir qualquer infração (seja ela penal, moral ou ideológica) parece voltar com toda a força. Chega-se, portanto, à tentativa que algumas instâncias de poder fazem de construir uma narrativa social que converge com a ideia do Panóptico arquitetural. Na versão digital, onde na periferia havia a construção de um anel central, ficam as redes sociais. Em substituição às celas, que atravessam toda a espessura da construção

112 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares e suas respectivas janelas, tem-se os perfis com as suas postagens e fotografias. Já o vigia, que fica na torre central, passa a ser representado pelos discípulos do poder, que no caso brasileiro, vão desde o presidente da república e sua família pseudo-real até os seus seguidores. “Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar” (FOUCAULT, 2014, p.194). O que antes era feito apenas materialmente agora pode ser feito de maneira simbólica no mundo digital. “O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente” (FOUCAULT, 2014, p.194). E como aquilo que foi pensado arquitetonicamente no século XVIII, romanticamente no século XX é lançado digitalmente na sociedade do século XXI? Ora, o exemplo dos primeiros seis meses do governo brasileiro de Jair Bolsonaro em 2019 auxilia a refletir sobre essa necessidade de vigília para a manutenção do poder. Em um dos casos envolvendo o sistema controle-punição do governo brasileiro a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL-SC, mesmo partido do presidente) divulgou nota solicitando que alunos denunciassem professores que fizessem manifestações partidárias ou ideológicas filmando e enviando o vídeo para um número de celular. Mesmo não havendo amparo jurídico para uma punição que pudesse ser imposta aos docentes, a deputada utiliza o discurso como forma de disputa simbólica pelo poder visando impor disciplina no sentido convergente ao do adestramento. Aliás, conforme Foucault (2014) a disciplina é um poder que não se apropria nem retira, mas sim, adestra, e tal adestramento visa multiplicar as forças, assim como ocorre no romance 1984, em que o personagem principal e muitos outros secundários aderiam ao governo do Grande Irmão por puro medo ou comodidade, dando a falsa impressão de que a maioria o apoiava.

Adestra as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais – pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se ficar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. (FOUCAULT, 2014, p.167).

Ou seja, o adestramento, por meio da disciplina, obtida pela vigília e ameaça de punição, surge mediante pequenos procedimentos, diferentemente, por exemplo, da ameaça aos suplícios do século XVII. É através dessas pequenas alterações que os mecanismos e processos são alterados lentamente. “O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame” (FOUCAULT, 2014, p.167). Tem-se, então, a disciplina e a ideia de punição, novamente, não apenas como uma forma de combate a um crime sob o ponto de vista penal, mas também de adestramento

113 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares e de controle. Assim, percebe-se que o governo Bolsonaro tenta criar, ou melhor, retomar e acirrar a ideia de crimes morais e ideológicos, como o que ocorreu na França do século XVIII. Um exemplo claro ocorreu quando o ministro da educação do governo Bolsonaro, Abraham Weintraub, anunciou como punição cortes no orçamento de três universidades federais brasileiras: Universidade de Brasília, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal da Bahia. Mesmo posteriormente estendendo a mesma medida para todas as universidades federais e substituindo a palavra “corte” por “contingenciamento”, numa disputa discursiva, no momento do primeiro anúncio da alteração no orçamento das três instituições citadas, o ministro afirmou que era uma punição pelas “balbúrdias” que teriam acontecido nos seus respectivos campus. Claramente se tem aí dois elementos centrais do Panóptico: 1) a vigia; e 2) a punição. A vigia foi feita justamente através de vídeos e material que circulou através das redes sociais, enquanto que a punição teve três frentes: 1) econômica; pois o orçamento das instituições seria reduzido com o ano em andamento; 2) moral; pois atitudes que vão contra princípios subjetivos e religiosos teriam sido cometidos nas universidades; 3) ideológico, pois as instituições haviam sido palco de manifestações contra o governo. Ou seja, tem-se o governo Bolsonaro agindo de maneira semelhante ao Grande Irmão de 1984: tudo tenta vigiar e punir. Esse é o retorno simbólico ao século XVIII, quando se tentava punir questões subjetivas e não se buscava necessariamente um crime ou um delito, sob o ponto de vista legal, mas sim, o julgamento para “as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade” (FOUCAULT, 2014, p.22). Entrementes, em uma sociedade midiatizada tudo volta ao palco público, bem como ocorria com os suplícios até o século XVII: tudo vira espetáculo. Diante disso, para cada vigília e punição constrói-se uma narrativa com lição de moral: todos devem se submeter ao sacrifício da vigília onipresente e onipotente do Estado em nome de um bem comum. E qual é esse bem comum? O combate por meio da disciplina a qualquer ideologia diferente da defendida pelo Grande Irmão.

Ela [a disciplina] deve também dominar todas as forças que se formam a partir da própria constituição de uma multiplicidade organizada; deve neutralizar os efeitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominá-la: agitações, revoltas, organizações espontâneas, conluios – tudo o que pode se organizar das conjunções horizontais (FOUCAULT, 2014, p.212).

Tem-se, por esta perspectiva, a disputa pelo poder através dos discursos e de narrativas. No caso brasileiro, o governo Bolsonaro, principalmente na educação, tenta construir um apólogo narrativo com personagens bem definidos. Há a clara representação discursiva de um bem contra o mal. A direita contra a esquerda. As universidades contra as escolas. Olavo de Carvalho contra Paulo Freire. A partir dessa narrativa, que sempre tenta lançar uma lição de moral para justificar a ameaça da punição, chega-se ao surgimento de uma resistência pública. É nesse cenário que

114 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares aparece o jornalismo opinativo como uma possibilidade de narrativa alternativa a criada pelo governo Bolsonaro e lançada pela sociedade. Narrativas essas que são facilmente replicadas pelo jornalismo informativo, que na maioria dos casos se limita a reproduzir as declarações das fontes oficiais, possibilitando a criação de apólogos aceitos acriticamente por grande parte da sociedade midiatizada.

A resistência nas colunas de opinião de Juremir Machado da Silva e Felipe Pena Nos anos 1960 e 1970, Mohammed Reza Pahlevi, xá do Irã, aniquilou qualquer possibilidade de desenvolvimento intelectual e de pesquisa entre os iranianos. Em seu livro-reportagem sobre o último xá daquele país, o jornalista Ryszard Kapusinski salientou o ódio e a perseguição do ditador iraniano às universidades. “Abrir novas universidades, uma politécnica? Cada escola dessas é um vespeiro! Cada estudante é um rebelde, um inútil, um livre-pensador! ” (KAPUSINSKI, 2012, p.78). Essa era a forma de pensamento do maior líder do país sobre a possibilidade de investir em educação, afinal, estudantes podem, inclusive, aprender a pensar sozinhos ea questionar o poder, algo que o xá não queria, bem como o Grande Irmão de Orwell (2009). Assim, a maior parte daqueles que queriam estudar acabou deixando o Irã. “Essa fuga de cérebros foi a grande tragédia do país” (KAPUSINSKI, 2012, p.78), concluiu o jornalista, que ainda faz a seguinte reflexão sobre o ódio que ditaduras e governos que primam pela disciplina/adestramento pensam sobre o livre-pensamento: “Ao destruir a elite intelectual e a cultura de um país, a ditadura deixa atrás de si um solo vazio e estéril, o qual deverá passar por um longo e penoso período de recuperação antes que rebrote nele a árvore do pensamento” (KAPUSINSKI, 2012, p.79). Ainda no Oriente Médio, mas dessa vez no Paquistão, uma adolescente é alvejada a tiros enquanto teimava em desobedecer aos talibãs e frequentar a escola. Trata-se de MalalaYousafzai, que em 2012 quase morreu após sofrer tentativa de execução dentro de um ônibus escolar. Apesar de seu relato ter percorrido o mundo, os atentados às escolas são comuns no país. “No Swat começamos a ver mais sinais de que o Talibã nunca saíra realmente do vale. Mais duas escolas sofreram explosões e três voluntários estrangeiros [...] foram sequestrados e depois assassinados” (MALALA, 2013, p.214). A mesma situação é descrita pelo jornalista espanhol Antonio Pampliega em seu livro- reportagem escrito sobre o Afeganistão. Aliás, qualquer tipo de entretenimento ou diversão é proibido no país: “Vive em uma zona que está sob controle dos talibãs, onde a diversão ou a alegria não tem espaço” (PAMPLIEGA, 2018, p.287). A tentativa de vigília e controle da educação, bem como em qualquer área relacionada à cultura e ao entretenimento, é uma das características de qualquer grupo que deseja chegar e se manter a qualquer custo. E não é diferente com o governo Bolsonaro, conforme já mencionado. Durante a campanha eleitoral para o pleito presidencial de 2018, Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando.

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Temos que debater ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança chamas no MEC para tirar Paulo Freire de lá1”. Além disso, ele afirmou ser contra o pensamento crítico: “Eles defendem que ter que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com pensamento crítico”. O então candidato constrói uma narrativa de combate ao pensamento crítico, que é potencializada em uma sociedade midiatizada, com tendências a se tornar facilmente, também, idiotizada. Além disso, após a eleição, esse discurso é legitimado pelo presidente e passa a ser posta em prática, então, a vigília e a tentativa de punição. Situação nesse sentido foi registrada logo no primeiro mês de governo Bolsonaro, quando a professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Rosana Pinheiro-Machado foi denunciada na ouvidoria da instituição por citar Paulo Freire em artigos. Mesmo sem haver uma punição para a atitude, que é condenada moralmente e ideologicamente pelo presidente da República, se cria um sinal de alerta para que todos saibam que a vigília discursiva está em rigor. Paulo Freire defendia a educação crítica e libertária, tão atacada pelo governo Bolsonaro. Critica o viés mercadológico da educação, bem como a educação bancária, que se resumiria ao ato de “depositar”: os educandos são os depositários, o educador o depositante, representando a separação entre os “detentores do saber” e aqueles que nada sabem, sendo este modelo opressor e reprodutor do modo de produção capitalista. Defende, deste modo, uma educação que não pode estar dissociada do contexto e da realidade econômica, social, histórica e cultural inserida, sendo esta educação crítica um mecanismo de resistência e transformação social (FREIRE, 2015). Transformação que implicaria a consciência e a autonomia dos sujeitos, o que parece não condizer com o “projeto” capitalista dependente de Bolsonaro. Chega-se, portanto, às formas de resistência a essa tentativa de criação de um apólogo narrativo que criminaliza ideologias, opiniões e o pensamento crítico. Uma dessas possibilidades, agora analisadas, são as colunas de opinião, que anteriormente ocupavam as páginas das revistas e dos jornais, e que hoje se estendem para o universo online, seja em versões digitais de veículo jornalísticos, em blogs ou nas redes sociais. “A coluna corresponde à emergência de um tipo de jornalismo pessoal, intimamente vinculado à personalidade do seu redator” (MARQUES DE MELO, 1994, p.137). O primeiro caso é o texto escrito pelo jornalista e professor Juremir Machado da Silva2, em sua coluna no jornal Correio de Povo. Primeiramente é preciso ressaltar que, conforme apontado por Ritter (2018), Juremir Machado é um jornalista parresiasta, ou seja, que faz uso da fala franca no espaço público assumindo riscos por tal atitude. Além disso, os textos do referido jornalista e professor, bem como os de Felipe Pena, repercutem. “Os discursos proferidos por eles incomodam aos poderosos e repercutem. Esse parece ser um dos principais desafios para jornalistas que pretendem fazer uso de sua parresía” (RITTER, 2018). O texto escrito por Machado da Silva para a breve análise neste capítulo é “Educação na Mira” (MACHADO DA SILVA, 2019). Nele, o jornalista apresenta uma narrativa de resistência à vigilância bolsonarista. “Kant era iluminista. Ele ordenou:

116 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares ousa saber. Jair Bolsonaro é mais ousado. Ele ordena: acabem com a educação. E libera armas para que o povo se eduque por contra própria” (MACHADO DA SILVA, 2019). Com ironia, uma das características de quem faz uso da parresía, o autor se dirige diretamente ao presidente, que aliás já foi entrevistado diversas vezes pelo jornalista durante a sua trajetória como deputado federal e como candidato. Sabendo da aversão de Bolsonaro pela intelectualidade, Juremir Machado da Silva começa citando Kant.

O alvo são as universidades públicas. No delírio do bolsonarismo triunfante, universidades, especialmente nas ciências humanas, servem para produzir comunistas ensandecidos. Estimulado pelo seu guru astrólogo, que não tem diploma, mas se considera doutor em tudo, o presidente, por meio do seu novo ministro da Educação, um ex-agente do mercado financeiro, resolveu podar o orçamento das universidades públicas em pelo menos 30%. O critério inicial era inovador: balbúrdia (MACHADO DA SILVA, 2019).

O colunista escreve fazendo referência a punição mencionada anteriormente, resultante de uma vigília online e intensiva. O corte de 30%, chamado posteriormente de contingenciamento pelo governo, é uma maneira de punir as universidades, sem executá-las diretamente. Assim como as penas passam a não visar o corpo, a partir do século XVIII na França: o objetivo deixa de ser agredir o corpo do condenado, para fazê-lo sofrer emocionalmente. “Pois não é mais o corpo, é a alma. A expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (FOUCAULT, 2014, p.21). A partir do comentário a essa tentativa de vigília e punição do governo sobre as universidades públicas, Juremir Machado vai desvelando o pensamento bolsonarista, apresentando uma narrativa de resistência ao poder. Ele cita, por exemplo, a perseguição do discurso bolsonarista aos cursos de ciências humanas, considerando eles pouco práticos e úteis para a sociedade. “As grandes universidades do mundo mantêm departamentos de ciências humanas. A filosofia tem mais de dois mil anos de bons serviços prestados a um mesmo objetivo: ensinar a pensar. Ou seja, a analisar e criticar” (MACHADO DA SILVA, 2019). Conforme ressaltado anteriormente, o combate ao intelectualismo e ao pensamento crítico é uma forma de manter o poder, afinal, o discurso filosófico, principalmente quando apoiado em levantamentos sociológicos e antropológicos, podem ser uma arma poderosa contra qualquer governo autoritarista e contra o status quo. Machado da Silva (2019) chega, pois, ao inimigo identificável e com um nome apontado pelo governo brasileiro: os comunistas e a esquerda. A vigilância passa a querer identificar, nas diversas instituições, quem são essas pessoas. Mesmo sem amparo legal para fazer tal perseguição, o governo Bolsonaro segue implementando um discurso, valendo-se sempre das redes sociais, para encontrar comunistas e puni- los. Assim como o inimigo, as punições também são subjetivas.

O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são substituídos. Novo personagem entra em cena, mascarado. Terminada uma tragédia, começa

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a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que se ater, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea (FOUCAULT, 2014, p.21).

Após construir uma narrativa de criminalização da esquerda e do comunismo, con- forme declara Machado da Silva (2019), os bolsonaristas passam a ver comunistas em todas as pessoas que frequentam as universidades. “Guris barbudos e meninas não de- piladas carregando livros do marxista italiano Gramsci e do brasileiro Paulo Freire. Não haveria problema se fossem de Olavo de Carvalho e Roberto Campos. O bolsonarismo é a favor da doutrinação, desde que seja a sua” (MACHADO DA SILVA, 2019). Ele cita, ainda, um dado Censo da Educação Superior de 2017: Dos 1.283.431 alunos de gradu- ação das federais, 25.904 estão em cursos de filosofia ou sociologia — 2% do total. No entanto, “para o bolsonarismo ainda é muito. Chama a atenção a ignorância dos bolso- naristas sobre a realidade universitária” (MACHADO DA SILVA, 2019). Por fim, o jornalista encerra justamente mencionando a convergência entrea ideologia do governo Bolsonaro com a de outros governos autoritários, como os do Oriente Médio, já citados, e o fictício Grande Irmão de Orwell (2009):

A educação no Brasil corre perigo. Por trás do slogan simplório – ensinar a ler, escrever, calcular e arranjar um emprego – esconde-se uma proposta belicista: calar o que pensa diferente. O autoritarismo sempre sonha com um ensino técnico destituído de ideias. É a sua maior ideologia (MACHADO DA SILVA, 2019).

Apontamentos semelhantes, mas citando outros episódios e punições mais específicas que ocorreram nos primeiros meses de governo Bolsonaro, aparecem no texto do jornalista, escritor e professor Felipe Pena3, intitulado “Diário da bozolândia - 12 de março de 2019”, publicado no Facebook na data referida no título. Após a eleição de Bolsonaro, Pena passou a publicar regularmente textos de opinião nas redes sociais que receberam o título “Diário da bozolândia”, acompanhado da data. Assim, tais narrativas se caracterizam por ter regularidade, tratando sempre da mesma temática: política. Portanto, mesmo sendo publicados exclusivamente nas redes sociais, tais textos podem ser considerados jornalisticamente como colunas, afinal “trata-se de uma colcha de retalhos, com unidades informativas e opinativas que se articulam. São pílulas, flashes, dicas” (MARQUES DE MELO, 1994, p.138). No texto selecionado para a presente análise, Pena (2019) inicia mencionando outras temáticas antes de abordar assuntos relacionados a educação. Primeiramente, Pena apresenta a normalidade com que a imprensa brasileira trata o fato de o suspeito de matar a vereadora carioca Marielle Franco e o motorista Andeson Gomes, em 2018, morar no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro, a poucos metros da casa do presidente. “O filho de Bolsonaro foi namorado da filha do PM, mas o presidente diz que não o conhece. A imprensa parece julgar irrelevante essa proximidade. Poucos se atrevem a dar a devida atenção ao tema” (PENA, 2019), comenta o autor, mesclando informação

118 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares com interpretação e opinião, fazendo referência ao acusado, Ronnie Lessa. As ligações da família Bolsonaro com Lessa são desenvolvidas até a metade do texto, quando a temática educação assume o primeiro plano. Pena (2019) apresenta alguns episódios envolvendo vigília e punição cometidas pelo governo Bolsonaro de forma não-oficial.

Sob ameaças, a filósofa e política Márcia Tiburi, decide sair do país. Como acabou de terminar um livro sobre as eleições de 2018 e as fake news, cujo prefácio foi escrito por Lula, a autora optou pelo auto-exílio devido à obrigatoriedade de andar com seguranças em eventos e necessitar de enorme força-tarefa para contra-atacar mentiras na internet, além de ter sua vida pessoal virada ao avesso (PENA, 2019).

A exemplo do que havia acontecido com o deputado federal Jean Willys, conforme o mesmo autor, Márcia Tiburi também teve que deixar o país, pois ela já estava sendo punida pelo sentimento de medo instaurado por Bolsonaro e seus seguidores a qualquer apoiador ao Partido dos Trabalhadores ou potencial comunista. Assim como na França do século XVIII, tenta-se punir qualquer tipo de conduta considerada anormal por quem está no poder. O jurista Le Torse, por exemplo, publicou texto, recuperado por Foucault (2014) datado de 1764 convocando o Estado francês para perseguir e punir qualquer um que fosse suspeito de vadiagem:

Contra eles, pede as mais severas penas (e estranha significativamente, que se tenha mais indulgência para com eles que para os contrabandistas); quer que a polícia seja reforçada, que a cavalaria os persiga ajudada pela população vítima de seus roubos; pede que as pessoas inúteis e perigosas ‘sejam adquiridas pelo Estado e lhe pertençam como seus escravos a seus senhores’; e se for o caso, que se organizem batidas coletivas nos bosques para desentocá-los, sendo dado um salário a cada um que fizer a captura (FOUCAULT, 2014, p.87).

Ou seja, com o discurso de solicitando a sociedade para combater algo que sequer é caracterizado como crime legal, o presidente brasileiro de meados do século XXI constrói uma narrativa de perseguição e punição a quem defende uma ideologia diferente da sua. Não é necessário, assim, haver uma lei decretada que condene uma pessoa de esquerda, pois os seguidores do governo tratam de fazê-lo com ameaças e perseguições. Adiante, Pena (2019) segue denunciando outros casos de vigílias e punições cometidas dentro e fora do governo por bosonaristas. Ele cita a seis exonerações que ocorreram dentro do Ministério da Educação (MEC):

Olavo de Carvalho, guru dos bolsominions, continua a mandar no governo. Após ter causado seis exonerações no ministério da Educação, ele critica Ricardo Vélez: “Recomendei o ministro Vélez, mas se ele cometer erro, ponham-no para fora!”.

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Em resposta submissa, o ministro demite o secretário-executivo da pasta. O pseudo-filósofo também comanda o ministério das relações exteriores. Éo fantasma falastrão no poder (PENA, 2019).

Combinando informação, interpretação e opinião, Felipe Pena transforma o seu jornalismo opinativo praticado nas redes sociais em uma narrativa de resistência, a exemplo do que está sendo feito por Juremir Machado da Silva. Conforme explica Bosi (1996), trata-se de uma narrativa de resistência porque esse tipo de discurso escrito surge justamente como uma forma de combater através da cultura os governos fascistas e nazistas das décadas de 1930 à 1950 na Europa. “As opções de cada escritor, por diferenciadas que fossem, se destacavam todas de um mesmo fundo axiológico, que se pode qualificar de mentalidade antiburguesa gerada dialeticamente como um não lançado à ideologia dominante” (BOSI, 1996, p.22). Esse é o caso dos dois autores que tiveram seus textos brevemente abordados neste capítulo. Ao mesmo tempo em que resistem, eles também se arriscam, ao fazer o uso de sua parresía no espaço público, ou seja, Pena e Machado da Silva levantam-se, tomam a palavra e apontam os erros e as injustiças sociais cometidas pelos poderosos, que no Brasil de 2019, estão claramente preocupados em disciplinar, adestrar, vigiar e punir.

Considerações finais A normatização das condutas, conforme demonstra Foucault em seus estudos sobre a formação da sociedade, é algo antigo. Inicialmente, ainda nos impérios grego e romano, discutem-se os pilares fundadores do viver social que envolve o concreto e o imaginário: a ética, a moral, o discurso, a democracia, o dizer a verdade, o mito, o direito, as leis, as punições. Posteriormente, no período consagrado como Depois de Cristo (D.C.) a religião se torna, por um longo período, o principal norte para normatizar condutas, sendo ainda o texto religioso o principal na formação de leis de países com governos ortodoxos. Para evitar e combater comportamentos não normatizados, a vigília e a punição sempre estiveram presentes. Em outra obra, Foucault (2008) descreve a necessidade criada pela sociedade ocidental para identificar e isolar o diferente, chamado então de louco. “A loucura só existe em cada homem, porque é o homem que a constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através das ilusões com que se alimenta” (FOUCAULT, 2008, p.24). Criam-se ao longo dos séculos locais onde essas pessoas, classificadas de loucas, devem ser colocadas, dando origem aos hospícios. Assim como no caso dos presídios, criam-se espaços distintos para se colocar criminosos e loucos. “A loucura tornou-se algo para ser visto: não mais um monstro no fundo de si mesmo, mas animal de estranhos mecanismos, bestialidade da qual o homem, há muito tempo, está abolido” (FOUCAULT, 2008, p. 148), comenta o autor, referindo-se, mais uma vez ao século XVIII.

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Desde então um tipo de pessoa oscila entre a classificação de criminoso e louco: aquele que se opõe a governos opressores. Tem sido assim com as grandes ditaduras da humanidade, afinal, basta observar os exemplos recentes de Mao Sé- Tung, na China, do fascismo e nazismo na Europa ou do islamismo ortodoxo no Oriente Médio. Em países teoricamente democráticos do século XXI, essa tentativa de marginalizar o discurso de resistência varia, ora o ridicularizando para que ele e o seu autor sejam classificados como loucos, ora o perseguindo, colocando-os na categoria de criminoso. Como foi apontado, no caso dos seis primeiros meses de governo Bolsonaro, há uma preocupação maior por parte do governo de vigiar e punir discursos dissidentes, classificando-os, portanto, de criminosos. E o inimigo é, ideologicamente, a esquerda, atropelando-se leis, Constituição e princípios básicos de democracia, pontos, aliás, que podem ser aprofundados futuramente por esses ou outros pesquisadores. Conforme visto, uma das preocupações do governo Bolsonaro passa a ser, portanto, o controle do discurso no que se refere à educação. Criou-se um panóptico virtual que tenta vigiar para, posteriormente, punir estudantes, professores e, em último grau, as próprias instituições públicas, em especial as universidades. Nesse cenário, ganham força os discursos de autores, especialmente pesquisadores e jornalistas, que apresentam uma narrativa de resistência. Desafio esse, ainda mais difícil e representativo em uma sociedade midiatizada em que a criação e circulação das fake news já estão instaladas no corpo social e parece ser impossível de serem significativamente removidas. Finaliza-se o presente capítulo ressaltando a necessidade de mais estudos sobre essas narrativas de resistência para que se entenda melhor os movimentos que ocorrem nos dois sentidos: de um lado, o governo, com seu panóptico virgual tentando criar uma narrativa de hegemonia normativa para a sua ideologia capitalista e de direita, criminalizando e estigmatizando ações contrárias; e de outro os discursos de jornalistas, escritores, professores e qualquer pessoa do corpo social midiatizado que apresente uma narrativa contra-hegemônica, que teoricamente garantiria uma democracia mais visível nesta primeira metade de século XXI.

Notas ______1 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/04/por-que-o-brasil- de-olavo-e-bolsonaro-ve-em-paulo-freire-um-inimigo.shtml. Acesso em: 20 de junho de 2019. 2 O jornalista e professor Juremir Machado da Silva, atualmente trabalha como colunista do jornal Correio do Povo (Porto Alegre-RS) e do site correiodopovo.com.br, como apersentador do programa Esfera Pública da Rádio Guaíba (Porto Alegre-RS) e como

121 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares professor do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (RITTER, 2018). 3 Felipe Pena é jornalista, psicólogo, escritor, roteirista, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e colunista do jornal Extra, do Rio de Janeiro-RJ.

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RITTER, E. Parresía jornalística: a fala franca de Juremir Machadoda Silva no embate discursivo com Luis Fernando Verissimo no texto de opinião. Mídia e Cotidiano N.1 abril de 2018. Disponível em: http://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/ article/view/9870/7000. Acesso em: 25 de junho de 2019.

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CORPOS DE 1968: MOVIMENTO ESTUDANTIL E UTILIZAÇÃO DA MORTE NA RESISTÊNCIA À DITADURA MILITAR

Leylianne Alves Vieira

1968 e seus ataques contra o outro Não foi um ano comum. 1968 permanece socialmente entre nós enquanto houver política, movimentos sociais, feminismo, racismo, homofobia, luta - armada ou não. Segundo Zuenir Ventura (2008), em seu célebre título de livro, ele ainda não terminou, nem sabemos se um dia chegará ao fim. Seus personagens também continuam entre nós, tanto os que morreram quanto aqueles que sobreviveram. Conservam-se em meio ao caótico contexto político do final da década de 2010. Mais de cinquenta anos depois, personagens de 1968 têm o que nos dizer. José Dirceu, por exemplo, continua como referência no plano social, mesmo pouco falando sobre o movimento estudantil do qual fez parte. Da mesma maneira, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, Evandro Teixeira e Elinor Brito continuam personagens de 1968, trazendo relatos de memórias, agora revistas e repensadas, aos novos e velhos ouvintes. Elizabeth Jelin (2002) nos alerta para uma das principais características da memória: não importa em qual momento ou lugar, será sempre impossível uma memória uniforme. Os 50 anos que se passaram desde os acontecimentos, em especial, não permitem que surja uma tal interpretação una, especialmente quando pensamos em perspectiva os movimentos políticos e sociais que vivemos nos últimos anos. A autora enfatiza que “a passagem do tempo histórico, político e cultural implica necessariamente novos processos de significação do passado, com novas interpretações. E então surgem revisões, mudanças nas narrativas e novos conflitos”1 (JELIN, 2002, p. 57, tradução nossa). Vivemos um destes momentos de conflito. As disputas em torno das memórias da ditadura e de seus personagens ressoam na política, nas discussões de bar, nas postagens em redes sociais online. Reverberam por meio de suas narrativas. As memórias necessitam da enunciação para que sejam construídas, desconstruídas e reconstruídas, contínua e não sistematicamente. Além disso, os sujeitos que se colocam como personagens neste campo de batalhas precisam nutrir ao menos duas características: 1) o testemunho, o caráter vivido; e 2) a vontade

124 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de narrar. Jelin (2002) ainda afirma que é preciso que existam sujeitos dispostos a ouvir, para que as narrativas emergem no campo social. Outra característica das narrativas que se fazem sobre as memórias são os esquecimentos. Cada sujeito, de forma não necessariamente premeditada, porém também não ingênua, delimita suas narrativas em torno daquilo que lhe é mais confortável lembrar. Falamos aqui de narrativas em torno da dor, da perseguição, da repressão. Falar de ditaduras é escolher do que lembrar. Tratar da dor é mexer novamente naquilo que causou o sofrimento. Rememorar as ditaduras, hoje, é falar de corpos que foram estendidos pelas ruas do país, que foram carregados nos braços por jovens. Corpos destruídos pelos militares e reconstruídos pelos movimentos estudantis. Para mirarmos as formas como retomamos as memórias de 1968, utilizamo- nos das possibilidades que nos dá Todorov (2000): de maneira literal ou exemplar. De acordo com a primeira, os acontecimentos são acionados de forma estéril, recorrendo-se apenas aos fatos que estejam ligados àqueles, sem colocá-los em interação com outros acontecimentos ou contextos. Já na segunda, mais frutífera, na visão do autor, é possível se utilizar de outros acontecimentos para construir aquele que pretendemos rememorar, contribuindo, inclusive, para que haja justiça. Neste processo, o movimento estudantil tem se mostrado um importante personagem para o ano de 1968. Neste texto, veremos como foram construídas as narrativas em torno da memória de dois estudantes mortos pela ditadura em 1968, Edson Luís e José Guimarães, mirando os elementos narrativos utilizados (MOTTA, 2013) e as formas de utilização da memória narrada (TODOROV, 2000; SARLO, 2007; JELIN, 2002). Estamos diante de dois corpos não inertes no tempo e veremos como movimentam as memórias da ditadura militar.

Edson Luís e José Guimarães: o que significam estes corpos? Os movimentos de contestação à ditadura se davam nos locais por onde passavam estudantes e trabalhadores. O Calabouço era um destes pontos. Um restaurante popular localizado na região central do Rio de Janeiro, por onde passavam cerca de sete mil2 pessoas por dia. A maior parte estudantes secundaristas, mas também outros trabalhadores que recebiam muito pouco para sobreviver. Os relatos afirmam que a comida não era das melhores, mas permitia àqueles que dela usufruíam a sobrevivência na cidade grande. Foi dentro do Calabouço que morreu, com um tiro no peito aos 18 anos, o paraense Edson Luís Lima Souto, em 28 de março de 1968. O Calabouço foi um dos principais pontos de encontro dos estudantes no Rio de Janeiro durante a ditadura militar. Os secundaristas tentavam exercer pressão sobre o governo. De acordo com as memórias de Josué Alves Diniz, comensal que frequentou o restaurante, “[...] o Calabouço passou a representar muito mais do que um simples espaço onde fazíamos as nossas refeições. Aquele lugar era o ponto de

125 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares partida para uma conquista do direito à liberdade, à igualdade, à justiça social e o fim de qualquer descriminação das quais éramos vítimas” (DINIZ, 1986, p. 22). Um primeiro edifício do Calabouço foi demolido em 1967, em função de reformas urbanas, o que povoou as páginas dos jornais, demonstrando certo apoio dos veículos à causa estudantil. Reconstruído, foi entregue inacabado. Mais uma vez, os veículos de imprensa se colocaram a favor dos comensais. Foi sob este clima que se deu a manifestação de 28 de março. Os secundaristas reivindicavam melhorias na alimentação e no prédio. Nas memórias de Diniz (1986), naquele tarde de quinta-feira os comensais planejavam inaugurar uma pira, simbolizando a luta em prol de melhores condições e por um país democrático. Em seguida, sairiam em passeata. Pouco antes, chegou o ‘choque’, o que culminou na morte de Edson Luís. Esta referência à pira, no entanto, não faz parte da memória reconstruída de 1968, não está nos enquadramentos que acessamos. A reivindicação desta memória parte de Diniz, envolvido diretamente nos eventos, testemunha, interessado em justificar e contextualizar a ação dos estudantes. É por meio dos detalhes inseridos na narrativa que Diniz, enquanto narrador, pretende assumir relevância no quadro de construção das memórias de 1968. Como afirma Sarlo, “O sujeito não só tem experiências como pode comunicá- las, construir seu sentido e, ao fazê-lo, afirmar-se como sujeito” (2007, p. 39). Diniz é um destes sujeitos e narra o que presenciou. O assassinato de Edson Luís é considerado o primeiro a se dar em público durante a ditadura militar. Seu corpo foi carregado pelos manifestantes até a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, então localizada na Praça da Cinelândia, por receio da destruição das provas. Foi impedido até mesmo que o corpo fosse retirado para autopsia. É o corpo sem vida do estudante que vai estampar as capas dos jornais. É a proteção deste corpo que vai marcar a luta dos estudantes para que se fizesse justiça, para que o governo fosse considerado culpado de uma ação truculenta pública. Na manhã seguinte ao assassinato, o Jornal do Brasil (JB) trazia em sua capa (Figura 1) a seguinte manchete: “Assassinato leva estudantes à greve nacional” (JORNAL DO BRASIL, 1968, p. 01). A capa estampa uma fotografia do corpo de Edson Luís sendo velado. Outra fotografia nos mostra o uso público que foi feito da camisa ensanguentada do estudante como bandeira para as manifestações. O corpo e a camisa são elementos recorrentemente utilizados nas construções narrativas do acontecimento.

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Figura 1 - Capas de Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo em 29 de março de 1968

Fontes: Google News Archive JB (esquerda) e Acervo Folha (direita).

Ainda segundo a capa do Jornal do Brasil,

O estudante Édson Luís foi conduzido pelos companheiros à Santa Casa de Misericórdia, onde, constatada sua morte, iniciou-se o cortejo rumo à Assembleia Legislativa. O corpo foi erguido nos braços da multidão que entoava o brado ‘polícia assassina’ ao dar entrada na Assembleia. Ali houve, durante a noite, vários comícios estudantis, de protesto contra o Governo – e uma multidão postou-se, até à madrugada, na expectativa dos acontecimentos (JORNAL DO BRASIL, 1968, p. 01).

A Folha de S. Paulo, distante geograficamente dos acontecimentos, também aponta para a truculência da ação policial. Na capa que foi às bancas durante a manhã lê-se “Estudante morto em choque no Rio” (FOLHA..., 1968, p. 01). Sem fotografias, uma primeira referência ao que havia acontecido na noite anterior. Na edição da tarde (Figura 1), é lançada uma associação com o governo do estado: “Polícia de Negrão chacina estudantes” (FOLHA..., 1968, p. 01). A capa ainda fala em tiro à queima-roupa e traz uma fotografia do velório, sem caixão, podendo ser visto o corpo do estudante ladeado por seus colegas. Mais uma vez, observamos a centralidade do corpo. Nas narrativas analisadas não há homogeneidade quanto à identidade do policial que matou o estudante. Ele pode ser o tenente ou aspirante Alcindo ou Costa, no JB, ou

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Tenente Alcino Costa, na Folha. O mesmo acontece em relação ao próprio estudante morto: há referências a ele como Nelson Luís, Nilson Luís ou Edson Luís, entre outras. A construção do personagem ‘Edson Luís’, que não era uma figura de destaque do movimento estudantil, começa naquelas páginas de jornal. Acerca da utilização das vestimentas do estudante como elemento narrativo, a Folha afirma que “a camisa ensanguentada do estudante Nelson Luís Souto foi agitada como bandeira utilizada para angariar fundos com os quais serão realizados os funerais do jovem” (1968, p. 14). Já o Jornal do Brasil explicita que “enquanto se discursava, a camisa ensanguentada de Édson Luís era usada para coletar donativos para o custeio do enterro” (1968, p. 18). Os textos apresentados até agora enfatizam a comoção dos estudantes em torno do corpo, o alerta e a proteção àquele que é a ‘prova’ da truculência do governo. Destacam-se termos como assassinato e chacina, denúncias presentes no plano da metanarrativa (MOTTA, 2013) da notícia: a mudança no discurso da imprensa em torno do regime. No correr do ano, no entanto, a imprensa passou a tratar os estudantes de forma diferente e prova disso é a forma como foi abordada a morte de José Guimarães, também estudante, à qual passamos agora a mirar. Este segundo personagem foi morto no centro de São Paulo, em conflito que ficou conhecido como Batalha da Maria Antônia. A rua, até hoje, está caracterizada pela presença de instituições educacionais. A região, por si, é composta por universidades e escolas, sendo comum, assim como o era na década de 1960, a circulação de estudantes por aqueles logradouros. Seis meses após a morte de Edson Luís, este outro confronto também envolveu estudantes. O conflito dos primeiros dias de outubro tinha suas peculiaridades. A primeira delas era a organização do congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE) naquele estado em meados do mês. A segunda, a existência de milicianos dentro das instituições de ensino da cidade. No dia seguinte ao início dos conflitos, a capa da Folha de S. Paulo estampa uma fotografia de alunos ligados à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL)3 em uma barricada. A legenda trata explicitamente do caso: “Estudantes da Filosofia- USP lançam pedras contra alunos do Mackenzie, no interior desta escola, durante um conflito que durou três horas, ontem de manhã, na Rua Maria Antônia, e no qual foram feridos jovens de ambos os lados” (FOLHA..., 1968, p. 01). O conflito se dava entre estudantes, civis e universitários, é o que nos mostra o plano de expressão, os termos selecionados pelo narrador para identificar personagens e ações (MOTTA, 2013). Sem manchete na capa, a notícia referente ao acontecimento aparece apenas na página 17. O conflito é então nomeadamente chamado de guerra. A página é composta por três fotografias e um mapa da região onde estão localizadas as instituições de ensino. Mais uma vez, a legenda das fotografias aponta para uma disparidade no tratamento dos dois grupos civis: os alunos do Mackenzie estão ‘acuados’ dentro da escola, ao

128 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares passo que os estudantes da Filosofia ‘atiram pedras’ de um prédio em construção e estão no corredor interno do Mackenzie. O conflito é tratado pelos jornais como encerrado nas primeiras três horas, após intervenção da polícia. De acordo com a Folha, com a chegada da Guarda Civil, a ‘luta’ foi reduzida a vaias dos estudantes da USP que também gritavam “Mackenzie é da Polícia. Vocês são fascistas” (FOLHA..., 1968). Em contrapartida, o texto assume que os ferimentos mais graves foram causados pelas ‘bombas’ de ácido sulfúrico atiradas de dentro do Mackenzie, em direção à Filosofia. A narrativa do JB, além de colocar o Mackenzie como iniciador dos ataques, justifica o início do conflito: “a briga [...] começou quando alunos da Universidade Mackenzie atiraram pedras e ovos em secundaristas que pediam donativos para o congresso da ex-UNE. Segundo informações, os universitários eram auxiliados por membros do Comando de Caça aos Comunistas [CCC]” (1968, p. 14). No extrato anterior, duas são as informações que destacamos do plano da estória (MOTTA, 2013): 1) a menção ao congresso da UNE e 2) a participação do CCC. Os líderes estudantis são apresentados como aqueles que incitam a rebelião. Vejamos o que diz o Jornal do Brasil:

O presidente da ex-UNE, Luís Travassos, que chegou depois de iniciado o conflito, passou a incentivar os que apenas assistiam à luta. O presidente da ex- UEE, José Dirceu, orientava alguns estudantes na montagem do esquema de segurança, pois temia que os mackenzistas invadissem a Faculdade de Filosofia (JORNAL..., 1968, p. 14).

Travassos e Dirceu respondem taticamente pelo conflito, estão à frente, representam organizações extintas e lideram uma ofensiva contra uma universidade defendida por policiais. No entanto, a narrativa construída é de uma guerra civil, sendo seus personagens vândalos, criminosos, aqueles que se defendem de ataques a tiros, bombas e ácido. Já no primeiro dia, é retirada qualquer possibilidade de salvaguarda daqueles estudantes em relação às consequências de seus atos. Podem ser considerados culpados pelos prejuízos, materiais ou não. No dia seguinte, a capa do jornal carioca, como podemos ver na Figura 2, deu destaque substancialmente menor à morte do estudante José Guimarães, ocorrida em 3 de outubro, quando comparado ao caso Edson Luís. No JB, apenas quatro parágrafos na capa, sob o título ‘Luta de estudantes provoca morte de jovem em São Paulo’. Já na Folha de S. Paulo, mesmo assumindo lugar no topo da página, a manchete ‘Jovem morto; depredações na cidade’ assume o caso como um conflito sem participação militar e provocado pela desordem no movimento estudantil.

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Figura 2 - Capas de Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo em 04 de outubro

Fontes: BNDigital (esquerda) e Acervo Folha (direita).

No plano da estória, estamos diante de um cenário de guerra, destruição. O movimento estudantil perde, ao longo do ano, o apoio que possuía. Se no primeiro caso, em março, há revolta pela morte de Edson Luís, José Guimarães é apenas mais um corpo, um caso que beira a banalidade, um civil morto por outro civil, um estudante morto por outro estudante. Não é possível ver, por exemplo, imagens do cadáver publicadas nas capas de 4 de outubro. José Guimarães não será um novo Edson Luís, seu corpo não atrai as mesmas multidões, não causa revolta, algo mudou, na narrativa da imprensa e nos movimentos de contestação de 1968. O primeiro parágrafos do texto publicado na capa do JB apresenta a morte do secundarista, sem citar nomes, confirmando o óbito por perfuração a bala na cabeça. Além de registrar o ferimento de mais uma criança e um número não determinado de universitários, o texto afirma que

Durante a luta, os dois grupos não foram incomodados pela polícia, que ficou apenas observando, mas às 15 horas, quando alunos da Faculdade de Filosofia saíram em passeata, junto com secundaristas, os policiais intervieram depois que eles incendiaram cinco carros, prendendo 30 pessoas (JORNAL..., 1968, p. 01).

O texto demonstra um papel que não condiz com a imagem criada pelos militares nos meses anteriores. Em outras ocasiões, registra-se a forte repressão aos estudantes. Neste caso, no entanto, eles não interferiram. Os carros incendiados eram viaturas, o

130 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares que levou à reação. A polícia não protege o patrimônio da universidade pública, mas sim aquilo que é atacado pelos estudantes. Da mesma forma, supostamente também não ataca ou protege estudantes, mas recursos patrimoniais. Já a Folha de S. Paulo afirma que

Após a morte do jovem, alunos da USP realizaram em sinal de protesto, uma passeata pela cidade, marcada pela violência, e durante a qual incendiaram quatro carros do governo do Estado e depredaram mais dois. A manifestação durou duas horas, quando a Força Pública interveio e prendeu 35 estudantes e seis jornalistas (FOLHA..., 1968, p. 01).

O texto afirma que a passeata seria uma forma de protesto pela morte do colega, marcando o posicionamento dos manifestantes. Ressalta as marcas deixadas na cidade, de destruição, como já afirmava a manchete. A capa ainda destaca o uso de armas de fogo, não especificando quem as estaria manuseando, mas aponta que esta informação foi grifada pelo governador Abreu Sodré, ao salientar as condições da morte de José Guimarães. A Folha ainda afirma que os estudantes pretendiam adiar o enterro, a fim de transformá-lo em uma grande manifestação, nos moldes daquela que ocorreu por ocasião da morte de Edson Luís. Esta intenção, no entanto, não se tornaria real. De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV),

[...] a família de José Guimarães teve dificuldades para ter acesso ao corpo, uma vez que o mesmo ficou sob o controle do DOPS, e só foi liberado do IML após autorização do órgão. José foi velado em casa e a rua foi interditada pelo Exército, que apenas permitiu a entrada de pessoas devidamente identificadas. O enterro ocorreu, sob escolta dos órgãos da repressão, no cemitério do Araçá, em São Paulo, SP (BRASIL, 2014, p. 250).

Sobre a passeata realizada após a morte do estudante, o acontecimento é descrito na Folha como uma barbárie. O relato é de caos e de uma violência gratuita, realizada quase que unilateralmente pelos estudantes da USP. A ira estaria voltada contra os símbolos da repressão: veículos oficiais, bancos e ônibus. Há ênfase na utilização de armas de fogo, como pode ser lido no trecho a seguir:

Um secundarista de 20 anos morto com um tiro na cabeça, três universitários feridos a bala e mais de uma dezena com ferimentos resultantes de pedradas, além do incendio (sic) de 5 carros do governo estadual, e pelo menos 30 presos, esse o saldo (sic) da batalha campal travada ontem, durante 10 horas, entre alunos da Universidade Mackenzie e da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia (FOLHA..., 1968, p. 12).

Assim como aconteceu no caso de Edson Luís, algumas contradições envolvem a construção narrativa da figura de José Guimarães. A principal delas, no que tange aos jornais, diz respeito ao velório do jovem. Segundo o texto da Folha de S. Paulo, “o caixão para o enterro de José Guimarães foi doado pelo sr. Arnaldo Siqueira, diretor do

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Instituto Médico Legal. A família concordou em que o corpo fosse velado no CRUSP, para onde seguiu logo após a autopsia” (FOLHA..., 1968, p. 12). Como já verificamos, esta informação não se confirmou. Quanto à participação de Guimarães em movimentos políticos, “Sua irmã Ma- ria Eugenia diz que José Guimarães não participava do movimento estudantil. Essa afirmação, todavia, é contrariada pelos seus colegas, que afirmam ter ele comparecido por diversas vezes a Faculdade de Filosofia, participando das reuniões dos estudantes” (FOLHA..., 1968, p. 12). Assim como Edson Luís, estamos diante de uma figura que não pertencia aos quadros do movimento estudantil, mas cuja morte, durante manifes- tações, pode servir ao movimento. Corpos que se aproximam em suas funções repre- sentadas após a morte. Porém, o contexto as separa, fazendo com que o uso da morte de José Guimarães não siga o mesmo rumo daquele que se deu após o assassinato de Edson Luís. O local do assassinato do segundo estudante também não é fato comum para os jornais. Segundo a Folha de S. Paulo, o jovem teria sido morto no seguinte cenário:

Tiros partem do interior do prédio do Mackenzie. Um deles atinge José Guimarães na cabeça. Ele tomba nos braços de seus dois colegas, sendo retirado às pressas do telhado e levado para a churrascaria. Não há ambulância nem médico. No carro de um jornal é levado para o Hospital das Clínicas. Mas não chega com vida. O ferimento fora mortal. Era a primeira vítima da luta entre o Mackenzie e a Filo-USP (FOLHA..., 1968, p. 12).

Se a descrição feita pela Folha é repleta de detalhes, não o é menos a do Jornal do Brasil: “[José Guimarães] Foi atingido na cabeça por uma bala de calibre 38 por volta das 15h30m, quando acompanhava uma passeata dos universitários na Rua da Consolação. Socorrido no Hospital das Clínicas, morreu às 15h40m” (JORNAL..., 1968, p. 07). Como percebemos, as duas discordam quanto ao local do acontecimento. Se para a primeira versão o rapaz tinha participação ativa nos combates, na segunda assume a função de sujeito quase passivo. Sobre a manifestação, as fotografias que acompanham os textos jornalísticos contribuem para criar o clima de terror e guerra que marcaria a imagem daquela ‘batalha campal’ ao longo dos anos. Nelas, José Dirceu aparece como o líder que empunha uma camisa ensanguentada, bandeira para um movimento já tido como violento. As imagens são de guerra. José Guimarães não é um sujeito que precisa ser conhecido, descrito, pelo qual a população deve chorar e lutar para que os culpados sejam punidos. O responsável é o próprio movimento estudantil e seus líderes, que agora possuem nas mãos o sangue de um secundarista. A reação, tanto dos jornais quanto dos cidadãos, é difere daquela registrada após a morte de Edson Luís. Se a primeira foi o despertar dos cidadãos para as manifestações de 1968, a segunda começa a sepultar a imagem do movimento estudantil

132 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares e de seus líderes. Cinquenta anos depois, o que nos resta destes dois personagens-corpos de 1968? Vejamos no próximo tópico.

Cartografias dos corpos da ditadura: cinquenta anos de mortes Edson Luís e José Guimarães são personagens de livros de memórias de 1968, referências para monumentos em espaços públicos e citados em textos jornalísticos que se propõe a recontar, atualizar e repensar 1968, a década de 1960 no país ou mesmo a ditadura militar. No entanto, suas memórias são acessadas de formas diferenciadas, assim como se deu a construção dos personagens no tempo dos acontecimentos. Seus nomes reverberam. No entanto, identificamos aqui duas formas distintas de acesso às memórias: o primeiro, de forma exemplar, colocada em perspectiva, acionado por outros corpos; o segundo, em um campo de batalhas pelas memórias de um acontecimento, no entanto, de forma literal (TODOROV, 2000). Como afirma Beatriz Sarlo (2007), só podemos lembrar no presente, marcados temporalmente pelos acontecimentos que se seguiram ao original, ao mesmo tempo em que

[...] os que lembram não estão afastados da luta política contemporânea; pelo contrário, têm fortes e legítimas razões para participar dela e investir no presente suas opiniões sobre o que aconteceu não faz muito tempo. Não é preciso recorrer à ideia de manipulação para afirmar que as memórias se colocam deliberadamente no cenário dos conflitos atuais e pretendem atuar nele (SARLO, 2007, p. 61).

A memória é política. Tem usos e abusos políticos. Neste cenário, a memória de Edson Luís está mais sedimentada, uma vez que o próprio movimento estudantil, representado pela figura da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), faz a ele homenagens recorrentes no mês de março, quando da efeméride de sua morte. Já José Guimarães, tendo suas manifestações silenciadas pelos militares e ressignificadas no correr dos acontecimentos, persiste como um morto em batalha campal civil, pouco referenciado ou buscado. Mesmo a Universidade de São Paulo e sujeitos-narradores como José Dirceu continuam a tratar do personagem na superfície, mais preocupados em desmistificar a Batalha da Maria Antônia que desvendar quem foi José Guimarães, buscando inserir o Comando de Caça aos Comunistas e os milicianos como personagens centrais. Vejamos, então, como se deu a rememoração destes personagens nas co- memorações dos 50 anos de 1968, em 2018. Comecemos por Edson Luís. Em março, quando a UBES se preparava para convocar manifestações pela efeméride, como acontece todos os anos, outro acontecimento acionou a memória do estudante, também pela brutalidade e pela potencial participação de policiais militares: o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). De imediato, no dia seguinte à execução, postagens em redes sociais deram início a um movimento de aproximação entre as duas figuras.

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Figura 3 - Montagens conjungando as imagens de Edson Luis e Marielle Franco

Fontes: União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (esquerda) e Ultrajano (direita).

Na Figura 3 podemos observar dois exemplos de postagens realizadas, ambas em sítios na internet. Nelas é possível percebermos que os personagens e aqueles que se colocam ao seu redor são postos em perspectiva, igualados, são lutas que continuam a existir mesmo após 50 anos. Esta forma de recuperação do acontecimento pode ser lida nos termos de Todorov (2000), como o uso exemplar da memória. Se este é um uso que permite utilizar o passado com vistas ao presente e se aproveita de lições deixadas por injustiças para lutar contra as que se produzem hoje, podemos identificar que o caso Edson Luís foi retomado com o intuito de lidar com o acontecimento de 2018. Houve a possibilidade, portanto, de retomarmos a memória do jovem a partir de um acontecimento repressivo pós-ditatorial. À esquerda na Figura 3, os dois personagens estão dispostos lado a lado. Houve o recorte do fundo, sendo mantidos apenas os retratados. Como forma de aproximação entre as duas fotografias, ambas estão em preto e branco. A fotografia de Edson Luís é aquela que mais se repete dele ainda vivo. Na composição, ambos os personagens estão sérios e com o olhar voltado para o extraquadro. A fotografia de Marielle Franco faz parte do acervo da Agência O Globo. Ao pensarmos a tomada original de ambas as imagens, teremos que “interrupções como essas [...] são como ‘pausas silenciosas do destino’, que só tardiamente percebemos que continham o germe de uma vida inteiramente diversa daquela que nos foi concedida. Previsões que se voltam para o futuro do pretérito” (LISSOVSKY, 2014, p. 188). Nenhum dos personagens concluiu seus projetos. Suas imagens, contudo, permanecem ativas nas narrativas do campo social. Sobre isso, Barros afirma que “[...] a memória é, afinal, a nossa história mais do que a história dos que são supostamente objeto dessa memória” (2017, p. 158). A narrativa construída a partir da conjugação dos dois personagens ressignifica Edson Luís, dando- lhe valor político atual, contemporâneo. Se ele não esteve envolvido no movimento

134 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares estudantil, sua imagem está, podendo ser assumido como um personagem político. Seu acionamento por meio de Marielle mostra isso. Já no caso da imagem disposta à direita na Figura 3, as duas fotografias da composição se referem à comoção em torno dos caixões na Cinelândia. Os corpos foram velados no mesmo edifício, uma vez que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 1968 é hoje a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, à qual estava ligada a vereadora. Os manifestantes que demonstram apoio aos dois sujeitos ocupam um mesmo espaço, símbolo de manifestações de resistência no Rio. Ao mirarmos a fotografia do enterro do estudante, projetamos nela aquilo que sabemos sobre o passado: aquele acontecimento foi seguido pela Sexta-Feira Sangrenta, pela Passeata dos Cem Mil, pela Batalha da Maria Antônia, pela edição do AI-5. Podemos perceber que “é por via da expectativa que o futuro nelas se infiltra. Procurar pelo futuro nas fotografias é procurar pelos vestígios da espera” (LISSOVSKY, 2014, p. 189). Utilizar o futuro que vemos nas fotografias do passado para expectar acerca do futuro nos acontecimentos do presente é tentar utilizar as fotografias como motores para a utilização da memória exemplar: estar alerta a situações novas e análogas, na busca pela justiça (TODOROV, 2000). Se percebemos que em 2018 Edson Luís continuava a ser acionado como um personagem capaz de movimentar multidões, de demonstrar a truculência do governo, um movimento bem diferente é observado em relação a José Guimarães e à Batalha da Maria Antônia. Em livro de memórias, José Dirceu descreve a participação de Guimarães nas manifestações:

[...] a direita assassinou, com um tiro na cabeça, o estudante seminarista José Carlos Guimarães, do Colégio Marina Cintra, situado na Consolação. José Guimarães era um dos defensores do prédio, como centenas de outros estudantes, que acorreram à Maria Antônia ao saberem da agressão. Como nossa meta não era ocupar o Mackenzie e sim defender a Maria Antônia, decidi por uma retirada para evitar novas mortes e não propiciar pretexto para uma repressão generalizada ao Movimento Estudantil. Depois de um comício relâmpago na rua Visconde de Cairu, onde discursei empunhando a camisa ensanguentada de José Guimarães, saímos em passeata pelo centro, denunciando o assassinato do jovem e pobre estudante, que viera estudar e trabalhar em São Paulo (DIRCEU, 2018, posição 1331).

Nesta passagem, as histórias de José Guimarães e Edson Luís se misturam. Segundo as informações levantadas, não é possível afirmar que o jovem tenha ido a São Paulo com a intenção de estudar e trabalhar. Ele morava naquela cidade juntamente com a irmã e a mãe. Por uma falha que pode ser atribuída à revisão, o estudante é definido como ‘seminarista’, o que também não está em diálogo com as demais narrativas. Dirceu, no entanto, trabalha para reforçar a sua imagem enquanto líder estudantil: o uso do verbo decidir, por exemplo, denota o poder que o estudante teria frente aos demais. A autobiografia também descreve a utilização da camisa ensanguentada: a menção ao objeto é responsável por trazer à narrativa o impacto da construção desta imagem, na

135 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares qual um líder empunha um objeto que remete à morte. Tendo Dirceu a possibilidade de expor suas próprias visões do acontecimento, recai no que Jelin classifica como a febre memorialista que tem corrido a América Latina nos últimos anos. A autora trata do caso Argentino, mas podemos traçar paralelos entre as duas situações. Segundo ela,

A febre memorialista do presente tem outras características, e outros perigos, tema que remete necessariamente ao debate acerca dos ‘abusos de memória’, título do pequeno e provocante livro de Todorov (1998) [...] O abuso de memória que o autor condena é aquele que se baseia em preservar uma memória ‘literal’, na qual as vítimas e os crimes são vistos como únicos e irrepetíveis4 (JELIN, 2002, p. 32, tradução nossa).

Dirceu narra um acontecimento único e sem detalhes. Se a história de José Guimarães não sofre avanços, não há um movimento para descrever sua biografia ou de sua família, o recurso ao personagem se dá de forma literal (TODOROV, 2000), um detalhe na narrativa, a menção ao sujeito morto, a descrição da camisa ensanguentada como elemento construtor dos demais personagens e de suas ações no plano social. A morte como a justificativa para as ações tomadas pelos demais personagens. José Guimarães é mais um elemento narrativo que mesmo um personagem. Nas publicações realizadas pela Universidade de São Paulo a tônica se vê repetida. Ambos os narradores, USP e Dirceu, se colocam no cenário de luta pela memória e tentam instaurar uma nova leitura da batalha, a partir da observação de que aquela não era uma guerra civil, mas sim amparada pelos militares. Entre os materiais publicados pelo Jornal da USP5, nenhum diz respeito especificamente a José Guimarães. O estudante morto se diferencia de forma substancial de Edson Luís. Não há qualquer tentativa de criação deste personagem para além dos elementos básicos: nome, idade, filiação e colégio. José Guimarães não é um personagem central, não requer discussão.

Considerações finais: Edson Luís e José Guimarães continuam a reverberar Se em 1968 estávamos diante de personagens cujas abordagens por parte da mídia foram diferenciadas, observamos o eco destas abordagens nas construções que se seguem, depois de cinco décadas. Naquele momento, Edson Luís foi tomado como um exemplo, como um corpo que deveria ser defendido firmemente, uma imagem que atrairia o povo para a luta dos estudantes, provaria que aquela luta era desproporcional, injusta, que apenas os que se colocavam contra o governo estavam morrendo. É a fotografia do jovem morto que estampa os jornais, em um momento em que a ética jornalística permitia o uso da figura de um morto no topo da capa do jornal. Edson Luís e José Guimarães não podem construir as memórias de si, contam com a atividade e predisposição de outros personagens para continuarem vivos. São

136 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares as narrativas que se sustentam no tempo que podem construir e reconstruir a memória destes personagens. Eles continuam estudantes, continuam mortos pela ditadura. O movimento estudantil não deixou desaparecer parte da memória daqueles que foram mortos lutando contra um governo ditatorial. Da mesma forma, universidades públicas também não pretendem que se perca a participação dos militares, infiltrados ou não, nas mortes de 1968. É o dever de memória de cada um destes narradores, e mesmo o nosso que ora escrevemos este texto, que permite que os personagens continuem vivos. Como afirma Nora, “[...] é preciso ter vontade de memória” (1993, p. 22). Quando comparamos os planos narrativos construídos pelas narrativas que têm em Edson Luís um personagem central, ele persiste como um símbolo para os movimentos de contestação ao abuso de poder militar e paramilitar, após cinco décadas. O uso exemplar que é feito desta figura faz com que as metanarrativas que estão no plano de fundo de sua história e da de Marielle Franco sejam equiparadas: as décadas separam os acontecimentos, mas é justamente o que os corpos significam que tornam possível a comparação, a aproximação, entre eles. O tempo é um dos principais elementos a serem analisados e considerados quando tratamos das construções de memórias. É ele que permite que os acontecimentos sejam colocados em perspectiva, tenham suas intencionalidades descobertas e, sobretudo, colocadas a mostra. Por outro lado, pode ser este mesmo tempo que acoberta as memórias, fazendo com que elas percam força. Neste sentido, é a força dos grupos com interesse na desconstrução e reconstrução das memórias que vai se mostrar superior, lutando nas batalhas pelas memórias. “A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar” (SARLO, 2007, p. 25). Esta atualização, mosaico de tempos e miradas, é a parcela que observamos das memórias. Se há um grupo de personagens interessados em rever e re-narrar os acontecimentos referentes à Batalha da Maria Antônia, como é o caso do próprio José Dirceu e da Universidade de São Paulo enquanto personagem social, é por meio das narrativas, tornadas públicas, que eles vão poder se inserir neste campo de interesses. A análise que aqui fazemos mostra-nos que estas narrativas não se apropriam de José Guimarães de uma forma que vá além daquela permitida pelo governo militar. O jovem secundarista segue como uma morte silenciada pelo sistema repressivo. Se em 1968 a repercussão da morte de Guimarães se mostrava um problema que deveria ser contido, mudando-se, por exemplo, o horário do sepultamento para que o movimento estudantil não pudesse se utilizar dele como forma de manifestação, em 2018 José Guimarães não passa de um nome, um manifestante atingido por um tiro que partiu de uma arma de um policial infiltrado em uma instituição de ensino. Desvendar quem é este policial e as implicações de sua infiltração dentro da instituição de ensino são objeto de discussão. A figura de José Guimarães, no entanto, é utilizada de forma literal, infrutífera, estéril. Um corpo ao qual o movimento estudantil fez menção de utilizar, mas cuja potencialidade foi asfixiada, e continua a ser, pelo regime ditatorial. Em 1968, os jovens assassinados pelo regime representavam, em um primeiro

137 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares momento, a possibilidade de sensibilizar a população, de demonstrar o que não queria ser visto por muitos: vivíamos uma ditadura militar no Brasil. As batalhas se davam em um reflexo internacional baseado na guerra fria entre direita e esquerda, capitalismo e comunismo. Após cinquenta anos, continuamos uma batalha muito semelhante, entre direita e esquerda, a demonização daqueles que lutam por mais educação para sujeitos colocados à margem pela sociedade. Edson Luís e José Guimarães eram personagens pobres, que em alguma medida foram colocados em meio às manifestações estudantis. Após cinquenta anos, continuamos a percebê-los nas narrativas da ditadura, embora as reflexões sobre eles sejam realizadas de formas diferenciadas. A influência do governo militar continua a balizar as leituras que fazemos das memórias narradas. Edson Luís, José Guimarães e 1968 continuam sendo reescritos.

Notas ______1 “El paso del tiempo histórico, político y cultural necesariamente implica nuevos procesos de significación del pasado, con nuevas interpretaciones. Y entonces surgen revisiones, cambios en las narrativas y nuevos conflictos” (JELIN, 2002, p. 57). 2 Número estimado por Josué Alves Dinis em suas memórias (DINIZ, 1986). 3 Atualmente, após reorganizações institucionais, é chamada Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). 4 “La fiebre memorialista del presente tiene otras características, y otros peligros, tema que remite necesariamente al debate acerca de los «abusos de la memoria», título del pequeño y provocador libro de Todorov (1998) […] El abuso de memoria que el autor condena es el que se basa en preservar una memoria «literal», donde las víctimas y los crímenes son vistos como únicos e irrepetibles” (JELIN, 2002, p. 32). 5 O Jornal da USP publicou, ao longo de 2018, uma sequência de textos especiais sobre os acontecimentos envolvendo a universidade e seus corpos docente e discente em 1968, divulgando exposições, livros e palestras, além de defender abertamente uma releitura dos acontecimentos, aprofundando-se no papel desempenhado por milícias e militares nos eventos.

Referências

BARROS, Ana Taís Martins Portanova. “Imagens do passadoe do futuro: o papel da fotografia entre memória e projeção”. In:Matrizes , v. 11, n. 1, jan./abr. 2017. Disponível em: . BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. v. 3. Brasília: CNV, 2014.

138 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares DINIZ, Josué Alves. Calabouço 1968: O cerco das trevas. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra, 1986. DIRCEU, José. Zé Dirceu: memórias. São Paulo: Geração Editorial, 2018. FOLHA DE S. PAULO. São Paulo: Grupo Folha, 1921-. JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro: 1891-. LISSOVSKY, Mauricio. Pausas do destino: teoria, arte e história da fotografia. Rio de Janeiro: Mauad, 2014. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise Crítica da Narrativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História (Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História/Departamento de História, PUCSP), v. 10, 1993, p. 7-28. SARLO, Beatriz. Tempos Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad.: Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras / Belo Horizonte: UFMG, 2007. TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000. VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 3. ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.

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O SENTIDO DOS DIREITOS (NÃO) HUMANOS: NARRATIVAS MIDIÁTICAS PROTAGONIZADAS POR JAIR BOLSONARO

Patrícia Regina Schuster

Para começo de conversa Ao longo de 2018, o Brasil costurou uma narrativa - e a mídia é entendida aqui como peça fundante deste processo – ímpar para si. O acontecimento “disputa eleitoral”, cujo desfecho se deu no mês de outubro daquele ano, serviu como estrutura simbólica responsável pelo preenchimento de uma cadeia significativa igualmente singular para vários temas que orbitam o debate público, entre eles, os direitos básicos dos cidadãos (saúde, educação, moradia, segurança, liberdade de pensamento e expressão, crença religiosa...), os quais podem ser sumarizados como direitos humanos. Há uma teia de sentidos edificados acerca deste assunto, que concorre tanto para reafirmar sua importância, quanto para desqualificá-la. Nessa perspectiva, o jornalismo, tido como um braço midiático, é o lugar de produção e difusão desses conhecimentos. É ele o responsável por eleger quem e quais são os eixos que darão materialidade a esta pauta. Nossa proposta de capítulo é, assim, analisar como Jair Bolsonaro – percebido como um dos protagonistas midiáticos, sobretudo, nas polêmicas que cercam a questão que aqui estamos focando - atravessa narrativas jornalísticas. Cumpre ressaltar que, graças ao último processo eleitoral, que culminou na sua eleição para presidente, não só a sua presença nessa paisagem se intensificou, como suas afirmativas – reeditadas pelo discurso jornalístico – ampliaram seu valor de autoridade. A ideia, então, é concentrar esforços nos seguintes questionamentos: como foi narrativizada essa temática1 e que efeitos de sentido ali são pretendidos? São essas as inquietações que se sobressaem neste estudo. Para dar conta de elucidá-las, fracionamos nosso raciocínio em três partes. A primeira se presta a debater como os direitos humanos são ordenados pelas narrativas jornalísticas. Para tal, não nos limitaremos a um único veículo ou a uma única plataforma. O objetivo consiste numa recomposição genérica de como esse conteúdo se apresenta como fato jornalístico. Num segundo momento, dedicamo-nos ao agente que investe de materialidade significativa o assunto que nos guia no trabalho. É a sua dinâmica funcional (MOTTA,

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2007) no processo de reportar o “real” que vamos investigar. Já na direção de um desfecho, efetuamos – sob a custódia da Análise de Discurso de matriz francesa – a investigação, propriamente dita. Coletamos um conjunto de quatro notícias, todas de 2018, cujo mote central é a associação de Bolsonaro ao objeto “direitos humanos”. As últimas observações acerca do nexo comunicativo/narrativo entabulado por eles arrematam nossa empreitada.

A narrativa dos direitos humanos sob os holofotes jornalísticos Data do século XVIII, mais precisamente do ano de 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, o momento em que o homem passa a ser visto como detentor de direitos naturais. Mais tarde, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelas Organizações das Nações Unidas (ONU), é que esses direitos são, efetivamente, afirmados, tanto sob o ponto de vista universal, ou seja, sem fazer distinção aos destinatários desse ou daquele Estado; quanto inabalável, cuja concepção é que os direitos dos homens devem ser proclamados, reconhecidos e, ainda, salvaguardados contra o próprio Estado que, por ventura, os queira violar (BOBBIO, 2004). É sobre as urdiduras jornalísticas feitas a respeito dessa noção de direitos humanos que nos guiaremos nesta etapa. Não podemos auferir a época exata que ela passou a frequentar o ambiente midiático/ jornalístico brasileiro, ainda mais nessa feição “irmanada”, isto é, não fragmentada como direito à vida, à alimentação, à liberdade de expressão, de pensamento, de crença, entre outros, mas somos capazes de recuperar a “era” que marcou a consolidação de uma narrativa que alia os direitos humanos à defesa de vítimas ou ainda de criminosos. No Brasil, essa “mutação” discursiva está respaldada na Ditadura Militar (1864 – 1985), “momento em que grupos, movimentos e entidades sociais lutavam pelos direitos dos presos e perseguidos políticos” (SAVY, 2017, documento eletrônico). Logo, mesmo depois do reestabelecimento do Estado Democrático de Direito, recobrado com a promulgação da Constituição de 1988, o sentido errático segue ofertando guarida à narratividade sobre essa questão. E, se seguirmos o modelo analítico proposto por Motta (2007), veremos que ele opera como o principal “encaixe” na montagem da serialidade dos enredos sobre direitos humanos. Pudemos testemunhar tal fato na execução de um exercício que se norteou pelo exame da construção da identidade do sujeito defensor dos direitos humanos na mídia a partir do assalto à Maria do Rosário2. O acontecimento jornalístico que envolveu a deputada federal reconstituiu – as reportagens abarcadas pelo corpus conduziram a tal asserção - a história de um anti-herói, de uma vilã sórdida, cuja função foi dar visibilidade ao discurso da incoerência (como alguém que é assaltada segue fazendo ativismo em prol dos direitos humanos?). Trata-se, alega Motta (2007, p. 154, grifos do autor), de algo comum à práxis jornalística:

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Tal como o cidadão comum ordena os dados de seu curriculum vitae de acordo com seus objetivos, o jornalista possui igualmente liberdade ao modelar o “retra- to” que constrói de uma pessoa pública. O perfil ou “retrato” jornalístico envolve uma dimensão de pesquisa e inquérito, mas não é mera reprodução ou reflexo do “real”, é uma construção que mobiliza a subjetividade do repórter. O seu papel não se limita a “descrever” pessoas que existem na vida real. A subjetivação pres- supõe que se apresente a personagem como uma interpretação e uma construção e não como uma ilusão referencial, destinada a abolir a consciência da mediação jornalística.

Os veículos de comunicação brasileiros - na sua maioria -, entretanto, negam qualquer tipo de atravessamento no gesto de recontar o presente. Negligenciam para suas audiências que o que fazem é uma interpretação da realidade, em que as significações são postas a disputar terreno por um dado consenso. O caso dos direitos humanos não é exceção. O fundo ético e moral – incluso na lista de Motta (2007) – se faz audível e reconhecível em boa parte das notícias que dão vasão a esse conteúdo. É certo que as histórias sobre direitos humanos (sejam elas sobre quem os defende, quem os cobra) são entretecidas a partir de um repertório vivo – que apresenta concretude na esfera social. Porém, ao se valerem de sentidos que habitam as tais “metanarrativas culturais” (MOTTA, 2007) - e a principal delas, no caso, é a de que “bandido bom é bandido morto” – pouco ou quase nenhum espaço sobra para que discursos outros possam fazer eco, consigam realizar algum tipo de ruído que fuja de sequências narrativas condicionadas a regular quem são os “humanos” aptos a gozarem de direitos. Em outras palavras, quando movimentos declaradamente identificados com a causa se colocam em litígio pela fala jornalística, dificilmente não terminam na condição de “réus”, discursivizados como ímpios. É o que vemos, diariamente, por exemplo, nos chamados programas policialescos, capitaneados por José Luiz Datena, Luiz Bacci... É inequívoco que esse movimento faça jus a uma série de regras que acompanham a prática do fazer jornalístico, entre elas os critérios de noticiabilidade, linhas editoriais e mais uma batelada de determinações que eximem o discurso de possíveis comprometimentos. Todavia, há uma situação peculiar à matéria direitos humanos que costuma ser ainda mais imperiosa para o território midiático, qual seja, de que a própria agenda emancipatória dos direitos humanos não se harmoniza com a ordem capitalista que alicerça essas empresas. Trindade (2010, p. 236, grifos do autor) nos acode:

para além do capital, a contradição entre o marxismo e os direitos humanos estará superada mediante a própria superação social e histórica do direito – portanto, dos direitos humanos – enquanto forma social e correspondente às relações humanas do modo de produção capitalista. É essa a possibilidade histórica entrevista por Karl Marx e Friedrich Engels. Mas há outra possiblidade: o capital seguir dominando indefinidamente. Seria, então, impensável qual futuro poderia estar à espera da humanidade.

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O jornalismo, frente a esse contexto, implementa aquilo que podemos rotular de esquecimento anunciado. Se o esquecimento é basilar para a linguagem e dizer pressupõe sempre um deslembrar de outras maneiras que poderiam ser ditas, não há como os meios de comunicação fabricarem uma narrativa para os direitos humanos “[...] oposta à que predomina hoje, rebaixada, preconceituosa e, muitas vezes, fruto de manipulações grosseiras por parte de profissionais da própria mídia” (RAMOS; PAIVA, 2007, p. 7). Se assim o fizesse, a batalha entre a repetição e a atualização, que é constitutiva do sujeito e dos sentidos (ORLANDI, 2012), poderia legitimar dizeres habilitados a criar rachaduras nas relações de poder (lembrando que a mídia ocupa papel central nesse pleito). Considerando tais prerrogativas, passemos agora a averiguar àquele que se propõe – nesta reflexão - a dar fisicalidade às falas que cruzam o discurso jornalístico.

Jair Bolsonaro: a personagem e sua singularidade histórica Jair Messias Bolsonaro nasceu em 21 de março de 1955, no município de Campinas (SP). É militar da reserva e em 28 de outubro de 2018 foi eleito presidente da República do Brasil. Antes disso, exerceu durante 28 anos ininterruptos mandato como deputado federal. Entre tantas outras possibilidades aptas a nos socorrer na realização do tensionamento que aqui buscamos – sejam elas agentes políticos ou não – a escolha por ele justifica-se, por óbvio, pelo cargo ao qual foi alçado no último ano. Para além desse aspecto, Bolsonaro projetou-se politicamente amparado no discurso da moral e dos bons costumes. Em contrapartida, tem fugido, ao longo da sua trajetória, seja como deputado federal, seja como chefe máximo da nação, de algumas liturgias do(s) cargo(s), ao propalar mensagens de ódio e agressividade. Talvez a expressão mais contundente desse comportamento tenha ocorrido no dia da votação que culminou no impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, quando ovacionou a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais cruéis torturadores da Ditadura Militar. Ciocarri e Persichetti (2018, p. 202-203) nos cedem mais alguns argumentos que o distinguem como personalidade política:

Jair Bolsonaro é membro ativo e uma das principais vozes dessa parcela da população que defende a redução da maioridade penal e faz apologia explícita às armas. Some-se a isso o fato de ter se envolvido em casos de racismo e misoginia amplamente divulgados pela imprensa. Bolsonaro corrobora a exacerbação de discursos negativos tão presentes na sociedade contemporânea.

Messias, Mito e Capitão foram alguns dos apelidos – ainda que o primeiro seja parte do nome real de Bolsonaro – que estamparam seu material de campanha. Tais “operadores” têm sido decisivos para ofertar uma outra regularidade enunciativa sobre essa personagem.

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Por quê “outra”? Ora, porquê os fragmentos veiculados pela mídia acerca dele produziram (até 2016) uma memória esvaziada. Ou melhor, as parcas passagens que o puseram em evidência no discurso jornalístico retratavam-no como o “homem mediano”3, como um dia descrevera Eliane Brum. Por vezes, chegou a aparecer como uma figura até excêntrica, por dizer abertamente o que pensava. Vale lembrar que as manifestações só ganharam os holofotes pelo teor machista, sexista, homofóbico, racista e por aí afora. A biografia jornalística – repito, até dado momento histórico – beirava clichês como a de “bobo da corte”. Assim, de político ordinário, Bolsonaro foi projetado – graças a um jogo de forças que é simbólico, e, ao mesmo tempo, definidor de qualquer questão social, e não por conta de uma suposta mudança real – como a personagem jornalística “salvadora da pátria”. Há nessa comutação de um “mesmo” uma materialidade discursiva que se esburaca, que, segundo Pêcheux (1999, p. 53), “perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase”. Numa possível releitura de Orlandi (1999), podemos afirmar que o que antes era falta – e não falha, dada a quase insignificância de Bolsonaro na arena midiática - passa a ganhar novos sentidos.

Há, assim, “furos”, “buracos” na memória, que são lugares, não em que o sentido se “cava” mas, ao contrário, em que o sentido “falta” por interdição. Desaparece. Isso acontece porque toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento produzido por eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. Como a memória é, ela mesma condição do dizível, esses sentidos não podem ser lidos. (ORLANDI, 1999, p. 65-66, grifos da autora).

É, portanto, entendível que alguém que por quase três décadas praticamente esteve à margem da produção de uma memória passe a ser narrativizado como uma espécie de avatar, preparado para exterminar uma das maiores chagas brasileiras: a corrupção. Para os veículos pertencentes aos grandes conglomerados (salvo algumas exceções), ele começou a ser perfilado como o justiceiro. E não foram só as alcunhas – propícias à consolidação dessa personagem – que abriram caminhos para que Bolsonaro passasse a ser reduzido jornalisticamente a isso. A polarização do cenário político - da qual percebemos a mídia como uma das molas propulsoras - arquitetou-o quase sempre num cotejamento direto com alguma pessoa ou episódio ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Na prática, isso reverberou da seguinte maneira: de um lado estava o paladino da ordem e do progresso; de outro, os corruptos, que diuturnamente estavam às voltas de escândalos como o da Lava Jato. É em vista disso que o “curriculum vitae” – reproduzindo a analogia de Motta (2007) – do então presidente foi ganhando qualificações que lhe tiraram o status de coadjuvante político.

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Na sequência, nos dispomos a dar um passo além nas configurações desse papel, aí já fazendo a imersão nas narrativas sobre os direitos humanos.

O sentido dos direitos humanos em narrativas midiáticas protagonizadas por Jair Bolsonaro: do conflito à desumanização

Daqui em diante, imbuída da tarefa de encontrar respostas para aquilo que nos impusemos como objetivo central, interpretaremos a topografia discursiva das reportagens abaixo expostas.

TÍTULO VEÍCULO DATA Bolsonaro diz que se eleito ‘bandidagem vai morrer’ porque União não repassará G14 23/08/2018 recursos para direitos humanos Discurso contra direitos humanos O Estado de de Bolsonaro é ‘perigoso’, diz alto 29/08/2018 S. Paulo5 comissário da ONU Jair Bolsonaro diz que violência ‘passou iG São 22/10/2018 da linha do absurdo’ Paulo6 Em meio à polêmica do Enem, Congresso Bolsonaro chama direitos humanos de 05/11/2017 em Foco7 “esterco da vagabundagem”

Fonte: Elaborada pela autora.

Compete-nos, antes, explicar os porquês da eleição deste corpus. Uma das nossas atitudes analíticas diz respeito ao espaço temporal: optamos por circunscrevê-lo ao período anterior à eleição de Bolsonaro para presidente (2017 – 2018). A outra se refere à maneira com que selecionamos os textos. Rastreamos no Google matérias através da soma dos termos “Bolsonaro” e “Direitos Humanos”. Das centenas de ocorrências capturadas, delimitamos nossa escolha a quatro reportagens8 pelos seguintes motivos: repetição de uma mesma postura jornalística9 ante às declarações e situações envolvendo Jair Bolsonaro10; diferentes veículos (todos eles na ambiência digital), com distintos posicionamentos editoriais, mas com reconhecida conduta no que tange à credibilidade; e, por fim, mas não menos importante, o tamanho disponibilizado para a confecção deste artigo. Toca esclarecer ainda que nosso objeto – os textos – será analisado na sua íntegra (título, entretítulo, cartola, legenda). A reportagem do G1 traz, depois do título que faz alusão direta aos direitos humanos - Bolsonaro diz que se eleito ‘bandidagem vai morrer’ porque União não repassará recursos para direitos humanos -, a seguinte afirmação de Bolsonaro:ONGs de direitos

145 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares humanos prestam um ‘desserviço ao Brasil (SD111). No corpo do texto, a declaração se repete acrescida das frases: Segundo o presidenciável, essa será uma de suas estratégias para reduzir a criminalidade no país (SD2) e Conosco não haverá essa politicagem de direitos humanos, essa bandidagem vai morrer porque não enviaremos recursos da União para eles. Em vez de paz, essas ONGs prestam um desserviço ao nosso Brasil. Precisamos de alguém sentado na cadeira presidencial que respeite a tradicional família brasileira, que tenha Deus acima de tudo, como lema nosso’, discursou Bolsonaro em cima de um carro de som durante uma carreata por uma das avenidas de Araçatuba (SD3). Em face de tal atuação discursiva, não restam dúvidas que o conflito é o vetor organizante da narrativa. Na versão tecida, o alegado “conflito” ganha feições ainda mais grandiloquentes. É a guerra do bem contra o mal, dos homens de bem contra a bandidagem, da família e dos tementes a Deus versus os causadores de prejuízos à humanidade. Estes são alguns dos sentidos que gravitam entre ditos e silenciados. Conforme Motta e Guazina (2010, p. 136), as disputas simbólicas são organicamente ligadas à política, daí o “conflito” prognosticar-se como metacategoria jornalística do noticiário de política. No G1, ele coopera para acomodar aspectos naturalizados pelo senso comum. Há ainda, na hierarquização da narrativa, um esvaziamento do caráter de interesse público da informação em detrimento da espetacularização. O script da reportagem nada deve às famosas histórias de super-heróis. Bolsonaro, numa posição que lhe confere ainda mais superioridade – está em cima de um carro de som – promete salvar o Brasil da bandidagem (como se reitera, para além do título, ao longo da matéria). Os indexadores outorgados pelo G1 transformam-no em imortal, dão-lhe um poder absoluto de acabar com um sentimento que é legítimo no Brasil: o do medo da criminalidade.

Os candidatos de palanque, cujo discurso é anti-analítico por natureza, refletem uma circunstância semelhante à apresentada pelo herói ficcional. Para o candidato da tribuna, a oposição é sempre a ameaça à população e, portanto, o bandido deve ser, à maneira do criminoso da narrativa trivial, derrotado. Assim como o herói da ficção, ao político, na narrativa da política nacional, interessa promover- se como figura individual, utilizando a legenda na medida em que serve a sua autoprojeção, uma vez que, nesse quadro, a ideologia nem sempre está vinculada ao partido, sendo este reivindicado apenas quando há ganhos individuais para o candidato. (MAGALHÃES; SILVA; BATISTA, 2007, p. 23).

No Estado de S. Paulo a batalha ganha mais um round. Aliás, Motta e Guazina (2010, p. 136 – 137) traduzem os meandros de tal método.

[...] a cobertura da política pelo jornalismo não apenas representa os conflitos, ela amplifica, ativa, e demarca essas disputas. Na medida em que amplifica, coloca as partes em situações antagônicas, atiça tensões, gera novos enfrentamentos que vão preencher novas páginas.

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Assim, nessa ambiência virtual, Bolsonaro é arrolado como fonte, uma vez mais, para desqualificar os direitos humanos. Bolsonaro chegou a mencionar que, se eleito, deixaria a Organização das Nações Unidas, recuando dias depois e afirmando que sairia apenas do Conselho de Direitos Humanos da entidade. ‘Não serve para nada essa instituição’, disse Bolsonaro (SD4). A narrativa, ao deslocar seu foco para alguém que manifesta preocupação quanto às posições do, na época presidenciável, tem um tom incriminatório. Alguém aparece na cena jornalística para pleitear sentidos diferentes para os direitos humanos. Contudo, a escolha do Estadão por fazer o cotejamento das afirmações de Zeid Al Hussein, alto comissário da ONU para Direitos Humanos, às de Bolsonaro, faz sobressair o modelo beligerante. É ele, como valor narrativo, que colocará as duas personagens como se entrincheirados estivessem. Numa das pontas, àquele que sublinha que O progresso ocorreu porque estipulamos que todos devem ter direitos iguais (SD5), noutra, o expoente político que defende as atuações dos militares em casos de tortura e também a figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (SD6). Observamos nestes enunciados (e na estrutura do texto como um todo) que a tática da polarização discursiva não é casuística. Ela esgota-se em si mesma. Ou melhor, nada mais do que um mero exercício de digladiamento de vozes decorre. A teia semântica – negativa, criminosa transgressora – para os direitos humanos segue incólume. Acima de tudo, porque o intérprete recrutado por Bolsonaro – e reprisado pelo jornalismo - para contrapor as opiniões do representante da ONU – o coronel Ustra – pleiteia uma memória coletiva recente que se funda à insígnia que marcaria o fim da corrupção no país (a votação na Câmara dos Deputados que abriu o processo de impeachment de Dilma Roussef). Devemos pontuar ainda que, sob um discurso aparentemente imparcial, neutro, o apelo semântico é a um sofisma moral. Com ele, Bolsonaro é concatenado a sentidos que o graduam nas aspirações políticas. Afinal, os “bons”, mesmo que façam apologia à tortura, lutam por valores, pelo futuro da sociedade, contra um “outro” – os defensores dos direitos humanos - que atrapalha, cuja utilidade é nula. Esses são os implícitos. No IG São Paulo, o roteiro da intriga é seguido à risca. O entretítulo antecipa: Candidato afirmou que instituições têm de trabalhar em prol das demandas da sociedade e defendeu mudanças em ações de defesa dos direitos humanos (SD7). E prossegue: Somente transformando a cultura da defesa dos direitos humanos que defende somente o direito de quem não era para ter tal representatividade excessiva é que iniciaremos o verdadeiro desenvolvimento social e econômico em nosso país (SD8). O expediente de instalar Bolsonaro como protagonista e os direitos humanos como antagonista dá-se por uma via que também é tácita. Explicamos: o capitão reformado do Exército - que, a propósito, tem nome, sobrenome, apelido e é um rosto conhecido – é posicionado discursivamente como adversário de uma incógnita, resumida na impessoalidade dos “direitos humanos”. Ou seja, o inimigo de Bolsonaro não tem um corpo físico, mas ganha materialidade pelo regime de intensões não explícito no texto,

147 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares mas que, impreterivelmente, está a convocar sentidos: de que são sujeitos (os defensores dos direitos humanos) que precisam mudar suas ações. Se há essa solicitação, é porque não estão agindo de forma correta ou da melhor forma possível – primeiro não-dito desclassificatório. O segundo avoluma a carga de sentidos desabonadores: são sujeitos que resguardam direitos de quem já possui excessivamente direitos. O excessiva representatividade consorcia aos supostos detentores dos direitos humanos uma identidade peculiar: eles não são humanos tais quais a gente, são de outra espécie, esta que atravanca o progresso, impede o verdadeiro desenvolvimento social e econômico em nosso país. O Congresso em Foco finda nossa análise. Ele adota a atitude mais ostensiva dos demais sites. Abre a matéria com a citação de Bolsonaro, que rotula os direitos humanos de “esterco da vagabundagem” (SD8). Abaixo do título, uma foto – ainda que a mesma não faça parte dos itens a serem examinados12, julgamos procedente referi-la e reprisá- la, haja vista que ela dilata os efeitos de sentido fundidos no discurso da notícia.

Fonte: Site Congresso em Foco.

Como se pode ver, trata-se de um print da rede social Twitter de um dos filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro. Junto à imagem, a matéria reverbera (em dois parágrafos – são quatro no total) a decisão da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, de permitir que as redações que ferem os direitos humanos no Exame Nacional do Ensino Médio não sejam zeradas.

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O jornalismo - como uma construção social (TRAQUINA, 2004), cujos atos enunciativos estão irremediavelmente marcados por uma cultura que lhe é própria, mas também é geral - prefere colocar em destaque o “pronunciamento” de Carlos e, a reboque, o de seu pai. Com isso, o feito da ministra é vilipendiado de sentidos enquanto a memória sobre os direitos humanos é talhada – de um jeito ainda mais didático, já que a fotografia desempenha essa função - como uma tela. Nela, os humanos perdem o estatuto de humanos e viram animais. São nomeados – por Bolsonaro (e seu filho, neste caso específico), mas que só tem passagem garantida devido ao funcionamento do jornalismo – como o lixo, a imundície, o excremento da sociedade. Esses não-humanos só são corporificados – e essa é a síntese do que vimos até então nas notícias que integram nosso corpus – quando combinados à indolência, ao ócio, à malandragem, à pacholice, entre outras designações que se assemelham. Logo, a narrativa volta a estabelecer uns (os não defensores dos direitos humanos) contra os outros (os defensores). É esse o modus operandi que regula o jornalismo ao discorrer sobre Bolsonaro e os direitos humanos. A cada “capítulo” uma “nova história” se traveste de palavras já-ditas e esquecidas.

Considerações finais Jair Bolsonaro, seguramente, é uma personagem de múltiplas possiblidades analíticas. O percurso que fizemos até aqui demonstra que, há algum tempo, eleé um dos alvos favoritos da imprensa. E essa predileção não é fortuita, tampouco só se fundamenta pelos atributos profissionais do – naquele período - aspirante à presidente da República. Nas narrativas jornalísticas por nós exploradas ele mostrou ser o gatilho para um jeito específico de aparição da temática direitos humanos. Ele é posicionado, sobremaneira, com dois desígnios: assegurar um certo espírito de guerrilha, transformando o jornalismo numa trama – quase que novelesca ou cinematográfica. Um dia ele ataca, noutro é atacado, noutro promove nova ofensiva e assim – só assim - a serialidade com que os fatos se tornam acontecimentos midiáticos são narrativizados. Outro é que – com a chancela do protagonismo de quem está prestes a ocupar o mais alto posto político do Brasil - Bolsonaro dificulta o aparecimento de qualquer arranjo discursivo que desloque a memória dos direitos humanos (e sua defesa) para uma ação de cunho cidadão, necessária à manutenção de um sistema democrático. O discurso jornalístico – mesmo que formalmente tente afastar-se de sua responsabilidade com o uso gráfico das aspas nas afirmações de Bolsonaro – consente a anulação de alguns humanos, quais sejam, àqueles que defendem os direitos humanos. Eles são desumanizados, como vimos, pertencem ao universo do grotesco. A cadeia de sentidos estimula ângulos emocionais e não informacionais. O leitor (internauta) é convidado a permanecer na sua “zona de conforto”, já que Bolsonaro

149 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares encarna na narrativa o perfil de único sujeito apto a derrotar esse “diferente” – que, repetimos – é ofertado ao imaginário do interlocutor como um estranho do mau. Nesse sentido - para concluir - o silêncio conivente que paira sob o discurso jor- nalístico acerca dos direitos humanos (foi isso que os quatro textos nos indicaram) ou a sua projeção a partir da figura de Jair Bolsonaro não só criminaliza – como as narrativas fizeram nos chamados “anos de chumbo”, da Ditadura Militar – mas banaliza a questão. Ao condicionar o discurso à tal modelagem narrativa, o jornalismo aponta para “solu- ções mágicas”, míticas – e uma delas que flutua como não-dito é justamente a eleição de Bolsonaro à presidente da República – e furta-se de um de seus ofícios: ser um dos mais importantes patrimônios das democracias modernas.

Notas ______1 Detalhes sobre nossas escolhas metodológicas serão dados na sequência do capítulo. 2 O artigo intitulado A construção da identidade do sujeito defensor dos direitos hu- manos na mídia a partir do assalto à Maria do Rosário: “o bandido” está do lado de cá, é de autoria de Patrícia Regina Schuster, Vanessa Costa de Oliveira e Lídia Schwantes Hoss, e está sob avaliação de uma revista científica. 3 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion /1546450311_44 8043.html. Acesso em 24 de junho de 2019. 4 Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2018/ 08/23/bolsonaro-diz-que-bandidagem-vai-morrer-em-seu-governo-porque-uniao-nao- -repassara-recursos-para-direitos-humanos.ghtml. 5 Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,discurso-contra-direi- tos-humanos-de-bolsonaro-e-perigoso-diz-representante-da-onu,70002478093 6 Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-10-22/propostas-de- -bolsonaro.html 7 Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/direitos-huma- nos-e-“esterco-da-vagabundagem”-diz-bolsonaro/. 8 Todas elas estão disponíveis na versão online (os links estão acima) dos veículos su- pracitados. 9 Entendemos “postura jornalística” como angulação discursiva. 10 Exemplo: o tweet do filho de Jair Bolsonaro, Carlos, sobre a redação do Enem (que consta no nosso corpus) rendeu reportagens em vários veículos. Nós elegemos somente um, pelas justificativas dadas acima. 11 A título de melhor identificar as marcas discursivas que exemplificam nossas com- provações, separamo-las em Sequências Discursivas (SD’s). 12 Compreendemos que nosso aporte teórico não tem potencial para aprofundar a aná-

150 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares lise da fotografia - situação que nos exigiria dialogar com outros conceitos e autores - no entanto, nosso intento ao reproduzi-la é viabilizar que nosso leitor tenha acesso imediato a ela.

Referências BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. CIOCCARI, Deysi; PERSICHETTI, Simonetta. Armas, ódio, medo e espetáculo em Jair Bolsonaro. Revista Altejor, ano 9, v. 2, ed. 18, p. 201-214, jul./dez. 2018. Disponível em: http://www.periodicos.usp.br/alterjor/article/view/144688/141608. Acesso em: 14 jun. 2019. MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra; SILVA, Luíza Helena Oliveira da; BATISTA, Dimas José. Do herói ficcional ao herói político. Ciência e Cognição, v. 12, p. 18 - 30, 2007. Disponível em: file:///D:/User/Downloads/649-3976-1-PB.pdf. Acesso em: 06 jul. 2019. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. In: LAGO, C.; BENETTI, M. Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 143-167. MOTTA, Luiz Gonzaga; GUAZINA; Liziane. O conflito como categoria estruturante da narrativa política: o caso do Jornal Nacional. Brazilian Journalism Research, vol. 6, n. 1; p. 132 – 149, 2010. Disponível em: https://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/view/251/250. Acesso em: 10 mai. 2019. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2012, p. 49 – 57. ORLANDI. Eni. Maio de 1968: os silêncios da memória. In: ACHARD, Pierre (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999, p. 59 – 67. PÊCHEUX. Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. RAMOS, Silvia; PAIVA, Anabela. Mídia e violência: tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007. SAVY, Renato. A deturpação do conceito de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.direitolegal.org/artigos/deturpacao-conceito-de-direitos-humanos/. Acesso em: 12 mai. 2019. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo - porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004. TRINDADE, José Damião de Lima. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels – Emancipação política e emancipação humana. São Paulo: Editora Alfa- Omega, 2010.

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OS SUICÍDIOS DE MITCHELL E CHRISTINE: DO VAZIO TOTAL AO RASCUNHO OBJETIVO

Ébida Santos Victor Lemes Cruzeiro

Ao vivo e em cores: duas mortes inexplicáveis

Mantendo a política do Canal 40, de trazer aos telespectadores os relatos mais completos de “sangue e vísceras”, ao vivo e em cores, vocês verão agora em primeira mão – uma tentativa de suicídio. Christine Chubbuck

Com essas as palavras, no dia 15 de julho de 1974, na pequena cidade de Sarasota, Flórida, a jornalista Christine Chubbuck, cometeu o que acredita-se ter sido o primeiro suicídio em uma transmissão ao vivo de televisão. Enquanto apresentava notícias sobre crimes locais, Christine anunciou um vídeo sobre um tiroteio que ocorrera no final de semana. No entanto, devido a problemas técnicos, as imagens não puderam ser mostradas. A apresentadora, então, olhou para a câmera e disse que iria apresentar, em primeira mão, uma tentativa de suicídio – ergueu uma pistola Smith and Wesson calibre .38 e deu um tiro atrás da orelha direita. Ela foi declarada morta às 23:15 daquele dia (DIETZ, 1974). Michael Simmons, diretor de notícias da emissora, disse ter encontrado, junto ao script que ela lia naquela manhã, um relato do acontecimento em terceira pessoa escrito à mão por ela: “Hoje a apresentadora Christine Chubbuck atirou em si mesma durante uma transmissão ao vivo, nesta manhã, durante o programa matinal da emissora (DIETZ, 1974), que prosseguia dando informações concisas até mesmo do seu estado de saúde após o disparo: “Ela foi levada às pressas para o Hospital Memorial de Sarasota, onde permanece em estado grave”. 36 anos depois, a 2 mil quilômetros de Sarasota, nos degraus da Igreja Memorial de Harvard, em , um jovem de 35 anos, chamado Mitchell Heisman, vestindo um terno branco, com gravata, sapatos e meias também brancos, em plena luz

152 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares do dia e próximo a um grupo de turistas, deu um tiro na têmpora direita com um revólver prateado. Era dia de Yom Kippur – o dia do perdão – uma das datas comemorativas mais importante do judaísmo, e Heisman foi declarado morto no local. Ao contrário de Chubbuck, Heisman não era uma figura conhecida. Pelo contrário, era um jovem bastante recluso, formado em psicologia em Albany, uma faculdade estadual de Nova York, que vivia de uma pequena herança deixada pelo seu pai e trabalhava em livrarias próximas ao seu apartamento, onde levava uma vida bastante espartana (ABEL, 2010; NEWCOMER; SRIVATSA, 2010). Contudo, o que deixou Heisman famoso não foi apenas seu suicídio público em uma data tão marcante, mas sua nota de despedida, um longuíssimo trabalho de 1905 páginas enviado por e-mail para centenas de pessoas, entre amigos e família, poucas horas após a sua morte. Nesse ponto, Heisman e Chubbuck se encontram, apesar das insondáveis diferenças que separam suas trágicas decisões. Ambos elaboraram delicadas performances para executar com o fim de suas vidas. Seus suicídios não foram impulsivos, mas cuidadosamente planejados, com o único intuito de deixar, mesmo que de maneira inapreensível na sua totalidade, uma mensagem que ecoasse após suas mortes. Ainda que atualmente pouco se fale de Christine Chubbuck e já não se fale sobre Mitchell Heisman, é importante salientar um detalhe crucial para a compreensão das suas fortunas na imprensa: suas cartas de despedida.

1905 páginas sobre nada vs. Meia página sobre mim Que nota de suicídio ficaria completa sem uma bibliografia? Mitchell Heisman

Enquanto Christine deixou, praticamente, um lide que descrevia objetivamente sua morte, Mitchell Heisman deixou um tratado. Além de 1905 páginas, sua nota de suicídio tem 1433 notas de rodapé e uma bibliografia de 20 páginas. Amigos e familiares acreditam que ele tenha passado 5 anos trabalhando nela, muitas vezes até 12 horas por dia (ABEL, 2010). Nela, o jovem psicólogo aborda questões filosóficas densas como Deus e a liberdade, passando por profundas reflexões histórias e sociais que giram em torno da herança judaica e da influência normanda e anglo-saxã no Ocidente – sendo este último o tema que dizia estar desenvolvendo para familiares e amigos. No entanto, o objetivo central de Heisman não era apenas escrever um longo tratado revisionista sobre a existência de Deus ou do livre-arbítrio. Antes de mais nada, sua Nota de Suicídio era um “experimento sobre o niilismo”, como ele mesmo explica, quase no fim da obra:

Se a vida é realmente sem sentido e não há base racional para escolher entre alternativas fundamentais, então todas as escolhas são iguais e não há base comum para escolher a vida sobre a morte. Porém, dado que eu não acredito no niilismo, porque não “testá-lo”? Talvez eu esteja errado, mas se a questão de se há uma

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questão importante é, então, a questão mais importante de todas, então testá-la é o mais próximo que se pode chegar da importância. (HEISMAN, 2010, p. 1873)

Foram poucos os jornalistas que se dedicaram oficialmente a destrinchar a Nota de Suicídio de Heisman. Um deles foi David Abel, do Boston Globe, que escreveu uma matéria de três páginas realizando a contagem de notas, referências a Deus (1700) e ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche (200), além de citar alguns trechos que aproximam o leitor do espectro niilista que permeia o magnum opus de Heisman. O blog Gawker.com, sem deixar claro se leu ou não, diz que a peça de Heisman é “divertida em alguns pontos, impenetravelmente acadêmica em outros, e exaustivamente fundamentada” (CHEN, 2010). No mais, grande parte dos veículos citaram superficialmente, não sem um tom de assombro, o documento de 1905 páginas e republicaram as informações colhidas pelo The Harvard Crimson, o jornal estudantil da Universidade de Harvard, que iniciou a cobertura antes mesmo de Heisman ter sido identificado. Fora da esfera do jornalismo diário, houve aqueles que se dedicaram à leitura e à análise da nota de Heisman, como o escritor e comentarista britânico John Derbyshire. Na sua coluna no National Review, Derbyshire analisou com mais calma, e até mesmo humor, o livro de Heisman. Em dado momento, a partir da perspectiva de um de seus leitores, Derbyshire aproxima o niilismo de Heisman ao do monge ortodoxo Serafim Rose1 (1934-1982), que considera o Liberalismo, um dos pontos de partida do tratado-despedida de Heisman, o primeiro estágio para se chegar ao niilismo destrutivo (DERBYSHIRE, 2010a). No entanto, é muito curioso que comentadores como Derbyshire aproximem-se de um teólogo para tentar explicar, ou quiçá entender, um tema que Heisman pegou diretamente de Nietzsche (1844-1900). Ao tentar um experimento sobre o niilismo, Heisman parte da pretensão de verdade e totalidade da ciência, que Nietzsche repudia quando compreende que “o caráter total da existência não pode ser interpretado nem com o conceito de ‘fim’, nem com o de ‘unidade’, nem com o de verdade” (NIETZSCHE, 2011, p. 32). Ao invocar o niilismo como caminho da civilização – e como sua própria opção pessoal – o filósofo do martelo busca tirar das costas da humanidade a responsabilidade que impuseram os metafísicos de alcançar a verdade absoluta do universo, a coisa-em-si, o além do fenômeno visível. E ao lutar contra os metafísicos, Nietzsche luta contra tudo o que eles determinaram, apontaram, analisaram e, claro, escreveram. É a partir da leitura dos escritos de Schopenhauer (1788-1860) que Nietzsche toma alguns conceitos que irão construir seu niilismo. Qual é, no entanto, a função do niilismo nessa discussão sobre a morte de Heisman, Chubbuck e o jornalismo. Em poucas palavras, as 1905 páginas do jovem sobre tudo, e todo seu grande experimento, tornam-se 1905 páginas sobre nada. Quando muito, todo o esforço de Heisman para provar que de fato tudo era em vão,

154 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares inclusive a escolha entre a vida e a morte, é uma espécie de entorpecimento, de embriaguez que esse próprio desejo de totalidade traz ao indivíduo, que Nietzsche vê no entusiasmo cego por homens singulares (como Heisman faz pelo próprio Nietzsche), tentativa de trabalhar como instrumento da ciência, no uso do “puro conhecimento” como anestesia. Heisman não é um niilista, mas um pessimista, que no uso equivocado da crença do “tudo é vão” de Nietzsche, decide por sucumbir com tudo em que acreditava, e não por fazer sucumbir com as próprias mãos. Seu grande manifesto, sua carta de despedida da razão, torna-se um libelo dessa própria razão, que empilha conhecimentos como se empilham pedras em uma torre cada vez mais alta. Contudo, deve-se ter em mente que não se faz aqui uma crítica ao suicídio de Heisman, pois não se justifica, racionalmente, soerguer nenhum valor moral contra aquele que opta por tirar a própria vida. No entanto, aponta-se aqui a falha da estruturação argumentativa da carta de suicídio do jovem, que buscava comprovar a superioridade do niilismo sobre a racionalidade, aferrando-se aos próprios ideais de completude (do conhecimento), de unidade (de uma ciência), de finalidade (da escrita). Nesses mesmos erros incorrem seus comentadores que, longe da brevidade das notícias diárias, incorrem no exercício circular de ler, reler e comentar um experimento que falhou no seu próprio preparo. É nesse ponto que, não apenas os repórteres que escreveram sobre Heisman, sobre Christine Chubbuck, e a própria meia página que a jornalista escreveu, alçam-se melhor ao niilismo. Eles abandonam a pretensão de ter algo a dizer e, assim, abandonam a pretensão da necessidade da escrita. Portanto, compreender o niilismo, e sua relação com a escrita, torna-se um primeiro passo no caminho para compreender a melhor maneira de escrever sobre a – aparentemente – mais niilista das opções: o suicídio.

O niilismo e o sufocamento da escrita Escrever, uma matéria de jornal ou um livro de mil páginas, é não morrer. Todo registro é uma forma de enganar a morte, na medida em que se mantém vivo o que foi dito – e, portanto, criado – por alguém em direção a alguém. É o impulso que Flusser diz que a escrita carrega em si, não apenas em direção às ideias, “mas em direção ao outro”. Contudo, mais do que um impulso em direção ao outro, a escrita é também em direção ao futuro, com o rosto virado para o passado. Escrever é criar um arquivo, que conserva e institui, como lembra Derrida. Aquele que detém o arquivo, detém também a interpretação deste, pois ter o escrito é ter refém o “impulso em direção ao outro”, controlando sua direção como a uma arma. Neste ponto, convergem o historiador, o biógrafo, o filósofo, bem como o jornalista e – como não? – o próprio Heisman.

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Aquele que primeiro escreve algo, registra a ideia em seu nome, tornando-se dela dono e podendo dizer como ela “deve ser, não apenas exibindo o documento, mas estabelecendo-o” (DERRIDA, 2001, p. 73). Portanto, ao escrever seu longo tratado sobre o niilismo, Heisman não pretendia apenas provar sua verdade, mas arquivá-la, mantendo-se dela arconte mesmo após sua morte. Sua Nota de Suicídio, portanto, torna-se uma verdade, resguardada na ampla discussão teórica que traz. Deve-se lembrar, no entanto, que essa necessidade de arquivar de Heisman, de conservar não apenas as suas palavras, mas a de outros, construindo a sua verdade absoluta sobre o niilismo – a de que ele é falho, pois nada importa – vai no sentido completamente oposto ao de Nietzsche, que anuncia:

O niilista consumado. – O olho do niilista, idealizado na feiura, pratica a infidelidade contra as suas lembranças – ele as deixa cair, despencar como folhas; ele não as protege contra as descolorações cadavéricas, como se elas vertessem a astenia sobre o longínquo e o passado. E o que ele não pratica em relação a si mesmo, também não pratica em relação a todo o passado humano, – ele o deixa tombar (NIETZSCHE, 2011, p. 36)

Desta feita, a carta-testamento de Heisman, arrastando consigo seu próprio ato, afasta-se muito mais do niilismo do que, digamos, o ato de Christine. Lembrando que não se trata aqui de valorar os atos em si, e muito menos suas motivações – insondáveis em absoluto – mas propõe-se analisar uma forma de lidar satisfatoriamente com a necessidade de falar e informar sobre o suicídio. Ao contrário de Heisman, Chubbuck deixou um simples apontamento objetivo, sem esmiuçar-se em nenhuma busca da coisa-em-si de sua morte. Seu ato, silencioso e repentino, foi a própria resposta a isso: não o há. Sintetizando esse estupor, o reverendo Thomas Beason disse, no funeral de Christine: “Nós sofremos pela nossa perda, nós nos assustamos pela raiva dela, nós nos culpamos em frente à sua rejeição, nós nos magoamos pela sua escolha de isolamento, e nós nos confundimos com a mensagem dela” (QUINN, 1974). A jornalista estadunidense não era uma arconte e, bem verdade, são poucos os suicidas que o são. Seu legado maior é o próprio ato, cujo silêncio incômodo é, em si, uma comunicação. Pensando o ato comunicacional como um acontecimento que gera um impacto e repercussão (MARCONDES, 2013) é importante compreender como o suicídio é um ato comunicacional sui generis. Sendo um evento repentino e inesperado, o exige para sua análise, ferramentas que possibilitem resgatá-lo do vazio que deixa na percepção, tornando-o inteligível e dando voz ao seu indizível – a saber: ele necessita de uma narração. Nas ciências sociais, o acontecimento não é delimitado ou visível como em outras ciências, mas não deixa de ser igualmente intempestivo e inescrutável. Para pesquisadores como Gómez-Esteban e Marcondes, o acontecimento é um evento que envolve uma interação do e no indivíduo, seja com o ambiente ao seu redor ou com

156 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares demais indivíduos. Assim, a visão solitária de um pôr-do-sol ou um encontro com uma pessoa amada causam um impacto, tornando esse momento parte do indivíduo, que acrescenta-lhe algo e se mistura a ele. Esse processo de envolvimento – que Marcondes chama comunicação – “é essa relação entre um universo, meu corpo, e a interação mútua entre ambos” (2013, p. 20). Como compreender o suicídio, então, como um acontecimento? Como o disparo – ao vivo e a cores – de uma jornalista em si própria, deixando uma breve descrição do seu ato, pode ser compreendido – descrito e escrito – como uma forma de comunicação? E o que o intrincado tratado suicida de Heisman diz sobre a interpretação desse acontecimento? A resposta, desde já insuficiente, demanda duas noções: a da irracionalidade deliberada do suicida, e das subjetivações que formam a socialização dos indivíduos. Em primeiro lugar, as motivações do suicida são, quase sempre, insondáveis. Portanto, pode-se dizer que o suicídio prescinde de uma racionalidade, no sentido de uma estrutura lógica que justifique sua existência. A insondabilidade do que lhe efe- tivou, juntamente com o desconcerto que ele deixa, tornam-no tão intangível quanto uma explosão numa galáxia distante ou um movimento tectônico no centro da terra (SCARRY, 1987). Assim, torna-se difícil afirmar que o suicídio é um acontecimento strictu sensu. Em primeiro lugar, não se trata de um acontecimento que “recai intempestivamente no decorrer da vida de um indivíduo” (GÓMEZ-ESTEBAN, 2016, p. 134). Muito pelo contrário, ele é deliberadamente planejado e executado pelo que o comete. É, dentro do seu funcionamento próprio, racional. Em segundo lugar, ele não tem um “efeito que cedo ou tarde transformará a experiência e o ser-no-mundo” daquele que o sofre. O suicídio é precisamente o fim do ser-no-mundo daquele que o escolhe. Portanto, o acontecimento do autoextermínio não acomete aquele que o escolhe, mas todos aqueles que ficam, da maneira mais singular possível – com o completo silêncio. A própria noção de ser-no-mundo, por sua vez, remete à ideia da subjetivação de cada indivíduo, que forma a grande teia da socialização, que Gómez-Esteban também faz referência. Na ausência do outro, a trama da socialização se rasga, deixando uma lacuna que impede a continuidade da transmissão dessas trocas subjetivas. Assim, no exato – e inesperado – momento em que um indivíduo escolhe tirar a própria vida, ele abandona todos os seus papéis ao mesmo tempo, e deixa atrás de si rasgos em uma série de redes que se sobrepõem na sua subjetividade, e que compõem a subjetividade de inúmeros outros indivíduos ao seu redor. Os que permanecem, por sua vez, ao perceberem-se sozinhos, veem suas redes de socialização momentaneamente interrompidas, sem nem mesmo um suplente linguístico para aquele que lhe deixou (pois a própria palavra suicida carrega consigo um tabu de ser dito). Em suma, o outro – como aqueles que estavam no estúdio no momento da morte de Chubbuck e os turistas no gramado de Harvard durante o Yom Kippur de Heisman – se vê incapacitado de compreender e, em seguida, compartilhar esse acontecimento. Nesse momento, o tratado de Heisman tem ainda menos utilidade, pois no seu afã

157 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de estabelecer o sucesso de sua hipótese, a guisa de uma ciência exata e unificadora, ele escapa da função mesma de deixar uma carta que, minimamente, fizesse fulgurar a razão singular que o levou a imergir nesse acontecimento tão único. Tentando ser global, e estabelecer uma razão para todos os suicídios, Heisman esqueceu-se do seu próprio e, de certa forma, morreu sem dizer uma palavra.

A objetividade e a comunicação necessária Para combater o vazio avassalador que o suicídio deixa, e evitar cair no sedutor vazio da totalidade que a escrita possui, cabe refletir como a escrita jornalística, e o próprio jornalismo, podem atuar como auxílio, como guia e até mesmo como uma luz para enfrentar essa angustiante escuridão. Na nota escrita por Christine sobre ela própria, construída com precisão jornalística, percebe-se a distinta necessidade – resquício irônico da profissão – de dizer o que houve de forma objetiva, ao contrário do grande tratado de Heisman, que esmiúça e dilata a agonia do vazio da existência através de citações e debates que beiram a exaustão. No entanto, nenhum dos dois responde às perguntas urgentes de o que está acontecendo? e o que eu vou fazer em seguida? O texto jornalístico não é, claro, o único meio de aproximar-se de um tema tão insondável, evitando o risco de perder-se nas suas próprias profundezas ou nos labirintos que pretendem levar a uma saída. Há outras instâncias em que é possível encontrar lampejos de uma lógica que foge à racionalidade, como os diários íntimos (CRUZEIRO, 2018) e as próprias cartas de suicídio, que apesar de serem uma ferramenta de performance (LESTER, 2015), são uma expressão da voz suicida. No entanto, o texto jornalístico aparece aqui como uma boa ferramenta para tratar, em grande escala, deste tema que toma, cada vez mais, grandes proporções2. Abraçando uma perspectiva epistemológica, mais próxima do aporte filosófico que guia este trabalho, pretende-se aqui demonstrar como o tratamento do suicídio deve ser guiado não apenas pelos direcionamentos deontológicos sugeridos pela OMS (2017), mas por uma percepção consciente da própria limitação que o suicídio impõe. A questão é como o jornalista pode fazê-lo, sem recair no perigo do contágio, mas tratando-o com o cuidado necessário. Longe de construir um manual extensivo ou realizar estudos de caso, esta seção pretende discutir um aspecto importante para esse debate: a objetividade. Sponholz (2003) conceitua a objetividade como “a relação entre realidade social e realidade midiática”, sendo uma condição necessária para a mediação de informações (SPONHOLZ, 2003, p. 1). Assim, a realidade independe da percepção humana, mas é percebida por meio desta. Logo, um indivíduo constrói seu conhecimento da realidade de modo “seletivo, perspectivo e construtivo” (SPONHOLZ, 2003, p. 2). A objetividade, portanto, deriva de um encontro entre o que o indivíduo tem acesso e o modo pelo qual ele pretende acessar este acontecimento, e tal junção se dá através de uma conexão epistemológica e linguística. Desta forma, conhece-se um evento a partir

158 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares do momento em que sua contrapartida no mundo exterior é ligada a uma estrutura linguística interior, possibilitando a comunicação aos demais. Essa posição, no entanto, levanta duas questões. Em primeiro lugar, ela carrega consigo uma pretensa objetividade, pois o estado de consciência de ver algo apenas acompanha a percepção do objeto exterior, não a modificando ou sequer limitando. Em segundo lugar, como lidar com a percepção de um objeto invisível, ou – mais ainda – envolto em um véu que a consciência não pode penetrar? O suicídio não constitui um objeto físico, bem delimitado e comum, como o sol ou uma cadeira. Como acessar e contar esse fato, fugindo da pretensa objetividade que a percepção carrega, bem como da necessidade de falar em demasia sobre para suprir a lacuna epistemológica que ele deixa? Entra em cena o texto jornalístico que, ainda que não pretenda apreender a totalidade da realidade – dado que o jornalista é um indivíduo de percepção limitada como qualquer outro – não apresenta fatos limitados à conexão linguística de “eu vejo algo”. Na sua função primordial, o jornalista reconstrói um fato, e “o fará não só de maneira seletiva e perspectiva, mas também reconstruirá a história. O que ela contar não é mais a realidade, mas sim uma representação desta. (SPONHOLZ, 2003, p. 3) Mais ainda, Sponholz lembra que a objetividade não traz uma noção construtivista (que nega acesso ao mundo externo), nem positivista (que confere acesso total ao exterior). A objetividade do texto jornalístico é inseparável da subjetividade do jornalista – botando por terra o mito de que o jornalista deve manter-se completamente neutro. Traquina (2005) faz coro a esse chamado pela objetividade no jornalismo, na medida em que afirma que a objetividade é discutida sem o necessário conhecimento histórico sobre: “porque objetividade não é negação da subjetividade. A objetividade surgiu no Jornalismo precisamente quando se chegou à conclusão de que não era possível escapar da objetividade” (SILVA, 2004, p. 201). Para reconstruir a realidade, o jornalista utiliza conceitos, regras e “princípios éticos”, que ajudam a manter o equilíbrio. Os quatro procedimentos estratégicos levantados por Tuchamn (1993) para tentar chegar à objetividade incluem a apresentação de conflitos, de provas auxiliares, uso de aspas e da pirâmide invertida. Esses elementos servem para, em tese, proteger o jornalista, o jornalismo e o público. Ainda assim, Tuchman (1993) afirma que, mesmo com a perspicácia profissional e o uso desses procedimentos, não se pode dizer que o jornalista alcança a objetividade. Já Kovach e Rosenstiel (2003) ressaltam que “essas técnicas, contudo, nunca devem ser utilizadas somente na fachada ou invocadas como os objetivos do jornalismo”. Antes, devem servir como guia para chegar mais perto de uma versão confiável dos fatos. Genro Filho (2012, p. 40) relembra que a notícia não deve emitir juízo de valor de forma explícita, mas explicar também que esse juízo de valor já é implícito na “for- ma de hierarquização e seleção dos fatos, bem como na constituição da linguagem e no relacionamento espacial e temporal dos fenômenos através de sua difusão”. A afirmação

159 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de Genro Filho é no sentido de que o jornalismo produz uma visão burguesa do mundo, mas que ele também tem forma própria enquanto conhecimento social e que ultrapassa a funcionalidade capitalista. Assim, quando o jornalismo adota novas técnicas, mais do que separar relato e descrição, análise e comentário, temos “uma nova modalidade de apreensão do real, condicionada pelo advento do capitalismo, mas, sobretudo, pela universalização das relações humanas que ele produziu, na qual os fatos são percebidos e analisados subjetivamente e, logo após, reconstruídos no seu aspecto fenomênico” (GENRO FILHO, 2012, p.41). Dessa perspectiva há diferentes formas, todas jorna- lísticas, de abordar um mesmo fato e que nenhuma delas pode ser considerada neutra do aspecto político-ideológico. Os procedimentos institucionalizados servem, portanto, para aliviar críticas e pressões e manter os profissionais tentando alcançar a objetivida- de e informar o público para, então, empoderá-lo para se autogovernar, como sugerem Kovach e Rosenstiel (2003). Torna-se acessível a aplicação desses princípios à questão do suicídio, na medi- da em que buscar a objetividade jornalística do tema é circum-navegá-lo, buscando as informações que estejam na órbita desse grande buraco negro do qual a razão não consegue entrar, nem escapar. Tal método serve como forma de romper o mito de que o jornalismo é um dos vetores de contágio3, fugindo do lugar comum da notícia do auto- -extermínio em si, focando no método ou repercutindo mitos como o de que o suicídio é uma condição de indivíduos com problemas mentais. Deste modo, os jornalistas não apenas se lançam no sentido oposto ao risco de “transformar o Jornalismo em uma se- quência sem fim de negativismo” (SILVA, 2004, p. 202), mas lançam os fatos com uma velocidade suficiente para que os leitores possam escapar da força gravitacional dessa irracionalidade. Foi com essa mesma intenção que a Organização Mundial da Saúde lançou, em 2017, um manual de prevenção ao suicídio voltado para profissionais de comunicação. Nele, atenta para a “adequada disseminação de informação e aumento de consciência são elementos essenciais no sucesso da prevenção ao suicídio” (OMS, 2017, p. v). Se- gundo o trabalho, baseado em extensa pesquisa global:

Deve-se: Oferecer informação precisa sobre onde buscar ajuda; Educar o público quanto aos fatos do suicídio e a prevenção ao suicídio, sem espalhar mitos; Relatar histórias que tragam maneiras de lidar com gatilhos de pensamentos suicidas, e como buscar ajuda; Ter cautela especial ao reportar suicídios de celebridades; Ter cautela especial ao entrevistar amigos ou família enlutados; Reconhecer que os profissionais de mídia estão sujeitos a serem afetados por casos de suicídio.

Não se deve: Dar visibilidade notória a casos de suicídio e não repeti-los em demasia;

160 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Utilizar vocabulário que sensacionalize ou normalize o suicídio, ou ainda o apresente como uma solução construtiva aos problemas; Descrever explicitamente o método utilizado; Dar detalhes sobre o local; Utilizar manchetes sensacionalistas; Apresentar fotografias, vídeos oulinks de mídias sociais. (OMS, 2017, p.viii)

Percebe-se que cada um desses tópicos propõe novas formas de apresentar uma realidade diferente do suicídio, tendo claro o oferecimento de ajuda, bem como cuidando da relevância de alguns temas, ao mesmo tempo em que evita cair na armadilha da neutralidade dos jornalistas e na necessidade de um pluralismo de opiniões.

Conclusão: o caminho do meio entre o vazio e o silêncio Com o acesso limitado e sensível a fontes, sem o auxílio de fontes, na cobertura do suicídio, o jornalista deve buscar uma objetividade precisa, que evite, em primeiro lugar, o acúmulo extensivo de fontes e explicações, que só recairão na escritura pessimista de Heisman, ou ainda nos rodeios retóricos – e equivocados – de comentadores como Derbyshire e seu grêmio conservador, que vê nesse afã intelectual a superioridade da razão individual frente a qualquer mazela, inclusive as que podem recair sobre eles. Em segundo lugar, o jornalista deve evitar fazer com que o suicídio seja “mostrado como inexplicável ou de uma maneira simplista” (RODRIGUES, 2018, p. 22), o que não é. O suicídio é uma questão complexa e profunda, que cada vez mais permeia as discussões, incluso as sobre a juventude, cada vez mais precocemente avassalada pelas exigências predatórias do capitalismo. Deve-se evitar a simplicidade inescrutável e inquietante de um lide, como o de Christine Chubbuck. Não se deve ter medo de fazer uma órbita completa no tema, procurando expor as causas – ainda que supostas – bem como as possíveis soluções – geralmente concretas. Deve-se ter em mente que há uma série de causas em comum que levam as pessoas a porem fim à própria vida, cuja análise pode causar identificação, bem como há uma série de soluções coletivas, cuja divulgação e difusão podem trazer para si aqueles à mercê do desespero. Caminhando numa corda bamba de sombrinha, o jornalista que pretende trabalhar com o suicídio deve ter em mente a função extramuros do Jornalismo, de não apenas dar notícias, mas tentar melhorar a vida pública e reforçar a cidadania (SILVA, 2004). Deve-se compreender que nem a totalidade vazia do tema, nem o silêncio terrível da sua treva, são a solução. A luta contra o excesso é diária, assim como contra as tentações do sensacionalismo e das exigências mercadológicas. Por outro lado, o abandono do tema em nada contribui, deixando com que esse sombrio espectro continue rondando o mundo, sem que ninguém sequer sinta ele se movendo na escuridão. Mitchell e Christine foram, a seu modo, vítimas desse monstruoso espírito, mas poderiam não tê-lo sido, houvesse condições mais acolhedoras e atentas ao seu redor. Sendo impossível voltar ao passado, deve-se mirar para o futuro, com a ajuda da escrita que, mais objetiva, delicada e atenta,

161 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares torna-se uma arma poderosa e necessária, como o é para toda atividade que trate direta e continuamente com a vida humana.

Notas ______1 Monge da Igreja Cristã Ortodoxa Russa no Exterior, fundou um monastério e foi responsável pela tradução, do russo para o inglês, de várias obras ortodoxas. Sua concepção do niilismo, no livro As Raízes do Niilismo, são precisamente a de atacá-lo e derrubá-lo em prol da “Verdade Absoluta”, consubstanciada na fé e no absoluto divino. 2 Estima-se que 800 mil pessoas tirem a vida anualmente em todo mundo e, também, que ao menos seis pessoas são afetadas por cada suicídio, totalizando mais de 4 milhões de pessoas (OMS, 2017). 3 “Esse contágio é especialmente comum entre indivíduos cuja constituição os torna mais abertos à sugestão em geral e, em particular, às ideias de suicídio; eles são inclinados a reproduzir não apenas tudo o que os impressiona, mas tendem, acima de tudo, a repetir um ato ao qual já tem certa propensão” (DURKHEIM, 2005, p. 45).

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Parte III: narrativas diversas

165 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

ENTRE VÍDEOS E ESTANTES: A NARRATIVA DA CRÍTICA LITERÁRIA DOS BOOKTUBERS

Arthur Breccio Marchetto

Da tinta ao pixel A narrativa sempre esteve presente em todas as sociedades. Como dito por Luiz Henrique Zart (2017), “desde o princípio, toda a representação do mundo foi transmitida, seja de maneira oral, através dos tipos móveis ou, com o desenvolvimento da tecnologia, por jornais, revistas, rádio, televisão e internet”. Tal transmissão, desde as histórias míticas até os relatos mais mundanos, oferecem ao interlocutor uma narrativa ordenada de acordo com uma lógica temporal própria, com representações, memórias, elementos simbólicos, coerência e sentido relacionados à visão de mundo e às experiências de vida do narrador (QUADROS; MOTTA; NASI, 2017). Hoje, diversas formas narrativas auxiliam na mediação das vivências no mundo, como as narrativas fílmicas, literárias, científicas, religiosas ou jornalísticas. São essas narrativas “que ensinam e orientam o ser humano sobre o mundo, seus valores e modos de agir”, e compreender esse viés cultural de orientação é necessário para estudar um texto enquanto narrativa (QUADROS; MOTTA; NASI, 2017). O objetivo deste artigo é compreender a crítica literária jornalística realizada pelos booktubers¹ e o papel do corpo e do ambiente em suas narrativas. Para isso, é preciso entender a narratividade nos textos jornalísticos, nos da crítica literária e nos que compõem as redes sociais (principalmente no YouTube). Se pensarmos na crítica literária como uma narrativa, levando em consideração os critérios estabelecidos acima, o que emerge é um texto que orienta, principalmente, o gosto estético do interlocutor. A narrativa responde questões como: quais livros são bons? Quais técnicas de escrita são válidas? Este livro pertence ao cânone de uma determinada literatura? Para Candido (2000), a literatura é um sistema triádico composto por autor, obra e público. Por sua vez, este último, no qual a crítica encontra-se, é formado pela articulação entre os meios de comunicação, a formação da opinião literária e a diferenciação do gosto das elites. É o diálogo entre o primeiro elemento, os meios de comunicação, com os outros dois que forma, quase por reflexo, as definições do campo do público. Em

166 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares outras palavras, os hábitos intelectuais de um indivíduo, sua formação cultural e posição social, os instrumentos de divulgação a que tem acesso e o que neles é dito forma uma opinião literária e cria a diferenciação da elite com o restante da população, que tem acesso a outros produtos. Nesse processo, a crítica apareceria como elemento fundamental, já que é ela quem revelaria a obra e a ligaria à sociedade por meio de suas interpretações e leituras. Tal crítica pode ser feita com duas finalidades: a acadêmica e a jornalística. Enquanto narrativa acadêmica, o texto volta-se para problemas nos âmbitos técnicos e às questões de conhecimento científico. No outro lado, a crítica literária jornalística está preocupada com a mediação e, retomando a tríade citada acima, traz um texto que tenta aproximar a obra e o autor do público. O prioritário na crítica jornalística é proporcionar essa aproximação com a cultura literária. Essa crítica é “produzida, em grande parte, ou por especialistas ou por diletantes, para ser publicada na mídia, além do conteúdo produzido por jornalistas no interior das redações” (VENTURA, 2015, p. 39, grifo nosso). Tal inserção independe da formação do crítico, de sua metodologia de análise ou do objetivo do texto. Claudia Nina (2007, p. 28-9), por exemplo, cita alguns tipos de texto:

[Existe] um mais técnico, produzido por acadêmicos de diversas áreas (sociólogos, historiadores, antropólogos, professores de literatura), que voltam às páginas dos suplementos a tentativa de escoar sua produção intelectual num ambiente extra- acadêmico, escrevendo textos ensaísticos; outro, livre de jargões, assinado por jornalistas que, muitas vezes, não têm nenhuma especialização na área.

As considerações de Nina vão ao encontro das reflexões sobre a narrativa jornalística. Por exemplo, para Zart (2017), o texto jornalístico é um texto que ocupa os “espaços vazios” das relações sociais e produz discursos sobre o cotidiano que permitem o conhecimento de si e do outro. Essa mediação pode ser entendida como uma articulação entre experiências marcadas pela questão técnica-temporal do campo, como nos critérios de noticiabilidade, valores-notícia ou interesse público:

A narratividade do texto jornalístico (...) não se localiza no produto final, como uma obra fechada, mas em seu processo de produção, como um modo de articular experiências e sujeitos, dentro de um contexto lógico e temporal. Mais que um mero conjunto de procedimentos técnicos de escrita, o jornalismo é um fenômeno cultural e, como tal, está atrelado às tensões que permeiam a realidade. A narratividade no jornalismo, assim, não se limita à análise das textualidades, mas as considera inseridas em uma historicidade, dotadas de vinculações sociais e como resultado de modos de produção institucionalizados (QUADROS; MOTTA; NASI, 2017).

Nina (2007, p. 13) também ressalta que “toda resenha crítica, uma vez produzida para um jornal, precisa obedecer a alguns critérios, digamos, jornalísticos. Clareza, concisão e objetividade continuam sendo imprescindíveis”. Com a crise na imprensa e, principalmente, nos jornais impressos, o que ocorreu nos últimos anos foi uma mudança 167 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares nas plataformas de atuação do crítico.

A prática do jornalismo cultural ainda se dá pelas plataformas tradicionais, mas também é feita aos milhões no mundo, a cada segundo, em sites, blogues, portais e redes sociais, acentuando a formação de nichos cada vez mais específicos de audiência. O resultado disso é uma tremenda dor de cabeça para qualquer dono de mídia tradicional que quer manter viável seu negócio e se vê diante de uma avalanche de mudanças súbitas que causam o fechamento de veículos e a erosão financeira de grupos de mídia. Com a internet, inclusive, rediscute-se o termo ‘pirataria’, uma ‘vez que a informação hoje é adquirida fácil e gratuitamente na rede (BALLERINI 2015, p.43).

Hoje, a crítica cultural circula em podcasts, blogs, portais especializados, suplementos literários, revistas e outras iniciativas independentes. Um dos espaços que a crítica passou a ocupar foi também o das redes sociais, como o Facebook e o YouTube. A ocupação desse espaço também revela outra coisa: a diluição do caráter legislativo do crítico. Visualizamos parte da razão na própria lógica de funcionamento das redes, organizadas em comunidades pequenas com seus próprios pivôs. No entanto, Bauman (2010) identificou outra mudança nos alicerces de trabalhos intelectuais, como a crítica, na mudança da modernidade para a pós-modernidade. Em seu livro Legisladores e intérpretes, Bauman (2010) expôs a trajetória do crítico como um legislador, cujo poder intelectual estabelecia uma hierarquização estética do bom e do mau gosto, um ideal de civilização a ser alcançado pelas outras nações (de “culturas atrasadas”) e com uma função de suporte às estruturas do Estado. Essa posição do intelectual permaneceu até a configuração das bases sociais para o chamado pós-modernismo. Nesse momento, as grandes teorias, que se apoiavam em um ideal de verdade, fragmentaram-se e o ideal civilizatório que eles defendiam perdeu-se. Junto disso, a noção do bom e mau gosto dado por uma figura legisladora é substituída pelas diversas interpretações e possibilidades de leitura. Nesse momento, as obras de arte enquanto produto passaram a ser qualificadas de acordo com seu nível de vendas, seu potencial de mercado. Essa lógica deu ao intelectual uma relativa liberdade, porque não precisava estar intrinsecamente ligada a um plano de poder, mas trouxe também a irrelevância, já que não mais servia para legitimar uma dominação cultural ou dar suporte ao Estado, que passou a se organizar para sustentar o mercado (BAUMAN, 2010). Anos depois, uma das plataformas em que esses críticos-intérpretes conseguiram se estruturar foram as redes sociais. Organizadas em canais, grupos ou perfis, as conversas sobre literatura nessas comunidades seguem a lógica de agrupamento das redes, em que há diferentes formas de concentração e também a apropriação de outro elemento presente nas narrativas pessoais da contemporaneidade:

Nossa vida, nossa identidade, é uma narrativa pessoal. Estamos sempre contando histórias de nós mesmos, enviando mensagens diversas, por meio de diários, e-mails, tuítes, mensagens nas redes sociais, em geral, etc. Por meio dessas

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histórias que contamos de nós mesmos estamos construindo um autossignificado singular: nosso eu se transforma em um conto, um relato valorativo. Podemos estudar as narrativas, portanto, para compreender esse conto (MOTTA, 2013, p. 27, apud PFAFFENSELLER; PICCININ; PELLANDA, 2017).

Na contemporaneidade, a maioria das narrativas tornam-se autonarrativas e configuram-se por meio de blogs e redes sociais. Isso significa que cada vez mais em tuítes, posts no Facebook ou fotos do Instagram o ser humano tem construído suas biografias e identidades, “narrando mediante o fato de que nossas vidas são as nossas narrativas, orientadas pela construção de uma realidade em que a personagem principal e seu narrador maior são o próprio indivíduo criador” (PFAFFENSELLER; PICCININ; PELLANDA, 2017). Na configuração hedonista e supervalorativa do “eu” das redes sociais, as narrativas pessoais transbordam o que há na esfera privada para a esfera pública. A crítica veiculada em plataformas como o YouTube, o Facebook ou o Instagram passa a valorizar a experiência individual, mas não da maneira que acontece em textos escritos em que há uma identificação com o crítico e seu gosto, por exemplo. A valorização dessa experiência muda a tônica do texto vinculado e acrescenta outros elementos no texto, como a figura do quarto no vídeo dobooktuber .

Booktubers Podemos sintetizar o booktuber como alguém que cria um canal no YouTube e produz vídeos com questões relativas à cultura literária, como resenhas, livros recebidos, dicas de leitura ou até mesmo um passeio pela estante. Como atuam no espaço digital, é comum que tenham contas vinculadas em outras redes sociais, principalmente o Instagram. Alguns booktubers promovem encontros físicos ou encontros com inscritos de maneira não regular. São figuras muito próximas do influenciador digital, muito comum em mercados como o gastronômico, de moda e de turismo – pessoas de perfis com muitos seguidores, que recebem de empresas para divulgar produtos nas redes sociais. Eles recebem produtos, de maneira paga ou gratuita, e postam sobre eles na rede em que atuam. O booktuber tem contato com as editoras, mas, na maioria das vezes, fazem resenhas de acordo com suas vontades de leitura – ainda que alguns canais ofereçam publieditoriais, como são chamadas as resenhas pagas – ou a pedido dos inscritos. A própria criação dos canais surge da paixão pela literatura e da vontade de conversar sobre livros (MARCHETTO, 2019). A narrativa traz elementos da (1) crítica literária, já que se debruça sobre a análise e a leitura de um livro², visto nos vídeos de análise e resenha; da (2) narrativa jornalística, porque medeia a relação entre o leitor e a literatura com leituras pautadas no cotidiano; da (3) narrativa das redes sociais, porque traz elementos pessoais para o vídeo e estrutura uma comunidade, forma identidades.

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O YouTube é um elemento importante nessa configuração. Conforme Tauana (2017, p. 176), a rede nasceu para compartilhamento de vídeos pessoais, mas cresceu:

O YouTube pode ser entendido de duas formas: como uma empresa de mídia, atuando enquanto agregador de conteúdo e plataforma de mídia, embora não se caracterize, de fato, enquanto produtora de conteúdo; ou como um site de cultura participativa, atuando como uma plataforma de compartilhamento de vídeos produzidos por seus usuários. É a partir da participação que o YouTube se torna uma rede social.

Em um caminho das sociabilidades humanas, Tauana Jeffman (2017) parte das pequenas tribos aos agrupamentos maiores e, agora, em uma inversão do movimento – em que seleciona comunidades menores para fazer parte:

A sociedade se organiza em vários mundos, que se unem, uns aos outros, por meio de alguns atalhos. Deste modo, se a internet uniu a sociedade, agora a sociedade está se reorganizando novamente em ‘mundos pequenos’, que são percebidos em redes sociais como aquelas que emergem no YouTube, no qual o vínculo que promove a constituição do grupo se dá por meio do conteúdo que é consumido e compartilhado (JEFFMAN, 2017, p.176).

Essa faceta comunitária, seletiva, dá à internet uma dimensão social com práticas de integração e interação, tanto sociais quanto simbólicas. Visualizamos isso nos critérios de formação de grupos, as pautas abordadas, no papel que esses elementos têm na constituição de identidades, ideias, sentimentos. A formação de um canal voltado para a cultura literária é a apropriação de uma rede para criar sua comunidade voltada ao “diálogo (...) norteado pelas leituras realizadas, autores preferidos, eventos literários frequentados, pelas reflexões que o contato com a literatura oferta, entre outras possibilidades relacionadas ao consumo cultural”, além de criar vínculos, sociais e afetivos, círculos de pertencimento e regras próprias de funcionamento (JEFFMAN, 2010, p.187). Ainda que a leitura seja um ato introspectivo, é também de socialização. A crítica do booktuber, expressa especificamente em suas resenhas, é uma das narrativas que guia o interlocutor no mundo do prazer estético da leitura. “O leitor é potencialmente socializável, mesmo que leia isolado. Pertencer a um grupo e ter a oportunidade de conversar e partilhar impressões sobre leitura é uma das características essenciais do ‘eu’ leitor” (JEFFMAN, 2017, p. 25):

Os booktubers desenvolveram uma linguagem própria, um modo próprio de classificar e assimilar aquilo que leem. São permeados por uma explosão emocional, utilizando o gosto, os sentidos e as experiências para consumir literatura. Enquanto mediadores, organizam as ideias, refletem e conversam sobre o campo no qual estão inseridos, transmitindo aos seguidores suas opiniões e percepções, ao passo que também solicitam destas suas considerações. Para a maioria dos leitores que acompanham os booktubers, estes atuam como uma ponte entre leitores, o mercado editorial e a cultura literária, propondo questionamentos

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e desmistificando um campo que foi caracterizado como algo alcançável e discernível apenas para o “leitor de alta cultura” (JEFFMAN, 2017, p. 110).

Agatha Christie (Lar da Agatha) – Nicolas Neves (Las hojas muertas y “ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA” otras hojas) – “#Comentando: Vozes de Tchernóbil (Svetlana Aleksiévitch)”

Yuri Al’Hanati (Livrada!) – “S02E42: Mell Ferraz (Literature-se) – “VOCÊ Androides Sonham Com Ovelhas QUER BOA LITERATURA Eletricas?, de Philip. K Dick” JAPONESA? Voragem, Junichiro Tanizaki”

Gisele Eberspächer (Gisele Alexander Meireles (Fantasticursos) Eberspächer) – “A mão esquerda da – “Fica a dica: Ainda vale a pena ler a escuridão - Vamos falar sobre livros?” distopia FAHRENHEIT 451?”

Entre corpos, quartos e estantes Para entender o estabelecimento dos booktubers enquanto um campo legítimo de crítica literária e analisar sua produção interna, dedicamo-nos a uma pesquisa dividida em três etapas: (1) uma entrevista em profundidade com booktubers de seis canais,

171 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares selecionados de acordo com a variedade de gosto, público e número de inscritos; (2) levantamento de seis meses de vídeos e posterior análise de três resenhas dentro desse período; (3) comparação entre o que foi dito nas entrevistas e o que foi verificado na análise (MARCHETTO, 2019). Os canais selecionados foram os de: 1) Júnior Stornelli, responsável pelo canal Lar da Agatha. Apresenta seus vídeos como a drag queen Agatha Christie, nome dado em homenagem à escritora homônima, por onde iniciou no mundo da leitura; 2) Nicolas Neves, estudante de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e responsável pelo canal Las hojas muertas y otras hojas; 3) Gisele Eberspächer, responsável por um canal homônimo; é graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde também é mestranda na área de Letras; 4) Alexander Meireles, responsável pelo canal Fantasticursos, professor de Língua Inglesa e Literatura Inglesa e Norte-Americana na Universidade Federal de Goiás (UFG); 5) Yuri Al’Hanati, jornalista, responsável pelo canal Livrada! e autor de um livro de crônicas publicado pela Dublinense; 6) Mell Ferraz, tradutora, revisora e formada em Estudos Literários na Universidade de Campinas (UNICAMP). As entrevistas foram divididas em quatro blocos de perguntas: (1) Ofício, que esmiuçou o novo fazer-crítico; (2) Leitura, que abordou a maneira com que os booktubers consomem literatura e crítica literária; (3) Profissionalização, que traçou um panorama sobre as questões financeiras e mercadológicas; (4) Público, que mostrou como as relações entre booktubers e os inscritos ocorrem. Para a análise dos vídeos, a metodologia parte da apresentada por Tauana Jeffman (2018) em sua tese, dedicada a um estudo de performances e relações estabelecidas por booktubers e leitores enquanto comunidade literária num espaço digital. Para ela, a parte visual do vídeo é de bastante importância, porque

quando criam um canal no YouTube, os booktuber[s] fornecem informações visuais e verbais sobre a sua identidade enquanto leitor. O modo como inserem informações na plataforma – por meio das descrições, por exemplo – e o tipo de informações que contemplam seus vídeos são expressões transmitidas (JEFFMAN, 2018, p. 167).

Um dos resultados da pesquisa de Tauana (2018) foi a identificação de uma estrutura comum nos vídeos: uma abertura, que introduz o assunto do vídeo; uma vinheta de abertura; o desenvolvimento do conteúdo; o encerramento com pedidos de interação e compartilhamento e, sobre este, Tauana (2018, p.219) afirma que

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é corriqueiro que, ao findar a explanação, os booktubers solicitem a participação dos seguidores através dos comentários no vídeo (...), estratégia que busca alimentar o relacionamento com o público. Neste viés, na concepção de Peixoto (2014, p. 49), mais importante do que pedir likes e compartilhamentos é incentivar os comentários nos vídeos, convidando os seguidores a participarem do conteúdo do canal.

No que diz respeito à parte visual do canal, Tauana (2018) identificou um amplo uso dos recursos do YouTube para formar uma identidade visual e uma personalidade do canal, através de miniaturas de vídeos, descrições, links para outras redes sociais, imagens de capa e do perfil do canal. Das impressões que veremos abaixo, osseis canais selecionados obedecem à mesma lógica dos três que Tauana (2018) escolheu. A estrutura do vídeo permanece, ainda que o primeiro item seja menos comum. Além disso, cada canal também estabelece um padrão de miniaturas para apresentar o tema do vídeo, quais letras e cores usar, como nomear e separar os vídeos de acordo com sua finalidade – resenhas, dicas, leitura conjunta. As descrições dos vídeos também são parte importante: é nela que existem links para outras redes, como grupos de WhatsApp e perfis de Instagram, além de endereço da caixa postal e outras impressões da leitura. Para apresentar tais conclusões, Tauana (2018, p. 46) montou um esquema de análise individual dos vídeos estruturado em seis pontos: “Aparência Visual”; “Linguagem Verbal, Gestual, Corporal”; “Cenário (espacialidades e objetos)”; “Papel constituído” (relacionado ao papel social do booktuber); “Temporalidades” (periodicidade) e “Uso de recursos audiovisuais e da plataforma YouTube”. Adaptando essa formulação, retiramos o ponto de análise do “Papel Constituído” e mantivemos os outros como base de análise. Para a análise, catalogamos seis meses de vídeo em uma tabela, com média e total de visualizações e duração de vídeos, categorias das produções e números de inscritos no canal. De dentro desse recorte, três vídeos de cada canal, pertencentes à categoria de Resenha3, foram analisados minuciosamente de acordo com as categorias expostas acima. a. Aparência Visual Neste tópico, a análise verifica a construção da fachada dobooktuber , envolvendo exclusivamente os aspectos visuais, como corte de cabelo, roupas e outros acessórios. A importância surge na visualização da narrativa que o corpo presente no vídeo traz e o como isso dialoga com o restante dos elementos. De maneira geral, a vestimenta obedece à etiqueta casual, de acordo com o que é usado no cotidiano. Como exemplo, as pessoas apresentam-se de camiseta, sem nenhum penteado específico, maquiagens fortes, uso de joias chamativas ou qualquer outro elemento de distinção. Isso reflete a construção do YouTube como um espaço de proximidade, como disse Gisele Eberspächer (apud MARCHETTO, 2019):

O YouTube é como se a gente fosse num café, um bar, e conversasse informalmente sobre um livro e eu acho que isso é uma parte do consumo de literatura e da discussão de literatura que para mim é muito importante, que é: o livro não precisa estar só guardado para discussões acadêmicas muito sérias. Ele também 173 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

pode fazer parte da nossa vida comum, a gente também pode conversar sobre isso de outra forma.

O único canal que foi exceção neste levantamento foi o Lar da Agatha. Nesse caso, apropriando-se de elementos culturais das drag queens, Agatha Christie produz-se de acordo com a temática do livro resenhado. Por exemplo, no vídeo sobre Coraline, de Neil Gaiman, ela se apresenta como a “madrasta” da personagem principal vista na adaptação cinematográfica do livro, com os mesmos olhos de botão e vestido estampado. No vídeo de Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, Agatha coloca dentes falsos, deixa sua pele pálida e espalha sangue falso. Por fim, no livroEnsaio sobre a cegueira, de José Saramago, Agatha aparece com um hábito de freira, óculos escuros e maquiagem que esconde os olhos. Na narrativa de Agatha, elementos da cultura literária dialogam com elementos de outras culturas e, de acordo com o levantamento prévio que verificou o estado das produções sobre literatura no YouTube, Lar da Agatha é o primeiro canal brasileiro em que uma drag queen é booktuber – ainda que outras drags youtubers abordem ou falem de livros em alguns vídeos de seus canais, não são produções exclusivamente voltadas para a cultura literária. b. Linguagem Verbal, Gestual e Corporal Este segundo tópico está ligado às expressões e formas de linguagem que os booktubers adotam em seus vídeos. No que diz respeito ao aspecto verbal, as abordagens dos booktubers diferenciam-se bastante. Além do tempo disponível para o desenvolvimento do texto, a ser aprofundado abaixo, a estratégia do desenvolvimento também varia – o resultado pode ser um ensaio longo e reflexivo, como pode ser uma resenha opinativa sucinta ou uma apresentação breve sobre um conceito técnico ligado ao campo da literatura. Da mesma forma, o nível técnico do texto varia. Nicolas Neves, no canal Las hojas muertas y otras hojas, faz análises extensas, com até uma hora e meia de duração, com termos científicos específicos da área de literatura, como, por exemplo, a sátira menipeia no caso do vídeo sobre Bobók, de Dostoievski. A maioria dos termos são explicados durante a arguição. No caso do canal Literature-se, Mell Ferraz (apud MARCHETTO, 2019) traz resenhas com textos simples e acessíveis, mas também palavras novas, com a intenção de aumentar o vocabulário dos inscritos. Vale ressaltar que, assim como veremos abaixo nos termos técnicos de gravação, a produção não exige uma voz como a de um locutor de rádio, como visto na presença de um booktuber que tem a língua presa. Os quesitos corporal e gestual estão bem próximos na narrativa dos booktubers. O enquadramento dos vídeos é feito majoritariamente em um plano médio (busto) – em raras ocasiões, em que há convidados, usam plano americano (joelho). Os corpos estão sentados, relaxados. As mãos gesticulam sempre e, muitas vezes, estão segurando o livro resenhado ou outros itens – uma presença que se liga ao tópico abaixo.

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c. Cenário (espacialidades e objetos) Complementando o que foi apresentado acima, esse item visa a analisar o espaço material que circunda o booktuber: os seus arredores, o cenário e também os objetos que compõem a cena. Dessa forma, retomando a linha de raciocínio acima, os livros impressos são valorizados e compõem as narrativas dos booktubers: mostra-se a capa dos livros, comenta-se sobre a edição, alguns deles fazem anotações nos próprios livros e é possível vê-las ou chegam a utilizar os livros para fazer leituras de trechos em voz alta. Além disso, alguns outros objetos são manipulados pelos booktubers para compor a narrativa da leitura, como taças de vinho ou xícaras de café. É um ato que, refletindo sobre o caráter de descontração na narrativa-vídeo, sugere um momento de aproximação, fora do ambiente formal acadêmico. Para além do ato de degustar bebidas, algo não muito comum, o que é prioritário na composição da aura intimista dos vídeos é o fato de serem gravados nas casas dos booktubers (muitas vezes, nos próprios quartos) e sempre em frente a suas estantes. Em entrevista, Nicolas Neves (apud MARCHETTO, 2019) chegou a comentar sobre o papel que a cenografia tem nas resenhas feitas nobooktube :

Quando eu comecei, fazia vídeos de costas para a parede. Eu não via necessidade nenhuma de fazer vídeos com uma estante atrás de mim, mas aí existe uma questão que é a adequação ao gênero, né? (...) A resenha de livros feitas para o YouTube deve ter um tipo de discurso muito próprio. É claro que eu não sigo muito dessas adequações, eu não me adequo muito a esse gênero como, por exemplo, fazer vídeo de uma hora. Isso é uma coisa que só se passa na minha cabeça, mas isso ajuda muito: a imagem que você faz, sabe? Existe toda uma cenografia que você deve criar e me parece que essa cenografia contribui mais do que a sua formação para que você tenha público, para que você tenha algum tipo de respaldo popular, digamos assim.

Essa percepção deixa clara a importância da intimidade e dos livros nas estantes, muitas vezes já resenhados ou citados nos canais. Além disso, os cenários não apresentam grandes mudanças entre um vídeo e outro, como a criação de um fundo temático (nem nos vídeos do canal Lar da Agatha). Muitas vezes, o que ocorre é a percepção de que alguns livros mudaram de lugar. d. Uso de recursos audiovisuais e da plataforma YouTube Esta categoria analisa os conhecimentos e usos técnicos dos booktubers nos momentos de gravação, edição e divulgação – ou seja, conhecimentos relacionados à captação e ao uso do YouTube. Nesse caso, no que diz respeito à captação, os modelos dos vídeos mantêm-se no que foi apresentado no enquadramento e, para isso, são usados equipamentos em diversos níveis: desde os que captam com câmeras profissionais, como o Yuri, que tem um colega que faz a captação do material, até os que gravam com celulares. Ainda que alguns canais invistam mais na captação do material audiovisual, não

175 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares parece ser uma variável importante. Por exemplo, alguns canais apresentaram problemas de iluminação, foco ou áudio, mas os vídeos tiveram a mesma média de visualizações e nenhum dos comentários citava a parte técnica do vídeo. Tampouco é preciso ter conhecimentos complexos de edição. O que há de mais produzido, além de alguns cortes nos vídeos, é a produção de vinheta – mais comum nos canais. De resto, há a inserção de algumas imagens, trechos de filmes ou gerador de GCs (esses dois últimos são recursos usados exclusivamente no canal Fantasticursos). O uso da plataforma ocorre em sua completude. Existe a criação de uma imagem do canal por meio das miniaturas dos vídeos (fonte, cor e diagramação), dos títulos dos vídeos (tipo de vídeo, qual livro analisado e onde ele se encaixa na produção do canal), descrição do vídeo (link para outras redes, endereço para caixa postal, meios de entrar em contato e do que se trata o vídeo) e o uso das TAGs para otimização no processo de busca no YouTube. Por fim, a mídia do vídeo é preterida numa perspectiva geral. Os booktubers afirmam não produzir nenhuma versão escrita da resenha gravada – em alguns casos, escrevem apenas roteiros de produção, mas em outros é apenas sentar e gravar. São elementos que estão de acordo com as conclusões de Tauana Jeffman (2018). e. Temporalidade No que diz respeito à periodicidade de cada canal, nos seis meses levantados (1) o canal Lar da Agatha publicou 45 vídeos, (2) o canal Las hojas muertas y otras hojas publicou 61 vídeos, (3) o canal da Gisele Eberspächer publicou 54 vídeos, (4, 5) os canais Fantasticursos e Literature-se publicaram 69 vídeos, (6) e o canal Livrada! publicou 46 vídeos - cerca de 2 ou 3 vídeos publicados por semana. A duração desses vídeos varia de acordo com o canal e com o tipo de vídeo produzido. No caso das resenhas, os canais geralmente produzem vídeos entre 7 e 15 minutos. O canal Las hojas muertas y otras hojas é uma exceção, com vídeos com mais de uma hora. O que há é uma padronização da duração para cada tipo de conteúdo. Como exemplo, citamos o caso do Livrada!. Em entrevista, Yuri Al’Hanati (apud MARCHETTO, 2019) comenta que procura manter a faixa de até 15 minutos para resenhas, até meia hora para entrevistas e até 40 minutos para bookhauls (vídeos de apresentação dos lançamentos editorais e dos livros recebidos, enviados tanto por editoras quanto por inscritos). Vale ressaltar que os livros pautados para as resenhas são, em sua maioria, selecionados de acordo com o gosto literário do booktuber.

Considerações finais Podemos traçar um caminho que nos aproxima da compreensão da crítica literária produzida pelos booktubers enquanto narrativa e o papel que o corpo e os demais elementos materiais têm na construção desse texto. Em primeiro lugar, os retratos que surgem dessa análise são sempre temporários. Além da fluidez existente em qualquer texto cultural, o campo do booktube ainda está em construção, permeado

176 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de reflexões sobre o que é aceitável ou não aceitável dentro de suas fronteiras, como: podemos cobrar para fazer críticas? Como nos relacionar com autores independentes ou com editoras? Nesse contexto, com o que foi apresentado, alguns delineamentos são visíveis. No que tange à crítica enquanto narrativa, é possível visualizar elementos das narrativas jornalísticas, pessoais e de crítica literária. A configuração dá-se pela orientação estética e a mediação do campo literária com os inscritos, seguindo questões cotidianas, mas também porque configura um espaço de identidade, afeto e contato. Assistir aum determinado canal define seus gostos enquanto leitor, orienta opiniões de fruição estética e une booktubers e inscritos em determinadas comunidades, que se expandem para outros canais. Os vídeos podem orientar de diversas maneiras: desde vídeos que digam como ler mais rápido, fichar um texto, passando por orientações sobre lançamentos no mercado editorial, como os vídeos de bookhaul, até as análises mais aprofundadas, vistas em vídeos de artigos ou resenhas. Nessa configuração, o espaço íntimo dobooktuber (seu quarto, sala ou biblioteca), a estante com seus livros e o seu busto enquadrado em primeiro plano surgem como fatores de identificação e aproximação, adotando ares de uma cenografia necessária para a estruturação de um tipo de gênero discursivo e sendo o rosto que cria os afetos nos relacionamentos digitais, tanto entre o booktuber e os inscritos ou dos inscritos entre si. Desses vínculos, surgem amizades que extrapolam os limites do canal e passam a ocupar espaços digitais, como grupos do Facebook ou do WhatsApp, e físicos, como feiras de livros ou palestras.

Notas ______¹ Booktuber é uma variação do termo comumente utilizado para falar do criador de conteúdo voltado para a plataforma do YouTube, o youtuber. Os booktubers são pessoas que criam um canal na mesma plataforma, mas abordam exclusivamente questões relativas à cultura literária. ² A metodologia é variada. Existem booktubers que enveredam por uma análise mais técnica e outros que fazem uma análise mais impressionista, tomando como base os sentimentos despertados durante a leitura. 3 Em sua pesquisa, Tauana (2018, p. 44) organizou 12 categorias, que, posteriormente, atualizei de acordo com os dados que encontrei. São elas: TAG; Resenha; Atualizações; Gosto; Projetos de leitura; Vídeos de socialização; Vídeos de contemplação; Unboxing; Vídeos confessionais; Séries, filmes e músicas; Vídeos criativos; Publieditorial; Cobertura de Eventos; Entrevistas; Leitura Pública; e Artigos.

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AS NARRATIVAS DE BICICLETA COMO FENÔMENO MIDIÁTICO E A EMERGÊNCIA DO NARRADOR MIDIATIZADO

Demétrio de Azeredo Soster

Extratos narrativos reconfigurados Este artigo parte do princípio de que a processualidade da midiatização, ao se interpor nas narrativas de bicicleta, transformando-as em fenômenos midiáticos, interfere também na deontologia dos extratos narrativos localizados no âmbito das processualidades internas dos dispositivos – primeiro, segundo e terceiro narradores, que explicitaremos adiante, midiatizando-os. Emerge, dessa forma, no percurso evolutivo iniciado por Benjamin (2012) e seu narrador moderno; e prosseguido, mais adiante, por Santiago (2002), com o narrador pós-moderno, um terceiro extrato, que vamos chamar, seminalmente, de narrador midiatizado. Plurivocal e multifacetado, o narrador midiatizado também se diferencia dos demais níveis narrativos identificados anteriormente por Genette (1988), na literatura, e, depois, por Motta (2013), no jornalismo, pelo fato de sua identidade estar afeita antes a uma processualidade que a um lugar situacional, como veremos adiante. Também por se reconfigurar constantemente em decorrências das interposições e atravessamentos provocados pelos circuitos múltiplos no âmbito das atividades sistêmicas. Para dar conta de nosso propósito, do ponto de vista metodológico, iniciaremos contextualizando de que forma as narrativas de viagem e, nelas, as de bicicleta, tornam-se fenômenos midiáticos e preparam, dessa maneira, as bases para sua inserção na discursividade midiática. Depois, e ainda no âmbito da revisão bibliográfica, discorreremos a respeito dos primeiros, segundo e terceiro narradores, e de como estes conceitos se complexificam quando afetados pela processualidade da midiatização. Feito isso, teremos condições de observar, com mais cuidado, este que estamos chamando de narrador midiatizado e sua relação com os extratos que lhe antecederam (moderno e pós-moderno). Ilustraremos nossa análise com o projeto Mochila & Bike1, desenvolvido pelo cicloturista Aldo Lammel. Ainda na perspectiva metodológica, trata-se, o artigo, de uma visada de natureza qualitativa, nos moldes de Demo (2000). Dizê-lo dessa forma implica subsumir que possui ao menos duas dimensões a serem consideradas quando de sua análise: qualitativas, ligadas à diversidade, complexidade e incompletude dos fenômenos que a 181 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares compõe; e quantitativas, que nos remetem às partículas mensuráveis do objeto analisado (variações, incidências etc.). Sob outro ângulo, e agora com Ferreira (2013), trata-se de um objeto que, por sua “condição”, midiatizada, convida-nos a superar o que chama de epistemologia dos “objetos separados” por pelo menos três motivos, a saber:

Primeiro, porque investigar a comunicação em sociedades midiatizadas requer a superação dos objetos separados, base de outras constituições epistemológicas (teorias sociais, da linguagem e informacionais-cibernéticas). Segundo, porque deve compreender a circulação. Na circulação, o objeto é singular, na medida em que imerso numa configuração própria ao caso, conexão imprevista de códigos, estruturas e sistemas em interação, mobilizados pelas posições cambiantes entre produção e recepção, colocando em xeque posições históricas construídas. (FERREIRA, 2013, p. 76)

A superação, neste caso, e ainda no diálogo com Ferreira (2013), se dá, portanto, por meio da ruptura com os modelos analíticos vigentes, mas, também, considerando que este movimento a integra em uma nova problemática; não é, portanto, excludente, e sim complementar. Partindo-se deste pressuposto, uma estratégia possível é considerar, agora com Fausto Neto (2010), que estamos falando, de um lado, de processos enunciativos, aqui pensados como a) matéria significante (as pistas discursivas por meio das quais reconhecemos as narrativas de bicicleta como tal), mas, também, b) como aquela que organiza procedimentos de práticas enunciativas de caráter midiático, que nos interessa particularmente:

Há duas dimensões de estratégias: na primeira, a enunciação engendra discursos, dando-lhes existência; na segunda, o discurso, ao ser convertido numa espécie de ‘discurso paciente’, é transformado em objeto de análise de um outro trabalho enunciativo, que é o de caráter metodológico. Deparados por temporalidades e práticas distintas, ambos têm na atividade enunciativa uma espécie de elo de contato, que é o trabalho de constituir as discursividades, bem como de analisar e produzir efeitos sobre suas manifestações. (FAUSTO NETO, 2010, p. 14).

Dito isso, observemos de que forma as narrativas de bicicleta se tornam fenômenos midiáticos e preparam, dessa maneira, as bases para sua midiatização.

Narrativas como fenômenos midiáticos No diálogo com nosso percurso de pesquisa (SOSTER, 2018), começamos reafirmando que as narrativas de bicicleta se transformam em fenômenos midiáticos a partir do momento em que são registradas por dispositivos tecnológicos. Ao sofrerem o registro, ganham corpo narrativo em diferentes linguagens como áudio, vídeo e texto, passando a ser dotadas de autonomia e persistência, estabelecendo, dessa forma, as bases por meio das quais se inserem na discursividade midiática. Com isso, afetam e são afetadas pela midiatização, midiatizando-se, provocando, neste movimento,

182 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares transformações as mais diversas. Isso ocorre, de um lado, quando, mais que relatar, a quem quer que seja, o que viveu em sua viagem, o cicloturista registra – antes, durante ou depois da cicloviagem, em qualquer dispositivo (caderno, livro, site, rede social, blog etc.), por meio de diferentes tecnologias (câmaras, gravadores, máquinas fotográficas etc.) sua experiência. Perpetua, dessa forma, o momento vivido e provoca transformações as mais diversas. Mas, também, quando este movimento (de registro do vivido) se interpõe como processo interacional de referência (SOSTER, 2018), ou seja, como se torna algo tão importante quanto à necessidade de se ter uma bicicleta para viajar. Pensados com Verón (2013), sob outro ângulo, os fenômenos midiáticos se articulam a partir de gramáticas; ou seja, de processos discursivos de produção de sentido, dotados de três características: primeiridade, secundidade e terceiridade. A autonomia a que nos referimos no parágrafo anterior é da ordem da primeiridade, ou seja, de quando os sentidos são materializados em dispositivos como livros, sites etc. Por este viés, a história contada por um cicloturista num dispositivo tecnológico que viabilize e retenha, essa narrativa ganha alcance e se separa de seu autor, passando a ter vida própria, de onde o adjetivo “autônoma”. É a partir deste momento que se inicia a secundidade, ou seja, a geração de “histórias”, ou acontecimentos, protagonizados pelas pessoas que viajam de bicicleta. É o que ocorre, por exemplo, quando lemos, cada uma a seu tempo, modo e lugar, os referidos relatos: as narrativas serão sempre as mesmas, o que muda é a forma como são compreendidas por quem as acessa. É neste ponto que vamos nos deparar, em nossa reflexão, com aquilo que Verón (2013), preocupado com as condições de circulação do sentido, chamou de terceiridade: “Cuando el sentido cobra cuerpo y entra em relaciones históricas, se plantea imediatamente, la terceridad de las reglas que definen las condiciones de acceso ao sentido, es decir, las condiciones desu circulación2” (VERON, 2013 p. 148-149). Uma vez compreendidas como fenômenos midiáticos, portanto, podemos então circunscrever nossa atenção para o que ocorre no interior dos dispositivos onde as referidas narrativas têm lugar. Dito de outra forma, pensá-las processualmente, a partir de seus narradores, o que nos permitirá, mais adiante, alcançar nosso objeto, o narrador midiatizado.

Narrativas e seus narradores Sabemos, com Motta (2013), que são em número de três os narradores que compõem os dispositivos: primeiro, segundo e terceiro narradores. Ainda que tenham sido pensados para refletir sobre a disputa de vozes no âmbito dos jornais impressos, podem ser adaptados às nossas necessidades, caso queiramos nos valer deles para pensar as narrativas de bicicleta como fenômenos midiáticos. De uma forma simplificada, e sem pretensões totalizantes, ficam assim explicitados:

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Primeiro narrador. É extradiegético, ou seja, está “fora da história”. No caso das narrativas de bicicleta, ele é quem mantém o site, a rede social, quem dá forma ao livro, mas, também, quem está por trás, do ponto de vista organizacional e institucional, das marcas. No caso do Facebook, pensado como site de rede social, o primeiro narrador é a) o próprio espaço (a página em que o relato é registrado), b) quem escreve nele, mas, também, c) o Facebook, com suas limitações e constrangimentos. Segundo narrador. É o autor do relato, neste caso, o cicloturista que escreve e que posta as fotos e os vídeos. Mesmo restrito às condições e limitações impostas pelo primeiro narrador (no exemplo analisado, do Facebook, formato do relato, alcance, recursos passíveis de serem utilizados etc), ele tem considerável liberdade de expressão. É vetado somente quando suas postagens, por exemplo, ferem as regras do Facebook; momento em que o primeiro narrador se desvela, mas, no geral, possui liberdade de expressão. Terceiro narrador. São as fontes que o cicloturista se utiliza em suas histórias. Ou seja, as pessoas que são retratadas nas histórias contadas.

Gráfico 1: vozes narrativas no dispositivo

Fonte: elaboração do autor

Se considerarmos, no entanto, que a processualidade da midiatização, ao inter- ferir na processualidade interna dos dispositivos, acaba por reconfigurar suas disputas de vozes internas, nos moldes do que pensamos com os livros-reportagem (SOSTER, 2016,

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2016-a, 2015), podemos dizer que o mesmo se verifica com as narrativas de bicicleta. Basicamente porque a) as narrativas de bicicletas são estruturas narrativas (SOSTER, 2018) e, como os livros-reportagem, b) não estão presas às lógicas produtivas que exi- gem, por exemplo, das mesmas, quando pensadas pelo jornalismo, periodicidade para se constituir como tal, como ocorre com os jornais impressos. Com isso, o segundo nar- rador passa a ter uma centralidade discursiva, na relação com o modelo de Motta (2013). O Gráfico 2 nos mostra como isso se dá:

Gráfico 2 – processualidades diferenciadas

Fonte: elaboração do autor

Antes de prosseguirmos, é importante salientar que, ainda, que a midiatização afe- te todos os extratos narrativos existentes no interior dos dispositivos, nossa atenção, neste momento, se dará especificamente sobre o segundo narrador. Ou seja, sobre o cicloviajante que transforma sua narrativa em fenômeno midiático ao veiculá-la em um dispositivo, midiatizando e se tornando, dessa forma, ele próprio um narrador midiati- zado. Assim, sempre que nos referirmos, doravante, ao narrador midiatizado, estaremos falando do segundo extrato narrativo, ou segundo narrador, a partir da classificação de Motta (2013). Os demais narradores receberão sua necessária atenção em momento oportuno.

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Estruturas discursivas Desde que o tema “narrativas de bicicleta”; e, nele, sua midiatização, interpuseram- se em nosso percurso de pesquisa, passamos a observar, com mais atenção, as estruturas discursivas das primeiras como estratégia para compreendermos, mais adiante, o que emerge de seus processos de enunciação. Por este viés, identificamos, por exemplo, que a natureza textual deste modelo narrativo, que classificamos como fático-descritivo, representa o ponto de vista, ou a fala, de narradores com o objetivo de narrar uma experiência vivida. As narrativas são fático-descritivas basicamente porque se propõem a descrever a experiência vivida pelos cicloturistas, o que ajuda a entender porque, via de regra, são escritas em primeira pessoa. Estas narrativas, por sua vez, são estruturadas a partir de depoimentos de caráter testemunhal, ou seja, de pessoas que, ao escreverem, posicionam-se como testemunhas do que aconteceu, seja na condição de protagonista do vivido, ou não. A diferença que estamos defendendo neste artigo tem a ver com a forma por meio da qual as narrativas de bicicleta se estabelecem e sua anatomia. “As experiências de vida das pessoas são cada vez mais mediadas (grifo nosso), elas tomam cada vez mais contato com o mundo exterior através de representações virtuais e discursivas da realidade.” (MOTTA, 2013, p. 28). É dizer, por outras palavras, que são narrativas que emergem da relação entre pessoas e dispositivos técnicos, e que chegam até nós por meio de sites, livros etc. Estamos falando de estruturas narrativas que valorizam, e aqui no diálogo com Sodré (2009, p. 187), “(...) as ‘viagens’ (tanto no sentido estrito da palavra quanto metafórico, como ação potencializadora da sabedoria individual) caracterizadas como ‘experiência’ para o escritor”, mas que o fazem, como dito, por meio do uso de dispositivos de natureza tecnológica. Na condição de narrativa “midiatizada”, estas narrativas acabam por trazer consigo características dos narradores que lhes antecederam (PICCININ, 2012). Pensando-se em Benjamim (2012) e sua concepção do narrador sábio, capaz de dar conselhos, porque traze consigo a perspectiva da transformação pessoal, o que se dá, como dito, pelo relato da experiência do vivido, pela noção de “moral” intrínseca à narrativa como perspectiva de autoconhecimento (GAI, 2018). O caráter testemunhal dos escritos, invariavelmente em primeira pessoa e descrevendo as coisas que viveu, as pessoas que conheceu no caminho, contribuem decisivamente para isso. É o mecanismo por meio do qual, e aqui com Sodré (2000, p. 180) novamente, são transmitidos os conselhos, os ensinamentos, as lições apreendidas e as práticas de vida; onde o narrador pré-moderno de Benjamim (2012) tem lugar, enfim.

Esse tipo de narrativa constitui a base comunicativa do grupo social, portanto, as formas primordiais de transmissão do ethos comunitário, ou seja, de tradições e modos de ser. Sua temporalidade é necessariamente lenta, já que a interiorização harmônica das experiências demanda, para o ouvinte, o intervalo prudente entre os relatos; para o narrador, o próprio acúmulo temporal como critério de sabedoria. (SODRÉ, 2000, p. 180)

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Por que as narrativas de bicicleta como uma modalidade de narrativa de viagem, recuperam em sua maioria como veremos adiante, o caráter artesanal da narrativa, nos moldes de Benjamin (2012), ressignificando essa artesanalidade a partir do uso dos dispositivos técnicos e valendo-se das condições de autonomia e persistência geradas nesse narrar que a esses dispositivos se adeque e deles tire o melhor partido, conforme Santiago (2002)? Porque nestes momentos, o narrador é tanto um repórter, ou espectador – distante, portanto, na cena narrada – quanto alguém que é protagonista desta e que, ao vivenciá-la se transforma. “Ele (o narrador) narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona da sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante” (SANTIAGO, 2002, P. 45). Da narrativa pós-moderna, esse narrador midiatizado traz a moral, o bom conselho, pensado sobretudo em termos de atributo de linguagem e como uma condição essencial à narrativa. Em sintonia com a estética pós-moderna que concilia a racionalidade moderna com a construção narrativa do assistido e vivido como grande espetáculo. Dito isso, e antes de realizarmos considerações interpretativas partindo do objeto empírico, temos condições, quem sabe, e ainda de forma seminal, de delimitar conceitualmente o que entendemos por narrador midiatizado. Chamaremos, doravante, de narrador midiatizado aquele narrador que, ao ser afetado pela processualidade da midiatização, midiatiza-se. Ser midiatizado, neste caso, significa existir enquanto fenômeno midiático, ou seja, ser um narrador dotado de autonomia e persistência, o que só pode ser pensado quando seus relatos são veiculados em um dispositivo de natureza comunicacional (site, blog, rede social, jornal, livro etc), jornalístico ou não. O narrador midiatizado é um narrador cuja identidade é cambiante, ou seja, que se transforma constantemente pela experiência vivida e que, assim, a relata. Ele pode ser, portanto, tão benjaminiano (2012), e estruturar, em suas narrativas, pendores morais, de transformação pessoal, por exemplo, quanto pós-moderno, à Santiago (2002), e, ao olhar, reportar sobre o contemplado como ideia de transformação enquanto recurso discursivo. Trata-se da soma das duas possibilidades. O narrador midiatizado, nessa perspectiva, não está, ou enxerga, o/no que narra; ele é a narrativa, relacionalmente, construindo uma performance, sobretudo, autonarrativa. Ser a narrativa, neste caso, para além das visadas teórico-estruturais, implica pensar em relação, ou seja, ser/com em acordo com o que acontece no processo de midiatização das narrativas de bicicleta. Estas narrativas passam, necessariamente, pela compreensão que representam, também por mudanças para este narrador – agora midiatizado e para quem a viagem é concebida em termos das possibilidades e necessidades de narrá-la, tendo em vista, inclusive, os processos interacionais de referência, nos moldes apontados por Braga (2012) Ou seja, existem estes processos interacionais que se dão não apenas como intenção desejada – necessidade de contar algo a alguém, mas porque é assim que os narradores midiatizados são, em essência. Em outras palavras, viajar de bicicleta parece implicar,

187 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares igualmente, em pensar o registro e registrar, por meio de dispositivos tecnológicos, a viagem em si, bem como, usar os registros, mais tarde, ou concomitante, para estruturar narrativas antes como um ato natural que como uma intenção desejada, apenas. Observa-se assim, que por força do ambiente socio-técnico-discursivo marcado pela manifestação e corporeidade do dizer em razão das possibilidades ofertadas pelos gadgets disponíveis, viajar e narrar fundem-se numa condição e experiência única, uma em razão da outra e vice-versa. Tem-se uma história contada pelo viajante que ganha autonomia porque a narra- tiva se “desprende” de seu autor, ganhando outros alcances, provocando interações e sendo provocada pelas mesmas, além de manter-se como registro ao longo do tempo em certa constância, dando corpo à persistência. Por fim, a narrativa midiatizada atin- ge um sentido, neste caso, de certa transcendência porque impele no narrar, à quali- dade do organizar os sentidos e atenuar as tensões, atualizando, portanto, o potencial narrativo de autoconhecimento (GAI, 2018), como impulso estetizador da experiência (FREUD, 1997) e como produtor de sentidos (Nietzsche, 1998). A artesanalidade do narrador sábio se une à racionalidade dos dispositivos técnicos, agora ressignifica- da numa narrativa que tenta dar nova subjetividade a um narrar que contempla e que também experiência o narrado.

Considerações interpretativas Encaminhamos nossa reflexão afirmando que pensar a midiatização das narrati- vas; nelas, de seus narradores, implica considerar, quem sabe, a perspectiva por meio da qual constatamos a emergência de um narrador midiatizado no cenário proposto. Ou seja, a processualidade da ambiência em que fenômenos dessa natureza têm lugar, de matizes sócio-técnico-discursivos. Por este viés, e trazendo à discussão o concei- to de semiose de Verón (1980), veremos que a chave hermenêutica para a referida metamorfose, ou reconfiguração, seja, quem sabe, compreendê-la como de natureza relacional. Semiose significa: “(...) uma ação, ou influência, que é, ou implica, a cooperação de três sujeitos (subjects), a saber, um signo, seu objeto e seu interpretante, relação ternária (tri-relative influence) que não pode de modo algum resolver-se em ações en- tre pares” (VERÓN, 1980. p. 181). Ou seja, de forma econômica, afeita aos sentidos que emergem quando todos os atores, ou sujeitos, envolvidos nos processos de produ- ção discursiva relacionam-se entre si. É o que temos quando os homens, suas tecnologias e técnicas redesenham, relacionalmente, o mundo em que vivemos por meio de narrativas. Tomando-se como conceito de fundo as narrativas de viagem; nelas, as cicloturísticas, ou de bicicleta, e tendo como recorte o projeto “Mochila & Bike” 3, do gaúcho de charqueadas (RS) Aldo Lammel, que estamos acompanhando desde 20174, encontramos, quem sabe, algumas pistas por meio das quais possamos ilustrar o que estamos sustentando.

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Mochila & Bike Trata-se, o projeto, de uma volta ao mundo que Lammel, um publicitário gaúcho da cidade de Charquedas, especializado em comunicação digital – autodefinido em seu site como “produtor audiovisual, aventureiro, roteirista, escritor, cicloativista e músico”, realizou de bicicleta ao redor do mundo desde janeiro de 2015, e ao longo de três anos e meio, percorrendo, no caminho, 33 países em 1.135 dias. O “Mochila & Bike” nasce, igualmente, da vontade do escritor-viajante de viajar pelo mundo de bicicleta, mas, também, de relatar suas aventuras, o que faz por meio das mais diferentes plataformas: Youtube5, Facebook6, livro digital7, site8, twitter9, Instagram10, vlog11 etc.

Imagem 1 – Mochila & Bike

Fonte: https://aldolammel.com/mochilaebike

O ciclista Aldo Lammel, recordemos, inicia sua longa viagem ao redor do mundo com o objetivo de se aventurar, de descobrir novas gentes. Para isso, deixa emprego, namorada e segue em direção ao horizonte; ele, sua bicicleta, o equipamento de so- brevivência (barraca, cozinha etc.) e seus aparelhos eletrônicos – computador, tablet, câmera fotográfica etc. O projeto foi desenvolvido durante 15 meses, período em que Lammel cuidou de registrar seus movimentos e publicizá-los à medida que se realiza- vam, conforme demonstra a imagem 4:

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Imagem 2 – Desligamento do emprego

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=LkLV6YKOUsE

Um mês depois de ter tomado a decisão de realizar uma cicloviagem pelo mundo, Lammel grava um vídeo no youtube dizendo que se desligara do emprego; mais adiante, que terminara seu relacionamento. A Imagem 3 registra todo o roteiro e programa da cicloviagem:

Imagem 3 – Site com etapas da viagem

Fonte: http://mochilaebike.org/roteiro-e-cronograma.php

Além de informações sobre a viagem, o site fornece um serviço de geolocalização – Swarm APP12 em que torna possível saber a localização exata no momento em que se acessa o site. É o que ocorre quando Lammel se encontrava na República Tcheca, conforme demonstra a imagem 4

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Imagem 4 – Geolocalização via APP

Fonte: http://mochilaebike.org/roteiro-e-cronograma.php

À medida que ele captura, por meio de texto, áudio e vídeo o que está vivendo, e que veicula o narrado, em primeira pessoa, em seu site, transforma a experiência em fenômeno midiático e, em seguida, lança o mesmo à discursividade midiática, midiatizando, uma vez mais, a própria experiência. Nas primeiras semanas, meses, na condição de testemunha de seus próprios atos e decisões, sem maiores pretensões que não dizer do vivido. Seu texto, aqui, é referencial. Na imagem 5, em La Paz, na Bolívia, por exemplo, Lammel afirma, aos 5’34 de gravação, que é a primeira vez que fará um relato de improviso, sem edição.

Imagem 5 – Relatos não planejados

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=qeXII-AalFE

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Aos poucos, no entanto, e à medida que a cicloviagem avança, o tom da narrativa vai se tornando pedagógico, com um narrador preocupado em ensinar, aos pares e a quem lhe acessar, as coisas que sabe. É o que se depreende do trecho abaixo, quando Lammel compartilha, via youtube, o que chama de “suas experiências para executar tarefas, conseguir algo ou vencer desafios em prol de uma viagem mais econômica, longa, cultural e divertida”13.

Imagem 6: dialogando via Youtube

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=I4nXN_P9xKs

Ou neste outro momento, quando passa a oferecer novas formas de acesso aos que com ele dialogam, quando, em sua página no Facebook14, anuncia a criação de um aplicativo (APP) para melhorar a comunicação, e com, isso, estreitar relações:

É OFICIAL - AGORA TEMOS NOSSO PRÓPRIO APP! Agora você pode acom- panhar todos os conteúdos da volta ao mundo de uma forma muito mais rápida pelo celular: vlog, websérie, diário, manual, roteiro, estatísticas e nossas redes sociais Vale lembrar que tudo aqui é independente e ainda não colocamos nosso app na Google Play por ser caro para nós (U$25/anual), mas ainda assim você pode baixar direto do nosso site e instalar com segurança. Versão para iPhone e iPad, em breve. Baixe o App: http://mochilaebike.org15

Trata-se do mesmo narrador que, no post veiculado em sua página do Facebook16 a 26 de maio de 2016, informa que ficará em silêncio por alguns dias. Por quê? Porque precisa ficar sozinho com sua namorada, Verônica, uma garota que conheceu durante sua passagem pelo Leste europeu e por quem se apaixonou.

Tudo o que peço a quem me acompanha desde 2015 quando pus meu apartamento pra alugar e fui pra estrada e a quem passará a me fazer companhia desde agora, peço que respeite meu momento de estar quietinho em Praga com a minha flor antes de termos de dizer adeus um para o outro pra seguirmos sonhos em

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direções opostas por vivermos momentos de vida tão diferentes. A vida não é preto no branco como regras escritas num manual para amadores, as histórias são complexas e com infinitas perspectivas. Usufrua de tudo o que compartilho no Youtube, Facebook e em meus livros gratuitos no Medium (grifo nosso) que te prometo que vc (sic) encontrará novas possibilidades bem diante dos teus olhos, sem mágica ou romantismo em excesso.

Observe-se que ele narra sua própria reclusão, colocando-se, neste movimento, em uma distância respeitosa do narrado, ainda que saiba com muita propriedade e precisão o que o personagem Lammel está vivendo, o que necessita e o que está por vir daqui para frente. Cabia-se, no espaço de algumas postagens, da modernidade, e suas variáveis, à pós-modernidade, o que nos permite categorizá-lo de midiatizado.

Imagem 7 – Em Praga, com a namorada

Fonte: arquivo pessoal

Uma vez de volta ao Brasil, o sonho de protagonizar uma grande aventura, superando limites e medos por meio de uma volta ao mundo de bicicleta, adquire outras nuances. Transforma-se em uma narrativa estruturada e de contornos bem definidos, não mais ocasional, à revelia da sorte; mas com começo, meio e fim. Nela, o narrador, na condição de protagonista do vivido, mas também de testemunha deste não apenas narra sua experiência como define o sentido geral dela. Isso ocorria antes, é verdade, mas, não de forma tão estruturada; busca-se, agora, um sentido mais amplo. Temos acesso, assim, logo no alto da página, à direita, via plataforma Youtube, à websérie produzida ao longo da cicloviagem. O texto ao lado do link esclarece seu propósito:

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(...) a websérie independente Mochila & Bike documenta a aventura de um brasileiro de classe-média que não fala outros idiomas, mas quer ver o mundo de uma forma muito particular. Originalmente criado para internet, e posteriormente levado à TV por assinatura, Mochila & Bike nos apresenta uma aventura solitária e de bicicleta ao longo de 1.135 dias por 33 países. Mais do que sotaques, culturas e zoeira, Mochila & Bike emana uma forma nada convencional e profundamente original de se contar uma história de viagem. Uma viagem sobre como se divertir ao máximo com quase nada. (...)17.

Os grifos representam pistas significativas: a websérie é “independente”; quem cuida dela é o próprio Aldo Lammel, que assume para si o lugar de (segundo) narrador, por meio do uso de plataformas gratuitas, caso do youtube. Somos informados que a websérie é idealizada, produzida e contada por um “(...) brasileiro de classe-média que não fala outros idiomas, mas quer ver o mundo de uma forma muito particular”, e que realiza “(...) aventura solitária e de bicicleta (...)”. Ou seja, sugere que haja uma transcendência, que, por sua vez, “(...) emana uma forma nada convencional e profundamente original de se contar uma história de viagem”. Encerramos reiterando que se, de um lado, observamos a emergência do narrador que estamos chamando de midiatizado, cujo estatuto dialoga, em essência, com a complexidade dos dias que se seguem, novos desafios se interpõem no caminho dos que, como nós, pretendem compreendê-lo. A começar por aceitar que a midiatização afeta os demais extratos narrativos no interior dos dispositivos, a saber, o primeiro e o terceiro narradores, midiatizando-os, igualmente. Chega-se, então, à compreensão de que a midiatização, ao afetar as narrativas, aglutina formas canonicamente reconhecidas, acrescendo às mesmas novas possibilidades, que devem considerar a ressignificação do próprio contemporâneo, cujo narrador, midiatizado, sabemos, é multifacetado e plurivocal.

Notas ______1 https://aldolammel.com/mochilaebike 2 Em uma tradução livre: “Quando o significado adquire um corpo e entra em relações históricas, se inicia imediatamente a terceiridade das regras que definem as condições de acesso ao sentido, isto é, as condições de sua circulação”. 3 https://aldolammel.com/mochilaebike 4 Parte dos exemplos que ilustram nossa reflexão foram apresentados, seminalmente, na SBPJor de 2017. Trata-se, aqui, de uma atualização, considerando que a cicloviagem se encerrou. Este mesmo caso é analisado no e-book Narrativas de Viagem (Catarse, 2019) 5 https://www.youtube.com/channel/UCjK_6o4JAwe7Ecx7Rl26kqA 6 https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs 194 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

7 https://medium.com/mochilaebike-fotos/livro-de-fotografias-7c475fd25e36 8 http://mochilaebike.org/sobre.php 9 http://twitter.com/aldolammel 10 http://instagram.com/aldolammel 11 https://www.youtube.com/playlist?list=PLseCxrn4VPolnJ9FLq42peGW5BSBOC6oW 12 https://www.swarmapp.com/ 13 Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=I4nXN_P9xKs] Acesso em: [17 de julho de 2017] 14 https://www.facebook.com/avlammel?ref=br_rs 15 Disponível em: [https://www.facebook.com/avlammel/posts/1021351443 7518750] Acesso em: [17 de julho de 2017] 16 https://www.facebook.com/avlammel 17 Disponível em: [https://aldolammel.com/mochilaebike] Acesso em: [02 de junho de 2019]

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A MIDIATIZAÇÃO E A RECONFIGURAÇÃO NARRATIVA DO IMAGINÁRIO

Ricardo Luís Düren

Midiatização e ciência do imaginário: um diálogo possível Neste trabalho apresentamos a proposta da pesquisa realizada no âmbito de nossa tese de doutoramento1, a qual envolve imbricações entre as epistemologias da midia- tização e do imaginário. Particularmente, nos propomos a observar as reconfigurações que se estabelecem no imaginário a partir do fenômeno midiático, no âmbito de uma sociedade em vias de midiatização. Partimos da hipótese que o imaginário, entendido como uma forma específica de sentido abstrato, que emerge de processos cognitivos, emocionais e sociais – conforme detalharemos a seguir –, reconfigura-se quando inse- rido em narrativas materializadas em dispositivos de mídia (seja como texto escrito, vídeo ou áudio, por exemplo) no âmbito de uma sociedade em vias de midiatização, ou seja, de uma nova ambiência social caracterizada pelo entrecruzamento de feixes de sentido (FAUSTO NETO, 2018), gerados por inúmeros autores de discursos – in- clusive, narradores – na esteira do crescente acesso a tecnologias de produção e ma- terialização do sentido. Para fins desta exposição, cumpre antecipar o conceito de fenômeno midiático, o qual, segundo Verón (2013), consiste na materialização do sentido mediante o emprego de determinadas tecnologias, tais como a pintura, o texto escrito, a impressão, a gravação em áudio ou vídeo; adquirindo assim as características de autonomia em relação a seu autor e persistência (durabilidade) ao longo do tempo. Já no que é da ordem das gramáticas do imaginário, nos filiamos às inferências de Silva (2017), o qual desenvolve a hipótese do imaginário como um excedente de significação que o sapiens atribui aos fatos transcorridos na concretude do mundo, em decorrência de processos cognitivos e emocionais que se estabelecem no aparelho psíquico. Equivale a dizer que o imaginário consiste na emergência de uma carga de sentidos que o indivíduo, na esteira de uma processualidade psíquica que envolve tanto o racional quando o inconsciente e o emotivo, relaciona aos eventos que acontecem no plano físico – no dito mundo real –, tais como uma partida de futebol, um acidente de trânsito ou um crime. Partimos na hipótese de que o imaginário, no que tem de sentido abstrato, reconfigura-se a partir do fenômeno midiático, no âmbito de um processo quelhe confere autonomia e persistência. Portanto, nosso intuito nesta pesquisa é observar que

197 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares reconfigurações se processam no imaginário na esteira desse fenômeno, com o olhar voltado a determinadas narrativas midiáticas carregadas com sentidos emergentes da processualidade do imaginário. Essa análise também passa pela abordagem do fenômeno da circulação, o qual diz respeito, segundo apontamentos iniciais de Verón (2005 e 2013), às diferenças que se estabelecem entre a produção do discurso e os seus efeitos na esfera do reconhecimento e que, portanto, “[...] se define pela defasagem, num dado momento, entre as condições de produção do discurso e a leitura feita na recepção” (VERÓN, 2005, p. 53). Porém, é preciso observar que a circulação, a partir da atualização desse conceito em pesquisas mais recentes, também é vista, conforme Fausto Neto (2018), como espaço de intercruzamento de discursos oriundos de diversos autores no âmbito desse novo bios midiático chamado de midiatização, processo que também interfere na reconfiguração dos sentidos. Um ponto-chave para analisar esse fenômeno, no âmbito de nossa pesquisa, passa por compreender os processos da ordem da geração do sentido, particularmente, a partir da processualidade inerente ao imaginário. Nesse viés, ingressaremos a seguir, no segundo capítulo, na questão do imaginário como excedente de significação, conforme a linha teórica à qual nos filiamos. Neste movimento, também nos propormos a oferecer uma breve revisão do avanço das pesquisas sobre o imaginário, na expectativa de que, observando como se estabeleceram os estudos do imaginário em sua relação com outras ciências – tais como a psicanálise, a antropologia e a etnografia – seja possível compreender a processualidade do imaginário como gerador de sentidos. Cumpre observar desde já um ponto nevrálgico de nossa pesquisa, visível na retomada diacrônica do avanço do estudo do imaginário. Não constatamos nessa epistemologia imbricações anteriores com a semiótica, que, a partir de Charles Peirce, é uma das matrizes da gramática da midiatização elaborada por Eliseo Verón. Pelo contrário: há resistências da ciência do imaginário em relação à semiótica, a ponto de Gilbert Durand (1998), o principal sistematizador da gramática do imaginário, incluir a semiótica, junto com a gramatologia e a fonologia, no bojo das ciências estruturalistas, positivistas e racionalistas, para as quais não poupa críticas ao longo de toda sua pesquisa. Para ele, tratam-se de

[...] supostas “ciências” da literatura (a gramatologia, a semiótica, a fonologia etc.) onde os poderes “poéticos” da imagem se perdem de novo nos mistérios de um sistema que esvazia a pluralidade antropológica em prol deste novo “monoteísmo” que é a “estrutura” abstrata todo-poderosa. Esta considera-se “órfã de pai e mãe” enquanto, na realidade, insere-se de forma banal numa velha lógica binária obcecada pelo silogismo. (DURAND, 1998, p. 59).

Para o autor, tais linhas científicas, calcadas em rigores estruturalistas, atuariam sob uma lógica binária que exclui um terceiro elemento – a subjetividade humana, no que tem de psicológica, antropológica, social e transcendente. Porém, no que toca à semiótica discordamos do autor – e talvez seja este, pelo menos até o presente momento

198 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares da pesquisa, o único ponto de discordância em relação aos apontamentos de Gilbert Durand. Entendemos que o excerto acima poderia angariar um sentido mais em conta, em relação à argumentação do autor, se a expressão semiótica fosse substituída por linguística. De fato, conforme observa Verón (1980), a linguística contemporânea, em sua opção por isolar o sistema da língua, esvazia de sua análise os contornos sociais e demais elementos relacionados ao real extralinguístico. Não seria, entretanto, o caso da semiótica, que em sua busca por compreender o sentido para além da língua preocupa- se também com os componentes humanos envolvidos no processo – caso dos fatores psicológicos e do viés social. Charles Peirce, assinala Verón (1980), escapa à lógica binária ao sistematizar a geração do sentido em uma tríade: a primeiridade, secundidade e terceiridade. Ademais, entendemos que o diálogo epistemológico proposto em nossa pesquisa é possível na medida em que não encaramos a semiótica como um conjunto de regras estruturalistas, como sugere Durand (1998), e sim, como uma linha de análise que busca compreender o sentido – o que, no cômputo final, é o que também almeja a ciência do imaginário. A própria conceituação da tríade denota a preocupação de Peirce (2008) em compreender os elementos psicológicos envolvidos no processo – e uma mostra disso é o fato de o autor, ao se referir à primeiridade, secundidade e terceiridade, apresentá- las como categorias ou modos elementares de consciência. Sua sistematização, portanto, diz respeito a processos mentais que são da ordem da consciência – conceito que, como assinala Santaella (1983), em Peirce não diz respeito apenas ao aspecto racional da mente. A razão, entendida como o pensamento deliberado e passível de controle por parte do indivíduo, é apenas a superfície da consciência, a qual consiste em um repositório onde as ideias, memórias, sentimentos e as percepções oriundas das relações sociais são armazenadas em diferentes níveis e, estando em permanente mobilidade, exercem influência sobre o pensamento racional. A tríade de Peirce (2008), longe de ser um esquema estruturalista, é uma sistematização que busca compreender as operações da consciência. Neste viés, a primeiridade é justamente um sentimento, uma sensação inicial provocada no contato com o fato externo que, ao final do processo da tríade, vai gerar sentido. Cabe ao processo da ordem primeira, portanto, desencadear o mecanismo psíquico da geração de sentidos. No âmbito da primeira, por um breve instante, o indivíduo sequer se dá conta desse contato, não ativou ainda o fluxo da memória, não faz reconhecimento ou análise. Quando começa a fazê-lo, no instante seguinte, já está na ordem da segunda, momento em que toma consciência da existência do elemento externo e passa a reagir a ele. Gera- se, portanto, um sentido de polaridade, de que há outro elemento presente além do eu. É na terceiridade que, segundo Peirce (2008), se estabelece a consciência sintética, o pensamento, a relação entre as informações dadas, a interpretação dos fatos. É na ceara da terceira que o processo cognitivo opera como inferência e aprendizado. Portanto, na terceiridade a mente é movida pelo “[...] interesse da inteligibilidade, isto é, no interesse

199 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares do próprio ‘Eu penso’ sintetizador; e isso a mente faz através da introdução de uma ideia que não está contida nos dados e que produz conexões que esses dados, de outro modo, não teriam” (PEIRCE, 2008, p. 17). Como veremos mais adiante, há muita proximidade entre o sistema peirceano, no que tem de teoria que evidencia as imbricações entre inconsciente e racional, e os apontamentos do estudo do imaginário no que toca à geração de sentidos. Eliseo Verón, a seu turno, parte da tríade peirceana para observar as complexificações que se estabelecem, no que tange ao sentido, no âmbito da midiatização. Em uma visada voltada ao social, Verón (2013) compara a tríade de Peirce à lógica sistêmica com a qual Luhmann define o ato de comunicação, esse entendido como o mecanismo que constitui a sociedade como sistema autopoiético – dado que é pela comunicação que o sistema social se reproduz autopoieticamente. Para Verón (2013), a tríade de Luhmann (informação, enunciação e compreensão/não compreensão) é isomorfa à de Peirce. Desta forma, a primeiridade equivale à informação, a secundidade à produção do ato enunciativo e a terceiridade à compreensão. Equivale a dizer que a sociedade, no que tem de autopoiética, age como um organismo humano, um ser também dotado de elementos psicológicos. E assim, como o sistema de comunicação equipara-se ao sistema individual de produção de sentido, para Verón (2013) pode-se afirmar que tanto no âmbito da sociedade quando do individual há sistemas da ordem do social e do psicológico atuando em ambas as pontas do processo comunicativo, ou seja, tanto na produção do discurso quanto na sua recepção, no seu reconhecimento. Nessa seara, o viés psicológico – a subjetividade individual – surge como um elemento gerador de diferenças entre estes dois polos. Mas não é o único, principalmente quando se trata do sentido materializado, ou seja, dotado de autonomia e persistência, o que mantém sua materialidade ao longo do tempo, período onde ocorrem variações entre as condições/gramáticas de produção e condições/gramáticas de reconhecimento, como observa-se na teoria da circulação. Por condições de produção (CP) Verón (2005 e 2013) entende as condições extradiscursivas – econômicas, sociais, políticas, etc. – que possibilitam a elaboração do discurso no determinado período histórico em questão. Se voltamos o olhar para a questão do discurso materializado, podemos inferir que o acesso a tecnologias de midiatização, tais como a escrita, a impressão ou dispositivos digitais é um fator imbricado às condições de produção. Já as gramáticas de produção (GP) dizem respeito às regras e lógicas que regem as operações de produção de discurso, não só no campo linguístico, mas ideológico e social. A mesma lógica conceitual se aplica à outra ponta do processo, ou seja, ao reconhecimento, o qual se processa mediante as condições de reconhecimento (CR) disponíveis no ato em questão e as gramáticas de reconhecimento (GR) vigentes nesse dado momento. Verón (2013) assinala que, como a semiose é um processo não linear, uma multiplicidade de GR podem interferir na interpretação do discurso. Conforme assinalamos acima, a circulação diz respeito à defasagem que se

200 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares estabelece entre estes dois polos envolvidos na semiose, onde, em uma ponta estão as CP e GP, e, na outra, as CR e a pluralidade de GR. A circulação, portanto, se estabelece no desvio entre a produção do discurso e seu reconhecimento, tão variável quanto as diferentes condições/gramáticas de produção e de reconhecimento que se estabelecem em distintos momentos históricos e sociais. Neste viés, a análise do processo semiótico sob a visada da circulação é, como ressalta Fausto Neto (2013), uma opção que afasta a perspectiva veroniana da tradição epistemológica binária de análise do discurso – e aqui temos, novamente, mostras de que esta epistemologia da midiatização, descendente da semiótica, foge à lógica binária tão criticada por Durand. O binarismo, para Fausto Neto (2013), se estabeleceria nas opções de pesquisa focadas em apenas um dos polos da semiose – ou na produção do discurso, ou na recepção – isolando a atividade discursiva da perspectiva relacional entre indivíduos que, embora em polos distantes, interagem. Porém, o autor ressalta que a noção de circulação, embora remetendo aos desajustes entre produção e reconhecimento, não deve ser analisada apenas como fator de ruptura, mas como um processo complexo de negociação de sentidos. Tal constatação fica ainda mais evidente a partir da atualização do conceito de circulação, hoje entendida, conforme Fausto Neto (2018), como uma zona de interpenetração, onde o cruzamento de feixes de sentido diversos, materializados pelo crescente acesso às tecnologias de mídia, se interpõe entre os polos de produção do discurso inicial e de interpretação, interferindo em toda a cadeia interpretativa. Entendemos que a circulação é um elemento preponderante a ser considerado no âmbito do corpus de pesquisa que nos propomos a analisar, a saber, os registros jornalísticos – portanto, midiatizados – acerca do Caso Kliemann, termo que compreende os incidentes que envolveram os assassinatos de Margit Kliemann, em 29 de junho de 1962, em Porto Alegre, e do seu marido, o deputado estadual Euclydes Nicolau Kliemann, em 31 de agosto de 1963, em Santa Cruz do Sul. Integrarão nosso recorte de análise tanto jornais que noticiaram os fatos e investigações à época quanto narrativas que, mais recentemente, recontaram esses eventos em jornal e livro. Há, portanto, uma variação social e temporal entre produção e reconhecimento destes discursos que certamente potencializa, no âmbito deste corpus, o fenômeno da circulação. Desta forma, observar a circulação na esfera dos discursos sobre o Caso Kliemann é diligência necessária a fim de, em uma visada mais ampla, analisar nesse recorte as reconfigurações do imaginário emergentes da sua midiatização. O Caso Kliemann nos parece um corpus pertinente para fins dessa análise por reunir determinados ingredientes que remetem ao mítico e, consequentemente, ao imaginário – questão de abordaremos na parte final deste trabalho. Antes, urge compreendermos no que consiste o imaginário.

O que é o imaginário Conforme antecipamos, em consonância com Silva (2017) trabalhamos com a 201 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares hipótese do imaginário como um excedente de significação que o sapiens atribui aos fatos transcorridos na concretude do mundo, em decorrência de processos cognitivos e emocionais que se estabelecem no aparelho psíquico. Equivale a dizer que o imaginário consiste na emergência de uma carga de sentidos que o indivíduo, na esteira de uma processualidade psíquica que envolve tanto o racional quando o inconsciente e o emotivo, relaciona aos eventos que acontecem no plano físico – no dito mundo real –, tais como uma partida de futebol, um acidente de trânsito ou um crime. É a partir desse processo, defende o autor, que mesmo uma situação trivial torna-se, no âmbito da subjetividade humana, interessante, deslumbrante, repleta de cores e sentimentos. O imaginário é, portanto, “[...] a transfiguração da banalidade em extraordinário, a metamorfose do trivial em maravilhoso, a conversão inesperada, o salto” (SILVA, 2017, p. 21). Antes de detalharmos essa teoria, convém citar que, no vasto campo da ciência do imaginário, optamos pelas inferências de Juremir Machado da Silva (2017) por dois motivos específicos. O primeiro é nosso entendimento de que elas, no que têm de recentes, consistem em um dos principais pontos de culminância das linhas de pensamento acerca do imaginário que, na esteira de Gaston Bachelard, ganham corpo com Gilbert Durand – discípulo de Bachelard e grande responsável por sistematizar o estudo do imaginário – e também com Michel Maffesoli, discípulo de Durand e mestre de Silva. Entendemos que, nesta cadeia hereditária de mestres e discípulos, Silva (2017) nos oferece uma espécie de estado da arte dessas pesquisas. Não ignoramos, porém, que a partir de Durand surgiram outras ramificações do estudo do imaginário que também ganham eco, inclusive, no Brasil. Uma delas parte de Jean-Jacques Wunenburger, também discípulo de Durand, cuja linha de análise é pano de fundo para as pesquisas do Grupo de Estudos Sobre Comunicação e Imaginário (Imaginalis) vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O grupo é liderado por Ana Taís Martins Portanova Barros, orientanda de Wunenburger em seu pós-doutorado. Trata-se de uma linha fortemente calcada na aversão durandiana a tudo que possa se aproximar do positivismo e do racionalismo, avessa a esquemas e rigores estruturalistas. Sua metodologia consiste em mergulhos profundos no imaginário, buscando sentir o que dele emerge emocionalmente, ou seja, que afeta não só nosso lado consciente, mas também “[...] os neurônios que vivem no coração e nos intestinos, e na pele, e em todo o resto dos lugares em que eles se escondem” (BARROS e CONTRERA, 2018, p. 31). Sem desmerecer a linha de pesquisa wunenburgeana, optamos por Silva (2017) – e aqui, entramos no segundo motivo desta escolha – por entender que sua perspectiva de imaginário como excedente de significação é a que melhor dialoga com a interrogação que norteia nossa tese, a destacar: o que emerge da reconfiguração do imaginário, quando afetado pela processualidade da midiatização? Nossa hipótese é que o imaginário que emerge a partir de um fato concreto, no que tem de sentido abstrato, midiatiza-se quando o fato em questão se torna uma narrativa midiática, particularmente, na esfera do sistema jornalístico. A partir de Verón (2013), entendemos que o fenômeno midiático

202 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares reconfigura o imaginário, ao dotá-lo de autonomia e persistência. Fechado esse parênteses, e retomando o estudo da conceituação do imaginário, cumpre observar que Silva (2017), em suas reflexões acerca do fenômeno, insiste na expressão transbordamento. Segue, assim, o emprego de uma metáfora hídrica bem ao gosto de Durand (1998), que compara o imaginário a uma bacia semântica – em alusão às bacias hidrográficas. O imaginário é como um grande rio que, abastecido por uma série de afluentes – por vários sentidos, inclusive, de origem mítica, como veremos mais adiante – transborda em novas significações. O transbordamento é a metáfora do excedente, do extraordinário, do sentido que sobra para além do evento concreto e insosso. Porém, o imaginário, ainda que fantástico em relação ao real, não falseia a realidade. Silva (2017) é categórico ao afirmar que “[...] O imaginário nunca é fictício. Jamais é falso. Nunca é ilusório” (p. 39). Em obra anterior a Silva (2017), Ruiz (2003), outro autor brasileiro interessado no tema, já apresentava o imaginário como um sentido emergente do real, nunca desvinculado dele. O autor alerta que o imaginário não pode ser confundido com fantasia ou mesmo, com alucinação. E assinala que, além do aspecto emotivo do aparelho psíquico humano, também o racional interfere na formulação de imaginários.

[...] Não é possível pensar no imaginário sem a racionalidade. Só nas patologias se manifesta uma sensibilidade absolutamente fora da razão. Também não é possível pensar uma razão que consegue sufocar o imaginário ou esgotar suas possibilidades criadoras. Ambas as dimensões, razão e imaginação, estão indissociavelmente implicadas. Uma não pode existir sem a outra. (RUIZ, 2003, p. 50).

Ruiz (2003) parte, então, em busca das origens do imaginário, evidenciando tratar-se de um fenômeno exclusivo ao ser humano. Sugere que, em dado momento da evolução humana – difícil de precisar – o homem desenvolveu aspectos de alteridade, ou seja, passou a ter consciência de si como um indivíduo independente do mundo natural. Trata-se, afirma o autor, de um fenômeno que passou a distinguir o sapiens dos outros animais, cujo instinto não seria capaz de identificar o mundo como algo à parte em relação ao eu, tampouco possibilita a subjetividade. Ruiz (2003) classifica a aquisição da alteridade como “[...] o salto qualitativo mais extraordinário que até esse momento tem acontecido no universo” (p. 56) e evidencia que ela consistiu a matriz geradora da liberdade humana – muito embora, uma liberdade imposta, da qual o indivíduo já não pode abdicar. Do desenvolvimento dessa autoconsciência humana emergiu o que o autor chama de “fratura” entre homem e mundo, ou seja, um paradoxal distanciamento, que possibi- litou ao primeiro observar o outro e atribuir-lhe sentidos, mesmo estando fisicamente in- serido nele. Por meio dessa fratura, o homem adquiriu consciência e identidade própria, mas também passou a ser assaltado pela angústia, pela instabilidade, pela sensação de desarmonia entre si e o mundo, sentimentos decorrentes justamente dessa ruptura entre

203 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares o mundo – o lar – e esse novo indivíduo dotado de subjetividades. Na esteira desse processo, a geração de sentidos emerge como uma espécie de “sutura”, um anseio por corrigir a fratura, que cria uma nova imagem do mundo em uma tentativa de reaproximar-se dele. “[...] A condição humana é a de seres fraturados que peregrinam recriando o mundo em que vivem [...]. Essa nova relação com o mundo se efetua por meio da construção de sentido que o sujeito instituiu para tudo aquilo que o rodeia” (RUIZ, 2003, p. 59). Finda-se, a partir da fratura, a apreensão objetiva dos elementos do mundo empírico – tais elementos passam a ser ressignificados, vistos a partir da criação de sentidos acerca deles. A ponte que tenta religar homem e mundo, portanto, é a construção simbólica; e o mundo concreto se converte em representação.

[...] A fratura humana faz surgir dentro da pessoa um mundo ignoto e abismal: o mundo da criação imaginária. O objeto, antes de ser conhecido pela razão, é imaginado. Ele, antes que um conceito ou ideia, é uma imagem por meio da qual a pessoa significa as coisas. O sentido é sempre criado e não emana naturalmente das coisas. O objeto, que é uma imagem com sentido, é sempre um objeto construído pelo imaginário do sujeito e da sociedade. (RUIZ, 2003, p. 63, grifo no original).

Equivale a dizer que o imaginário “[...] se manifesta como fluir criador que constrói permanentemente imagens com sentido de um mundo que, por princípio natural, é insignificante para o resto das espécies animais” (RUIZ, 2003, p. 49). Nota-se, no excerto, grande proximidade entre os conceitos de imaginário em Ruiz (2003) e Silva (2017). Em ambos, o imaginário emerge como um processo que atribui sentidos a uma materialidade ou a fatos que, por si só, não os têm.

Urge um exemplo para compreender melhor o fenômeno. Um evento concreto e inicialmente destituído de significado, como afirmamos aci- ma, pode ser uma partida de futebol. Silva (2017) cita o exemplo da derrota por 7 a 1 sofrida pela Seleção Brasileira para o time da Alemanha, na Copa do Mundo de 2014. O placar elástico foi um fato concreto, real, noticiado por todos os jornais do mundo. Os jornais, inclusive, foram unânimes em classificar o resultado como uma humilhação para o time brasileiro. Seria essa inferência – considerar os 7 a 1 uma humilhação – fruto do imaginário dos jornalistas? Silva (2017) entende que não. Essa foi uma conclusão empírica, uma racionalização embasada na concretude do real. Óbvio que foi uma hu- milhação. Para Silva (2017), isso sugere não só que existem fatos reais, concretos e destituídos de imaginário, mas que há limites para o imaginário, impostos pelo real. Não é possível uma imensidão de visões de um mesmo fato. Onde está, então, o imaginário? Buscando compreender o ponto de vista do autor, manteremos nossa reflexão seguindo com o exemplo em torno da Seleção Brasileira de Futebol, também chamada – por conta da camisa amarela – de Seleção Canarinho, expressão que, para Silva (2017), é uma “[...] designação que já envolve um imaginá-

204 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares rio sobre o estilo de jogar” (p. 38). À luz desse breve excerto do autor, podemos inferir que Seleção Canarinho remete, no âmbito de um imaginário compartilhado na vasta comunidade dos amantes do futebol, ou mesmo na nação brasileira, não apenas à cor da camisa, mas a uma forma de jogar alegre, ágil, leve, de lances sutis e dribles desconcer- tantes. Portanto, enquanto na esfera do real há um time composto por 12 jogadores, mais treinador e banco de reservas, cada qual com suas características empíricas em termos de capacidade técnica e rendimento físico, no âmbito do imaginário existe essa alegre Seleção Canarinho – bem diferente daquela que perdeu por 7 a 1. Na Seleção Canarinho há uma significação que emerge por meio de um imaginário compartilhado. No caso, um sentido (futebol alegre, leve) que transborda para além do time de futebol empírico (aquele formado por 12 jogadores, mais técnico, mais reservas). A Seleção Canarinho é a de Pelé, Garrincha e Sócrates: mais do que atletas, seres míticos no panteão dos deuses do futebol. A alusão ao mito não é, aqui, desproposital. Ao longo da evolução da ciência do imaginário, observou-se que o fenômeno está intrinsecamente relacionado à tradição mítica do homem. Acreditamos que, sistematizando o processo evolutivo desta epistemologia, a seguir, facilitaremos a compreensão do fenômeno.

A evolução do estudo do imaginário Conforme evidenciamos acima, há em Durand (1993 e 1998) uma forte crítica às linhas científicas racionalistas e positivistas, as quais considera redutoras por ignorarem o caráter de transcendência, mas também de ilógico e de irracional que, via de regra, guia o pensamento humano – inclusive, no âmbito do imaginário. A partir de Descartes, acusa Durand (1993), o mundo se reduziu às fórmulas matemáticas em uma relação onde só há valor científico nas evidências que podem ser medidas e calculadas. Para ele, a partir des- te triunfo do algoritmo e do signo que representa o mundo físico e palpável, relegou-se a segundo plano tudo o que é da ordem do símbolo – entendido pelos teóricos do imaginá- rio como o que remete ao abstrato, ao sentido metafórico, ou mesmo, ao indizível. Com isso, o próprio estudo do imaginário também ficou relegado a um espaço secundário na esfera das ciências. Essa desvalorização do simbólico, para Durand (1998), tem origens ainda mais antigas que o cartesianismo científico. A cultura ocidental, argumenta, historicamente privilegiou o escrito em detrimento da imagem. O imaginário, no que tem de arcabouço de imagens, é visto com reservas na esfera de uma cultura onde o status de conhecimento confiável sempre se restringiu ao sentido materializado na forma escrita, não imagética. Trata-se do que Durand (1998) chama de “iconoclasmo endêmico”. Foi com a descoberta do lado inconsciente da mente humana que a ciência começou a voltar seu olhar, com maior zelo, às questões da ordem do símbolo. Durand (1993) observa que os estudos clínicos de Sigmund Freud (1856-1939) apontaram para a emergência de imagens elaboradas no inconsciente dos indivíduos que afloram para o consciente na forma de mensagens simbólicas – logo, abstratas, obscuras. Tais imagens, sob a ótica freudiana, seriam a forma com que o inconsciente se comunica 205 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares com o consciente, porém, por conta de seu caráter simbólico, tal comunicação é cifrada, metafórica. Ainda assim, a ciência do imaginário não teve em Freud sua principal referência para o estudo do símbolo por entender que, para o psicanalista austríaco, a formação simbólica do inconsciente se reduz a reflexos dos traumas decorrentes da repressão, no âmbito familiar e social, às pulsões da libido. Já a partir das pesquisas do psicanalista Carl Jung (1875-1961) emergiram as inferências que mais dialogam com a ideia da origem psíquica das imagens simbólicas que viria a ser aceita pelo estudo do imaginário – particularmente, no que tange ao conceito do arquétipo. Jung (2008) conceitua o arquétipo como uma tendência natural do sapiens, herdada biologicamente, que leva os indivíduos a, geralmente, produzirem inconscientemente as mesmas imagens simbólicas. O psicanalista chegou a essa hipótese intrigado com a semelhança entre imagens mitológicas (tais como a árvore do conhecimento, o deus que morre e ressurge, a serpente de chifres, o dragão e outros demônios) presentes em diferentes culturas, separadas por milhares de quilômetros ou anos e que nunca tiveram contato entre si. Também lhe intrigava o aparecimento dessas imagens nos sonhos de pacientes seus, indivíduos tidos como “civilizados” e que desconheciam tais mitologias de etnias “primitivas”. Para Jung (2008), o fenômeno inconsciente do arquétipo ocorreria porque o cérebro, assim como os demais órgãos humanos, foi biologicamente condicionado a realizar as mesmas operações em todos os indivíduos, independente de sua localização no tempo ou espaço2. Sem desconsiderar a importância do ambiente social nas operações mentais que atuam na geração de imagens simbólicas, os estudiosos do imaginário têm na ideia de arquétipo um conceito basilar para entender o fenômeno. Indício disso é a ideia, presente em Bachelard (1996), da existência de um “centro de imagens” compartilhado pelos indivíduos. Apesar de conceber a imaginação como uma força voltada ao futuro, que impulsiona o homem a querer modificar a realidade, o mestre de Gilbert Durand acredita que

[...] Há seguramente em nós uma imagem, um centro de imagens que atrai as imagens felizes e repele as experiências do infortúnio. No seu princípio, todavia, essa imagem não é inteiramente nossa; tem raízes mais profundas que as nossas simples lembranças. Nossa infância testemunha a infância do homem, do ser tocado pela glória de viver. (BACHELARD 1996, p. 118-119).

Durand (1998) assinala que os estudos do sistema nervoso, em consonância também com as pesquisas dos etólogos acerca do comportamento dos animais, ratificaram as observações de Jung. As análises anatômicas do cérebro demonstraram – como Jung observara – que o funcionamento desse órgão se processa, via de regra, da mesma forma entre todos os indivíduos; e evidenciou o papel desempenhado pelo cérebro pré-frontal , cuja função é controlar as informações filtradas pelas outras áreas do sistema nervoso, as quais se transmitem entre diferentes partes do cérebro por meio das ligações nervosas. A riqueza dessas articulações possibilita, no homem, ligações simbólicas entre objetos diferentes e entre informações captadas

206 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares por sistemas diversos de apreensão – como o visual e o auditivo. Mesmo no cérebro dos animais, conforme constataram os etólogos, ocorrem reações a determinadas imagens captadas pelo sistema visual – reações essas que se repetem entre diferentes indivíduos da mesma espécie. Ao ver uma mancha colorida em um macho concorrente, determinado animal pode adotar uma postura hostil. Para Durand (1998), os experimentos dos etólogos mostraram que existem, mesmo entre os animais, ligações simbólicas rudimentares que “[...] formam a base de um universo imaginário regulador dos comportamentos vitais da espécie” (p. 45). A ideia de que o pensamento humano se constrói social e biologicamente por representações simbólicas, emergente das pesquisas psicanalíticas e ratificada pela análise da anatomia do cérebro, também teve espaço nos estudos antropológicos e etnológicos das culturas não europeias, que ganharam corpo particularmente no século XX. Conforme Durand (1998), tais estudos, ao desviarem seu eixo de pesquisa da Europa marcadamente iconoclasta para outras regiões do planeta, voltaram seu olhar para uma série de elementos míticos repletos de simbologias, tais como sítios funerários, objetos usados em rituais e narrativas e pictografias míticas, tanto no seio de etnias indígenas vivas quanto em sítios arqueológicos de antigas civilizações e de ancestrais do sapiens. Evidenciava-se então a existência de uma riqueza simbólica comum ao homem em diferentes esferas e estágios culturais, demarcando a ideia de que o ser humano é, desde suas origens mais remotas, um homo symbolicus. Durand (1993) também observa que a descoberta dessa pluralidade de símbolos mitológicos pós em cheque a concepção freudiana de que a imagem simbólica é tão somente a emergência de traumas provocados pela repressão à libido sexual na infância. As constatações de Sigmund Freud, argumenta Durand (1993), reduziram o símbolo às particularidades do indivíduo moderno e vítima da sexualidade recalcada, sem dar conta da variante de simbologias que a etnografia observou nos mitos de diferentes culturas ditas primitivas – muitas das quais desprovidas de elementos de repressão sexual. Para o autor, “[...] a investigação etnográfica ensina que o simbolismo edipiano em que se assenta todo sistema freudiano, não é mais do que um episódio cultural estritamente localizado no espaço e, provavelmente, no tempo” (DURAND, 1993, p. 43). Para o estudo do imaginário, a análise desse panteão de símbolos míticos por parte da etnografia não só reforçou a aceitação do conceito junguiano de arquétipo, como também voltou o olhar para o mito como manifestação do imaginário e gerador de novos imaginários no âmbito social. Neste sentido, são pertinentes ao estudo do imaginário os apontamentos de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), o qual demonstrou não só que o homem sempre teve a capacidade de gerar símbolos, mas que mesmo no homem contemporâneo ainda reside um “patrimônio selvagem” que o leva a gerar imagens. Durand (1993), embora com certa reserva em relação à postura estruturalista de Lévi-Strauss, assinala o mérito do antropólogo em identificar a recorrência com que os mesmos mitemas – as grandes unidades constitutivas do mito – reapareciam em narrativas míticas de diferentes culturas. De fato, assim como Carl Jung, Lévi-Strauss intrigava-se ao observar que os 207 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares mitos se reproduziram com as mesmas características em diversas regiões do mundo e se questionava: “[...] se o conteúdo do mito é inteiramente contingente, como explicar que, de um extremo a outro da terra, os mitos se pareçam tanto?” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 223). Em sua comparação entre os mitemas dos mitos de diferentes culturas, Lévi-Strauss (2008) constatou a existência de pacotes sincrônicos (atemporais) de temas, ou seja, de sentidos que, quando observados na ordem do diacrônico, se repetiam ao longo do tempo. Eis uma constatação dos estudos de Lévi-Strauss muito cara à pesquisa durandiana: o mito tem por característica a redundância. Este aspecto é a espinha dorsal de duas correntes de análise literária que, no diálogo com a ciência do imaginário, e também seguindo os passos de Bachelard, buscaram estudar a reiteração de narrativas míticas em uma obra literária específica (caso da mitocrítica) ou em conjuntos de obras, de autores ou estilos (mitoanálise). A hipótese central da mitocrítica e da mitoanálise, que têm em Gilbert Durand um autor basilar, é que toda obra literária é, em diferentes graus, o recontar de antigos mitos, mesmo que de forma adaptada, com deuses, demônios e heróis assumindo novos papeis. Teórico da mitocrítica, Frye (2000) explica que, à luz dessa linha de análise, o mito é entendido como uma espécie de “centro oculto”, a partir do qual emergiriam e se espalhariam configurações confluentes de significação, latentes na literatura. Para o autor, “[...] cada poeta tem sua mitologia particular, sua própria faixa espectroscópica ou formação de símbolos peculiar, da qual ele não é consciente em grande parte” (FRYE, 2000, p. 17). Tais estudos deram o tom do trabalho no Centro de Pesquisas do Imaginário (Centre de Recberche sur I’Imaginaire - CRI), criado em 1966 na Universidade de Grénoble por Léon Cellier, Paul Deschamps e pelo próprio Gilbert Durand. A fundação do CRI representou, a nosso ver, a oficialização dos estudos do imaginário como ciência. Além disso, o instituto foi embrião de mais de 40 centros de estudo do imaginário espalhados pelos cinco continentes. Foi à frente do CRI que Durand desenvolveu uma farta pesquisa sobre o tema, na qual destacamos a ideia da tópica sociocultural do imaginário, elaborada em 1980 e que, a nosso ver, demonstra como o contexto social também interfere, juntamente com os arquétipos e a tradição mitológica, na geração de imaginários coletivos.

O imaginário no âmbito do social O termo “tópica” (originário de topos, ou seja, lugar) se deve à opção sistêmica de Durand (1998) por situar os elementos envolvidos no processo em um diagrama – a tópica sociocultural do imaginário. Nele, o pesquisador demonstra como os indivíduos, na esfera social, também compartilham imaginários que têm raízes na tradição mítica, mesmo nas sociedades modernas e céticas em relação às crenças que emanam das narrativas mitológicas. Segundo ele, uma série de configurações se processaria, em diferentes níveis da sociedade, até que o mito bruto se converta em uma narrativa socialmente aceitável na esfera do imaginário coletivo. Para descrever esse processo, o

208 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares autor divide o ambiente social em três níveis psicológicos, aos quais batizou apropriando- se de conceitos freudianos: isso, ego e superego. Durand (1998) argumenta que fluxos do imaginário mítico – originalmente fantásticos, confusos, alógicos, bárbaros e marginais – partem de uma determinada tópica (que chamou de isso), situada na base do diagrama, e circulam por fatias psicológico-sociais regradoras, no caso, o ego (que na metáfora de durandiana remete às estratificações sociais, aos papéis distribuídos conforme classes ou castas, idades e sexo) e o superego (encarregado de organizar e racionalizar em planos, ideologias e pedagogias, o ego sociocultural). Neste processo, os fluxos do imaginário vão sendo tolhidos e regulados, tornando-se racionais, pedagógicos e aceitáveis para a sociedade em questão, conforme seu status em termos econômicos, geográficos e históricos. Optamos por transformar em imagem o diagrama social sugerido pelo autor. Nele, a seta em curva representa a passagem do mito bárbaro – que Durand (1998) também chama de imaginário em potencial, pelas possibilidades que abre à manifestação simbólica –, pelas instâncias regradoras, até tornar-se um imaginário atualizado, no qual se situa o herói bom e honesto, envolvido em uma busca pelo bem.

Diagrama 1 - Passagem dos fluxos do imaginário pelas fatias sociais

Fonte: produção do autor com base em Durand (1998)

Para fazer emergir sua significação, a fatia clandestina do imaginário adota como

209 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares estratégia a redundância, a repetição dos mitos primitivos, mesmo que em formatos variantes e com os heróis em papéis trocados. A reiteração destes elementos advém da característica redundante do mito, o qual, conforme Durand (1998), busca convencer pela repetição. Tal multiplicação de redundâncias, mesclada a uma variante de fórmulas, entretanto, faz com que a narrativa se distancie do seu mito de origem, deixando-o em nível não manifesto, mas latente. E assim, as sociedades guiam-se, como que instintivamente, por sentidos – por imaginários – cuja carga simbólica é uma herança mítica, ainda que considerada bárbara e irreal. A partir desses apontamentos, podemos inferir que as sociedades atuam como um organismo vivo, pensante, que se apropria dos antigos mitos e os adapta a sua realidade presente, gerando assim imaginários coletivos. A ideia do imaginário como elemento integrante dos processos sociais é retomada por Michel Maffesoli, discípulo de Durand. Maffesoli (1988) argumenta que as paixões, as pulsões, o ilógico e o irracional, elementos intrinsecamente ligados ao inconsciente, ao imaginário e à tradição mítica, são elementos que movem o homem à ação e, assim, interferem na arquitetura social. Para o autor, os sonhos de progresso compartilhados por uma sociedade partem da dimensão do sagrado (do mítico), mantendo sua interferência sob novas roupagens. O totem, afirma, ainda é um elemento de mediação que, mesmo travestido em novos formatos, permanece atual – fenômeno percebido no ressurgimento contemporâneo de determinadas preferências políticas e religiosas, de festivais populares e da adesão às noções de pátria e território. Maffesoli (1998) chama de “pseudomorfose” o fenômeno onde uma forma arcaica, travestida de novas roupagens, age como matriz de um objetivo que se apresenta como novo. No entender do sociólogo, as descobertas e invenções tecnológicas, o progresso científico, decorrem da influência de imaginários calcados, em sua origem, nas histórias antigas, míticas. Assim, o imaginário age como força-motriz que impulsiona a sociedade a um determinado objetivo, ao envolver um compartilhamento de anseios (por mudança, por progresso), e também de crenças, narrativas e valores. Tal compartilhamento de anseios também age como elemento agregador na esfera social. É cimento social, como afirma o autor, uma liga que mantém a sociedade unida em busca de objetivos em comum – mesmo quando tais objetivos conduzem ao embate político, à revolução e à guerra, movimentos que, muitas vezes, também são movidos sob bandeiras de um panteão de deuses. Essa liga exerce ainda a função de reagrupar, em momentos de crise e desestabilidade social. Quando o vínculo coletivo está debilitado, a sociedade recorre ao mítico para restaurar o sentimento de “estar junto”. O imaginário, portanto, nos move e nos une. Com esse apontamento, encerramos nossa revisão acerca do desenvolvimento do estudo do imaginário. Atentos às exigências de espaço, deixamos muita coisa de fora, mas mantemos a expectativa de que, a partir desta sistematização diacrônica das descobertas que nutriram as inferências acerca do imaginário, tenha sido possível compreender sua processualidade e ainda a sua complexidade, no que tem de fenômeno tanto influenciado quando influenciador do sistema psíquico humano

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– nas esferas racionais e irracionais –, da tradição mítica e do contexto social. Passaremos agora a observar alguns elementos da ordem do imaginário e do mítico emergentes em nosso corpus de pesquisa – as narrativas acerca do Caso Kliemann – como forma de reforçar nosso argumento acerca da pertinência deste recorte dentro de nossa perspectiva de pesquisa.

O imaginário no Caso Kliemann – à guisa de considerações finais Como antecipamos, o Caso Kliemann diz respeito a duas tragédias interligadas, que ocorreram nos anos 1960. Uma delas é o misterioso assassinado de Margit Kliemann, encontrada morta em 20 de junho de 1962, em Porto Alegre. Margit fora jogada do alto da escada da casa onde vivia com o marido, o deputado estadual Euclydes Nicolau Kliemann, e o assassino nunca foi descoberto pela polícia. De Grandi (2010), em um livro-reportagem que reconta esses episódios, informa que Euclydes tornou- se automaticamente o suspeito principal da polícia. De certa forma, as suspeitas que recaíam sobre o marido foram também um dos elementos que culminaram em sua morte, em 31 de agosto de 1963. Conforme De Grandi (2010), na manhã daquele dia Euclydes havia discursado a partir dos estúdios da Rádio Santa Cruz, em Santa Cruz do Sul, sua cidade natal, atacando opositores – inclusive da esfera política da cidade – e destacando verbas que obteve para o município a partir de emendas parlamentares. Ao fim de seu pronunciamento, o microfone foi ocupado pelo vereador Floriano Peixoto Karan Menezes, conhecido pelo apelido de Marechal e adversário político de Kliemann. O vereador não tardou a sair em defesa de seus correligionários e a atacar o deputado. Até que, por fim, observou que Euclydes era “[...] suspeito no caso havido com sua esposa” (DE GRANDI, 2010, p. 152). Segundo o autor, até então Kliemann permanecera impassível às considerações de Marechal, limitando-se a sentar defronte à máquina de escrever do gerente da rádio para datilografar uma nota, a ser lida posteriormente, em resposta às afirmações do vereador. Mas, ao escutar a alusão de Marechal às suspeitas em relação ao assassinato de Margit, Euclydes invade o estúdio com a mão esquerda erguida em sinal de “pare” e afirma: “Essa não.” Em resposta, Marechal saca um revólver e dispara contra o deputado, e o “[...] tiro ressoa no interior da rádio e na maioria das casas de Santa Cruz do Sul” (DE GRANDI, 2010, p. 153). À luz dos apontamentos de Silva (2017), inferimos que, na concretude do mundo, o que temos até aqui são fatos – dois assassinatos – originalmente destituídos de sentidos. Fatos que, no mundo empírico, simplesmente aconteceram. Porém, no âmbito da hipótese do excedente de significação, entendemos que, a partir de uma e, posteriormente, da outra tragédia, emergiram transbordamentos de sentidos, na esteira da processualidade do imaginário. Nosso argumento é que há, no Caso Kliemann, determinados ingredientes que favorecem o fenômeno, o que o torna pertinente para nossa análise. Dentre estes ingredientes, destacaremos, alguns.

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Um deles, talvez o mais perceptível, diz respeito ao status social e político dos Kliemann. Como ressalta De Grandi (2010), “[…] Euclydes e Margit formam um casal sempre referenciado, ambos jovens, bonitos, ricos e poderosos” (p. 42). Oriundos de famílias ricas, prósperas e tradicionais, frequentavam o que, à época, era chamado de high society, a alta classe social. Habitavam casarões, investiam em móveis de alta qualidade, vestiam-se bem, tinham as filhas nas melhores escolas e frequentavam as colunas sociais dos jornais. Eram símbolos – aqui, no sentido desse conceito para a ciência do imaginário – de elevado status econômico, político e social. Em sua esfera, integravam, portanto, o panteão do que Morin (2006) chama de olimpianos modernos, conceito que remete não só às estrelas de cinema, mas a reis e príncipes, campeões, exploradores e artistas. Como olimpianos, eram referências a serem imitadas e mesmo suas atitudes mais banais tornavam-se dignas de atenção. Afinal,

[…] Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideias imitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam, humanos na vida privada que eles levam. (MORIN, 2002, p. 106).

Como pessoas de sucesso, os Kliemann seriam olimpianos da ordem dos campeões, dos vencedores. Não só no âmbito esportivo – Euclydes foi jogador de basquete na juventude e Margit jogava tênis – mas em termos de progresso econômico e político. Euclydes comandava empresas prósperas e era um vencedor no campo do poder, detentor de uma carreira política de sucesso que, como observa De Grandi (2010), o credenciava a saltos maiores – como deputado federal, senador e até governador do Estado, não fosse a tragédia abreviar-lhe a visa. Essa ideia de progresso, cabe lembrar, também é um elemento fortemente calcado no imaginário social de origem mítica, como vimos a partir de Maffesoli (1998). A bus- ca pelo progresso, como afirma o autor, é um elemento de origem sagrada que congrega a sociedade e a conduz à ação em busca do progresso. Também nesse viés, Kliemann, como olimpiano campeão, seria uma referência no âmbito de um imaginário compartil- hado. Euclydes era um símbolo sagrado do progresso, um totem a ser cultuado e uma promessa de evolução política e econômica para Santa Cruz do Sul. Também é possível encontrar no corpus sob análise elementos da ordem do culto ao herói mítico. A começar pela genealogia de Euclydes, o qual, segundo De Grandi (2010) sentia orgulho de seus antepassados, imigrantes alemães que enfrentaram tempestades e outros perigos da travessia do Atlântico para buscar o progresso em uma terra distante e desconhecida. De certa forma, podemos relacionar esse sentimento de orgulho a um imaginário calcado na ideia da jornada do herói, que persevera ante os perigos do caminho, tal como Odisseu em seu retorno à Ítaca. Nota-se aqui a presença do mito, que, conforme assinala Durand (1998), emerge das

212 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares bases clandestinas do imaginário e reaparece adaptado aos valores predominantes na sociedade em questão, nesse caso específico, sob a forma de uma pedagogia de valoração da coragem, do esforço e do progresso. O próprio Euclydes adquire, a partir das narrativas que analisaremos, contornos de herói mítico, não só por representar aquele que parte em missão para atender aos anseios compartilhados por sua sociedade, mas por conta dos traços de sua personalidade. De Grandi (2010) o descreve como um político combativo na tribuna da Assembleia Legislativa, via de regra, bastante explosivo, “[…] ora emotivo, ora exaltado, para protestar, aplaudir, homenagear, criticar” (p. 67). A imagem que nos ocorre, por ocasião dessa descrição, é a de Aquiles, um herói bravo e corajoso, mas também movido por excessos e impulsos, como atesta Hacquard (1996):

[...] Na Antiguidade, Aquiles foi venerado como o modelo de herói por excelência. Um herói simultaneamente belo, robusto e corajoso, que tentou sempre elevar-se acima da sua simples condição de mortal (os estóicos, no entanto, condenaram o seu temperamento violento, muitas vezes escravo das suas paixões). (p. 39).

Mais uma vez, observa-se a emergência de um imaginário que herda de suas raízes míticas a pedagogia do culto ao herói e ao semideus. Observamos assim, neste corpus de análise, elementos que remetem a um transbordamento de sentidos (SILVA, 2017), que se estabelecem na processualidade mítica, psicológica e social do imaginário. Um transbordamento que extravasa ainda mais a partir dos eventos trágicos que se abateram sobre estes semideuses olimpianos que eram Euclydes e Margit, dado que a tragédia também contém, na imbricação com o imaginário, características que remetem a novos sentidos. Há, porém, um outro elemento a ser considerado, qual seja, a midiatização deste sentido que transborda a partir do Caso Kliemann, fenômeno decorrente da cobertura jornalística realizada à época e do recontar desse eventos em narrativas posteriores – como por exemplo a série de reportagens O Caso Kliemann - 45 anos depois, veiculada pelo jornal Gazeta do Sul em 2008, e a obra de De Grandi (2010). Ao gerar o fenômeno midiático a partir de narrativas sobre o Caso Kliemann, tais dispositivos comunicacionais materializaram também o imaginário emergente destes eventos, o dotando de autonomia e persistência (VERÓN, 2013) – o que nos permite, inclusive, ter acesso a esse transbordamento de sentidos passados quase 60 anos. Entretanto, tendo em vista a processualidade da midiatização – caso da própria circulação, como desvio gerado entre os polos da produção de sentidos e do reconhecimento (VERÓN, 2005 e 2013), e como interpenetração de outros sentidos diversos (FAUSTO NETO, 2018) – entendemos que esse imaginário pode não ser exatamente o mesmo. Por conta do fenômeno midiático e demais processos inerentes à midiatização, ele possivelmente passou por reconfigurações, fenômeno que, portanto, nos propomos a analisar.

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Notas ______1 A pesquisa é realizada no âmbito do PPGL-Unisc, sob orientação do professor doutor Demétrio de Azeredo Soster, com auxílio de bolsa da Capes. Seu título provisório é O Caso Kliemann e a midiatização do imaginário. 2 Cabe salientar que o arquétipo consiste em uma tendência da mente humana em criar as mesmas imagens. Como ressalta Ruiz (2003), o processo não se dá apenas no inconsciente, mas também é influenciado pelo lado racional. Mesma ressalva é feita por Campbell (2000), para o qual os símbolos da mitologia são, por um lado, fruto da interferência de produções espontâneas da psique, mas, por outro, são também resultado de processos que não ocorrem apenas na esfera inconsciente. A criação das alegorias e metáforas míticas, ressalta, também é fruto de séculos de elaboração racional, consistindo em um vínculo entre inconsciente e consciente. Os teóricos do estudo do imaginário evidenciam também a influência do ambiente social no fenômeno, como veremos a seguir.

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AS ORGANIZAÇÕES SOB A ÓTICA NARRATIVA: REFLEXÕES E PERSPECTIVAS DE INVESTIGAÇÃO

Larissa Conceição dos Santos

As organizações no carrefour da linguagem A fala organizacional, ou as formas pelas quais a organização interage com o meio, como ela se apresenta e se representa para a sociedade, podem ser observadas através de seus discursos, seus relatos, mas também por meio de suas narrativas. O presente estudo visa apresentar a abordagem narrativa, originada no seio dos estudos literários, especialmente através da narratologia, e que vem ganhando espaço, atualmente, entre os estudos organizacionais e de comunicação, e refletir sobre as potencialidades de sua aplicação nas pesquisas em comunicação organizacional. Destaca-se a emergência de novas perspectivas de investigação através da introdução da ótica narrativa às organizações, seja pela análise da produção e circulação de relatos organizacionais (D’ALMEIDA, 2001), ou ainda pela adoção da abordagem narrativa enquanto metodologia por meio da qual os fenômenos organizacionais podem ser examinados (CZARNIAWSKA, 2000, RODHES; BROWN, 2005). Por um lado, evidencia-se o emprego de narrativas, de processos narratológicos pelas organizações visando a comunicação com os diversos públicos. Isto é, destaca-se a produção, difusão e circulação de relatos elaborados pelas organizações e seus atores. Por outro lado, enfatiza-se a pertinência do estudo destas formas narrativas, enquanto processos e produtos da comunicação, como um viés analítico profícuo e inovador ao campo da comunicação organizacional. A introdução dos estudos narrativos ao campo da comunicação (MUMBY, 1987; FI- SHER, 1984) encontra validade, sobretudo, entendendo-se a narrativa como uma forma de expressão humana (BENJAMIN, 1994) e de construção de sentido (PUTNAM, 2009). Da mesma forma, a produção de narrativas organizacionais (SANTOS; D’ALMEIDA, 2017) pode ser concebida como um mecanismo de comunicação com os diferentes públicos. Trata-se portanto de um estudo exploratório, de caráter teórico e reflexivo, onde por meio da revisão de relevantes pesquisas organizacionais (CZARNIAWSKA, 2000, GIROUX; MARROQUIN, 2005; RHODES; BROWN, 2005) e comunicacionais

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(D’ALMEIDA, 2001; 2008; BOJE, 2001) apresenta-se a perspectiva narrativa e narratológica como uma alternativa pertinente às investigações em comunicação, em especial ao campo da comunicação organizacional e aos estudos organizacionais. A fim de observar tais aportes, apresenta-se alguns exemplos de casos france- ses, brasileiros e norte-americanos, onde o enfoque narrativo tem se mostrado fecundo, como alternativa metodológica e fonte de conhecimento sobre a comunicação nas e das organizações (SANTOS, 2014; 2017; 2018). Reflete-se, nesse sentido, acerca da di- mensão simbólica da comunicação organizacional (HALLIDAY, 1987), observada por meio das narrativas organizacionais e propõe-se, finalmente, algumas linhas de pesquisa possibilitadas pela investigação comunicacional sob a ótica da abordagem narrativa.

Aproximações entre os estudos narrativos e a área de comunicação organizacional A proposta teórico-exploratória aqui apresentada inscreve-se no campo da comunicação, privilegiando, entretanto, uma abordagem interdisciplinar. Nesse sentido, a pesquisa é nutrida por teorias provenientes de horizontes diferentes, tais como a literatura, a sociologia, a filosofia e a administração, em interface com os estudos comunicacionais. O referencial teórico mobilizado visa fornecer a fundamentação necessária para que se investigue a introdução da corrente narrativa aos estudos comunicacionais, e mais especificamente sua implicação ao estudo da comunicação organizacional, e ao desenvolvimento de narrativas nas e pelas organizações. Como pressuposto fundamental, entende-se as organizações como lugares de ação e representação, mas também de expressão. Espaços de socialização e de produção de sentido através das diferentes formas de linguagem. Nesse sentido, a comunicação organizacional1 atua como construtora da realidade social (PUTNAM, 2009), pois é no seio dos processos comunicativos que os significados e representações são criados, partilhados e reatualizados. O foco reside na comunicação organizacional em sua dimensão simbólica e relacional. A linguagem, a circulação dos discursos e principalmente a produção de narrativas no interior das organizações são observados como formas de expressão e de comunicação que garantem não apenas a sobrevivência, mas também a representação organizacional. Na esteira dessa perspectiva, a análise narrativa pode fornecer diferentes perspectivas analíticas, pautadas pela valorização da linguagem e da dimensão simbólica na construção e funcionamento das organizações. Nesse sentido, apresenta-se, a seguir, a evolução dos estudos narrativos, a introdução do conceito entre as pesquisas organizacionais, bem como as possibilidades inauguradas a partir de sua análise sob a ótica comunicacional.

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A narrativa e suas origens A abordagem narrativa tem seus primeiros registros associados aos trabalhos de Aristóteles, em especial na obra Poética (384-322 a.C) na qual o filósofo busca evidenciar as características de um bom drama. Ésopo (séc. VI a.C), por sua vez, introduz na Grécia a tradição das narrativas orais, da narração de fábulas por meio das quais eram narradas as apologias, bem como os relatos familiares. As obras de Ésopo deram origem ao gênero da fábula - narrativas que têm por finalidade um ensinamento moral - e influenciaram, posteriormente, escritores como o francês Jean de La Fontaine, considerado o maior fabulista do período clássico (WEST et al., 1984). Também nessa perspectiva, observa-se na França em 1776 a publicação de uma obra intitulada Essai sur le récit ou entretien sur la manière de raconter, de François Joseph Bérardier de Bataut, no qual destacava o papel do relato como uma forma de instrução que possibilitaria o conhecimento de certos eventos (por vezes ignorados, ou conhecidos vagamente), bem como enfatiza as lições proporcionadas pela narração – capacidade de inspirar e mesmo moldar a conduta humana – a exemplo das fábulas concebidas por Ésopo. Embora a preocupação nesse período não residisse no estudo das narrativas e menos ainda em sua classificação ou análise, tal como as entendemos hoje por meio das correntes narratológicas, tais obras são fundantes em virtude do lugar central ocupado pelo relato, enquanto ato narrativo através do qual conta-se uma história, drama, saga ou fábula. O estudo das narrativas desenvolve-se mais tarde, vinculado, em seu princípio, à corrente literária, cujo interesse inicial residia na análise interna das narrativas, de onde emerge o conceito de narratologia. O nascimento desta perspectiva de investigação foi impulsionado pelas pesquisas conduzidas pelos formalistas russos2, especialmente por Vladimir Propp e sua busca pelo estabelecimento de uma morfologia para a compreensão dos contos populares, ou seja, a busca por uma estrutura e um funcionamento interno comuns a todos os contos, e também pelo estruturalismo (LÉVI-STRAUSS, 1958). Os trabalhos desenvolvidos pela corrente narratológica estão, portanto, na origem dos estudos sobre a narrativa. Posteriormente, a narratologia extrapola o âmbito da literatura e da linguística passando a influenciar diferentes áreas de estudo, tais como a antropologia (LÉVI-STRAUSS, 1958), a filosofia (JAMESON, 1981; RICOEUR, 1983), psicologia (BRUNER, 1991), a comunicação (FISHER, 1984; MUMBY, 1987; D’ALMEIDA, 2001), a história (CARR, 1986; WHITE, 1987), e a gestão, dentre as quais sublinhamos os estudos organizacionais (BARRY; ELMES, 1997; CZARNIAWSKA, 1998; BOJE, 2001; RHODES; BROWN, 2005). Na visão de Jameson (1981) a narrativa ultrapassa o horizonte literário sendo entendida como modo de construção social e de apreensão do mundo. Uma perspectiva semelhante é defendida pelo psicólogo americano Jerome Bruner ao afirmar que os

218 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares indivíduos organizam suas experiências e suas memórias por meio de narrativas, levantando sua tese da uma construção narrativa da realidade. A narrativa funcionaria como um instrumento mental, auxiliando os sujeitos na construção da realidade, ou de uma versão desta (BRUNER, 1991). O filósofo Walter Benjamin (1994) destaca o papel das narrativas como mecanismos de expressão da experiência humana, mas também como formas artesanais de comunicação, que guardam em si as marcas, traços e vestígios que o narrador imprime nas coisas narradas (qualidades dos personagens narradas ou do narrador). Já nos estudos narrativos de Ricoeur (1983) o tempo torna-se o elemento central, vivenciado apenas por meio da narrativa. A narrativa possui um caráter mediador e legitimante que torna a experiência temporal acessível, pois através dos relatos rememoramos um passado distante, mas também podemos prever ou imaginar um futuro, ainda que incerto (RICOEUR, 1983). No cruzamento entre as pesquisas oriundas da teoria narrativa e da ciência da gestão observa-se a emergência de inúmeros trabalhos voltados à narração e à produção de narrativas nas organizações (RHODES ; BROWN, 2005, GIROUX; MARROQUIN, 2005). Essa tendência é observada sobretudo entre os pesquisadores anglo-saxões, os quais focalizam suas investigações especialmente na narração interna - sua ligação com a dinâmica organizacional e o conteúdo das narrativas elaboradas pelos diferentes atores organizacionais. Nesse contexto a abordagem do storytelling (BOJE, 1995; 2001) torna- se recorrente e tem conquistado adesão também entre os pesquisadores latinoamericanos. No campo comunicacional ressalta-se o pioneirismo de Walter Fisher, reconhecido por sua proposição de um paradigma narrativo da comunicação. O autor defende o caráter narrativo da comunicação humana e propõe o conceito de homo narrans, considerando o ser humano como essencialmente um narrador ou um contador de histórias (FISHER, 1984). Do encontro entre a narrativa e a organização nascem diversas perspectivas de estudo: funcionalista, crítica, interpretativa, processual, pós-moderna, entre outras (GIROUX; MARROQUIN, 2005), interessadas em investigar os fenômenos organi- zacionais sob a ótica narrativa. Além dessas, interessa aqui particularmente a aproxima- ção dos estudos narrativos organizacionais ao campo da comunicação organizacional (D’ALMEIDA, 2001). Rhodes e Brown (2005) afirmam que os primeiros estudos empregando metodologia narrativa no campo da gestão podem ser observados na década de 70 com os trabalhos de Clark (1972) sobre as sagas organizacionais, e de Mitroff e Kilmann (1975) sobre os mitos épicos nas organizações. Mumby (1987) desenvolve uma pesquisa sobre a função política da narrativa nas organizações, classificando a narrativa (organizacional) como uma forma simbólica por meio da qual são expressas e constituídas as estruturas de poder e a ideologia organizacional.

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A narrativa como um mecanismo de aprendizado para as organizações, em alternativa aos tradicionais métodos técnicos e lógico científicos, é proposta por Barbara Czarniawska. Segundo a concepção de Czarniawska (2000) as narrativas contribuem à construção de sentido por meio de um processo retrospectivo. Andrew Brown também observa as narrativas como formas de expressão, investigando, especialmente, de que maneira, através da construção e difusão dos relatos, os membros da organização expressam e formam uma identidade conjunta a partir de diferentes perspectivas. O autor salienta a pertinência da abordagem narrativa para a formação da identidade coletiva, sendo esta o resultado de um conjunto de narrativas que os membros da organização elaboram sobre ela (BROWN, 2006). A narrativa para Barry e Elmes (1997) constitui um meio de transmissão, mas tam- bém uma abordagem de análise das estratégias organizacionais. Os autores salientam ainda as potencialidades da visão narrativa como forma de revelar o aprisionamento ge- rado pela imposição de uma estratégia, ou do discurso estratégico nas organizações, de maneira a silenciar certas visões e vozes alternativas em favor de uma história dominan- te. Nesse sentido, as narrativas auxiliariam no exame das relações de poder e dominação que permeiam as organizações (BARRY; ELMES, 1997).

Dos estudos organizacionais à abordagem narrativa da comunicação organizacional No presente estudo apresenta-se uma perspectiva de investigação narrativa que focaliza a comunicação organizacional. Adota-se, para tanto, uma visão sistêmica da organização, reconhecendo que a comunicação se origina no interior destas, como resultado da interação dos indivíduos e da construção coletiva de sentidos (BALDISSERA, 2010; D’ALMEIDA, 2001). De acordo com Scroferneker (2006), a abordagem narrativa foi introduzida no campo da comunicação organizacional na década de 90, resultante de um processo de reinterpretação das organizações que faz emergir uma série de teorias alternativas como a chamada teoria narrativa pós-moderna (SANTOS; D’ALMEIDA, 2017). Na esteira destes estudos e em interface com os estudos hermenêuticos de Paul Ri- coeur nasce a abordagem narrativa ou narratológica da comunicação organizacional, de- senvolvida por Nicole D’Almeida na França. Essa perspectiva observa a comunicação das organizações a partir da construção e difusão de narrativas. Ou seja, os discursos, as falas e as comunicações produzidas pelas empresas e observadas em seu ambiente interno, podem ser compreendidas e analisadas enquanto narrativas econômicas (D’ALMEIDA, 2001). As narrativas, no contexto organizacional, compreendem tanto a produção textual (relatos escritos, documentos oficiais), quanto à produção discursiva. Os relatos são observados enquanto processos e como produtos da comunicação nas organizações. Na visão de D’Almeida (2001) os textos e os discursos organizacionais são concebidos 220 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares como narrativas devido à estrutura no qual são constituídos, bem como à sua abrangência explicativa e unificadora. Para a autora a propagação das narrativas econômicas responderia ao imediatismo imposto pelo capitalismo, regime este que pressiona as organizações a configurarem e reconfigurarem seus relatos como uma forma de atender a uma temporalidade que se encolhe, como uma resposta política que reconstrói a história em uma perspectiva de unificação temporal (D’ALMEIDA, 2006). A coerência, o sentido, e a cronologia destas narrativas são construídos face às exigências e aos objetivos da organização, expressos por meio de narrativas recitadas pela comunicação organizacional que lhe permite dar visibilidade e legitimar seus feitos. Na proposição de D’Almeida (2001) as narrativas econômicas podem ser observadas sob duas formas: as narrativas da casa3 e as narrativas de engajamento4. As primeiras dizem respeito aos relatos produzidos pelas empresas tendo como fundamento a identidade e os valores organizacionais, com vistas a coligação do público interno. Já as segundas relacionam-se às narrativas universais da empresa, como forma de legitimação organizacional através da associação dos valores internos com ideais universais (bem comum, sustentabilidade, etc.). Aproximar a abordagem narratológica aos estudos de comunicação organizacional permite ampliar o horizonte teórico-analítico deste campo para além da perspectiva funcionalista, ainda bastante expressiva entre as pesquisas francesas e latino-americanas. A narratologia, por meio de sua vertente estrutural, permite revelar ainda certas invariantes, e através de sua vertente hermenêutica, nos convida a repensar a visão de mundo proposta pelas organizações, e o sentido que nutre as representações e comportamentos de um grupo (D’ALMEIDA, 2006).

Perspectivas de estudo das organizações a partir da abordagem narrativa A reflexão aqui apresentada visa oferecer um panorama diferenciado e inovador ao estudo da comunicação das organizações, a partir do diálogo frutífero com as teorias narrativas, possibilitando o desenvolvimento de uma perspectiva narrativa da comunicação organizacional. A comunicação organizacional, nesta perspectiva, pode ser examinada a partir da produção de narrativas nas organizações, como um processo constante de citação e recitação de si (D’ALMEIDA, 2001, 2007), por meio do qual as organizações se autorrepresentam e atribuem sentido ao fazer organizacional, mas também estabelecem uma coerência em suas práticas ao longo do tempo. A partir dos estudos supracitados foi possível conceber o conceito de narrativas organizacionais (SANTOS, 2017) entendidas de maneira ampla tanto como as narrativas produzidas pelas organizações para fins diversos e destinada aos públicos internos e/ou externos – narrativas das organizações – quanto as narrativas

221 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares que emergem nas organizações ou que circulam no seu interior- narrativas nas organizações. Diferentemente da proposta apresentada por Nicole D’Almeida, as narrativas organizacionais possuem uma abrangência maior, por não restringirem-se apenas aos relatos de empresas privadas ou com fins econômicos, mas entendendo as organizações em seu sentido ampliado, como o grupamento de indivíduos organizados em torno de objetivos comuns – incluindo aí as ONG’s, associações, instituições públicas, OSCIP’s, sindicatos, coletivos, entre outros. Destaca-se, nesse sentido, a temática das comunicações produzidas pelas organizações por meio da utilização de narrativas, pois entende-se que esse tema é de fundamental importância para a compreensão da dinâmica organizacional que, mediada pela comunicação, encontra na narratividade um mecanismo para a sua legitimação. Graças ao diálogo entre os estudos narrativos, organizacionais e comunicacionais torna-se possível observar a produção, circulação e apreensão de narrativas no seio das organizações. Da mesma forma, entende-se que as organizações utilizam diferentes estratégias narrativas a fim de comunicar-se com os mais variados públicos, isto é, como forma de transmitir, difundir e legitimar seus objetivos, missão e valores à sociedade. Uma pista de investigação recente focaliza o debate em torno das narrativas institucionais (corporativas) produzidas pelas organizações. Essas narrativas são discutidas, contestadas, parodiadas, suscitando, por sua vez, a criação de outros relatos pelos grupos internos ou externos à empresa. Os grupos de trabalho ou os sindicatos se sentem, então, convidados a produzir suas próprias narrativas, e atribuir uma significação particular à ação e ao sentido da organização. Narrativas alternativas podem também emergir de organizações não-governamentais, ou grupos de contestação. Assim, em meio à polifonia de relatos e discursos que se entrecruzam e se sobrepõem, as organizações tornam-se objeto de uma guerra de narrativas, na qual se discutem e se disputam diferentes visões (SANTOS; D’ALMEIDA, 2017). Outros usos comunicacionais das narrativas podem ser visualizados através da incorporação de relatos, depoimentos, narrativas de vida, nas campanhas de prevenção e de sensibilização elaboradas pelas organizações. No estudo realizado junto à Fondation Cité Internationale Universitaire de Paris (CIUP) foi possível observar como uma organização sem fins lucrativos elabora estrategicamente narrativas visando sensibilizar e engajar os diferentes públicos em favor de seus propósitos e valores organizacionais (SANTOS, 2014a) As narrativas são também objeto da comunicação interna, onde o relato de vida tem um papel valorizante (reconhecimento do indivíduo, de sua trajetória) mas também unificador e integrativo, onde, frequentemente, história pessoal e organizacional se entrecruzam, formando uma “narrativa híbrida”. No caso específico da empresa Petrobras, ao analisar a produção de narrativas a partir do Programa Memória

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Petrobras 5 identificou-se a integração dos microrelatos individuais – da história de vida dos trabalhadores ou de sua trajetória na petrolífera – como parte integrante na formação de uma narrativa maior, podendo ser entendida como uma narrativa híbrida ou polifônica. A pesquisa mencionada6, que teve por objeto de estudo as narrativas da Petrobras e da companhia Renault, foi fundamental à compreensão de novas modalidades narrativas, observadas sob a perspectiva narratológica da comunicação organizacional, como, por exemplo, a construção de narrativas histórico-organizacionais (SANTOS, 2014b), isto é, narrativas que contam o passado, a trajetória das organizações. A narrativa da história organizacional é um produto da comunicação nas organizações, uma vez que para comunicar ou contar a sua trajetória ela recorre ao método narrativo. Ou seja, observou-se que para ser comunicada aos diferentes públicos a história organizacional/empresarial passa por um processo de narrativização, um ordenamento lógico, cronológico e estratégico que possibilita tornar o relato inteligível e compreensível. Pode-se considerar ainda o emprego e a construção de narrativas como produtos da comunicação organizacional, visando a difusão da estratégia organizacional, a narração das mudanças organizacionais, ou ainda as narrativas de reponsabilidade socioambiental. De maneira alternativa, o estudo da circulação e a adaptação de tais narrativas aos novos formatos e suportes midiáticos e transmidiáticos tornam-se perspectivas de análises instigantes a respeito das formas emergentes de comunicação organizacional, na esteira da perspectiva inaugurada por Marc Lits e Philippe Marion em suas investigações no Observatoire du Récit Médiatique - ORM7 sobre as narrativas midiáticas (LITS, 1997; 2008; MARION, 1997) ao focalizar a médiagénie e a transmédiagénie8 das narrativas.

Considerações e reflexões à guisa de conclusão As pesquisas desenvolvidos até o presente momento (SANTOS, 2014a; 2014b; 2017; 2018) têm como pano de fundo a hermenêutica ricoeuriana, isto é, busca-se através da interpretação dos processos e produtos comunicativos a compreensão do fenômeno, a saber, as apropriações da abordagem narrativa pelas organizações e suas implicações, limitações e potencialidade ao campo teórico e prático da comunicação organizacional. Como perspectiva para futuros estudos, pretende-se aprofundar a investigação e o mapeamento, tanto das práticas ligadas a comunicação narrativas nas organizações, quanto das pesquisas a respeito dessa temática realizadas no contexto latino-americano. Como resultante almeja-se a construção de uma cartografia da chamada abordagem narrativa da comunicação organizacional, o levantamento das principais linhas de

223 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares investigação, das aplicações efetivas de tal perspectiva no processo comunicacional, suas contribuições e limitações assim como as possibilidades de estudo dela provenientes. Entre as linhas e perspectivas investigativas em curso e cotejadas futuramente destacam-se: a) Análise da comunicação organizacional sob a ótica narrativa: Contribuições dos estudos narrativos (FISHER, 1987; RICOEUR, 1986; BRUNER, 1991; CZARNIAWSKA, 2001; GIROUX; MARROQUIN, 2005) à construção de uma abordagem narrativa da comunicação organizacional; b) A produção de narrativas das e nas organizações: explorações teóricas e práticas; c) Narrativa como processo e produto da comunicação organizacional; d) Adaptação e circulação das narrativas organizacionais aos novos formatos e suportes midiáticos. A partir da identificação das áreas e linhas de investigação, assim comoda classificação das narrativas (identificação dos tipos, características principais e práticas recorrentes) pode-se almejar a continuação do estudo a partir de inúmeros desdobramentos temáticos. Considera-se o desenvolvimento de pesquisa sistemática, a partir de parâmetros pré-estabelecidos como a definição de uma amostra preliminar, seleção de casos representativos de diferentes segmentos organizacionais (setor de atuação, tamanho, região, etc.), por exemplo, ou através da adoção de um tema norteador (sustentabilidade, memória, valores) para o qual podem ser buscados diferentes exemplos de narrativas organizacionais. Finalmente, entende-se que a análise das narrativas produzidas oficialmente pelas organizações e direcionadas aos seus públicos de interesse, por meio de uma linguagem própria e com objetivos pré-determinados, constitui, portanto, uma perspectiva de in- vestigação promissora, a partir da introdução dos fundamentos narratológicos ao campo organizacional e comunicacional.

Notas ______1 Comunicação que emana das organizações, se dissipa e circula no seu interior e no seu exterior; comunicação oriunda das diferentes vozes organizacionais; e, ainda, comunicação a respeito da própria organização. 2 Dentre eles destaca-se Roman Jakobson, Tzvetan Todorov e Vladmir Propp. 3 No original em francês: Récits de la maisonnée. 4 No original em francês: Récits de l’engagement. 5 Programa desenvolvido pela Petrobras em 2004 com o objetivo recuperar a memória empresarial e contar a história da companhia por meio dos relatos dos trabalhadores. 6 Pesquisa de Doutorado em Sciences de l’Information et de la Communication, realizada na Université Paris- Sorbonne (Paris IV) em co-tutela com a Universidade de São Paulo (ECA-USP), defendida em 07 de abril de 2016, sob o título “Communication des organisations: Stratégies de légitimation au travers des récits historico-organisationnels”.

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7 Observatório da narrativa midiática, criado em 1991 junto à Escola de Jornalismo da Université Catholique de Louvain (UCL), na Bélgica. 8 Capacidade que as narrativas midiáticas possuem de adaptação e de transição entre diferentes espaços e dispositivos, suportes midiáticos.

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TITULAÇÃO E POLISSEMIA: ANÁLISE DOS PROCESSOS DE METAFORIZAÇÃO E TRANSCRIAÇÃO DA NARRATIVA JORNALÍSTICA NA SEÇÃO “ESQUINA”, DA REVISTA PIAUÍ

Maurício Guilherme Silva Jr.

Introdução A “arte” da titulação – relacionada, de modo específico, à práxis jornalística, com ênfase no processo de elaboração de narrativas transcriadas – sustenta-se na recorrência a estratagemas linguísticos, semióticos, culturais, políticos etc. Para além disso, os “maquinismos” inerentes ao ofício de escolha, decodificação e edição do “conhecimento do mundo” (discurso do outro), durante as etapas do processo de transcriação de tal saber em discurso outro (jornalístico), exigem habilidades e responsabilidades ligadas ao uso de recursos idiomáticos e literários (analogias, metáforas etc.) para representação e/ou reconfiguração simbólica dos fenômenos acontecimentais. Na discussão aqui desenvolvida, pretende-se, justamente, a análise de certos procedimentos de ressignificação jornalística do “mundo da vida”, expressos na conformação de títulos em reportagens da seção “esquina”, da revista piauí. Recorre- se, para tal, à problematização da própria ideia de edição, processo de transfiguração simbólica com vistas ao desenvolvimento de narrativas dialógicas, por meio do emprego de linguagens e formatos mais próximos à(s) experiência(s) daqueles a quem se destinam (no caso, os leitores da publicação aqui analisada). No que tange ao conceito de transcriação – conforme desenvolvido, por mim, em outras tantas investigações (SILVA JR, 2014; 2016; 2017; 2018) –, trata-se de definição calcada na noção de “transleitura”, terminologia proposta por José Paulo Paes (1995), em diálogo com os desafios do procedimento de tradução abordados por Paul Ricoeur (2011) e com as teorias do escritor Haroldo de Campos.

Transcriação e carpintaria verbal Aos “mecanismos adaptativos da narrativa jornalística” (SILVA JR., 2018), aqui discutidos – sob a ótica dos processos de metaforização dos títulos, na seção “esquina”, de piauí –, dá-se a denominação de mecanismos de “transcriação” jornalística. Tal

228 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares conceito reúne problematizações (trans)disciplinares, ligadas tanto à seara dos estudos literários quanto ao “território” da Comunicação Social, ou, mais especificamente, do Jornalismo. Em resumo, trata-se dos processos de adaptação jornalística – o que, além da práxis de composição de pautas, angulações, apurações, escritas, edições e diagramações, diz respeito à “carpintaria verbal (inserção de legendas, créditos, olhos gráficos e títulos) –, fundamentais à transcriação do “discurso do outro” (fontes as mais diversas) em “discurso outro”.

A narrativa jornalística transcriada, porém, não se revela apenas em função de metodologias de estruturação linguística, semântica etc. Há que se levar em conta, também, uma série de imbricações éticas, relativas à capacidade de o “discurso outro” estimular debates e inquietações – e não apenas de apresentar versões parciais/totais acerca da vida, do tempo, dos seres (SILVA JR., 2018, p. 251).

Sob outra ótica, para que se estabeleça o processo de transcriação, a composição jornalística há de incentivar ações de (trans)leitura em seu(s) público(s)-alvo, além de “instigar, esclarecer, entregar e promover as bases para interpretações (pessoais) acerca do mundo da vida” (SILVA JR., 2017, p. 261). Nos títulos da seção “esquina”, de piauí, pretende-se localizar, pois, a presença (ou não) de mecanismos de transcriação narrativa, por meio, principalmente, do dissecamento das estratégias de metaforização editorial. Em síntese, pretende-se, neste capítulo, a partir de novo desenvolvimento dos princípios norteadores do que ora se delineia como “processo de transcriação” – calcado na noção de “transleitura”, terminologia proposta por José Paulo Paes (1995), em diálogo com os desafios do procedimento de tradução abordados por Ricoeur (2011) e pelas teorias de Campos (2015) –, a construção de caminho metodológico de análise e/ ou observação de mecanismos transcriadores em textos jornalísticos.

Transcriação no jornalismo: resgate metodológico Conforme ressaltado em estudo anterior (SILVA JR., 2018) – no qual delineiam-se as bases metodológicas para identificação de narrativas jornalísticas transcriadas –, “ao observar, apurar, decodificar, editar e diagramar, os profissionais da informação buscam qualificar o ‘acontecimento’, por meio de estruturações técnicas e vetores ideológicos, além de recorrência a angulações sociopolíticas, econômicas, culturais etc.” Desse modo, chega-se à “ressignificação do discurso jornalístico”, por meio do desenvolvimento de construções narrativas ligadas à edificação de significados, contratos cognitivos (com “o outro”) e técnicas de natureza objetiva e subjetiva (MOTTA, s/d)1.

Construtor de narrativas, o jornalista (trans)criador há de transfigurar saberes e

1 MOTTA, Luiz Gonzaga. A análise pragmática da narrativa jornalística. Disponível em http://www.portcom. intercom.org.br/pdfs/105768052842738740828590501726523142462.pdf.

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informações – recolhidos junto a fontes (diretas e/ou indiretas) diversas, como fruto de práticas múltiplas, a exemplo de entrevistas, coletivas de imprensa, documentações, processos imersivos e/ou de observação, dentre outros –, em “narrativas dialógicas”, substanciadas por linguagens, ações e/ou formatos relacionados a experiências recorrentes ao cotidiano (profissional, pessoal, afetivo) daquele(s) a quem tais discursos se destinam (leitor, ouvinte, espectador, usuário etc.) (SILVA JR., 2018, p. 253).

Narrativas jornalísticas originadas de processos de transcriação destacam-se por serem capazes de “problematizar/decodificar/descrever o(s) movimento(s) do mundo” (SILVA JR., 2017, p. 255). No mais, devido à alta complexidade das categorias envolvidas em tal natureza de discurso,

revela-se amplo o arcabouço teórico para sua identificação e consequente investigação. Eis o motivo pelo qual os processos transcriativos, no jornalismo, dizem respeito, também, a conceitos e teorizações vinculados a vastos “ambientes” epistemológicos – do Jornalismo à Comunicação Social; dos estudos literários à Linguística; da Hermenêutica às teorias da tradução (SILVA JR., 2018, p. 253).

Em narrativas jornalísticas transcriadas, o “discurso do outro” (fontes diversas) é reconfigurado em “discurso outro”, de modo a estimular mecanismos de transleitura, e, “ao mesmo tempo, instigar, esclarecer, entregar e promover as bases para interpretações (pessoais) acerca do mundo da vida” (SILVA JR., 2017, p. 261). Em resumo, trata-se da invenção de novos e instigantes modos de diálogo – por meio, conforme ressaltado acima, da transcriação de um “discurso outro” (a narrativa jornalística transcriada) – com a sociedade. A partir de elaborações de Haroldo de Campos (1929-2003), o termo “transcriação” nasce atrelado a questionamentos da teoria literária da tradução2. Além disso, imprescindível destacar, como fundamentação teórica básica para estruturação da proposta metodológica aqui retomada, uma série de conceitos elaborada por José Paulo Paes (“transleitura”), Paul Ricoeur (desafios da tradução) e Jacques Rancière (“espectador emancipado”).

O método Neste tópico, recorre-se a trabalho anterior (SILVA JR., 2018, p. 257), como forma de, brevemente, revelar as bases do procedimento metodológico para análise de narrativas jornalísticas transcriadas a ser empregado na presente análise. Em primeiro lugar, importante frisar que “mecanismos de transfiguração do acontecimento em notícia nutrem-se da recriação de discursos, para que, então, seja possível expandir a(s) habilidade(s) de reflexão e autorreflexão do(s) público(s)”.

2 O autor debruça-se sobre a temática em trabalhos como “Da tradução como criação e como crítica”; “Tradução: fantasia e fingimento”; “Texto literário e tradução”; “Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução” e “Tradução, ideologia e história”.

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A presente proposta metodológica, para identificação e análise de narrativas jornalísticas transcriadas, calca-se, pois, na presença de quatro princípios básicos, a serem identificados e dissecados pelos pesquisadores em seus objetos empíricos (as narrativas jornalísticas):

A) Presença de descrições contextualizadas do fenômeno acontecimental (a realidade noticiável/reportável/interpretável), com recorrência ao uso de multitemporalidades discursivas (tempos factual, psicológico, histórico etc.) e à construção de cenários complexos (elaborados a partir de múltiplas vozes), no que diz respeito ao tratamento narrativo em torno de personagens, fatos, conceitos, ideias etc. Destaque-se que, neste tópico, a investigação busca avaliar, nas narrativas, questões de natureza formal e estrutural, e não ético-social (“território” a ser explicitado no item D, logo abaixo).

B) Diálogos (diretos e/ou indiretos) com o outro (leitor, espectador, ouvinte, usuário, prosumidor), de modo a tratá-lo como sujeito ativo, emancipado, e a incitá- lo à interpretação de processos – “e não apenas ao consumo rasteiro de signos sem profundidade e contextualização social, cultural, política etc.” (SILVA JR., 2017, p. 261). Os diálogos podem se consolidar em “conversas” diretas com o público, ou, por exemplo, em questionamentos estimulados, na narrativa, pelo próprio jornalista.

C) Narratividade polissêmica, experimental e/ou esteticamente atraente/ inovadora, como resultado da superação de lógicas “fordistas” de produção jornalística – a exemplo do lead e da pirâmide invertida –, além do uso de recursos investigativos (jornalismo de dados, entrevistas em profundidade, mecanismos de imersão, chat bots etc.), e literários (metáforas, analogias, neologismos, dentre outros). Em tais narrativas, também devem se destacar uma série de problematizações em torno do “discurso do outro” (depoimentos, documentos etc.), que será aproximado, no “discurso outro”, de “experiências vividas” pelos (trans)leitores (público-alvo da iniciativa jornalística).

D) Preocupação ético-social da narrativa, no que diz respeito à ampliação das problematizações discursivas e/ou dos fenômenos acontecimentais apresentados – por meio, principalmente, do estímulo ao debate e à criticidade dos transleitores. Neste sentido, o pesquisador de narrativas jornalísticas transcriadas deve se atentar à capacidade de o jornalista (autor da narrativa) não apenas apresentar versões da(s) história(s), mas, principalmente, de (re)inventar, criativamente, modos de amplificação/alargamento do diálogo entre a narrativa transcriada e questões contemporâneas caras à sociedade. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio da explicitação e da sugestão de outros modos de convívio e/ou interpretação com/de questões abordadas pela narrativa: sites, links, livros, filmes, reportagens, dissertações, teses, produtos audiovisuais etc.

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Processos de edição e titulação De que modo os processos de edição em meios impressos – com ênfase nas estratégias de titulação – auxiliam a construção de narrativas capazes de promover diálogos frutíferos entre os fenômenos acontecimentais e a sociedade (leia-se: leitores e prosumidores)? Parte-se, pois, do ideal de edição jornalística como atividade ligada à “(trans)criação” de discursos, capaz de ampliar o potencial de coberturas experimentais (discurso outro), de maneira a ultrapassar os tradicionais padrões de formatação e informação do jornalismo impresso – mas, também, sem ultrapassá-los completamente. Editar, pois, significa incorporar padrões técnicos de produção jornalística – da pauta à conformação das reportagens nas páginas –, em função, principalmente, do reconhecimento dos leitores (no caso, de revistas), acostumados ao consumo de informações segundo modus operandi determinados de estruturação simbólica. No caso de piauí, aliás, pergunta-se: a busca por equilíbrio entre ações “convencionais” e “experimentais” dá-se por meio do incentivo a coberturas calcadas em princípios como contextualização informacional e instauração de diálogos entre o meio impresso e seus leitores? Que papel os títulos têm em tal processo? Por meio da articulação entre soluções experimentais e convencionais – principalmente, no que diz respeito à titulação –, torna-se possível, ao mesmo tempo, informar e atrair o leitor a universos narrativos mais amplos, contextualizados e instigantes. O desafio, em grande medida, está na busca por equilíbrio entre informação e experimentação, por meio da (trans)criação do discurso dos outros, de modo a estimular, no(s) público(s) da informação, posturas críticas em relação ao “mundo da vida”. Em coberturas jornalísticas contextualizadoras, calcadas na construção de narrativas complexas – que se alimentam de construções visuais esteticamente estimulantes, de titulações metafóricas e de recursos linguísticos similares ao da seara literária –, o processo de edição jornalística (no caso, em meios impressos) responsabiliza-se por desafios múltiplos, a exemplo do desnudamento de mitos e verdades absolutas ou da humanização de relatos em torno de fenômenos acontecimentais. De outro modo, os processos de edição e as ações básicas da prática jornalística – delineamento de pauta, angulação, apuração e escrita – revelam-se modos efetivos de ampliação de diálogos com os leitores. Editar significa investir – por meio da articulação entre texto e imagem – na construção de narrativas capazes de informar e, simultaneamente, de estimular o debate em torno de questões do mundo contemporâneo. No que diz respeito, especificamente, às estratégias para conformação de títulos – os “berros” da narrativa jornalística, segundo Pereira Jr. (2011) –, importante ressaltar que o leitor/prosumidor típico de meios impressos acaba por “viajar”, de manchete a manchete, em busca de informações, estímulos simbólicos, entretenimento etc., até que algo lhe “capture” a atenção. Neste sentido, as técnicas de titulação funcionam como estimuladores de gatilho, capazes de gerar o que, aqui, será chamado de “contextualização imediata dos fenômenos acontecimentais”.

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Transcriação e figuras de linguagem na seção “esquina”, de piauí Neste tópico, conforme anunciado na introdução deste trabalho, busca-se identificar se há, ou não, presença de estratégias de metaforização e transcriação jornalísticas em títulos da seção “esquina”, da revista piauí. Para tal, escolheram-se manchetes e bigodes de 26 reportagens, veiculadas, no referido território simbólico da publicação, nas edições 151, 152, 153 e 154, de abril a julho de 2019.

A revista Idealizada pelo documentarista João Moreira Salles, a revista piauí passou a circular, mensalmente, no Brasil, em outubro de 2006. Elaborada pela Editora Alvinegra, e impressa e distribuída pela Editora Abril, a publicação pratica o que muitos chamam de “jornalismo literário”: pautas experimentais, narrativas delongadas, descrições pormenorizadas e recursos linguísticos que ultrapassam a lógica “industrial” da maior parte das construções noticiosas factuais. Na visão de Moreira Salles, porém, “o que a piauí faz é contar bem uma história”3. Publicada em formato 26,5 cm X 34,8 cm, a revista é impressa em papel especial, de alta qualidade, da Companhia Suzano de Papel e Celulose, o mesmo usado em impressão de livros, e produzido em bobinas exclusivas para sua impressão.

A seção “esquina” O ambiente editorial “esquina” ocupa cerca de 5 páginas da revista piauí, na qual é uma das poucas seções fixas, junto a “chegada”, “poesia”, “quadrinhos”, “ficção” e “despedida”. Trata-se de breves reportagens (entre oito e dez parágrafos) sobre temas os mais diversos, do esporte à ciência, da política à literatura, do meio ambiente ao comportamento humano. Com edição uniforme, capaz de tornar as narrativas bastante próximas, no que tange ao estilo, os textos de “esquina” equilibram informação jornalística, observação ativa (por vezes, participante) do repórter, linguagem literária e múltiplas estratégias de oratória: ironia, humor, drama, suspense etc.

Transcriação e metaforização “na esquina” Descrições contextualizadas do fenômeno acontecimental Em primeiro lugar, faz-se vital destacar que, apesar dos recursos de metaforização, empregados no processo de titulação de reportagens da seção “esquina”, há grande preocupação, dos editores, com a devida contextualização jornalística das temáticas e dos fenômenos acontecimentais. Em outros termos, por mais que o título apresente

3 TAVELA, Marcelo. “João Moreira Salles fala sobre revista piauí e evita o jornalismo literário”. Comunique-se, 2007.

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índices de analogia, metáfora, ironia, sátira, humor etc., é possível que se realize, por meio dos bigodes, leitura meramente informacional dos episódios descritos e/ou narrados. Tal ação permite que os títulos “se libertem” das responsabilidades da enunciação, para, cada qual a seu modo, estimular, nos públicos leitores/prosumidores, emoções e/ ou olhares críticos acerca da realidade elaborada narrativamente. Que o diga a estrutura simbólica proposta, na edição 152 de piauí, de maio de 2019, entre o provocativo título (“Leilão da esquerda”) e o bigode (“Cinquenta fotos para libertar lula”). A reportagem, de Felipe Bernardino, trata da mobilização de uma série de simpatizantes do ex-presidente – preso pela Polícia Federal, em 2018, na capital paranaense –, em prol do levantamento de fundos para sua libertação, por meio da venda de imagens ligadas a diversos momentos das trajetórias sindical e política de Lula. Neste sentido, o “fenômeno acontecimental” básico (a comercialização das 50 fotografias) aparece apenas no bigode. Ao título, de modo provocativo, reserva-se a possibilidade de generalização dos significados, ao enquadrar a iniciativa no designativo “da esquerda”. Tal recurso também é empregado, na mesma edição, em reportagem, escrita por Fabiano Maisonnave, sobre apoiadores de Jair Bolsonaro, que, em março, disseminaram fotos da apresentação da futura dissertação de mestrado da aluna Cris Guimarães Cirino – “A bolsonarização da esfera pública: uma análise foulcaultiana sobre a (re)produção de memes a partir dos discursos de ódio na fala de Bolsonaro” –, como forma de criticar a temática acadêmica em questão. O metafórico título usado pelos editores (“No inferno, com Foucault”) dialoga com o principal “ambiente” teórico articulado pela mestranda – as teorias do filósofo Michel Foucault (1926-1984) –, além de situar a gravidade da situação vivenciada pela pesquisadora. Afinal, por meio do vocábulo “inferno”, busca-se representar aonda de intolerância enfrentada – aguerridamente, posto que, mesmo em meio à complexa situação, ela permanece “com Foucault” – pela estudante da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). De outro modo, o bigode da reportagem acaba por cumprir a meta informacional da abordagem, ao ressaltar: “Bolsonaristas atacam mestranda”. Por meio de tais termos, agressores e vítima – esta, devidamente categorizada em sua hierarquia acadêmica – são qualificados e explicitados. Tal iniciativa editorial permite que os públicos leitores se situem, com propriedade, quanto ao fenômeno acontecimental abordado. Já na edição 151 de piauí, de abril de 2019, a reportagem escrita por Fabio Victor é editada segundo a polissemia do humor. Na divertida expressão “Deu a louca nas galinhas”, concentram-se as próprias maneiras bem-humoradas de Higor Alves de Aquino, comerciante de 29 anos que vende seus produtos nas ruas de São Paulo, a gritar: “As galinhas ficaram maluuucas”. Na comezinha rotina do simpático trabalhador brasileiro, contudo, o que se negocia, afinal? Uma vez mais, o bigode busca garantir a enunciação jornalística: “A arte de vender ovos”.

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A partir de tais exemplos – assim como em outros tantos, dentre as 26 reportagens aqui analisadas –, pode-se dizer que, segundo os princípios editoriais da seção “esquina”, de piauí, a carpintaria verbal representada pelo conjunto “título/bigode” busca, sim, modos de contextualização do fenômeno acontecimental, ao promover entrelaçamentos entre informação jornalística e recursos linguísticos e literários (humor, metáfora etc.).

Diálogos críticos com o outro A busca por estimular olhares críticos no(s) público(s) leitores da seção “esquina” aparece, em grande medida, por meio de recurso também múltiplo, no que tange ao potencial polissêmico da linguagem: o paradoxo. Nas quatro edições aqui analisadas, muitas são as articulações de sentido duplo – principalmente, do ponto de vista comportamental – a ganhar força no “diálogo” simbólico entre título e bigode. O debate em torno das questões de gênero, por exemplo, ganha força a partir da junção, na carpintaria verbal de reportagem escrita por Maurício Frighetto (edição 153, de junho de 2019), de estereótipos sociais estigmatizados como “feminino” ou “masculino”. Já no título (“De chuteira e laço”), a aproximação entre objetos antes “esclarecedores” de gênero busca, justamente, o efeito contrário: a naturalização da diversidade. Afinal, qualquer garota pode, sim, jogar futebol e, ao mesmo tempo, ornar os fios de seu cabelo. Para completar tal cenário, o bigode nomeia a personagem central: “Nati é craque entre os meninos”. Também ao estimular a criticidade por meio de relações linguísticas paradoxais, a reportagem sob o título “A rainha dos pés”, escrita por Lucas Ferraz, publicada na edição 153, garante, no bigode, a aproximação entre “universos” de significação antípodas: “Noites de fetiche ao lado do Vaticano”. O embate entre sexo e religião, explicitamente tramado na manchete, diz respeito ao culto à podolatria. Para tal, o repórter descreve passagens da vida de Franca Kodi, atriz italiana de 60 anos, que, há mais de uma década, “tornou-se a rainha dos fetichistas de pés em Roma”.

Narratividade polissêmica O fechamento do processo de escolhas editoriais – com ênfase, neste trabalho, na conformação de títulos e bigodes – revela-se, em piauí, categoricamente polissêmico. A multiplicidade de significados (linguísticos, estéticos, ideológicos, sociais, políticos, culturais etc.) integra-se ao próprio pressuposto narrativo da publicação – do uso de imagens (ilustrações, charges etc.) experimentais e/ou artísticas ao investimento em textos longos, imersivos (com frequente extrapolação da subjetividade dos repórteres) e próximos à linguagem literária. No que se refere, especificamente, aos títulos da seção “esquina”, pode-se dizer que a polissemia – amparada em metáforas, comparações, analogias, metonímias, hipérboles, antíteses, paradoxos, alegorias etc. – está na essência do projeto de (trans)

235 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares criação narrativa jornalística de piauí. Que o digam os seguintes exemplos, nos quais há uso de diversas figuras de linguagem (semânticas, sintáticas, sonoras e de pensamento): “Foice, martelo e peruca” [metonímia; analogia – edição 151, 2019, p. 14]; “O eterno Dutrinha” [perífrase – edição 151, 2019, p. 14]; “Os livros da selva” [comparação; analogia – edição 151, 2019, p. 15]; “O passado condena” [intertextualidade – edição 151, 2019, p. 16]; “Deu a louca nas galinhas” [hipérbole – edição 151]; “Atiradores mirins” [paradoxo – edição 152, 2019, p. 9]; “Figurino é um horror” [hipérbole – edição 152, 2019, p. 11]; “O coach evangélico” [comparação; analogia; ironia – edição 153, 2019, p. 6]; “O lateral de esquerda” [ironia – edição 153, 2019, p. 7]; “De chuteira e laço” [paradoxo – edição 153, 2019, p. 8]; “Depois da chuva dourada” [metáfora; analogia; ironia – edição 154, 2019, p. 9]; “Garis Kaiowás” [perífrase – edição 154, 2019, p. 10]; “Imagem maldita” [hipérbole; comparação – edição 154, 2019, p. 11]; “Autotelemensagem” [antítese; paradoxo – edição 154, 2019, p. 12].

Preocupação ético-social No que tange à “ampliação das problematizações discursivas e/ou dos fenômenos acontecimentais apresentados – por meio, principalmente, do estímulo ao debate e à criticidade dos transleitores” –, a seção “esquina” se fia como espaço caleidoscópico, tanto do ponto de vista temático quanto estilístico. Trata-se, afinal, de abordagens jornalísticas não apenas atreladas a excentricidades (personagens, situações e trajetórias repletas de ousadia, tempero e imprevisto), mas, também, ao que, neste trabalho, compreende-se, metodologicamente, como a capacidade de o autor da narrativa “apresentar versões da(s) história(s)” e, ainda, “(re)inventar, criativamente, modos de amplificação/alargamento do diálogo entre a narrativa transcriada e questões contemporâneas caras à sociedade”. Em todas as 26 reportagens aqui analisadas, a problematização da realidade imediata – com finalidades de discussões ético-social – surge como essência de pautas, angulações e estéticas. Em relação a títulos e bigodes, a própria estrutura de significação de tal conjunto (veja, também, tópico 5.1 deste artigo) responsabiliza-se por, de antemão, incitar o debate, sob múltiplas óticas, em torno de nuances políticas, sociais, econômicas, comportamentais, religiosas etc. do mundo da vida. Neste sentido, há que se ressaltar algo fundamental à compreensão das preocupações éticas do processo de titulação na seção “esquina”: trata-se da estreita relação, estimulada pelo projeto editorial, entre micro e macrorrealidades. Em diversas pautas, com o intuito de ampliar a discussão acerca de questões caríssimas ao Brasil e a outros países, recorre- se, propositadamente, a personagens (anônimas e/ou públicas) e situações comezinhas. Ou seja: a partir da gota, debate-se o oceano. Destaque, pois, para os seguintes conjuntos de título e bigode, nos quais a temática central da narrativa (personagem) está a serviço de problematização (política, econômica, religiosa etc.) bem mais ampla: “O terno Dutrinha– Glória e decadência

236 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de uma arena” [edição 151, 2019, p. 14]; “Os livros da selva – A melhor livraria sobre a Amazônia” [edição 151, 2019, p. 15]; “Foice, martelo e peruca – Uma drag queen comunista” [edição 151, 2019, p. 14]; “No inferno com Foucault – Bolsonaristas atacam mestranda” [edição 152, 2019, p. 9]; “Rumo ao Guiness – O dicionarista da Baixada” [edição 152, 2019, p. 10]. Prossigam-se os exemplos: “O lateral de esquerda – Igor Julião defende o trabalhador” [edição 153, 2019, p. 7]; “Black money – Uma livraria afrocentrada” [edição 153, 2019, p. 9]; “A rainha dos pés – Noites de fetiche ao lado do Vaticano” [edição 153, 2019, p. 9]; “O deputado marombado – Um dia na vida atribulada de Daniel Silveira” [edição 154, 2019, p. 8]; “Depois da chuva dourada – O performer que chocou Bolsonaro” [edição 154, 2019, p. 9]; “Uma casa para Lala – A arquiteta da favela de Manguinhos” [edição 154, 2019, p. 11]; “Autotelemensagem – Um serviço amado e odiado no rio” [edição 154, 2019, p. 12].

Considerações finais Em primeiro lugar, de modo objetivo, chega-se a importante máxima, norteadora da pesquisa aqui desenvolvida: a “arte” de titulação, relativa à seção “esquina”, da revista piauí, obedece, em graus distintos, aos quatro requisitos metodológicos para configuração da chamada “narrativa jornalística transcriada”. O projeto e a práxis editorial da publicação centram-se, afinal, conforme expressão destacada na introdução deste trabalho, no uso, proposital, de “estratagemas linguísticos, semióticos, culturais, políticos etc.” capazes de se concretizar em textos/textualidades que, ao mesmo tempo, informam e incitam, crítica e criativamente, problematizações várias acerca de fenômenos acontecimentais contemporâneos. A emancipação intelectual do espectador (o transleitor) é instigada já na “carpintaria verbal” da revista piauí. Experimentais e esteticamente sofisticados – devido, principalmente, ao uso de ampla diversidade de figuras de linguagem (semânticas, sintáticas, sonoras e de pensamento) –, os títulos e bigodes da seção “esquina” fundamentam-se segundo a tétrade de elementos necessários à conformação de narrativas jornalísticas transcriadas: contextualização do fenômeno acontecimental; estímulo ao diálogo crítico com o leitor (no caso, por meio, principalmente, da recorrência a paradoxos); narratividade polissêmica e preocupação ético-social. Em outros termos, os pequeninos elementos editoriais aqui analisados transcendem o território da mera enunciação, ao revelar autonomia semântica, linguística e editorial. Por isso, mesmo que os públicos leitores não se dediquem ao texto integral das reportagens publicadas na seção “esquina” – de modo a só “passear” os olhos por títulos e bigodes –, será possível a (trans)leitura contextualizada de realidades políticas, comportamentais, religiosas, sociais etc., posto que tais minúsculas estruturas de significação também obedecem – termo a termo, detalhe a detalhe – aos padrões (informativos e experimentais) de narrativas jornalísticas transcriadas.

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Referências CAMPOS, Haroldo. Transcriação. TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (Orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2015. CAMPOS, Haroldo. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. In: CAMPOS, Haroldo. Transcriação. TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. M. (Orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2015. CARVALHO, Carlos Alberto de. Entendendo as narrativas jornalísticas a partir da tríplice mimese proposta por Paul Ricoeur. MATRIZes. Ano 6 – nº 1 jul./dez. 2012. p. 169-187. Disponível em: file:///G:/Users/Goi/Downloads/48057-Article%20Text- 58230-1-10-20121213.pdf JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. LEAL, Bruno. Saber das narrativas: narrar. In: GUIMARÃES, C.; FRANÇA, V. (Orgs.). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. Leal, Bruno; Mendonça, Carlos M. C. A textualidade como processo: desafios comunicacionais. In: Memorias del XIII Congreso Latinoamericano de la Comunicación - Discurso y comunicación. 2016. Disponível em: file:///G:/Users/Goi/Downloads/ Raza_y_genero_en_Disney_Interpretacion_d%20(1).pdf MOTTA, Leda Tenório da. Céu acima: para um tombeau de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005. MOTTA, Luiz Gonzaga. A análise pragmática da narrativa jornalística. 2005. Disponível em www.portcom.intercom.org.br/pdfs/1057680528427387408285905017 26523142462.pdf PAES, José Paulo. Transleituras. São Paulo: Ática, 1995. PEREIRA JR., Luiz Costa. Guia para a edição jornalística. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2011. REVISTA PIAUÍ. Edições analisadas: nºs 151, 152, 153 e 154, 2019. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF: Martins Fontes, 2012. RICOEUR, Paul. Sobre a tradução. Belo Horizonte: UFMG, 2011. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007 SANTAELLA, Lucia. Transcriar, transluzir, transluciferar: a teoria da tradução de Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da. Céu acima: para um tombeau de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005. SILVA JR., Maurício Guilherme. (Trans)criações jornalísticas na revista Minas faz Ciência. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 12., 2014, Santa Cruz do Sul, Anais. São Paulo: SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo, 2014.

238 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

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NARRATIVAS E FOTOJORNALISMO: MAPEAMENTO DE COMUNICAÇÕES COORDENADAS NA SBPJOR

Diogo Azoubel

Mapear é preciso A pesquisa empírica em Comunicação ainda não se apresenta como uma prática difundida em profundidade no Brasil. A constatação é feita a partir dos esforços empreendidos pelo Grupo de Pesquisas em Narrativas Midiáticas, da Universidade de Sorocaba (NAMI-Uniso-CNPq) e da análise de sua produção ao longo dos seis anos mais recentes (MARTINEZ; AZOUBEL, 2018, p. 297). Estudos realizados por Azoubel (2019) e em coautoria com Buitoni (2019) sobre o fotojornalismo nacional, por exemplo, revelam a pouca aderência de pesquisadoras(es) à essa metodologia. Se considerada a tradição anglo-saxônica, em que a exaustiva revisão de literatura é uma constante, perceberemos a necessidade de mudança de paradigma no que toca ao acompanhamento e referenciação, quando for o caso, do que vem sendo produzido na área por pares temáticos – e não apenas aqueles considerados clássicos. Justificada também pela possibilidade de alicerçar ponderações outras sobre a práxis investigativa de parte da comunidade científica nacional, esta reflexão remete, simultaneamente, ao registro dos rumos que vêm sendo dados à pesquisa e à problematização de como nos comportamos enquanto cientistas sociais da área de Comunicação e Informação. Parto, portanto, do pressuposto de que a revisão sistemática dos estudos que vêm sendo produzidos fundamenta inovações e abordagens originais ao mesmo tempo em que evidencia lacunas a serem investigadas e metodologias mais eficazes para tal. Além, por certo, de alicerçar concreta fundamentação para os debates em/ sobre um determinado hic et nunc. Busco, assim, as palavras de Peruzzo no sentido de que:

É um percurso no qual se aperfeiçoam e se desenvolvem tanto metodologias quantitativas – dos questionários impressos aos virtuais, medidores eletrônicos para quantificar as audiências etc. –, quanto as qualitativas – da observação participante à participação observante e desta à pesquisa-ação participativa (Peruzzo, 2016), da etnografia à netnografia. Além de que permanecem sempre atuais a entrevista semiestruturada e a entrevista em profundidade,

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como a história oral, a história de vida, a história de família, grupo focal e grupo de discussão. São metodologias abertas e também capazes de gerar observáveis científicos e conhecimento (PERUZZO, 2018, p. 30).

Especificamente na esfera do Encontro Nacional de Pesquisadores em Jor- nalismo, organizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), grupos distintos vêm se organizando para apresentar propostas de comu- nicações coletivas denominadas coordenadas. Nesses espaços, além da afinidade te- mática, as reflexões são estruturadas de maneira a contemplar os achados prévios de colegas como referências conducentes a novos questionamentos e, por consequên- cia, novos achados, em um ciclo de alargamento do conhecimento cientificamente construído. Dois desses coletivos foram escolhidos para engendrar esta reflexão. A Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami) é fruto, entre outras ações, das Coordenadas Narrativas, inauguradas em 2015. Já as Coordenadas sobre Fotojornalismo foram inauguradas em 2018. Em comum, contam com a participação de pesquisadoras(es) de diferentes partes do Brasil e com formação em graus variados, o que funciona, aliás, também como critério de avaliação das propostas pela SBPJor. Essa diversidade possibilita o debate sobre a multiplicidade de abordagens e ideias acerca de um mesmo tema. Isso posto, parto dos corpora de nove e dez pesquisas, respectivamente, apresentadas como parte de cada uma das duas coordenadas em seus anos inaugurais. Optei por esse critério justamente por considerar que o primeiro ano de qualquer coletivo tende a ser mais desafiador no que concerne à cooptação de pares para composição de forças. Assim, nesta investida a abordagem é qualiquantitativa via análise bibliométrica e de conteúdo; métodos de procedimento estatístico e monográfico, e revisão de literatura e análise comparativa como técnicas de pesquisa (MARTINEZ; AZOUBEL, 2018; MARTINEZ; PESSONI, 2015; BARDIN, 2011; HERSCOVITZ, 2010; MARCONI; LAKATOS, 2010; BENETTI; LAGO, 2007).

Aos dados Para buscar pontos de confluência e/ou tensão das duas coordenadas a partir dos 19 textos analisados, os parâmetros estabelecidos dizem respeito: a) à autoria das pesquisas; b) filiação institucional; c) palavras-chave escolhidas para sua categorização; d) referências buscadas e; e) titulação de quem as assina. Já as hipóteses são, respectivamente: a) em ambas as coordenadas o número de pesquisas assinadas por mulheres e homens é proporcional; b) as regiões Sudeste e Sul são as que mais concentram instituições nas quais essas pesquisas foram efetivadas; c) as palavras-chave mais citadas são “narrativas” (e/ou suas variações) e “fotojornalismo”, respectivamente, sem qualquer outra predominância dado o tamanho dos corpora; d) entre as obras mais referenciadas os livros são maioria, bem como autores em

241 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares detrimento de artigos/outros e de autoras e; e) há predominância de doutoras(es) entre as autorias identificadas. Para dar conta do desafio de responder tais questões, elaborei – conforme a ordem em que cada pesquisa aparece nos anais do evento – os quadros I e II, em que estão dispostos os dados das Coordenadas Narrativas e Coordenadas sobre Fotojornalismo, necessários ao enfoque dos parâmetros a), b) e e). É mister estabelecer que tais dados foram retirados das próprias pesquisas – e, por isso, refletem momentos específicos na carreira de cada autora ou autor –, sendo aqueles destacados com “*” incluídos por mim por estarem implícitos no que fora informado1. Igualmente, os vínculos institucionais acadêmicos e profissionais foram adicionados quando da apresentação das pesquisas (novembro de 2015 e novembro de 2018, respectivamente). Por isso, para destacar as autorias ligadas à docência nos anos de 2015 e 2018 a marca estabelecida é “@”; sendo a marca “#” destinada às(aos) docentes de pós-graduação. Na mesma direção, o “+” indica conexões internacionais informadas, seja via doutorados ou pós-doutorados consolidados integral ou parcialmente em outros países. Sobre a importante análise complementar na Plataforma Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de dados como atuação das(os) autoras(es) em grupos de pesquisa, como participantes ou líderes; efetivação de possíveis pesquisas de pós-doutorado e/ou de livre-docência não são traduzidas em análise estatística pelo simples motivo de que os critérios específicos para criação das notas de rodapé em que foram dispostos são diferentes em cada coordenada o que, por si só, demandaria paralela investigação de cada currículo a fim de estabelecer minuciosamente os perfis das pesquisadoras e dos pesquisadores. Não é esse o caso.

242 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Quadro I –Dados básicos das Coordenadas Narrativas

CÓDIGO TÍTULO AUTORIA TITULAÇÃO FILIAÇÃO Monica Doutora+ (com Uniso Martinez# pós-doutorado)

Entre fato e ficção: Old Mr. Flood de Eduardo Doutor Universidade Municipal CNI01 Joseph Mitchell, Luiz Correia@ de São Caetano do Sul personagens compostos (USCS) | Centro Universi- e jornalismo tário FMU | FIAM-FAAM

Mateus Yuri Doutorando+ Universidade Estadual de Passos Campinas (Unicamp)

A narrativa hipermídia Universidade Federal do CNI02 longform no jornalismo Alciane Baccin Doutoranda+ Rio Grande do Sul (UFR- contemporâneo GS)

Proponente: Monica Martinez “Parto dos anjos”: narrativa Doutor* Universidade Federal do CNI03 e transformações na produção Edgard Patrício# Ceará (UFC) do jornalismo impresso Blindagem Midiática: Ada Cristina o questionamento Universidade Federal de CNI04 Machado Doutora comunicacional da mediação Santa Maria (UFSM) da Silveira# Mesa – Convergências, inovações tensões na contemporaneidade. jornalística

Hila Rodrigues# Doutora* Universidade Federal de

Propo - Narrativas dramáticas: a Ouro Preto (UFOP) CNII01 cobertura política em revista Marta R. Maia# Doutora* UFOP

Narrativas Fotojornalísticas: estudo comparativo do COORDENADAS NARRATIVAS mapeamento dos artigos CNII02 científicos apresentados nos Diogo Azoubel Mestrando Uniso congressos nacionais da Intercom (20102014) e SBPJor (2003-2014)

Diante do olhar dos outros: aspectos sensíveis de uma Thales CNII03 Doutorando Unicamp política das narrativas Vilela Lelo

nente: Marta Maia midiáticas O quarto narrador, a morte Demétrio Universidade de Santa CNII04 da editora e midiatização de Azeredo Doutor Cruz do Sul (UNISC) | das narrativas Soster# SBPJor

“Tradução” versus “Transcriação” Maurício Doutor (pós- Centro Universitário de CNII05 A narrativa jornalística e a Guilherme -doutorando) Belo Horizonte (UniBH) (trans)codificação do(s) Silva Jr.@ | Universidade Federal de discurso(s) da ciência. Minas Gerais (UFMG) Mesa – Reconfigurações, alteridade e diálogos na contemporaneidade.

Fonte: Autoria própria.

243 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Quadro II –Dados básicos das Coordenadas sobre Fotojornalismo

CÓDIGO TÍTULO AUTORIA TITULAÇÃO FILIAÇÃO Em defesa do instante Greice Schneider# Doutora* Universidade Federal CFI01 indecisivo de Sergipe (UFS) Nathália Cunha da Mestra Centro Universitário Mulheres fotojornalistas: Silva@ Senac (SP) CFI02 assimetrias de gênero na distribuição de pautas

Dulcília Schroeder Doutora Escola Superior de Pro- Novos formatos de vídeos Buitoni# paganda e Marketing jornalísticos em sites (ESPM-SP) CFI03 informativos: produções da BBCBrasil.com Ana Cristina Olivei- Mestranda ESPM-SP ra Lobo Olhos que não querem ver: Alexandra Gabrie- Doutoranda PUC-SP CFI04 o fotojornalismo em la Onofre de Abreu questão Gonçalves Dulcília Schroeder Bitoni Ângela Cristina Doutora UFMG Um programa de face Salgueiro Marques# feminina: uma leitura Doutora Universidade Tuiuti do Mesa – Gêneros e formatos. Proponente: Mesa – Gêneros dos enquadramentos Angie Biondi# Paraná (UTP) CFI05 biopolíticos de mulheres empobrecidas em fotografias jornalísticas do Bolsa Família

Maria Cecília Conte Doutoranda Senac Sorocaba (SP) | A fotografia que Carboni@ PUC-SP CFII01 acontecimentaliza o evento histórico

Universidade Federal Sílvio da Costa Pe- Doutorando do Mato Grosso do Sul Editor de fotografias: uma CFII02 reira@ (UFMS) | Universidade função em transformação? Federal de Santa Catari-

COORDENADAS SOBRE FOTOJORNALISMO na (UFSC) Diogo Azoubel@ Doutorando+ Seduc-MA | PUC-SP Fotojornalismo e sincretismo: reflexões CFII03 Rogério Makssou- Mestrando PUC-SP sobre a relação dian verbo-visual-espacial Pinto Serva Paula Saviolli No- Especialista Textual Comunicação Front digital: o trauma gueira CFII04 psicológico secundário nos Doutor ESPM-SP editores de fotojornalismo Leão Pinto Serva@

Fabíola Paes de Al- Doutora FMU | FIAM-FAAM Imagem e cinema em meida Tarapanoff@ CFII05 transformação: análise Doutora (com Universidade Estadual

Mesa – Modos de fazer leituras possíveis. Proponente: Leão Mesa – Modos de fazer de fotografias da Bravo! Márcia Costa@ pós-doutorado) de São Paulo – Bauru (Unesp)

Fonte: Adaptado de Buitoni; Azoubel, 2019.

244 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

No que toca ao parâmetro a) autoria, nas Coordenadas Narrativas, das 12 autorias identificadas, cinco são mulheres (41,66% do total) e sete homens (58,33%). Sobre os nove textos analisados, quatro (44,44%) são assinados por ou com mulheres, sendo dois (22,22%) individualmente (CNI02 e CNI04), uma coautoria entre mulheres (CNII01) e uma com mulher e dois homens (CNI01) (11,11%, cada). As cinco (55,55%) demais pesquisas são assinadas por homens individualmente (CNI03, CNII02, CNII03, CNII04 e CNII05). Nas Coordenadas sobre Fotojornalismo, das 15 autorias identificadas, 11 (73,33% do total) são mulheres e quatro (26,66%) homens. Dos dez textos analisados, oito (80%) são assinados por ou com mulheres, sendo quatro (40%) individualmente (CFI01, CFI02, CFI04 e CFII01), três (30%) coautorias entre mulheres (CFI03, CFI05 e CFII05) e um (10%) coautoria com homem (CFII04). Os dois textos restantes (10%, cada) são um assinado individualmente por homem (CFII04) e outro coautoria entre homens (CFII03). Esses dados confirmam parcialmente a hipótese estabelecida, pois o número de pesquisas assinadas por mulheres e homens é levemente desproporcional nas Coordenadas Narrativas (cinco para sete, ou 41,66% para 58,33%) e superior nas Coordenadas sobre Fotojornalismo (11 para quatro, ou 73,33% para 26,66%). Nas Narrativas, quatro das 12 autorias não se identificam como docentes, sendo três doutorandos (uma mulher para dois homens) e um mestrando. Ou seja, 33,33% do total, ou 8,33%, cada. Das demais, apenas duas atuam em nível de graduação (16,66%) e as outras 6 (50%) na pós-graduação, sendo quatro mulheres (33,33% do total de autorias) e dois homens (16,66%). No Fotojornalismo, por outro lado, pouco mais de um quarto (26,66%) das 15 au- torias não se declarou docente, sendo uma especialista, uma mestranda, um mestrando e uma doutoranda (6,66%, cada). Das demais, seis atuam em nível de graduação (40%), sendo quatro mulheres (26,66%) e dois homens (13,33%); quatro (também 26,66%) na pós-graduação, todas mulheres; e um homem na Educação Básica (6,66% do total de autorias). É importante destacar que das autorias identificadas em ambas as coordenadas apenas uma se repete, sendo Diogo Azoubel o único a participar das Narrativas, em 2015, e também do Fotojornalismo, em 2018. Esse dado revela não apenas a ausência de pesquisadores que transitem pelos dois campos no âmbito da SBPJor mas, também, uma espécie de relação embrionária entre ambas, haja vista que a experiência nas pri- meiras coordenadas pode ter influenciado a proposição das segundas se considerada a natureza da ação conjunta com os professores-pesquisadores Dulcília Schroeder Buitoni e Leão Serva para tal. Sobre b) filiação, conforme Buitoni e Azoubel (2019), “foram [considerados] não apenas os chamados acadêmicos, mas também os profissionais”, bem como os possíveis vínculos duplos ou triplos citados. Nas Coordenadas Narrativas, das 16 vinculações citadas duas foram excluídas desta análise e aparecem sobretaxadas no 245 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Quadro I. A primeira, a SBPJor, por ser nacional, embora sediada em São Paulo; e a segunda, a Fapemig, por não referir, necessariamente, a uma filiação, mas a uma li- nha de fomento daquela Fundação que, se fosse considerada, conduziria novamente à minuciosa análise de dados cadastrados na Plataforma Lattes por pesquisadoras e pesquisadores. Isso posto, dez (71,42%) das 14 vinculações remanescentes estão no Sudeste brasileiro, sendo seis (42,85%) no estado de São Paulo e quatro (28,57%) no de Mi- nas Gerais. Na região Sul se concentra 21,42% do total de vinculações, todas três no estado do Rio Grande do Sul; e na região Nordeste 7,14%, representada por uma vinculação no estado do Ceará. Já no que toca às Coordenadas sobre Fotojornalismo, 72,22% das 18 vinculações citadas estão no Sudeste brasileiro, sendo 11 (61,11%) das 13 no estado de São Paulo, uma (5,55%) no estado do Rio de Janeiro2 e outra (também 5,55% do total) no de Minas Gerais. As demais advêm das regiões Nordeste e Sul, duas (11,11%) cada uma, e a restante (5,55%) da Centro-Oeste. Com esses dados é confirmada a hipótese estabelecida para discussão deste parâme- tro. Ou seja, as regiões Sudeste e Sul são as que mais concentram instituições nas quais as pesquisas analisadas foram efetivadas. E “esse fato se coaduna com o que consta no Documento de Área - Ciências Sociais Aplicadas 1 (Capes, 2016), segundo o qual mais da metade dos programas de pós-graduação é sediada no Sudeste” (BUITONI; AZOUBEL, 2019, p. 9). É importante destacar ainda que, nas Narrativas, três Instituições de Ensino Supe- rior (IES) respondem juntas por 42,85% das vinculações, sendo responsáveis por sediar, cada uma, duas (14,28%) pesquisas: UFOP, Unicamp e Uniso. Já no Fotojornalismo, a PUC-SP e a ESPM-SP se destacam com quatro (22,22%) e três (16,66%) pesquisas, respectivamente. “Isso pode ser parcialmente explicado pelos oportunos vínculos insti- tucionais dos professores-pesquisadores que encabeçam as Coordenadas” (BUITONI; AZOUBEL, 2019, p. 9). Complementarmente, sobre o parâmetro c) palavras-chave, tanto quanto nas Narrativas, no Fotojornalismo os termos mais recorrentes são os que as designam ambas como coordenadas, o que confirma hipótese estabelecida. Assim, os termos “jornalismo” e “política” também são visualmente traduzidos na Imagem I; bem como “imagens” na Imagem II, ainda que não se repitam com tanta frequência na lista de palavras-chave transcrita das pesquisas analisadas em um documento no Microsoft Word - Office 365. Para fins de compreensão desse processo, basicamente, das primeiras coordenadas 42 palavras-chave3 foram copiadas (51 palavras), ao passo que das segundas foram 46 (70 palavras). Em seguida, todas foram organizadas na ferramenta em linha WordClouds. com para sua tradução nas imagens que seguem:

246 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Imagem I – Cloud Narrativas

Fonte: Autoria própria.

Imagem II – Cloud Fotojornalismo

Fonte: Buitoni; Azoubel, 2019.

Já sobre o parâmetro d) referências, elaborei os quadros III, IV e V baseado nas indicações de Buitoni e Azoubel (2019). No primeiro estão organizados os totais de obras citadas e listadas por pesquisa analisada, ao passo que nos últimos as autorias e obras mais usadas como referência nas Coordenadas Narrativas e Coordenadas sobre Fotojornalismo. Nas Narrativas, 94,65% das obras listadas são devidamente citadas, sendo apenas 13 ocorrências (5,34%) não incluídas no corpo das pesquisas4. No Fotojornalismo esse

247 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares percentual é de 96,21%, sendo cinco ocorrências (3,37%) não efetivamente citadas. Isso porque “entende-se, fazem parte de um mínimo e justificável desvio que, embora nunca incentivado, não chega a comprometer a qualidade das leituras bem como a profundidade das argumentações teóricas em questão” (BUITONI; AZOUBEL, 2019, p. 9-10).

Quadro III – Referências citadas e listadas

NARRATIVAS FOTOJORNALISMO

REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS CÓDIGO CÓDIGO LISTADAS CITADAS LISTADAS CITADAS

CNI01 33 33 CFI01 25 24 CNI02 37 37 CFI02 09 09 CNI03 06 06 CFI03 17 17 CNI04 20 20 CFI04 08 08 CNII01 22 20 CFI05 20 19 CNII02 66 66 CFII01 11 10 CNII03 19 19 CFII02 16 16 CNII04 20 19 CFII03 10 10 CNII05 20 10 CFII04 18 16 ------CFII05 14 14 Total 243 230 Total 148 143 Média 27 25,55 Média 14,80 14,30 Fonte: Autoria própria.

Para investigar a hipótese estabelecida, segundo a qual livros assinados por homens são maioria entre as obras mais referenciadas; ao passo que artigos, outros materiais – como capítulos em coletâneas – e referências assinadas por mulheres são minoria, os quadros IV e V contêm a quantidade de citações por cada obra. Por isso, é preciso considerar que, ainda que uma autoria tenha tido três obras contabilizadas, seu nome virá depois do das autorias com uma obra listada/citada duplamente. Pois, mais do que a quantidade de obras por autora ou autor, estão em destaque os totais de citação. Para as demais ocorrências, como quando de autorias com o mesmo número de citações e obras, vale a ordem alfabética. Nas Coordenadas Narrativas, sete (63,63%) das autorias identificadas são de homens e quatro (36,36%) de mulheres. Igualmente, das 36 obras mais buscadas, dez (27,77%) são livros contra 26 (72,22%) classificados como outros. Em comparação, nas Coordenadas sobre Fotojornalismo, apenas duas (20%) das dez das autorias identificadas são de mulheres. Já das 25 obras mais buscadas, 14 (56%) são livros e 11 (44%) artigos publicados em periódicos5, anais de eventos e/ou coletâneas científicas, fatos que confirmam a predominância de livros apenas nesta coordenada. Pois, nas Narrativas, a predominância é de materiais classificados como outros. Em ambas, porém, destacam- se as obras assinadas por homens como referências buscadas para os estudos.

248 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Quadro IV – Referências Narrativas

AUTORIA OBRA TIPO CITAÇÃO Análise crítica da narrativa Dupla

Notícias do Fantástico Livro Luiz Gonzaga Motta Narrativas midiáticas (com Célia Ladeira Mota) Individual

Análise pragmática da narrativa jornalística Outro

Antropológica do espelho Dupla Muniz Sodré6 Livro Técnica de reportagem (com Maria Helena Fer- Individual rari) Antônio Fausto Neto7 Fragmentos de uma analítica da midiatização Outro

Beth Brait A personagem Dupla Livro O narrador: considerações sobra a obra de Niko- Walter Benjamin lai Leskov

A cobertura fotojornalística da II Guerra Mun- dial: novos modos de narrar os conflitos bélicos

A Grande Guerra (1914-18) representada pelas fotografias – representação e narração visual dos acontecimentos pelo jornalismo

As possibilidades da imagem digital Jorge Carlos Felz Ferreira Fotojornalismo na Web: atualização de alguns conceitos e usos a partir da análise das imagens fotojornalísticas disponíveis no UOL

Iphonephotography e a cobertura de guerra: no- vos paradigmas para o fotojornalismo moderno

Um mapeamento dos estudos sobre o fotojorna- lismo no Brasil (2002 – 2011) Outro Individual Modelo JDBD e o ciberjornalismo de quarta ge- ração

Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) - Um paradigma para produtos jornalísticos digi- tais dinâmicos

Jornalismo convergente e continuum multimídia Suzana Barbosa na quinta geração do jornalismo nas redes digi- tais

O paradigma ‘Jornalismo Digital em Base de Dados’: modos de narrar, formatos e visualização para conteúdo (com Vitor Torres) Produção horizontal e narrativas verticais: novos padrões para as narrativas jornalísticas (com Na- ara Normande e Yuri Almeida)

249 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Fotojornalismo na Compos: análise comparativa dos artigos científicos apresentados no Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Fotojornalismo na SBPJor: análise comparativa dos artigos científicos apresentados no Encon- tro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Diogo Azoubel Jornalismo-Parte I Fotojornalismo na SBPJor: análise comparativa dos artigos científicos apresentados no Encon- tro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo-Parte II

Fotojornalismo no Intercom: análise comparativa dos artigos científicos apresentados nos congres- sos regionais de 2010 a 2014 Outro “A taça do mundo é nossa”: as relações entre futebol, política e fotojornalismo na conquista da Copa do Mundo FIFA de 1970 A união do fotojornalismo e do humor como uma ferramenta de crítica ao regime militar brasileiro Individual Fabiana Aline Alves Fotojornalismo de capa: um panorama da ativi- dade nos jornais paranaenses durante o regime militar

Os rostos da censura: os ‘ventríloquos’ no foto- jornalismo durante o regime militar

Jornalismo literário: um gênero em expansão

Mapeamento da influência de Walter Benjamin nas pesquisas da SBPJor (2003-2012) Monica Martinez The Good Listeners − Joseph Mitchell e José Hamilton Ribeiro

Tradição e inovação em Jornalismo Literário Livro

Complicity and collusion in the mediation of Outro everyday life

Media and morality: on the rise of the mediapolis Roger Silverstone Livro Por que estudar a mídia? Regulation and the ethics of distance: distance Outro and the ethics of regulation

Fonte: Autoria própria.

250 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Ainda sobre o desequilíbrio em tais autorias, Beth Brait, Fabiana Aline Alves, Fotojornalismo na Compos: análise comparativa Monica Martinez e Suzana Barbosa, nas Narrativas; e Judith Butler e Marie-José dos artigos científicos apresentados no Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Mondzain no Fotojornalismo têm nesta oportunidade seus nomes destacados pela Pós-Graduação em Comunicação contínua contribuição às Ciências Sociais Aplicadas I, especialmente aos estudos Fotojornalismo na SBPJor: análise comparativa empreendidos na área de Comunicação e Informação, seja encabeçando reflexões, dos artigos científicos apresentados no Encon- orientando ou inspirando-os. tro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Diogo Azoubel Jornalismo-Parte I Quadro V – Referências Fotojornalismo Fotojornalismo na SBPJor: análise comparativa dos artigos científicos apresentados no Encon- AUTORIA OBRA TIPO CITAÇÕES tro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo La imagen compleja: la fenomenologia de las imá- Dupla da Associação Brasileira de Pesquisadores em genes en la era de la cultura visual Jornalismo-Parte II A forma do real: introdução aos estudos visuais olhar Livro Josep María Domènech complexo sobre a imagem Fotojornalismo no Intercom: análise comparativa Català dos artigos científicos apresentados nos congres- Viaje al centro de las imágenes Individual sos regionais de 2010 a 2014 Diálogos midiológicos. Por um olhar complexo sobre Outro Outro a imagem “A taça do mundo é nossa”: as relações entre futebol, política e fotojornalismo na conquista da Jorge Pedro Sousa Uma história crítica do fotojornalismo ocidental Dupla Copa do Mundo FIFA de 1970 At the heart of the State: the moral world of institu- Livro tions A união do fotojornalismo e do humor como uma ferramenta de crítica ao regime militar brasileiro Individual Another politics of life is possible. Theory, culture & society Fabiana Aline Alves Didier Fassin Fotojornalismo de capa: um panorama da ativi- Évaluer les vies: essai d’anthropologie biopolitique Outro dade nos jornais paranaenses durante o regime Souffrir par le social, gouverner par l’écoute: une militar configuration sémantique de l’action publique Photography and cinema Os rostos da censura: os ‘ventríloquos’ no foto- Livro jornalismo durante o regime militar David Campany The cinematic Ways of making pictures Outro Jornalismo literário: um gênero em expansão Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Mapeamento da influência de Walter Benjamin Problemas de gênero: feminismo e subversão da iden- Livro Judith Butler nas pesquisas da SBPJor (2003-2012) tidade Monica Martinez The Good Listeners − Joseph Mitchell e José Vida precária Outro Hamilton Ribeiro Journalists under fire: the psychological hazards of Individual Livro Anthony Feinstein covering war Tradição e inovação em Jornalismo Literário Livro A hazardous profession: war, journalists, and psycho- Complicity and collusion in the mediation of pathology (et. al.) Outro everyday life Ícones, instantaneidade e interpretação: por uma Outro pragmática da recepção pictórica na fotografia Media and morality: on the rise of the mediapolis Benjamim Picado Roger Silverstone Livro Olhar testemunhal e representação da ação na foto- Por que estudar a mídia? grafia O imaginário segundo a natureza Livro Regulation and the ethics of distance: distance Henri Cartier-Bresson Outro and the ethics of regulation Henri Cartier-Bresson (citações) Outro A imagem pode matar? Livro Marie-José Mondzain Nada, tudo, qualquer coisa. Ou a arte das imagens Outro como poder de transformação Cinema, vídeo, Godard Philippe Dubois Livro O ato fotográfico

Fonte: Adaptado de Buitoni; Azoubel, 2019. 251 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Finalmente, no que toca ao parâmetro e) titulação, das 12 autorias identificadas nas Coordenadas Narrativas oito (66,66%) detém doutorado, sendo quatro mulheres e quatro homens (33,33%, cada); um quarto (25%) possui doutorando em andamento, sendo uma mulher (8,33%) e dois homens (16,66%); e um homem (8,33%) mestrado em andamento. Nas Coordenadas sobre Fotojornalismo, por outro lado, 46,66% das 15 autorias possuem doutorado concluído, sendo seis mulheres (40%) e um homem (6,66%); pouco mais de um quarto (26,66%) possui doutorado em andamento, sendo duas mulheres e dois homens (13,33%, cada); uma mulher (6,66%) possui mestrado concluído; uma mulher e um homem possuem mestrado em andamento (13,33% ou 6,66% do total, cada); e uma mulher (6,66%) possui especialização. Desse fato desprende- se a maior abrangência do Fotojornalismo sobre as Narrativas no que toca à titulação, bem como se confirma a hipótese estabelecida, no sentido de que há predominância de doutoras(es) entre as autorias identificadas. Especificamente sobre a efetivação de pesquisas pós-doutorais, nas Narrativas elas são duas, sendo uma mulher e um homem (16,66% ou 8,33%, cada); em face de uma mulher (6,66%) no Fotojornalismo. Esse número, reconheço, é impreciso, uma vez que há notadamente outras autorias com pós-doutorado nos corpora analisados, embora essa informação não seja tão claramente traduzida nas notas de rodapé específicas das pesquisas. O mesmo vale para as experiências internacionais, seja durante o doutorado ou pós-doutorado: nas primeiras coordenadas elas são três (25%), duas mulheres e um homem, sendo a de uma delas (8,33%) durante o pós-doutorado e os demais durante o doutorado (16,66% ou 8,33%, cada); ao passo que nas segundas coordenadas ele é apenas uma (6,66% do total de 15), de um homem durante o doutorado.

Outras considerações e encaminhamentos Em vias de concluir essa argumentação para outros encaminhamentos, não é novidade que parte dos meus esforços como pesquisador tem sido para esmiuçar o perfil da produção científica em Comunicação e Informação no Brasil. Justo por isso, acredito que muito ainda precisa ser dito, especialmente sobre as especificidades deste tipo de mapa. Entretanto, uma coisa me parece clara: a ausência de estudos similares na nossa área. Do todo analisado, 19 pesquisas, apenas uma pesquisa se aproxima desta proposta e ela faz parte das Narrativas, sendo assinada por mim. Mas o que isso realmente significa? Que talvez estejamos repetindo alguns passos já dados por nossos pares. Embora a intenção seja avançar, creio que parte da energia produtiva pode se perder nessa investida. Com isso quero fazer crer que os estudos conduzidos à luz dos mesmos referenciais são dispensáveis? Não, absolutamente. Porém, considero que característica importante do povo brasileiro se perde quando os mesmos autores, geralmente homens, e livros são

252 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares acionados para tentar traduzir o mundo: a diversidade. Vozes outras, matizes diversos, metodologias inovadoras precisam encontrar meios para se fazer conhecer e reverberar. Traduzir nossas reflexões em números é, assim, uma forma de sinalizar a multiplicidade de outros caminhos a percorrer. Outro ponto que precisa ser considerado é que a quantidade de mulheres nos grupos analisados não se alinha proporcionalmente à quantidade de mulheres em nosso País. Embora elas sejam maioria no Fotojornalismo, são minoria nas Narrativas. Por que isso acontece? Existem motivos ou obstáculos que as impedem de avançar? Quais são eles e como se configuram? Tenho algumas hipóteses, de certo, e elas me levam a acreditar que essa questão precisa ser abordada minuciosamente em oportunidade vindoura. Finalmente, quero destacar a importância de iniciativas como a da Renami no sentido de trabalhar em prol do livre acesso ao conhecimento cientificamente estruturado. Em Pensar é resistir (no prelo) aponto alguns desafios a serem superados para aproximar ainda mais a academia do público geral. E um deles diz respeito precisamente ao encolhimento do mercado editorial de obras técnicas, científicas e profissionais em 40% nos dez anos mais recentes, de acordo com dados constantes em Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). A despeito dos custos envolvidos na produção, editar e compartilhar gratuitamente o livro que agora você tem diante dos seus olhos é trabalhar para alargar as vias de acesso ao que temos feito em nossos laboratórios, escritórios... em nossos lares. É ainda responder à sociedade com o que sabemos construir de melhor: respostas que se transmutam em novas perguntas para a expansão do conhecimento. Isso posto, só me resta agradecer pela sua leitura. Até a próxima!

Notas ______1 Uma professora de pós-graduação no Brasil, por exemplo, precisa minimamente deter o título de doutora para que possa orientar novas pesquisas de mestrado e/ou doutorado. 2 Que podem ser compostas. 3 Conforme consta na página oficial da Textual Comunicação na Internet. 4 Conforme constatado via leitura “linha a linha”. 5 Corrigindo o equívoco apresentado por Buitoni e Azoubel (2019, p. 11). 6 Além de Muniz Sodré, outras cinco autorias foram identificadas com três citações, nenhuma com citação dupla, entretanto. 7 Igualmente, além de Antônio Fausto Neto, Beth Brait e Walter Benjamin, outras 18 autorias foram identificadas com duas citações, nenhuma com citação dupla, entretanto.

253 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

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254 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

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255 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Corpus – Coordenadas sobre Fotojornalismo

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256 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

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CORPOREIDADE COMO ATO DE COMPLEXIDADE EM JORNALISMO

Mayara de Araújo

Entre o sujeito e o objeto, o corpo O corpo humano a que nos referimos neste artigo é, nas palavras Zumthor (2007, p.23), “a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo”, ou como traduz Santaella (2004), sintoma da cultura. Transforma-se pari passu às mudanças das sociedades que compõe e das mentalidades que o habitam. É organismo vivo, biológico, mas também agente de “esquemas de percepção, pensamento e ação” (BOURDIEU, 2011, p.90) e, portanto, corpo integrado (negando a fragmentação corpo/mente e razão/emoção, postulada pelo cartesianismo, o “paradigma simplificador” do Ocidente (MORIN, 2000)). É ainda corpo em relação, vinculado - político, social, cultural (e, portanto, igualmente apartado da perspectiva centralizadora e autosuficiente em que o enquadra o subjetivismo (BOURDIEU, 2011)). Daí que discutir o lugar do corpo na produção e no produto jornalísticos de maneira complexa demande, a priori, promover uma crítica ao dualismo objetividade/ subjetividade ainda presente no jornalismo enquanto conjunto de técnicas e forma de produção de conhecimento (MEDITSCH, 1998). Para Bourdieu (2011), a mais danosa das oposições impostas à ciência é justamente a que se estabelece entre objeto e sujeito, e, nesse sentido, critica tanto o objetivismo, preso “ao realismo da estrutura (...), fora da história do indivíduo e do grupo” (p.86) quanto o subjetivismo, “totalmente incapaz de dar conta da necessidade do mundo social” (p.87) porque privilegia e centraliza o sujeito, em detrimento das estruturas. Em consonância, Morin (2000) alerta para a necessidade de superação do paradigma cartesiano objetivista, que ora fragmenta os fenômenos para compreendê- los (disjunção), ora os limita a sínteses homogeneizantes (redução); e, ao mesmo tempo, defende a compreensão do humano como ser planetário e multidimensional, não sendo, portanto, autosuficiente/autocentrado - como o subjetivismo tende a sugerir. Tais críticas às extremidades dos polos objetivo/subjetivo são importantes para esse debate porque o lugar do corpo no jornalismo costuma situar-se também na esteira dessa oposição: do silêncio à centralidade. Historicamente, a adoção da objetividade no jornalismo é interpretada como estratégia de distinção do campo

258 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares em relação à literatura e política (COSTA, 2005; RIBEIRO, 2003), num contexto de esforço do jornalismo em se fazer reconhecer como profissão, numa sociedade urbana e capitalista (SCHUDSON, 2010). Nesse contexto, a subjetividade, sendo interpretada como parcialidade e dirigismo (BELTRÃO, 1976), torna-se elemento que se deva dosar/evitar (BELTRÃO, 1976; ROSSI, 1984). Do paradigma objetivado (fundado nos pensamentos cartesiano e positivista (MORIN, 2000; MEDINA, 2008)), ainda dominante, o jornalismo herda atitudes de silenciamento/distanciamento dos corpos no produto e no processo produtivo (ROSSI, 1984; BELTRÃO, 1976), incorporadas como habitus jornalístico (nas redações e em processos formativos do jornalista (BARROS FILHO; MARTINO, 2003; BIROLI, 2007)) e reforçadas pela lógica capitalista que orienta o mundo do trabalho (SCHUDSON, 2010; LELO, 2019;). Quando exibido, o corpo do repórter é mídia, performando o habitus de classe e da empresa jornalística diante das câmeras (SODRÉ, 1977). Quando implícito, no caso dos veículos impressos, é elemento ignorável dentro da lógica de produção massiva para um público idem (BELTRÃO, 1976). Com a eclosão do que Sarlo (2007) nomeia guinada subjetiva, a subjetividade jornalística passa a ser defendida como caminho de superação do paradigma objetivado, a partir da afetividade e do engajamento como elementos constituintes da práxis (FREITAS, 2018), pela via de um jornalismo humanizado/sensível (que tende à fronteira literária) ou cívico (que se enverga à política) (ARAUJO, 2018). Estimula-se, nesse sentido, a recuperação do eu nas narrativas (SERELLE, 2009) e nas práticas (BRUM, 2010), conferindo ao relato “o efeito de verdade, principalmente pelo testemunho, desvelando (...) filigranas do outro, que normalmente escapam à percepção objetiva” (SERELLE, 2009, p.34). Emergindo num movimento de crítica às práticas jornalísticas objetivadas (MAROCCO, 2017), os exercícios de subjetivação no jornalismo contemporâneo1 reivindicam a porção que cabe ao corpo humano na experiência – desde a gestação da pauta ao nascimento da reportagem (MEDINA, 2008, 2014; BRUM, 2010;). Por outro lado, ao valorizar a centralidade do sujeito, tais exercícios de subjetivação podem sugerir uma falsa impressão de autonomia integral do repórter (cuja atuação, em geral, depende de uma série de fatores: econômicos, logísticos e hierárquicos, já que se trata de um agente do campo jornalístico - célula de um corpo maior). No caso de redações convencionais e hegemônicas (nas quais ainda impera o primado da objetivação), por exemplo, apesar de experiências de subjetivação exigirem negociações entre repórteres e editores ou mesmo com a direção da empresa jornalística, tais práticas não necessariamente constituem revoluções ao habitus objetivado, já que, em geral, se manifestam em gênero e espaço previamente definidos (a reportagem) e com a função esperada de elevar/manter o status quo da empresa jornalística (perceptível no uso do jornalismo subjetivado/humanizado para angariar prêmios de reportagem (BIROLI, 2007; DIAS, 2014;)). No caso dos livros de repórter (MAROCCO, 2018), o maior tempo de produção e a liberdade editorial proporcionados

259 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares pelo suporte livro (e o processo produtivo que lhe é específico), garantem condições a essa valorização de sujeitos e, consequentemente, corpos. Partindo, portanto, de um lugar de crítica ao paradigma objetivado hegemônico, mas também à lógica dualista de superação do primado objetivado pelo subjetivado, propomos, neste ensaio, um olhar para uma terceira via, a partir do conceito de complexidade (MORIN, 2000, 2007;). Longe de sugerir a mera fusão sujeito-objeto ou de negá-los, o pensamento complexo aponta para uma leitura multidimensional, global e multicausal do mundo social. Sob essa perspectiva, perguntamo-nos, então, o que seria olhar para o corpo de maneira complexa em práticas e produtos jornalísticos, como o corpo se indicia? Como ambiente empírico de investigação, escolhemos o caderno especial im- presso Viúvas do Veneno (produto e processo produtivo), desenvolvido pelo jornalista Melquíades Júnior (pertencente à editoria de reportagem) e publicado no jornal cea- rense Diário do Nordeste. Veiculado entre os dias 17 e 20 de abril de 2013, o especial denuncia o impacto do uso de agrotóxicos no nordeste brasileiro, a partir de pesquisas científicas e de histórias de indignação e saudades dos que perderam familiares por envenenamento.

Corpo(s) e jornalismo(s) Segundo Santaella (2004), o corpo não é apenas portador de cultura e vítima das transformações culturais, mas é ele mesmo cultural2. Essa percepção se coaduna com o que Bourdieu (2011) denomina incorporação. Para o autor, o habitus (ou seja: o conjunto de práticas, estruturadas e estruturantes, produzido e reproduzido pelos agentes do campo) se manifesta não apenas nas coisas, mas nos corpos: são gestos, posturas, padrões vocais e de movimento, que tendem, de forma mais segura que todas as regras formais/explícitas, “a garantir a conformidade das práticas e sua constância” (p. 90). Pensando jornalismo como campo, constituem habitus jornalístico as muitas ações executadas espontaneamente por repórteres, editores, estagiários e demais profissionais que compõem o campo, não necessariamente impostas por normas explícitas, mas regularmente reproduzidas, aprendidas e disseminadas (BARROS FILHO; MARTINO, 2003). Desse modo, se “o habitus profissional é a matriz das práticas de todos os agentes que vivem e viveram nas mesmas condições sociais de existência profissional” (BOURDIEU, 2011, p. 111) e, portanto, orienta os modos de agir e perceber, é possível notar variações na forma como o campo jornalístico lida com os corpos, a depender do paradigma manifesto nas práticas (mais ou menos objetivado/subjetivado/complexo).

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Corpos no primado objetivado No campo jornalístico, o corpo ora é objeto da cobertura jornalística, ora é mídia - componente/meio de expressão da mensagem jornalística. No contexto dos mass-media e do primado objetivado, o corpo, como pauta, serve à exposição e identificação com o público, construindo e consolidando padrões (SODRÉ, 1977)3. É, por exemplo, significado e ressignificado em sessões de cultura e comportamento dos produtos jornalísticos, nas quais se estimulam a perseguição a padrões estéticos (GOLDENBERG, 2002)4, ou em programas policialescos e de entretenimento, fadado à superexposição e ao grotesco (SODRÉ, 2002). Como mídia, o corpo do repórter é discurso e, portanto, serve à lógica da empresa jornalística. Quando exibido, no caso do telejornalismo, é simulado e reproduzido serialmente no intuito de preservar a associação cartesiana dos ideais de objetividade/ imparcialidade à credibilidade/profissionalismo: deve, portanto, performar-se (ZUMTHOR, 2007) como corpo austero, polido e, ao mesmo tempo, familiar5. Nos veículos impressos, é um corpo ignorável e implícito, seja na materialidade da plataforma ou no processo produtivo6. Isto se evidencia no silenciamento em relação ao corpo em manuais de redação e livros de referência sobre a prática jornalística (BELTRÃO, 1976; ROSSI, 1984), em que se reforçam o primado objetivado. Neles, o repórter é “vaso comunicante” (como ironiza Medina (1988, p.143), em tom de crítica), “veículo servindo ao objetivo de transferir informação” (BELTRÃO, 1976, p.25) e parte silenciada da massa: no contexto de um jornalismo que, “de ofício, passa a profissão; de artesanato a indústria” (BELTRÃO, 1976, p. 13), a mensagem jornalística é considerada “trabalho de equipe, e não individual; o comunicador de massa é grupal” (p.49). Ou seja: se não há sequer a compreensão do jornalista como indivíduo, como pensá-lo enquanto corpo ativo, produtor de conhecimento a partir de estímulos cerebrais, sentidos, projeção de desejos e medos, e afetividade (MORIN, 2000)? Com a guinada subjetiva das ciências (SARLO, 2007), a centralização do corpo na pós-modernidade (SANTAELLA, 2004; GOLDENBERG, 2002), o fenômeno de convergência midiática possibilitado pela revolução e democratização das tecnologias de informação e comunicação (TICs) e a disseminação de experiências de subjetivação no jornalismo, esse lugar do corpo no campo jornalístico sofre e produz mudanças.

Corpos nas experiências de subjetivação Em um contexto de pulverização das sociedades, das mídias e do público (que passa de massivo a consumidor-produtor), o comunicador já não é necessariamente grupal (BELTRÃO, 1976). A partir das décadas de 70 e 80, ocorre o que Dines (1986) intitula “era da multidisciplina” (p.27), oposta à compartimentação de saberes, vigente nos anos 60. Segundo o autor: “Esta abertura externa da teoria jornalística

261 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares coincide com uma abertura interna, ética, moral e emocional” (DINES, 1986, p.27). Negando tanto o beletrismo quanto o tecnicismo positivista, Dines (1986) defende o caráter vocacional do jornalismo e propõe que, a partir de um diálogo interdisciplinar entre jornalismo, psicologia e educação, as habilidades subjetivas e sensoriais dos jornalistas sejam desenvolvidas “num treinamento que combine as teorias científicas com atitudes psicológicas fundamentais, como o incorformismo, a disponibilidade e o dinamismo intelectuais” (DINES, 1986, p.27). Nesse sentido, Dines (1986) se preocupa principalmente com os aspectos mentais, psicológicos e emocionais do repórter. Para ele, o jornalista, como “intermediário da sociedade” (DINES, 1986, p.118), atua, na relação com o leitor, como “um psicanalista com seu paciente, um marido com sua mulher, o pai com o seu filho” (p.118), daí afirmar que o treinamento profissional compreenda também “um cuidadoso preparo subjetivo e sensorial” (p.119), que prepare “‘o lado de dentro’ do futuro jornalista” (p.119). Por outro lado, além de componente da técnica, a valorização dos sujeitos (em mente e corpo) passa a ser também estimulada enquanto elemento do produto jornalístico, capaz de gerar valor agregado ao produto final (ainda segundo a lógica capitalista de produção, perceba). No âmbito do impresso, a valorização de grandes narrativas jornalísticas e de histórias sobre o cotidiano marginal dos centros urbanos, difundida em experimentações como o New Journalism norte-americano e o jornalismo de revista e a crônica no Brasil (COSTA, 2005; LIMA, 2009), impulsionou movimentos de personificação/humanização do jornalista e das fontes, como observa Marocco (2018, p.9):

Em sua autonomia de sujeito, que se desloca do modo de objetivação jornalística dos acontecimentos, o repórter demonstra que é possível agir às margens do jornalismo dominante; abre mão da clássica posição de distanciamento obtida com a “objetividade jornalística”, herdada do cientificismo, apresentando-se como um corpo que se coloca no lugar de emergência do acontecimento, se expõe à experiência, reconhece a alteridade e descreve suas sensações.

Nesse sentido, valoriza-se a entrevista presencial como ponto alto da apuração jornalística e do processo produtivo, e as histórias de vida das fontes em detrimento do jornalismo declaratório, que reduz e fragmenta a presença dos sujeitos em breves citações/sonoras. No audiovisual, a neotelevisão, “marcada pela co-autoria do produto noticioso” (CASETTI; ODIN, 1990 apud EVANGELISTA, 2015, p.46)7, busca aproximação com a audiência revelando os bastidores da notícia (a dinâmica dos corpos da redação através dos cenários de vidro) e investindo em programas de reportagens; além disso, incorpora ao habitus do agentes (repórteres e âncoras) performances de descontração, improviso e bom humor, condizentes com a disseminação do ‘ao vivo’ e da cultura de protagonismo do eu promovida pelas tecnologias digitais/convergentes (smartphones, mídias e redes sociais). No entanto, ainda que esse movimento de valorização da subjetividade tenha

262 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares ampliado o lugar da corporeidade8 no jornalismo, é importante apontar senões. Ocorre que do fenômeno de centralização dos sujeitos nas narrativas pode decorrer uma leitura enviesada do acontecimento, na qual se interpreta o todo a partir de uma única parte. Daschmann e Brosius (1999) afirmam que ‘exemplares’ (como chamam histórias particulares, narradas em produtos jornalísticos para ilustrar um fenômeno/ acontecimento, como o impacto do aumento da taxa de energia elétrica na população de determinada cidade) tendem a atrair o público pela vivacidade e persuasão, mas, sem o auxílio de informações contextuais e objetivas (a que chamam base-rate information), não são suficientes para a compreensão da informação. Para os autores, é importante ressaltar que: “A seleção de exemplares é controlada pelas impressões subjetivas do jornalista, que está procurando ressaltar certos aspectos de uma questão, o que significa que eles não podem necessariamente ser generalizados” [tradução nossa] (DASHMANN; BROSIUS, 1999, p.36). Além de questões relativas ao produto jornalístico e à técnica, o corpo do repórter também retoma relevância em debates sobre o mundo do trabalho (MICK; LIMA, 2013; LIMA, 2018; LELO, 2019): denunciado como corpo exausto, marcado pela precarização, e explorado/objetificado, principalmente no caso dos corpos das trabalhadoras, mais suscetíveis a assédios morais e sexuais - herança abominável do machismo estrutural e patriarcalismo ainda hegemônicos. Traçando, daqui em diante, um caminho desviante dos pólos (que, no entanto, não deixe de atravessá-los), o que seria olhar para o corpo de maneira complexa?

Complexidade como teoria e método Nos elementos conceituais do pensamento complexo, formulado por Morin (2000; 2007; 2015), e em autoras que articulam corpo e jornalismo de maneira complexa (MEDINA, 2008, 2014; BRUM, 2010; MAROCCO, 2018), buscamos pistas pensar o lugar da corporeidade na práxis e no produto jornalísticos. Segundo Morin, o paradigma da complexidade constitui-se uma alternativa à simplificação (legada do cartesianismo e do positivismo), que reduz o universo à determinação de leis rígidas e o conhecimento àquilo que pode ser mensurado e quantificado, de maneira racional. O pensamento complexo se coloca não como solução, mas palavra-problema (MORIN, 2007), desafio de religação de saberes e fenômenos ora compartimentados, a partir da mobilização de princípios, como: multicausalidade (operador recursivo), globalidade (operador hologramático) e multidimensionalidade (operador dialógico). Postula a complexidade: “O todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras; e certas qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições provenientes do todo” (MORIN, 2000, p. 37). Assim, propõe que se percebam os fenômenos como um composto de múltiplas partes/dimensões (multidimensionalidade ou operador

263 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares dialógico)9, produtos e produtoras de ações e negociações, que são causa e efeito de novos fenômenos (multicausalidade ou operador recursivo). E que, para compreender cada uma dessas dimensões, é preciso, no entanto, em vez de fragmentá-las, uni-las (globalidade ou operador hologramático): “O global é (...) o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo organizacional. (...) O planeta Terra é mais do que um contexto: é o todo ao mesmo tempo organizador e desorganizador de que fazemos parte” (MORIN, 2000, p. 37). A religação de saberes e fenômenos defendida por Morin convida necessariamente a religar o corpo, por ele entendido como parte da vida auto-eco-organizada (MORIN, 2015). Sob a perspectiva da complexidade, o corpo é genos e fenon: em genos, “existe a memória informacional inscrita no DNA; a manutenção das invariâncias hereditárias” (MORIN, 2015, p.135); em fenon, “as atividades produtoras, as interações com o ambiente, a sensibilidade, o comportamento” (p.135). Da genética, manifesta-se a repetição, a estrutura; do fenomênico, a individualidade, a metamorfose - ambos complementares, integrados. Articulando teoria e método, acreditamos que dialogar esse conceito de corpo com o campo do jornalismo é pensar esse corpo complexo como objeto da cobertura jornalística e como mídia. Entendendo-o, portanto, como componente fluido do produto jornalístico e do processo, atuante tanto em função da precisão jornalística (da objetivação10) quanto da abstração, da criatividade e da afetividade - aspectos subjetivos também constituintes do humano. Assumindo-o ainda como corpo em relação, em comunidade: não apenas biológico, mas político, econômico, social, cultural. E que não apenas sofre com as transformações dessas dimensões, mas que também as causa. Abordando a relação corpo-jornalismo, Medina (2008), Marocco (2018) e Brum (2010) dão pistas do que seria essa corporeidade complexa em jornalismo. Medina (2008), destacando o conceito de analfabetismo afetivo de Luis Carlos Restrepo, alerta que a presença do corpo vivo na pauta demanda todos os sentidos:

Para Restrepo, olhamos o que queremos com um distanciamento sujeito-objeto e ouvimos o que nos interessa, caso típico das declarações de fontes jornalísticas. O autor adverte, no entanto, que são os sentidos do olfato, do tato e do paladar que, com a visão e a audição, promovem-nos a seres humanos em relação. (MEDINA, 2008, p. 48)

Em consonância, Marocco (2018, p.11) afirma: “Não interessa ouvir somente declarações das fontes para cumprir a pauta, mas fazer funcionar os sentidos do tato, da visão, da audição em uma relação de cognição afetiva entre seres humanos”. Do mesmo modo, ao refletir sobre os bastidores da experiência prática, Brum (2010) e seu prefaciador Caco Barcellos deixam marcas de como os sentidos corporais perpassam as

264 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares múltiplas dimensões do ‘bom jornalismo’. Define Barcellos (apud Brum, 2010, p.11): “reportagem é a arte da escuta”. Para o autor, o maior privilégio dos repórteres é “o de ver primeiro, o de entrar nas casas, o de ouvir narrativas de vidas, do parto à vivência da morte” [grifo nosso] (p.11). Brum (2010, p.14), por sua vez, assim descreve sua prática:

Exerço jornalismo sentindo em cada vértebra o peso da responsabilidade de registrar a história do presente (...). Por isso, exerço com rigor, em busca da precisão e com respeito à palavra exata. Mas também com a certeza de que a realidade é complexa e composta não apenas de palavras. É feita de texturas, cheiros, nuances e silêncios. Na apuração das minhas matérias, busco dar ao leitor o máximo dessa riqueza do real, para que ele possa estar onde eu estive e fazer suas próprias escolhas.

A autora transporta, portanto, a corporeidade a uma dimensão política/ontológica: o peso da responsabilidade (social, ética, política) é sentido nas vértebras - o que nos remete aos debates sobre o impacto da precarização do trabalho à saúde física e mental dos jornalistas (LIMA, 2018; LELO, 2019). Esse mesmo peso, sentido no corpo, impulsiona a jornalista à objetivação (‘palavra exata’), mas também à complexidade, descrita pela repórter como a valorização de cheiros, texturas, etc. Essa visão complexa, então, garante ao material riqueza do real (elemento que também tende à objetivação (ARAÚJO, 2018)) e transporte do leitor ao acontecimento. Longe de simplesmente assumi-las como fórmulas prontas de corporeidade em jornalismo, acreditamos que as reflexões das autoras/do prefaciador apontam caminhos: para elas/ele, o corpo do repórter precisa estar presente, física e emocionalmente, com a sua história própria (suas invariâncias (MORIN, 2015)), mas também com sua capacidade metamórfica (MORIN, 2015). Essa presença se manifesta nos sentidos todos, não apenas na audição, na fala e na visão. E, por revelar-se no contato com o outro, o corpo precisa estar em todo o processo produtivo: desde a seleção de fontes, durante a produção, até o desenvolvimento do conteúdo (incorporando ao material o encontro com o público), passando pelo ponto alto da manifestação do corpo: a apuração, momento de manifestação do signo da relação e do diálogo possível (MEDINA, 2014). Já a fonte, mais do que provedora de citações, é corpo presente e que, portanto, deve ser percebida e traduzida não apenas a partir das palavras ditas, mas também por ações, gestos, cheiros, olhares, entonações. Como corpo que performa (ZUMTHOR, 2007), tanto quanto o do jornalista, revelando um saber-ser11 e, assim como o repórter, capaz de transmutar-se no ato da entrevista. Importante ainda evidenciar que, segundo Medina (2008) e Brum (2010), estimular a corporeidade na prática jornalística implica também rigor e domínio técnico, destacando, nesse sentido, a complementaridade objetivação-subjetivação (ARAÚJO, 2018).

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Adiante, para percebermos como essas marcas de corporeidade se evidenciam ou não no produto jornalístico, analisemos a reportagem “Depois de três meses no canavial, são apenas três meses no hospital”, publicada no segundo dia do especial impresso Viúvas do Veneno. Nela buscamos indícios em marcas textuais (termos, expressões e metáforas que remetam ao universo semântico do corpo) e no processo produtivo, a partir de entrevistas com o repórter Melquíades Júnior, autor do material. Acreditamos que a análise empírica (ainda que breve) ajude a ilustrar o debate teórico- metodológico que vem sendo construído até aqui.

A saga de Luiz do Capim de Cheiro Publicado pelo jornal cearense Diário do Nordeste entre os dias 17 e 20 de abril de 2013, o especial impresso Viúvas do Veneno denuncia o impacto do uso de agrotóxicos no nordeste brasileiro, a partir de pesquisas científicas (exploradas em matérias publicadas nas páginas pares do jornal) e da narração de histórias de viúvas (e um viúvo) que perderam maridos (e esposa) em função do contato com venenos agrícolas12, publicadas nas páginas ímpares. A maior parte da apuração é originária de 15 dias de viagem com uma equipe de cinco pessoas (repórter, fotógrafa, motorista, além de repórter e cinegrafista da TV Diário, emissora do grupo empresarial a que pertence o Diário do Nordeste, destacada para fazer matéria sobre o mesmo tema). Juntas, percorreram mais de seis mil quilômetros entre Pernambuco, Ceará, Paraíba e Bahia, entrevistando, além das viúvas e viúvo, pesquisadores de universidades e centros de estudos toxicológicos - como o Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O trabalho de produção do caderno, no entanto, tem início uma década antes, em pesquisas paralelas e cultivo de fontes por parte do jornalista Melquíades Júnior (35 anos, formado em Ciências Sociais e Jornalismo, e natural da cidade cearense Limoeiro do Norte (no Vale do Jaguaribe), região estratégica para a produção fruticultora do Nordeste). A reportagem que analisamos, “Depois de três meses no canavial, são apenas três meses no hospital”, foi publicada em 19 de abril, no segundo dia do especial. Nela, narra-se a história de Luiz da Silva, 37 anos, morador de Capim de Cheiro, comunidade rural em Caaporã, na Paraíba (PB). O agricultor sente fortes dores durante o trabalho na lavoura de cana-de-açúcar e é diagnosticado com osteossarcoma (tumor ósseo maligno). Falece após apenas três meses de tratamento. Para contar a saga de Luiz, da descoberta ao período da doença, a equipe de reportagem se desloca à comunidade e ali ouve Dona Francisca, Sueli e Suênia, respectivamente mãe, esposa e filha de Luiz, e colegas do agricultor, moradores de Capim de Cheiro.

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Figura 1 - Reportagem publicada em 19 de abril

Fonte: Diário do Nordeste, 2013

Sendo o impacto dos agrotóxicos na saúde dos trabalhadores e das comunidades o tema central das reportagens, não surpreende que o corpo seja elemento frequente nas narrativas. Nesta que destacamos, até mesmo a introdução do protagonista é feita mediante sua relação com o corpo: “...é com um tombo, durante uma das sessões de pulverização de agrotóxicos para livrar o canavial da praga da cigarrinha que Luiz da Silva, 37 anos, sente fortes dores na perna” (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3). No texto, a corporeidade é vivificada sobretudo através de dois recursos: as descrições pormenorizadas e a presentificação da memória a partir dos verbos no presente. Tais elementos se manifestam do segundo ao sétimo parágrafos, demarcados pelos subtítulos “Dor forte” e “Quimioterapia”: “a perna direita dá quase duas da esquerda” (p.3), “Com a perna inchada e pesando muito, Luiz anda em cadeira de rodas. Na ousadia, arrisca 267 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares alguns passos de muletas” (p.3), “Ela vê o pai aumentar mais de 20 quilos, ficar careca” (p.3). E demarca-se ainda na via crucis do corpo, propriamente, assim descrita: “O caroço aparece na perna, espalha-se para o peito, depois as costas e, por fim, o braço direito, segundo membro a ser amputado” (p.3). Além desses trechos, o uso dos verbos no presente também se manifesta quando o repórter se põe narrador onipresente para tentar traduzir a dor da filha de Luiz:

Em casa, a companhia do pai cadeirante é Suênia, a filha de 7 anos. Ela vê o pai aumentar mais de 20 quilos, ficar careca, ficar triste e receber dela muitos beijos na cabeça careca. Pendura-se na sua cadeira, fazendo escalada de uma roda para outra. “Eles ficaram muito mais próximos depois que ele adoeceu”, conta Sueli (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3).

A informação aspeada ao final da narração, indica que a onipresença do jornalista está ancorada em um real co-construído (MOTTA, 2013) com Sueli, sendo fruto da entrevista com a viúva. Outras revelações sensíveis do texto também se originam da relação empática estabelecida entre eles. Melquíades vale-se de um recurso de onisciência para dizer: “Suênia, a criança da casa, chora na escola, no quintal... Ouve o pai gritando em dor e corre para fora. Finge brincar com a boneca de tanto não saber o que fazer com aquele sentimento tão novo e difícil” (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3). Como o repórter teria acesso a essas informações, ancoradas no real, senão através de uma apuração orientada para traduzir as dores da filha? Sobre isso, Melquíades afirma: “Eu estava muito seguro do que estava colocando ali porque tive tempo de envolvimento, de estar com a mãe e a filha, de testemunhar. Eram as minhas palavras, mas havia muito do outro nelas (...)” (informação verbal)13. O repórter, portanto, vincula o uso dos recursos literários de onipresença e onisciência do narrador (marcas de autoria e criação (MEDINA, 2014; MAROCCO, 2018)) ao tempo de envolvimento com a fonte, fazendo da sua presença no ato da apuração o pressuposto que lhe permite incorporar as falas das fontes à sua (performar a fonte), com a segurança de estar agindo eticamente. Outro aspecto particular da narrativa de Luiz é a sua relação com o trabalho. No quarto parágrafo, Melquíades mescla seu discurso ao do agricultor para reportar uma dor para além da sentida no corpo físico: “O agricultor tem a perna amputada, mas a primeira amputação de quem trabalha desde criança e acorda com o canto dos galos é não poder trabalhar (...). Sente-se inválido antes de ficar inválido” (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3). Em artigo sobre trabalhadores aposentados por invalidez, Borsoi (1999) atribui o considerável impacto psicológico desse tipo de aposentadoria por, em geral, tomar o trabalhador de assalto, interrompendo um projeto de vida e “obrigando-o a rever sua percepção de vida, saúde, trabalho (...) e forçando-o a buscar novos modelos de construção de vínculos sociais e afetivos” (p.127). Outra particularidade são as

268 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares sequelas físicas visíveis, que, no caso de Luiz, estão expressas na perna amputada e na cadeira de rodas. Segundo a pesquisadora, tais mudanças “obrigam o trabalhador a construir nova representação do próprio corpo” (BORSOI, 1999, p.127) e, muitas vezes, este trabalhador acaba por construir uma imagem desacreditada de si mesmo. As frustrações do Luiz-trabalhador, no entanto, não estão centradas nele mesmo. No subtítulo “Chuva de veneno”, o repórter amplia o corpo do indivíduo ao corpo coletivo de Capim de Cheiro, adotando uma perspectiva multidimensional (MORIN, 2007). Nes- se subtítulo, temores e insatisfações de uma comunidade “fornecedora de homens para trabalhar nos canaviais” (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3), materializados nos sinais da fauna e da flora (os pássaros mortos depois da passagem do avião da pulveriza- ção e as plantas que já não florescem) e no testemunho de outros trabalhadores14, ganham contornos de uma problemática global, narrada a partir do repertório informal das fontes: “‘Aqui era cheio de passarinho. Nem tem mais. Antes era cheio de beija-flor. Mas cadê as flores?’”(MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3). Podemos interpretar essa orientação do texto - que migra da relação de Luiz com o próprio corpo, atravessa a construção identi- tária/psicológica com o trabalho e chega ao ecossistema da comunidade – como uma visada complexa do repórter, que percebe Luiz como parte íntegra, mas pertencente a um todo. Luiz é um ser em relação com – a família, o trabalho, a comunidade.

Guerreiros meninos: o fim do começo “Guerreiros são pessoas / são fortes, são frágeis (...) / Seu sonho é sua vida / e a vida é trabalho / e sem o seu trabalho / um homem não tem honra / e sem a sua honra / se morre, se mata” (GONZAGUINHA, 1983)15. A história de Luiz nos recorda o guerreiro- menino de Gonzaguinha, retrato do homem brasileiro médio, trabalhador rural e urbano, que tanto inspirou o cantor carioca. O homem da canção não se fragmenta: sonho, vida, trabalho e honra se integram, um é causa e efeito do outro. É esse o desafio que a complexidade – palavra-problema de Morin – lança e assume: retratar o humano ao mesmo tempo múltiplo e uno. O debate aqui iniciado ajuda a recortar uma primeira silhueta das categorias articuladas (corpo, corporeidade, jornalismo, complexidade), que nos direciona às seguintes afirmativas: práticas jornalísticas que intentam enxergar o corpo de maneira complexa priorizam fontes disponíveis para entrevistas presenciais e a presença do jornalista no acontecimento. Selecionam suas fontes pelo que elas têm a dizer, fazer e sentir (ampliam-se também, portanto, os atributos das fontes). Revisam, ainda, o próprio conceito de acontecimento, dando relevo ao corpo para além da dimensão física/biológica. As histórias de vida não devem ser lidas como narrativas isoladas, mas como corpo em relação: representações de um todo - político, social, cultural. Na análise empírica brevemente empreendida, percebe-se a recorrência de algumas marcas de complexidade anteriormente apontadas: as personagens (Luiz,

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Suênia, Sueli) são apresentadas como corpo biológico, psíquico, emocional. E são ali retratados com liberdade de autoria autorizada pelo encontro repórter-fonte, no ato da apuração. O corpo do agricultor, que se amplifica na família e na comunidade, também indicia essa complexidade. Quanto ao corpo do jornalista, ainda que implícito na materialidade do texto, aparenta afeto e envolvido no processo produtivo, pelo que as entrevistas nos indicaram. Por outro lado, analisando o contexto do produto jornalístico, Viúvas do Veneno ainda se trata de um espaço diferenciado quando comparado a produções diárias do jornal: com maior tempo de produção, espaço para o conteúdo e orçamento. Acreditamos poder falar em um habitus da reportagem especial, com condições e, portanto, condutas específicas. Mas seriam a leitura complexa do corpo e a valorização da presença corporal do repórter e da fonte práticas restritas a esse habitus da reportagem? Ou é possível que muitos desses atos de complexidade sejam espontaneamente incorporados também no cotidiano das notícias diárias? Aliás, que transformações essa visada complexa ao corpo demandaria, de fato, ao campo jornalístico? Tempo, espaço, logística, orçamento, cultura? E, na ordem do acontecimento, é possível pensar em pautas exijam mais essa potência da corporeidade, elencando assim circunstâncias prioritárias de presença do repórter? Por enquanto, logo se vê que há, sobre o tema, mais perguntas do que respostas, que aqui elencamos a guisa de sugerir pesquisas futuras (nossas ou de outros pesquisadores).

Notas ______1 Marocco (2017) afirma que o jornalismo se constitui a partir de mecanismos objetivados de controle “que dão consistência e limites ao campo discursivo e aos sujeitos que nele atuam e por ele são afetados”. A crítica a essa lógica, portanto, “afeta o modo de objetivação jornalística da realidade”. Para a autora, essa resistência (a que chamamos no texto de exercícios de subjetivação) se manifesta nos livros de repórter. Também se poderiam enquadrar como exercícios de subjetivação as narrativas da contemporaneidade, de Medina (2014), ou quaisquer produtos e produções jornalísticas com presença massiva de indícios de subjetivação (ARAUJO, 2018). Assim os nomeamos porque, apesar dos movimentos relevantes em função da valorização dos sujeitos nos produtos e processos jornalísticos, acreditamos não ser possível ainda falar em paradigma subjetivado (termo que sugere conjunto consolidado/consistente de visões de mundo). 2 “Diferentemente dos sintomas do século XIX, que se davam no corpo, que marcavam o corpo, gradativamente esses sintomas foram crescendo até tomar o corpo ele mesmo como sintoma da cultura” (SANTAELLA, 2004, p.139). 3 Segundo Sodré (1977, p.55), a forma televisiva, situada na cultura de massa, “simula operacionalmente o mundo ou - talvez seja melhor dizer - os ‘modelos’ atuantes do mundo”. Assim, “arte, gesto, roupa, informação, livro, comunicação - tudo isso pode

270 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares ser reproduzido, duplicado, repetido serialmente ad infinitum por subsistemas técnicos variados (...)” (p.55). 4 Goldenberg (2002) afirma que a popularização do corpo pela mídia gerou novas imposições, dessa vez de padrões estéticos: “Um corpo que, apesar de aparentemente mais livre por sua (...) exposição pública, é, na verdade, muito mais constrangido por regras sociais interiorizadas pelos seus portadores” (p.38). 5 “É preciso que o rosto televisionado seja suficientemente tranquilo ou apaziguado para ser bem recebido” (SODRÉ, 1977, p.63). Em referência ao padrão Cid Moreira de apresentador (“quarentão de cabelos grisalhos e bem cuidados, voz empoderada” (p.65)), Sodré observa: “Ele fala como deveria falar alguém bem colocado na vida e capaz de ser um bom ‘chefe de família’. Propicia, assim, uma enorme identificação com o público telespectador, especialmente do sexo masculino” (p.65). 6 Ao pesquisar sobre corpo e jornalismo em repositórios acadêmicos, observamos a abundância de estudos relativos à plataforma televisiva (padrões corporais e vocais, vestimentas e posturas de telejornalistas) em detrimento de outras mídias, como rádio, impresso e internet - o que reforça, até no âmbito da formação acadêmica, a relevância do corpo associada à exibição (nesse sentido, o apagamento mais radical seria o do corpo do profissional de jornal impresso). 7 “Além do apelo sentimental, a “nova televisão” reduz a fronteira entre emissão e recepção e assim como as estratégias de protagonização do leitor, ressaltadas por Fausto Neto (2008), a interação é marcada pela co-autoria do produto noticioso. Desta forma, se abole “a separação entre espaço de produção e espaço de recepção” (CASTELLI; ODIN, 1990, p.19). 8 Adotamos corporeidade como termo capaz de traduzir o corpo para além de sua dimensão física/biológica, mas também psíquica, afetiva, histórica, política e cultural (JOÃO; BRITO, 2004). 9 “(...) o ser humano é, ao mesmo tempo, biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A sociedade comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa” (MORIN, 2000, p. 38). 10 No sentido da objetividade possível, apontada por Japiassú (apud AMARAL, 1996); e de atos que tendem à síntese, precisão e estruturação da informação (ARAUJO, 2018). Nomeamos como objetivação pela vinculação à prática/ação/conduta, já que objetividade sugere conceito/teoria. 11 Zumthor (2007) sobre performance: “É um saber que implica e comanda uma presença e uma conduta, (...) uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (p.31). 12 As histórias contadas nos cadernos são de: Maria e Valderi (retratado na reportagem “Abraçado comigo ‘Rodrigue’ dizia: ‘Mãinha, não me deixe morrer’”); Helena e Liberato (“‘Eu Ainda penso que ele vai voltar’, diz esposa de agricultor”); Sueli e Luiz (“Depois de três meses no canavial, são apenas três meses no hospital”); Gerlene e Vanderlei (“Da morte silenciosa aos gritos nas evidências e saudades de Vanderlei”) e Marizaldo, viúvo

271 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de Rosália (“O destino cruel de Rosália, Aldo, Maycon, Pedro, Sueli...”), que lavava as roupas do marido (conhecido como “o Rei do Tomate”), sujas de veneno. 13 Entrevista concedida por MELQUÍADES JÚNIOR, Antônio. Entrevista I. [jan. 2018]. Entrevistadora: Mayara de Araújo. Fortaleza, 2018. 1 arquivo .mp3 (117 min.). 14 “Outro amigo é Hamilton: ‘passei muito mal com o veneno, umas tonturas, chega o corpo ficava mais pesado. Aí, deixei a empresa. Antes, eu mexia com todo tipo de veneno, dos mais fortes. Hoje, se eu sentir um cheiro de um ‘fraquinho’, já me dá dor de cabeça’” (MELQUÍADES JÚNIOR, 19/04/2013, p.3). 15 GONZAGUINHA. Guerreiro Menino. São Bernardo do Campo: EMI Odeon: 1983. LP/CD (41 min).

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274 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

NARRATIVAS DO VIAJAR E DO SER VIAJANTE EM LIVROS-REPORTAGEM DE ESTUDANTES DE JORNALISMO

José Carlos Fernandes Myrian Del Vecchio-Lima

Viagens em relatos experimentais Um dos mais importantes ritos de passagem acadêmicos é o da produção do chamado Trabalho de Conclusão de Curso, o TCC. Nos cursos de Comunicação e nos cursos de Jornalismo, o TCC pode se constituir como monografia ou produto jornalístico, ou ainda podem ser exigidas as duas modalidades. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), os concluintes optam entre uma monografia ou um produto acompanhado de um memorial teórico. Ao examinar os TCCs produzidos a partir dos anos 2000, percebemos uma grande quantidade de produtos narrativos que podem ser enquadrados como “livro-reportagem” (LIMA, 2004; MARTINEZ, 2012; BELO, 2006). Dentre eles, encontram-se aqueles que Lima (2004, p. 58), pioneiro na área no Brasil, classificaria como “livros-reportagem de viagem”. Diante de todo o acervo que os viajantes, desde tempos distantes, como Marco Polo, produziram como relatos de suas aventuras, Monica Martinez (2012, p. 2) pergunta sobre o tema viagem, para ela ainda pouco estudado pelo jornalismo: “Seria possível estabelecer a continuidade destas narrativas entre a literatura e o jornalismo?” É justamente nos livros-reportagem que flertam com os recursos literários que as narrativas de viagem poderiam encontrar um espaço jornalístico mais envolvente, no qual se misturem a credibilidade do relato e dos fatos e pessoas encontrados pelo meio do caminho, com a linguagem da literatura que encanta o leitor, transportando-o para a sensação do romance, da crônica ou da aventura on the road. Martinez destaca que “embora os relatos de aventuras em terras distantes sejam os mais conhecidos, convém lembrar que o mergulho em comunidades próximas feito por etnólogos, antropólogos e jornalistas, também pode ser compreendido como parte desta modalidade de narrativa” (MARTINEZ, 2012, p. 39). E salienta os exemplos das expedições da série Urbenauta, que o jornalista curitibano Eduardo Fenianos empreendeu na capital paulista (FENIANOS, 2002) e, no âmbito dos estudos de comunicação, o norte-

275 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares americano Robert Park (1864-1944). A partir de tais entendimentos, este capítulo busca revisar, de forma breve, a literatura sobre o assunto, apontando algumas das obras que precederam e influenciaram a vigorosa produção contemporânea de narrativas de viagem. Extrapolamos as definições sobre a temática, quando, em um segundo momento, decidimos lançar um olhar mais interpretativo sobre oito livros-reportagem produzidos por estudantes de Jornalismo (à época), que teceram narrativas sobre diferentes formas de viajar ou de ser viajante em produções finais de curso. Entendemos que o repertório manifesto pelos estudantes em TCCs sobre as narrativas de viagem (MARTINEZ, 2012) se desenvolveram “em camadas”, ao longo da sua formação, agregando elementos oriundos da história (POLO, 1982), da literatura (THEROUX, 2010), do jornalismo (TALESE, 2000), do turismo (FIGUEIREDO, 2010). E as diferentes formas de contar a experiência do “viajar” e do ser “viajante” se manifestam por meio de “guarda- chuvas” como a grande reportagem e o jornalismo literário (LIMA, 2004; SOLOMON, 2018), modalidades selecionadas para este trabalho. No gênero jornalístico-literário, a viagem serve de pretexto para explorar metaforicamente “outras viagens”, que não raro se sobrepõem às narrativas convencionais, nascidas da reportagem. De modo que no material analisado são múltiplas as possibilidades de condução das histórias. O tom e afinação dos textos podem se ocupar, por exemplo, de questões próprias da memória, da viagem como busca de identidade, da viagem ao que está perto (MAISTRE, 1989), das interfaces com o idílio, a epopeia e a ensaística (AGEE; EVANS, 2009) ou da flânerie (BAUDELAIRE, 1996), expressa na observação e imersão dos movimentos urbanos. Para traduzir o que os alunos entendem por viagem – e o que querem dizer quando decidem transitar nesse campo –, escolhemos livros produzidos por alunos de Jornalismo da UFPR entre 2007 e 2019, tendo como um dos critérios de escolha terem sido trabalhos orientados pelos autores deste capítulo. Tal conjunto de narrativas – ainda que diminuto – nos permite explorar outra questão: de que modo os alunos utilizam a produção de narrativas de viagens como expressão do rito de passagem da vida estudantil para a vida profissional, em busca da realização de um ideário do que seja um jornalista, utilizando-se de um percurso ainda livre das ingerências de mercado. Realizamos entrevistas breves com os autores, hoje jornalistas profissionais – apenas três perguntas –, para investigar se a escolha do livro sinalizava um imaginário sobre a profissão; e se a produção de um livro-reportagem de viagem teve alguma influência nas escolhas posteriores da carreira. Em conjunto com as entrevistas, analisamos alguns aspectos das próprias obras, que permitiram responder questões como: 1) Com qual tradição cultural de narrativa de viagem o livro produzido dialoga – literatura beatnik, crônica urbana, grande reportagem, etc ?; 2) Qual o papel do

276 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares narrador-jornalista na obra?; 3) Como se deu a eleição do espaço da “viagem” e os sentidos dados a cada cartografia?; 4) Quais as ênfases técnicas e poéticas permitidas pela experiência?. Tais questões funcionam como categorias de análise, previamente definidas, à moda de Bardin (2011), e são abordadas aqui de forma diluída. Evidencia-se ainda uma experiência prévia de observação participante (BARROS; DUARTE, 2006), por se tratar de textos que foram supervisionados pelos autores deste capítulo, no papel de orientadores. Em suma, em um percurso baseado numa experiência autoral experimental, marcada por um direcionamento didático- pedagógico por se realizar no âmbito do ensino de jornalismo, busca-se verificar o imaginário sobre narrativas de viagem de jovens (ainda) universitários.

Das viagens no jornalismo e na literatura Diferentes percursos são possíveis quanto o tema de uma narrativa é a viagem, tomada em seu sentido físico, a partir do deslocamento de um corpo de um ponto a outro do planeta, ou de um bairro a outro da cidade. Estes deslocamentos podem ser vivenciados pelo autor de uma narrativa ou narrados pela experiência do outro a quem o autor dá voz, com vastos movimentos temporais que abrangem as memórias do passado, as aventuras do presente ou as ficções do futuro. Espacialmente, as possibilidades vão de lugares previsíveis e cotidianos aos inusitados, desconhecidos. Mais amplas podem ser as trajetórias de deslocamentos da mente, do espírito e do intelecto, livres ou induzidas, que permitem viagens subjetivas por meio da experiência interior, a exemplo daquele tapetinho de yoga, em que estava escrito: “Para fazer viagens imóveis”. Ao relacionar viajantes com a literatura, Figueiredo (2010) destaca o herói mítico da Odisseia, Ulisses, com “sua propensão à viagem e à aventura” (p. 165). O personagem pode ser considerado o viajante primordial nas narrativas épicas. Na mesma seara cita Phileas Fogg, de Julio Verne, com a exemplar ficção científica A volta ao mundo em 80 dias, em que a motivação da viagem era a de cumprir e vencer um desafio. O autor chega a Sal Paradise, personagem de Jack Kerouac, com suas narrativas de deslocamentos on the road marcadas pela errância e vagabundagem, que influenciam gerações deliciadas pelo “se deixar levar” sem rumo pelos caminhos embalados por drogas e rock and roll, estilo que migrou para o cinema e seriados de TV. Antes, Figueiredo (2010) passa pelos clássicos da literatura infanto-juvenil, com Gulliver e suas viagens fantásticas por terras liliputianas; e à ilha, ponto de chegada do viajante náufrago Robinson Crusoe. E como esquecer de Arthur Gordon Pyn, o jovem louco por viagens de Edgar Alan Poe? O percurso abrange o flanar pelas ruas das metrópoles, as experiências subjetivas movidas por substâncias psicoativas ou as vivências existencialistas e revisões de vida propiciadas por episódios políticos, sociais, urbanos, naturais. O imenso conjunto de narrativas literárias de viagens e de personagens viajantes constituem inspiração, modelo e motivação para as narrativas jornalísticas de viagens. Neste texto, o que

277 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares importa é ir além da relação entre as narrativas de viagens, fartamente evidenciada pela literatura ficcional ou poética, estabelecendo o diálogo das narrativas viageiras com o jornalismo verticalizado. Em tal recorte, o jornalismo literário e a grande reportagem, gêneros que parecem caber à perfeição no formato livro-reportagem, constituem a base teórica para se pensar em viagens do corpo e da mente em uma narrativa jornalística à qual se agregam elementos da memória, da cultura, do urbano e das urbanidades, das experiências subjetivas etc. Esses elementos se costuram à experiência dos narradores, enquanto jornalistas que vivenciam a própria reportagem, mas também dão voz às experiências de outros seres viajantes. O jornalismo literário estilo que marca centralmente estas narrativas de viagem é aqui entendido como o texto que hibridiza a realidade com técnicas usadas para contar histórias de ficção literária. Segundo Borges (2013) é o jornalismo que busca cumprir sua tarefa, “contando a história de uma maneira próxima à que a literatura faria” (p. 226). Lima (2004) sublinha que nas interconexões entre o real e o ficcional, baseadas em princípios de ambos os polos que alimentam e reforçam um ao outro, é que reside a consistência da modalidade. Nos livros juvenis aqui examinados, o estilo literário se observa mais pela linguagem utilizada, ainda indecisa, mas buscando arrematar a descrição da história real com pinceladas de linguagem mais literária; e, em um dos casos, pelo uso da crônica. Resta como estratégia, contudo, definir o livro-reportagem, de modo a não cair na simplificação inicial de Lima (2004), que afirma se tratar de um produto derivado da inquietude de um repórter que não encontra uma brecha nos seus espaços diários de trabalho para veicular narrativas mais contextualizadas e aprofundadas. Sim, claro, o livro-reportagem se refere, objetivamente, a um suporte que permite um texto longo, o livro impresso, que se expande ainda mais pelas possibilidades do e-book tradicional ou interativo, da publicação na internet em blogs, sites ou em espaços dedicados ao longform, marcado pelos recursos multimídia. Muito além do suporte, que não busca superar a falta de espaço do jornalismo diário, mas se configura, por si só, como outro espaço além das mídias de periodicidade curta, o livro-reportagem representa a intenção autoral de compor uma estética narrativa, uma linguagem própria que ressignifica o gênero jornalístico, em aprofundamentos, contextos, saliências, detalhes, descrições, diálogos etc. Se esta estética não se apresenta ainda em intensidade nos livros-reportagem aqui revisitados, pode-se neles perceber sementes de intenções que apontam para potencialidades estético-narrativas. Na tentativa de uma experiência jornalística mais radical, diferenciada da prática diária que passará a fazer parte do cotidiano da profissão, o livro-reportagem aparece como uma das opções para estudantes de Jornalismo em final de curso. E dentre eles, as viagens e os viajantes de variados matizes e formas, parecem ser escolhas temáticas que expressam um imaginário ligado à liberdade jornalística, um jornalismo aventureiro

278 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares ainda permitido sem as amarras do mercado, mas também sensível às viagens e experiências sociais, políticas, subjetivas, antropológicas, memorialísticas. Como afirma Paul Theroux (2010, p.14), autor de livros de viagem, “quando alguma experiência humana é registrada, surge um bom texto sobre viagens.” À frase acrescentaríamos: um bom texto jornalístico.

O imaginário de viagens de estudantes de jornalismo

O primeiro livro-reportagem produzido no curso de Comunicação/Jornalismo da UFPR, aprovado em banca em 2003, foi Abuso sexual de crianças e adolescentes: com a palavra as vítimas, de autoria de Rita de Cássia Loiola. A experiência pioneira foi bem- sucedida, iniciando uma rotina de produção na escola que levou à conquista de premiações e menções honrosas na categoria Livro Reportagem no Prêmio Sangue Novo, tradicional no Paraná, promovido pelo Sindicato de Jornalistas Profissionais (SindijorPR). Pode-se afirmar que todos os livros-reportagem produzidos pelos alunos são “viagens jornalísticas”, algumas mais investigativas, com caráter de grande reportagem; outras mais literárias, flertando com a crônica e os perfis; algumas estruturadas em capítulos estanques, ou perfis; outras contando narrativas fluidas, fragmentadas ou lineares. Dentre elas, estão as oito que selecionamos para este estudo. É preciso fazer uma breve síntese do conteúdo de cada um dos objetos de análise, em ordem cronológica, reforçando que foram selecionados pela afinidade com a temática proposta e por serem trabalhos orientados pelos autores deste texto.

1) Ó ciò! História dos descendentes italianos de Colombo (PR), 2007, de Paula Magalhães Sasso: A grande viagem transatlântica dos italianos para o Sul do Brasil é a temática de deslocamento percorrida pelo fio da memória dos imigrantes e seus descendentes concentrados em Colombo, cidade da Região Metropolitana de Curitiba. Paula Sasso conduz um relato memorialístico, ao beber dos depoimentos dos imigrantes italianos e seus descendentes para viajar da pobreza da Itália de entre guerras e pós-guerras para uma pequena comunidade vizinha a Curitiba. A viagem não é a anterior, a do deslocamento de corpos pelo Atlântico em busca de novas oportunidades, mas é, no livro, a história de uma cultura que se mantém, se integra e de uma língua que se altera, modifica-se, redescobre-se nos descendentes. A produção da narrativa exige uma curta viagem de 18 quilômetros, do centro de Curitiba a Colombo, mas tem como resultado uma longa trajetória que extrai do coração dos descendentes de imigrantes memórias familiares e culturais, com um detalhe: ao se embrenhar mais e mais pelas colônias do interior do município, a autora descobriu narrativas mais singulares, menos marcadas pelos ajustes e distorções da memória coletiva (HALBWACHS, 2003).

279 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

2) Retalhos: reportagens pelas estradas do Paraná, 2008, de Carolina Leal e Lilo Barros. Menção Honrosa no Prêmio Sangue Novo do Sindijor/PR, em 2009: Retalhos se constitui como a clássica narrativa on the road, desta vez realizada às vésperas do término do curso de Jornalismo, e já no início do segundo tempo: o casal de alunos decide, como “última oportunidade de uma experiência diferenciada”, conforme declararam à orientadora, se lançar nas estradas do Paraná, do Sul ao Norte, do Oeste ao Leste, para vivenciar uma viagem sem compromisso, parando para interagir com situações de interesse jornalístico, numa narrativa que evidencia comunidades místicas, indígenas, quilombolas, de sem-terra, trabalhadores de lavouras de cana. Os autores ficam por um mês na estrada, sem pauta programada, no que chamaram de “chance única de realizar um sonho”. O roteiro de viagem rendeu 31 reportagens curtas, passando por 27 cidades e mais de cinco mil quilômetros rodados. São “histórias diversas, do riso ao choro” (LEAL; BARROS, 2008, p. 12), que mostram o mundo de contrastes que é o Paraná.

3) Brasiguaia: histórias de uma repórter tupiniquim em terras guaranis, de Elisa Viviani Samaniego Ramirez. Prêmio Sangue Novo de Jornalismo do Sindijor/ PR, 2010, na categoria livro-reportagem: Nascido a partir do fato de a autora ser filha de imigrantes paraguaios, o livro promove a viagem de retorno ao país de seus pais, à cultura original com a qual se confunde. A autora traça uma rota de reconhecimento em uma Assunção narrada pelos familiares e marcada pelas férias da infância, mas cheia de descobertas feitas por ela, que se aventura no mapeamento improvisado de uma cidade ao mesmo tempo muito e tão pouco conhecida. Definindo-se “mais do que uma simples turista, tampouco completamente estrangeira” (RAMIREZ, p.7), com documentos brasileiros e DNA paraguaio, esta brasiguaia viaja também para resolver uma relação de “amor e ódio” (RAMIREZ, p.7), e para extirpar uma angústia que ao longo de sua adolescência a afastou do Paraguai. Muito além de sua viagem interior, Elisa permite ao leitor um passeio por ruas, tradições, trabalho, artesanato e contradições da cena urbana da capital paraguaia.

4) Malabaristas de rua: a vida em (des)equilíbrio, 2013, de Julio Vasconcellos Filho: O autor constrói a narrativa dos outros, neste caso, os malabaristas de rua, colocando seus olhos sobre a memória dos deslocamentos dos andarilhos, vindos da Argentina, Uruguai, do Sul do Brasil, ou quem sabe do Chile. Eles zanzam pelas ruas de Curitiba, buscando a atenção dos motoristas que param nos sinaleiros, onde são realizadas as performances quase circenses. A viagem tem como base narrativa os perfis dos personagens viageiros, tentando fazer soar suas vozes e sua existência de artistas de rua, de andarilhos urbanos, na “busca por algum tipo de reverberação capaz

280 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares de revelar pelo menos uma parte do todo inimitável que é a realidade que vivenciamos” (VASCONCELOS FILHO, 2013, p. 10).

5) Ibiúna, anteontem: Ana, Lore, Cecília, Beth e Palmira – as cinco universitárias que foram presas no Congresso da UNE em 1968, 2016, de Júlia Ledur: O fato histórico que deu origem ao livro-reportagem habita o imaginário de quem viveu no Paraná a ditadura civil-militar instaurada em 1964. O episódio tem um toque de faits divers. No grupo de mais de 20 estudantes do estado que foram ao mítico Congresso de Ibiúna, a 69 quilômetros de São Paulo, em outubro de 1968, havia apenas cinco mulheres. A comitiva foi detida, no Presídio de Tiradentes, numa operação que teria um total de cerca de mil apreensões. Em Curitiba, o então governador Paulo Pimentel foi procurado por pais e parentes dos envolvidos, em busca de auxílio – o que não o surpreendeu. Em entrevista (LEDUR, 2016), Pimentel, um nonagenário, admitiu que tinha informação de que o congresso seria reprimido. Numa atitude que hoje soa paternalista e bairrista, enviou um ônibus até São Paulo, para trazer de volta os “nossos estudantes”. Em meados de outubro, o grupo desembarcou ao lado da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), e cada um voltou para suas casas. A investigação da autora – num viés de gênero – foi descobrir o destino tomado pelas cinco mulheres após aquela frustrada viagem de volta. Palmira Amâncio da Silva, por exemplo, integrou o MR-8. Elisabeth Fortes foi presa novamente em 1968, pela participação em um evento clandestino da UNE, em passagem conhecida como “Congresso da Chácara do Alemão”.

6) Cidade aos pedaços: 13 crônicas e três ensaios para narrar uma Curitiba que se despedaça, 2017, de Bruno Vieira Brixel: O autor percorre uma viagem pelo cotidiano de uma cidade fraturada – num desmentido ao city marketing que a forjou. É pelo avesso, mas sem o recurso do ressentimento ou da crítica fácil, que assume o papel de viajante urbano, o que inclui olhar de novo a janela do próprio quarto. Não usa apenas os famosos ônibus da capital modelo (Cidade sobre rodas), mas sobretudo os espaços da memória. Busca com avidez os pedaços da invariavelmente úmida Curitiba (Sob a chuva, sobre a chuva), tenta explicá-la pela forma de falar e se alimentar (Província da vina e Sopa eslava). Explora mitos étnicos e do caráter curitibano (Felis curitibanus), a partir dos seus apartamentos (Predião). A viagem se dá pelos pedaços da cidade onde o autor nasceu, e sem sair de seus limites. Mesmo após fazer uma viagem internacional, torna-se um viajante que tenta, sem sucesso, criar um mosaico, nem feio nem bonito, mas erguido no enigma dos cacos que formam uma imagem que não é a de um cartão-postal.

7) Sobre os juízes e os pastéis: um livro-reportagem sobre a saga estradeira de cinco profissionais da imprensa processados por 48 juízes e promotores paranaenses (2017), de Kaype Abreu. Prêmio Sangue Novo de Jornalismo do Sindijor/PR,

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2018, na categoria livro-reportagem, e Prêmio Expocom Sul 2018 de melhor livro- reportagem: Em 2016, cinco profissionais da imprensa paranaense – todos do jornal Gazeta do Povo – se tornaram alvos de processos em série, abertos por juízes e promotores do estado, indignados com a divulgação de material jornalístico sobre os salários acima do teto, recebidos por membros do Judiciário. A ação orquestrada obrigava o grupo a se deslocar semanalmente até cada uma das cidades originárias dos processos. Embarcados em uma van, o grupo cruzou 7,9 mil quilômetros para chegar a 19 cidades. Respondeu a 48 convocações judiciais (ABREU, 2017). A soma total dos pedidos de indenização por danos morais – ação que reforçou o uso do termo “censura judicial” – extrapolava R$ 1 milhão. Os dois meses em que durou o périplo foi interrompido por decisão da ministra Rosa Weber, do STF, em julho de 2016. As narrativas dos envolvidos sobre as longas jornadas rumo às comarcas são expressas em mão dupla: exploram histórias miúdas da convivência e as nuances do caso, que entrou para a história da imprensa paranaense como o maior ato de censura depois da ditadura instalada em 1964.

8) Os caminhos do cipó: perspectivas sobre o consumo contemporâneo de ayahuasca, 2019, de Gabriel Herdina: A viagem repleta de subjetividades permitida pela experiência da bebida medicinal indígena ayahuasca é o trajeto percorrido pelo autor. A narrativa se revela multidisciplinar: passeia pela cultura indígena amazônica – que tem a ayahuasca como porta de passagem para viagens espirituais –, destrincha princípios ativos da bioquímica e da farmacologia que estudam a substância vegetal; adentra na psicologia e na psicanálise. O autor inicia o percurso com uma narrativa em primeira pessoa sobre o fluxo de pensamentos e miragens interiores que experimentou ao ingerir a substância medicinal em uma cerimônia dirigida por um pajé. Também relata as viagens de outros: mal sucedidas, bem sucedidas, indiferentes. Na narrativa, imprime- se a afirmação de que abrir as portas da percepção é uma necessidade; e que a viagem com a ayahuasca permite transformações no destino individual e coletivo.

1.º ato: a vida dos outros A contabilidade não é conclusiva, mas a se tomar o ano de 2003 como marco do início da produção de livros-reportagem no curso de Comunicação Social-Jornalismo, da UFPR, a biblioteca gerada por esses TCCs beira os 80 títulos. Toma-se como base empírica a média ponderada de cinco livros ao ano. De modo que os oito produtos revisitados para este trabalho equivalem a 10% do total. O resultado pode servir de indicativo não só para ilustrar o recorte “livro de viagem”, em suas diversas variantes, mas também para levantar hipóteses sobre as motivações dos futuros jornalistas ao elegerem gêneros como grande reportagem em livro, perfis ou crônicas, imprimindo ou não as nuances do jornalismo literário.

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Numa primeira visada, emerge a oposição – quando não a justaposição – entre o dentro e o fora, que pode ser traduzido como “a minha viagem” e a “viagem dos outros”. A intertextualidade é flagrante. Mesmo em casos em que a experiência do outro ocupa o primeiro plano – tende a ser um espelho ou expressão dos próprios desejos. De modo que escrever um livro-reportagem é, em alguma medida, autobiografar-se na vida do outro. Os orientadores colecionam frases como “eu gostaria de ter vivido o tempo da minha personagem”, entre outras projeções que vão trazer no bojo o desejo da viagem, do deslocamento temporal e da busca de modelos na vida alheia. Dentre os livros-reportagem aqui revisitados, têm como característica manifesta exclusiva o exterior as obras Ó cio! (2007) – resultado de uma imersão em colônias italianas da Grande Curitiba; Retalhos (2008) – nascido de um road movie dos autores pelo interior do Paraná; Malabaristas de rua – com sua galeria de anônimos que cospem fogo nos sinaleiros; Ibiúna, anteontem (2016) – que perfila cinco ativistas presas em 1968, às vésperas do AI-5; e Sobre os juízes e os pastéis (2017) – que explora a maratona de cinco jornalistas processados, comarca após comarca, por uma quantidade de quilômetros que compete com o tamanho da orla brasileira. Em tese, trata-se de abordagens à moda clássica, na qual o jornalista está oculto, montando a cena – a mais fidedigna possível – em que suas fontes se movem. Os testemunhos dos autores – nem sempre expressos nos textos publicados – são, contudo, eivados de nobres motivações profissionais que, numa livre interpretação, soam como uma homenagem à carreira abraçada: ouvir os mais velhos, visitar lugares distantes e esquecidos; contar a história do ponto de vista das mulheres; evidenciar os outsiders, e mostrar a saga de jornalistas perseguidos por fazerem seu trabalho.

2.º ato: a viagem interior Ainda que essas divisões sejam por si só imperfeitas – pois “o dentro e o fora” convivem fatalmente na carpintaria da reportagem –, parte das narrativas em análise pendem para o viés intimista. Ou, pelo menos, para um intimismo manifesto. Brasiguaia (2010), de Elisa Ramirez, cumpre os protocolos da reportagem, levando o leitor pelas ruas de paralelepípedo de Assunção, mas antes disso nos conduz pelos sentimentos de uma jovem em seu acerto de contas com um país comumente tratado no pejorativo. A autora vê a terra dos seus, mas o pacto não é a do jornalista “turista acidental”, à moda de Mário de Andrade, é o da “turista intencional”, nas raias do jornalismo gonzo – com a diferença que a acidez e a ironia aqui são substituídas pelos claros-escuros, silêncios e sutilezas. Cidade aos pedaços, de Bruno Vieira Brixel (2017), dialoga com Brasiguaia. O autor revê a cidade em que vive depois de se distanciar e enxergá-la do exterior. Obriga- se a reconhecer o que nele é parte, o que nele é estrangeiro. Circula por ilhas urbanas, para que possa percebê-las melhor, sem saber se ao fim terá como juntar esses territórios. Realiza a máxima de Xavier Maistre (1989), sobre a viagem ao redor do próprio quarto. Elisa e Bruno estranham e amam o que veem – dualismo que é o benefício e a tormenta da

283 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares viagem. Ninguém se desloca impunemente: Os caminhos do cipó comprova a máxima. Gabriel Herdina (2019) vai ao “céu”, nome algo poético para os terreiros em que se consome o ahyuasca. Mas precisa ir além – até chegar ao lugar a que o ritual leva. Viagem só se faz de corpo inteiro, no país rejeitado, na cidade insalubre ou no conforto dos espaços espirituais.

3.º ato: diálogos literários Dos oito casos analisados – três são escolhas explícitas pelo livro de viagem e em cinco a viagem é um pano de fundo ou uma metáfora ou extensão do conceito. Encaixam-se no primeiro caso os livros Brasiguaia, Retalhos e Sobre os juízes e os pastéis. E no segundo, Ó ciò!; Ibiúna, anteontem e Malabaristas de rua – tendo a viagem como parte do argumento –; e Cidade aos pedaços e Os caminhos do cipó no campo da licença poética. Nesses dois casos, a “viagem”, pode se ater ao sentido de devaneio ou ponto de fuga. Numa direção evidente, os oito livros se encaixam em mais de uma classificação, podendo circular com facilidade pela antropologia cultural (Brasiguaia e Os caminhos do cipó), sociologia urbana (Malabaristas...), história (Ó ciò! e Ibiúna, anteontem) ou pela política (Sobre os juízes e os pastéis), para citar alguns exemplos. Mais refinado do que todas essas classificações, contudo, é o diálogo das obras com tradições da literatura de viagem, o que concorre para integrá-los num conjunto pertinente, capaz de gerar diálogos intertextuais. Paripassu, esse avizinhamento com discursos sólidos se presta a retirar esses títulos do limbo das “obras em processo”, “treino para o futuro” ou qualquer outra classificação que os entenda vulgarmente como “trabalho de escola”. Fala-se, nos bastidores acadêmicos, do potencial e qualidade de muitos livros- reportagens produzidos por jovens de 20 anos, mas fadados a morrerem nos arquivos. É fato que a academia produz também obras sofríveis ou prematuras, mas igualmente dá à luz trabalhos de altíssima voltagem – e não faltam exemplos de TCCs que chegaram às editoras, com êxito. É o caso de O livro amarelo do terminal, de Vanessa Bárbara, publicado pela CosacNaify em 2008; e Nada mais que a verdade – a extraordinária história do jornal Notícias Populares, de Celso de Campos Jr. et al, publicado em 2001, para citar dois. No território dos “diálogos possíveis”, é flagrante o gancho de Retalhos com a literatura beatnik. O “pegar a estrada”, sem destino, rumo a um Paraná agrícola, apinhado de cidades minúsculas e sem atrativos, imprime a esse trabalho uma melancolia pós- Segunda Guerra, quando olhar através da vidraça embaçada parece ser a regra ou para enxergar ou para suportar o que se vê. Bebem nesta tradição Cidade aos pedaços – e seu narrador solitário às voltas com a cidade onde nasceu; e também Brasiguaia, com sua jovem que volta ao país que herda e com o qual lida em meio a desconfortos. O ensaísmo – no seu sentido de “risco”, “ultrapassagem” – emula no texto de Gabriel Herdina (Os caminhos do cipó). O empenho em traduzir conceitos da química

284 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares para explicar os efeitos do ahyuasca – como fazem jornalistas de divulgação científica – acaba por, à moda de outro mestre no gênero, o neuropsiquiatra Oliver Sacks, agregar interpretações, sentidos e discursos existenciais na cola de explicações que podiam soar rígidas. Não há como se aventurar por um caminho em que ciência, cultura, religião fazem fronteira, sem flertar com a arte do ensaio. Ou da crônica. Ou do perfil – para elencar aqui gêneros que compõem com a grande reportagem, de modo a suprir, com a literatura, áreas não atingidas pelos rigores do jornalismo castiço. Há que se destacar a relação imediata entre a viagem real e a viagem imaginária, esse misto de ficção e verdade expressa na memória. Os livros Óciò! e Ibiúna, anteontem são exercícios para se observar o labirinto em que as lembranças transitam, distorcem-se, atualizam-se (HALBWACHS, 2003), formando-se como matéria prima duvidosa para a história e para o jornalismo, mas que não podem ser evitadas. São o único canal para que o passado – ainda que atualizado e adulterado – permaneça. Mesmo que os personagens de Paula Sasso e Julia Ledur falem de viagens ora transcontinentais, ora por um capítulo da História do Brasil (o Congresso de Ibiúna) estão é tratando de existência, ruptura, transição e resistência. São tarefas tão custosas e demoradas que não lhe cabe melhor substantivo do que “viagem”.

4.ª ato: o narrador e suas escolhas O diálogo com a tradição e as escolhas de território – acima descritas e diluídas – são determinantes para que os jovens autores encontrem sua própria voz. Encontrar “que narrador são” é tão custoso quanto a viagem em si. Alcança-se esse papel pelo conhecimento, pelas habilidades técnicas, mas sobretudo pela verdade da experiência. A forma até pode estar em descompasso, mas nada é tão nocivo ao pacto da leitura quanto um narrador que não se mostre um bom companheiro de viagem. É fato que a análise da voz do narrador exige baia própria, tamanha sua complexidade (TEZZA, 2012). Tal exigência se agrava no jornalismo, posto que é de regra que o narrador seja discreto e não se coloque no centro da cena, mesmo que o leitor saiba de sua presença. Contudo, é possível sugerir lugares narrativos. Numa livre associação, Paula Sasso (Ó ciò!) é a narradora que faz suspeitar das “mesmas histórias de sempre”, convidando o leitor a acompanhá-la a lugares onde as memórias são menos achatadas pela repetição. Júlia Ledur faz o papel da narradora que provoca – as fontes e os leitores – a ressignificarem um episódio menor da história: o ônibus “socorrista” enviado pelo governador. Com essa estratégia, promoveu uma perspectiva não usual, um novo platô, de onde as meninas de Ibiúna reviram a própria história de outro local. Em Retalhos, à moda clássica da reportagem, Lilo Barros e Carolina Leal fazem a viagem que não faremos – pelo Paraná desconhecido – e nos representam. Cumprem o papel do narrador mensageiro. Elisa Ramirez cumpre papel semelhante, em Brasiguaia. Mas a viagem dela é só dela. O que sua voz traz de instigante é, nas entrelinhas, perguntar qual é o lugar que temos de visitar, para saber quem somos. Sua narrativa personalíssima é provocativa, ainda que sem alarde. Também é silenciosa a voz de Julio Vasconcellos em

285 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares

Malabaristas... Satisfaz a curiosidade sobre “os argentinos da esquina”, mas também é como se nos perguntasse por que não fomos nós mesmos a falar com esses saltimbancos modernos. Kaype Abreu sugere que algo de extraordinário está acontecendo nesse momento – e não nos demos conta. Seu papel é o de revelador – um narrador que faz emergir o inesperado, uma epifania.

E agora, depois do rito? Seis dos nove autores, dos oito livros, responderam a três perguntas abertas formuladas para este capítulo. São eles – Lilo Barros e Carolina Leal (Retalhos), Júlio Vasconcellos Filho (Malabaristas...), Bruno Brixel (Cidade...), Kaype Abreu (Sobre os juízes...) e Gabriel Herdina (Os caminhos...). Seguem as questões, com a síntese das respostas: 1. A escolha do livro reportagem como TCC de graduação sinalizava, à época da produção, um imaginário sobre a profissão? Nas seis respostas, em maior ou menor grau, os autores se aproximam em duas afirmativas – a de que a reportagem em profundidade, com tudo o que implica – inclusive seu “viés romântico” (Bruno Vieira), constituía um ideário da profissão; e, no sentido oposto, de que talvez não tivessem oportunidade de satisfazer esse desejo, ou pelo menos não nos primeiros anos de profissão. Daí a escolha. Para Kaype Abreu, o tema (jornalistas censurados) foi mais determinante que o suporte (livro) e o gênero (grande reportagem). Para Júlio Filho, o suporte e o gênero lhe permitiram praticar o bom jornalismo na integridade (contato profundo com as fontes, por exemplo). Gabriel Herdina vê na escolha uma expressão da vontade de realizar no TCC o que gostaria de fazer para sempre. Lilo Barros e Carolina Leal – cujo trabalho é de 2007, o mais antigo do grupo – dizem entender que “o livro-reportagem poderia ser um tira-gosto da profissão”. Há uma década, avisam, foram realistas: a vida profissional dificilmente lhes reservaria outra chance que não o TCC.

2. A produção de um livro-reportagem de viagem teve alguma influência nas escolhas posteriores da sua vida pós-universidade e de sua carreira? Para Barros e Leal, a escolha do livro-reportagem de viagem foi determinante. O casal hoje se define como “viajante”, somando perto de 30 viagens internacionais, período de moradia no exterior e opção pelo home office como modelo profissional. “O TCC nos mostrou que fazer da viagem um trabalho pode ser algo não tão prazeroso. Mas o oposto é mais válido”, escreveram – de Paris. Carolina acaba de lançar um blog de viagens. Júlio Filho não vê relação direta entre sua atuação numa redação diária e o TCC – exceto quando viaja para coberturas. “Nas viagens que faço pelo jornal, a memória do livro-reportagem vem à tona e me ajuda a pensar em histórias diferentes e focar em personagens locais”. Para Bruno Vieira, a relação direta é obtusa, mas o exercício da viagem influenciou sua relação com o espaço e a capacidade de se mover

286 Narrativas Midiáticas Contemporâneas: Sujeitos, Corpos e Lugares em várias instâncias da vida. Kaype descarta a relação imediata – mas remotamente gostaria de reportar viagens. Herdina, recém-formado, acredita que a experiência de relatar viagens do ahyuasca marcará suas próximas escolhas.

3. Faz sentido para você dizer que a elaboração da reportagem para este livro, enquanto TCC, constituiu um rito de passagem? Os seis entrevistados foram unânimes – o livro-reportagem se tornou um rito de passagem. As afirmações oscilam entre: a) um exercício da totalidade do jornalismo, confirmando aptidão para ingressar no mercado do trabalho (Kaype, Bruno); b)um passo para a vida adulta (Bruno, Lilo e Carol); c) um amadurecimento para enfrentar as incertezas da vida profissional (Júlio); d) uma oportunidade de percepção das próprias habilidades – muitas ainda desconhecidas (Gabriel); e) o fechamento de um ciclo no papel de estudante (Lilo e Carolina). “Coloquei em prática tudo o que gostaria de fazer, mas não sabia por onde começar. Me transformei”, afirma Gabriel Herdina.

Para finalizar Ainda que as análises realizadas neste capítulo sejam apenas exploratórias, permitem afirmar que para jornalistas em final de graduação, “viajar é preciso”. Nas suas diversas acepções – incluindo a espiritual – a viagem aparece como um movimento sinônimo ao exigido pela reportagem em profundidade, aquela que transforma o que escreve e o que lê. O binômio viagem/reportagem também emerge como desejo. Para além de um produto consumível, passível de uma exploração comercial ingênua e apolítica, é uma necessidade existencial, cujos contornos tocam as camadas mais sensíveis da cultura, daí não poder ser estranha às lides da imprensa. Implica envolvimento e reciprocidade; intensifica a vida, mas evoca a morte, ao desprender o viajante do conforto e da mesmice (SOLOMON, 2018). Mais: a literatura de viagem, quando expressa com a carpintaria do jornalismo, ganha caráter de síntese: em alguma medida, traduz a totalidade do que é ser imprensa. O deslocamento permite olhar em perspectiva, convida à aproximação com a voz do outro, no território em que o outro transita. Quando o jornalismo e a cartografia se encontram, realiza-se um destino, nasce uma história.

Referências ABREU, Kaype. Sobre os juízes e os pastéis: um livro-reportagem sobre a saga estradeira de cinco profissionais de imprensa processados por 48 juízes e promotores paranaenses. Curitiba: Edição do autor, 2017. In::www.amazon.com.br/Sobre- Justi%C3%A7a-pasteis-livro-reportagem-profissionais-ebook/dp/B07M5HNTHN> Consulta em: 15/08/2019.

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AGEE, James; EVANS, Walker. Elogiemos os homens ilustres. SP: Companhia das Letras, 2009. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Coimbra: Edições 70, 2011. BARROS, J. DUARTE, A. Métodos de pesquisa e comunicação. 2.ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. BELO, Eduardo. Livro-reportagem. São Paulo: Contexto, 2006. BORGES, Rogério. Jornalismo literário: teoria e análise. Florianópolis: Insular, 2013.. FENIANOS, Eduardo. São Paulo, uma aventura radical. Curitiba: W. Fenianos, 2002. FIGUEIREDO, Silvio Lima. Viagens & viajantes. São Paulo: Annablume, 2010. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. HERDINA, Gabriel. Os caminhos do cipó: perspectivas sobre o consumo contemporâneo de ayahuasca. Curitiba: Edição do autor, 2019. LEAL, Carolina. BARROS, Lilo. Retalhos: reportagens pelas estradas do Paraná. Curitiba: Edição dos autores, 2008. LEDUR, Júlia. Ibiúna, anteontem: Ana, Lore, Cecília, Beth e Palmira – as cinco universitárias que foram presas no Congresso da UNE em 1968. Curitiba: edição do autor, 2016. In: www.flipsnack.com/FCB8A78F8D6/ibiuna-anteontem-julia-ledur.html Consulta em: 15/08/2019. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas. O livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 3.ª Ed. Barueri: Manole, 2004. MAISTRE, Xavier de. Viagem à roda do meu quarto e expedição noturna à roda do meu quarto. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. MARTINEZ, Monica. Narrativas de viagem: escritos autorais que transcendem o tempo e o espaço. Intercom – RBCC. São Paulo: v. 35, n. 1, p. 344-52, jan.-jun., 2012. POLO, Marco. The travels of Marco Polo. Harmondsworth, Middlesex: Penguin Books, 1982. RAMIREZ, Elisa. Brasiguaia: histórias de uma repórter tupiniquim em terras guaranis. Curitiba: Edição da autora, 2010. SASSO, Paula Magalhães. Ó ciò! História dos descendentes italianos de Colombo (PR). Curitiba: Edição da autora, 2007. SOLOMON, Andrew. Lugares distantes – como viajar pode mudar o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. TALESE, Gay. O reino e o poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. TEZZA, Cristovão. O espírito da prosa: uma autobiografia literária. Rio de Janeiro: Record, 2012.

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THEROUX, Paul. Até o fim do mundo: viagens de Paul Theroux. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. VASCONCELOS FILHO, Júlio. Malabaristas de rua: a vida em (des)equilíbrio. Curitiba: Edição do autor, 2013. VIEIRA, Bruno. Cidade aos pedaços: 13 crônicas e três ensaios para narrar uma Curitiba que se despedaça. Curitiba: Edição do autor, 2017.

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QUEM SÃO OS AUTORES

Arthur Breccio Marchetto é jornalista, graduado em Comunicação Social – Jornalismo. É especialista em Português: Língua e Literatura pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e Mestre em Comunicação Social pela mesma instituição. arthur. [email protected]

Carolina Ritter é assistente social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É mestre e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. [email protected]

Cida Golin é Jornalista, Doutora em Letras pela PUCRS, Professora Associada do Curso de Jornalismo e do Curso de Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FABICO - UFRGS. [email protected]

Demétrio de Azeredo Soster é doutor pela Unisinos. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado e Doutorado e do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Coordena a Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami) da SBPJor. Integra os grupos de pesquisa do CNPq Midiatização das práticas sociais (Unisinos) e Grupo de estudos sobre narrativas literárias e midiáticas (Genalim/Unisc). É editor da revista Rizoma: midiatização, cultura, narrativas - Qualis B2, e diretor-editorial da Editora Catarse Ltda. [email protected]

Diogo Azoubel é professor da Secretaria de Estado da Educação do Maranhão (Seduc-MA), doutorando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COS | PUC-SP) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (Capes | PDSE) [email protected]

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Ébida Santos é doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade de Brasília (UnB), com sanduíche pela Brunel University, em Londres, Reino Unido. Professora substituta na Faculdade de Comunicação de Brasília (FAC- UnB). Membra do grupo de pesquisa Ciência, Tecnologia e Política (CTPOL) e do Núcleo de Estudos em Mídia e Política (NEMP). [email protected]

Eduardo Ritter é professor adjunto do curso de Jornalismo do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). É jornalista e doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com bolsa PDSE/Capes na New York University (NYU). Atuou como jornalista em emissoras de rádio, jornais e agências de notícia do Rio Grande do Sul. rittergaucho@ hotmail.com

Emílio Sant’Anna é Jornalista e pesquisador em narrativas digitais e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM São Paulo. [email protected]

Gabrielle de Paula é Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Jornalista com experiência em reportagem, assessoria de imprensa e produção de televisão. Tem interesse pela área de Direitos Humanos, Cultura e Educação, com pesquisa sobre representação cultural e alteridade no jornalismo. [email protected]

Jéssica Santos é pesquisadora em educação midiática, jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM São Paulo. [email protected]

José Carlos Fernandes é jornalista. Professor do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom), da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Pós-doutorando no Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Vice- líder do Grupo Click – Comunicação e Cultura Ciber. [email protected]

Larissa Conceição dos Santos é doutora em Sciences de l’Information et de la Communication – Université Paris-Sorbonne (CELSA, Paris IV) e Doutora em Ciências da Comunicação – Escola de Comunicações e Artes/ Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professora Adjunta na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Pesquisadora vinculada ao Laboratoire GRIPIC (CELSA, Paris-Sorbonne) e ao Grupo de Pesquisa t3xto (UNIPAMPA). [email protected]

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Leylianne Alves Vieira é doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestra em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e Bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente desenvolve pesquisas sobre as memórias da ditadura militar no Brasil, com especial atenção para o ano de 1968 e seus personagens e acontecimentos. [email protected]

Luiz Henrique Zart é jornalista graduado pela Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), é professor do curso de graduação em Jornalismo da mesma instituição. Atualmente, além disso, cursa especialização em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Araraquara (Uniara) e atua como freelancer. Se interessa por estudos em teoria da comunicação e do jornalismo, crítica de mídia e jornalismo especializado – cultural, esportivo e literário. [email protected]

Maria Luiza Cardinale Baptista é doutora em Ciências da Comunicação (USP), professora de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade (UCS). Pós-doutoranda e Professora colaboradora da Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia (UFAM). Coordenadora do Amorcomtur! Grupo de Estudos e Produção em Comunicação, Turismo, Amorosidade e Autopoiese (CNPq-UCS). Integrante do Ecomsul: Epistemologias e Práticas Emergentes e Transformadoras em Comunicação, Mídias e Cultura, (UFRN). Jornalista (UFRGS). Diretora da empresa Pazza Comunicazione. [email protected]

Martha Lopes é pesquisadora de gênero e comunicação, jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM São Paulo. [email protected]

Maurício Guilherme Silva Jr é doutor em Estudos Literários (UFMG/2012) e pós-doutor em Comunicação Social (UFMG/2015), é professor do curso de Jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH). Integra o Programa de Comunicação Científica e Tecnológica da Fapemig, por meio do qual é editor da revista Minas Faz Ciência. mgsj@ uol.com.br

Mayara de Araújo é jornalista e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC), sob orientação do professor Dr. Edgard Patrício. Atuou como professora do curso de graduação em Jornalismo da UFC (2015-2017) e atualmente leciona na Faculdade Unichristus. Sua pesquisa dialoga com: jornalismo, narrativa, objetividade, subjetividade e complexidade. e-mail: jornalista. [email protected]

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Myrian Del Vecchio-Lima é jornalista. Professora do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da Universidade Federal do Paraná (UFPR. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR) e Mestre em Comunicação Social (Universidade Metodista de São Paulo). Pós-doutorado em Comunicação e Informação pela Universidade Lyon Lumière 2, França.. Líder do Grupo de Pesquisa Click-Comunicação e Cultura Ciber. [email protected]

Patricia Regina Schuster é professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Doutora em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Desenvolvimento Regional e graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). [email protected]

Raquel Wandelli é ensaísta, jornalista, professora de Jornalismo da Unisul e integrante da Rede de Mídia Independente Jornalistas Livres. Especialista em Estudos Culturais (1996), é mestre e doutora em literatura pela UFSC/Capes, com estágio sanduíche na Université de Paris 3. Autora dos livros Leituras do Hipertexto: Viagem ao Dicionário Kazar (EdUFSC/IOESP, 2004) e Existe, logo escreve (FURB, 2017), publicou ensaios em livros e revistas sobre cinema, estética, filosofia, literatura e comunicação. [email protected]

Renato Essenfelder é jornalista, pós-doutorando em Comunicação na UBI (Covilhã, Portugal), doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP, professor do Mestrado em Produção Jornalística e Mercado da ESPM São Paulo. [email protected]

Ricardo Luís Düren é jornalista, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (PPGL-Unisc), como bolsista da Capes, e doutorando do PPGL-Unisc como bolsista da Capes. Atualmente realiza pesquisas a partir da imbricação entre os estudos da midiatização e do imaginário.

Rodrigo Bartz é professor na rede Pública e Privada de educação. É mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), bolsita Capes CNPq. Além disso, é membro integrante da RENAMI, do grupo “Jornalismo Midiatizado e Circulação”, ligado ao “Grupo de estudos sobre narrativas literárias e midiáticas” (Genalim), vinculado ao CNPq. Tem interesse em estudos relacionados a narrativas biográ[email protected]

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Victor Cruzeiro é formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem, Som e Escrita, da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC-UnB). victorlcruzeiro@ protonmail.com

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