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Ações e contatos regionais da arte concreta.

Este trabalho é parte da minha tese de doutorado intitulada Abs- tração entre a e o Brasil. Inscrição Regional e Interconexões da Arte Concreta: 1944-1960, orientada por Andréa Giunta, a quem agradeço as possibilidades oferecidas para desenvolver essas pesquisas tanto no Brasil como na Suíça. A viagem a Zurique foi realizada com uma bolsa outorgada pela Secretaría de Cultura de la Presidencia de la Nación. Com relação às pesquisas realizadas nessa cidade, quero agradecer a Jakob e Chantal Bill, por terem gentilmente me facilitado o acesso a seus arquivos, e a Regina Vogel, por sua valiosa colaboração. Também quero expressar minha gratidão para com Patrícia Artundo, Jorge Schwartz e Gênese Andrade, pelo apoio que me deram em minhas reiteradas viagens a São Paulo. Intervenções de

MARIA AMÁLIA GARCÍA é professora da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de .

marita.indd 196 01.10.08 18:03:28 m 1951 a produção do artista suíço Max Bill deu-se a conhecer no ambiente paulista, gerando impactos e repercussões no âmbito bra- sileiro e latino-americano. Nesse ano Bill não só ganhava o prêmio em escultura da I Bienal de São Paulo como também em março havia realizado sua primeira exposição retrospectiva no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Efetivamente, os acontecimentos ocorridos na cidade de São Paulo em 1951 constituem um momento definitório para a inscrição da arte concreta no panorama regional. Buenos Aires também acompanhou esse processo, embora o “desembarque” billia- no no âmbito portenho tenha sido mais modesto: em 1951 aparecia a revista Nueva Visión, dirigida por Tomás Maldonado, que em seu primeiro número dedicava um tributo ao artista suíço. As relações entre Bill e alguns artistas, críticos e gestores argentinos e brasileiros geraram momentos de interlocução e espaços de intervenção. Bill encontrou na América do Sul possibilidades de diálogo e ação que resultavam impensáveis para sua situação no âmbito europeu do pós-guerra, no qual a arte concreta suíça (representada pelo grupo Allianz) teve escassa projeção. Em contraposição, deste lado do Atlântico o concretismo encontrou um forte impulso e Bill foi uma figura-chave nessa articulação. Este texto se propõe a abordar o impacto da produção de Bill em São Paulo em 1951 como episódio-chave para a inscrição da arte concreta no panorama artístico regional.

em São Paulo

MARIA AMÁLIA GARCÍA em 1951 Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro

marita.indd 197 01.10.08 18:03:28 do premiado pavilhão suíço na Trienal de 1 Pietro Maria Bardi, carta a Max A EXPOSIÇÃO NO MASP Bill, São Paulo, 30 de junho de Milão e da exposição Die gute Form, além 1949 (Arquivo Bill). das plantas para a Hochschule für Gestaltung 2 Idem, ibidem. Pietro Maria Bardi e Bill haviam se (HfG) de Ulm5. Para compreender a trans- 3 “No Museu de Arte. Exposição o sobre Max Bill”, in Diário da conhecido no 1 Congresso da Reconstru- cendência dessa exposição é preciso pensar Noite, São Paulo, 5 de abril ção, em Milão, em 1945, pouco antes que não só no impacto visual do conjunto das de 1950; “No Museu de Arte. Livro e Exposição sobre Max o italiano se envolvesse no projeto de Cha- obras mas também no projeto expositivo: Bill”, in Diário de São Paulo, São 1 Paulo, 5 de abril de 1950; “No teaubriand e se radicasse em São Paulo . Em embora Bill não estivesse presente para a Museu de Arte a Obra Completa 1949 Bardi, na direção do Masp, estendeu montagem, suas intenções estão - de Max Bill”, in Diário de São Paulo, São Paulo, 21 de agosto ao artista suíço a proposta de exposição: “Je das. Bill já havia demonstrado ser um grande de 1949 (Arquivo Masp). voudrais bien avoir dans notre musée une projetista de espaços de exibição6. 4 “O Museu de Arte de São exposition de vos œuvres: architecture, art Essa mostra teve um impacto poderoso Paulo convida V. S. para visitar a Exposição de Obras de Max graphique, peinture, etc. Je voudrais une entre grupos de artistas e críticos no âmbito Bill que se abrirá no dia 1 de março às 15 horas na ocasião exposition complète, avec des dessins et regional, efeito que contrasta com a escassa da inauguração dos cursos do des photographies de façon à donner avec repercussão que encontrou entre os meios Instituto de Arte Contemporânea”, Convite. Arquivo Masp, São perfection l’impression de votre personna- de comunicação locais. Apareceram alguns Paulo. Essa pesquisa confronta do lité”2. A organização do projeto, que estaria breves anúncios no Diário de São Paulo ponto de vista documental a er- rônea datação da exposição em a cargo de Lina Bo, estava alinhada com as e na Folha da Manhã; do Rio de Janeiro, 1950. Além do convite (transcrito na nota anterior) ver: “Museu de inovações que, no âmbito tanto de critério Geraldo Ferraz foi o único crítico que dedi- Arte. Inauguração da Exposição expositivo como de desenho museográfico, cou uma análise minuciosa sobre as obras, de Max Bill”, in Diário de São Paulo, São Paulo, 1o de março de era desenvolvido pelo Masp. destacando também o silêncio do meio7. 1951, p. 8; “Inaugura-se Hoje, na Grande Sala de Exposição Embora as gestões tivessem começado De qualquer forma, foi a revista Hábitat, do Segundo Andar, a Exposição em meados de 1949, a correspondência órgão de difusão das propostas do Masp, do Arquiteto, Pintor e Escultor Suíço Max Bill”; “Está Aberta informa sobre as dificuldades com os se- a tribuna a partir da qual o casal Bo-Bardi no Museu de Arte a Exposição guros e os traslados e com as negociações apoiou a exposição. À falta de catálogo, no Dedicada a Max Bill”, in Diário de São Paulo, São Paulo, 3 de com outras instituições sul-americanas que número 2 de Hábitat, surgido na mesma março de 1951, p. 7; “Duas Grandes Exposições no Museu co-produziriam a exposição. Desde 1949 a época, publicavam-se fotografias de obras e de Arte”, in Folha da Manhã, imprensa paulista vinha anunciando a rea- o texto “Beleza Provinda de Função e Be- São Paulo, 15 de abril 1951, p. 8; ver também: “Constatations lização “em breve” da exposição de Bill3. leza como Função”, no qual Bill propunha Concernant la Participation de 8 Max Bill à la I Bienal de São Mas, pelo que se depreende da correspon- as linhas mestras de seu projeto . Esse texto Paulo”, Arquivo Masp. dência, a exposição foi marcada e depois é chave para abordar o conceito de forma 5 Max Bill, “Liste der gemäle und proposta em várias oportunidades, inaugu- no sistema billiano. Já desde o título Bill plastiken von Max Bill”, Arquivo o Masp. rando-se finalmente no dia 1 de março de expressava a inclusão recíproca do estético 6 Ver “Correspondência com 1951 junto com a abertura do Instituto de no prático. Para ele “não se trata mais de Masp”, Arquivo Bill; Karin Gimmi, Arte Contemporânea4. desenvolver a beleza somente partindo da “Max Bill: Artista de Exposições”, in 2G, no 29-30, Barcelona, A proposta de Bill estava amplamente função; nós concebemos a beleza como junho de 2004, pp. 30-43. desdobrada; ele era apresentado como um unida à função, se é que também ela é 7 Geraldo Ferraz, “Uma Página artista total com um espírito construtivo. uma função”9. Nesse sentido, depreende- Anterior (Max Bill, Pintor, Escultor e Arquiteto no Museu de Arte)”, in Essa exposição mostrava as várias facetas se que para Bill “forma” se define como O Jornal, Rio de Janeiro, 23 de maio de 1951. Reproduzido em: desse criador: pinturas, esculturas, obra qualidade e funcionalidade. A forma como Geraldo Ferraz, Retrospectiva. gráfica, cartazes, maquetes e fotos de arqui- beleza entendida como função se propunha Figuras, Raízes e Problemas da Arte Contemporânea, São Paulo, teturas e desenhos industriais exploravam como um modo aberto para refletir frente Cultrix-Edusp, 1975, pp. 174-7; “Museu de Arte”, in Diário de São um amplo panorama de interesses. Foram a um amplo horizonte objetal. O aspecto Paulo, São Paulo, 1o de março apresentadas mais de sessenta obras e trinta material era, para Bill, uma configuração de 1951, p. 8; “Duas Grandes Exposições no Museu de Arte”, fotografias e plantas arquitetônicas e dese- articuladora entre a função do objeto visual in Folha da Manhã, São Paulo, nhos. Embora houvesse algumas obras dos e sua beleza. 15 de abril 1951, p. 8. anos 30 como 15 Variations Sur un Même As obras de Bill que se exibiam no Masp 8 Max Bill, “Beleza Provinda de Função e Beleza como Théme (1935-38), a seleção pictórica e se apresentam como ativações sistemáti- Função”, in Hábitat, no 2, São Paulo, janeiro-março de 1951, escultórica privilegiava a produção de fins cas de problemas plásticos. A legalidade pp. 61-5. dos anos 40. Também foram apresentadas intrínseca à própria obra se propõe como 9 Idem, ibidem, p. 61. fotografias de sua casa em Zurique-Höngg, princípio organizador. As possibilidades de

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marita.indd 198 01.10.08 18:03:29 dotar de rigor e exatidão o processo criativo assim como de torná-lo inteligível eram, sem dúvida, seus objetivos. Objetividade, verificabilidade e previsibilidade parecem ser problemas que rondam as obras de Bill. Ao se visualizar 15 Variations Sur un Même Thème (1935-38), Bunte Akzente (Acentos Multicoloridos, 1946) e Weisses Quadrat (Quadrado Branco, 1946) fica evidente como a série e a progressão organizam a proposta compositiva, tanto na definição de um conjunto como no arranjo da su- perfície. No caso de 15 Variations Sur un Même Thème, o tema guiado por uma lei de desenvolvimento – uma estrutura linear Arquivo Masp contínua que, partindo das propriedades de um triângulo eqüilátero, se desenvolve em se repete a partir da organização octogonal Vista da um octágono regular – permite o desdobra- da grelha em toda a superfície: o quadrado exposição Max mento de múltiplas possibilidades. O desen- branco localiza-se a 1, 3, 5 e 7 quadrados de volvimento e a transformação de uma idéia cada lado da superfície pictórica quadrada. Bill, Masp, São fundamental em uma variedade de formas Na proposta plástica de Bill, a matemática Paulo, março expressivas derivavam da própria estrutura aportava a previsibilidade que outorgava a de 1951 do tema. Partindo de uma estrutura simples um acontecimento plástico a possibilida- e limitada, o método da variação permitia de de repetições reguláveis. Sua proposta a Bill mostrar as infinitas possibilidades plástico-matemática não pretendia aludir contidas em seu sistema10. à frieza numérica mas, sim, referir à capa- Nesse sentido, a retícula foi um tema cidade humana de organizar um mundo de caro a Bill; em sua restauração vanguar- relações. Bill sustentava a possibilidade de dista, essa estrutura se apresentava como desenvolver uma arte de base matemática o elemento-chave sobre o qual repensar na qual tal sistematização não limitava a a tradição. Usada por seu mestre Klee e coerência organizativa à ativação de um por seus companheiros da Bauhaus, como mecanismo ou procedimento específico Albers, a grelha e a repetição do quadrado mas que implicava modos construtivos têm em Bill outro fiel seguidor11. As refle- plurais. xões de Rosalind Krauss revelam-se exatas As ciências (a matemática) envolviam para pensar os problemas que rondam as um duplo aspecto na obra de Bill. Por obras de Bill. É a pureza originária, a ab- um lado, a ciência como provedora de soluta autonomia; é a unidade empírica do um método e, por outro, a ciência como método a que se faz presente a partir dessa fonte de inspiração temática. Isso era estrutura: “[…] o poder da retícula reside exposto em seu artigo “O Pensamento 10 Idem, 15 Variations Sur un Même Thème, reproduzido em sua capacidade para plasmar o campo Matemático na Arte de Nosso Tempo”, em Eduard Hüttinger, Max Bill, Zürich, ABC, 1978, pp. material do objeto pictórico; inscrevendo-o no qual sugeria reparar nas configurações 68-9. 12 e representando-o simultaneamente” . formais de problemas e equações. Para ele 11 Valentina Anker, Max Bill ou Acentos Multicoloridos e Quadra- essa manifestação plástica da matemática la Recherche d’un Art Logique, Lausanne, L’Age d’Homme, do Branco são alguns dos exemplos da – que havia descoberto no Museu Poincaré 1979, pp. 90-1. utilização da grelha. Nessas obras, Bill de Paris – implicava a busca de novas 12 Rosalind Krauss, La Originalidad baseia a repetição de um elemento a partir formas de expressão contemporâneas, de la Vanguardia y Otros Mitos Modernos, Madrid, Alianza, da progressão geométrica ou aritmética similar ao que em sua época havia sido 1996, p. 172. outorgando um sentido à organização do o descobrimento das esculturas negras 13 Max Bill, “El Pensamiento em el Quadrado Branco para os cubistas13. Nesse artigo apareciam Arte de Nuestro Tiempo”, in Ver conjunto. Em , utiliza y Estimar, no 17, Buenos Aires, como módulo um pequeno quadrado que também outras preocupações epistemoló- maio de 1950, p. 5.

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marita.indd 199 01.10.08 18:03:29 gicas que excediam a proposta da série, para a arte concreta. Os problemas cientí- a variação e as progressões geométricas ficos eram também suscetíveis de serem ou aritméticas como método: estudados com os instrumentos plásticos. Nesse sentido, Gabriela Siracusano mostrou “O pensamento matemático na arte não é a como novos conceitos, como o princípio de matemática em um sentido estrito; pode-se indeterminação, a aceitação do continuum dizer que o que se entende por matemática espaço-tempo, a teoria da relatividade e exata é de pouca uti lidade aqui. […] O as novas geometrias, geravam fissuras em misterioso da problemática matemática e concepções epistemológicas até o momento o indeclarável do espaço, a distância ou consensuais15. proximidade da infinitude, a surpresa de A associação de uma nova ciência cor- um espaço que começa e termina de forma respondendo-se com uma nova arte posi- diferente, a limitação sem limites exatos, cionou a arte concreta como um fenômeno a multiplicidade que apesar de tudo forma de absorção e reelaboração de problemas uma unidade, a igualdade de forma que epistemológicos. Termos, conceitos e teo- varia com a aparição de um só acento, o rias invadiam as propostas concretistas que campo de força composto de variáveis, as refletiam a partir de fragmentos e recortes paralelas que se cortam e a infinitude que relativamente acessíveis e simplificados volta a si mesma como presença, e ao lado, do mundo científico. Nesse sentido, essas novamente, o quadrado com todos seus idéias foram utilizadas simultaneamente; fundamentos, a reta que não é alterada por muitas vezes sem atender a superposições nenhuma relatividade e a curva que em e contradições. Siracusano mostrou que cada um de seus pontos forma uma reta; para a produção plástica, cuja preocupação todas essas coisas, que aparentemente não havia girado, durante séculos, em torno do têm nenhuma relação com a vida diária do êxito de uma representação cada vez mais homem, são, apesar de tudo, de fundamental fiel da natureza (mediante a adequação de importância. São forças que manipulamos uma “realidade tridimensional” no plano bi- como forças primitivas, às quais toda ordem dimensional, no caso da pintura), a possibi- humana está sujeita, contidas em toda ordem lidade de uma quarta, quinta, n-dimensões, 14 Idem, ibidem. reconhecível”14. significou uma repropositura radical com 15 Gabriela Siracusano, “Punto y 16 Línea sobre el Campo”, in Diana relação a antigas concepções . De fato, o B. Wechsler (coord.), Desde la Segundo essa citação, a ciência não só se discurso relativo a outras dimensões, novas Otra Vereda. Momentos en el Debate por un Arte Moderno apresentava como uma aventura fascinante visões e novas realidades foi um fenômeno en Argentina (1808-1960), Buenos Aires, Del Jilguero, com múltiplos caminhos diferenciais e ao expandido. 1998, pp. 181-213. mesmo tempo confluentes mas, além disso, Problemas e noções da nova ciência 16 Idem, ibidem. transformava-se em um canteiro temático como o micro e macrocosmos, o limi- tado-ilimitado, contínuo-descontínuo, preciso-impreciso, ofereciam-se como um repertório temático para esses artistas. Bill pesquisava essas questões a partir da es- pecificidade plástica; a noção de “campo” pictórico apontava para a experimentação com os conceitos de preciso-impreciso e Max Bill, limitado-ilimitado: exatamente o nome de Unidade um de seus quadros expostos no Masp. Unbegrenzt und begrenzt (Ilimitado e Li- Tripartida, mitado, 1947) ativa esse princípio como 1947-48, fenômeno perceptivo, colocando em coleção tensão nossa capacidade para completar as figuras e para identificar definições MAC-USP cromáticas.

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marita.indd 200 01.10.08 18:03:30 É possível pensar que Ilimitado e Limi- as variáveis do trinômio forma, função, tado é a resposta pictórica às pesquisas que beleza aparece nessa escultura como me- Bill vinha realizando no plano escultórico. talinguagem plástica. A leitura estética das particularidades da Na I Bienal paulista o crítico argentino tira de Moebius encantou Bill, utilizando-a Jorge Romero Brest, integrante do júri, em suas esculturas desde 193617. Essa tira atuou como um defensor extremo da abs- está construída a partir de uma fita girada tração. Uma adesão total à causa abstrata ao redor de seu eixo longitudinal unida em o encontrava argumentando para outorgar seus extremos; como resultante, não se pode o primeiro prêmio em escultura à obra distinguir a cara interior da exterior, não Dreiteilige Einheit (Unidade Tripartida) de há um dentro e um fora. A tira de Moebius Max Bill19. É interessante notar que Unidade ou fita sem fim é uma superfície com um Tripartida não estava exposta junto com a só lado e um só contorno. Além de uma representação suíça; Bill não integrou essa grande beleza, essas fitas se conectavam seleção nacional mas, sim, participou como diretamente com fragmentos selecionados artista independente a convite da direção da nova ciência. As tiras são um fenômeno da Bienal20. estudado a partir da topologia, ramo da O conjunto internacional de laureados dá matemática que pesquisa as propriedades conta de uma clara vontade de contrastar a invariáveis de uma figura à qual se aplicou pluralidade de tendências abstratas. Os dois 17 Eduard Hüttinger, Max Bill, op. cit., pp. 7-27. uma deformação. Se na geometria euclidia- prêmios máximos em escultura e pintura 18 Tom Marar, “Aspectos Topológi- na a relação de congruência entre os objetos outorgados a Unidade Tripartida, de Max cos na Arte Concreta”, in mantém suas características métricas – ex- Bill, e a Amoureux au Café (Apaixonados Segunda Bienal da Sociedade Brasileira de Matemática, tensão, áreas, ângulos –, nas geometrias no Café), de Roger Chastel, respectiva- Bahia, Universidade Federal não-euclidianas um triângulo e um círculo mente, marcam os horizontes que a arte da Bahia, 2004; Michele Emmer, “Visual Art and Math- são homeomorfos e não são equivalentes a abstrata alcança no início dos anos 50: a ematics: the Moebius Band”, in Leonardo, vol, 13, no 2, um segmento de reta porque o extremo não é linha construtivista pós-bauhausiana e o 1980, pp. 108-11. 18 fechado . Sem dúvida, essa nova geometria gradeado cubofauvista da reconstrução da 19 Jorge Romero Brest, “Arte deve ter resultado sumamente atraente, já tradição francesa21. Concreto en Brasil y Argentina”, documento datilografado, que operava com registros de equivalên- Romero Brest outorgou especial rele- Caixa 3, envelope 2, docu- cias bem distintos da verossimilhança e vância ao evento paulista em sua revista mento w (Arquivo JRB). se preocupava com os valores invariáveis Ver y Estimar22. O número 26 incluía uma 20 Max Bill, “Constatations Con- cernant la Participation de Max das figuras espaciais: a topologia abordava extensa e elogiosa crítica do certame que Bill à la I Bienal de São Paulo”, Pasta Max Bill, Arquivo Masp. a continuidade. Com base nessas fitas de resultava benéfica para o esforçado pro- Ver “Regulamentos”, in I Bienal Moebius, Bill realizou obras em granito, jeto de Matarazzo de desafiar a geografia do Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo, 1951, bronze e gesso; a primeira dessas formas foi das artes para São Paulo23. Nesse artigo, p. 24. utilizada na montagem do Pavilhão Suíço felicitava as autoridades pela importância 21 Bernard Ceysson, “La Estatua na Trienal de Milão, em 1936. Imposible”, in Thomas Messer do empreendimento e passava em revista (cur.), Europa de Posguerra. as representações nacionais. A remessa Arte Después del Diluvio 1945- 1965, Barcelona, La Caixa, francesa o decepcionou e considerou 1995; Laurence Bertrand Apaixonados no Café portadora de “bom Dorléac, “La Joie de Vivre, et Après?”, in 1946: L’Art de la O PRÊMIO NA I BIENAL gosto e de sugestão, não de profundidade Reconstruction, Antibes, Musée Picasso, 1996. de idéias”. Na sua opinião, a representação 22 Ver Jorge Romero Brest, “Primera A esse conjunto de obras pertencia italiana carecia de vitalidade (salvo o caso Bienal de San Pablo”, in Ver y Unidade Tripartida, ganhadora do primei- de Alberto Magnelli, ganhador de um prê- Estimar, no 26, Buenos Aires, novembre de 1951, pp. 1- ro prêmio em escultura da I Bienal São mio aquisição) e a Holanda esteve ausente 40. Paulo. Fundida em bronze, essa escultura devido a sua seleção de quadros acadêmicos. 23 Paulo Herkenhoff, “A Bienal de está construída a partir da articulação de O pavilhão suíço era, para Romero Brest, “a São Paulo e seus Compromissos Culturais e Políticos”, in Revista duas fitas de Moebius e uma tira simples. única nota plenamente moderna, atrevida- USP, no 52, São Paulo, CCS- USP, 2001-02, pp.118-21. Unidade Tripartida, por sua vez, sintetiza mente moderna na exposição”24. Referia-se 24 Jorge Romero Brest, “Primera – talvez como nenhuma outra – a proposta às obras de Sophie Taeuber-Arp – de quem Bienal de San Pablo”, op. cit., teórica de Bill: a relação simultânea entre expuseram oito peças –, de Richard Lohse e p. 13.

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marita.indd 201 01.10.08 18:03:30 Da esquerda par hasard. […] le résultat, à mon avis, para a direita: est déplorable et me semble très influencé de l’esprit des marchands de tableaux pa- De Barros, risiens”26. O suíço analisava as decisões Palatnik, do júri da Bienal em função do panorama Pedrosa, Prati, artístico europeu:

Maldonado, “Je peux très bien me représenter la gran- Mavignier e de lutte en faveur des œuvres modernes à de Walter Bodmer. Nesse contexto, Rome- Sao Paulo. Mais quand on remarque d’un Serpa, Rio de ro Brest se referia a Max Bill e a sua obra côté cette lutte ‘pour’, on remarque aussi Janeiro, 1951 premiada; Unidade Tripartida o levava a l’autre tendance que j’ai nommé ‘l’esprit estas reflexões: des marchands de tableaux parisiens’. avec cela je ne veux pas ‘construire’ une influen- “O espectador habitual se desconcerta por- ce réelle des marchands de tableaux, mais que se trata de um mundo de precisões no c’est quand-même intéressant que le journal qual se constitui a emoção à conjuração de ‘arts’ à paris a publié un long article de uma matemática do espaço. […] A palavra lassaigne (membre du jury) dans lequel mon proporção, a palavra matemática, a palavra nom et le grand prix ont été complètement precisão, palavras que aliás procedem de supprimés, mais d’autre part il se trouvait outros planos culturais, conduzem ao erro, un grand éloge sur chastel, germaine richier pois não se trata de formas artísticas nas etc. Je ne peux pas m’imaginer comment quais se aplicam princípios matemáticos, des gens de ce caractère ont pu bien être mas sim a obtenção, por via da fantasia e da bien utiles dans ce jury. Mais vous avez intuição, de formas que possuem no plano raison – mon prix n’a pas été un hasard, estético caracteres similares aos que têm as mais une bataille (comme toujours dans formas matemáticas no plano científico. O les jurys)”27. que se ganha com a troca? Que a emoção, ao superar as fronteiras pessoais ou raciais A ressurreição chauvinista da Escola de ou nacionais adquira uma dilatada dimen- Paris foi a política das instituições artísticas são universal. E que a alma do espectador francesas durante o imediato pós-guerra. sinta, então, com a plenitude da forma, que Apaixonados no Café participava dessas não se cria o pequeno cosmos do homem figurações de jogos abstratizantes e trans- de carne e osso, o pequeno cosmos de um parência cromática que constituíam esse país ou de uma raça, mas o grande cosmos equilíbrio entre racionalidade e sensibili- 25 Idem, ibidem, p. 14. do Universo”25. dade pictórica que representava o gênio 26 Max Bill, carta a Jorge Romero 28 Brest, Zurique, 31 de janeiro de francês . Entretanto, as seleções que a 1952, Caixa 22, envelope 2, O prêmio em pintura para Apaixonados França do pós-guerra havia realizado para documento 346 (Arquivo JRB). no Café, de Roger Chastel, estava nas antí- a América Latina haviam sido objetadas 27 Max Bill, carta a Jorge Romero Brest, Zurique, 1o de abril de podas do projeto concretista. Essas premia- pelas críticas locais. Em Buenos Aires, 1952, Caixa 22, envelope 2, ções, conseqüentemente, davam conta das Julio E. Payró criticava, a partir da revista documento 358 (Arquivo JRB). divergências entre o júri, e Bill reconhecia Sur, as inexplicáveis lacunas e a pouca 28 Laurence Bertrand Dorléac, “La Joie de Vivre, et Après?”, in ali a hostilidade da crítica francesa, enca- representatividade das obras expostas em 1946: L’Art de la Reconstruc- beçada por Jacques Lassaigne, como parte 1949 na exposição “De Manet a Nossos tion, Antibes, Musée Picasso, 1996, pp. 15-68; Bernard do comitê. Com relação ao seu prêmio, Bill Dias”29. Em São Paulo, a revista Hábitat, Ceysson, “A Propos des An- nées Cinquante: Tradition et avaliava, por carta, a gestão de Romero Brest além de qualificar a Bienal de caótica e sem Modernité”, in 25 Ans d’Art e comentava o conjunto de prêmios: “[…] critério educativo, destacava na remessa en France: 1960-1985, Paris, Larousse, 1986, pp. 9-62. il me semble presque inutile de parler de francesa a falta de obras importantes dos 29 Julio E. Payró, “De Manet a la à sao paulo. après avoir vu la mestres vanguardistas, e considerava as Nuestros Dias”, in Sur, no 177, Buenos Aires, julho de 1949, liste de l’ensemble des palmarès, j’avais obras da nova geração como curiosidades, pp. 82-6. l’impression que mon nom s’était égaré divertimentos ou negócios de comerciantes

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marita.indd 202 01.10.08 18:03:31 ladinos30. A partir de Arts, Jacques Lassaine, moderna, saciariam-se nas linhas propostas o comissário da remessa francesa e membro pela arte concreta. do júri, tentava justificar as faltas e consi- Interesses comuns quanto à universa- derava que, em São Paulo: lidade e objetividade do discurso artístico e a preocupação por intervir o entorno ob- “Les salles de la jeune peinture française, jetual, arquitetural e urbano conformaram et particulièrement dans celle qui groupait essa zona estruturada de problemas. Esses Bazaine, Chastel, Le Moal, Borès et Ubac artistas selecionaram perfis similares em que le jury, les critiques et le public vinrent torno de um universo de formas e funções. trouver les plus grands éléments d’intérêt Nesse sentido, é possível pensar que a de toute l’exposition. […] Si, en effet, les utilização de princípios relativamente está- longues délibérations du jury devaient se veis, derivados de argumentos científicos, terminer par un palmarès comprenant be- assegurou a proximidade entre essas pro- aucoup de noms imprévus c’est, je pense, duções. Um horizonte comum de imagens, en grande partie à la volonté de renouvel- textos e expectativas cristalizou o modelo lement de la participation française qu’on concretista. la doit”31. Agora, essa legitimação institucional da arte concreta que se operou no Brasil teria, E exatamente como anotava Max Bill é claro, conseqüências políticas. A Bienal nesse artigo de Arts, que exaltava a produção paulista colocava em funcionamento uma dos jovens pintores da tradição francesa, complexa maquinária de gestão cultural, seu prêmio havia sido omitido. Evidente- redesenhando uma nova geografia para o mente, a arte concreta suíça não encontrava mundo das artes. Era um evento que repre- espaço no meio parisiense voltado para sentava o Brasil definindo sua hegemonia reencontrar-se com a tradição comunitária, cultural, política e econômica no âmbito nem tampouco resultava verossímil para regional. Nessa primeira edição, a Argentina 30 Serafim, “O Repórter na Bienal”, aqueles que experimentavam o trauma de não participou. Problemas institucionais, in Hábitat, no 5, São Paulo, 1951, p. 2. um mundo devastado pela guerra32. No tanto públicos como privados, numa com- 31 Jacques Lassaigne, “Les Leçons entanto, na América do Sul, os processos plexa trama política que emoldurava os de la 6ta [sic.] Biennale de São e escolhas estavam se dando de forma dia- vínculos entre ambos os países no início dos Paulo”, in Arts, no 334, Paris, 23 de novembro de 1951, p. metralmente oposta. anos 50, não permitiram uma representação 2. argentina. Nesse sentido, é preciso ressaltar 32 Serge Guilbaut, “Poder de a radical diferença entre essa ausência de la Decrepitud y Ruptura de Compromisos en la Paris de la representação argentina e a participação de Segunda Posguerra Mundial”, in Sobre la Desaparición de A ALIENAÇÃO DO PANORAMA Romero Brest no júri operando a favor da Ciertas Obras de Arte, México, aposta concretista. Curare, 1995. REGIONAL

As indagações de Bill coincidiam com as buscas desenvolvidas por vários artistas argentinos e brasileiros. Cordeiro, De Bar- ros, Sacilotto, Hlito, Prati, Iommi e Mal- donado já vinham trabalhando em função de definir e ancorar suas buscas dentro do Alfredo amplo leque da abstração. Esses artistas Hlito, Ritmos já haviam proposto a mudança qualitativa que implicava romper com os sistemas Cromáticos III, representativos e orientar-se em direção 1949, coleção a um trabalho especificamente plástico. Patrícia Phelps Essas indagações, no início construídas a partir de genealogias heterogêneas da arte de Cisneros

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marita.indd 203 01.10.08 18:03:31 Em Nueva Visión, o propósito fundamental foi constituído pela possibilidade de dotar a vida urbana e o homem moderno de um entorno com formas mais saudáveis e eficientes para a realização individual e coletiva. A revista delineou em suas páginas manifestações dessa beleza objetiva34. Nueva Visión se propunha como um tributo às propostas de Bill e suas conexões: arte concreta e boa forma foram os eixos fundamentais em torno dos quais a revista organizou seus interesses. Bill aparecia já desde a capa, junto com Henry van de Velde e Alvar Aalto, como o pioneiro das sínteses Capa da revista das artes visuais. Além disso, publicava-se Nueva Visión, um artigo de Ernesto Rogers sobre Bill no qual se insistia na questão do “método n.1, Buenos unitário para encarar os problemas da arte”. Aires, dezembro Para Rogers, “Max Bill é arquiteto quan- de 1951 do faz arquitetura ou quando realiza um objeto de uso; é tipógrafo quando compõe um livro; em fim, […] em cada ocasião é Para a investida moderna portenha o que o que a objetividade de suas investigações acontecia no Brasil era assombroso e con- lhe impõe ser”35. trastava categoricamente com o panorama Nesse primeiro número de Nueva Visión local. As possibilidades de intercâmbio com as intervenções desse artista suíço no circui- a cena brasileira resultavam extremamente to artístico brasileiro ganhavam um lugar atrativas para os argentinos. Da mesma de destaque. Informava-se sobre sua expo- forma que para Bill, o Brasil também se sição no Masp e sobre o prêmio na Bienal. constituía no imaginário dos argentinos Apresentava-se, também, um artigo de Bardi como o lugar de referência para levar a cabo sobre os cursos de desenho industrial no um programa moderno na América Latina. Masp e publicava-se a “vitrine das formas” O contraste entre ambos os panoramas era na qual Bardi situava o desenho industrial evidente. Essa rede internacional de arte em uma linha histórica de artefatos cultu- concreta estava tensionada por conjunturas rais36. Além disso, enquanto na contracapa nacionais: enquanto no Brasil as propostas anotava-se a formação de agrupações de 33 “Editorial”, in Nueva Visión, no concretistas ganhavam em extensão e em jovens artistas concretos em São Paulo e 1, Buenos Aires, dezembro de 1951, p. 2. possibilidades de execução, os argentinos no Rio de Janeiro, na capa se reproduzia 34 Graciela Silvestri, “Nueva acompanhavam esse processo através das em formato pequeno uma fotoforma de Visión”, in Jorge Francisco Liernur revistas. Geraldo de Barros37. Por sua vez, a revista e Fernando Aliata (comp.), Diccionario de Arquitectura Exatamente disso dava conta o surgi- fazia referência aos cursos de arte moderna Argentina, Buenos Aires, Clarín, 2005. mento, em dezembro de 1951, de Nueva organizados por Hans Koellreuter em Te- 35 Ernesto Rogers, “Unidad de Visión, a revista de Tomás Maldonado. O resópolis. No início de 1951, Maldonado Max Bill”, in Nueva Visión, no primeiro número apresentou um estado da havia viajado para o Brasil para participar 1, Buenos Aires, dezembro de 1951, pp. 11-2. questão sobre os problemas e as possibili- desses encontros e, nessa oportunidade, 36 P. M. Bardi. “Diseño Industrial dades da arte concreta. Definiu sua busca entrara em contato – ainda junto a sua en San Pablo”, in Nueva Visión, em termos de “cultura visual” difundindo esposa Lidy Prati – com os atores centrais no 1, Buenos Aires, dezembro de 1951, pp. 9, 11. projetos de arte, arquitetura, desenho e ur- do concretismo brasileiro. Evidentemente, 37 “Arte Concreto en Brasil”, in banismo moderno. Seu programa apontava nesse primeiro número, Nueva Visión mate- Nueva Visión, no 1, Buenos Aires, dezembro de 1951, para a “síntese das artes visuais em um rializou a alienação de panorama regional contracapa. sentido de objetividade e funcionalidade”33. em torno da arte concreta.

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