Nos Campos De Lages: Escravidão, Liberdade E Trajetória Dos Ex-Cativos Da Fazenda São João
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NOS CAMPOS DE LAGES: ESCRAVIDÃO, LIBERDADE E TRAJETÓRIA DOS EX-CATIVOS DA FAZENDA SÃO JOÃO Eliane Taffarel1 Samira Peruchi Moretto2 1. Introdução Santa Catarina, cuja característica não foi a plantation, registra números de negros escravizados em menor proporção que outras regiões do país. No entanto, vê-se especialmente na região dos campos de Lages, a existência da escravidão muito ligada à pecuária, a produção agrícola e aos trabalhos domésticos. Esse território geográfico, onde se situa nossa pesquisa, passou a ser povoado por não- indígenas especialmente após a abertura do caminho das tropas, utilizado para levar o gado até Sorocaba, em São Paulo. Entre os proprietários de terras dessa região, encontra-se Matheus José de Souza e Oliveira e sua esposa Pureza Emilia da Silva. A Fazenda São João, de sua propriedade, é o objeto de nossa pesquisa. Foi esse proprietário que concedeu alforria condicionada a seus escravos em 1866 e que em 1877, deixou em testamento a terça parte de suas terras, a três libertos e oito escravos. Nossa pesquisa busca através de fontes eclesiásticas e cartoriais, conhecer mais sobre a trajetória desses legatários e de seus descendentes que se fixaram na terra e hoje constituem a Comunidade Quilombola Invernada dos Negros, situada nos municípios de Campos Novos (SC) e Abdon Batista (SC). É necessário destacar que o termo quilombola é por muitas vezes desconhecido e seu significado muitas vezes ignorado e questionado. Isso ocorre porque há incongruências em relação a definição desse termo. Raquel Mombelli (2015) destaca que no senso comum o que prevalece é a definição histórica de que quilombo é o acampamento de africanos fugidos da escravidão. No entanto, em 1 Mestranda em História pela Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS – Campus Chapecó. 2 Doutora em História. Docente do Programa de Pós-Graduação em História da UFFS- Campus Chapecó. nossa pesquisa, entende-se a comunidade quilombola a partir do novo conceito proposto pós 1994, através dos debates da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), e do Decreto 4.887, promulgado em 20 de novembro de 2003, que considera remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnicos-raciais, “segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL, 2003). As fontes utilizadas para tais objetivos serão as documentais (eclesiásticas, cartoriais e judiciais) que transitam dos anos finais do século XIX ao século XX. Tais fontes são analisadas com os cuidados abordados por Carlos Bacellar (2010), como o fato de ter sempre em mente que o documento foi produzido por alguém; em determinado contexto e com algum propósito. Ou seja, de acordo com Bacellar, nenhum documento é neutro. E assim, o papel do historiador é desconfiar das fontes e das intenções de quem as produziu. Neste artigo, em específico, visamos apresentar os campos de Lages e os negros escravizados na Fazenda São João. 2. Povoamento e escravidão nos Campos de Lages A região do planalto serrano catarinense foi povoada por populações indígenas. A configuração desse povoamento começou a mudar com as incursões de bandeiras paulistas e a abertura do Caminho de Tropas. Paulo Pinheiro Machado (2004) descreve que no século XVII, a região teve sua população indígena drasticamente despovoada pelas bandeiras. Já no século XVIII, inicia um novo ciclo de povoação muito ligado ao crescimento e estabilização do caminho das tropas. Essa nova ligação do Rio Grande do Sul com São Paulo fez com que se criasse ao longo do caminho diversas fazendas de invernada e criação. Paulo Pinheiro Machado (2004) destaca que a Vila de Lages era um ponto de pouso das tropas e que a economia baseada na pecuária também contribuiu na formação das vilas de Curitibanos e Campos Novos. Nilsen Borges (2005), reafirma que o processo de colonização do Planalto Serrano teve início a partir da primeira metade do século XVIII, através da abertura de um novo caminho que proporcionou com que os primeiros moradores permanentes do local se fixassem nos locais de pouso e descanso do gado. Porém, de acordo com Machado (2004), é a partir da segunda metade do século XVIII, que se verifica o início de um processo paulatino de povoamento do planalto. Esse povoamento é animado pela pecuária associada à pequena lavoura e subsistência. Nilsen Borges (2005) ressalta a importância da pecuária para a vila e depois município de Lages tanto no caráter econômico, como no político e no social. Além disso, a pecuária condicionou o processo de colonização da região, assim como a própria estratificação social e as formas de acesso à terra. Assim, fundamentada na criação de gado (vacum, cavalar e muar), Lages completava o ciclo de tropas formadas no Rio Grande do Sul de passagem pela região. “O desenvolvimento econômico e demográfico da região de Lages ao longo dos séculos XVIII e XIX se manteve diretamente condicionado à formação de grandes propriedades fundiárias voltadas para a exploração da atividade pastoril” (BORGES, 2005, p. 78). O autor demonstra que o desenvolvimento do tropeirismo articulava e conectava a economia da região com a economia agroexportadora, seja no escoamento da produção local, na venda do gado e produtos agrícolas, como também na obtenção de escravos e gêneros de necessidade não produzidos na região. É nesse contexto que se encontra a Fazenda São João, que teve seu título definitivo3 expedido em maio de 1875. O fazendeiro Matheus José de Souza e Oliveira somente conseguiu legalizar suas terras, dois anos antes de falecer, em 1877. Em seu testamento4, datado do mesmo ano, e o qual será retomado mais 3 Raquel Mombelli e José Bento (2006) trazem dados sobre o título definitivo das terras de Matheus José de Souza e Oliveira. De acordo com os autores, no processo de titulação, as testemunhas Venâncio Manoel Gonçalves e Pocidônio Gonçalves Brito declararam que o fazendeiro cultivava as ditas terras por mais de vinte oito, vinte e nove ou trinta anos, mais ou menos. Mombelli e Bento (2006) destacam que a demarcação da área teve início em 16 de janeiro de 1875, sendo encerrada em 25 de janeiro de 1875. 4 Testamento e Ação de inventário de Matheus José de Souza e Oliveira. Arquivo histórico Dr Waldemar Rupp de Campos Novos/SC. Tombo 006, cópia autenticada. adiante, ele deixou a seus escravos a terça parte de suas terras que corresponde a cerca de 7.950 hectares. Em seu inventário5, datado de 1877, são listados 1.276 animais que faziam parte de seus bens sendo bois, vacas, novilhas, terneiras, bestas, éguas, potrancas, burro, burras, cavalos e ovelhas. A descrição desses bens demonstra a criação e produção nas terras de Matheus José de Souza e Oliveira. Sobre a escravidão na região de Lages, a Carta de Alforria (1866) dos negros escravizados na Fazenda São João, e que será utilizada mais adiante, nos permite uma problematização. É possível observar no documento, que apenas Josepha era de nação, ou seja, africana. Os demais eram crioulos nascidos no Brasil e eram, portanto, fruto do tráfico interno. Rafael Scheffer (2006) afirma que o comércio interno de escravos entre as províncias brasileiras sempre existiu, em maior ou menor escala, desde a presença da população cativa no país. Contudo, ele salienta que o volume do tráfico interno sempre foi significativamente menor que o do comércio africano, mas que o mercado interno ganhou força após a proibição do tráfico atlântico. Observando a historiografia brasileira, o autor salienta que o período de maior volume do tráfico interno de escravos se deu entre 1850 e o início da década de 1880. A partir dessa análise do tráfico interno de forma geral, Scheffer (2006) tenta esclarecer a posição da província de Santa Catarina dentro deste mercado. Ele destaca as dificuldades econômicas encontradas pelos senhores de escravos catarinenses, que eram produtores de alimentos, e enfrentavam no período a concorrência das outras províncias. “Contudo, a compra de escravos no mercado interno ocorreu em pelo menos uma região da província. Estudos focados na cidade de Lages apontam para a existência do comércio de escravos em um momento de expansão da escravaria na região, após o fim do tráfico atlântico” (SCHEFFER, 2006, p. 45-46). O mesmo autor, destaca que Lages contrasta com os demais municípios catarinenses devido a sua economia, que era muito ligada a pecuária. Os dados apresentados no estudo apontam que a cidade duplicou o número de população escrava após a proibição do tráfico atlântico. 5 Testamento e Ação de inventário de Matheus José de Souza e Oliveira. Arquivo histórico Dr Waldemar Rupp de Campos Novos/SC. Tombo 006, cópia autenticada. Como em grande parte deste período analisado por Scheffer (2006) Campos Novos ainda pertencia a Lages, podemos perceber o contexto em que é formada a escravaria de Matheus José de Souza e Oliveira e Pureza Emilia da Silva. Se considerarmos a ação de legitimação de terras de 1875, onde as testemunhas afirmam que o fazendeiro utilizava as terras há cerca de 30 anos, é possível afirmar que a Fazenda São João foi uma das que constituiu sua escravaria próximo ou após 1850, por isso a maioria de seus cativos eram crioulos. 3. Liberdade e testamento na Fazenda São João As negociações em torno da liberdade foram constantes em todo o país. É isso que tem nos revelado diversas pesquisas históricas nos últimos anos. A liberdade era alcançada pelos cativos através de cartas de alforria, sejam gratuitas, onerosas ou condicionadas; testamentos; fugas; e formação de quilombos e redutos de resistência. Os negros escravizados na Fazenda São João, de propriedade de Matheus José de Souza e Oliveira e Pureza Emília da Silva, foram alforriados em 20 de janeiro de 1866, através de uma Escritura Pública6 que concedia a eles a liberdade condicionada.