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Gabinete Do Senador Abdias Nascimento Nascimento Abdias Senador Do Gabinete

Gabinete Do Senador Abdias Nascimento Nascimento Abdias Senador Do Gabinete

PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES PENSAMENTO GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO NASCIMENTO ABDIAS SENADOR DO GABINETE

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Senador ABDIAS NASCIMENTO 1997 SIMBIOSE AFRICANA Nº 2 AFRICANA SIMBIOSE USA, 1971 Abdias Nascimento, Buffalo, Acrílico s/ tela - 91 x 61 cm, de Deusa Ma'at Deusa Ma'at PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES

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Gabinete do Senador Abdias Nascimento

Thoth

n. 3 setembro/dezembro 1997

Secretaria Especial de Editoração e Publicações Thoth, Brasília, n. 3, p. 1 - 272, set/dez 1997 4 THOTH 3/ dezembro de 1997 5 Thoth

Informe de distribuição restrita do Senador Abdias Nascimento 3 / 1997 6 THOTH 3/ dezembro de 1997

Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nasci- mento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações e debates sobre temas de interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes dessa população interessam ao país como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância. Thoth quer o debate, a convergência e a divergência de idéias, permitindo a expressão das diversas correntes de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.

Responsável: Abdias Nascimento

Editores: Elisa Larkin Nascimento Carlos Alberto Medeiros Theresa Martha de Sá Teixeira

Redatores: Celso Luiz Ramos de Medeiros Éle Semog Paulo Roberto dos Santos Oswaldo Barbosa Silva

Computação: Denise Teresinha Resende Honorato da Silva Soares Neto Thais Caruso Amazonas da Silva

Impresso na Secretaria Especial de Editoração e Publicações Diretor Executivo: Claudionor Moura Nunes Capa: Theresa Martha de Sá Teixeira sobre desenho do deus Thoth do livro de Champollion - Le Panthéon Égyptien Contracapa: deusa Ma’at do livro de E.A Wallis Budge - The Gods of the .

Endereço para correspondência: Tels: (061) 311-4229 311-1021 Revista Thoth 311-1121 Gabinete do Senador Abdias Nascimento Senado Federal - Anexo II - Gabinete 11 Telex: (061) 311-1357 311-3964 Brasília - DF - Brasil Fax: (061) 323-4340 CEP: 70165 - 900 E-mail: [email protected]

Thoth/ informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento / Abdias Nascimento n. 3 (1997) - Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1997

Quadrimestral (setembro - outubro - novembro - dezembro)

V.; 25 cm

ISSN: 1415-0182

1. Negros, Brasil. I. Nascimento, Abdias.

CDD 301.45196081 7 SUMÁRIO

Pág. Apresentação...... 9 Thoth ...... 11

DEBATES

Deputado Abdias Nascimento...... 19 20 de novembro: Discurso proferido na Câmara dos Deputados ...... 21

ATUAÇÃO PARLAMENTAR

Projetos Projeto de Resolução no 126, de 1997 - Institui o Prêmio Cruz e Sousa...... 27 Projeto de Lei no 234 de 1997 - Inscrição dos líderes da Conjuração Baiana de 1798 no Livro dos Heróis da Pátria ...... 43 Proposta de emenda à Constituição no 38, de 1997 - Garantia às comunidades remanes- centes dos quilombos dos direitos assegurados às populações indígenas...... 47

Pronunciamentos Frente Negra Brasileira...... 53 Homenagem a Mestre Didi...... 57 Reflexões sobre o Movimento Negro...... 69 Meio Ambiente...... 103 Revolta dos Búzios...... 107 Celebração de Zumbi dos Palmares...... 111

Pareceres da Comissão de Educação Projeto de Lei da Câmara no 39, sobre a prática desportiva da capoeira...... 119 Projeto de Lei do Senado no 202, que declara Data Nacional o Dia 20 de novembro, “Dia Nacional da Consciência Negra”...... 123

Emendas ao Orçamento da União para o exercício financeiro de 1998 Emendas já aprovadas beneficiando a Fundação Cultural Palmares...... 127 8 THOTH 3/ dezembro de 1997

DEPOIMENTOS

Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues...... 133 Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento...... 167 O negro desde dentro Guerreiro Ramos...... 185 A escultura de José Heitor Efrain Tomás Bó...... 195 Projeto Estudos Contemporâneos: Mesa Redonda no Rio de Janeiro Elisa Larkin Nascimento...... 205

SANKOFA: MEMÓRIA E RESGATE

As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento...... 223 O preconceito nos livros infantis Guiomar Ferreira de Mattos...... 249

MOVIMENTO NEGRO HOJE

Cecune – Centro Ecumênico de Cultura Negra...... 257 Como surgiu o 20 de novembro? Oliveira Silveira...... 263 9

APRESENTAÇÃO

Naquela manhã de domingo, a Igreja de Nossa Senhora de Achiropita, localizada na rua sugestivamente batizada com o nome de 13 de Maio, em pleno bairro do Bixiga, no coração de São Paulo, estava engalanada em cores diferentes daquelas que nos acostu- mamos a associar à liturgia católica. Em lugar dos tons sóbrios e discretos, austeros e freqüentemente lúgubres, característicos dos rituais da Igreja Romana, o templo ostenta- va um colorido vivo, vibrante, presente não apenas em sua decoração, na qual ressalta- vam o vermelho, o verde e o negro, aos quais se somava o amarelo, compondo um ambi- ente estranhamente festivo para uma tradição fundada na culpa, no pecado e na morte. Mais que nos alegres adereços, era no povo, presente em números generosos, que se deteria a vista ao contemplar aquela que, pela hora e local, deveria ser mais uma missa de domingo. Pois era um povo negro, em sua grande maioria, que superlotava as dependên- cias da igreja, esparramando-se para fora desta, incapaz de contê-lo, e acrescentando ao inusitado colorido ambiente as diferentes gradações de tonalidade de sua pele. Era a semana do 20 de Novembro, e o Congresso Nacional Afro-Brasileiro, presi- dido pelo incansável professor e poeta Eduardo de Oliveira, promovia o Culto Ecumênico contra a Discriminação Racial e em Defesa dos Direitos Humanos, ocasião em que mi- nha pessoa seria objeto de homenagem especial. Presentes o prefeito Celso Pitta - pri- meiro afro-brasileiro eleito para governar uma megalópole neste país - e esposa, a Cônsul Geral de Israel em São Paulo, Dorit Shavit, representando uma comunidade para a qual não se precisa explicar o significado de eventos dessa natureza, dirigentes do CNAB, militantes e simpatizantes do Movimento Negro de mais de 15 Estados, além de nossos aliados de diversas áreas. THOTH 3/ dezembro de 1997 10 Apresentação

Oficiada por quatro sacerdotes – os católicos padre Toninho e frei David, o pastor evangélico Dr. Euclides da Silva e o babalorixá Francisco de Oxum –, o culto teve o sabor marcante das coisas de origem africana, presente não só nos atabaques e outros instru- mentos de percussão, mas também nos cânticos e nos movimentos a que o corpo se via irresistivelmente conduzido pela magia do ritmo contagiante dos orixás. Mais ainda do que isso, a mensagem transmitida pelos sacerdotes, em suas palavras e no seu gestual, de- monstrava seu comprometimento com a busca da verdadeira fraternidade universal, as- sentada no respeito e valorização das diferenças étnicas, e não na busca de sua supressão pelo assimilacionismo que entre nós se disfarça com máscaras universalistas. Confesso que, coração calejado por tantas décadas de confronto com o racismo hipócrita de nossa sociedade, para o qual a Igreja Católica forneceu inestimável munição, me senti emocionado. Pela homenagem em si - o Troféu Zumbi dos Palmares -, que considero partilhar com uma legião de lutadores, ancestrais e contemporâneos, famosos e anônimos, que como eu têm dedicado suas vidas à concretização do sonho de liberdade, justiça e igualdade para os africanos e seus descendentes. Mas muito mais pelo aspecto simbólico de que se revestia a cerimônia. Afinal, não se estava ali apenas aproveitando “traços culturais” de origem africana para atrair negros e negras a um rebanho alheio. Fazia-se, isto sim, uma verdadeira experiência de integração, em que as partes se juntam sem abandonar sua essência, criando o novo sem perder a referência às respectivas matrizes. Na festa de confraternização que se seguiu ao culto, cuja peça de resistência não poderia deixar de ser uma suculenta e negra feijoada comunal, tive a oportunidade de rever antigos companheiros e conhecer alguns dos muitos militantes que têm contribuído para estimular minhas esperanças no triunfo final de nossos ideais. Dentre estes, a cria- ção de uma Universidade Afro-Brasileira, defendida na pregação do padre Toninho, páro- co daquela igreja, como centro de produção, reprodução e memória do pensamento dos africanos no Brasil, sonho que de há muito venho acalentando e que tenho agora a felici- dade de ver compartilhado por irmãos e irmãs de luta dotados do talento e da determina- ção necessários para transformá-lo em realidade. Momentos como esse demonstram que não têm sido em vão os nossos sacrifícios.

Brasília, dezembro de 1997

Abdias Nascimento 11

Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em 1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Cida- dania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âmbi- to nacional e internacional em todo o País, verificamos que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio. Setores da sociedade convencional reconhecem o ca- Thoth ráter discriminatório desta sociedade, e o debate passa a focalizar as formas de ação para combater o racismo, ultrapassando o patamar que marcou a elaboração da Constituição de 1988: a declaração de intenção do le- gislador dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de fazer valer tal intenção. Nesse contexto é que o senador Abdias Nasci- mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Se- nado Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve so- lidário com a luta anti-racista. O mandato do senador Abdias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla de luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à questão racial, com base numa verdade que o movi- mento negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui-se numa questão nacional de urgente priorida- de para a construção da justiça social no Brasil, portan- to merecedora da atenção redobrada do Congresso Nacional. 12 THOTH 3/ dezembro de 1997

Além de representar o veículo de comunicação do mandato do senador Abdias Nascimento com sua comunidade e seu país, a revista Thoth surge como fórum do pensamento afro-brasileiro, na sua íntima e inexorável relação com aquele que se desenvolve no restante do mundo. Seu conteúdo pretende refletir as novas dimensões que a discussão e elaboração da ques- tão racial vêm ganhando nesta nova etapa, inclusive o aprofundamento da reflexão sobre as dimensões histó- ricas e epistemológicas da nossa herança africana, para além dos tradicionais parâmetros de samba, futebol e culinária que caracterizam a fórmula simplista e preconceituosa elaborada pelos arautos da chamada democracia racial. Nesse sentido, cabe um esclarecimento do signi- ficado do título da revista, que remete às origens dessa herança civilizatória no antigo Egito, matriz primordial da própria civilização ocidental da qual o Brasil sempre se declara filho e herdeiro. Os avanços egípcios e as conquistas africanas no campo do conhecimento huma- no formam as bases da cultura greco-romana. Entre- tanto as suas origens no Egito ficaram escamoteadas em função da própria distorção racista que nega aos povos africanos a capacidade de realização humana no campo do conhecimento. Nada mais apropriado para expressar a meta de contribuir para a recuperação dessa herança africana que a referência, no nome da revista, ao deus Thoth. Na tradição africana, o nome constitui mais que a sim- ples denominação: carrega dentro dele o poder de implementar as idéias que simboliza. Thoth está entre os primeiros deuses a surgir no contexto do desenvolvi- mento da filosofia religiosa egípcia: autoprocriado e autoproduzido, ele é Uno. Autor dos cálculos que re- gem as relações entre o céu, as estrelas e a terra, Thoth incorpora o conhecimento que faz mover o universo. O inventor e deus de todas as artes e ciências, Senhor dos Livros e escriba dos deuses, Thoth registra o conheci- mento divino para benefício do ser humano. Sobretudo, Thoth 13

é poderoso na sua fala; tem o conhecimento da lingua- gem divina. As palavras de Thoth têm o dom da vida eterna; foi ele que ensinou a Ísis as palavras divinas ca- pazes de fazer reviver Osíris, após sua morte. Assim, esperamos que a revista Thoth ajude a fazer reviver para os afro-descendentes a grandeza da herança civilizatória de seus antepassados, vilipendiada, distorcida e reduzida ao ridículo ao longo de dois mil anos de esmagamento discriminatório. Tendo uma cabeça do íbis, pássaro que representa na grafia egípcia a figura do coração, Thoth era cantado como coração de Rá, deus do sol (vida, força, e saúde). Na mitologia egípcia, o coração era o peso a ser medido na contrabalança da vida do homem, no momento de sua morte, medindo sua correspondência em vida aos princí- pios morais e éticos de Ma’at, filosofia prática de vida da civilização egípcia. Thoth assim constitui-se no mestre da lei, tanto nos seus aspectos físicos como morais. A deusa Ma’at encarna essa filosofia de vida moral e ética, o caminho do direito e da verdade. Cons- tituindo uma espécie de contraparte feminina de Thoth, ela representa uma característica relevante da civiliza- ção egípcia: a partilha do poder, tanto no plano espiritual como material, entre a autoridade masculina e a femini- na. Os faraós tinham o seu poder temporal complementado por um poder feminino exercido por soberanas e sacerdotisas, assim seguindo o primordial e simbólico exemplo de Osíris e Ísis. Sem ser comparti- lhado entre feminino e masculino, entre homem e mu- lher, o poder careceria de fecundidade, seria estéril. Ma’at e Thoth acompanhavam o deus-sol Rá, na sua embarcação, quando ele surgiu pela primeira vez sobre as águas do abismo primordial de Nu. Era Ma’at quem regulava o ritmo do movimento da embarcação de Rá, ou seja, o seu ciclo de nascer e se pôr sobre o horizonte, bem como sua trajetória diária do leste ao ocidente. Ela corporificava a justiça, premiando cada homem com sua justa recompensa, e encarnava o mais alto conceito da lei e da verdade dos egípcios. 14 THOTH 3/ dezembro de 1997

Como deus da sabedoria e inventor dos ritmos cósmicos, Thoth dominava também a magia. Patrono do aprendizado e das artes, a ele se creditavam muitas invenções, inclusive a própria escrita, a geometria e a astronomia, áreas do conhecimento que fundamentaram o florescimento da milenar civilização egípcia. Entre- tanto, sem ser socializado, o conhecimento não produz resultados concretos, pois ninguém sozinho consegue colocá-lo em prática. Faz-se necessário um agente de comunicação, e Thoth se responsabiliza também por exercer esse papel. Passando sua sabedoria para os seres humanos, como o passou para outros seres divi- nos, a exemplo de Ísis, Thoth amplia seu papel no mun- do espiritual e material, tornando-se ainda o elo de trans- missão do conhecimento e do segredo divino entre um domínio e o outro. A invenção da escrita se revela, en- tão, como decorrência do papel de Thoth, originador do conhecimento em si: formular uma nova forma de trans- missão desse conhecimento. Os gregos denominavam Thoth de Hermes Trismegistus (Thoth, Três Vezes Grande), nome tam- bém dado aos livros que registravam a sabedoria metafísica herdada do antigo Egito, centrada na idéia da comunidade entre todos os seres e objetos, e cuja auto- ria era atribuída a Thoth1 . Assim, Thoth se identificava com Hermes, mensageiro dos deuses gregos e aquele que conduzia as almas a Hades. Hermes, para os gre- gos, era o deus das estradas e dos viajantes, da sorte, do comércio, da música e dos ladrões e trapaceiros. Os romanos o chamaram de Mercúrio. Tais atributos de Thoth e de Hermes nos reme- tem nitidamente à figura de Exu na cosmologia africa- no-brasileira. Conhecido popularmente como mensageiro dos deuses, Exu constitui o princípio dinâmico que pos- sibilita o fluxo e intercâmbio de energia cósmica entre

1 Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência sobre o neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII. Thoth 15

os domínios do mundo espiritual (orum) e o mundo ma- terial (aiyê). Conhecedor das línguas humanas e divinas, Exu é a comunicação em si, além de se apresentar como o deus das estradas, da sorte, da brincadeira e da ma- landragem. Os paralelos e as semelhanças entre Thoth, Hermes e Exu não se reduzem a identidades absolutas, mas as linhas gerais de suas características apontam para uma unidade básica de significação simbólica. Por isso, nada mais adequado, tratando-se de uma revista Thoth lançada no Brasil, que uma primeira invocação a Exu, de acordo com a tradição religiosa afro-brasileira, que abre todos os trabalhos espirituais com o padê, a oferenda a Exu de uma prece digna de todo o peso milenar da arte africana da oratória. Thoth representa, junto com Ma’at, o conheci- mento, a ciência e filosofia, a religiosidade e a ética na mais antiga civilização africana. Assim, constituem re- ferência básica para o resgate de uma tradição africana escamoteada à população brasileira enquanto verdadei- ra matriz de nossa civilização, e também para o resgate da ética na política, questão emergente no Brasil de hoje. Assumindo o nome Thoth, dentro da postura africana em que o nome ultrapassa a denominação, esta revista tem o objetivo de contribuir, de alguma forma, para os dois resgates, afirmando ainda que o primeiro faz parte imprescindível do segundo. 16 THOTH 3/ dezembro de 1997 17 THOTH 3/ dezembro de 1997 18 Debates 19

Foto 1

Abdias Nascimento no papel de Brutus Jones, na peça O imperador Jones, de Eugene O’Neill. Teatro São Paulo, São Paulo, 1953 THOTH 3/ dezembro de 1997 20 Debates 21

Discurso proferido na Câmara dos Deputados por ocasião do dia 20 de 20 de novembro: novembro de 1985. Dia Nacional da Consciência Negra Senhor Presidente, Senhores Deputados,

Aconteceu no dia 20 último um evento da maior significação cívico-cul- tural e que merece ser registrado nos anais desta Câmara: o ministro da Cultu- ra, professor Aluísio Pimenta, subiu a serra da Barriga, acompanhado do go- vernador Divaldo Suruagi, de Alagoas, e do prefeito Risiber Oliveira de Melo, de União dos Palmares, e, junto a alguns mi- lhares de negros e representantes de or- ganizações afro-brasileiras, celebraram a memória de Zumbi. Uma celebração vibrante e colorida durante a qual o mi- nistro Aluísio Pimenta homologou o ato THOTH 3/ dezembro de 1997 22 Debates

do Conselho do Patrimônio Histórico Na- Aloysio Chaves fazia um pronunciamen- cional que tombou a serra, onde, de 1595 to de retórica enganosa patrocinando a a 1696, existiu a República dos Palmares. rejeição do projeto de lei, aprovado pela Reconhecendo e honrando o valor do fei- Câmara e com parecer favorável da to palmarino, o ato se traduz como uma Comissão de Educação e Cultural do releitura de nossa História, agora vista Senado, que transforma a data da morte desde a perspectiva dos dominados. E nos de Zumbi, Dia Nacional da Consciência vencidos de Palmares o exemplo do Negra, em feriado nacional. heroísmo negro expresso no amor à liber- Infortunadamente, assim como Do- dade vinca um traço fundamental do ca- mingos Jorge Velho arrasou pelas armas a ráter brasileiro.mmmmmm república da liberdade e da igualdade e li- Enquanto tais ocorrências se desen- quidou o seu povo majoritariamente negro, rolavam lá no Nordeste alagoano, aqui no o senador Aloysio Chaves tentou, no dis- Congresso, ou melhor, ali no Senado Fe- curso do dia 19, obliterar o povo negro e a deral, na véspera daquela extraordinária sua história, refletida de forma imperecível peregrinação a Palmares, um senador da no episódio da Tróia Negra.mmmmmmm República - o senador Aloysio Chaves O senador sabia, porque leu o meu (PDS-PA) reeditava um fato melancólico projeto de lei, tratar-se de uma aspira- equivalente àquele de Domingos Jorge ção da comunidade afro-brasileira como Velho assassinando com armas mercená- um todo. No entanto o Sr. Aloysio Chaves rias a Zumbi e destruindo a república feriu de morte a reivindicação dos negros, libertária dos negros. Destruindo Palmares, desenvolvendo um raciocínio fossilizado de os escravocratas de então se propunham slogans fora de uso até mesmo pelos ra- destruir os africanos autolibertados do cistas mais empedernidos.mmmmmmmm cativeiro, e ao mesmo tempo procuravam destruir sua história feita de sangue e tra- Argumenta o senador Aloysio balho suado no rastro de sua humanidade Chaves, com afirmações que só têm base agredida e vilipendiada pelo regime na hipocrisia e no cinismo do racismo escravista. brasileiro, que “As distinções raciais nun- ca prevaleceram no Brasil”! Tanto pre- Enquanto o ministro Aluísio Pimen- valeceram e prevalecem que um simples ta alçava sob a pureza do céu de Palmares feriado, de cunho puramente simbólico seu gesto tão denso de sabedoria, justiça para o negro, foi rejeitado por um Sena- e patriotismo, inscrevendo uma página de do composto só de brancos, onde apenas beleza sem precedentes em nossa uma ou outra voz insubmissa como aque- historiografia; enquanto o ministro galga- la do senador Itamar Franco ousou dis- va as mesmas encostas de onde os cordar. De fato, poderíamos abarrotar o palmarinos se defenderam dos exércitos plenário do Senado com o resultado de holandeses, portugueses e bandeirantes pesquisas, depoimentos, estatísticas, te- durante mais de cem anos, o senador ses, livros, reportagens, etc. de autoria 20 de novembro: dia nacional da consciência negra Abdias Nascimento 23

de cientistas sociais, militantes negros, inclusive entre os escravos participantes da escritores, historiadores, órgãos oficiais Guerra do Paraguai, das lutas farroupilhas como o Sine (Ministério do Trabalho) e e de consolidação da Independência? o Instituto Brasileiro de Geografia e Es- Utilizando-se do jargão conven- tatística, documentando exuberantemente cional do não-racismo, que alardeia a que no Brasil prevalecem, sim, as distin- chantagem da miscigenação como pro- ções raciais, e as vítimas delas são os va de ausência de racismo; invocando descendentes daqueles africanos que não até mesmo equívocos interesses econô- vieram da África, conforme diz o sena- micos, o senador Aloysio Chaves nega o dor, mas que para cá foram trazidos con- dia 20 de novembro como feriado por- tra a vontade, pela força.mmmmmmm que “um projeto deste traz profundos O senador Aloysio açucara a voz danos também à economia nacional”. quando fala: “Sabemos do papel, da Mas nada diz o senador sobre os mais de constribuição admirável que o negro pres- três séculos que o negro se viu roubado tou para a formação do nosso país”, mas do seu trabalho produtivo, e as razões nega na prática ao negro qualquer direito econômicas se baseavam no raciocínio à sua própria história, cultura e identida- de que a escravidão resultava de uma de. Porque, segundo o senador, reconhe- “necessidade”histórica...mmmmmmmm cer que o negro tem história no Brasil Não podemos admitir que uma “divide a Nação Brasileira”. Desde sua Nação, erigida sobre a estrutura cri- posição autoritária, o senador demons- minosa da escravatura, queira perpe- tra um profundo desprezo pelos fatos tuar os privilégios de uma raça sobre a históricos, e chega ao extremo de afir- outra. Não podemos permitir que ain- mar que “A libertação dos escra- da hoje se possa impunemente afirmar vos fez-se sem traumatismo, sem cho- que “este projeto atenta, sobretudo, ques, sem violência, sem derramamen- contra esse caráter de homogeneidade to de sangue”. Estamos indecisos em da Nação/Brasileira, contra a considerar ignorância ou má-fé do se- indivisibilidade da nossa etnia, do povo nador Aloysio Chaves, ou ambas: que brasileiro, é uma extravagância para significam para ele cem anos de luta caracterizar uma minoria negra (...).” armada dos palmarinos contra Essa argumentação tradicional do siste- escravizadores holandeses, portugueses ma de dominação dos brancos sobre os e bandeirantes? E os quilombos pipocan- negros e os índios não consegue mais do em quase todas as regiões do nosso empulhar e anestesiar a consciência dos território também nada significam para brasileiros democratas e progressistas, o senador? Nenhum valor têm para o sejam eles negros ou brancos.mmmmm opaco congressista paraense as insurrei- ções malês, a Revolta dos Alfaiates, a Pois esta Nação somente será Balaiada e tantos outros episódios nos homogênea quando deixar de existir en- quais o negro buscou liberdade e respeito, tre nós o elitismo dominador dos bran- THOTH 3/ dezembro de 1997 24 Debates

cos; esta Nação terá uma etnia indivisível mudanças que se operam no país; mu- quando todos os seus componentes - ne- danças, quem sabe, capazes de atingir gro, índio e branco - tiverem uma efeti- até mesmo os mais insensíveis membros va igualdade de oportunidades sociais, e do Senado. E talvez então o 20 de no- gozarem de igual respeito à sua origem. vembro, Dia Nacional da Consciência Enfim, delirante extravagância é o sena- Negra, consiga oficializar aquilo que já dor pretender caracterizar a comunida- é, para a comunidade negra brasileira, o de afro-brasileira como uma minoria ne- único feriado digno de comemoração. A gra, quando somos o contigente majori- luta continua. tário do povo brasileiro. E é para dar um basta a extravagâncias do tipo desse comportamento do senador Aloysio Cha- Axé, Zumbi! ves que os negros brasileiros se organi- zam e lutam para dignificar sua História e seus heróis. Nossa herança africana não pode ficar à mercê das distorções, incompreensões e injustiças dos racistas Deputado ABDIAS NASCIMENTO mascarados do nosso Brasil.mmmmmm No futuro, vou reapresentar esse projeto de lei porque tenho confiança nas Sala das Sessões, em 27 de novembro de 1985 Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 25

ATUAÇÃO PARLAMENTAR THOTH 3/ dezembro de 1997 26 Atuação Parlamentar Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 27

Projeto de Resolução no 126, de 1997

Projetos Institui o Prêmio Cruz e Sousa e dá outras providências.

O Congresso Nacional resolve:

Art. 1º Fica instituído o Prêmio O projeto foi aprovado no Senado Cruz e Sousa, destinado a agraciar auto- na sessão de 10 de dezembro de res de trabalhos alusivos à comemora- 1997, na Câmara dos Deputados, ção do centenário de morte do poeta bra- na sessão de 22 de janeiro de 1998 sileiro, a ser celebrado em março de e promulgado em 29 de janeiro de 1998. 1998, por meio da Resolução no 1, de 1998-CN. Art. 2º Para proceder à aprecia- ção dos trabalhos concorrentes será constituído um Conselho a ser integrado por cinco membros do Congresso Naci- onal e por seu Presidente que, por sua vez, fará a indicação desses parlamen- tares, logo após a aprovação deste Pro- jeto de Resolução. THOTH 3/ dezembro de 1997 28 Atuação Parlamentar

Parágrafo único. A prerrogati- JUSTIFICAÇÃO va da escolha do Presidente do Conse- lho caberá aos seus próprios membros, Em boa hora vem o Congresso que o elegerão entre seus integrantes. Nacional, por via legislativa, prestar jus-

Art. 3º O teor do Prêmio Cruz e ta homenagem àquele que constitui um dos marcos da literatura e da cultura bra- Sousa, bem como o formato, as regras e sileiras: o poeta Cruz e Sousa. os critérios que presidirão à elaboração dos trabalhos concorrentes, serão suge- Nascido em 24 de novembro de ridos pelo Conselho à Mesa Diretora do 1861, na cidade de Desterro, atual Congresso Nacional e publicamente di- Florianópolis, em Santa Catarina, Cruz e vulgados. Sousa viveu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde produziu a parcela mais Art. 4º Os trabalhos concorren- importante de sua extensa obra. Minado tes deverão ser encaminhados à Mesa pela tuberculose, morreu precocemente, Diretora do Congresso Nacional até o aos 36 anos, em Juiz de Fora, Minas Ge- dia 19 de março de 1998, dia consa- rais, em 19 de março de 1898. grado ao centenário de morte do es- O início da carreira literária desse critor Cruz e Sousa. filho de escravos negros, quando ainda vi- Art. 5º O Prêmio será conferi- via em Santa Catarina, foi pontuada por do em sessão do Congresso Nacional páginas sentimentais e textos de cunho especialmente convocada para este fim, libertário, já que toda a sua obra foi profun- a se realizar até o mês de junho se- damente marcada pela luta contra a es- guinte. cravidão e o preconceito racial. Eventos de sua biografia, além do Art. 6º A Diretoria Geral ofere- fato de ser negro, justificam a adoção des- cerá apoio administrativo ao funciona- sa bandeira de luta. Houve, inclusive, um mento do Conselho. momento em que o preconceito o impediu Art. 7º Esta Resolução entra em de assumir o cargo de promotor, em Lagu- vigor na data de sua publicação. na, para o qual fora nomeado. Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 29

Cruz e Sousa THOTH 3/ dezembro de 1997 30 Atuação Parlamentar Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 31

Foi após a sua mudança para o Rio a grandiosidade de sua obra chamou a de Janeiro, em 1890, que Cruz e Sousa atenção para “esse humilde filho de uma integrou o primeiro grupo simbolista bra- raça que, até então, não produzira ne- sileiro, do qual se tornou expoente maior. nhuma figura marcante nas nossas letras”. Foi a partir de sua obra poética, segundo Nesse final de século, em que as juízo dos mais importantes historiadores da literatura brasileira, que se renovou a reivindicações dos movimentos negros expressão poética em língua portuguesa, têm redundado em consideráveis avan- com a incorporação de um código verbal ços sociais, é importante trazer à baila a praticamente novo. figura de Cruz e Sousa, o homem e a obra. É intenção precípua da presente proposta – dirigida, principalmente, para É, portanto, esse grande nome, as novas gerações, nessa quadra em que merecedor de nossa reverência, que o a juventude mostra-se carente de presente Projeto de Resolução pretende parâmetros cívicos e culturais – o resga- homenagear. É para a meritória iniciati- te da figura e da postura exemplar de va que encarecemos o acolhimento pe- Cruz e Sousa. los ilustres Pares.

Permitimo-nos lembrar, ainda, a dívida que a sociedade brasileira contraiu Sala das Sessões, em 25 de setembro de 1997. com aqueles que abraçaram a bandeira de luta em favor dos espoliados e excluí- Senador ABDIAS NASCIMENTO dos, particularmente dos sumariamente Senador ESPERIDIÃO AMIN discriminados por motivos raciais. Nes- se panorama, destaca-se Cruz e Sousa. Publicado no Diário do Senado Federal Nas palavras de Alceu Amoroso Lima, em 26.09.97 THOTH 3/ dezembro de 1997 32 Atuação Parlamentar Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 33

Parecer no 778, de 1997 Da Comissão de Educação, sobre o Projeto de Resolução do Senado no 126, de 1997.

1. Relatório

O Projeto de Resolução no 126, de 1997, apresentado pelos senhores senadores Abdias Nascimento e Esperidião Amin, institui o Prêmio Cruz e Sousa destinado a agraciar trabalhos alusivos à comemoração do centenário da morte do poeta brasileiro, que será celebrado em março de 1998.

O Projeto em tela prevê a constituição de um Conselho que se incumbirá da apreciação e seleção dos trabalhos, bem como da definição do formato, das regras e dos critérios que nortearão a apresentação dos concorrentes, devendo contar com ampla divulgação pública. THOTH 3/ dezembro de 1997 34 Atuação Parlamentar

O art. 4o do presente Projeto fixa a Filho de escravos, como bem data de 19 de março de 1998, centenário informa a justificação do Projeto, Cruz da morte do escritor Cruz e Sousa, como e Sousa teve que buscar, com muita prazo para a apresentação dos trabalhos à batalha, seu próprio espaço na Mesa Diretora do Congresso Nacional. sociedade e nas letras brasileiras, conforme atestam passagens de sua A láurea será conferida em biografia. Essa luta foi traduzida em sessão do Congresso Nacional páginas que refletem seu espírito convocada especialmente para este fim, libertário e sua competente até junho de 1998, conforme dispõe o combatividade. art. 5o. Por tais méritos, o poeta já se faz O Projeto estipula, ainda, que a merecedor da importante homenagem Diretoria-Geral do Senado Federal proposta pelo Projeto em análise. oferecerá suporte administrativo ao trabalho do Conselho. No entanto, a relevância dessa iniciativa reside, de igual modo, no Em exame na Comissão de imperativo de os poderes constituídos Educação do Senado Federal, o Projeto tomarem a dianteira no processo de não recebeu emendas no prazo resgate das figuras importantes da regimental. nossa história e da nossa tradição política, para que possam ocupar o seu 2. Análise lugar de referência da sociedade brasileira, particularamente para as gerações mais jovens. É bastante oportuna a iniciativa Um país define sua identidade do Congresso Nacional de se adiantar quando se reconhece em suas desta- às comemorações do centenário de cadas figuras históricas, que, no desem- morte daquele que foi o maior dos nossos penho de diferentes atividades, poetas simbolistas. Além de sua contribuíram para a consolidação dos importante obra literária - assim princípios democráticos. Trazer à luz o reconhecida por destacados historiadores exemplo das referidas figuras é uma da literatura brasielira -, merece destaque prática que merece inteiro respaldo, pois sua trajetória de engajamento contra as é por seu intermédio que podemos exercer perversas consequências do preconceito plenamente a nossa cidadania. O presente racial. Projeto cumpre esse propósito. Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 35

3. Voto aprovação do Projeto de Resolução no 126, de 1997.

Nesse sentido, por considerarmos que a meritória proposta em exame se Senador OTONIEL MACHADO encontra em perfeita consonância com Relator os ditames constitucionais, além de não apresentar óbices de natureza jurídica, Publicado no Diário do Senado Federal pronunciamo-nos favoravelmente a em 28-11-97 THOTH 3/ dezembro de 1997 36 Atuação Parlamentar Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 37

Da Comissão Diretora, sobre o Projeto o Parecer n 779, de 1997 de Resolução do Senado no 126, de 1997.

1. Relatório

Vem ao exame desta Comissão Diretora o Projeto de Resolução do Senado no 126 de 1997, CN, de autoria dos nobres senadores Abdias Nascimento e Espiridião Amin, instituindo o Prêmio Cruz e Sousa, destinado a agraciar autores de trabalhos alusivos à comemoração do centenário da morte desse grande poeta simbolista, que transcorrerá no mês de março de 1998. THOTH 3/ dezembro de 1997 38 Atuação Parlamentar

O Projeto estabelece: É o relatório.

2. Parecer I - que o Presidente do Congresso Nacional indicará cinco parlamentares A proposta sob exame se insere para compor um Conselho, ao qual nas comemorações do centenário da incumbirá: morte do grande poeta simbolista a) eleger seu Presidente; brasileiro Joaõ de Cruz e Sousa. b) apreciar os trabalhos concorrente; Nascido em 24 de novembro de 1861, filho de escravos, Cruz e Sousa, c) sugerir à Mesa Diretora do arrostando toda espécie de Congresso, para divulgação pública, preconceitos, conseguiu sobrepujar as o teor do Prêmio, bem como o dificuldades econômicas e sociais que formato, as regras e os critérios que marcaram sua vida e conquistar, por presidirão à elaboração dos trabalhos meio de seu talento e de sua brilhante concorrentes; criação literária, um lugar de destaque no panteão dos grandes escritores II - que os trabalhos deverão ser brasileiros de todos os tempos. encaminhados à Mesa Diretora do Congresso até o dia 19 de março de Infelizmente, homenagear os 1998, data em que se comemora o grandes vultos de nosso passado centenário da morte do escritor Cruz e histórico e cultural é um costume que Sousa. não tem sido cultivado com a intensidade que a nossa nacionalidade merece. Tanto III - que o prêmio será conferido mais no caso de Cruz e Sousa, em sessão do Congresso Nacional representante de uma raça submetida a especialmente convocada para este fim, uma das mais odiosas e indignas a se realizar até o mês de junho discriminações que o ser humano já pôde seguinte; perpetrar contra seus semelhantes.

IV - que a Diretoria-Geral Por isso tudo, a iniciativa de oferecerá o apoio administrativo resgatar a memória de Cruz e Sousa, na necessário ao funcionamento do oportunidade do centenário de sua morte, Conselho. mediante a instituição do prêmio proposto, só pode merecer todo o nosso O projeto foi submetido à apoio, pois irá redundar, certamente, em Comissão de Educação que, lições de civismo e dignidade, de que sua considerando-o, além de meritório, vida e sua obra estão repletas, erigindo- jurídico e constitucional, manifestou-se se em exemplo a ser perenizado na favoravelmente à sua aprovação. lembrança de nosso povo. Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 39

Assim sendo, não hesitamos em A obra de Cruz e Sousa propor a aprovação do presente projeto imensamente repousa de resolução, que homenageia de forma em “Tropos e fantasias’. mereceida esta figura ímpara de nossas Em “Missal” e “Evocações”, letras letras nacionais. Pois: “Broquéis”, “Faróis”, Emoções de um mundo de poesias.

O resgate da memória, Acato o requerimento da vida, da trajetória e lhe dou deferimento do vate catarinense por seu aspecto legal. é gesto para ser louvado Será um belo concurso é mérito para o Senado e vai ter muito discurso é honra que nos pertence. na sua terra natal.

O poeta simbolista Os autores, na verdade, integra pequena lista revelam identidade de poetas geniais. que cada história projeta. Tem uma história bonita, Abdias pela raça. é triste, mas não evita E Amin por ter graça belezas sentimentais. de ser da mesma praça onde nasceu o poeta. Era filho de um escravo, mas, preto e pobre, foi bravo O meu voto é favorável ante tudo que sofreu. a essa justa medida. Casou com Gavita Rosa, Que nosso plenário acate que morreu tuberculosa, essa homenagem ao vate como o poeta morreu. que vai servir de resgate duma história e duma vida. Sua esposa enlouqueceu depois que um filho morreu Senador RONALDO CUNHA LIMA e um outro morreu depois. E a morte, não satisfeita, Relator ainda ficou na espreita e em breve levou os dois. Publicado no Diário do Senado Federal em 28-11-97 THOTH 3/ dezembro de 1997 40 Atuação Parlamentar Projetos de Lei Prêmio Cruz e Sousa 41

Ato do Congresso Nacional Faço saber que o Congresso Na- cional aprovou, e eu, Antonio Carlos Magalhães, Presidente do Senado Federal, nos termos do parágrafo único do art. 52 do Regimento Comum, promulgo a seguinte

Promulga a Resolução no 1, de RESOLUÇÃO 1998-CN, que institui o Prêmio Cruz e Sousa. No 1, de 1998-CN

Institui o Prêmio Cruz e Sousa e dá outras providências.

O Congresso Nacional resolve: Art. 1o É instituído o Prêmio Cruz e Sousa destinado a agraciar autores de trabalhos alusivos à comemoração do centenário de morte do poeta brasileiro, a ser celebrado em março de 1998. THOTH 3/ dezembro de 1997 42 Atuação Parlamentar

Art. 2o Para proceder à Art. 5o O Prêmio será conferido apreciação dos trabalhos concorrentes em sessão do Congresso Nacional será constituído um Conselho a ser especialmente convocada para este fim, integrado por cinco membros do a se realizar até o mês de junho seguinte. Congresso Nacional e por seu Presidente Art. 6o A Diretoria-Geral do que, por sua vez, fará a indicação desses Senado Federal oferecerá o apoio parlamentares, logo após a aprovação administrativo ao funcionamento do desta Resolução. Conselho. Parágrafo único. A prerrogativa Art. 7o As despesas decorrentes da escolha do Presidente do Conselho da aplicação desta Resolução correrão à caberá aos seus próprios membros, que conta do orçamento do Senado Federal. o elegerão entre seus integrantes. Art. 8o Esta Resolução entra em Art. 3o O teor do Prêmio Cruz e vigor na data de sua publicação. Sousa, bem como o formato, as regras e os critérios que presidirão à elaboração dos trabalhos concorrentes, serão Senado Federal, em 29 de janeiro de 1998 sugeridos pelo Conselho à Mesa do Congresso Nacional e publicamente divulgados. Senador ANTONIO CARLOS MAGALHÃES Art. 4o Os trabalhos concorrentes Presidente do Senado Federal deverão ser encaminhados à Mesa do Congresso Nacional até o dia 19 de março Publicado no Diário Oficial da União de 1998, dia consagrado ao centenário em 30.01.98 de morte do escritor Cruz e Sousa. Projetos Inscrição dos líderes da Conjuração Baiana de 1798 no “Livro dos Heróis da Pátria” 43

o Projeto de Lei do Senado n O CONGRESSO NACIONAL 234, de 1997 decreta: Art. 1º Em memória aos duzentos anos da Conjuração Baiana de 1798, serão inscritos no “Livro dos He- Inscreve os nomes de João de róis da Pátria”, que se encontra no Deus Nascimento, Manuel Faustino Panteão da Liberdade e da Democracia, dos Santos Lira, Luís Gonzaga das os nomes de seus líderes: João de Deus Virgens e Lucas Dantas Torres, Nascimento, Manuel Faustino dos San- líderes da Conjuração Baiana de tos Lira, Luís Gonzaga das Virgens e 1798, no “Livro dos Heróis da Lucas Dantas Torres. Pátria”. Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

A Conjuração Baiana, co- nhecida como revolta dos Alfaiates - ocorrida na Bahia, em 1798, e um dos mais importantes movimentos sociais de contestação do Brasil Colônia contra a Metrópole -, padece de um esquecimen- to que merece reparação. THOTH 3/ dezembro de 1997 44 Atuação Parlamentar

A história oficial tem dedicado mui- baianos, todos mulatos e pardos, luta- to de seu tempo e empenho no sentido ram pela emancipação dos escravos, per- de esclarecer e difundir a relevância da seguindo o ideal de instalação de um go- Inconfidência Mineira, acontecida nove verno competente que não fizesse distin- anos antes, em Minas Gerais, e perpe- ção de raça entre os cidadãos. tuada graças à justa magnitude que tem Sentenciados com a pena de sido conferida à figura de seu líder máxi- morte, os líderes João de Deus Nas- mo, Joaquim José da Silva Xavier, o cimento, Manuel Faustino dos Santos Tiradentes. Lira, Luís Gonzaga das Virgens e Há, no entanto, uma característi- Lucas Dantas Torres foram executa- ca que precisa ser resgatada e que é fun- dos e tiveram seus corpos esquar- damental para a compreensão, tanto da- tejados. Como Tiradentes, foram mar- quele período, quanto do papel desempe- cados para o sacrifício, como forma nhado pela Conjuração Baiana na histó- de aplacar a fúria da Coroa portugue- ria brasileira. Em Minas, o movimento re- sa, e demonstraram a bravura dos volucionário foi eminentemente político mártires. e conduzido por intelectuais, sacerdotes A intenção da presente iniciati- e abonados proprietários de terras. Na va, portanto, reside, sobretudo, no res- Bahia, ao contrário, a insurreição assu- gate desses humildes heróis brasilei- miu um caráter social e foi liderada por ros, que, tanto quanto Tiradentes, sim- gente do povo, como alfaiates e solda- bolizam o espírito republicano. Mais dos, todos mulatos e pobres, sem nenhu- que isso, materializam a luta contra o ma personagem de destacada situação preconceito racial e o lançamento das na escala social. bases de uma sociedade democrática. Contudo, tanto a Inconfidência Mi- Uma das suas proclamações, divulgada neira quanto a Conjuração Baiana foram em plena revolução, declarava: “Quer o movimentos que contribuíram de modo de- povo que todos os membros militares de finitivo para a liberdade do País, abrindo linha, milícia e ordenanças, homens bran- caminho para o grito da Independência e cos, pardos e pretos concorram para a os primeiros passos da República. liberdade popular.” Revolução articulada nas ruas en- A inscrição dos líderes da Conju- tre escravos e libertos, soldados e artífi- ração Baiana no “Livro dos Heróis da ces, operários e agricultores, o movimen- Pátria”, permanentemente depositado to baiano teve o objetivo de propiciar no Panteão da Liberdade e da Demo- aos homens do povo acesso aos pos- cracia, promove o justo resgate, para tos de trabalho que lhes eram negados a cena brasileira, de um importante epi- por mero preconceito de cor. Em últi- sódio da história nacional, no momento ma instância, os revolucionários em que ele completa duzentos anos. Projetos Inscrição dos líderes da Conjuração Baiana de 1798 no “Livro dos Heróis da Pátria” 45

Nesse sentido, considerando sua Sala das Sessões, em 23 de outubro de 1997. oportunidade, esperamos a acolhida do presente Projeto de Lei pelos ilustres Pares. Senador ABDIAS NASCIMENTO

Publicado no Diário do Senado Federal em 24-10-97 THOTH 3/ dezembro de 1997 46 Atuação Parlamentar Proposta de emenda à Constituição Garantia às comunidades remanescentes dos quilombos dos direitos assegurados às populações indígenas 47

As Mesas da Câmara dos Proposta de emenda à Constituição Deputados e do Senado Federal, nos ter- no 38, de 1997 mos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional: Altera os arts. 49, 129 e 176 e acrescenta o art. 233 ao Capítulo Art. 1º O inciso XVI do art. 49 VIII do Título VIII da Constituição Federal, para garantir às comunida- da Constituição Federal passa a vigorar des remanescentes dos quilombos os com a seguinte redação: direitos assegurados às populações indígenas. “Art.49......

XVI - autorizar, em terras indíge- nas ou ocupadas pelos remanescentes dos quilombos, a exploração e o aproveita- mento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais.” Art. 2º O inciso V do art. 129 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: THOTH 3/ dezembro de 1997 48 Atuação Parlamentar

“Art. 129...... Art. 5º Adicione-se ao Capítulo VIII, Título VIII da Constituição Federal V - defender judicialmente os di- o art. 233, com a seguinte redação, reitos e interesses das populações indí- renumerando-se os arts. subseqüentes: genas e das comunidades remanescen- tes dos quilombos.” “Art. 233. Aplicam-se às comu- nidades remanescentes dos quilombos Art. 3º O § 1º do art. 176 da que ocupam suas terras tradicionais as Constituição Federal passa a vigorar com disposições constantes dos arts. 231 e a seguinte redação: 232.” “Art. 176...... Art. 6º Esta Emenda entra em § 1º A pesquisa e a lavra de re- vigor na data de sua publicação. cursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o ‘caput’ des- te artigo somente poderão ser efetuados JUSTIFICAÇÃO mediante autorização ou concessão da A Constituição Federal de 1988, União, no interesse nacional, por brasi- no artigo 68 do Ato das Disposições leiros ou empresa constituída sob as leis Constitucionais Transitórias, conce- brasileiras e que tenha sua sede e admi- deu a propriedade definitiva das terras nistração no País, na forma da lei, que ocupadas pelos remanescentes das co- estabelecerá as condições específicas munidades dos quilombos e determinou quando essas atividades se desenvolve- que o Estado emitisse os títulos respecti- rem em faixa de fronteira, terras indíge- vos. nas ou terras ocupadas pelas comunida- Em obediência às determinações da des remanescentes dos quilombos.” Lei Maior, o Instituto Nacional de Coloni- Art. 4º O Capítulo VIII do Título zação e Reforma Agrária (INCRA) ou- VIII da Constituição Federal passa a de- torgou, em 1995, títulos de propriedade a nominar-se “Dos Índios e Das Comuni- três comunidades localizadas no Pará. dades Remanescentes dos Quilombos”. Nesse mesmo Estado, estão em curso le- 49 Foto: Elisa Larkin Nascimento Larkin Elisa Foto:

Comunidade rural afro-brasileira em Alcântara-MA, 1980 Foto: Elisa Larkin Nascimento Larkin Elisa Foto:

Integrantes da comunidade rural afro-brasileira do vale do Jequitinhonha-MG fazem a tradicional dança do Catopé, 1984 THOTH 3/ dezembro de 1997 50 Atuação Parlamentar Proposta de emenda à Constituição Garantia às comunidades remanescentes dos quilombos dos direitos assegurados às populações indígenas 51

vantamentos para a titulação de mais cin- Observe-se, a propósito, que às co áreas destinadas a herdeiros dos garantias constitucionais conferidas aos quilombos. remanescentes dos quilombos não se se- guiu, como no caso das populações indí- Em São Paulo e no Maranhão, genas, a declaração de nulidade dos atos realizam-se a identificação e o levanta- que tenham por objeto a ocupação, o do- mento fundiário de comunidades rema- mínio ou a posse de suas terras. Assim, nescentes, com vistas à concessão de tí- o decurso do tempo, em razão do não tulos de propriedade. cumprimento imediato da Carta Magna, Além disso, organismos governa- é aliado daqueles que obstam a efetivação mentais vêm desenvolvendo programas dos direitos assegurados aos quilombolas. voltados para essas comunidades negras, A presente Proposta de Emenda com o fim de lhes garantir a exploração à Constituição tem o objetivo de impedir agronômica do território, de forma com- que se concretizem os obstáculos apostos patível com a preservação de sua identi- à efetivação das garantias constitucionais dade cultural. conferidas às comunidades remanescen- Entretanto, passados quase dez tes dos quilombos. Com essa finalidade, anos do ordenamento constitucional, pou- propomos estender às citadas comunida- co se fez para efetivar os direitos des os direitos concedidos aos índios, bem territoriais reconhecidos aos mais de 600 como assegurar-lhes as cautelas prescri- grupos remanescentes dos quilombos, tas pela Lei Maior no tratamento das existentes em dezessete estados brasi- questões que envolvem as populações leiros. Ademais, os inúmeros conflitos indígenas, com vistas à sua preservação entre comunidades quilombolas e fa- física e cultural. zendeiros, grileiros, madeireiros e Estamos convencidos de que os mineradoras retratam a dimensão dos ris- membros das Casas que compõem o cos que ameaçam aquelas comunidades, Congresso Nacional serão sensíveis à ne- os quais poderão impedir a consecução cessidade de garantir efetivamente os dos direitos outorgados pela Lei Magna. THOTH 3/ dezembro de 1997 52 Atuação Parlamentar

direitos dos remanescentes da resistên- cha - Esperidião Amin - Roberto Requião - Benedita da Silva - Gerson Camata - cia heróica dos quilombos brasileiros. Nabor Júnior - Eduardo Suplicy - Júnia Marise - Roberto Freire - Antonio Carlos Valadares - Sebastião Rocha - Jonas Pi- Sala das Sessões, em 24 de outu- nheiro - Ademir Andrade - Epitácio Ca- feteira - Pedro Simon - José Alves - bro de 1997. Ramez Tebet - Osmar Dias - Elcio Alvarez - Frencelino Pereira - Levy Dias - Lauro Campos - José Eduardo Dutra. Senador ABDIAS NASCIMENTO (1o signatário) (PDT-RJ) - Emília Fernandes - Joel de Hollanda - Waldeck Ornelas - Publicado no Diário do Senado Federal Romero Jucá - João França - João Ro- em 25-10-97 53

Discurso proferido no Senado Federal em 16 de outubro de 1997

A importância para o País da Pronunciamentos criação da Frente Negra Brasileira, na década de 30.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, Sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Um dos períodos mais conturba- dos e mais ricos de nossa História con- temporânea, a década de 1930 foi um período marcante e decisivo na forma- ção deste País, tal como hoje o conhece- mos. Foi quando a intensa agitação polí- tica iniciada na década precedente ga- nhou as ruas, expressando-se concreta- mente nas Revoluções de 30 e de 32, na chamada Intentona Comunista de 35, no THOTH 3/ dezembro de 1997 54 Atuação Parlamentar

putsch integralista de 38 e no Estado relações raciais no Brasil, as condições Novo, que, instituído um ano antes, se de vida dos afro-brasileiros, pouco transformaria num dos mais longos perí- satisfatórias até então, agravaram-se ain- odos ditatoriais de nossa vida como Re- da mais com a crise de 29, que fez pública. Todos esses fatos são ensinados grassar o desemprego entre mulheres e em nossas escolas e fazem parte do acer- homens negros - ou “de cor”, como en- vo cultural de qualquer brasileiro que te- tão se preferia dizer. Ao deixar sem ocu- nha tido acesso, pelo menos, à escola se- pação elementos capazes de estabelecer cundária. Mas o que me traz a esta tri- o contato entre “elite” e massas, os quais buna, embora de grande importância na encontravam terreno favorável para a história política e, sobretudo, na história ação num meio descontente com o de- das idéias neste País, é um evento de semprego, esse fato criou condições fa- idêntica magnitude, mas praticamente voráveis à emergência de um movimen- desconhecido, mesmo daqueles de nós to reivindicatório de caráter e feição ino- que tiveram o virtual privilégio de freqüen- vadores no quadro do chamado “protes- tar a universidade. Estou me referindo à to negro” no Brasil. Frente Negra Brasileira, a única organi- Na verdade, a Frente Negra não zação de massas jamais criada pelos afro- nasceu num vácuo político-social, brasileiros, que conseguiu agregar deze- tampouco foi fruto de geração espontâ- nas de milhares de descendentes de afri- nea. Muito pelo contrário, constituiu a canos em torno dos ideais de justiça e culminação de uma série de organizações igualdade. que, desde o início do século, buscavam Fundada em 16 de setembro de congregar os descendentes de africanos, 1931 por um grupo de militantes lidera- sobretudo em São Paulo. Eram clubes, dos por Arlindo Veiga dos Santos, associações e órgãos de imprensa que, Gervásio de Morais, Isaltino dos Santos se de início apresentavam um caráter e Roque Antônio dos Santos, a Frente cultural-beneficente, logo evoluíram para Negra Brasileira reflete as intenções a “arregimentação da raça”. Essa ten- reivindicatórias de um grupo que até en- dência pode ser constatada na ação de tão vivera totalmente à margem da so- periódicos como o Palmares ou o Cla- ciedade e que agora percebia a necessi- rim da Alvorada, bem como na tentati- dade de arregimentar a sua massa para va de se organizar um Congresso da obter maior eficiência na efetivação des- Mocidade Negra, ainda nos anos 20. Tan- sas reivindicações. Para isso concorreu, to nesse período como no desenvolvimen- ao lado das transformações sociais que to da Frente Negra, teve papel decisivo então se processavam, a não-concretização a liderança de José Correia Leite, enca- das esperanças que os negros depositavam beçando iniciativas que visavam libertar na Revolução de 30. Além disso, como os afro-brasileiros de uma herança incô- aponta o eminente sociólogo Roger moda e aniquiladora, que, poucas déca- Bastide, um dos maiores estudiosos das das passadas desde a Abolição, dificul- Pronunciamentos Frente Negra Brasileira 55

tava e impedia - como até hoje dificulta e se mostrava sensível às reivindicações da impede - sua incorporação ao regime de Frente, atacadas com o tradicional chavão trabalho livre e ao sistema de classes so- do “racismo às avessas”, puído clichê até ciais. Tratava-se de substituir esse legado hoje utilizado para imobilizar os afro-brasi- nocivo por novos valores sociais, consis- leiros que ousam denunciar as injustiças de tentes com a nova configuração da vida que são vítimas. Mas a mensagem da Fren- social urbana. te Negra, que pretendia “congregar, edu- Segundo seus estatutos, a Frente car e orientar” os negros, sobretudo Negra Brasileira era uma “união política e paulistas, e “completar o 13 de Maio”, ob- social da Gente Negra Nacional, para afir- teve uma imensa repercussão em seu pú- mação dos direitos históricos da mesma, blico-alvo. Pois tocava num dos pontos mais em virtude de sua atividade material e mo- sensíveis da personalidade dos africanos ral no passado e para reivindicação de seus em qualquer parte da Diáspora: a necessi- direitos sociais e políticos, atuais, na Co- dade de auto-afirmação diante de socieda- munhão Brasileira”. Dentre seus objetivos des que, mesmo quando majoritariamente estatutários, destacam-se a “elevação mo- não-européias, não apenas aprenderam a ral, intelectual, artística, técnica, profissio- desprezar o negro, mas inculcaram no pró- nal e física”, bem como a “assistência, pro- prio negro os sentimentos de inferioridade teção e defesa social, jurídica, econômica e de autodesprezo. e do trabalho da Gente Negra”. Para tan- Muitas foram as dificuldades enfren- to, “como força política organizada”, a Fren- tadas pela Frente Negra, e diversos os equí- te Negra Brasileira “pleiteará, dentro da vocos que cometeu. Aos olhos de um mili- ordem legal instituída no Brasil, os cargos tante atual, iluminado por décadas de evolu- eletivos de representação da Gente Negra ção do pensamento e da prática da luta ra- Brasileira (...)”, utilizando-se de “todos os cial, a ênfase que os frentenegrinos coloca- meios legais de organização necessários à vam em aspectos de natureza moral, por consecução de seus fins”. exemplo, pode parecer não apenas retrógra- Não é difícil imaginar o impacto que da ou reacionária, mas uma capitulação di- a fundação da Frente causou na São Paulo ante dos valores ocidentais, procurando criar do início da década dos 30, pouco mais de um “novo negro” que fosse o reflexo in- 40 anos depois de extinta a escravidão no vertido da imagem que dele faziam os Brasil. O poder político estava então divi- brancos. Ao mesmo tempo, o namoro de dido entre as famílias tradicionais, herdei- alguns dirigentes da Frente com o ideário ras dos “bandeirantes” e de outros explo- patrianovista e/ou integralista - “pecado” com- radores secularmente estabelecidos, e os partilhado com alguns de nossos mais impor- imigrantes recentes, alguns deles portado- tantes intelectuais daquele tempo, muitos res de idéias socialistas ou anarquistas - o deles posteriormente convertidos para o que não os impedia de excluir de suas or- campo “progressista” - reflete, mais do ganizações os descendentes de africanos. que tudo, as perplexidades de uma épo- Dada a sua composição, naturalmente não ca em que grande parte das massas via THOTH 3/ dezembro de 1997 56 Atuação Parlamentar

no autoritarismo a solução mais prática e Agora incorporando novos aspectos, den- imediata para os problemas que nos afli- tre eles a afirmação de uma identidade giam. afro-brasileira, alicerçada em nossas matrizes africanas, numa visão que pas- Em 1936, a Frente Negra Brasi- sava a perceber o racismo, não como leira foi transformada em partido políti- questão “dos negros”, mas como ques- co. Acabaria fechada, cerca de um ano tão nacional. A partir da década dos 70, depois, e juntamente com os demais par- ventos mais favoráveis vão possibilitar a tidos, pelo golpe do Estado Novo. Mas emergência de novas organizações, be- não passara em branco. Suas idéias e neficiadas pela experiência da luta negra práticas, em conjunto com as de muitas na África e na América do Norte. O res- outras organizações, como o Clube Ne- gate histórico do turbulento período de gro de Cultura Social ou o Centro Cívico existência da Frente mostra, contudo, que Palmares, ajudaram a forjar um novo tipo o Movimento Negro brasileiro tem for- de afro-brasileiro, menos acomodado di- tes raízes em nosso próprio solo, não cons- ante das manifestações racistas e mais tituindo, como pretendem alguns, mero competitivo no mercado de trabalho. As reflexo da luta desenvolvida em outros intervenções da Frente Negra na cobran- países, em especial nos Estados Unidos. ça de salários de associados injustamen- A incorporação e adaptação de temas e te demitidos do serviço ou na correção táticas utilizados alhures significa apenas de locatários que se recusavam a rece- que estamos alertas e informados, dis- ber inquilinos negros ou que os despe- postos a usar de todos os meios neces- diam abruptamente, bem como em ou- sários para libertar e promover nossa co- tras preocupações dos afro-descenden- munidade. Assim, a experiência da Frente tes no quotidiano, criou o sentimento de Negra, da qual tive a oportunidade de que “os negros já tinham quem os prote- participar e que agora relembro neste ple- gesse” - o que redundou no extraordiná- nário, foi a melhor expressão dos anseios rio crescimento numérico do seu quadro de uma população excluída, destituída de de associados. “Se o fluxo daqueles mo- oportunidades, sem possibilidades de vimentos continuasse com o mesmo ím- construir seu próprio destino, impedida peto”, diz Roger Bastide, referindo-se ao que estava pelas mãos férreas do racis- impacto que sobre eles teve o golpe de mo, ainda hoje o mais terrível algoz dos 37, “ali estavam os germes para o rápido afro-brasileiros. Que o exemplo da Fren- desenvolvimento de um sistema de soli- te, assim como o do Teatro Experimental dariedade com base na cor.” do Negro, possa servir de lição e refe- O espírito da Frente Negra e das rência a todos os negros interessados em demais organizações dos anos 30 estaria alterar a situação de subalternidade que presente na criação do Teatro Experi- nos tem sido imposta nesta sociedade. mental do Negro, que fundei no Rio de Janeiro, em meados da década seguinte. Axé! Pronunciamentos Homenagem a Mestre Didi 57

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente, Federal em 17 de outubro de 1997 Senhoras e Senhores Senadores, Sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Se a cultura africana é a principal matriz da cultura brasileira, a religião Homenagem pelo transcurso dos 80 constitui o ponto focal de onde essa cul- anos de Deoscóredes Maximiliano tura se irradiou. Pois é na prática religio- dos Santos, Mestre Didi, a maior sa que se encontram os elementos figura viva da tradição religiosa constitutivos da visão de mundo e da afro-brasileira. cosmogonia africanas, onde se expres- sam com maior profundidade e clareza os traços fundamentais que caracterizam a maneira africana de ser e estar no mundo. Não foi à toa que os europeus, ao invadirem e ocuparem o Continente Africano, buscaram sempre destruir ou, pelo menos, neutralizar as manifestações religiosas, que percebiam claramente como o principal esteio ideológico a sus- tentar a identidade individual e de grupo sem a qual os africanos seriam presa fá- THOTH 3/ dezembro de 1997 58 Atuação Parlamentar

cil da exploração e da inferiorização hu- to dos orixás. Ainda adolescente, foi in- mana promovidas pelos “colonizadores”. vestido com vários títulos e funções na complexa hierarquia das duas comuni- Transplantadas para as Américas dades religiosas, afirmando-se como lí- com o tráfico de africanos escravizados, der natural da tradição afro-brasileira. Em as religiões africanas aqui desenvolve- 1936, pelas mãos da ialorixá Obabiyi - ram, como forma de sobrevivência, a es- Eugênia Ana dos Santos, a famosa Mãe tratégia do disfarce e do silêncio. Nesse Aninha -, é confirmado Assogbá, supre- contexto, a oralidade impôs-se como ne- mo sacerdote do culto de Obaluaiê, no cessidade, não apenas do ponto de vista Axé Opô Afonjá, uma das comunidades de sua dinâmica interna, mas também, e mais ortodoxas e fiéis aos ensinamentos principalmente, de seu posicionamento de e tradições transmitidos pelos seus fun- defesa diante da cultura branca dominan- dadores africanos. Membro mais velho te. Daí o primado da tradição que, num da linhagem dos Axipá no Brasil, em 1968 sistema de comunicação oral, constitui o foi ordenado Balé-Xangô, numa históri- veículo de conservação e transmissão do ca cerimônia realizada na cidade de Oyo, saber, através do tempo e do espaço, Nigéria, de onde o culto, assim como seus entre as gerações. próprios antepassados, foram trazidos É, assim, com enorme respeito e para a Bahia quase dois séculos atrás. admiração que subo hoje a esta tribuna Em 1946, Mestre Didi publica, pela para prestar minha homenagem à maior Editora e Livraria Moderna, seu primei- figura viva da tradição religiosa afro-bra- ro livro, Iorubá tal qual se fala, um di- sileira, que encarna em si mesma toda a cionário e vocabulário iorubá-português, força, poder e mistério de um sistema de no qual chama a atenção para a existên- crenças que persistiu a séculos de mas- cia e persistência da utilização de uma sacre físico e psicológico. Refiro-me a língua africana como meio de identifica- Deoscóredes Maximiliano dos Santos, ção e comunicação de grupos afro-bra- Mestre Didi, o Assogbá do Axé Opô sileiros concentrados nos templos, ou ter- Afonjá, uma das mais importantes comu- reiros, do candomblé. É o início de uma nidades religioso-culturais afro-brasilei- vasta obra, incluindo livros e ensaios, so- ras. Nascido em Salvador, Bahia, em bre a cultura oral afro-brasileira. Uma 1917, filho da respeitada sacerdotisa Mãe obra que inclui: Axé Opô Afonjá, com Senhora, Mestre Didi é descendente de prefácio de Pierre Verger e notas de uma antiga linhagem de sacerdotes dos Roger Bastide, editado no Rio de Janeiro cultos de origem ketu-nagô. Tendo alcan- em 1962 pelo Instituto de Estudos Afro- çado ainda a convivência com africanos Asiáticos; Contos de nagô (1963), com na ilha de Itaparica, foi iniciado aos oito ilustrações de Carybé, pela GRD do Rio anos de idade no culto dos ancestrais - o de Janeiro; West African rituals and culto dos eguns -, tendo recebido o título sacred art in Brazil, em co-autoria com de Korikouê Olkukotun, e aos 15 no cul- Pronunciamentos Homenagem a Mestre Didi 59

Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi THOTH 3/ dezembro de 1997 60 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Homenagem a Mestre Didi 61

sua esposa, a antropóloga Juana Elbein Fiz questão de citar individualmen- dos Santos, editado em 1967 pelo Insti- te cada um dos componentes dessa lista tuto de Estudos Africanos da Universi- exaustiva apenas para ressaltar o fato de dade de Ibadan, Nigéria; Um negro um autor brasileiro, com uma vasta obra baiano em Ketu, edição do jornal A publicada em vários países de diferentes Tarde, Salvador, 1968; Ancestor continentes e em diversos idiomas, ser worship in Bahia: the Egun cult, edi- virtualmente desconhecido em sua pró- tado pelo Journal des Americanistes, pria terra. Talvez por não ser um branco no 480. Encontro das Sociétés des falando sobre o negro, mas sim um au- Americanistes, Paris, 1969; Eshu Bara têntico produtor da cultura afro-brasilei- Laroyê: a comparative study, pelo Ins- ra dotado de suficiente capacidade e ou- tituto de Estudos Africanos da Universi- sadia para exprimir com a própria voz a dade de Ibadan (1971); “Eshu Bara: visão e os anseios de sua comunidade. principle of individual life in the Nago De par com seus deveres religio- system”, mais uma vez em colaboração sos e sua obra literária, Mestre Didi ela- com Juana Elbein dos Santos, publicado borou e desenvolveu também, desde a em 1973 na coletânea La notion de sua adolescência, um importante traba- personne en Afrique noire, edição do lho na área das artes plásticas - particu- Centre National de Recherche larmente depois de ter sido eleito chefe Scientifique, de Paris; “Religião e cultu- do culto de Obaluaiê e como tal estar in- ra negra na América Latina”, em co-au- cumbido da função e responsabilidade do toria com Juana Elbein dos Santos, publi- manejo dos materiais sagrados e de ze- cado pela Unesco, em 1977, em co-edi- lar pela tradicional execução de emble- ção com a Siglo XXI, na coletânea Áfri- mas e paramentos rituais. Em 1964, rea- ca na América Latina; Contos de Mes- lizou em Salvador sua primeira exposi- tre Didi, editado pela Codecri, do Rio de ção individual, início de uma carreira que Janeiro, 1981; Por que Oxalá usa o consagraria como o artista mais expres- ekodidé, Fundação Cultural do Estado sivo e autêntico da tradição africano-bra- da Bahia, Salvador, 1982; “The Nago sileira. Estados Unidos, Argentina, Fran- culture in Brazil: memory and continuity”, ça, Inglaterra, Nigéria, Gana - esses são na coletânea , edição da alguns dos países em que ele expôs, em Unesco, Paris, 1985; Xangô, el guerrero mostras individuais e coletivas, suas be- conquistador y otros cuentos de Bahia, las e elegantes esculturas, elaboradas Buenos Aires, SD, 1987; no mesmo ano, com materiais como couro, búzios, con- Contes noires de Bahia (Brésil), Paris, tas, sementes e nervura de palmeira. Editions Khartala; Mito da criação do Nelas se fazem presentes os elementos mundo, com litogravuras de Adão Pinhei- plásticos dos modelos tradicionais em ro, Editora Massangana, Recife, 1988; novas concepções, esculturas-objetos di- História de um terreiro nagô, pela Max retamente inspiradas no significado dos Limonad, São Paulo, 1989. símbolos em suas relações míticas, tes- THOTH 3/ dezembro de 1997 62 Atuação Parlamentar

temunhando explorações estéticas pro- Axé Opô Afonjá, que funcionou por quase fundamente ligadas, do ponto de vista dez anos: a Minicomunidade Obá-Biyi - formal e conceitual, à cultura de que se uma escola que incorporou ao seu currí- originam. Como explica o pesquisador culo, bem como à sua prática pedagógi- Marco Aurélio Luz, “o valor máximo da ca como um todo, os elementos funda- arte escultórica de Mestre Didi está em mentais da tradição africana no Brasil. conseguir estabelecer um padrão estéti- Embora interrompida em função dos eter- co original que harmoniza a passagem do nos problemas de recursos financeiros espaço no contexto das recriações pro- que infelizmente costumam acompa- fanas, mantendo a complexidade simbó- nhar iniciativas dessa natureza, a lica e a profundidade das elaborações Minicomunidade constitui um marco re- sagradas”. Tudo isso valeu a Mestre Didi volucionário na história da pedagogia no uma profusão de prêmios e menções Brasil, tanto pela orientação pedagógica, elogiosas, inscrevendo o seu nome na que contemplava os elementos fundamen- reduzida galeria dos artistas plásticos bra- tais da tradição nagô, quanto pela sileiros, de qualquer origem, considera- metodologia, caracterizada pelo respeito dos dignos de tal reconhecimento. Uma à alteridade, ou à diferença, fundamental vez mais, porém, isso não lhe trouxe a num contexto de multirracialidade e merecida fama fora dos círculos pluriculturalismo. Ainda assim, e embora especializados. os alunos que por ela passaram apresen- tassem melhor aproveitamento dos con- Mas as notáveis contribuições de teúdos curriculares e sensível redução na Mestre Didi não se esgotam no terreno evasão escolar, burocratas do Ministério religioso e artístico. Desde 1967, a servi- da Educação resolveram cortar as ver- ço da Unesco, tem realizado, especial- bas que a mantinham, sob a alegação de mente na Nigéria e no Benim, importan- que se tratava de uma experiência “de tes pesquisas a respeito de pontos espe- cunho religioso”. Com os novos ventos ciais de origem dos afro-brasileiros de que sopram de Brasília, onde temos pela ascendência nagô. Ao mesmo tempo, primeira vez um presidente da República suas preocupações com o destino da cul- aparentemente preocupado em encami- tura e do povo de origem africana no nhar soluções para a questão racial nes- Brasil o levam a atuar em organizações te País, esperamos que esse importante identificadas com esses mesmos propó- projeto possa ser retomado. sitos. É o caso da Secneb - Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, de Certa ocasião, no apartamento do Salvador, na qual foi escolhido, em 1974, casal Zora e Antônio Olinto, fiquei co- conselheiro e coordenador de Assuntos nhecendo Mãe Senhora, a respeitada sa- Comunitários. Na mesma linha, cabe des- cerdotisa do Axé Opô Afonjá, da Bahia. tacar o notável trabalho educativo reali- Sentada numa poltrona imponente como zado pela Secneb, em conjunto com o um trono, Mãe Senhora indicou-me um Pronunciamentos Homenagem a Mestre Didi 63

Escultura do Mestre Didi Sasara Ibiri Ati Ejo Meji. Nervura de palmeira, couro, búzios. Altura: 70 cm THOTH 3/ dezembro de 1997 64 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Homenagem a Mestre Didi 65

assento próximo a ela. Colocou suas e conhece o destino dos seres humanos. mãos sobre minha cabeça e respondeu a Respondi-lhes que apenas havia expres- minha indagação: “Sim, você tem com- sado um impulso artístico, sem nenhuma promisso com os orixá; mas sua tarefa outra intenção. Eles então me ensinaram não é dentro do terreiro. Sua missão é que Oxum era o único orixá a quem Ifá trabalhar pelos santos lá fora.” Conhe- havia concedido o poder de, igual a ele, cer Mãe Senhora significou um reforço ver e conhecer a sorte dos homens e das da velha amizade que me ligava a seu mulheres. Mas a mim Oxum estava con- filho Deoscóredes Maximiliano dos San- cedendo a graça de conhecer todas as tos, ou Mestre Didi. Com Mestre Didi, dimensões dos seus poderes, por meio tive o prazer de compartilhar uma ex- dos seus símbolos e emblemas rituais. periência inesquecível, embora as pala- Assim, inspirado por esse encon- vras de Mãe Senhora me tivessem tro com Didi, tratei de ampliar aquele mo- desestimulado de um aprofundamento mento tão significativo da espiritualidade maior nos ensinamentos e nos mistérios afro-brasileira em plena Nova York. do candomblé. Contatei um babalorixá norte-americano Corria o ano de 1969 e eu, recém- formado nos templos ñañigos de Cuba - chegado aos Estados Unidos, vivia o pe- o sacerdote Oseijema, que atualmente ríodo inicial de um exílio que deveria pro- dirige uma comunidade-templo na Caro- longar-se por mais de uma década. Em lina do Sul. Oseijema preparou uma re- Nova York eu havia retomado uma bre- cepção à altura do Alapini afro-brasilei- ve experiência, iniciada no Rio de Janei- ro. Localizado no Harlem, o templo de ro, pintando alguns quadros com motivos Oseijema anoiteceu iluminado, florido, afro-brasileiros. Certo dia recebi na casa com o corpo sacerdotal vestindo seus em que estava hospedado a visita do paramentos solenes. Os tambores soa- Mestre Didi e de sua esposa Juanita. ram, enchendo a noite de ritmos quen- Mostrei a eles minhas tentativas pictóri- tes. E Didi foi recebido solenemente cas. Numa determinada tela, onde se como um verdadeiro príncipe-sacerdote viam Xangô e suas três esposas, numa de sua raça. E ambos, Oseijema e Didi, delas, na imagem de Oxum, Didi se de- naquele encontro, mais uma vez teste- teve, apontando-a para Juanita. Troca- munharam a importância das religiões ram um olhar significativo, e eu os inter- africanas como instrumentos de coesão pelei. Queria saber se, na minha superfi- e fortalecimento da cultura de um povo cial formação religiosa, havia cometido separado e dividido pela violência do alguma barbaridade sacrílega. Porém colonialismo escravista. ambos acalmaram minha ansiedade, in- Entretanto as peripécias do exílio dagando como e por que eu havia colo- me levaram a um périplo de um ano na cado, no olho de Oxum, um símbolo de Nigéria, Universidade de Ifé, na qualida- Ifá, o orixá que vê o passado e o futuro, de de professor-visitante. Entre os cole- THOTH 3/ dezembro de 1997 66 Atuação Parlamentar

gas havia um babalaô, quero dizer, um tradição cultural afro-brasileira, onde se sacerdote de Ifá, a quem solicitei que les- encontram os elementos que lhe forne- se para mim o opelê desse orixá. Foi uma cem uma sólida identidade histórica. Des- cerimônia longa, demorada, ele falando se ponto de vista, Mestre Didi constitui iorubá, um intérprete traduzindo do iorubá referência e referencial obrigatórios, ao inglês e minha esposa, Elisa Larkin do exemplo e paradigma da humanidade Nascimento, traduzindo o acentuado in- afro-brasileira em sua luta secular pela glês nigeriano ao português. Em resumo, afirmação de sua dignidade. Ifá me dizia que quem me havia escolhi- Assim, os 80 anos de Mestre Didi, do para filho não fora Xangô, conforme que agora se completam, são motivo de suposição de outros pais-de-santo que comemoração e regozijo numa comuni- desconheciam a difícil iniciação no uni- dade cujas tradições se fincam profun- verso de Ifá. Este me afirmara que eu damente no respeito e reverência aos era um filho de Oxum. Aí então compre- mais velhos como sustentáculos e trans- endi as palavras de Mãe Senhora e a ra- missores da cultura. Para marcar a data, zão daquela pintura que provocara o co- a Editora Pallas, do Rio de Janeiro, aca- mentário de Mestre Didi. ba de republicar Por que Oxalá usa Para ultrapassar as abstrações ekodidé, em edição fac-símile da primei- manipuladas pela produção mistificada da ra edição, de 1966, com ilustrações de consciência, o negro é obrigado não ape- Lenio Braga. É nesse espírito que eu nas a se inserir corretamente no sistema conclamo a todos a se juntar a mim na social de classes, forçando a sociedade emocionada saudação que faço a esse dominante a lhe abrir espaços como indi- baluarte da cultura afro-brasileira: víduo e como coletividade. Deve também assumir seus outros aspectos reprimidos, em especial os que se relacionam à rica Axé, Mestre Didi! Pronunciamentos Homenagem a Mestre Didi 67

Foto 7 Foto: Filipe (Jean Lucas) . Paço Imperial, Rio de Janeiro, setembro 1997 Da esquerda para a direita: Elisa Larkin Nascimento, Mestre Didi, senador Abdias Nascimento e Juana Elbein dos Santos. Lançamento do livro Por que Oxalá Da esquerda para a direita: Elisa Larkin Nascimento, Mestre Didi, senador Abdias Nascimento e Juana Elbein dos Santos. Lançamento usa ekodidê THOTH 3/ dezembro de 1997 68 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 69

Discurso proferido no Senado Fe- Senhor Presidente, deral em 4 de setembro de 1997. Senhoras e Senhores Senadores,

Encerra-se hoje no Rio de Janeiro um encontro, iniciado no último dia 2 de setembro, de singular importância no con- Reflexões sobre o Movimento Negro texto da luta internacional contra o racis- no Brasil, 1938-97. mo e a discriminação racial. Pela primei- ra vez na História, intelectuais, políticos, empresários e militantes do Brasil, Esta- dos Unidos e África do Sul reúnem-se para intercambiar experiências na busca de soluções para um problema que, em- bora apresente uma face diferente em cada um desses países, conduz em todos eles a um mesmo resultado: a exclusão de um ou mais grupos humanos em be- nefício de uma minoria. Organizado pela Southern Education Foundation, da cida- de norte-americana de Atlanta, sob a res- ponsabilidade da incansável e competente Dra. Lynn Walker-Huntley, emérita advogada dos direitos humanos, a Inicia- THOTH 3/ dezembro de 1997 70 Atuação Parlamentar

tiva Relações Humanas Comparadas - pois da dissolução da Frente Negra Bra- Superando o Racismo/Consulta ao Bra- sileira, desde o Teatro Experimental do sil, África do Sul e Estados Unidos é Negro até o atual mandato no Senado sem dúvida a marca de um novo tempo. Federal, avaliando, na qualidade de pro- Um tempo em que os espirítos começam tagonista e participante desses tempos e a se despir dos preconceitos para reco- dessa luta, os seus avanços e recuos. nhecer e enfrentar de peito aberto as Tarefa nada fácil. O tema é am- mazelas da sociedade, única forma de um plo o suficiente para se dedicarem a ele dia superá-las. alguns volumes. Entretanto, julgamos Por tudo isso solicito seja integral- oportuno oferecer uma visão dessa tra- mente transcrito, para que conste dos jetória, embora de forma declaradamente Anais do Senado, o discurso que pronun- fragmentada e parcial — a única forma ciei na pré-abertura desse conclave, possível neste pequeno texto —, pois o como contribuição ao início de uma nova registro histórico do Movimento Negro e promissora etapa na luta secular dos no Brasil continua muito precário, africanos e seus descendentes em prol ensejando aos jovens militantes, à socie- da justiça e da igualdade. É o seguinte o dade e aos estudiosos em geral um co- teor do discurso: nhecimento limitadíssimo dos fatos. A precariedade do registro decor- DOCUMENTO A QUE SE REFERE O re da própria trajetória de uma comuni- SENADOR ABDIAS NASCIMENTO dade destituída de poder econômico e EM SEU DISCURSO: político, e de um movimento composto de entidades quase sempre sujeitas à ins- Reflexões sobre o Movimento tabilidade e à falta de recursos, infra-es- Negro no Brasil, 1938-97* trutura, espaço físico, e apoio de outros setores da sociedade civil. Graças a essa Abdias Nascimento e Elisa Larkin precariedade, prevalece ainda a afirma- Nascimento ção de que a comunidade afro-brasileira tem pouca tradição de luta, partindo não A missão deste modesto ensaio é apenas dos porta-vozes da desmoraliza- a de transmitir uma reflexão pessoal do da teoria de democracia racial como tam- autor sobre a his- bém, de outra forma, de setores do Mo- tória do Movimento Negro no Brasil, nar- vimento Negro convencidos de que a rando o renascimento e crescimento de- militância afro-brasileira deste século

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* Contribuição à Iniciativa Relações Humanas Comparadas, Superando o Racismo/ Consulta ao Brasil, África do Sul e Estados Unidos, Southern Education Foundation, Seminário realizada no Rio de Janeiro, 2-4 de setembro de 1997. Embora tenhamos elaborado o texto em co-autoria, narramos na primeira pessoa os episódios contados por Abdias Nascimento, pois, de acordo com os termos definidos pela organização da Iniciativa, é o seu depoimento pessoal que caracteriza o objetivo deste ensaio. Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 71

começou a partir dos anos setenta. O Kosmos, A Liberdade, Auriverde, e O anseio da maior parte da comunidade Patrocínio. Em 1920, nascia O negra em reconstruir o seu passado co- Getulino, fundado por Lino Guedes para letivo para melhor erguer o seu presente tratar de assuntos de interesse da comu- e o seu futuro, bem como o interesse na- nidade afro-campineira. O Clarim cional e internacional em conhecer esse d’Alvorada, fundado por José Correia passado, é o que nos move a oferecer Leite e Jayme de Aguiar em 1924, já este pequeno esboço. anunciava o grito de protesto que se cris- talizaria em 1931 com a fundação da Imprensa negra, Frente Negra Frente Negra Brasileira. A Frente, um Brasileira, Congresso Afro- movimento de massas, protestava con- Campineiro tra a discriminação racial que alijava o negro da economia industrializada, espa- Iniciar este texto com o Teatro Ex- lhando-se para vários cantos do territó- perimental do Negro seria inadmissível, rio nacional. A segregação nos cinemas, pois só podemos entender o TEN como teatros, barbearias, hotéis, restaurantes, herdeiro e continuação de uma luta já em enfim, em todo o elenco de espaços bra- movimento desde os primórdios da cons- sileiros em que o negro não entrava, tituição do Brasil. Não existe o Brasil sem constituia o alvo prioritário da Frente, o africano, nem existe o africano no Brasil maior expressão da consciência política sem o seu protagonismo de luta afro-brasileira da época. antiescravista e anti-racista . Fundada na Minha participação na Frente tradição de luta quilombola que atraves- Negra limitava-se pela minha condição sa todo o período colonial e do Império e de militar. Combatia a discriminação sacode até fazer ruir as estruturas da eco- em todas as oportunidades, fui várias nomia escravocrata, bem como na vezes preso e, finalmente, expulso do militância abolicionista protagonizada por Exército. A repressão à luta anti-ra- figuras como Luís Gama, a atividade cista era brutal. afro-brasileira se exprimia nas primeiras décadas deste século sobretudo na for- A Frente Negra Brasileira conti- ma de organização de clubes, irmanda- nuou sua atuação até 1937, quando a di- 1 des religiosas e associações recreativas . tadura do Estado Novo pôs na ilegalida- Antes da década dos vinte, já sur- de toda atividade política. Mas o fecha- gia uma imprensa negra que continuou mento da Frente Negra não significou a bastante ativa, especialmente em São paralisação do protesto afro-brasileiro. Paulo, com jornais como O Menelike, O Um ano depois, o chefe da polícia ______1 Larkin Nascimento (1981), Nascimento (1980), Moura (1972), Freitas (1982), Pinaud et al. (1987), Lima (1981). Ver também o livro E disse o velho militante, depoimento de José Correia Leite ao escritor afro-brasileiro Cuti (1992). THOTH 3/ dezembro de 1997 72 Atuação Parlamentar

paulista proibiu a antiga tradição do são, os promotores fizeram o juramen- footing na Rua Direita, no centro de São to de voltar à África, a fim de ajudar a Paulo, onde aos domingos os afro-brasi- luta de libertação do Continente Negro, leiros passeavam pelas as calçadas e nossa terra ancestral. ruas adjacentes. Negociantes brancos, No Rio de Janeiro, nessa época, donos das lojas dessa importante artéria havia o Movimento Brasileiro contra o comercial, reclamaram contra aquela Preconceito Racial e, em Santos, a As- “negrada” que ocultava as vitrines, e o sociação dos Brasileiros de Cor; eu ní- delegado Alfredo Issa baixou portaria vel nacional, existia a União Nacional dos banindo esse entretenimento semanal Homens de Cor. O historiador negro dos negros. Em comissão fomos à capi- norte-americano E. Franklin Frazier pu- tal do país, o Rio de Janeiro, levar o nos- blicou em 1942 uma mensagem desse so protesto: Fernando Goes, o poeta último grupo aos colegas dos Estados Rossini Camargo Guarnieri, o empresá- Unidos, clamando por “uma comunida- rio Galdino e eu. Houve pouca repercus- de cultural mais íntima com nossos ir- são, pois vigorava rígida censura à im- mãos norte-americanos” e fazendo uma prensa. A única denúncia que furou a denúncia comovente do abandono em que censura foi a de Osório Borba, no Diá- se encontrava o negro brasileiro (Phylon rio de Notícias do Rio de Janeiro. III 1942:284-6, apud. Degler, 1971:180- Protestando contra o Estado Novo, 181). Em 1941, fundou-se a Associação fui condenado pelo Tribunal de Seguran- José do Patrocínio, que constituiu a base ça Nacional no Rio de Janeiro e, ao sair da organização do pequeno Movimento da prisão, em abril de 1938, fui com Ge- Afro-Brasileiro de Educação e Cultura raldo Campos de Oliveira, companheiro (MABEC) e atuou até o fim da década de cárcere, ajudar a organizar o Congres- dos cinqüenta. Essas atividades eram so Afro-Campineiro, com Aguinaldo de complementadas pelas tradicionais ir- Oliveira Camargo, Agur Sampaio, o ti- mandades religiosas, comunidades ter- pógrafo Jerônimo e José Alberto Ferreira, reiros e associações recreativas que reu- entre outros. Esse Congresso, realizado niam os afro-brasileiros. com a colaboração das normalistas do A Frente Negra Brasileira Professor Nelson Omegna, no Instituto incorpava, sem dúvida, a maior expres- de Ciências e Letras de Campinas, teve são da consciência política afro-brasi- o propósito de combater o ostensivo ra- leira da época. Reagindo contra o mais cismo e separatismo tradicionais des- evidente aspecto do racismo, aquela cons- sa cidade, assim como avaliar a situa- ciência era de caráter integracionista: ção global do negro no país. Durante procurava para o negro um lugar na uma semana, discutiram-se as condi- sociedade “brasileira”, sem questio- ções de vida do negro brasileiro sob nar os parâmetros euro-ocidentais des- vários aspectos: econômico, social, po- sa sociedade nem reclamar uma específi- lítico, cultural. Em determinada ses- ca identidade cultural, social ou étnica. Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 73

Teatro Experimental do Negro Uma vez (1968:37,51) expliquei essa dupla dimensão do TEN, cultural e política, da seguinte forma: Naquela época, a discriminação Fundando o Teatro Experimental do racial reinava absoluta, e no teatro brasi- Negro em 1944, pretendi organizar um leiro o negro não entrava nem para as- tipo de ação que a um tempo tivesse sistir a um espetáculo, muito menos para significação cultural, valor artístico e atuar no palco. Entrava o negro no tea- função social. (...) De início, havia a tro, já vazio, para limpar a sujeira deixa- necessidade do resgate da cultura da pelo elenco e pela platéia exclusiva- negra e seus valores, violentados, mente brancos. O Teatro Experimental negados, oprimidos e desfigurados. do Negro (TEN) nasceu para contestar (...) o negro não deseja a ajuda isolada essa discriminação, formar atores e dra- e paternalista, como um favor maturgos afro-brasileiros e resgatar uma especial. Ele deseja e reclama um tradição cultural cujo valor foi sempre ne- status elevado na sociedade, na forma gado ou relegado ao ridículo pelos nos- de oportunidade coletiva, para todos, sos padrões culturais: a herança africa- a um povo com irrevogáveis direitos na na sua expressão brasileira. históricos. (...) a abertura de Assim, o TEN continuava a tradi- oportunidades reais de ascensão ção de protesto e organização político- econômica, política, cultural, social, social, mas integrava a essa dimensão a para o negro, respeitando-se sua reivindicação da diferença: o negro não origem africana. procurava apenas integrar-se à socieda- Essa visão implicava um trabalho de “branca” dominante, assumindo como gigantesco. Onde começar? sua aquela bagagem cultural européia que se impunha como “universal”. Ao con- Partimos do marco zero: trário, o TEN reivindicava o reconheci- organizamos cursos de alfabetização mento do valor civilizatório da herança onde operários, empregadas africana e da personalidade afro-brasi- domésticas, habitantes de favelas sem leira. Assumia e trabalhava a sua identi- profissão definida, pequenos dade específica, exigindo que a diferen- funcionários públicos, etc., se reuniam ça deixasse de ser transformada em de- à noite, depois do trabalho diário, para sigualdade. Essa nova dimensão da aprender a ler e escrever. Usando o luta expressava-se, na época, no lema palco como tática desse processo de da “negritude”. Tratava-se não apenas educação da gente de cor (...) sob a de uma referência ao movimento poé- orientação eficiente do professor tico dos africanos de língua francesa, Ironides Rodrigues, (...) ao mesmo mas também de toda uma identifica- tempo o TEN alfabetizava seus ção com a origem africana no contex- primeiros elementos e lhes oferecia to brasileiro. uma nova atitude, um critério próprio THOTH 3/ dezembro de 1997 74 Atuação Parlamentar

que lhes habilitavam também a ver, a no seu conceito o negro, um ser inferior, descobrir o espaço que ocupavam, não seria capaz de desempenhar papel dentro do grupo afro-brasileiro, no dramático de tal envergadura. contexto nacional. (Nascimento, 1978: Foi o que os “amigos” do negro 257). alegaram quando, de volta ao Brasil, con- A idéia do Teatro Experimental do segui reunir um pequeno grupo de reso- Negro nascia de toda uma experiência lutos e convictos para iniciar os traba- de luta contra a discriminação racial, vi- lhos do Teatro Experimental do Negro, e vida desde o dia em que minha mãe, a resolvemos estrear com uma produção doceira dona Josina de Franca, se atirou do mesmo O imperador Jones. Unani- à rua na defesa de um menino negro, ór- memente, aconselharam uma estréia mais fão, que levava uma surra de vizinhos modesta, uma peça que não exigisse tanto brancos. Participei mais tarde da Frente empenho, expressão dramática e sofisti- Negra; fui expulso do Exército por conta cação de um elenco de novatos, ainda de protestos contra a discriminação raci- por cima negros2! Essa postura apenas al em bares e barbearias paulistas. Ca- nos deixou mais determinados: mantive- sou-se essa experiência de luta com uma mos o compromisso de estrear com curiosidade intelectual e uma paixão pela Aguinaldo Camargo no papel do herói de cultura, e se concebeu o TEN durante O imperador Jones. uma viagem a Lima, no Peru, quando A crítica, cética quanto à possibi- assisti à peça O imperador Jones, de lidade de sucesso da produção de uma Eugene O’Neill, estrelada por Hugo peça tão difícil, confessou unanimemen- D’Evieri, um argentino branco pintado de te sua surpresa com a qualidade artística preto. Refleti: no Brasil, fatalmente acon- do espetáculo. Os jornais da época re- tece o mesmo. Em primeiro lugar, no te- gistram a avalanche de elogios ao Teatro atro brasileiro não existia uma peça com Experimental do Negro. um protagonista negro de densidade dra- mática; só o estereótipo do moleque bobo O TEN produziu muitos outros de riso fácil, a mãe preta abnegada ou o espetáculos, sempre dentro da mesma pai-joão submisso. Talvez uma peça nor- marca de qualidade artística. De O’Neill, te-americana com protagonista negro até produziu Todos os filhos de Deus têm se pudesse montar, mas com um ator ne- asas, O moleque sonhador e Onde está gro no papel principal, nunca. Sempre a marcada a cruz. Estimulou o apareci- cultura discriminatória exigiria o pixe, pois mento de dramaturgos negros e de pe- ______2 Ver, por exemplo, R. Magalhães Júnior, “Um grande artista”, Diário de Notícias, 25.03.1952, artigo sobre a morte de Aguinaldo Camargo em que rememora sua reação: “Como? O imperador Jones? Mas é uma peça dificílima (...). Você precisaria de um grande ator para recriar, no Brasil, o papel que foi antes feito por (...). [A figura pequena, franzina de Aguinaldo à minha frente] não me convenceu. Intimamente, continuava a achar absurda a tentativa.” Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 75

Foto 8 escrita por Rosário Fusco especialmente para o TEN. Rio de Janeiro, década escrita por Rosário Fusco especialmente para o Auto da noiva, da Auto de 50. Mais tarde, em 1971, a peça foi encenada, em português, pelos alunos do departamento de línguas da Universidade de Indiana em Bloomington de 50. Mais tarde, em 1971, a peça foi encenada, português, pelos alunos do departamento línguas Elenco do Teatro Experimental do Negro (TEN) ensaia a peça peça a ensaia (TEN) Negro do Experimental Teatro do Elenco THOTH 3/ dezembro de 1997 76 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 77

ças sobre temas afro-brasileiros, com apareceu com sua leveza e heróis e protagonistas negros, como Fi- dramaticidade. Haroldo Costa, o estudan- lhos de santo, de José de Moraes Pi- te, participava do nosso teatro. Abigail nho, Aruanda, de Joaquim Ribeiro, O Moura e sua Orquestra Afro-Brasileira filho pródigo, de Lúcio Cardoso, Sorti- marcavam época, e Mercedes Batista légio (mistério negro), de Abdias Nas- desenvolveu sua coreografia. Tivemos o cimento, O anjo negro, de Nélson prazer de lançar Maria d’Aparecida, hoje Rodrigues, Auto da noiva, de Rosário cantora lírica radicada em Paris. Léa Fusco, O castigo de Oxalá, de Romeu Garcia, com sua consciência, dignidade Crusoé, Além do rio, de Agostinho e coerência, até hoje honra os palcos e Olavo, Sinfonia da favela, de Ironides os estúdios como outro patrimônio da cul- Rodrigues, Pedro Mico, de Antonio tura brasileira lançado pelo TEN. Callado, entre outras. Antônio Barbosa, Fernando Araú- Verdadeiros heróis eram os inte- jo, Natalino Dionísio são alguns exemplos grantes do TEN. Sem ter condições de de grandes talentos artísticos que não en- vida para sustentar essa atividade, dedi- contraram possibilidades de desenvolver caram os seus esforços, a sua energia, seu trabalho fora do TEN, o que represen- os seus talentos, enfim, o seu axé, ao ta uma perda para a cultura nacional, re- empenho de possibilitar o nascimento do sultado das barreiras concretas do racis- teatro negro. Com que dedicação, com mo, fechando e limitando os horizontes que sacrifício, trabalhavam as emprega- de artistas negros sérios. Marina Gon- das domésticas, motoristas, office boys, çalves, aquela força dramática, só con- enfim, as pessoas humildes que compu- seguiu ficar no teatro chutada para a co- nham os quadros do TEN! O curso de xia; Antônio Barbosa, outro talento for- alfabetização e cultura básica, organiza- midável, voltou a dirigir seu caminhão por do pelo escritor e crítico Ironides falta de perspectivas de atuação artística. Rodrigues, possibilitava a formação mí- Atuação político-cultural do nima para que as pessoas pudessem par- TEN e jornal Quilombo ticipar da produção teatral. Marina Gon- çalves, empregada doméstica e atriz, atu- Complementando sua atuação te- ava com inesquecível grandeza de espí- atral, o TEN ainda organizou concursos rito e coração. Arinda Serafim, alma de artes plásticas, sendo um deles sobre efervescente, além da atuação artística, o tema O Cristo Negro (1955), bem como organizava suas colegas para reivindica- concursos de beleza que enalteciam os ções sociais. Ruth de Souza, na época padrões estéticos afro-brasileiros. Patro- também empregada doméstica, iniciava cinou a organização de muitos eventos sua carreira artística. Mais tarde, João sociopolíticos do Movimento Negro, Elísio, coreógrafo e bailarino, trouxe ao como a Convenção Nacional do Negro TEN novas dimensões da cultura dos ter- (1945-16), em que pela primeira vez se reiros afro-brasileiros. Claudiano Filho cogitou de uma medida constitucional THOTH 3/ dezembro de 1997 78 Atuação Parlamentar

anti-racista, a Conferência Nacional do Tal posição, enfatizando os valo- Negro (1948-49) e o I Congresso do Ne- res negros, causava muita irritação em gro Brasileiro (1950). Publicou o jornal certos grupos e pessoas. Tivemos o vi- Quilombo, que trazia em todos os nú- goroso apoio de elementos esquerdistas meros uma declaração do “Nosso da UNE nas atividades a favor da anistia Programa”.Quando se fala da chamada e pela reinstauração da democracia. No Lei Afonso Arinos, é instrutivo o item nº entanto, quando a anistia foi conquistada 5 desse programa: “(...) pleitear para que e os presos políticos (quase todos bran- seja previsto e definido o crime da dis- cos) foram libertados, os esquerdistas da criminação racial e de cor, em nossos UNE se recusaram a apoiar os trabalhos códigos, tal como se fez em alguns esta- específicos em benefício da população dos da América do Norte e na Constitui- afro-brasileira, alegando que isso consti- ção Cubana de 1940”. Outros pontos do tuiria “racismo às avessas”. Nós, os fun- programa incluíam o ensino gratuito para dadores, fomos expulsos, acusados de ra- todas as crianças brasileiras; a admissão cistas, e o Comitê logo se desintegrou, já subvencionada de estudantes negros nas que não tinha mais razão para existir. O instituições de ensino secundário e escritor negro Raimundo Souza Dantas, universitário, onde o negro não entra- mais tarde embaixador do Brasil em va como resultado da discriminação e Gana, declarou publicamente que tinha da pobreza resultante da sua condição sido mandado ao Comitê com a finalida- étnica; o combate ao racismo via medi- de de levar os negros para o Partido Co- das culturais e de ensino; o esclarecimento munista. Tempos depois, Souza Dantas da verdadeira imagem histórica do negro. abandonaria as fileiras do PC, recusan- do-se a ser manipulado. Comitê Democrático Afro-Brasileiro A esquerda, em suma, aceitou en- tusiasticamente um Comitê Afro-Brasilei- Pelo fim da guerra, o TEN funcio- ro que pudesse ser usado para os seus fins nava na sede emprestada da UNE (União políticos, mas o rejeitou como “racista” Nacional de Estudantes), na Praia do quando este tentou lograr as finalidades para Flamengo, no Rio de Janeiro. Mas neces- as quais havia sido criado. Não podia ad- sitávamos de um instrumento de participa- mitir que os negros tivessem seus proble- ção política, por isso fundei, com Aguinaldo mas específicos, suas reflexões autônomas Camargo e Sebastião Rodrigues Alves, o e suas lutas próprias dentros da sociedade Comitê Democrático Afro-Brasileiro brasileira. Teríamos de nos curvar à orien- (1945). Era uma organização ampla, que tação e direção de pessoas alheias á nossa acolhia em seu seio negros e brancos - situação, às nossas necessidades. destes, a maioria provindos da UNE - mas com a explícita afirmação da perspectiva Pouco mais tarde, um grupo de afro-brasileira. Nosso primeiro objetivo era afro-brasileiros iria reunir-se no intuito de a luta pela anistia dos presos políticos. fundar um departamento para assuntos Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 79 O Estado de São Paulo no Teatro Municipal de São Paulo (1957) provocou este desenho publicado no jornal Teatro Apresentação de Sortilégio no THOTH 3/ dezembro de 1997 80 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 81

do negro no Partido Trabalhista Brasilei- festo, propôs à Assembléia Nacional ro (PTB) do Distrito Federal. Essa ten- Constituinte (1946) um projeto que, apro- tativa de independência ou autonomia vado, teria integrado a proibição da dis- dentro de um partido político, inteiramente criminação racial à Constituição da Re- inédita, acabou não vingando. pública. A posição do Partido Comunista aí se concretizou: Claudino José da Silva, o único representante negro na Assem- A Convenção Nacional do bléia e deputado federal pelo PC, fez Negro Brasileiro e a Lei um discurso opondo-se à medida. Mais Afonso Arinos tarde confessaria, numa assembléia da Convenção no Rio, que agiu sob estri- Ainda em 1945, o TEN promoveu tas ordens do Partido, sendo ele pes- a Convenção Nacional do Negro Brasi- soalmente a favor da proposta. leiro, que teve sua primeira reunião em São Paulo e a segunda em 1946, no Rio O PC agora se opunha à medida de Janeiro. Foi um acontecimento políti- sob a alegação de que ela viria a “res- co de cunho popular, sem pretensões aca- tringir o sentido mais amplo da demo- dêmicas: um fórum da gente negra para cracia” constitucional. Qual seria a res- tratar de suas necessidades e situações trição que a lei antidiscriminatória fa- socio-econômicas emergentes; em São ria ao “sentido mais amplo da demo- Paulo, participaram entre 400 e 500 pes- cracia”, o PC não esclareceu. Também soas, no Rio, mais de 200. invocaram, para derrotar a medida constitucional, a “falta de exemplos No fim das deliberações, a assem- concretos” para fundamentá-la. A dis- bléia votou e lançou um Manifesto à Na- criminação diária contra o negro, bani- ção Brasileira, contendo seis reivindica- do de teatros, boates, barbearias, clu- ções concretas. Entre elas estavam a bes, empregos, processo político, não admissão de gente negra para a educa- era suficiente, inclusive porque, sendo ção secundária e superior e a formula- tão normal e comum, não merecia co- ção de uma lei antidiscriminatória, acom- mentário na imprensa. Um ano depois, panhada de medidas concretas para im- a antropóloga negra norte-americana pedir que constituísse somente uma pro- Irene Diggs foi barrada no Hotel Ser- clamação jurídica, vazia e sem sentido. rador no Rio; esse “exemplo” já mere- O Manifesto foi mandado a todos ceu alguma atenção. “Exemplo” reite- os partidos políticos, e a Convenção re- rado em 1949, quatro anos após a divul- cebeu cartas de apoio da União Demo- gação do Manifesto, quando um grupo crática Nacional, do Partido Social De- de atores do Teatro Negro foi barrado mocrático e do dirigente do Partido Co- numa festa no Hotel Glória, apesar de munista Luís Carlos Prestes. O senador apresentar convites da Sociedade Brasi- Hamilton Nogueira, com base no Mani- leira de Artistas (promotora do baile) e THOTH 3/ dezembro de 1997 82 Atuação Parlamentar

do dono do hotel. Mas só em 1950, quan- Já tive ocasião de manifestar-me do famosa coreógrafa negra norte-ameri- sobre esse aspecto particular do cana Katherine Dunham e a prodigio- problema racial(...) opinando se sa cantora Marian Anderson foram dis- conviria ou não que se oficializassem criminadas no Hotel Esplanada, em São entidades ou associações próprias de Paulo, é que a “liderança nacional” co- negros. Por ocasião dos debates do meçou a perceber a existência de meu projeto, procurei mostrar o lado “exemplos concretos”. Ressuscitou-se pernicioso dessa congregação, a cujo a proposta da Convenção Nacional do espírito o projeto se oporia, na sua Negro, publicada cinco anos antes; a preocupação de estabelecer bases legislação passou no Congresso, ironi- mais positivas para a integração do camente batizada de “Lei Afonso elemento negro na vida social Arinos”. brasileira. (...) o empenho em instituir entidades dos homens de cor é o reverso da medalha, pois será, em Afonso Arinos, o racismo e a “de- última análise, manifestação de mocracia racial” racismo negro. Na forma como foi redigida e Outro porta-voz da teoria da “de- aprovada, essa lei não teve valor al- mocracia racial”, o então deputado Gil- gum no sentido de impedir a discrimi- berto Freyre, declarou (Tribuna da Im- nação racial. Pelo contrário, ajudou na prensa, 19.07.1950), logo após a rejei- proclamação oficial da “democracia ção da bailarina e coreógrafa norte-ame- racial” brasileira. Um aspecto impor- ricana Katherine Dunham pelo Hotel tante de sua natureza domesticadora Esplanada: se constitui no fato de ela ter sido ca- — É evidente que dois racismos racterizada como benevolente conces- estão repontando no Brasil, como são de legisladores brancos, isto é, da rivais: o “racismo” de arianistas que, estrutura dominante, e não como fruto em geral, sofrem a pressão da atual de uma luta e uma reivindicação do supremacia de padrões anglo- povo negro politicamente organizado. saxônicos sobre meio mundo, e o Esse fato está nitidamente caracteri- “racismo” dos que, para fins políticos zado pelo próprio discurso do autor da ou partidários, pretendem opor a esse lei , que censura a própria existência racismo de “arianistas” o de um negro de organizações afro-brasileiras lutan- brasileiro caricaturado do norte- do pelos seus direitos. No mesmo ano americano. Este segundo “racismo” da aprovação da lei, o então deputado é, de modo geral, animado por Afonso Arinos declarou (Última Hora, indivíduos que sofrem, no Brasil, a 14.12.1951) a respeito do tema das re- pressão da mística comunista, nem lações raciais no Brasil: sempre fácil de separar o poder de Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 83

uma Rússia como a de Stalin, tão do TEN ficávamos em posição muito imperial como os Estados Unidos. incômoda, pois a construção de alian- ças sempre girava em torno da expec- Essa acusação do “racismo às tativa de nossa desistência da afirma- avessas” nunca deixou de nos perseguir, ção da nossa identidade própria e da tanto pela direita quanto pela esquerda, nossa luta específica como negros. como exemplifica o comportamento dos líderes da UNE em relação ao Comitê Democrático Afro-Brasileiro. Até hoje, A Conferência Nacional do Negro a alegação de um suposto racismo negro serve como lema daqueles que querem desmoralizar ou deslegitimar nossa luta, O Teatro Experimental do Ne- estejam eles à esquerda ou à direita do gro organizou a Conferência Nacional espectro político. Aliás, não se trata de do Negro (Rio de Janeiro, maio de um problema brasileiro: existe na África 1949), que reuniu representantes de como na diáspora, e também em nível várias regiões do país, para articular internacional (Padmore, 1972; Nascimen- uma resposta às questões concretas da to, 1980; Larkin Nascimento, 1981). comunidade negra. Outro objetivo era levantar a consciência popular a res- peito do caráter racista das teorizações A negritude brasileira antropológico-sociológicas convencio- No caso do Brasil, na época em nais sobre o negro, representadas pe- los Congressos Afro-Brasileiros da dé- questão, essa acusação incidia mais ain- o da contra a postura quase única do Tea- cada anterior (Quilombo n 2:1). Era tro Experimental do Negro de defender ainda a conferência preparatória do I os valores culturais e a identidade espe- Congresso do Negro Brasileiro, e nesa cífica de origem africana. O tema da ocasião se votou o seu temário. “negritude”, como expressão máxima I Congresso do Negro Brasileiro dessa posição, simbolizava esse emba- te, e os seus defensores eram aponta- Os objetivos do I Congresso do dos como racistas. Em função dessa Negro Brasileiro, realizado em 1950 pelo nossa posição, setores do Movimento TEN, foram nitidamente articulados no Negro comprometidos com a esquer- sentido de “dar uma ênfase toda especi- da - que por isso mesmo ganhavam al aos problemas práticos e atuais da vida mais destaque nos meios de comuni- da nossa gente. Sempre que se estudou cação e no registro histórico - nos ro- o negro, foi com o propósito evidente ou tulavam de fascistas, invocando a clás- a intenção maldisfarçada de considerá- sica alegação de que defender os di- lo um ser distante, quase morto, ou já mes- reitos do negro seria dividir a classe mo empalhado como peça de museu” o operária. Praticamente sozinhos, nós (Quilombo, n 5,6). THOTH 3/ dezembro de 1997 84 Atuação Parlamentar

Os debates focalizaram vários te- Algumas lembranças, 1960-8 mas: a necessidade da regulamentação Quando a ditadura militar tomou o e a organização das empregadas domés- poder no país, um dos seus primeiros atos ticas; propostas de organização de cam- foi encarcerar o representante do Movi- panhas de alfabetização e ensino na co- mento Popular para a Libertação de An- munidade negra, sobretudo nas favelas; gola (MPLA), Lima Azevedo, e torturá-lo. teses de natureza diversa sobre as ma- Na qualidade de co-representante oficial nifestações do racismo em diferentes brasileiro do MPLA, realizei gestões junto partes do Brasil. O registro taquigráfico ao embaixador de , Henri Senghor, dos debates retrata vividamente a ativa que conseguiu negociar com as autorida- participação de pessoas procedentes de des ditatoriais a liberdade de Lima Azevedo. todas as camadas e todos os setores da população negra do país, desde operári- A UNESCO e o Governo brasileiro os marginalizados a profissionais liberais patrocinaram um Seminário Internacional instruídos, somando, durante cada uma sobre a Cultura Africana, realizado no Rio das várias sessões, entre 200 e 300 pes- de Janeiro. Coerente com sua tradição de soas. exclusão racial, o Itamarati negou ao ne- gro brasileiro a oportunidade de represen- Sem dúvida, o I Congresso do Ne- tar a si mesmo, convocando para partici- gro Brasileiro constituiu um evento de par do seminário os porta-vozes oficiais, extrema importância para a história da brancos, da cultura negra. Entretanto, a luta afro-brasileira, reunindo inúmeras or- posição afro-brasileira foi levada ao conhe- ganizações negras da época num amplo cimento do plenário, pois, a pedido meu e foro de debate e análise sobre os pro- de Marieta Campos, o poeta Aimé blemas que enfrentava a comunidade ne- Césaire,da Martinica, co-fundador do mo- gra. Marcou a resposta dos militantes à vimento da Négritude, e então participan- postura acadêmica de pesquisar a popu- te estrangeiro do seminário, denunciou, den- lação afro-brasileira como um objeto de tro da reunião, a precariedade de um “anti- curiosidade científica, enfocando a ne- racismo” brasileiro que discriminava o ne- cessidade de enfrentar os problemas gro, impedindo-o inclusive de articular na- 3 emergentes da sua vida . quele fórum seus próprios conceitos a res- peito da sua vida e de seus problemas.

______3 A polêmica sobre o estudo do sociólogo L.A. da Costa Pinto, que se apropriou dos anais do Congresso para seu estudo encomendado pela UNESCO, exemplifica bem esse embate. Respondendo às críticas do sociólogo afro- brasileiro Guerreiro Ramos, Pinto declarou (apud Nascimento, 1982: 62): “Duvido que haja biologista que, depois de estudar, digamos, um micróbio, tenha visto esse micróbio tomar da pena e vir a público escrever sandices a respeito do estudo do qual ele participou como material de laboratório.” Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 85

Quando o Brasil hospedou um Se- africanista. No Brasil, iria iniciar-se minário contra o Apartheid, o Racismo nessa época uma nova fase do Movimen- e o Colonialismo, em 1966, recebendo ao to Negro. mesmo tempo a visita oficial de um mi- nistro do Governo da África do Sul, o Teatro Experimental do Negro organi- Cenário internacional da luta negra: zou um protesto público, realizado no 1968-81 Teatro Santa Rosa, no Rio de Janeiro. Em 1968, quando cheguei aos Es- O Centro Acadêmico XI de tados Unidos, era o auge de uma nova Agosto, da Faculdade de Direito da consciência afro-americana, a era do Universidade de São Paulo, convidou- . Fui recebido pelos me em 1968 para falar sobre o tema Panthers, em seu quartel-general em da negritude. O Diretor da Faculdade Oakland. Seu presidente na época, Booby proibiu o uso do auditório da Faculda- Seale, colocou-se à disposição para apoi- de, e a palestra foi realizada no pátio ar nossa luta afro-brasileira. Fui também interno da escola, sob a constante ame- a Newark, onde, ao visitar o poeta e dra- aça de repressão. Depois desse inci- maturgo Leroi Jones (Amiri Baraka) em dente, formou-se um grupo de estudan- sua Spirit House, conheci também o tes africanos de Direito, tendo como poeta sul-africano Keorapetse Kgotsisile. um de seus membros Fidélis Cabral, Que axé: brasileiro, norte-americano e sul- que mais tarde viria a ser o ministro da africano reunidos na mesma luta... fo- Justiça do Governo independente da ram dois entre muitos momentos carre- Guiné-Bissau. gados de inspiração e emoção, pois além dessas visitei inúmeras outras instituições Com o endurecimento do regime negras. militar e a intensa repressão instituída pelo AI-5, fui obrigado a deixar o país. É importante assinalar que o perí- A questão racial virou assunto de se- odo vivido nos Estados Unidos em nada gurança nacional, e sua discussão era afetou minha posicão sobre o racismo e proibida. Fui incluído em diversos a luta negra no Brasil. Foi um contato IPMs, sob a estranha alegação de que riquíssimo com uma comunidade militan- seria eu encarregado de fazer a liga- te cuja liberdade de expressão permitia ção entre o Movimento Negro e a es- uma linguagem radicalizada. Apenas nes- querda comunista. Logo eu, que era se ponto diferia do Brasil: os negros po- execrado pelos comunistas como fas- diam soltar a língua, afirmar diretamente cista e racista ao contrário! Ironia su- suas posições independentes, enquanto prema... Embarquei para os Estados no Brasil havia sempre a necessidade de Unidos, onde ficaria durante 13 anos. maneirar, lançar mão de metáforas, pra- O exílio representaria outra fase de luta, ticar o chamado “jogo de cintura”, tomar em nível internacional e pan- cuidado com a expressão verbal ou es- THOTH 3/ dezembro de 1997 86 Atuação Parlamentar

crita. E mesmo assim éramos denuncia- africanos, de lutar por seus direitos em dos como racistas radicais, até por nossa sociedades segregacionistas e numa or- gente. Não aprendi nada de novo com dem mundial herdada do colonialismo. No os negros nos Estados Unidos, mas cer- Brasil - e nos países chamados “latinos” tamente me sentia mais à vontade para da América em geral - as teorias da con- desenvolver meu próprio pensamento sem vivência harmônica entre as raças, e da aquela mordaça da democracia racial, de mestiçagem étnica e cultural, levaram à esquerda ou direita, que sempre nos pren- negação da necessidade específica de dia no Brasil. luta anti-racista. Ao resolver a “questão social”, a discriminação iria sumir magi- Pude me integrar, levando a men- camente, e quem não acreditasse nisso sagem afro-brasileira, a movimentos in- era racista às avessas. ternacionais como o VI Congresso Pan- Africano, realizado em Dar-es-Salaam Já na Nigéria, em 1977, foi a dita- (1974). Dele participei desde a reunião dura militar brasileira que tentou me ca- preparatória realizada na Jamaica, em lar. Fui convidado a apresentar um tra- 1973, e acompanhei o vivo interesse pelo balho ao Colóquio, fórum intelectual do Brasil de um homem muito à frente do II Festival Mundial de Artes e Culturas seu tempo: C.L.R. James, um revolucio- Negras e Africanas, realizado em Lagos. nário negro de Trinidad que insistia em O Governo brasileiro, por meio do que o Brasil fosse representado por uma Itamaraty, tentou vetar minha participa- grande delegação, na qualidade de país ção de todas as formas, inclusive medi- com maior população africana fora da ante de desgastadas táticas emprestadas África. No próprio Congresso, entretan- da CIA (Nascimento, 1981). Conseguiu to, eu e outros de países multirraciais da excluir-me do Colóquio como convida- diáspora africana sofremos pressão de do. Entretanto, participei como observa- parte da linha ideológica marxista-leninista dor e, com o apoio de delegações da que prevalecia devido ao patrocínio go- diáspora e da imprensa e intelectuais vernamental do Congresso (Nascimen- africanos, bem como do ministro de Edu- to, 1980). cação nigeriano e coordenador do Coló- quio, coronel. Ali, fiz minha intervenção Essa linha ideológica pressionava denunciando o racismo no Brasil (Nasci- o discurso do Movimento Negro nos Es- mento, 1977). tados Unidos, na África do Sul e no mun- do africano como um todo. Mas havia Ainda na Nigéria, recebi convite uma diferença em relação à nossa expe- para participar do I Congresso de Cultu- riência. Por mais que essa ideologia im- ra Negra das Américas, organizado pelo pusesse a primazia da luta de classes, não valente afro-colombiano Manual Zapata havia como negar a necessidade especí- Olivella e realizado em Cáli, Colômbia, fica nem do negro nos Estados Unidos e em 1977. Lá encontramos Sebastião no país do apartheid, nem dos países Rodrigues Alves, Mirna Grzich e Eduar- Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 87

foto 10 Congresso Pan-Africano em Dar-es-Salaam, Tanzânia. À esquerda, Sam Tanzânia. Congresso Pan-Africano em Dar-es-Salaam, o Em junho de 1974, Abdias Nascimento representando o negro brasileiro no 6 Em junho de 1974, Nujoma, então líder da SWAPO, organização de libertação do povo da Namíbia, hoje presidente dessa nação africana organização Nujoma, então líder da SWAPO, THOTH 3/ dezembro de 1997 88 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 89

do de Oliveira e Oliveira, os únicos bra- De volta ao Brasil: redemocratização sileiros que conseguiram furar o blo- e Movimento Negro queio do depósito compulsório para vi- Já em julho de 1978, havia voltado ajar, exigido pela ditadura. No Pana- rapidamente ao Brasil e participado da má, em 1980, realizou-se o II Congres- fundação do Movimento Negro Unifica- so de Cultura Negra das Américas, e do contra a Discriminação Racial. O o Brasil foi eleito sede do III Congres- ato público nas escadarias do Teatro Mu- so. Certamente, esses Congressos nicipal de São Paulo foi um momento constituem um marco na história da inesquecível, ainda em pleno regime mi- conscientização internacional da litar. Na Bahia, no Rio de Janeiro, em diáspora africana, pois em todos os pa- Belo Horizonte e em São Paulo, partici- íses das Américas Central e do Sul, pamos de reuniões de consolidação do com forte presença africana, existem movimento, sempre com a presença da ideologias parecidas à da “democracia saudosa irmã Lélia González. Foi ao mes- racial”, escamoteando a identidade e mo tempo um início e um momento cul- a luta pelos direitos das populações ne- minante, pois a fundação do MNU deu gras. Pela primeira vez, representan- expressão a toda uma nova militância ne- tes dessas populações se reuniam para gra que vinha se firmando através da juntos pensar suas situações específi- década de 1970. cas, concluindo pela necessidade de respostas específicas a seus problemas Essa militância também enfrenta- e aspirações próprios. va, no contexto da resistência ao regime de exceção, a oposição dos setores de No exílio, a convivência com es- esquerda que negavam a legitimidade da querdistas também exilados demons- nossa luta específica. Os militantes do trava que, embora se julgassem escla- Movimento Negro precisavam manter- recidos quanto à questão racial, em se como verdadeiros heróis para levan- muitos casos continuavam contamina- tar e sustentar essa bandeira. Em geral, dos pela idéia do racismo às avessas, essa fase da luta afro-brasileira se ca- sobretudo quando se tratava da neces- racterizava por certo atrelamento às ex- sidade de negros conduzirem sua pró- pectativas da esquerda, e com isso uma pria luta, organizando-se para alcan- impossibilidade de recorrer, se embasar çar objetivos específicos4. A linha ide- ou dar continuidade às histórias e con- ológica esquerdista ainda impunha os quistas materializadas nos períodos an- referenciais teóricos da negação de teriores. Naquela circunstância, tutelado nossa luta específica. pelas esquerdas, o Movimento Negro se ______4 Alguns, como por exemplo Florestan Fernandes, Leonel Brizola, Paulo Freire, Clóvis Brigagão, Betinho, Fernando Gabeira e Arthur Poerner, conseguiam superar tais fantasmas ideológicos. THOTH 3/ dezembro de 1997 90 Atuação Parlamentar

reorganizava como uma subutopia, já que em geral. Hoje, o dia 20 de novembro é a vitória da revolução mais ampla auto- comemorado universalmente em todo o maticamente resolveria os problemas de Brasil. exclusão racial. Uma das mais ricas experiênci- Voltando definitivamente ao Bra- as dessa época foi a fundação do sil em 1980, fundamos o Instituto de Pes- Memorial Zumbi, organização nacional quisas e Estudos Afro-Brasileiros reunindo representantes do Movimen- (Ipeafro), na PUC-SP, que organizou o to Negro, da academia e de setores go- III Congresso de Cultura Negra das Amé- vernamentais ligados ao Patrimônio ricas, realizado em São Paulo, nas de- Histórico e Artístico Nacional, para im- pendências da PUC, em agosto de 1982. plantar na serra da Barriga, terra de A primeira pesquisa do Ipeafro foi a dos Palmares, um Pólo da Cultura de Li- quilombos contemporâneos, assunto que bertação do Afro-Brasileiro (Nasci- ganha cada vez mais destaque na aca- mento, 1982: 36-45). demia e na militância, pois se trata de O processo de redemocratização uma das principais dimensões de nossa e a formação do quadro partidário, entre experiência. O Ipeafro inaugurou seu 1979 e 1982, quando foram realizadas as curso de extensão para capacitação de primeiras eleições para o Congresso Na- professores, Sankofa, e organizou, junto cional e governos estaduais, testemunhou com a ONU, o Seminário Internacional a crescente participação dos negros or- Cem Anos de Luta pela Independência ganizados. No Partido Democrático da Namíbia (Rio, 1984). Publicou a re- Trabalhista (PDT), fundamos a Secre- vista Afrodiáspora (1983-7) e editou ou- taria do Movimento Negro, com o ob- tros livros (Nascimento, 1985; Larkin jetivo explícito de tratar dos assuntos Nascimento, 1981, 1985). específicos da nossa comunidade. No Um dos mais fortes sinais do cres- PT e em outros partidos, houve tam- cimento e fortalecimento do Movimento bém, ao longo do processo de consoli- Negro nessa época é a instituição do Dia dação da democracia, iniciativas de Nacional da Consciência Negra no dia mobilização organizada dos negros. Si- 20 de novembro, aniversário da morte de nal de certa imaturidade do movimen- Zumbi dos Palmares. A proposta do po- to àquela época é o fato de que os com- eta Oliveira Silveira, do Grupo Palmares promissos partidários foram capazes de do Rio Grande do Sul, virou uma iniciati- criar divisões a meu ver desnecessári- va do Movimento Negro como um todo as, pois nossa luta transcende as fron- a partir do início da década de setenta. teiras partidárias. A militância dentro Por meio do trabalho das entidades ne- de um partido ou em função de uma gras, a proposta ganhou força em todo o postura ideológica não deveria preju- país, e gradativamente passou a ser re- dicar a unidade nos objetivos da nossa conhecida pela mídia e pela sociedade luta específica. Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 91

Ligada a essa questão, continuava pendência desses grupos ao articular o Movimento Negro a enfrentar a acusa- suas formas de ação comunitária com- ção de racismo, ainda lançada por setores põe um requisito fundamental da ver- da esquerda e da direita. A esquerda, em- dadeira democracia. Com o passar do bora mais aberta à questão, não conseguia tempo, esses preceitos do quilombismo assimilar a necessidade fundamental da in- vêm se demonstrando nitidamente em dependência do Movimento Negro ao de- harmonia com a evolução da prática finir e buscar soluções para os seus pro- do movimento afro-brasileiro e de ou- blemas específicos. tros grupos discriminados, sobretudo os O Quilombismo: uma proposta índios e as mulheres. política afro-brasileira Primeiro mandato afro-brasileiro no Nessa época, exatamente no sen- Congresso, mobilização e Nova Re- tido de chamar atenção para a necessi- pública dade de independência de pensamento e Ao assumir em 1983 o mandato ação do Movimento Negro em relação a de deputado federal, era o primeiro e seus problemas específicos, lancei o li- único deputado afro-brasileiro a defen- vro O quilombismo (1980). A tese do der sistematicamente, no Congresso Na- quilombismo, apresentado inicialmente cional, os direitos humanos e civis dos ne- ao II Congresso de Cultura Negra das gros no Brasil. Na legislatura anterior à Américas, busca nas raízes da experi- Constituinte de 1988, creio que tenha reali- ência histórica de luta específica dos afri- zado um trabalho político-didático prepa- canos nas Américas, e particularmente ratório para as futuras conquistas da po- no Brasil, o modelo para a articulação pulação afro-brasileira, trazendo àquela de uma ideologia capaz de orientar nos- casa o dimensionamento do racismo e sa atuação política. Trata-se de uma pro- da discriminação racial como questão na- posta política para a Nação Brasileira, e cional, e não apenas como um suposto não apenas para os negros: um Estado “problema do negro”. Apontando o 13 voltado para a convivência igualitária de de maio como “mentira cívica”, propus todos os componentes de nossa popula- a criação de uma Comissão do Negro ção, preservando-se e respeitando-se as (Projeto de Resolução no 58-A, de 1983) diversas identidades, bem como a na Câmara dos Deputados. Assinalei a pluralidade de matrizes culturais. importância de Zumbi dos Palmares A construção de uma verdadeira como herói da pátria, propondo feriado democracia passa, obrigatoriamente, pelo nacional no dia 20 de novembro, aniver- multiculturalismo e pela efetiva implan- sário de sua morte e Dia Nacional da tação de políticas compensatórias ou de Consciência Negra (Projeto de Lei nº. ação afirmativa para possibilitar a cons- 1.550, de 1983). No Projeto de Lei nº. trução de uma cidadania plena para to- 1.661, de 1983, propus definir o racismo dos os grupos discriminados. A inde- como crime de lesa-humanidade. THOTH 3/ dezembro de 1997 92 Atuação Parlamentar

Creio que uma das mais importan- da democracia na chamada Nova Repú- tes medidas do meu mandato foi a de blica (Nascimento, 1985). As entidades abrir, no Congresso Nacional, o prece- do Movimento Negro proliferavam e ga- dente de uma proposta que hoje ganha nhavam destaque mediante sua atuação cada vez mais destaque: a instituição de contundente. No bojo da criação e con- políticas públicas específicas para a po- solidação do Memorial Zumbi, que já ti- pulação de origem africana, por meio da nha articulado um diálogo entre setores chamada ação afirmativa, ou ação com- governamentais e o Movimento Negro, pensatória na linguagem do meu Projeto ganhou relevo a idéia de políticas públi- de Lei no 1.332, de 1983. Esse projeto cas específicas para a população afro- estabelece mecanismos de compensação brasileira, embora ainda sem essa desig- do afro-brasileiro após séculos de discri- nação. Sua maior expressão se deu, tal- minação, entre elas a reserva de 20% de vez, no Encontro Nacional de Militantes vagas para mulheres negras e 20% para Negros realizado em 1984 em Uberaba, homens negros na seleção de candidatos na administração do prefeito Wagner do ao serviço público; bolsas para estudos; Nascimento. Como deputado federal, 40% de empregos na iniciativa privada e pude levar o documento elaborado nesse incentivos às empresas que contribuírem encontro ao futuro Presidente Tancredo para a eliminação da prática da discrimi- Neves, e mais tarde retomar as reivindi- nação racial; incorporação ao sistema de cações da comunidade, nele contidos, em ensino e à literatura didática e para-didáti- vários encontros com o presidente José ca da imagem positiva da família afro-bra- Sarney e com os ministros Celso Furta- sileira, bem como da história das Civiliza- do e José Aparecido5. ções Africanas e do africano no Brasil. Iniciou-se nessa época, em alguns Dediquei o mandato também à questão setores governamentais, a evolução de das relações do Brasil com a África do uma aceitação da proposta de uma atua- Sul, país do apartheid, e à defesa do di- ção administrativa voltada ao atendimento reito dos povos de Namíbia e dos países das necessidades específicas da popula- africanos de língua portuguesa à autode- ção afro-brasileira. A concretização des- terminação, bem como a constante afir- sa tendência articulou-se na criação de mação de solidariedade com as lutas de órgãos de assessoria de governo, o pri- libertação dos povos africanos. meiro sendo o Conselho de Participação A crescente e cada vez mais efi- e Desenvolvimento da Comunidade Ne- caz mobilização do Movimento Negro se gra, instituído pelo Governador Franco fazia sentir no processo de consolidação Montoro, do Estado de São Paulo. No

______5 Os textos do discurso de encaminhamento e do documento de Uberaba, entregues ao presidente Tancredo Neves, encontram-se transcritos no livro Povo negro: a sucessão e a Nova República (Nascimento, 1985). Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 93

Lançamento do livro O quilombismo, João Pessoa, 1980, com a presença de Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba THOTH 3/ dezembro de 1997 94 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 95

âmbito da cultura, tal evolução foi expres- Alberto de Oliveira Caó e Paulo Paim, sa nas propostas específicas elaboradas anunciando a natureza pluricultural e pelos representantes da comunidade afro- multiétnica do país (art. 215, par. 1o), es- brasileira no Encontro Nacional de Se- tabelecendo o racismo como crime cretários de Estado de Cultura (Ouro inafiançável e imprescritível (art. 5o, Preto e Belo Horizonte, 1984), que tive inciso XLII) e determinando a demarca- ocasião de apresentar à sessão de deba- ção das terras dos remanescentes de tes sobre Etnias e Identidade Cultural (I quilombos (art. 68, Disposições Transi- Encontro Nacional de Política Cultural, tórias). Entretanto, essas conquistas mar- 1985:193). Essas propostas foram cam sobretudo o grau de mobilização da traduzidas em políticas públicas por di- comunidade afro-brasileira, que partici- versos Estados e municípios do país por pou de comissões parlamentares e se meio da criação de assessorias, divisões, manifestou de diversas formas para programas e departamentos para a cul- assegurá-las. Uma expressão dessa tura afro-brasileira, começando com as mobilização encontra-se na realização Secretarias de Cultura e Educação do Rio dos Encontros Estaduais e Regionais das de Janeiro e de São Paulo (Larkin-Nas- Entidades Negras, realizados em diver- cimento, 1993, 1994; Grupo de Trabalho sos Estados e nas Regiões Norte-Nor- para Assuntos Afro-Brasileiros, Secre- deste e Sul-Sudeste nesse final da déca- taria de Educação do Estado de São Pau- da dos oitenta, e culminando com o I lo, 1988). No Governo federal, a criação Encontro Nacional das Entidades Negras de uma Assessoria para Assuntos Afro- (ENEN), realizado em São Paulo em Brasileiros e da Comissão para o Cente- 1991. Após a Constituinte nacional, o pro- nário da Abolição da Escravatura, no seio cesso constituinte nos Estados e municí- do Ministério da Cultura, expressa essa pios também testemunhou uma ação efe- mesma tendência. tiva do Movimento Negro mobilizado, em que muitas conquistas foram assegura- Conquistas na Constituinte, Cente- das nas constituições estaduais e muni- nário da Abolição e Fundação cipais. Palmares Outra dimensão dessa mobilização Nas eleições de 1986, a represen- está na atuação do Memorial Zumbi, no tação afro-brasileira no Congresso au- sentido de consolidar a proposta do Mo- mentou, embora ainda tenha ficado mui- vimento Negro de celebrar o dia 20 de to aquém de uma representação signifi- novembro como Dia Nacional da Cons- cativa, muito menos proporcional. Creio ciência Negra, mediante peregrinações que minha atuação parlamentar tenha anuais à terra de Palmares. Da articula- ajudado a abrir o caminho para a apro- ção entre o Memorial Zumbi e a Comissão vação de dispositivos propostos pelos para o Centenário da Abolição da Escra- parlamentares negros da Constituinte de vatura, no seio do Ministério da Cultura 1988, deputados Benedita da Silva, Carlos THOTH 3/ dezembro de 1997 96 Atuação Parlamentar

(processo marcado pela competência do fissional de adolescentes, e o trabalho em presidente da Comissão, Dr. Carlos Moura), todo o Estado com professores no senti- nasceu a Fundação Cultural Palmares, con- do de formá-los para uma ação pedagó- quista eminente da militância afro-brasilei- gica afirmativa da história e da cultura ra de que pude participar. A primeira ad- africanas e afro-brasileiras. A Secreta- ministração da Fundação, presidida pelo Dr. ria publicou vários livros, entre eles a se- Carlos Moura e atuando sempre em con- gunda edição de A África na escola bra- junto com o Memorial Zumbi, teve um pa- sileira (Larkin Nascimento, 1993) e os pel fundamental na desapropriação das dois volumes de Sankofa: resgate da terras da serra da Barriga. Infelizmente, cultura afro-brasileira (Larkin Nasci- as seguintes administrações ainda não mento, 1994), para distribuição junto às conseguiram levar adiante a missão da redes estadual e municipal de cultura e Fundação Cultural Palmares no sentido ensino. de viabilizar a proposta da implantação Foi lançada contra a Secretaria a de um Pólo da Cultura de Libertação velha acusação de racismo às avessas, Afro-Brasileira na serra da Barriga, ob- assim demonstrando a vitalidade dessa jetivo principal do Memorial Zumbi. tese a despeito dos avanços democráti- cos conquistados pelo movimento e, evi- Secretaria de Defesa e dentemente, ainda não assimilados pela Promoção das Populações Afro- sociedade brasileira. O Governo esta- Brasileiras e Senado dual iniciado em 1995 extinguiu suma- riamente essa Secretaria de Estado. Num gesto inédito na política bra- sileira, o governador Leonel Brizola criou Atuação independente de em 1991 a Secretaria de Defesa e Pro- entidades e ONGs negras moção das Populações Afro-Brasileiras, único órgão de primeiro escalão especi- A atuação independente das ficamente voltado à criação e ONGs afro-brasileiras em todo o país implementação de políticas públicas para evoluiu de forma significativa nas dé- a população afro-brasileira (Sedepron, cadas dos oitenta e dos noventa. Es- 1991). No espaço deste ensaio, não será sas ONGs preenchem, em parte, o va- possível detalhar o trabalho da Secreta- zio deixado pelo Estado ao não execu- ria. Entre suas realizações, destacam-se tar políticas públicas voltadas para essa a constituição de uma Delegacia Especi- população. As ONGs trabalham em alizada em Crimes de Racismo, o funci- diversas áreas, notadamente direitos onamento de um Balcão de Atendimen- humanos e saúde. A área de educação to a Denúncias de Racismo, os cursos e constitui outro exemplo. Não encon- oficinas de capacitação da Polícia Mili- trando na academia o suporte para a tar para o convívio com a diversidade, o introdução no currículo escolar e na Projeto Força Jovem, de formação pro- prática pedagógica de conteúdos e Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 97

métodos de ensino adequados à trans- nômeno marcante no início da década formação de um ensino racista, a co- dos noventa: a crescente articulação munidade e a militância afro-brasileira do Movimento Negro com setores do desenvolveram sua própria intervenção sindicalismo ligados aos partidos, es- mediante a fundação de escolas comu- treitando os laços e superando o anti- nitárias (Luz, 1989), cursos de exten- go discurso que decretava a luta con- são para capacitação de professores tra o racismo como fator de divisão do (Larkin Nascimento, 1994), debates e proletariado. A articulação se fez sen- seminários (Triumpho, 1991; Silva, tir sobretudo na Marcha sobre Brasília, 1997), eventos e atividades culturais em 1995. A conscientização do nas escolas. Nas universidades, a cri- sindicalismo e sua sensibilização para ação de núcleos ou centros de pesqui- a questão racial apontam para o de- sa em nível de graduação e pós gradu- senvolvimento de futuros trabalhos con- ação, exigida pelo Movimento Negro, cretos em prol da igualdade de remu- resultou por meio da proliferação de neração e outras reivindicações espe- teses de mestrado e doutorado, na qua- cíficas dos trabalhadores negros. lificação da base de informações de in- teresse da comunidade negra. Merece destaque, ainda, a mobilização de vári- Movimento pelas reparações as comunidades na criação dos pré- Outro marco do início desta dé- vestibulares para negros e carentes: cada foi o crescimento do movimento atualmente, esse movimento se orien- pelas reparações, ou indenização aos ta explicitamente no sentido de se man- descendentes de africanos pelos danos ter financeiramente independente, não sofridos durante gerações de aceitando recursos externos. escravização no maior holocausto co- nhecido na História da Humanidade. Sindicalismo e Movimento De âmbito internacional, chegou a ser Negro articulado no Brasil a partir do final da A organização afro-brasileira década dos oitenta. Hoje, não se en- dentro dos partidos amadureceu e se tendem tais reparações como indeni- fortaleceu com o próprio crescimento zação financeira a indivíduos, mas an- do movimento afro-brasileiro. Aumen- tes como a criação de diversas formas tou bastante o número de candidatos ne- de ação compensatória coletiva. Um gros, sinalizando o fim de uma era em que exemplo seria a constituição de fundos o negro atuava apenas como cabo eleito- para o desenvolvimento de programas ral. Com maior dimensionamento da ques- para as comunidades negras e carentes. tão racial dentro dos partidos, que abriga- Para isso, na Câmara dos Deputados, o vam uma atividade cada vez maior dos deputado Paulo Paim apresentou o Pro- militantes afro-brasileiros, surgiu um fe- jeto de Lei nº. 1239, de 1995. THOTH 3/ dezembro de 1997 98 Atuação Parlamentar

Comunidades rurais/ organizações de âmbito internacional. remanescentes de quilombos Um exemplo foi o Seminário Pró-Direi- tos Humanos, realizado em Lima, em Sem dúvida, uma das mais impor- 1990, organizado pelo Movimento Ma- tantes dimensões da luta afro-brasileira nuel Congo, que reuniu delegados de vá- nas décadas de oitenta e noventa está na rios países para discutir questões de co- mobilização das chamadas comunidades mum interesse às populações de origem negras rurais, ou remanescentes de africana. quilombos, espalhadas por todo o territó- Esse legado continuado dos Con- rio nacional, e que começam a se organi- gressos de Cultura Negra das Américas zar para se defender da agressão dos que impõe o aprofundamento da reflexão, le- cobiçam suas terras, lutando pelos seus vantada por ocasião dos 500 anos da cha- direitos humanos e civis de forma geral, mada descoberta das Américas em 1992 e especificamente pela implementação (Larkin Nascimento, 1994A), sobre a su- do artigo 68 das Disposições Transitóri- posta natureza “latina” de nossa região . as da Constituição, que lhes garante o A expressão “América Latina” espelha direito à demarcação e posse das terras. apenas a dominação de uma elite O I Encontro Nacional das Comunida- minoritária branca, européia, sobre po- des Negras Rurais, ocorrido em Brasília pulações majoritárias indígenas e africa- em 1995, representou a continuidade de nas. Trata-se não apenas da imposição um movimento que já vinha se articulan- lingüística de uma dominação que essas do em nível regional. A intervenção nes- populações a cada momento se organi- se processo de setores da academia, num zam para repelir, como também de uma trabalho de apoio, caracteriza uma revi- distorção grotesca da realidade são da relação sujeito/objeto de estudo, demográfica e sociocultural da região. transformando-a numa proposta de soli- dariedade e cooperação. Mulher negra Organização internacional Vem se desenvolvendo desde a nas Américas: “Latinas”? década dos setenta a inserção das mu- lheres negras no movimento feminista. Se os Congressos de Cultura Ne- Hoje, como resultado da atuação das gra das Américas deram início ao movi- mulheres negras, o movimento de mu- mento organizado dos afro-americanos lheres não trabalha a questão da mulher na região das Américas Central e do Sul sem considerar a questão racial. Organi- e no Caribe de fala espanhola, a continu- zadas no Brasil em entidades como o ação desse movimento se concretiza na Geledés (São Paulo) e o Criola (Rio de atuação de inúmeras entidades nos paí- Janeiro), as mulheres afro-brasileiras ses da região, bem como na fundação de compareceram organizadas à reunião Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 99

mundial de mulheres em Pequim, 1995. um livro didático e imprimiu, para distri- Também em nível internacional, se arti- buição nas escolas, cadernos sobre a his- culam com entidades como a Rede de tória de Zumbi dos Palmares, além de Mulheres Negras da América Latina e produzir diversos programas para a tele- do Caribe. visão educativa, iniciativas de impacto concreto significativo.

Tricentenário de Zumbi dos Palmares e instalação do GTI Senado Federal A comunidade afro-brasileira de- Na chapa do PDT, fui eleito com monstrou maturidade e adiantado nível Darcy Ribeiro e Doutel de Andrade para de organização para a luta em 1995, ano o Senado em 1990, e assumi o mandato do Tricentenário da Imortalidade de Zum- em 1991, durante um período curto em bi dos Palmares, em que houve manifes- que meu gabinete publicou os livros A tações, festivais de cultura, atos públicos África na escola brasileira (Larkin Nas- e seminários, congressos e eventos, na- cimento, 1991) e A luta afro-brasileira cionais e internacionais, em todo o país. no Senado (Nascimento, 1991). Em Essa efervescência culminou na Marcha 1997, com o falecimento do saudoso com- Zumbi dos Palmares contra o Racismo, panheiro Darcy, assumi o mandato com pela Cidadania e a Vida, em Brasília. O o prazer de integrar um Senado que con- Programa de Superação do Racismo e ta com a bela atuação política de duas da Desigualdade Racial apresentado pela mulheres afro-brasileiras, as senadoras executiva da Marcha constitui um docu- Benedita da Silva (Rio de Janeiro) e mento fundamental de síntese das reivin- Marina Silva (Acre). Apresentei, até o dicações da comunidade negra. A meta momento, quatro projetos de lei. O Pro- de implementação de políticas públicas jeto de Lei do Senado nº. 52, de 1997, específicas para a população negra ga- define o crime do racismo, pois a lei atu- nhou corpo concreto na forma do Grupo al, apesar de estabelecer o racismo como de Trabalho Interministerial para a Valo- crime, não o qualifica; o de nº. 75 esta- rização da População Negra, criado por belece medidas de ação compensatória meio decreto presidencial de 20 de no- para atingir a isonomia social do negro; o vembro de 1995. O presidente da Repú- de nº. 73 cria medidas punitivas contra blica, numa afirmação sem precedentes, pessoas e empresas que tenham pratica- reconheceu oficialmente a existência do do ou apoiado o racismo; o de nº. 114 racismo no Brasil e a necessidade de define a ação civil contra pessoas ou em- combatê-lo, entregando ao GTI a tarefa presas que agridam a honra e a dignida- de pensar as formas de encaminhar esse de de grupos raciais, étnicos e religiosos, combate. Por ocasião do Tricentenário, habilitando entidades da sociedade civil a Fundação Cultural Palmares publicou a processá-las na Justiça. A minha atua- THOTH 3/ dezembro de 1997 100 Atuação Parlamentar

A evolução do movimento expressa-se, ção parlamentar ficará registrada na re- entre outras formas, na sua crescente vista Thoth: Pensamento dos Povos maturidade no que diz respeito à questão Africanos e Afro-Descendentes, fórum partidária. A atuação de militantes den- também de debates e registros de inte- tro dos partidos políticos implica menos resse da população afro-descendente no em rivalidades e desunião, fortalecendo Brasil e no mundo, e portanto de interes- o movimento como um todo, e os própri- se do Brasil como um todo. os parlamentares, à medida que se orga- Ao assumir o mandato no Senado, nizam para agir em conjunto, deparei-me com um quadro muito dife- exemplificam esse fato. O grupo de par- rente daquele de 1983, quando ingressei lamentares afro-brasileiros da Câmara no Congresso Nacional, e essa diferen- dos Deputados e do Senado, ao qual per- ça se retratou simbolicamente quando tenço, vem agindo no sentido de firmar pude participar da inscrição oficial do posições suprapartidárias em prol da po- nome de Zumbi dos Palmares no livro do pulação afro-brasileira. Por outro lado, Panteão dos Heróis Nacionais, monu- ganha relevo a discussão, formulação e mento em Brasília onde até então cons- execução de políticas públicas em âmbi- tava apenas o nome de Tiradentes. Essa to municipal, estadual e federal. Sem a vitória concretizou a proposta da sena- menor sombra de dúvida, o movimento dora Benedita da Silva, também autora avançou de forma contundente nos últi- da lei que regulamenta a implementação mos anos. do art. 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal, garantindo às co- Conclusão munidades quilombolas a demarcação e A ação do racismo no Brasil, por posse de suas terras. A militância afro- si só com altos graus de intolerância e brasileira já chega ao Poder Legislativo, perversidade, tentou, com todos os re- embora em número diminuto em relação cursos que o conhecimento permite, anu- ao seu peso na população nacional, e lar o homem e a mulher negros na sua conseguimos ampliar nossas formas de dimensão existencial, buscando liquidar ação. a sua memória, a sua identidade, o seu corpo e o seu espírito. Mas vale ressal- tar que a militância dos afro-brasileiros, Hoje, uma nova etapa ao longo da história do Brasil, sempre foi Ao consolidar suas conquistas e uma luta pela sobrevivência e pelos di- atingir novos patamares na discussão e reitos humanos na sua forma mais sim- dimensionamento da questão racial en- ples e universal - a da vida em sua totali- quanto questão nacional, o Movimento dade. Negro hoje articula suas próprias inicia- Depois de todos esses anos de tivas, na construção de alianças e no de- empenho nessa luta, tenho a firme con- senvolvimento de ações independentes. vicção de que o Brasil, por uma fatalida- Pronunciamentos Reflexões sobre o Movimento Negro no Brasil 101

de desse processo político, será um dia Na sua prática democrática, o Movimen- governado por uma administração cons- to Negro no Brasil vive e concretiza o tituída na sua maioria por afro-brasilei- Quilombismo, na autêntica continuação ros. Se todos os segmentos étnicos que da tradição de luta afro-brasileira inau- compõem a população brasileira acredi- gurada nos primórdios da fundação do tarem verdadeiramente no caminho que Brasil. a Nação escolheu para organizar sua vida institucional - a democracia -, o negro, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS sendo maioria, assumirá o poder da Re- pública. Não se trata de nenhum Encontro Nacional de Política messianismo ou utopia poética. É uma Cultural, sessões de debates. Belo realidade à vista, tal como ocorre na Áfri- Horizonte: Secretaria da Cultura/ ca do Sul. Sem embargo, o ponto funda- Imprensa Oficial, 1985. mental dessa transformação está mais no Andrade, Inaldete Pinheiro. Pai Adão tipo de instituições políticas a serem cri- era nagô. Recife: Centro de adas do que apenas na troca de dirigen- Cultura Luiz Freire, 1989. tes brancos por dirigentes afro-descen- dentes. Pois somente terá legitimidade –. Cinco cantigas para você contar. Recife: Centro de Cultura Luiz uma democracia que efetivamente pro- Freire, 1989. mova a elevação do nível de vida de to- dos os brasileiros, proporcionando uma Cruz, Manoel de Almeida. A pedagogia educação igualitária e respeitosa das iden- interétnica. Salvador: Faculdade de tidades culturais, uma distribuição de ren- Educação da UFBA, 1985. da justa, numa economia cuja prioridade –. “Pedagogia Interétnica”, seja o ser humano e não o lucro ou a Cadernos Cândido Mendes 8-9 especulação financeira. É a proposta do (Rio de Janeiro, 1983). Quilombismo, inspirado no fenômeno da construção, pelos africanos escravizados, Cuti (Luiz Silva) e José Correia de sua vida soberana em liberdade em Leite. ... E disse o velho militante. todo o País, uma proposta de organiza- São Paulo: Secretaria Municipal de ção política para a Nação brasileira. Cultura, 1992.

Enquanto não se concretizar esse Degler, Carl. Neither black nor white. quadro, a organização do movimento Nova York: MacMillan, 1971. afro-brasileiro contribui fundamentalmen- te para a construção de uma verdadeira Larkin Nascimento, Elisa (org.). Pan-africanismo na América do prática de democracia no país, pois sua Sul. Petrópolis: atuação aponta para a necessidade da Editora Vozes/Ipeafro, 1981. inclusão de todos os segmentos socioculturais e classes sociais, mantidas –. Dois negros libertários. Rio de Janeiro: e respeitadas as identidades específicas. Ipeafro, 1985. THOTH 3/ dezembro de 1997 102 Atuação Parlamentar

–. A África na escola brasileira. Brasília: –. O negro revoltado, 2a ed. Rio de Gabinete do Senador Abdias Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Nascimento, 1991. Segunda edição, Rio de Janeiro: Seafro*, 1993. –. Sitiado em Lagos. Rio de Janeiro: –. Sankofa: resgate da cultura afro- Nova Fronteira, 1981. Brasileira, 2 vols. Rio de Janeiro: Seafro, 1994. –. O quilombismo. Petrópolis: Editora Vozes, 1980. –. Dunia Ossaim: os afro-americanos e o meio ambiente. Rio de – . “Teatro negro del Brasil”, in Janeiro: Seafro, 1994A. Gerardo Luzuriaga, org., Popular theater for social change in Latin Lima, Lana Lage da Gama. Rebeldia America: essays in Spanish and negra e abolicionismo. Rio de Janeiro: English. Los Angeles: UCLA Latin Achiamé, 1981. American Studies Publications, 1978.

Luz, Marco Aurélio (org). Identidade –. “Racial democracy” in Brazil: negra e educação. Salvador: Ianamá, or reality? Ibadan: Sketch Publishers, 1989. 1977.

Moura, Clóvis. Rebeliões da senzala: Padmore, George. Pan-Africanism or quilombos, insurreições, Communism? Nova York: Doubleday, guerrilhas. São Paulo: Ed. Conquista, 1972. 1972. Pinaud, João Luiz et alii. Insurreição Nascimento, Abdias do. Orixás: os deuses negra e justiça. Rio de Janeiro: vivos da Africa. Orishas: the living gods OAB, 1987. of frica in Brazil. Rio de Janeiro: Ipeafro/Afrodiaspora, 1995. Ramos, Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: –. A luta afro-brasileira no Senado. Andes,1957. Brasília: Senado Federal, 1991. Sedepron, Secretaria Extraordinária de –. “Quilombismo: the Afro-Brazilian road Defesa e Promoção das Populações to Socialism”, in African culture: the Negras, Governo do Estado do Rio rhythms of unity, org. por Molefi Kete de Janeiro. Nova etapa de uma Asante e Kariamu Welsh Asante. antiga luta. Rio de Janeiro: Thenton: Africa World Press, 1990. Sedepron, 1991. (Primeira edição da Greenwood Press, 1985.) Silva, Petronilha Beatriz Gonçalves e (org). O pensamento negro na –. Povo negro: a sucessão e a “Nova educação. São Carlos: Universidade República”. Rio de Janeiro: Ipeafro, Federal de São Carlos, 1997. 1985. Triumpho, Vera Regina (org). Rio Grande ______do Sul: aspectos da negritude. Porto *Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção Alegre: Martins Livreiro, Editor, 1991. das Populações Afro-Brasileiras, Governo do Estado do Rio de Janeiro. Pronunciamentos Alerta sobre incêndios em florestas 103

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente, Federal em 21 de outubro de 1997 Senhoras e Senhores Senadores, Sob a proteção de Olorum, inicio Alerta para que sirvam de lição ao este pronunciamento. Brasil os catastróficos incêndios recentemente ocorridos na Malásia e apelo às autoridades paulistas pela preservação do Horto Florestal Diariamente, os veículos de comu- Boa Sorte. nicação têm divulgado notícias alarman- tes sobre os incêndios que há cerca de dois meses vêm devastando impiedosamente as florestas da Indonésia e da Malásia, des- truindo preciosas reservas ecológicas e ali- mentando uma imensa e perigosa nuvem de fumaça que já se espalha sobre seis países asiáticos. Cerca de 10 mil técni- cos malaios e indonésios, auxiliados por equipes de salvamento francesas e ca- nadenses, empenham-se na árdua tarefa de conter o fogo, que já queimou uma área equivalente a seis vezes o Estado do Rio de Janeiro e causou a morte de THOTH 3/ dezembro de 1997 104 Atuação Parlamentar

seis pessoas por problemas respirató- madeireira da Malásia, a Rimbunan Hijau, rios. Além de ocasionar sérios trans- que acaba de incorporar, em sistema de tornos a grande parte dos habitantes joint venture, as madeireiras paraenses da Indonésia, Malásia, Brunei, Maginco Verde e Selva-Plac Verde. Para Cingapura, Tailândia e Filipinas, por ve- efetuar a transação, o empresário malaio zes obrigando-os a abandonar suas re- George Fan Yn Yong - convidado a atu- sidências. Também se atribui à fuma- ar na Amazônia pelo governador do Pará, ça do incêndio a queda de um avião Almir Gabriel - investiu aproximadamente Airbus na ilha de Sumatra, com a morte 35 milhões de dólares, num projeto que de 234 pessoas, no maior acidente aéreo pretende fazer do Brasil o líder mundial da história da Indonésia. Só um milagre, no mercado de madeiras, hoje dominado afirmam os especialistas, poderá ameni- pela Indonésia. zar essa catástrofe ecológica, especial- Não nos devemos iludir, porém, mente agora que o fogo atingiu a cama- com a prestidigitação de dados e núme- da de turfa acumulada no subsolo e nem ros que mostra esse projeto como uma mesmo uma chuva intensa seria de gran- espécie de tábua de salvação para a so- de valia. frida população amazônica. Afinal, já foi Embora ocorrendo do outro lado cabalmente demonstrado que, embora do mundo, esse horrível desastre deve seja possível realizar projetos de agricul- ter para nós um sabor de advertência. tura auto-sustentável naquela região, esse Ainda mais num momento em que a não é absolutamente o caso no que se Amazônia enfrenta uma situação seme- refere à exploração de madeiras, pois lhante - embora, felizmente, de menor esta implicaria a derrubada de árvores intensidade -, com o conhecido efeito das seculares, sem condições de regenera- queimadas se somando a uma seca ção, ameaçando frontalmente uma flo- incomum para resultar em inúmeros resta caracterizada por um singular e transtornos à vida da já sofrida popula- delicado sistema ecológico. Num momen- ção local. A forma irresponsável to em que populações inteiras de países como lidamos com o meio ambiente, her- asiáticos se encontram ameaçadas de dada de uma “colonização” predatória, asfixia devido à poluição do ar decorren- movida pelo lucro fácil e rápido, sem qual- te de incêndios originados por queima- quer consideração para com o imenso das promovidas por madeireiras, o povo patrimônio vegetal e animal encontrado brasileiro tem todo o direito, e até mes- à época do chamado “descobrimento”, mo o dever, de cobrar explicações dos tem colocado o Brasil em posição nada responsáveis. Sobretudo do Ibama, que invejável no ranking da devastação. nos deve a divulgação do estudo que su- Assim, foi com grande preocupação que postamente fez sobre o assunto - indis- tomamos conhecimento de um grande pensável para que o projeto fosse libera- negócio feito no Brasil por uma empresa do -, mas que aparentemente não se pre- Pronunciamentos Alerta sobre incêndios em florestas 105

ocupou em difundir os resultados. Cabe embora haja uma promessa do secretá- registrar que esse projeto foi denunciado rio do Meio Ambiente do Estado de São pelo jornal O Estado de São Paulo, em Paulo, Fábio Feldmann, de preservar as sua edição de 7 de setembro último, numa reservas naturais dos Hortos de Boa reportagem que levanta os muitos aspec- Sorte, Caraguatatuba e outros, o tos duvidosos dessa sombria transação. desmatamento já está em curso, enquanto as autoridades se vêem atadas nos nós Toda essa preocupação me foi da burocracia. Queremos assim, desta tri- passada em minha recente viagem à ci- buna, dirigir um apelo às autoridades dade de Franca, no interior de São Pau- paulistas, fazendo coro às organizações lo, à qual fui levado por assuntos de fa- ecológicas, para que se encontre em tem- mília. Lá fui procurado pelos dirigentes po hábil a fórmula capaz de preservar da Fepardo - Federação de Grupos Eco- esse inestimável patrimônio, cuja sobre- lógicos Paulistas e Mineiros nas Regiões vivência está intimamente relacionada à dos Rios Grande, Pardo, Mogi, Sapucaí, sobrevivência dos seres humanos naquela que pediram meu apoio a essa relevante vasta região. causa, bem como para a solução do pro- blema referente ao Horto Florestal Boa Se por muito tempo foram vistas, Sorte, ligado ao rombo do Banespa e à injustamente, como coisa de desocupa- privatização da Fepasa. Nesse proces- dos ou diletantes, as preocupações dos so, a Fepasa vai comercializar madeira e ambientalistas têm ganho, por força da terras de sete florestamentos de sua pro- concretização de algumas de suas mais priedade, alguns deles com grande quan- sombrias profecias, o crescente reconhe- tidade de mananciais e terras nativas. É cimento de sua importância para a per- o caso do Horto Florestal Boa Sorte, cujas petuação da presença humana neste pla- lagoas e nascentes são fundamentais para neta. Que a catástrofe asiática nos sirva o ecossistema dos rios Sapucaí, Pardo, de lição, para que preservemos nosso Grande e Mogi, essenciais para o já pre- meio ambiente, fator fundamental na vida cário equilíbrio ecológico do Sudoeste da atual e das futuras gerações. Mineiro e do Norte/Nordeste Paulista. Segundo as informações que recebemos, Axé! THOTH 3/ dezembro de 1997 106 Atuação Parlamentar Pronunciamentos Celebração do Bicentenário da Revolta dos Búzios 107

Senhor Presidente, Discurso proferido no Senado Senhoras e Senhores Senadores, Federal em 23 de outubro de 1997 Sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Considerações sobre a Conjuração Ocupo hoje esta tribuna para lem- Baiana de 1798, mais conhecida brar um dos episódios mais significati- como Revolta dos Alfaiates ou vos da luta secular do povo brasileiro Revolta dos Búzios, episódio signifi- pela justiça e a liberdade. Um episódio cativo da luta secular do povo que, apesar de considerado por nossos brasileiro pela justiça e a liberdade. principais historiadores como sendo Programação de atividades do mais importante que a famosa Conju- Grupo Cultural Olodum para a ração Mineira, continua até hoje rele- celebração do Bicentenário da gado à penumbra, privando especial- Revolta dos Búzios. mente a nossa juventude de um dos exemplos mais inspiradores de tenaci- dade e abnegação pela causa da igual- dade neste País. Esse exemplo é a Con- juração Baiana de 1798, mais conheci- da como Revolta dos Alfaiates ou Re- volta dos Búzios. THOTH 3/ dezembro de 1997 108 Atuação Parlamentar

A 13 de agosto de 1798, a capi- Tal como a Conjuração Minei- tal baiana é surpreendida pela distri- ra, a Revolta dos Búzios - assim cha- buição, sobretudo em igrejas e centros mada porque os conjurados costuma- de prática religiosa, de panfletos es- vam usar uma pequena concha de critos a mão, convocando o povo a se búzio presa à corrente do relógio - revoltar contra o domínio português. tinha como fonte inspiradora a Re- Alertado meses antes por uma carta volução Francesa, segundo seus ide- do padre José da Fonseca Neves, que ais de liberdade, igualdade e denunciava o cirurgião baiano Cipriano fraternidade. Além de “reduzir o con- Barata como propagandista e chefe de tinente do Brasil a um governo de- uma sedição contra o Governo Impe- mocrático”, os revoltosos pretendi- rial, o governador Fernando José de am abolir o cativeiro e a discrimina- Portugal e Castro comanda as investi- ção racial, instituir a liberdade reli- gações, que redundam na prisão do giosa, dividir entre a população “tudo soldado Luís Gonzaga das Virgens e que houvesse na capital”, abrir o Veiga, incriminado pela caligrafia, em porto de Salvador a navios de todos cuja residência são encontrados livros os países e executar o governador, e documentos comprometedores. Ao em caso de resistência. Um progra- mesmo tempo, denúncias conduzem à ma bem mais consistente e radical, prisão do alfaiate João de Deus, do como se pode facilmente depreender, soldado Lucas Dantas e do lavrador do que o da Conjuração Mineira, Luís Pires. Ameaçado de morte, Luís conduzida por burgueses, literatos e Gonzaga acaba delatando os outros sacerdotes brancos, sem muito com- companheiros revolucionários. promisso com as verdadeiras neces- Sobre eles se abate uma repres- sidades e aspirações das camadas são dura, cruel e sobretudo seletiva. populares. Isso se espelha com cla- Dos cerca de 600 conspiradores - na reza não somente no rigor da repres- imensa maioria, modestos artesãos, ao são - afinal, apenas um “inconfiden- lado de negros e mulatos forros -, qua- te” mineiro morreu enforcado, con- tro são condenados à morte pela for- tra quatro revolucionários baianos de 1798 ca. Coincidentemente, todos negros. -, mas também na preocupação dos Para os restantes, penas de prisão, cas- governantes da época em evitar que as tigos corporais e degredo na África. notícias sobre essa revolta pudessem che- Este é o caso do professor Muniz gar às outras cidades da Colônia. Era o Aragão, autor do hino revolucionário, temor de que esse movimento, bem mais e dos tenentes José Gomes de Oliveira perigoso que aquela conspiração de pa- e Hermógenes Francisco. Melhor sor- dres e poetas, pudesse contaminar as mas- te teria o médico Cipriano Barata, sol- sas despossuídas de outras regiões do to após cumprir sua sentença. Brasil. Pronunciamentos Celebração do Bicentenário da Revolta dos Búzios 109

Assim, diferentemente de – a mudança de nomes de ruas Tiradentes e de outros heróis consagra- de Salvador para homenagear os már- dos pela história oficial, os mártires da tires desse movimento; Revolta dos Búzios não viraram estátua – a constituição de comissão es- em praça pública nem deram nomes a tadual, com representantes da comu- cidades. Seus feitos sequer aparecem nos nidade negra e de outros setores da so- livros didáticos, com exceção de vagas e ciedade, para organizar os eventos do diminutas citações, incapazes de fazer jus bicentenário; à sua importância na história das lutas de nosso povo. Felizmente, porém, a nova – a constituição de comissão mis- consciência que anima os afro-brasilei- ta, com parlamentares do Senado e da ros na busca de justiça e igualdade tem Câmara, para organizar essas come- se refletido igualmente na luta pelo reco- morações no plano do Legislativo Fe- nhecimento de nossa importância como deral; protagonistas na formação da nacionali- – a inclusão dos mártires da Re- dade brasileira. É nesse quadro que se volta dos Búzios no livro dos Heróis da inscreve o projeto 200 Anos da Revolta Pátria; dos Búzios, iniciativa do Grupo Cultural Olodum, internacionalmente conhecido – a instituição do prêmio literá- por utilizar a cultura popular afro-baiana rio João de Deus para alunos de pri- como instrumento de conscientização meiro e segundo grau da Bahia e do quanto à história dos marginalizados e às Brasil, por meio do Ministério da Edu- desigualdades raciais em nosso país, tanto cação; quanto como elemento-chave na recu- – a publicação, pelo Senado Fe- peração da auto-estima dos afro-brasi- deral, dos documentos sobre a Revolta leiros. O Olodum significa uma verda- dos Búzios; deira revolução instrumentalizada por – a desapropriação das casas em meio da cultura. que viveram os mártires de 1798, no Amplo e abrangente, o Programa centro histórico de Salvador, e sua trans- de Atividades do Olodum para a Cele- formação em centros de estudos e pes- bração do Bicentenário da Revolta dos quisas sobre democracia e liberdade; Búzios inclui: – a construção e instalação, na Rua – a construção, no Campo do Di- Chile, em Salvador, de biblioteca e mu- que (local em que se reuniam os conspi- seu da Rota da Liberdade, tendo como radores de 1798), do Memorial da Liber- foco a presença africana nas Américas; dade Afro-Brasileira; – a instituição do Prêmio Revolta – a publicação de livros e revistas dos Búzios para organizações baianas que sobre esse evento histórico, para estu- se destaquem na área do trabalho social dantes de primeiro e segundo grau; durante o ano de 1998. THOTH 3/ dezembro de 1997 110 Atuação Parlamentar

Trata-se, como se vê, de um pro- te de origem étnico-racial, que percebe grama ambicioso, cuja concretização de- na luta dos afro-brasileiros uma etapa ne- verá enfrentar os obstáculos, quase sem- cessária e indispensável à nossa consoli- pre camuflados, que costumam interpor- dação como país democrático e se àqueles que se dedicam a resgatar o multicultural. Ao Olodum, portanto, nos- valor e a significação do legado africano sas homenagens e todo o nosso apoio. à construção deste país. Mas que sem dúvida obterá o apoio de uma crescente Axé, Olodum! Salve a Revolta dos parcela de nossa população, independen- Búzios! Pronunciamentos Celebração de Zumbi dos Palmares 111

Discurso proferido no Senado Federal em 20 de novembro de 1997. Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores,

Sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento, que é feito não so- mente em meu nome, mas também no do meu Partido, o PDT, e de toda a ban- cada pedetista desta Casa. Celebração da memória de Zumbi e Naquela derradeira noite, ao daqueles que com ele tombaram, em revisitar os eventos dramáticos trans- defesa da dignidade humana, na corridos nos últimos meses, o Capitão primeira república livre das dos Negros fechou os olhos por um Américas, a República dos Palmares. momento e se viu, junto com seu povo, à frente dele, lutando a batalha final no mocambo do Macaco. Era um ce- nário de sangue, do sangue de negros e de brancos, igualmente vermelho, misturado e justaposto, confundido na dor e na morte. Na mesma morte que levara tantos e tantos de seus melho- res guerreiros, homens e mulheres. THOTH 3/ agosto de 1997 112 Atuação Parlamentar

Gente que um dia seria descrita como se tem notícia, esses homens, mulheres “estimando mais a liberdade entre as e crianças eram inconscientemente o feras que a sujeição entre os homens”. objeto de uma singular experiência no Sentimento que os fizera fugir de fa- campo da engenharia humana. Uma ex- zendas e engenhos para se refugiar periência que iria alterar para sempre a naquele “sítio naturalmente áspero, face das Américas - e de todo o planeta montanhoso e agreste, com tal espes- -, fundindo corpos, sentimentos e cultu- sura e confusão de ramos que em mui- ras, e redesenhando definitivamente o tas partes é impenetrável à luz”, para mapa das populações humanas. ali fundar Angola Janga, ou Angola As primeiras levas de africanos Pequena. escravizados haviam chegado, quase 200 Corria o ano de 1695, e a Capita- anos antes, aos portos de Recife e da nia de Pernambuco vivia ainda os tem- Bahia, e à Capitania de São Vicente, no pos de fausto de um ciclo da cana-de- sul, trazidas já para as lavouras de cana- açúcar que logo cederia vez ao ciclo do de-açúcar, as quais se espalhariam em ouro, o qual acabaria deslocando o eixo pouco tempo por toda a região costeira da economia colonial definitivamente da colônia - sempre tocadas pela força para o sul. Fausto, é verdade, para uns do braço africano. Sua origem era, basi- poucos fazendeiros, senhores de enge- camente, a parte sul da África. Em es- nhos e suas famílias, cuja riqueza permi- pecial, Angola e Moçambique. Embora tia alimentar-se com produtos importa- familiarizados com a escravidão dos pri- dos de Portugal e das demais colônias. sioneiros de guerra, comum no Continen- Mas, para a maioria do povo - leia-se: te Africano como em todo o mundo anti- dos brancos -, a realidade era principal- go, o regime a que seriam aqui submeti- mente a fome, cruel e onipresente numa dos não era, em absoluto, semelhante região que produzia cana, cana e tão-so- àquele que conheciam. Não se tratava mente cana, sem espaço para a agricul- de escravos de famílias nobres, realizan- tura de subsistência. Num cenário que, do serviços domésticos. Seus senhores por sinal, pouco mudaria nos três séculos não se pareciam com eles, na língua como seguintes. nos traços físicos. Pior de tudo: jamais poderiam voltar a seu lugar de origem, Se assim viviam os brancos sem do qual os separava o grande oceano. posses, mais terrível era, com certeza, a sorte dos negros. Trazidos de sua terra O Capitão virou-se para o lado natal, onde viviam em comunidades do sol nascente, como que a evocar diversificadas pela língua, pelos costumes, uma terra que jamais tinha visto e que, pela religião e pelo grau de avanço sabia, jamais iria ver. Conseguia tecnológico, reduzidos à condição de es- enxergá-la, porém, pelos olhos das cravos e obrigados a atravessar o Atlân- tantas mães-grandes que lhe haviam tico na maior migração forçada de que descrito aquele lugar gigantesco e Pronunciamentos Celebração de Zumbi dos Palmares 113

misterioso, de impérios e reinos ricos va do colonizador, define simplesmente e poderosos, de paisagens grandiosas como “valhacouto de negros fugidos”. e de animais magníficos que mais pa- Algo como um mero covil de ladrões. Se reciam o produto da embriaguez ou do assim fosse, como se explicaria a longa delírio. Sua visão o levou a palácios sobrevida dessa heróica comunidade, ata- monumentais e minúsculas aldeias, a cada que foi continuamente pelos portu- grandes montanhas, imensas planíci- gueses e também pelos holandeses, du- es e enormes desertos, fazendo-o per- rante sua breve e malsucedida ocupação correr uma variedade de climas, do de Pernambuco, em meados do século mais agradável ao extremamente XVII? Registros históricos assinalam agressivo. O corpo cansado de tantas mais de 30 expedições contra Palmares batalhas e feridas malcuradas obri- em cerca de 90 anos, e a única explica- gou-o a sentar-se à sombra de uma ção plausível para a sua resistência resi- grande palmeira, trazendo-lhe à men- de na extraordinária capacidade de or- te as cenas, quantas vezes descritas, ganização militar do seu povo. Usando da captura dessa gente em guerras da clássica tática de guerrilha dos resis- locais, sua venda a traficantes euro- tentes de todos os tempos, os palmarinos peus e a terrível travessia do oceano fugiam antes das tropas que chegavam em navios cujos próprios tripulantes para persegui-los e se embrenhavam pelo chamavam pelo nome terrível de mato, deixando aos inimigos apenas tumbeiros. De quantos haviam pereci- mocambos vazios. Lançavam embosca- do em combate, rebelando-se contra das e desapareciam na selva, onde, de- seus captores, ou simplesmente de pois de uma ou duas gerações de “filhos fome, sede, disenteria e escorbuto, os do mato”, tinham a vantagem do conhe- corpos atirados ao mar para saciar a cimento do terreno. Em casos extremos, fome inesgotável dos tubarões. Das todos eram mobilizados, sem exceção das tantas formas de resistência nos locais mulheres, que nessas ocasiões, segundo de destino, incluindo o suicídio e o o testemunho de um espião, “mais pare- infanticídio, a fim de que seus filhos cem feras que pessoas do seu sexo”. não crescessem como escravos, e a pe- Até bem pouco tempo, nossos li- rigosa fuga para lugares de difícil vros didáticos costumavam difundir a acesso, tendo sempre a morte à sua idéia de que os africanos aceitaram do- espreita. cilmente a escravidão. Bem diversa era Data de 1604 o primeiro contato a visão daqueles que lutaram contra os de um destacamento do exército colonial quilombolas, como o senhor de engenho português com aquele que viria a ser co- João Fernandes Vieira: “(...) chegam, nhecido como o Quilombo de Palmares. pois, os nossos soldados aos Palmares, “Quilombo”, palavra que o mais concei- onde os negros, como senhores dos intri- tuado dicionário do português falado no cados caminhos e escondidos lugares, Brasil, o Aurélio, expressando a visão tur- lhes armam ciladas, matando a muitos THOTH 3/ agosto de 1997 114 Atuação Parlamentar

que marcham carregados do sustento que Calvo, perto de Palmares, usada como levam, e alguns largam tudo por fugir base de operações contra os mais desembaraçados, dilatando a vida, aquilombados. Batizado de Francis- mas não evitando a morte, que por mãos co, o menino revelara grande inteli- da fome, interior e irreparável inimigo, gência, aprendera a ler e escrever - depois padecem. (...) Quando chegam os privilégio único entre os do seu povo nossos às povoações dos negros, leva- - e se tornara coroinha. Nada disso, dos por guia, ou por acaso, os acham com porém, o colocara em dúvida sobre fortificações de estacadas e fossos com quem realmente era. Um sorriso, entre paus agudos para os que caírem neles; irônico e benevolente, assomou aos defendem-se com valor naquele primei- lábios do Capitão ao mirar o reflexo ro ímpeto, resistindo ao assalto e peleja de seu rosto nas águas escuras da la- com que os investem; vendo-se aperta- goa iluminadas pelo brilho da lua dos, se retiram pelos Palmares dentro, cheia. Imaginou a reação de espanto para onde não podem ser seguidos, por- do sacerdote quando, aos 15 anos, o que aquelas estradas só sabem andar e menino fugira para se juntar aos ne- dentro daquele labirinto de troncos têm gros levantados de Palmares. Por mais retiradas as suas famílias.” O mesmo se- bem-intencionado, o padre não podia nhor de engenho enfatiza a “prática mili- entender o sentimento daquele meni- tar, aguerrida na disciplina do seu capi- no, desejoso de fazer parte de uma tão e general Zumbi, que os fez luta cujo objetivo não era a liberdade destríssimos nos usos de todas as armas, de um só negro, ou de um grupo de de que têm muitas em quantidade, assim negros, mas de todos os africanos es- de fogo como de espadas, lanças e fle- cravizados trazidos para aquela ter- chas”. ra estranha. Mas todo aquele apren- dizado, se um dia parecera inútil di- A memória do Capitão fê-lo re- ante da nova realidade dos cuar 40 anos, trazendo-lhe à mente o mocambos, em que o jovem fora obri- bebê franzino entregue, como se fora gado a se iniciar principalmente nas um animalzinho doméstico - uma artes da guerra, mais tarde se revela- “cria”, no rude linguajar dos ra um fator importante no escravagistas -, ao padre Antônio enfrentamento de um adversário que Melo. Isso aconteceu logo após a ex- ele conhecera de perto, convivendo pulsão dos holandeses em lado a lado, em todas as suas quali- Pernambuco. O governador Francis- dades e fraquezas. Lembrou-se viva- co Barreto enviou uma expedição mi- mente de Ganga Zumba, mestre dos litar contra Palmares. Num primeiro mestres da guerra, de seu irmão Gana encontro, a expedição teve êxito e fez Zona, de Pedro Carapaça, de Amaro, um lote de prisioneiros, entre os quais Arotirene, Osanga, Andalaquituche e estava ele, ainda bebê. Foi parar nas Ganga Muíça, e de todos os malungos mãos do padre Melo, na vila de Porto Pronunciamentos Celebração de Zumbi dos Palmares 115

que lhe haviam ensinado a ciência da tia em prear - ou seja, caçar - negros e vida e as artes da morte. A imagem de índios fugidos. Sujos, descalços e cober- Ganga Zumba evocou-lhe a dolorosa tos de trapos, nada tinham da imagem ro- divisão ocorrida no quilombo, quan- mântica que depois se fez deles - as botas do o velho comandante decidira acei- inclusive. Quase sempre mamelucos, filhos tar a oferta de paz do Governador de homens portugueses e mulheres indí- Pedro de Almeida, incluindo o posto genas, eram à época o produto mais aca- de oficial do exército português. Em bado da miscigenação promovida pelos troca, ele e seus homens teriam de ca- lusos, aos quais serviam como eficazes e çar pessoalmente e devolver aos anti- temidos cães-de-caça. Domingos Jorge gos donos os escravos fugidos. Ah!, Velho era um desses homens, ou talvez o como fora penosa a decisão de guer- pior deles. Por isso foi escolhido para rear Ganga Zumba, seu antigo chefe, derrotar Palmares. por todos os meios necessários, até Era uma empreitada dificílima, já mesmo o envenenamento. Mas tivera se tinha visto, e para levá-la a cabo foi de ser assim, não havia outra forma. necessário reunir um exército de 9 mil Era preciso lutar até que o último ne- homens, entre combatentes e retaguar- gro estivesse livre do domínio dos da. Isso mais uma completa infra-estru- brancos. Mesmo que isso significasse tura bélica, com os melhores armamen- ter de cortar a própria carne. tos então disponíveis na colônia. Depois A mesma oferta feita a Ganga de muitas investidas - e de algumas der- Zumba, em 1678, seria repetida ao pró- rotas -, os homens de Domingo Jorge prio Zumbi, dois anos depois, agora pelo Velho conseguiram, em setembro de 1694, governador Aires de Sousa e Castro: vencer a heróica resistência dos “perdão” e liberdade, para ele e sua fa- quilombolas do Macaco, o maior e mais mília, em troca da traição à causa. A re- importante mocambo, dizimando os guer- cusa peremptória fez o Governador en- reiros, degolando impiedosamente os tender melhor a situação. Zumbi não se vencidos e aprisionando os sobreviven- dobrava. Seria preciso derrotá-lo militar- tes. Zumbi, no entanto, conseguiu fugir, mente. Poucos seriam capazes dessa pro- ao lado de um punhado de seus homens. eza. Embrenhou-se no mato, em busca de um refúgio seguro onde pudesse recuperar No século XVII, as palavras as foças e esperar o melhor momento paulista e bandeirante eram quase sinô- para reorganizar a resistência. nimas, mas com uma conotação bem di- versa do que se poderia imaginar hoje Um ano depois, em setembro de em dia. Em lugar de respeito e admira- 1695, uma tropa composta de “morado- ção, evocavam antes temor e desprezo, res do Rio São Francisco” emboscou um pois se referiam a uma gente rude e san- destacamento de Zumbi, chefiado pelo guinária, cuja principal atividade consis- mulato Antônio Soares, que foi aprisio- THOTH 3/ agosto de 1997 116 Atuação Parlamentar

nado. Sob as cruéis torturas que se pode africanos e afro-brasileiros organizaram- imaginar, Soares se viu forçado a trair se em quilombos e lutaram contra o sis- Zumbi, que se escondera na serra Dois tema escravista. No final, a resistência Irmãos, numa garganta próxima à cacho- negra, elevando substancialmente o cus- eira do rio Paraíbas. Cercado por um ini- to da dominação, foi um dos fatores im- migo superior em número e armas, Zum- portantes a determinar a Abolição, ainda bi defendeu-se bravamente. que tardia, da Escravatura no Brasil. Uma vida inteira de guerras A saga de Palmares, contudo, aguçara os instintos do Capitão. Sa- teria de esperar quase três séculos para bia que a Coroa portuguesa não de- obter o reconhecimento de seu valor his- sistiria enquanto não o houvesse ani- tórico. Isso começou no início dos anos quilado. Precisava de tempo, e não setenta, quando uma organização de jo- pouco, para reunir os malungos que vens intelectuais e militantes afro-gaú- haviam sobrevivido à queda de Ma- chos - autodenominada, não por acaso, caco, encontrar outro lugar seguro Grupo Palmares - propôs a celebração para instalar seu quartel-general e de do 20 de Novembro como “Dia do Ne- lá reiniciar as incursões a fazendas e gro”. Vivia-se o período sombrio da dita- engenhos para libertar seus futuros dura militar, cujos próceres tinham uma soldados. Mas o tempo tinha asas de especial atenção voltada para o potenci- falcão. Se ao menos pudesse paralisá- al explosivo da questão racial. Mas era lo... A noite se passara entre reflexões também a época do renascimento da luta e cochilos, e o Capitão acordou so- dos afro-brasileiros, que, estimulados pela bressaltado ao perceber o rumor de afirmação de seus irmãos na própria passos atravessando a garganta. Um África e na América do Norte, em guer- vulto emergiu à sua frente. Mas que ra contra o colonialismo e o racismo, re- alívio: era Antônio Soares. tomavam as bandeiras empunhadas dé- Morto em 20 de novembro de 1695, cadas atrás por organizações de vanguar- Zumbi foi decapitado e esquartejado, da como a Frente Negra Brasileira e o como era praxe entre os civilizados por- Teatro Experimental do Negro. A deter- tugueses. Sua cabeça foi levada ao Re- minação e a perseverança da militância cife para ser exposta em praça pública, negra, em conjunto com seus aliados nas com o que se esperava atemorizar e dis- arenas acadêmica e política, acabou im- suadir quilombolas em potencial. Não pondo-se à renitência - por vezes igno- daria certo. Longe de se restringir a rante, quase sempre interessada - dos ra- Palmares, o exemplo do quilombo se es- cistas. E o 20 de Novembro foi ganhan- palhou como fogo em palha de cana, atin- do espaço nos planos municipal, estadual gindo todos as regiões dá colônia. Do e federal, como data a ser reverenciada Amapá ao Rio Grande do Sul, do Rio de pelos os amantes da justiça, da liberdade Janeiro a Mato Grosso, onde quer se fi- e da igualdade, independente de aparên- zessem presentes em número suficiente, cia física ou de filiação étnica. Pronunciamentos Celebração de Zumbi dos Palmares 117

Seria enganoso concluir de todo Se vivesse hoje em dia, Zumbi esse processo que a luta de Zumbi pela teria muitas razões para a tristeza e a dignidade dos filhos da África no Brasil revolta, em virtude das condições de tenha sido uma luta vitoriosa no plano vida de seus descendentes, e da passi- concreto. Basta lançar os olhos sobre a va aceitação por muitos destes da ide- realidade dos afro-brasileiros para cons- ologia racista e assimilacionista tatar as condições de inferiorização, hu- corporificada no mito da “democracia milhação e desigualdade em que vive a racial”. Mas encontraria também mo- maioria de nós, anestesiados e domesti- tivos de regozijo e esperança pela pre- cados pelo mito da “democracia racial”, sença de uma cultura africana que sou- instrumento ideológico criado e aperfei- be resistir às adversidades para se im- çoado em séculos de dominação ibérica por - se não de direito, com certeza de nas Américas ao sul do Rio Grande. A fato - como a verdadeira cultura naci- vitória de Palmares tem se dado, antes, onal brasileira. E pela crescente no plano simbólico, fornecendo aos afro- conscientização dos afro-brasileiros em brasileiros um poderoso referencial, ca- relação aos seus direitos, à sua força, paz de desmentir todos os estereótipos à sua capacidade e à sua História. Sem habilmente forjados para que os negros o que - não se pode ter dúvida disso - se mantenham no “seu” lugar. Pois Zumbi não estaríamos aqui, no dia de hoje, re- representa o negro. o homem, o ser hu- verenciando a memória de Zumbi e a mano que prefere a morte a aceitar seu daqueles que com ele tombaram, em lugar de escravo. Mais que isso, ao re- defesa da dignidade humana, na pri- jeitar a paz de Ganga Zumba, Zumbi sim- meira república livre das Américas, a boliza o negro que não aceita migalhas, República de Palmares. consciente de que a sua é uma luta cole- tiva, que só terá fim com a libertação da totalidade de seus irmãos. Zumbi está vivo! THOTH 3/ agosto de 1997 118 Atuação Parlamentar Pareceres Prática desportiva da capoeira 119

Parecer no 735, de 1997 I – RELATÓRIO

Vem ao exame da Comissão de Educação, o Projeto de Lei da Câmara n° 39, de 1997 (nº 85, de 1995, na Casa Da Comissão de Educação, sobre o de origem), de autoria do Deputado José Projeto de Lei da Câmara nº 39, de Coimbra, que “dispõe sobre a prática 1997, (nº 85, de 1995, na Casa de desportiva da capoeira e dá outras provi- origem), que dispõe sobre a prática dências”. desportiva da capoeira e dá outras Em seu artigo 1º, a proposição de- providências. termina ser a capoeira manifestação desportiva de criação nacional e incluir- se entre os bens que constituem o patrimônio cultural do País. Estabelece, a seguir, no artigo 2º, que o Poder Exe- cutivo protegerá e incentivará o mencio- nado esporte, na forma da legislação per- tinente. Finalmente, no artigo 3º, confere o prazo de noventa dias para o citado Poder regulamentar a lei. THOTH 3/ dezembro de 1997 120 Atuação Parlamentar

II – ANÁLISE Parece não haver dúvida, todavia, de que essa forma de luta mesclada com passos de dança foi uma das principais Em sua Justificação, o Autor afir- formas de resistência cultural do negro ma que algumas das principais tradições brasileiro, notadamente durante o regi- da cultura brasileira estão sendo esque- me da escravidão. O já citado Édison cidas e relegadas ao abandono, como é o Carneiro assevera ter a capoeira sido, caso da capoeira. Ao mesmo tempo, lu- igualmente, instrumento valioso na defe- tas de competição de origem estrangei- sa da liberdade do negro liberto, até que ra, como karatê, judô e boxe, são cada a repressão policial e as mudanças ocor- vez mais divulgadas no País. ridas na sociedade fizeram-na tornar-se Recordando a máxima de que “um um jogo, uma modalidade de luta povo que não cultua suas tradições tor- desportiva. na-se um povo amorfo”, o Deputado José As limitações impostas às mani- Coimbra ressalta a necessidade de incen- festações dos negros brasileiros tivar a prática dessa modalidade de luta freqüentemente incluíram a repressão à genuinamente brasileira, tal como propõe capoeira, como atestam disposições le- o projeto em apreço. gais, as aventuras dos capoeiristas mais De fato, a capoeira representa famosos e algumas quadrinhas cantadas uma das manifestações mais tradicionais nas rodas de capoeira. Alguns desses da cultura brasileira. Há notícias de sua versos lembram a atuação do chefe da prática desde a transferência da capital polícia do Rio de Janeiro no início do sé- brasileira da Bahia para o Rio de Janei- culo XIX e as artimanhas dos pratican- ro, ocorrida em 1763. tes de capoeira para escapar de sua per- seguição. Não há acordo, porém, com res- peito à origem dessa forma de luta. Atualmente, o jogo da capoeira – Édison Carneiro, respeitável pesquisador ao mesmo tempo canto, música, dança e brasileiro, afirma ter-se a capoeira origi- luta – é praticado em academias, conquanto nado em Angola, de onde foi trazida para seja forçoso reconhecer a predominância o Brasil pelos escravos. dos esportes ditos marciais, praticados mun- dialmente e reconhecidos como de com- Outros estudiosos, entre os quais petição internacional. Ainda aqui, a capo- inclui-se Waldeloir Rego, defendem a tese eira impõe-se como forma de resistência de não haver provas que permitam asse- cultural da nacionalidade. gurar ter a capoeira sido trazida pelos ca- tivos. Segundo eles, há evidências mais Em boa hora, o projeto em análise sólidas de que a luta desenvolveu-se propõe diretrizes com o fim de proteger como manifestação urbana dos escravos e incentivar manifestação tão cara à cul- já radicados no Brasil. tura brasileira. Pareceres Prática desportiva da capoeira 121

A preservação da capoeira e de Diante do exposto, somos pela sua existência como expressão da cultu- aprovação do Projeto de Lei da Câmara ra nacional muito deve aos grandes mes- nº 39, de 1997 (nº 85, de 1995, na Casa tres capoeiristas, alguns dos quais dedi- de origem) caram a vida ao ensino e à difusão dessa tradicional luta. No parecer que ora ofe- recemos à proposição do ilustre Deputa- Sala das Sessões, em 06 de novembro do José Coimbra, rendemos tributo aos de 1997. capoeiristas brasileiros, registrando o nome dos grandes mestres de capoeira de São Paulo: Cavaco Domingos de Lau- do Nascimento, Neninho de Obaluayê, Joel Hollanda: Vice-Presidente no exercí- Anandi das Areias, Ailton Bazan e cio da Presidência Maurão; os mestres da Bahia: Nádia Maria Cardoso da Silva, Pedro Moraes Trindade e Odiosvaldo Bonfim Vigas; e Abdias Nascimento: Relator os mestres do Rio de Janeiro: Antônio Oliveira Benvindo e João Carlos Pires. Membros da Comissão: Waldeck Ornelas - Romeu Tuma - Édson Lobão - Otoniel Ma- chado - João Rocha - Levi Dias - Beni Veras - III – VOTO Fernando Bezerra - Lúcio Alcântara - Jonas O Projeto em exame é constitucio- Pinheiro - Élcio Álvares - Emília Fernandes - nal e jurídico, além de observar a boa téc- Gilberto Miranda - Marina Silva - Sergio Ma- nica legislativa. Quanto ao mérito, repre- chado. senta iniciativa oportuna, com vistas a defender e incentivar uma das expressões Publicado no Diário do Senado Federal mais tradicionais da cultura brasileira em 13 de novembro de 1997. THOTH 3/ dezembro de 1997 122 Atuação Parlamentar Pareceres Dia Nacional da Consciência Negra 123

Parecer sobre PLS 202/97 Da Comissão de Educação, sobre o Pro- jeto de Lei do Senado nº 202, de 1997.

Declara Data Nacional o I – HISTÓRICO dia 20 de Novembro, “Dia Nacional da Consciência Negra”. De autoria da Senadora Benedita da Silva, o Projeto de Lei do Senado nº 202, de 1997, “declara Data Nacional o dia 20 de Novembro, ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.” Em seu artigo 1º, declara Data Nacional o dia 20 de novembro, ani- versário da morte de Zumbi dos Palmares, e o institui como “Dia Naci- onal da Consciência Negra”. Por in- termédio do seu artigo 2º, inclui tal dia no calendário oficial das datas come- morativas brasileiras e, em seu artigo 3º, determina a sua observância em todo território nacional. THOTH 2/ agosto de 1997 124 Atuação Parlamentar

II – ANÁLISE pedições militares do poder colonial. A experiência envolveu região compreen- dida entre o norte de Alagoas e o sul de Em sua Justificação, a Autora afir- Pernambuco, e seus pontos extremos dis- ma que as entidades negras comemoram tavam mais de 300 quilômetros. em 20 de novembro, aniversário da mor- Sua importância não se mede ape- te de Zumbi, o Dia Nacional da Consci- nas por esses números tão eloqüentes, ência Negra, uma vez que esse herói re- mas sobretudo pelo fato de ter cristaliza- presenta um dos maiores símbolos da luta do a idéia e a possibilidade do quilombo pela liberdade e por uma sociedade mais como alternativa à escravidão e como justa. retorno à liberdade dos ancestrais afri- Embora a data possua especial sig- canos. nificado para os negros, sua importância Recorde-se, a esse respeito, que transcende a comunidade afro-brasilei- a maior parte da população no momento ra, pois registra a primeira experiência da destruição de Palmares era nascida da luta nacional pela liberdade e pela no Quilombo e, assim, só conhecera a igualdade. Nesse sentido, afirma a Au- liberdade. tora em sua Justificação, comemorar o dia em apreço como data histórica naci- Mesmo com a derrota da chama- onal significa recordar a “doação herói- da federação de Palmares, inúmeros ca de milhares de vidas e empenhos à quilombos resistiram em outras regiões liberdade do Brasil, numa resistência a da então colônia portuguesa, conquanto toda e qualquer forma de escravidão”. nenhum deles tenha tido importância com- parável à daquele. De qualquer forma, De fato, a experiência do como prática libertadora, como expecta- Quilombo dos Palmares representa ten- tiva do negro fugitivo do cativeiro ou como tativa pioneira de independência do do- esperança do escravo, o quilombo conti- mínio colonial e de construção de uma nuou a desempenhar papel fundamental nação que tivesse por fundamento a na consciência libertária do negro brasi- igualdade. A população de Palmares era leiro. predominantemente negra, mas lá, igual- mente, viviam índios, mamelucos, mula- Palmares não passou despercebi- tos e brancos, esses últimos constituídos do da população da época e era com- principalmente por soldados que aderi- preendido, pelas autoridades coloni- ram ao ideal quilombola e lavradores ex- ais, como desafio à dominação do poder pulsos de suas terras. constituído. O envio de mais de 60 expe- dições militares, no século que medeia a O Quilombo chegou a congregar fundação e a derrota do Quilombo, dá entre 20 mil e 30 mil habitantes, distribu- bem o seu significado para o poder então ídos em vários núcleos populacionais, du- dominante. rou cem anos e resistiu a mais de 60 ex- Pareceres Dia Nacional da Consciência Negra 125

A histórica experiência do povo de projeto rol com mais de 110 entidades Palmares e sua heróica resistência na afro-brasileiras, de quinze diferentes es- guerra, de que resultou a destruição do tados, que haviam manifestado apoio à Quilombo e o extermínio de quase toda idéia contida em nossa proposição. Apro- sua população, representam uma das mais vado pela Câmara dos Deputados, o pro- importantes lutas de libertação entre as jeto foi, todavia, rejeitado pelo Senado que constituíram a nacionalidade do nos- Federal. so País. Zumbi dos Palmares, o líder maior III – VOTO do Quilombo, inclui-se entre os heróis que fizeram da luta pela liberdade um dos pi- O projeto em análise é constitucio- lares da Nação brasileira. nal, jurídico e observa os cânones da boa técnica legislativa. Relativamente ao mé- Ao elaborar e submeter a propo- rito, propõe, de forma oportuna, seja re- sição em exame à elevada apreciação verenciado pela memória pátria um dos das duas Casas do Congresso Nacional, principais heróis da nacionalidade brasi- a Senadora Benedita da Silva muito nos leira. honra ao retomar, em boa medida, inicia- tiva por nós apresentada à Câmara dos Assim, somos pela aprovação do Deputados, sob a forma do Projeto de Projeto de Lei do Senado n° 202, de Lei nº 1.550, de 1983. Naquela oportuni- 1997. dade, incluímos na Justificação do nosso Senador Abdias Nascimento THOTH 2/ agosto de 1997 126 Atuação Parlamentar Emendas ao Orçamento da União para 1998 Fundação Cultural Palmares 127

O Senador Abdias Nascimento apresentou três emendas ao Orçamento Emendas ao da União para o exercício financeiro de Orçamento da União 1998, beneficiando a Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultu- para o exercício ra, que tem a missão institucional de pro- mover a preservação dos valores cultu- financeiro de 1998 rais, sociais e econômicos, decorrentes da influência negra na formação da soci- edade brasileira, como resultado de es- forços e de atuação política de militantes dos movimentos sociais negros. Todas as emendas foram apro- vadas pelo Relator da Subcomissão de Educação e do Desporto, Cultura, Ci- ência e Tecnologia da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fis- calização e pelo Relator Geral do pro- jeto, sendo, posteriormente, incluídos na Lei no 9.598, de 30/12/97, que esti- ma a Receita e fixa a Despesa da União para o exercício de 1998. THOTH 3/ dezembro de 1997 128 Atuação Parlamentar

A proposta orçamentária da Fun- O Senador Abdias Nascimento dação Cultural Palmares para 1998, cons- apresentou emendas que reforçaram o or- tante do projeto de lei encaminhado pelo çamento da Fundação Cultural Palmares Poder Executivo, somava recursos da or- em R$1.300.000,00, que correspondem a dem de R$2.772.950,00 para atendimen- cerca de 50% do total dos recursos origi- to de despesas de manutenção adminis- nalmente consignados no Orçamento da trativa e investimentos. União para essa entidade. A primeira delas destina-se à realização de programas de preservação do Sítio histórico da Serra da Barriga, em União dos Palmares (AL) e a estruturação do projeto Serra da Barriga Ano XXI, com execução das seguintes etapas: infra-estrutura física para assegurar a preservação, o reflorestamento e espaço para visitas do público; potencializar a Serra da Barriga para ser incluída nos projetos de turismo cultural nos programas turismo étnico e turismo ecológico; difundir os sítios históricos e turísticos, associado à região e ao Estado potencializando seu reconhecimento como um dos territórios históricos mais importantes das Américas, divulgando também a história de Zumbi dos Palmares no Brasil e no exterior (R$ 500.000,00). Emendas ao Orçamento da União para 1998 Fundação Cultural Palmares 129

A segunda visa atender a demanda da comunidade afro-brasileira e de estudiosos em geral por solicitação de apoio a projetos de atuação, nos diversos Estados brasileiros, para permitir a realização de ações que permitam a visibilidade dessas comunidades. Assim, essa emenda vem destinar recursos para programas de estímulo à produção artístico-cultural referenciada nas manifestações dos diversos segmentos étnicos. (R$ 300.000,00). THOTH 3/ dezembro de 1997 130 Atuação Parlamentar

A terceira objetiva a implantação, no Brasil, do Projeto Rota do Escravo, da UNESCO, compreendendo a realização de um Seminário Internacional, bem como de mostras e exposições e pesquisas e ainda de teleconferência dos PALOPs (países de língua portuguesa), com o fim de difundir informações sobre os projetos em andamento (R$ 500.000,00). Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 131 THOTH 3/ dezembro de 1997 132 Depoimentos Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 133

O Diário de um negro atuante é o testemunho de uma vida extraordiná- Diário de um ria e de uma inteligência excepcional: as de Ironides Rodrigues, intelectual negro atuante afro-brasileiro pouco conhecido. Mineiro de origem, Ironides habitava o subúrbio de Bento Ribeiro, no Rio de janeiro, acompanhando com aguda sensibilidade tanto os assuntos de seu povo como da cultura em geral. Sua especialidade era a crítica cinemato- gráfica. Publicamos na Thoth alguns trechos da vasta obra inédita de Ironides, como tributo do respeito, amizade e carinho daqueles que o conheceram como um dos mais destacados militantes negros de seu tempo.

7 DE SETEMBRO - Dia de meu aniversário. Sou bem do signo virginiano, que tem grandes pendores para as letras, é fiel e muito franco nos seus pontos de vista, muito crítico e de certo modo mor- daz nas análises que faz a respeito de Ironides Rodrigues quem quer que seja. O virginiano ama THOTH 3/ dezembro de 1997 134 Depoimentos

com intensidade, mas sabe que este ex- possível que tudo isto seja verdade, cesso de amor sublime não pode ser porque quando nascemos trazemos um correspondido. Por isto, não se prende estigma e um destino, que nos acom- muito às afeições amorosas. Quando panhará pela vida afora, como a estre- gosta de alguém, com medo de ser de- la cintilante do Oriente seguiu, no céu cepcionado, vai levando na corrente im- da Judéia, os Reis Magos, indicando- petuosa do destino essa paixão que po- lhes a estrada miraculosa por onde nas- deria consumi-lo de dor e desespero. Tem ceu o Salvador do mundo. Até hoje não o gênio forte, enfrenta qualquer tipo de quis galgar as posições mais vantajo- empecilhos, não leva jamais desaforo de sas com receio de ferir alguém, na pe- ninguém e para defender um direito seu leja para se conseguir este posto cobi- vai até as últimas conseqüências. O çado. Prefiro viver na minha modéstia virginiano é bastante forte para enfren- e humildade, ganhando o necessário tar os embates da vida, não desertando a para viver, podendo então ler os meus área quando surge um contratempo ou clássicos, viver a vida com filosofia e imprevisto. Devido ao seu gênio con- compreensão humana, poder conviver ciliador, pois que este signo é regido com os semelhantes sem lhes desper- pelo deus da cordialidade e do afeto, tar inveja pelos bens que, talvez, os te- Mercúrio, o virginiano pode se dar com nhamos adquiridos de modo nada cor- qualquer outro signo do zodíaco, mes- reto e condigno. 7 de setembro de 1923. mo os de mais difícil temperamento, Mais de cinco décadas procurando me como Câncer e Escorpião, sem esque- firmar, com a certeza de que tudo que cer o de Gêmeos, que ostenta duas consegui foi à custa de muita pena e personalidades, sem saber qual a ten- sofrimento, sem derrubar adversários, dência que predomina no fim de con- egoisticamente, vencendo pisoteando tas. O orgulho do virginiano nunca per- na honra e na dignidade de todas as mite que ele se curve ou se abaixe a criaturas decentes e sensatas. Tudo que quem deseja humilhá-lo, ou quer do- fiz até agora foi com aquela convicção brar a sua cérvix, pensando que pode de que atingi a meta desejada, com o afrontar ou destruir a sua moral orgulho alvissareiro de um dever cum- inatacável e seu caráter imbatível. Tem prido. O título de advogado e bacharel na amizade a suprema religião do seu em Direito, que consegui em 1974, é ser. Ama levando mais em conta o se- um motivo de minha exultação, um fato tor espiritual do que a parte física e grandioso e eloqüente de minha exis- negativa do amor. Sua ternura tem um tência apagada. Farei deste diploma um quê de pureza, sua afetividade se apro- galardão para melhor defender os ne- xima do amor platônico que tanto rele- gros, o operário espoliado pela máqui- vo deu a Abelardo e Heloísa, Dante e na capitalista e burguesa, para estar ao Beatriz, Petrarca e a musa infinitesimal lado de todas as minorias oprimidas, dos seus sonetos impecáveis: Laura. É como os gays marginalizados e as Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 135

prostitutas tão perseguidas, sem esque- do bolo natalício, coube ao recém-vindo cer o índio brasileiro, que já foi dono o melhor quinhão. Ele parece ter com- de quase todo o continente e hoje so- preendido este meu gesto instintivo de fre a perseguição de posseiros abstra- afeto e ternura, não deixando nunca mais tos, de terras imensas expulsos por de freqüentar o apartamento deste ve- uma espoliação cruel e desumana. Os lho, que ainda vive cheio de ilusões. astros não podem enganar as profeci- as dos numes ou divindades. Nome é um léxico que vem de numen, prote- 9 DE SETEMBRO - Houve um ção que nos segue, desde que se pôs o instante em que minha dose excessiva nome de batismo na criança que abriu de colesterol passou a me maltratar na os olhos para o mundo. longa ferida que tinha no pé esquerdo. As dores eram tantas que me impediam de andar, apesar de tomar em toda a ris- 8 DE SETEMBRO - Foi no dia ca os antibióticos receitados pelo médico de meu aniversário que Geraldo, amigo e de sempre untar com Fibrase a parte que vive mais na Paulicéia, me disse a ferida em questão. Chegava a parecer brincar: “Vou lhe dar um presente de que um aleijado, com peias intransponíveis, você jamais vai esquecer.” Não levei a impedindo-me qualquer movimento. sério as palavras de Geraldo. De noite, Henrique, então, é que me conduzia pe- ajeitava a mesa da sala com doces, vi- las escadas quando queria sair, não fal- nhos e uma feijoada feita rapidamente, tando os momentos em que ele me car- para receber um possível convidado. Foi regava às costas, porque é forte e atléti- quando surgiram Clóvis e Clécio. Com co, e sofria interiormente ao me ver nes- eles estava o Geraldo paulistano, segui- te transe aflitivo, sem poder andar, sem do de um rapaz alto, moreno, de costele- nada poder fazer em casa, numa imobili- tas, tendo um rosto de muita simpatia e dade a desafiar a impassibilidade mar- sorriso que cativava a todos: “Como pro- mórea da Medusa lendária. meti a você, cumpro a palavra trazendo- lhe a dádiva que você deve estar espe- rando com ansiedade. Trata-se de 10 DE SETEMBRO - O Wilson Henrique, menino que estuda o curso só podia mesmo vender o seu Chevete, clássico, é de gênio pacato e agradável. porque senão, num dia em que o seu gê- Em suma, uma amizade que não pode nio arrebatado se imprecasse contra o jogar-se fora.” O rapaz cumprimentou- amado Preto, ele, num momento de de- me, sem jeito, e depois me deu as felici- sespero incontido, atiraria o carro no pri- tações natalícias, sempre me olhando com meiro poste que encontrasse. Saindo de o ar embasbacado de quem receia uma meus padecimentos de quase diabete, fi- trama inesperada e se coloca na posição cava preocupado com o drama passional de uma defesa providencial. Na partilha de meu vizinho e amigo. Sabia que o ou- THOTH 3/ dezembro de 1997 136 Depoimentos

tro já há vários dias não aparecia em casa de-cotovelo e despedidas inesperadas, de Wilson. Este faltava só explodir, pre- de um amor que mal começou e já tudo so de emoção incontrolável, chorando e se acaba, como todas as miragens se queixando de um desprezo ou inverossímeis deste mundo fictício. impontualidade enexplicada. “O Preto Então alterna Roberto Carlos com não pode me tratar assim... Já me enga- Aguinaldo Timóteo, o indefectível Aní- nou desposando aquela mulher e agora sio Silva com Nelson Gonçalves, tenta me sacanear tirando o corpo fora.” Altemar Dutra apostando com Nélson Só Deus sabe que pensamentos sombri- Ned quem ganha esta parada duríssima, os não turbilhonavam aquela mente re- de quem é realmente o supremo intér- voltada e sofredora: “Tudo o que podia prete da fossa, dos amantes engana- fazer pelo Preto, cuidando dele, de sua dos e sofredores. saúde, preocupando-me que nada lhe fal- tasse moral e materialmente, não omiti nada para que fosse feliz e agarrado a 11 DE SETEMBRO - Foi uma mim. Agora vejo que ele se afasta, au- coisa chocante. O cadáver ficou desfi- sentando-se de mim, por dias e meses, gurado. O assassino agiu com requinte vindo sempre com uma resposta esfar- de crueldade carniceira. rapada, tentando atirar areia nos meus – Tem idéia de quem foi que ma- olhos cegos de amor e desespero.” Já tou? da outra vez, num acesso de ira e ciú- me, se atracou em luta corporal com – Que esperança! O corpo foi des- Preto e quase que o carro que Wilson coberto pela manhã, a porta do quarto conduzia não rolou ribanceira abaixo. escancaradamente aberta e a televisão Chegou em casa com o rosto ligada, ainda emitindo o clarão de que avermelhado de cólera e dissabor, os funcionou por toda a madrugada. olhos escancarados, querendo saltar – É estranho que um crime se pas- das órbitas, com os braços num tremor sou numa vila de tantos quartos, e ne- convulso a se intoxicar numa fossa nhum morador tenha visto o assassino frustradora, bebendo várias garrafas fugir nem enxergou algum vulto suspeito de cerveja. Fica como possesso, espe- fugindo, sem dar um alarme de aviso ou rando o tilintar do telefone, aguardan- botar a boca no mundo, alertando os vizi- do a chamada de Preto, ensaiando as nhos de que algo trágico e doloroso aca- palavras de perdão que lhe dirá, per- bava de suceder. guntando se a bofetada que lhe aplica- ra no rosto não teve um efeito dolorido Um silêncio inconcebível caiu, em e vergonhoso. Wilson é uma pilha de meio ao estranho diálogo travado por dois nervos, sorvendo copos e mais copos homens, ainda jovens, ambos com olha- de Brahma gelada, tocando a vitrola res assustados e receosos, medindo bem no mais alto som, com canções de dor- o que falavam, procurando ver se algum Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 137

polícia ou bisbilhoteiro podia ouvir a con- – Talvez por isto quem o matou versação macabra. Nuvens negras corri- foi movido por ambição de roubar, sa- am pelo céu nublado, empanando o palor bendo que Marcos era abonado e jamais da lua triste, que esmorecia os seus raios teve qualquer problema financeiro. pálidos. Um vento frio soprava as amen- doeiras da Rua Picuí, crispando as águas – Não foi dinheiro o móvel do sujas do córrego cantante que serpeava em crime. meio às casas humildes e no fundo do im- – Então, qual foi o motivo? potente conjunto residencial. Um ou outro – Causa passional ou vingança notívago encarava a madrugada sombria, de um amor ultrajado... ora a desembestar pela rua, com sua mo- tocicleta sinistra, ora apostando com o dia- – Será que aquele pára-quedista... bo se seu carro era mais veloz nas curvas – Ele foi visto, no dia do crime, a do que o dele. Fafá, a cachorrinha branca passear com um jovem de extraordiná- que é a menina dos olhos da rua, passeia a ria beleza. sua beleza canina por entre as latas de lixo do passeio, fuçando, levada pela – Estou sabendo que, antes de ha- fome voraz, os baldes de detritos e os ver a tragédia, Marcos esteve rodeado sacos plásticos em que os ossos e as de amigos, que só o deixaram quando ele sobras de comida dão para empanturrar já havia ingerido muito álcool, e caiu na a sua barriga insaciável. Passeia despre- cama com olhos sonolentos e exausto. ocupada, de vez em quando dando uma – É verdade que estranharam que olhada cabreira para a madrugada con- a televisão estivesse ligada, com o som vulsa, indo de um lado a outro numa pro- emitido a altura considerável. Mas nin- cura incessante, inadiável, quase se en- guém se atrevia a ver o que se estava contrando com aquelas motocicletas ba- passando... rulhentas que roncam loucamente, espan- tando os espíritos maus e agourentos. As – Já sei que o assassínio de Mar- estrelas ostentam seu brilho cinzento e cos vai cair no rol dos crimes insolúveis. amortalhado, grilos ocultos cavatinam – Só se trouxessem para elucidar sua orquestra, em quérula surdina, pelos o delito o detetive Maigret, do Simenon, matos úmidos à beira do córrego mur- ou o Arthur Conan Doyle, que escreveu murante... belos romances policiais. Talvez mesmo – Marcos não tinha nenhum ini- a argúcia felina do Padre Brown, de migo conhecido. Ganhava honestamen- Chesterton, ficaria em maus lençóis se te seu dinheirinho, tinha um táxi para fol- ele tentasse desvendar este crime horri- gadamente viver sem atropelo, possuía pilante, que abalou os alicerces da paca- telefone em casa e freqüentava um ter- ta família de nosso Bento Ribeiro. reiro umbandista na Rua Divinópolis. THOTH 3/ dezembro de 1997 138 Depoimentos

A Marília ficou inconsolada, pois lizou, no Cemitério de Irajá, choros, pran- Marcos era um negro pálido, de feições tos, desmaios e até juramento de um fi- delicadas, que tinha um modo cativante gurão de que a justiça dos homens tinha de tratar as pessoas. O gari Galeno, o de ser cumprida. Mas está escrito que carregador Hortênsio, o empregado da nunca haverá uma justiça satisfatória fábrica das janelas de alumínio, o Toninho para vingar a morte de um gay ou de um do bar, do flamboyant, o Zé da Rita que marginalizado da vida... A sociedade, que mora no bangalô da esquina, rodeado de tanto os repele quando eles estão vivos, pés de abacate e mangueiras, todos la- volve-lhes as costas com desprezo quando mentavam que fosse morto o Marcos, que um matador sádico resolve acabar com jamais praticou o mal e que vivia a sua a raça daqueles seres humildes e paca- vidinha, sem querer perturbar a de nin- tos, cujo único crime foi quererem assu- guém. Até o Tião do açougue, líder da mir algo que nasceu com eles... Resol- Pícuí, se queixava de que, com tantos la- verem botar abaixo a hipocrisia do mun- drões soltos e malfeitores vivendo na do e aceitarem o estigma nefasto de um impunidade, fossem matar o Marcos, que amor maldito e proibido... era tão benquisto pela população local. – Ele costumava sempre guardar 12 DE SETEMBRO - As algum dinheiro na geladeira. Depois da boutades e as frases crispantes de iro- descoberta do cadáver, a perícia desco- nia e malícia que proferia Jean Cocteau. briu o dinheiro oculto pelo morto, sentin- Sua cintilante inteligência faiscava, em do que o assassínio não teve por móvel lampejos corrosivos, quando, referindo- surrupiar alguma quantia. Os que visita- se ao gênio múltiplo de Victor Hugo, di- vam o seu quarto confortável eram pes- zia, no tom profético de quem está lapi- soas que o estimavam. Falou-se de um dando um epitáfio para eternidade: homem alto, de basta cabeleira, e que “Victor Hugo era um louco que se julga- alguém viu entrar e sair naquela noite fa- va um Victor Hugo.” André Gide, tam- tídica. Mas tudo isto é mera suposição. bém, frisava o nariz quando se referia ao Boatos inconseqüentes, que não condu- gênio incômodo do criador de Os mise- ziram a solução nenhuma. ráveis e Os trabalhadores do mar. Sua Os dois interlocutores se puseram frase “Victor Hugo hélas!” tem a apa- em silêncio e caminharam pensativos, rência de provocação, da mesma forma seguindo a rua banhada de luar, até o como Bernard Shaw às vezes se supu- Largo do Sapê. Na oficina de ônibus, o nha possuído do espírito de Shakespeare ruído ofegante de viaturas desatinadas. e escrevia um César e Cleópatra Já faz mais de um ano que esse aconte- caricatural, esplendente de diálogos do cimento se passou. Foram interrogados mais fino deboche humorístico. Afinal de todos os suspeitos que podiam estar en- contas, não é com bases de consumado volvidos no delito. No féretro que se rea- espírito que se pode derrubar reputações Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 139

de Panteon. Li alhures, parece que em saber que este vai desposar uma garota Afrânio Peixoto na Educação da mu- que ela detesta, aloucada se suicida, de lher, que o pensamento pedagógico do modo patético e desesperado. No filme Emílio de Jean-Jacques Rousseau é de que o poeta Jean Cocteau realizou, com forte primarismo sociológico, colocando muito requinte de finura e bom gosto, a posição do sexo frágil num conceito Orson Welles admirou a maestria cômi- reacionário, de que a mulher tem seu ca com que a película foi rodada. Consi- maior papel na educação do lar, sem a derava o mais belo filme feito, como tea- pretensão de estar freqüentando as es- tro filmado, pelo cinema. colas de alto saber, sem caírem na parlotice daquelas habituês das tertúlias E quando Jean Cocteau era o do salão de Madame Rambouillet, nativo argumentista do filme, o diretor deste só este das troças impagáveis de um gênio fazia seguir a diretriz do roteiro. Se tinha da comédia universal, como o Molière, talento criador, completava, com sua sen- de as sabichonas. Mas o Jean Cocteau sibilidade inspiradora, toda a bela imagi- que eu admiro é aquele que dedicou todo nação do argumentista. Assim aconte- o seu amor a Jean Marais, sem ocultar ceu com Jean Delanoy, quando, no mais do mundo esta sua faceta original. O pró- belo de seus filmes, A princesa de prio Marais, aprendendo muito talento Cleves, com Jean Marais e Marina Vlady, com essa convivência luminosa, escre- deu a maior ênfase poética ao universo veu o mais belo livro saído na França nos encantado daquele palácio medieval, com últimos anos: História de minha vida, seus bailes a caráter, seus cantos de em que desnuda toda a sua intimidade alaúde e suas paixões irrealizáveis. Em com o bizarro autor de Opium, o homem Além da vida (L’eternel retour), basea- de idéias originalíssimas que concebia os do na lenda germana de Tristão e Isolda, mais arrojados cenários e indumentárias pertencente ao ciclo poético das lendas para os balets de vanguarda levados em medievais, Jean Delanoy concebeu uma Paris. Rodeava-se de uma constelação feitura um tanto expressionista ao rela- de artistas com Edwige Feuillère, Yvonne tar a vida dos dois amantes, Jean Marais de Bray, Maria Casarés, sendo que para e Madeleine Sologner, em que o filtro de o seu Jean Marais delineou aquela peça veneno que há entre eles é como uma de profundo teor humano, A águia de ligação que os levará pela morte reden- duas cabeças, em que vivia um anarquista tora, uma aproximação deles para além que tentava assassinar uma rainha, do mundo real. Até no livro em que Edwige Feuillère. Marcel Herrand fazia Cocteau delineou suas concepções arro- o chefe de polícia. Em Pecado original, jadas, Entretenimento em torno da séti- peça admirável e de muita agudeza psi- ma arte, mostra-se um crítico do mais cológica, Yvonne de Bray faz a mãe apai- afinado gosto, sem deixar de ser, antes xonada pelo filho, Jean Marais, que, ao de tudo, um altíssimo poeta. THOTH 3/ dezembro de 1997 140 Depoimentos

13 DE SETEMBRO - Já que o desfiles marciais do grande corso, com melhor de minha autobiografia é passa- todos os passos perfilados da do com os livros e com o meu eterno soldadesca rufando tambores, bandei- convívio com as letras, é com tristeza e ras drapejando ao vento e o rosto imen- dor que registro neste caderno sem im- so de Napoleão ao fundo da tela, con- portância a morte de dois cineastas de figurando uma figura central desse pa- minha adoração: Abel Gance e René inel impressionante de uma época his- Clair. tórica fixada pelos olhos videntes de Gance, que só vai ter seqüência admi- De Abel, seriam necessários vo- rável quando o mestre retoma o assun- lumes e mais volumes, de análises minu- to do maior dos guerreiros numa fita ciosas e inteligentes, para abordar as grandiosa e imponente sobre Napoleão, múltiplas facetas do maior gênio inventivo Austerlitz, que, no Brasil, recebeu uma da Sétima Arte. Gance foi um mundo tradução condigna: Com sangue se es- prodigioso de engenho técnico, renovan- creve a história. do a arte das imagens, como também foi o cineasta sublime de obras avançadas e O crítico que for competente e não de vanguarda. Louis Delluc disse bem, de patas centaurizadas descobrirá a in- na Rénaissance du cinéma, que é pre- ventiva mais desconcertante na obra ciso aceitar Gance in toto, em conjunto, ganceana, mesmo se ele sai dos seus fil- no todo harmônico de sua obra variada e mes de grande suntuosidade e milhões revolucionária. Ele que foi poeta, fez ma- gastos em sua confecção e figurantes nifestos de estética revolucionária, fez para se deter nas fitas de orçamento peças de teatro e filmes de surpreenden- modesto, mas que mesmo assim traziam, te originalidade, inventou processos téc- em várias seqüências, um espírito forte- nicos que fariam avançar de século a mente imaginativo e criador. Refiro-me Sétima Arte, como a tela tríplice, com o a O grande industrial, tirado do roman- écran dividido em três partes, antecipan- ce de Jorge Ohmet, com Gaby Morlay, A do a tela panorâmica de agora, ou o Vênus cega, com Viviane Romance, sem cinerama. Isto na fita Napoléon, em que, falar de uma grande obra que idealizou, na seqüência da batalha de neve entre tocante, lírica e de intensa narrativa poé- os garotos, Gance colocou a câmera no tica, como o Paraíso perdido, com dorso de um cavalo a galope, a fim de Micheline Presley e Fernand Gravet, com dar impressão de movimento às bolas os instantes inesquecíveis do casamento nevadas que caíam no rosto da garota- e do pai que, na guerra, ouve a voz do da. Quando o barco de Napoleão singra filho no disco arranhado que mal repro- o imenso oceano, a câmera, numa osci- duz o som gravado do infante ausente. lação de dança, acompanha o movimen- Como esquecer toda a atmosfera cênica to das vagas a uma grande altura. A da Comedia dell’ Arte colocada por tela tríplice só aparece no momento dos Gance em O capitão Fracasse, do ro- Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 141

mance homônimo de Théophile Gauthier. era cor-de-rosa, passa a amarelada, pois Todo aquele carro ambulante que leva o ninguém é capaz de conceber até onde o teatro mambembe até os mais distantes gênio de Gance pode pairar, em inova- recantos, as representações solenes da ções e audácias criativas. Na Tragédia mímica, no palco, com a caracterização do fim do mundo, a tempestade de re- dos atores de máscaras, narizes postiços lâmpagos e trovões se alterna com a cruz de papelão, vestes com mantos longos, de Cristo crucificado, ouvindo-se de um chapéus de imensas plumas, quando não coro lamentoso todo o entoar de um é o duelo de espadas entre espadachins cantochão fúnebre. Vagas impetuosas da consumados, destacando-se um trecho procela, carregando, aos rojões, carros, antológico de arte eterna como o casas, gentes, numa fita inspirada num Fernando Gravet esgrimindo-se com es- relato do espírita Camilo Flamarion, em pada, com desafeto, no cemitério que a que o Gance colocou todos os inventos luz de uma lanterna ilumina. Em pouco, ousados de seu espírito científico. Já se uma das espadas apaga a luz da lanter- disse que La Roue é uma sinfonia de pre- na, escurecendo o campo santo. Toda to e branco, contraste visual de cores va- aquela representação de personagem da riadas, com trens céleres se alternando tragédia grega, declamando, com gestos com os trilhos paralelos, tudo numa dis- largos e eloqüentes, ostentando o posição de notas musicais, a ponto de pen- belíssimo mando negro. Toda a apresen- sarmos no livro de estética modelar de tação da fita, mostrando as figuras como René Schwob, La mélodie silencieuse. se fossem marionetes humanas, títeres O crítico Louis Delluc viu em La Roue manejados por cordas invisíveis, por um uma sinfonia de imagens miraculosas, não cineasta sem igual. Fernando Gravey dá faltando nem o desastre de trem na gare um show de representação escurecida, a corrida desenfreada da irrepreensível. As soluções intermitentes multidão subindo a longa escadaria da que acompanham, num choro incômodo, estação, lembrando a turba enlouquecida o prólogo de Mater dolorosa, a revolu- a correr infrene nas escadarias de Odessa ção que Gance fez do colorido em ima- no Encouraçado Potemkin de Serguei gens, na Décima Sinfonia, em que a Einsenstein, clássico do cinema russo. O personagem principal faz pose, numa maquinista cego que não pode mais mo- cena, como se fosse o próprio símbolo vimentar a locomotiva tem o amargor da da Vitória de Samotrácia, num enredo de lenda do suplício de Sísifo, impossibilita- ambientes e diálogos que lembram os do de andar, comer, beber e voar, com romances mundanos de Gabriel Dannunzi, asas luminosas, até as estrelas da como A filha da volúpia ou O fogo, não amplidão. Com Beethoven, imortalizado faltando o fausto das alcovas luxuosas, o pelo gênio de representar de Raimer, requinte das falas elegantes e verbosas. Gance parece querer ultrapassar um gê- Quando, num momento, a heroína apaga nio que sempre nos põe de surpresa. Para a luz da sala, a imagem, que até então exprimir a surdez do bruxo de Bohn, THOTH 3/ dezembro de 1997 142 Depoimentos

Gance a reconstituiu colocando o som nação, Intolerância e O lírio partido. saindo das imagens e estas ficando si- Como esteta de bom gosto, que só pen- lenciosas, como na cena das lavadeiras sava no cinema como em algo acima dos e do moinho girando. Quando, no final, estreitos limites de uma tela comum, Beethoven está morrendo, toda a última Gance foi muito mais que Griffith. Isto visão do seu olhar desesperado nos é mos- eu digo sem nenhum desdouro, pois trada ao som da Nona Sinfonia, ouvin- Griffith foi outro inovador genial, que ele- do-se o forte bater das palmas, os brilhos vou o close up ou primeiro plano dos ato- dos relâmpagos seguidos de intensas tro- res, ou mesmo a câmera correndo atrás voadas, enquanto Beethoven vai agoni- da multidão em pânico, ou travelling, de zando, vendo-se as portas do teatro se Intolerância, com o olhar de um cineas- fechando sob uma avalanche de neves, ta que via o cinema com o prisma de um esborrifando-se nas cerradas paredes futuro inconcebível. Griffith e Gance até enegrecidas. Quando Beethoven toca a se encontraram, trocaram idéias sobre a Juliette e Guicieux lhe dirige alguma fala, arte de suas paixões, sentiram o quanto o surdo sublime não a ouve, ensimesma- ambos se completavam, quando só am- do com a Sonata ao luar, que seus de- bicionavam o mais alto, o que atingia o dos vão tirando das teclas mágicas. Até clímax, o inalcançável. Griffith rodaria um de uma ópera de Carpentier, Louise, que Tristezas de Satanás, uma Melodia do conta a história de uma costureira amor, que muitos acham aquém do seu parisiense, Gance fez um filme digno e gênio maior do cinema americano. Ques- bem-dirigido, destacando-se um ponto tão de crítica bitolada, pois ambas as fi- positivo dessa película, interpretada por tas são excelentes, bem-dirigidas e em Mies Grace Moore, atriz de recursos nada desabonam o nome do maior cine- cênicos apreciáveis e cantora de belo asta da América. E pode-se dizer, sem volume de voz de soprano. Louise nos chegar à insanidade exegética, que A deu um momento de bela inventiva de dama das camélias, que Gance filmou imagens eloqüentes e poéticas: o dos fo- com Yvone Printemps e Pierre Fresnay, gos de artifício deslizando, luminosos e seja algo de que se envergonha o maior feéricos, nas telas brancas dos cinemas gênio das imagens do cinema francês? do mundo. Junto de uma cineasta que foi O analista pensa não serem todos os dias também sua discípula, Cely Kaplan, que um cineasta pode tirar do seu enge- Gance concebeu a Magirama, com os nho criativo um Napoléon, Beethoven mais prodigiosos inventos em matéria de e La Roue, sem contar Intolerância, truques cinematográficos, provando que Horizonte sombrio e Órfãos da tem- seu gênio não tinha limite, que estava sem- pestade, em que Griffith, em pleno do- pre de posse das maiores audácias reno- mínio do cinema popular, mostra-se um vadoras. Delpeuch afirma que, neste se- evocador sensível e humano dos fatos tor, ele se comparava a Edward W. corriqueiros e banais do nosso mundo. Griffith, o gênio do Nascimento de uma Griffith morreu pobre, desiludido com a Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 143

vida, sem receber o estímulo consolador Veja-se o estilo delirante e de ras- para seu gênio evocativo e criador. Gance gos turbilhonantes de Gance no já teve mais sorte, seu nome era sempre Aphorismes, com pensamentos e con- cortejado pela elite de analistas do orbe cepções filosóficas, afirmando “que o e até, agora, quando morreu, na França, tempo da imagem chegou” e que um dia recebeu os aplausos do ministro da Cul- as imagens da tela teriam a mesma tura, foi homenageado na Itália, com a imponência sinfônica da Cavalgada das exibição de uma metragem quase com- Valquírias, de Wagner, e que o autor de pleta de Napoléon, com uma orquestra um filme seria ele só, concebendo todas sublinhando de harmonia e encanto o as nuances requeridas em sua confec- desenrolar desse maior filme épico do ção, arquitetando a sua obra como o es- cinema silencioso. O público ovacionou cultor heleno idealizou, na impassibilidade essa obra-prima, assim como aconteceu marmórea, os traços rítmicos, de beleza com uma assistência seleta que viu, ad- eterna, da Vitória de Samotrácia. O ar- mirou e aplaudiu esse monumento das tista, então, era capaz de dar todas as imagens, numa exibição de Napoléon vibrações das imagens, como o músico, acontecida em Nova York. Agora, em com sete notas apenas, consegue tudo pleno 1983, se exibe em Paris, pela pri- captar, num turbilhão de melodias, como meira vez, a versão completa de uma sinfonia beethoveniana. René Clair, Napoléon, com suas cinco horas de du- ao escrever Réflexions faites, já é mais ração, acrescidas de ruídos e partitura comedido no seu estilo linearmente clás- adequada. sico, de ordem direta e de léxico de sinô- George Charenson, com sua lumi- nimos cristalinos, de fácil semântica. Essa nosa arte de argumentar e discutir idéias a razão por que entrou para a Academia cinematográficas, nos deu um belo en- Francesa, pois em seu livro, em que tudo saio sobre René Clair, afirmando que a reflete as coisas e as gentes do cinema, sua obra, de tanta harmonia criadora, só René Clair nos fala, ao modo de sedutor encontra paralelo neste setor com a de contador de histórias, tudo o que pensa Charles Chaplin. São cineastas que só da Sétima Arte, dos problemas seus de concebem um cinema inteligente, de maior importância, destacando-se as be- âmbito polêmico, sutil e de muita finura, las páginas em que enaltece outro gênio em que a dialética do argumento toca do écran: Georges Melliès, que criou tudo sensivelmente toda a sensibilidade do o que o cinema teve de mais inventivo e espectador que saiba assimilar o que há duradouro, desde os seus truques incon- de mais profundo num enredo audacio- cebíveis na Viagem à Lua e ao Pólo, so, emotivo, poético e desconcertante. O até suas fitas de ficção científica, plenas que René Clair tinha de comum com Abel de grande poesia e até de uma adorável Gance é que ambos eram escritores de nostalgia à Júlio Verne. René Clair pare- fôlego, manejando o idioma gaulês com ce sentir o drama de todos os gênios in- um consumado gosto clássico. ventores que, depois de darem tudo de si THOTH 3/ dezembro de 1997 144 Depoimentos

à invenção de seus sonhos, caem em ex- Aí, as figuras humanas com seus trema pobreza, não reconhecidos artisti- comparsas são colocadas de maneira camente pelos contemporâneos indiferen- grotesca e caricatural, como aquela tes que deveriam agradecer tudo quanto farândula toda de homens e mulheres a eles fizeram para a arte das imagens che- correrem pelo salão afora, uma dama gar ao grau avançado de hoje. Assim foi eufórica que desmaia, o velho que nada com Edward Griffith, que chegou a ser ouve usando de modo cômico uma cor- um dos donos da United Artists, com neta acústica no ouvido afetado. Em René Mary Pickford, com Charles Chaplin; Clair, é o riso estalante, de chiste e gaia- sucedeu o mesmo com Melliès, que, dan- tice, que se vê nas peças de Marivaux e do ao cinema a sua invenção mais prodi- Molière, nas quais a cintilância sutil do giosa, que é o delinear os enredos e con- esprit da França reponta com uma su- tar, com maestria, as histórias e ficções perioridade de criação singular. Sempre da fita, ficou pobre, sem recursos e, para com o mesmo estilo, a mesma forma de viver com decência, foi vender doces e dirigir, com acerto, seus atores, a mesma outros apetrechos num local da gare de nostalgia que ele sente pelos tipos popu- uma estação. René Clair o foi encontrar lares dos cafés, bulevares e mesmo ruas nessa posição humilde e desconcertante. pacatas de um subúrbio distante, é assim A reconstituição da conversa de René que nós o concebemos nos seus filmes Clair com Griffith e a sua amargura, ven- de maior expressão poética: Sob os te- do o cineasta de Intolerância se despe- tos de Paris, falando de um tocador de dir, entristecido pela ingratidão humana, realejo, O milhão, evocando o universo e seu vulto, um tanto quixotesco, pelos sensível dos teatros musicais, com seus embates inglórios, se perdendo na bru- cantores e tenores bem-afinados e ridí- ma merencórea da madrugada. René culos; A nous la liberté é crítica um tan- Clair e o seu espírito cartesiano, de to lírica e magoada do capitalismo bur- tudo querer bem analisado e explica- guês, opressor do trabalhador humilde e do, a ironia e irreverência de todas as indefeso. É o ataque equilibrado que faz suas obras-primas: Entreato, filme de da luta do homem contra a máquina a vanguarda, comum, camelo puxando o harmonia ideal entre patrões e emprega- esquife singular de um enterro; Paris dos, tudo suavizado por uma partitura que dorme, com a Cidade Luz parali- mestra de Georges Auric. Essa beleza sada por uma escuridão momentânea; de realização cinematográfica, profunda Os dois tímidos, uma sátira sobre cer- nos mínimos detalhes, serviu até de ins- tos tipos ridículos da vida parisiense; piração para a célebre fita de Charles Chapéu de palha da Itália, vaudeville Chaplin Tempos modernos. Apesar da de Labiche, em que os qüiproquós aci- aparente leveza das fitas rené-clairianas, dentados e visíveis envolvem toda a que muitos analistas asmáticos acham até procura aloucada de um chapéu que se superficiais, em René Clair há um profun- perdeu. do senso psicológico da alma humana, uma Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 145

sutil observação dos fatos e costumes dade. Os diálogos cintilam de ironia brin- sociais, como Fêtes galantes, que é uma calhona, o enredo é de uma sutileza a crítica, com finesse, sobre a guerra que toda a prova e a interpretação de Marle- divide os homens; Les belles de nuit ne Dietrich, magnífica em todos os senti- (Esta noite é minha) é a sátira empol- dos, assim como as de Bruce Babot e gante para aqueles que dizem “que o Roland Young. Um dos filmes que mos- mundo no meu tempo era melhor”, pro- tram bem as mãos seguras de um mes- vando que, em qualquer época, sempre tre cinematográfico. O décor da fita é houve guerras, desrespeito à liberdade soberbo. A partitura é baseada em Lú- humana e até fanatismo político e religi- cia de Lammermoor, cantada pela so- oso. Obra-prima de sátira bem-elabora- prano Gita Alpar. O tempo é uma ilusão da, não deixando de ser uma Intolerân- é outra obra mestra de René Clair, falan- cia griffithiana, feita com um bom gosto do que o tempo não existe, que é mera acentuadamente francês. No elenco: ilusão de nossos espíritos fantasiosos e Gérard Philippe, Martine Carol e Gina pouco profundos, no que toca o efêmero Lollobrigida. Com O silêncio é de ouro, das coisas e a eternidade. No filme, bri- a cristalização do humor cintilante de lhavam Dick Powell e Linda Darnell, ar- René Clair chega ao máximo, contando tistas a que só um René Clair podia trans- a história pitoresca de um amor singelo, mitir um pouco de alma e vibração. O em pleno 1900, no início do cinema fala- fantasma vingador, tirado de um roman- do. A fita é uma beleza e primor de cria- ce policial de Agatha Christie, é sobre ção artística e malícia do enredo senti- um jogo de xadrez contendo sete mental e lírico. Maurice Chevalier está negrinhos de madeira, cada um deles correto, em todo o seu desempenho desaparecendo à medida que se ia as- marcante, nessa obra caracterizada por sassinando cada um dos hóspedes, con- valsas nostálgicas como “Fascinação”, vidados para uma temporada no castelo “Meu tesouro” e “Sob as pontes de Pa- sinistro. O filme mantém o acento ris”, vendo-se até as sessões de cinema macabro e humorístico da obra policial primitivo nas primeiras salas exibidoras romanceada e nele René Clair pôs à von- de Paris. Como classificar Fantasma ca- tade tudo o que há de mais criativo em marada e seu requinte de cinema fino e matéria de cinema inteligente e, sobretu- empolgante, ridicularizando a mania in- do, fascinante. Numa arte em que as fun- glesa de adotar os fantasmas errantes de ções técnicas são bem divididas, René seus castelos? Robert Donat à vontade, Clair foi um dos poucos cineastas que num papel que vive com classe e alma podem considerar-se mentores exclusi- interpretativa. Paixão fatal, com o am- vos de sua obra, aquilo que se chama com biente refinado de uma Nova Orleans do propriedade o cinema de autor. Pode- século passado, contando as peripécias se ver uma certa analogia no tratamento de uma mulher aventureira de cabaré que e concepção dos seus filmes, pois, mes- enlouquecia de paixão os homens da ci- mo que os enredos nada se pareçam uns THOTH 3/ dezembro de 1997 146 Depoimentos

com os outros, a temática central é a desiludido. E a fita acaba nesse suspense mesma, constante: sempre são figuras da inesperado, de desilusão e desespero. classe média ou do mero proletário, que Filme marcante, muito inteligente, poéti- sempre aspiram a uma vida mais confor- co e magistralmente dirigido, enfim, uma tável e mais feliz, sempre sonhando saí- obra mestra, com dois artistas de peso rem de um cotidiano de frustrações para na arte das imagens: Gérard Philippe e galgarem um lugar mais garantido na so- Michelle Morgan, dando banho de sensi- ciedade. É o que acontece com Bourvil bilidade como o oficial e a orgulhosa dama em Todo o ouro do mundo, que, depois que o faz sofrer. Casei-me com uma fei- de almejar subir bastante na vida, chega ticeira não trazia uma história original, à conclusão de que a felicidade não está pois mostrava uma mulher que fazia má- na posse da riqueza absoluta, e sim numa gicas e bruxarias causando as maiores perfeita paz de espírito. A fita traz uma diabruras aos seus desafetos. Mas o tra- profunda mensagem filosófica sobre a tamento especial que lhe deu René Clair, cordialidade humana e a confraterniza- aquele humor sardônico utilizado para ção perene entre as criaturas. Uma das mostrar o lado irônico de uma feitiçaria obras que mais refletem o gênio criador simplória, de uma bruxa que caiu na as- de Clair, assim como As grandes mano- neira de se apaixonar por um homem que bras, sua primeira experiência com a cor tão pouco caso fazia dessas bruxarias nas imagens, retratando, no ambiente meio cabreiras. Veronika Lake e Fredric nostálgico da Belle Époque, a história de March faziam dessa comédia hilariante um oficial do exército, conquistador uma das mais felizes realizações desse inveterado das mulheres mais difíceis, mas mestre do cinema fino, inteligente e, so- que não consegue demover o coração de bretudo, de densa essência psicológica e uma bela solitária que se oculta a todo o até profundidade temática, nesses temas fim desses seus assédios. Acontece que aparentemente leves e inconseqüentes. ele faz uma aposta num clube elegante, Tanto Casei-me com uma feiticeira com seus colegas de farda, de que fará como Paixão fatal, O vingador invisí- um cerco tão cerrado que a irresistível e vel e O tempo é uma ilusão pertencem orgulhosa mulher acabará capitulando. à fase rené-claireana de Hollywood, pois, Ela não cede um palmo de sua tensão. embora o cinema americano conseguis- As manobras se realizaram nessa cida- se estandardizar muitos realizadores eu- de, chegam ao fim e os oficiais partem ropeus de talento, fazendo com que eles para longe, montados em seus garbosos não repetissem seu trabalho anterior, na- cavalos. O oficial ainda olha para a jane- quele modo especial de fazer cinema, di- la da amada, pensando que ela chegará vidindo as funções de cada técnico, dan- eufórica lá em cima para vê-lo ir-se em- do poucas chances ao metteur en scène, bora, ou lhe enviar um beijo de saudade claro que o cinema suspeito, de falso con- ou um adeus. Mas a janela permanece ceito artístico, que se fazia em Los fechada, o oficial fica triste, com o rosto Angeles não afetou em nada o espírito Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 147

firmemente empreendedor de René Clair; texto, dando-lhe um toque de criação in- como também não diminuiu a força cria- confundível, que ninguém igualou. Aí se dora de outros cineastas franceses de poderia acrescentar um mito solitário categoria universal: Jean Renoir (A mu- universal: Charles Chaplin. Quem hoje lher desejada, Segredo do pântano), poderia ser incluído numa pequena cons- Julien Duvivier (A grande valsa, Misté- telação de cineastas que sempre têm o rios da vida e O impostor, com Jean que dizer com forma nova e original de Gabin). Jean Renoir, gênio das imagens elevarem o cinema de superficial oficina da Gália, em A marselhesa, Bas fond, técnica a um âmbito de arte profunda e A grande ilusão, French can can, A incomensurável? Só um Robert Bresson, besta humana, A carroça de ouro, com o maior de todos, com seu cinema de Ana Magnani, Toni e o Rio sagrado, que base cristã, baseado num catolicismo que morreu há pouco tempo, foi um dos cine- é mais de François Mauriac e Georges astas chamados de verdadeiros autores Bernanos do que da placidez de suas inúmeras obras-primas. inconformista do Pascal dos Pensées. Refiro-me ao Bresson de Jornal de um Cineasta genial na mais pura con- cura de aldeia (Suplício de um páro- cepção desse termo, monstro sagrado de co), tirado da obra filosófica sobre os pro- ambiciosos arranjos da Sétima Arte. Em blemas de consciência e fé de um padre filme seu, a mímica, a dança, a música e arruinado pelo câncer, de Georges a arte consumada se conjugam, como no Bernanos. Bresson, de Anjo das ruas, célebre La règle du jeu, em que o Um condenado à morte escapou, sem nonsense, o vaudeville e a alta falar na obra mais profunda do cinema dramaticidade do argumento irônico se moderno: Pickpocket, em que, falando conjugavam, num feliz elo de inspiração da odisséia de um ladrão em crise espiri- e forte estrutura cênica do impecável tual, Bresson nos deu tudo de sua dialética metteur en scène. Jean Renoir, em cristã, fazendo um filme só de mímica e Hollywood, como vimos, nada perdeu de quase inteiramente sem diálogos, só com sua flama criadora. É preciso não esque- os gestos eloqüentes e a expressividade cer uma obra de grande intensidade dra- facial dos atores. Uma autêntica e mática que ele concebeu, Amor à terra, inigualável obra-prima. No Suplício de em que os personagens sofredores do um pároco, os pensamentos que tortu- mundo rural americano são desenhados ram o padre aldeão vêm escritos na ima- com uma ternura lembrando o King Vidor gem, com os letreiros tentando expres- em Pão nosso, mas com uma visão de sar o tumultuar de um ser que tem pou- gênio sem igual, já que Vidor era apenas cos anos para se dedicar à sua paróquia. um grande cineasta e Renoir, um dos Federico Fellini, Pasolini, Ingmar poucos diretores a que, como Gance, Clair, Bergman, François Truffaut, Louis Malle, Griffith, John Ford, Ernest Libtsch, se Alain Resnais, o genial cômico Jacques pode aplicar o conceito de donos de um Tati fazem parte dos poucos cineastas estilo único, que revalorizam qualquer THOTH 3/ dezembro de 1997 148 Depoimentos

que ainda mantêm a flama criadora de rente, pois o estudamos em confronto com obras eternas. William Wyler, Orson o seu tempo, comparando a sua Welles, Alfred Hitchcock, King Vidor e, filmografia de tanta inteligência gaulesa, nos velhos tempos do áureo cinema ame- fino espírito crítico e mordaz, com a de ricano, Frank Borzage e Clarence Brown, outros cineastas de diversos países. Neste poucos nomes podem aí ser incluídos, quase meio século, em que colocou a in- nesta pequena galeria de artistas acima teligência privilegiada na tarefa de adici- de seu tempo. Jean-Luc Godard aqui ter- onar obras-primas ao imenso patrimônio mina a minha exígua lista de cineastas cultural da França, não fez uma só fita respeitáveis, pois é um inventor de te- medíocre, pois até em Entre o amor e a mas e de técnicas de vanguarda que re- morte (La beauté du diable), renova- volucionou as concepções estreitas do ção do mito de Fausto, com a eterna le- cinema linear de outros cineastas, os quais genda do filtro mágico da mocidade eter- só vivem da fama de artesãos eficientes, na, René Clair nos deu um relato psico- mas sem capacidade criadora e gênio lógico do Fausto (Gérard Philippe) que imaginativo como Godard. Quem assis- entrega a alma ao diabo (Michel Simon), tiu a A chinesa, Week-end, Viver a vida, num tratamento psicológico de um tema Masculino feminino... tão diferente dos tratados por Clair. Mas mesmo assim a fita revela o pulso firme Ainda agora, Godard nos surpre- de Clair, quando aí coloca uma ponta de ende com uma fita originalíssima, nova ironia e tristeza, nos momentos em que em seu enredo desconcertante, num rit- Fausto perde a felicidade ao perder a in- mo ágil e saltitante, numa alucinante dividualidade espiritual por um contrato estilística de um cineasta inconformado duvidoso com o gênio das trevas. O fan- que só pensa em termos altos, pois que tasma camarada é de sua fase brilhante seu nome, a começar por Glauber Ro- no cinema inglês, assim como uma lou- cha, explosivo cineasta brasileiro, todos cura cênica tão gostosa, em chistes os jovens inteligentes que pegam na irresistíveis da mais pura comicidade, em câmera para fazerem algo acima de situações imprevistas do enredo engra- efêmero tomam logo para sua exclusiva çadíssimo de Loucos por escândalo, inspiração. O filme delicioso com que dando uma aula de eficiente direção de Godard brindou toda uma assistência ávi- atores, quando Maurice Chevalier e Jack da de arte nova e diferente se chama Buchanan passam à vontade pela fita, Salve-se quem puder (A vida), retra- numa representação hilariante, digna de tando todas as neuroses de nosso tempo, seus papéis impecáveis, numa comédia como o medo, a vida, a morte, a solidão, que ficará para sempre em nossa me- mantendo aquela unidade de todas as obra mória. concebidasrecebidas para sacudirem os cérebros mais obtusos. Tivemos que fa- Para o final deixo a fita de René zer esse hiato para que a exegese sobre Clair mais bela, profunda, em que ele René Clair ficasse mais completa e coe- colocou toda a sua nostalgia em relação Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 149

aos seres marginalizados na vida, perdi- zas, alegrias, uma recordação de um fato dos nos longínquos subúrbios parisienses, que me feriu, emocionou ou transtornou em casas humildes, encardidas, tendo no por completo o coração. Invejo o Octávio fundo o trilo melancólico dos trens que de Faria que, diariamente, não deixava passam, resfolegando, soltando fumaças sem uma linha sequer os grossos cader- cinzentas, a correrem céleres para os nos, com aquela sua letra tão firme e bairros pobres e proletários. Refiro-me a pessoal, quando revivia o Paulo Arman- Por ternura também se mata (Porte de do, o romântico e tristonho Branco na lilas), falando da amizade quase amoro- Tragédia burguesa, e mesmo quando re- sa do quarentão Juju (Pierre Brasseur) tratava o Padre Luiz, sempre a pensar, por um belo rapaz, fugido da justiça e da nos trágicos relatos que ouvia, de peni- polícia (Henri Vidal). Juju se dedica de tentes de negros remorsos, nas revela- corpo e alma ao jovem fugitivo e este, ções escalirosas do confessionário. Há sem reconhecer todo o sacrifício do ou- escritores, de imaginação fértil, de farta tro, ainda o espanca e lhe ridiculariza a messe criadora, que são capazes de pro- afeição amorosa. Juju, transtornado pela duzir um volume atrás do outro, porque indiferença do rapaz, num gesto que é sua imaginação é inesgotável. É o Victor mais ciúme ofendido que vingança vil e Hugo, nas suas sagas romanescas, Emílio mesquinha, assassina o jovem desdenho- Zola nos racontos quase policialescos dos so que é toda a força e motivo de seu Rougon Macquart, o Honoré de Balzac, viver. René Clair, ao traçar o pranto si- plasmando, para todo o sempre, o Pai lencioso e o remorso torturante de Juju, Goriot, a Eugène Grandet e o Coronel nos deu uma das mais pungentes obras Chabert, que uma mulher vingativa fez do seu século. Porte de lilas cerca, as- recolher a um asilo de velhos inválidos. sim, com um brilho inacessível, uma E Roger Martin du Gard, quando conce- filmografia de temas vários e diferentes, beu toda a história social e política da mas de uma só consonância artística, vi- França, nas interessantes peripécias dos são profunda e poética de um cineasta Thibaudet. Romain Rolland, no seu paci- de gênio que ao morrer, agora, levou à fismo acima dos conflitos e dos ódios posteridade uma obra que, a não ser a de cegos e racistas dos homens, no roman- Charles Chaplin, não encontra uma coe- ce cíclico do Jean Christophen, nos deu rência artística homogênea no cinema a história de uma amizade sincera e pro- contemporâneo. funda entre um músico francês e um ide- alista alemão. São milhares de páginas, com detalhes esmiuçantes, de muitas 14 DE SETEMBRO - Só escre- personagens que falam, aparecem pou- vo quando uma necessidade imperiosa me co e depois somem de cena, sem deixar obriga a encher as páginas brancas des- um traço luminoso de sua presença. te caderno. Quando o mais oculto de mi- Guerra e paz, de Leon Tolstói, são mui- nha sensibilidade expressa minhas triste- tas páginas descrevendo as batalhas san- THOTH 3/ dezembro de 1997 150 Depoimentos

grentas e o morticínio com que as hostes hecatombe veio alertá-las de que algo ir- napoleônicas ensangüentaram o mundo. remediável ia mudar toda a estrutura so- Aquele mundo suntuoso de princesas ca- cial do universo, e que uma sociedade prichosas, condes arrogantes, dominan- mais aberta e progressista ia nascer. do extensões de terras e escravizando Proust é um mestre: quando põe o meni- milhões de pessoas, todo esse universo no sonhador encarnando sua própria de exploradores e explorados, Tolstói o consciência, vai exprimindo, em forma descreve com a visão profética de quem introspectiva e psicológica, os achados sabe que esse estado doloroso de coisas mais íntimos de sua alma evocadora. fanadas um dia terá de acabar. Todas as Ulysses, em que James Joyce faz um derrotas marciais sob a neve inclemente, apanhado de toda a filosofia bonacheirona a retirada desastrosa do exército venci- e um tanto debochada do irlandês co- do do grande corso, os gritos e desespe- mum... será James Joyce um retratista ros da soldadesca arruinada pela guerra, completo de um mundo caótico, será ele pela fome e pela pretensão de que ia do- um realizador de obra cíclica, como os minar o restante da terra, toda essa eu- autores que analisei? Dentro de um apa- foria destroçada, Tolstói a imortalizou em rente hermetismo de diálogos e narrativa páginas de desafogo e veemência. É ver- desconcertante, Joyce aborda em dade que a guerra vai levar à destruição Ulysses todos os problemas que atormen- em todos os domínios daquele aristocra- tam o homem: o medo da solidão e da ta arrogante que, no fim, descobre que morte e até nos bem-sucedidos na vida, sua vida até então fora de olhos venda- que galgaram as posições mais destaca- dos, o que o impedia de conhecer a ver- das, pisando por cima da honra e da dig- dade toda inteira, que era reconhecer que nidade das pessoas necessitadas e ca- o povo fora usurpado em suas necessi- rentes. dades mais prementes. Também não é o modo nostálgico de Marcel Proust, em À procura do tempo perdido, quando nos 15 DE SETEMBRO - Não sei vai descrevendo um mundo que a Guer- quando vou terminar a biografia de Dom ra Mundial de 1914 a 1918 deixou, em Silvério Gomes Pimenta, que iniciei há suas proporções funestas e destruidoras. mais de dois anos. Vou sempre desco- A quietude das mansões tranqüilas das brindo novos dados e documentos, ven- famílias burguesas, com seus saraus, seus do certa veemência dos temas sociais que colóquios familiares e o devaneio da me- Dom Silvério tratou e que os analistas do nina que, ao simples bater do carrilhão seu tempo nem perceberam. Quando fa- ou ouvindo o bater do campanário e o lam do biógrafo de Dom Viçoso, é para trilo estridente do trem, vai reconstituindo louvarem o exímio estilista do idioma, o as trajetórias dessas vidas que só pensa- sacerdote prodigoso que falava várias ram egoisticamente nos seus problemas linguas, não esquecendo o anedotário secundários, até que o tremor de uma sempre crescente, no tocante às relações Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 151

do arcebispo de Mariana com o papa digerir os livros da aula, com aquiescên- Leão XIII. Sua Pastoral coletiva é de cia do dono do estabelecimento comer- palpitante atualidade, pois nela D. Silvério cial. Assim sendo, por estudos louváveis põe todo o ímpeto de sua pujante de teologia, idiomas estrangeiros, lógica brasilidade, quando impreca os batistas, e filosofia, chegou àquele saber que era presbiterianos ou metodistas, de visível o mais completo que um sacerdote do influência norte-americana, de tentarem tempo podia mostrar. Escrevia tão bem anular a benéfica influência católica no no idioma latino que até o papa Leão XIII Brasil. Vai mais ainda, ao empunhar o o admirava, nas cartas que escrevia ou látego sagrado de sua indignação. Co- quando, nos concílios do Vaticano, o ar- menta que o nosso país jamais seria a cebispo dava seu parecer, num estilo lou- Cuba daquele tempo, que os ianques do- vável da língua de Virgílio e Cícero. O minaram, exploraram e fizeram dela uma cardeal Arcoverde o tinha em conta de fazenda rendosa para os seus interesses sábio e virtuoso. Quando queria tratar de escusos. Contra as Associações Cristãs temas do máximo interesse para a Igre- de Moços, a sua pena traçou panfletos ja, recorria a Dom Silvério, numa humil- exasperados, já que em D. Silvério, como de deferência de um grande chefe epis- provo nesta análise em que estou dando copal para outro não menos notável pas- o melhor de minha inteligência, nunca se tor de ovelhas. Tersou armas com sabe onde termina o arcebispo rigoroso Saldanha Marinho, que era expoente dos com os costumes morais de sua época, o pedreiros-livres, não mediu conseqüên- pastor diligente sempre a defender as cias ao usar de sua pena para combater suas ovelhas contra a sanha dos maçons à vontade a atitude de D. Pedro II no e suas réplicas tumultuosas contra os episódio da Questão Religiosa. Quando espíritas e protestantes. Certas atitudes entrou para a Academia Brasileira de suas causaram espanto, como quando se Letras, sua reputação de grande escritor pôs ao lado do presidente Artur e maior figura moral e intelectual de nos- Bernardes, vítima de calúnias e intrigas sa Igreja já era notória. Isso é uma prova de reacionários que o incompabilizavam de que o negro brasileiro, mesmo com os com o exército, forjando até cartas fal- entraves da vida e um racismo disfarça- sas e comprometedoras. do que nos envergonha, pode atingir os Honrou bem a sua Igreja e a cul- cumes de uma invejável situação social. tura brasileira, no que tem de mais sério Tristão de Athayde, João Ribeiro, Afrâ- e profundo. Esse negro humilde, que nas- nio Peixoto, Humberto de Campos, ceu em Minas Gerais, em Congonha dos Gustavo Barroso, Carlos de Laet e ou- Campos, filho dos elementos mais sim- tros luminares de nossa inteligência já ples, como de ex-escravos que ganha- enalteceram essa figura que até se tor- ram sua liberdade. Estudou com dificul- nou lenda, graças ao anedotário curioso dades, aproveitando até a luz de velas e que corre a seu respeito, nas Alterosas e lamparinas de um armazém local para pelo resto do Brasil. Em página de seu THOTH 3/ dezembro de 1997 152 Depoimentos

diário que não foi publicado, Afrânio Pei- No livro de que já escrevi mais xoto relata que Carlos de Laet, ao rece- de três cadernos, nunca perco de vista ber D. Silvério na Academia, fez um dis- o negro que ascendeu da obscuridade curso cheio de gracinhas e humor bara- até chegar a arcebispo, brilhando em to, quando estabeleceu comparações in- todas as participações em concílios pelo concebíveis entre o sábio arcebispo e um mundo pela sua espantosa erudição, general Glicério, seu homônimo, muito seu exemplar valor moral e cultural e conhecido na época. Carlos de Laet era a fibra possante com que enfrentava meio irônico e não era figura muito ben- os potentados da época, em defesa de quista no seu meio, porque gostava de seus fiéis, que o idolatravam, e de sua gozar os desafetos, era temível como Igreja. polemista e autor de versos destruindo reputações, como os que perpetrou con- tra os modernistas, principalmente Gra- 16 DE SETEMBRO - De pé no ça Aranha e Marinetti. O mais engra- chão, a batina limpa mas gasta pelo tem- çado desses fatos todos é que tanto po, seguido de padres e uma corte nu- Dom Silvério como Carlos de Laet merosa de fiéis devotados, Dom Silvério eram condes papalinos, tendo recebi- percorria, de sol a sol, em dias seguidos, do o título do papa por relevantes ser- as principais paróquias de diversas cida- viços prestados à Santa Igreja. Dom des mineiras. Ao galgar a posição inve- Silvério nunca usou essa honraria re- jável de Arcebispo, não perdeu a sua cebida, pois era de uma simplicidade a humildade e seu amor pela população toda prova. Já o irônico autor de O fra- mais carente e necessitada. Quando o de estrangeiro e outros estudos só cardeal Arcoverde foi escolhido o primei- gostava de assinar, por completo e bom ro cardeal da América do Sul, ele estava tom, conde Carlos de Laet. Outro es- em visita a dom Silvério, em Mariana. critor católico de valor e bela expres- Recebeu a notícia quando estava são ética, nas atitudes e proceder, foi recepcionando, na sede do Arcebispado, o conde Afonso Celso, que também e lá o cardeal Arcoverde viu quanto era ganhou aquela láurea papal por mere- nobre a alma do antiste, que se rejubilava cimento. Agripino Grieco, em Evolu- com a escolha acertada do cardeal ção da prosa brasileira, tinha Dom Arcoverde. Sempre, em toda a sua tra- Silvério como a maior figura da nossa jetória de simples padre, bispo e arcebis- vida católica, enaltecendo os dons lite- po, Dom Silvério recebeu todo o apoio rários do biógrafo modelar de Dom necessário do cardeal Arcoverde, pois as Viçoso, mesmo que para isso, injusta- invejas e os preconceitos raciais eram mente, tenha denegrido a figura res- bem firmes, para que não pudessem per- peitável de Dom Aquino Correia, que turbar o antiste negro que se tornou ar- escreveu um livro de muita empáfia hu- cebispo. Quando fez o discurso de posse mana: Uma flor do clero cuiabano. da Academia Brasileira de Letras, não Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 153

se esqueceu de relembrar a origem dos ou num Joaquim Caetano. Ironia da vida, pais negros e ex-escravos, admirado de que às vezes dá asa para quem não sabe que, depois desse trajeto tão acidentado, voar, no momento oportuno. agora fosse galgar os umbrais do Petit Trianon, em altos desígnios do Altíssimo. Que discurso belo, quando recorda os 17 DE SETEMBRO - No seu antecedentes de sua cadeira acadêmica, discurso de posse, com que extrema ele- relembrando Alcindo Guanabara, que foi gância de estilo fala da Arte da Palavra, ferrenho lutador, dos prélios e debates no poder persuasivo do jornalista, na mis- jornalísticos, um maçom convicto e de- são sagrada daquele que empunha da nodado, que deixou chispas de gênio nos pena, diariamente, nos grandes periódi- artigos de lutas pelo país e pela sua pá- cos e hebdomadários, para esclarecer a tria, em escritos de grande valor formal turba, defender os interesses do e conteúdo social. Relembra Joaquim populacho, alertar os governos nos seus Caetano que foi o antecessor, com Ale- desmandos e cegueiras administrativas, xandre de Gusmão, de estudiosos e polí- sempre com a eficiência ou capacidade ticos que tentaram primeiramente fixar dos dons éticos e culturais com que a os limites de nossas fronteiras geográfi- Providência dotou todo aquele que é se- cas. Caetano, em O Oyapock e o Ama- nhor e soberano da pena que maneja e zonas, já prepara o caminho para estas escreve. Suas Cartas pastorais, saídas intrincadas questões de fronteiras do Bra- em 1923, transcendem o limitado tema sil, para o barão do Rio Branco. Enquan- de fé e penitência para atingir a culmi- to o barão se viu vitorioso em todas as nância dos assuntos sociais que interes- batalhas diplomáticas que seu gênio en- sam não só à Igreja e fiéis, mas ao povo cetou, com bravura e capacidade, Cae- sofredor e espoliado que tem nesses re- tano, em seu livro que D. Pedro II dizia latos de seu Pastor um comprovante de valer um exército de 600 mil homens, tor- deu defensor e paladino, de que em qual- nou-se imortal nas letras, na cultura e na quer circunstância trágica por que a mul- política. tidão for envolvida ela terá nele um Não lhe trouxe nenhuma compen- estrênuo combatente pelos ideais que a sação monetária. Sua filha vivia até mi- melhor gente do povo encarna. seravelmente. O barão, no entanto, é o testemunho de Lima Barreto na Vida e 18 DE SETEMBRO - O Bororó morte de J.M. Gonzaga de Sá: “Ganha vem sempre a este 11º andar do Ministé- Juca a questão do Amapá, recebe dota- rio do Trabalho visitar a seção por onde ção, pensão e os filhos também”. O ba- milito esta tarefa funcional desde 1954. rão, com a sua vaidade sem limite, estu- Sempre o Bororó me traz algum verso dou bem as nossas fronteiras, mas nun- para pôr os acentos ou colocar os no- ca afirmou onde foi beber as fontes des- mes, na usual nova ortografia. Às vezes, ses estudos, que fez num Teixeira de Melo THOTH 3/ dezembro de 1997 154 Depoimentos

Bororó corrige os versos de As palmei- das madrugadas, das meretrizes, dos ras do destino, ou todo o enredo, em marinheiros, dos desclassificados, que só versos, de Maria dos Anjos, espécie de têm um pouco de ternura à noite com oratório negro com motivos de umbanda, aqueles seres marginalizados que procu- que Radamés Gnatelli orquestrou com ram um pouco de amor, com aqueles ho- rara felicidade de maestro consumado, e mens que habitam as hospedarias escu- o ator Milton Gonçalves foi o solista, com sas, as casas de cômodos da Rua da a sua dicção brilhante ao declamar um Misericórdia, Lapa, Frei Caneca, todas texto de grande beleza em que o mal é as ruas escuras pululantes de cafetões, vencido pelo bem, os orixás de luzes da veados, pivetes, marafonas, viciados, to- Aruanda derrotando os elementos de xicômanos e farândulas-suspeitas que baixo astral das trevas da noite. Quase marcaram encontro com a polícia. Lima todos os livros do Bororó eu tive a honra Barreto foi impiedoso com esse grande de manuseá-los, antes deles serem escritor e personalidade humana. Põe um mimeografados. Refiro-me ao Café Rio personagem à clef, nas Recordações do Branco, Gente da madrugada ou O escrivão Isaías Caminha, quando nos entardecer saudoso dos meus vinte anos, pinta uma certa pessoa que só era vista que é um livro de poemas em que retrata pelo baixo mundo e meretrício do Rio toda a sua puerícia, na Gávea, relembrando antigo, ou visto saindo com um marinhei- vultos inesquecíveis que se foram, como ro ou homem de gestos suspeitos, indo Ronald de Carvalho, Visconde de Ouro para um matagal ou mictório de um des- Preto, Lima Campos, Vinicius de Moraes, ses cafés famosos da Mem de Sá, Mar- relembrando dos seus saraus, quermesses, quês de Pombal, ou estação da das serestas, do início do Clube Botafogo, Leopoldina e Central. João do Rio teve a que começou num jogo de simples pelada, coragem de se assumir naquilo que era a da Rua Conde de Irajá, até se transformar essência de sua personalidade. Raimundo no poderoso clube de futebol que é o Magalhães Júnior descreve esse porme- Botafogo de hoje. O memorialista podero- nor de sua vida, deslumbrado pela estéti- so que é Bororó perpassa em todos esses ca masculina, com muita finura e tato, livros de raro poder evocativo e fonte se- em A vida vertiginosa de João do Rio, gura para se conhecer a verdadeira histó- pois o nosso maior cronista foi muito ata- ria do nosso Rio. cado por tantos invejosos e covardes jor- nalistas do seu tempo, que não perdoa- ram tanta ousadia num escritor sempre 19 DE SETEMBRO - Se João bafejado pelo êxito, amigo de banqueiros do Rio fosse vivo, estaria com 100 anos e de todos os expoentes da colônia por- e veria então uma cidade diferente da- tuguesa. Tudo que saiu de sua pena, A quela que ele conheceu e amou. Ele que alma encantadora das ruas, Dentro da foi o primeiro a abordar o submundo de noite, O bebê de tarlatana rosa, Reli- nosso bas fond, esvurmando o universo giões do Rio, A bela madame Vargas, Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 155

Corrrespondência de uma estação de 20 DE SETEMBRO - Veio pa- cura, os volumes sobre o fado e Portu- rar em minhas mãos o volume de Inter- gal, o seu tão discutido inquérito literário, nato, que Paulo Heckel Filho ofertou a que ele fez entrevistando os maiores es- meu dileto amigo, o inesquecível Jorge critores do tempo, em tudo João do Rio de Lima. Para que esse romance, um dos provou ser um repórter consumado, um primeiros a abordar o amor maldito entre observador arguto dos fatos mais inte- homens, pudesse chegar até mim, deve ressantes do nosso Rio, dando notícias ter percorrido uma trajetória estranha e de todos os acontecimentos num estilo inconcebível. Do mesmo modo também ágil, nervoso e de tanta modernidade. A aquiri, num sebo, a Prisioneira da noi- cidade anteontem lhe fez uma homena- te, de Henriqueta Lisboa, que a insigne gem calorosa, colocando um ator de tea- poetisa mineira ofereceu ao simpático tro personalizando o imortal João do Rio, acadêmico Núcio Leão. Muitas dessas percorrendo as ruas do Centro carioca, obras nem foram manuseadas pelos des- com veículos do início do século, segui- tinatários e os livros foram vendidos aos dos de muitos artistas vestidos com a sebos da cidade por um preço irrisório e indumentária das peças do cronista, como humilhante. Assim aconteceu com a bi- Que pena ser só ladrão e A bela blioteca de Alvaro Moreyra, com a do madame Vargas, parando em cada es- crítico Eloy Pontes, em que serviam li- quina da Lapa, Praça 15, Avenida Rio vros fechados, que nem foram abertos Branco, Praça da República, Central do pelo analista, alguns com poucas páginas Brasil, declamando os trechos de maior realmente manuseadas. A minha biblio- atualidade de suas crônicas, com o po- teca não quero que tenha destino igual. vão reagindo nesses colóquios das ruas, Deixo, no testamento, que o apartamen- com a multidão assomando às janelas dos to em que moro seja transformado num sobrados e edifícios, e enviando para o centro de estudos, principalmente dos ar milhões de rodelas de papel picado, problemas afro-brasileiros, com os 4 mil com populares aplaudindo os artistas ca- livros servindo de consulta aos estudio- racterizados, interrompendo a represen- sos ou para os alunos pobres, que não tação principalmente do ator que, ao per- podem comprar os compêndios indica- sonificar João do Rio, disse, no final do dos pelo professor. Biblioteca tem de ser- seu diálogo: “Estás muito diferente do Rio vir a uma coletividade, como aconteceu que eu conheci, há séculos. Pode-se di- com a do mestre Afrânio Coutinho, que zer que és, agora, uma outra cidade, com ele doou a uma universidade, transmitin- seus problemas, suas angústias, tristezas do a oficina de seu saber a todo um gru- e, sobretudo, seu indefectível senso de po de jovens sôfregos de cultura e apren- humor, ao gozar todos os ridículos da po- dizagem. Pena que a biblioteca de lítica, todos os azares da vida e gozando Agripino Grieco, rica e valiosa, os seus as coisas mais trágicas, com um riso zom- parentes insensíveis a tenham vendido beteiro e vingador.” para uma universidade de Brasília. De- THOTH 3/ dezembro de 1997 156 Depoimentos

veria permanecer no Méier, à Rua 1954, em que nos transmite em suas con- Aristides Caire, onde o nosso maior ana- fissões angustiantes todas as nuances lista passou quase toda a sua vida, con- que precederam a criação de Leviathan, templando os arbois eternamente verdes Sud, Adrienne Mesurat e Meia-noite, da praça principal, perto da estação, ven- povoados de personagens sombrios, mis- do-se no centro o coreto por onde resso- teriosos e que têm medo de viver à aram as líricas retretas do bairro, perdi- luz do sol, pois a noite e a madrugada dos no jardim os bustos de Orlando Silva, melhor servem ao mundo de pânico, medo o cantor da multidão, o do barão do Rio e sobressalto que eles povoam, com o Branco, a herma oferecida a mestre medo das criaturas alienadas e malditas. Grieco, que recentemente colocaram na O suplício de encontrar a expressão pró- praça que tem o seu nome, para os lados pria, a dor recalcada de não achar o léxi- do Cinema Imperator. Esse bairro me é co adequado, da imaginação ficar muito caro, porque em meio à sua beleza estancada, não sair no momento preciso bucólica, de bairro culto, com suas fa- e o romancista sentir-se frustrado, como mosas feiras de livros, ostenta os seus um eunuco, irreparável do pensamento edifícios suntuosos, suas lojas luminosas, fanado. seus cinemas vistosos, o Hospital Salga- do Filho, isto sem falar naquele viaduto que percorre a estação, acima de sua 22 DE SETEMBRO - No meu praça, a que o instinto poético dos seus caderno de existência banal, sem nenhum moradores deu o nome de Rua Castro motivo para parar a face do mundo, é Alves. Meu amado poeta Van Jafa ali Julien Green que me acode, então, quan- curtiu todas as gamas de seu espírito es- do este tempo escurso, de nuvens tem- tético, escrevendo Ronda dos teus pestuosas, explode numa tempestade de olhos. Nelson Rodrigues tinha o Méier relâmpagos e trovões que sacodem vio- em alta conta, sempre a relembrá-lo nas lentamente o espaço celeste. Ventania suas crônicas lampejantes de malícia e forte, bátegas que sacodem os vidros das mistério. Acaso, em muitas madrugadas janelas, como espíritos das trevas que- de sombra, meu Lima Barreto ali não foi rendo comunicar-se conosco. “No mo- visto, para os lados de Todos os Santos, mento, muitas coisas me separam da Igre- cambaleando em eterno estado etílico, ja, para que eu possa me considerar ca- junto de Catulo da Paixão Cearense e tólico, mas não teria espírito de mesclar outros chorões e notívagos que fizeram estas dificuldades espirituais a um roman- da alta noite o seu universo de encanta- ce. Mesmo que eu fosse católico, me mento e penitenciação? pareceria horrível o título de romancista católico.” Ao revidar os ataques que os contemporâneos fazem à honra dos au- 21 DE SETEMBRO - A estu- tores, se eles são ateus ou cristãos, as- pefação estética que se apossa da gente sim Green revela a reação inesperadas ao ler o Journal, de Julien Green - 1928- Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 157

de André Gide: “Isto não tem para os dinheiro, que o leva a uma miséria se- vivos senão uma importância relativa, cular, sem poder a voz erguer num pro- porém significativa para aqueles mortos, testo solene e justiceiro. Daí é que a que não podem se defender.” Reparem, frase famosa de Maurice Maeterlinck agora, neste trecho de profunda análise expressa bem este instante desespe- psicológica sobre o grande romancista de rado dos humilhados e ofendidos de O discípulo: “Vi Bourget. Ele me pare- todas as nações: “Se eu fosse Deus, cia tão velho que era impossível lhe falar, eu teria piedade do coração dos ho- como se dirige a todo o mundo e sua ida- mens” (“Si j’étais Dieu, j’aurais pitié de faz dele uma espécie de estranho en- du coeur des hommes”). tre os homens. Ele me disse algumas palavras, com uma voz um pouco confu- sa, mas com um tom de polidez do qual 24 DE SETEMBRO - O formal já perdemos o hábito, a polidez de outro de Julien Green ainda me dá um pouco século.” Julien Green comprova sua fal- de alento e ternura na solidão deste apar- ta de piedade cristã ao falar, amargamen- tamento gélido de Bento Ribeiro: “Ao te, sobre o autor de Demônio do meio- chegar, Cocteau nos mostra um passari- dia e Hilda Campbell: “Sem dúvida, ele nho doente, que ele encontrou nos Cam- sobreviveu a seu renome, o que é sem- pos Elísios. Colette o apanha, o examina pre melancólico, mas sua surdez o impe- e vai acariciar-lhe o pescoço, no jardim de de ouvir o silêncio que se faz em tor- fronteiro.” no de sua obra.” Ao ler Cartas e Madame Bovary, de Flaubert, Julien Green fica surpreen- dido na presença de um estilo algumas 23 DE SETEMBRO - Quando vezes pesado e de outras feitas se abrem os jornais e se vê o mundo, desconcertante. “Mas todas estas frases como se destruindo em escombros. de sentido amplo têm um som admirável, Cada temporal que passa pela cidade, um som de uma coisa plena e sólida. E, derrubando as casas e casebres dos portanto, qual é o estilo que prenuncia- morros, quando revê, como na Polônia, vam as cartas? Um estilo que rugirá, di- todo um povo se levantando contra a zia Flaubert.” opressão de um regime forte e sem esperança. É preciso ser de pedra para não sentir o coração batendo em face 25 DE SETEMBRO - Havia me dos miseráveis que soçobraram sob mudado, recentemente, para Bento Ri- pedras aluídas dos morros, crianças ex- beiro e ainda não me havia familiarizado postas à miséria e orfandade, negros com suas ruas tranqüilas, com casas caçados como criminosos nos bairros rodeadas de jamelões, graviolas, frutas- racistas de Londres, a luta do povo em de-conde, mangueiras, sem falar em face do baixo poder aquisitivo de seu romanzeiros em flor. Isto em qualquer THOTH 3/ dezembro de 1997 158 Depoimentos

casinha da Divinópolis, Pacheco da Ro- ma de Eduardo Souto, autor por quem cha e Tenente Hauer. Lá no fim da Rua nutro uma paixão musical só superada, Picuí, onde ela quase se entrecruza com primeiro, por Ernesto Nazareth, depois o Largo do Sapê, há de haver uns cinco por Anacleto de Medeiros e Sinhô. Sei, anos, uma residência amarela que os como afirmou Mozart Araújo, num dia jambeiros ensombravam, no verão, pelo de ovo atravessado, que Eduardo Souto cair da tarde, vinha daquela moradia cer- foi muito comercial e assinou certas mú- cada de um muro verde, encimado por sicas aquém do seu talento. Tolice do cacos de vidro, o som dolente de um Mozart, pois tudo que ouvi do autor das bandolim tristonho, entoando a “Evoca- “Nuvens”, “Despertar da montanha”, ção” de Eduardo Souto. “Mágoas”, “Do sorriso das mulheres bro- tam flores” ou “Verão” e “Primavera” é Isso me fez transportar para um da mais alta harmonia musical, um estilo tempo já muito distante, em que eu mo- elegante e refinado e uma delicadeza rava à Rua 2 de Dezembro, lá no temática realmente admirável. O que Flamengo, onde, com meu gramofone de me fazia parar diante da casinha ama- boca, tocada essa valsa sentimental, por rela era sentir que a melodia que o vento meio do bandolim mágico do Jacob. Era me trazia do bandolim sonoroso só po- estudante, lecionava para muitos jovens dia estar sendo entoada por uma pes- esperançosos, estava com a vida plena soa de sensibilidade aguçada, um gos- de sonhos e ilusões. Depois, muitos sóis to seleto, em manejar com tanta graça e anos se passaram, o tempo começou a e harmonia as cordas prodigiosas do cavar suas ruínas devastadoras no meu bandolim. Os transeuntes já até caço- rosto, tudo salpicando de rugas vorazes avam de mim, de ali ficar parado em e pés-de-galinha aniquiladores. O desen- outros dias, sempre à mesma hora da canto começou a povoar meu coração. tarde, com cigarras rebentando de can- Foi quando eu me mudei para a Lapa, tar nas amendoeiras, deixando cair as depois Laranjeiras, Cruz Vermelha e mais folhas amarelecidas. tarde, para minha felicidade, peguei este apartamento pequeno e dei tanta signifi- – Como pode este homem ficar cação a minha vida. Pois bem, Bento tanto tempo ouvindo esta musiquinha Ribeiro me remoçou, me fez reconciliar- tão chinfrim? me com o mundo e as criaturas. Quando – Falta do que fazer, gente. Nós passava por aquele local, onde a poesia é que não podemos perder nosso tem- agora fez o seu tugúrio, é que as cordas po, temos que trabalhar, para que a vibrantes daquele violino vieram vibrar fome não nos traga surpresa. com toda a minha sensibilidade. Quantos dias seguidos ficava comovido, a ouvir Um dia, como estava muito co- aquele bandolim choroso, dando toda uma movido, com lágrimas nos olhos plenos magnífica interpretação de uma obra-pri- de sofrimento e sonho, indaguei a um Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 159

preto, de roupas simples e com uma lábios a tremerem, os olhos abertos arruda atrás da orelha: como se visse uma visão terrível, que nenhum de nós percebia. Aí chamei o – O senhor me poderia dizer, por Dr. Lucas. Ele recomendou imediata- favor, quem é a pessoa que toca um mente o sanatório do Dr. Eiras, lá em bandolim com tanta delicadeza e per- Botafogo, onde são levados aqueles do- feição? entes mentais que talvez sejam cura- – Nada te posso informar, dos ou, quando muito, vão pra lá pra moço. Já há muitos anos que ela azu- não voltarem nunca mais. crina os ouvidos das pessoas da rua – Pobrezinha. Coitada da Ercília. com esta mesma musiquinha, que não Que fim mais triste para uma moça tão varia de repertório, sempre no mesmo bonita e sensível. Era preferível a morte tom enjoativo. à reclusão num manicômio. Fiquei cismado, a olhar a casi- nha entre árvores, penalizado por não conhecer o exímio bandolinista. Mas Acho que Bento Ribeiro com isso uma noite, não pude passar ali pela tar- perdeu um pouco do seu perfume lírico, de, devido a um compromisso sério na da sua grandeza humana, quando o cidade - uma noite - já seriam umas bandolim de Ercília emudeceu. Para mim, sete horas da noite, ali senti uma aglo- uma parte mais bela e sensível do meu meração fora do comum em frente à coração estancou. E nunca mais ouvi to- casa do bandolim mágico. Mulheres em car, com tanta maviosidade estilística, a gestos de mistério e apreensão assim “Evocação” de Eduardo Souto. O mun- diziam a uns homens circunspectos, que do iria parar com tanta preguiça de um fitavam pessoas que saíam e entravam velho solitário? Acho que tanto Bento Ri- na casa misteriosa: beiro como o ancião esclerosado que as- sina estas linhas nada perderam quando – Tinha que parar com o levaram a lirial Ercília para o hospício dos bandolim. Foi um custo tomar o instru- loucos sem cura... mento de suas mãos. Ela chorou feito uma louca, mas tivemos que tomar ele dela. 26 DE SETEMBRO - Uma pla- – Coitada. Com tantos anos imó- téia assanhada, diante de um espetáculo vel, sem poder dar um passo, com toda no Municipal, com assobios e vaias, de aquela beleza fanada se esvanecendo cainçalha atiçada e estumada pela burri- dentro de casa, sem nenhuma ilusão a ce em flor, Vestido de Noiva, de Nelson respeito do amor, era a única maneira Rodrigues, conseguiu atrair todas as iras da mocinha se distrair. e reações de uma platéia não acostuma- da a inovações estéticas. Quando as se- – Foi então que teve o primeiro qüências do presente se alternando com ataque... caiu pelo chão desmaiada, os THOTH 3/ dezembro de 1997 160 Depoimentos

presente, o estranho diálogo de Alaíde muitas vezes, aquele frisson dionisíaco com Madame Clessi. Alaíde: - Você foi da tragédia grega: “Misael (sem voz): - apunhalada por um colegial; Clessy: - Assassina! (Desesperado) Mas é menti- Quer dizer que Lúcia e a mulher do véu ra! Se tivesses matado eu saberia, todos são a mesma pessoa? Alaíde: Um me- saberiam... Eu matei e toda a cidade nino de 17 anos matou você. 27 de no- sabe... Não havia ninguém espiando... Só vembro de 1905. Até a data guardei.” A minha mãe, que não me denunciaria... E revolução dos cenários de Santa Rosa, teu crime? Alguém conhece o teu cri- da direção de Ziembinski e do texto fora me? Tua mãe? Paulo?” O grito interior de série de Nelson Rodrigues, o drama- de Moema é outro belo excerto dessa turgo maior. Depois foi a vez do Álbum tragédia a que eu assisti, presa do mais de família, que a censura tentou tosar e belo encantamento: “ - Procura em toda mutilar de vários modos, mas não pôde a casa, nos espelhos também... Tuas fi- mutilar a sua artística beleza: “Jonas: - lhas não estarão em lugar nenhum. Nem Escuta. Ouve o que eu vou te dizer. Se a vivas, nem mortas... Não existem nem gente tiver uma filha eu ponho o nome os retratos, que eu destruí; nem as rou- de Glória; Dona Senhorinha: - Outra pas... queimei a memória delas... Sabes mulher? Não! Não quero! Jonas: - Se ainda como eram? Tu te lembras dos você não quiser eu mato você, aqui mes- olhos, dos cabelos?” Com Valsa nº 6, mo! Mato!” Esse dramaturgo que eu tanto Nelson Rodrigues atinge o clímax da amo, que escreveu a primeira peça com dramaturgia universal, ao evocar o es- personagens pretos para o Teatro Expe- pectro de uma moça de branco que, no rimental do Negro, O anjo negro, exi- piano, vai tocando a valsa de Chopin e gindo que não se pintassem com másca- relembrando episódios de sua vida pas- ra escura os atores brancos, esse escri- sada. Alguém comenta, em certo trecho, tor que tanto tem defendido a minha raça de como esse espírito sutil foi morto em nos seus escritos que são verdadeiros sua vida material e intensa: “Não havia sacos de espanto e inteligência, provo- mais ninguém na sala. Só os dois. Os dois, cou mais o farisaísmo e a hipocrisia de sim. A vítima ia ao seu primeiro baile. uma sociedade pseudomoralista com a Tinha um vestido branco, de lantejoulas Senhora dos afogados, com seu prateadas, véu nos ombros... E parece dramatismo intenso, de tragédia grega: que teve um mau pressentimento, por- Dona Eduarda: - Gostaria que minha fi- que...” O vulto misterioso continua a es- lha fosse tão chorada quando esta pros- tranha narração da mais bela e poética tituta!” O monólogo belíssimo de Misael das peças do dramaturgo carioca: “O as- irritou toda a platéia insensível que assis- sassino mergulhou o punhal de prata nas tia à peça no Teatro Ginástico, longe da costas da moça. Mesmo ferida, a vítima profundeza dos diálogos, da vanguarda quis continuar tocando e - Gritou? - gri- do enredo desconcertante e de um texto tou. Sei. Mas não deu muita confiança à que não roçava a vulgaridade, atingindo, morte, porque ia tocando mais... Porém Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 161

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Nelson Rodrigues, na época das peças mencionadas no texto, a década 1940 THOTH 3/ dezembro de 1997 162 Depoimentos Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 163

a cabeça desabou sobre o teclado. Quan- 28 DE SETEMBRO - Onde do apareceu gente, Sônia já estava mor- quer que estejas, Kim de Oliveira, hás de ta. (Grita) Sônia! (Baixo) Sônia, disse- lembrar que um dia fomos muito amigos ram Sônia? (Cochicho) Sônia, sim, como e que freqüentavas o meu quartinho po- não? Aquela menina. Uma que tocava bre da Rua 2 de Dezembro, junto do Santa bem e sabia francês. Natural. Estudou Rosa, do Massinha, do Roberto, que tan- nos melhores colégios.” Para finalizar o to amavas, e do nosso Van Jafa, que nos comentário sobre essa peça tão lírica e deixou tão cedo para ir habitar lá longe, passional: “- Vamos espiar, vamos? (Cru- junto de suas irmãs estrelas. Tinhas vin- el) Está ali, deitada, a menina que iludia a do de São Paulo e aqui publicaras o tão todos. (Como se rezasse) Parecia uma belo livro de poemas Rua de postes ca- jovem santa, branca e sem mácula, tão ídos. A Van Java escreves te este “Po- frágil e tão fina. Comadre: - Era boa de- ema”, doloroso como a vida: mais para este mundo. (Hierática) Vai- te! Agora Paulo está puro de ti. E eu que- A dor que nos toma ria que ninguém te visse mais. Nem as Levando pra baixo flores do caminho. Que teu perfil de morta O amor que nos pega passe por entre lírios cegos! (Numa mal- Levando pra cima. dição maior) E onde quer que estejas, odiarás tua lancinante forma terrena.” E sempre voltamos Depois de várias décadas desde que vi Ao plano anterior Valsa nº 6, no Teatro Serrador, relembro Feridos, marcados, cansados. com enlevo o encanto da interpretação de Dulce Rodrigues, como Sônia, Para mim, que não merecia tanta irrepreensivelmente dirigida por Madame honra assim, escreveste o mais belo po- Morineau. ema do livro, o “Poema da noite”, em que há versos que expressam bem o po- eta altamente emotivo que foi Kim de 27 DE SETEMBRO - Não vou Oliveira. dizer com tristeza, como o Walmir Ayala, no seu Diário I, o que ele fez de sua O automóvel atropelou um velho vida, nestes anos todos, em prol das pes- O uivo da ambulância soas que necessitassem do seu apoio, do É mais triste nas trevas seu amor, do seu carinho. Meu coração, A valsa é música linda. eu o reparti a todas as criaturas que pre- Os olhos do gato cisavam de afeto, fiz o que pude para Brilham acesos no preto minorar a dor alheia. Se fiz alguém cho- Entrego meu rosto rar ou sofrer, entrego este pecado Ao vento frio da noite irreparável a Deus, que nos vê e elimina, lá do céu inalcançável e distante. THOTH 3/ dezembro de 1997 164 Depoimentos

O tempo foi passando e o destino que eu o ajudarei em tudo que for preci- mudou por completo os nossos destinos. so. Você é um amigo dedicado e fiel. Em Nunca mais pude contemplar o teu rosto minha doença, você não me deixou um mongol, de olhos oblíquos, e a face sem- instante sequer. Quando minha diabete pre escancarada para a vida, para o amor mal me deixava andar e locomover-me e para a beleza. para qualquer lugar que quisesse, você me apoiou, muitas vezes, nos seus om- bros, amparando-me com carinho e cui- 29 DE SETEMBRO - Henrique dado, como um filho que tivesse tanta que não vinha, com aquele seu rosto ternura por este ancião que tem idade de impando de alegria juvenil. Tornava-se seu seu pai. sério, de cara fechada, entregue a um – Não fiz mais do que minha obri- mutismo inexplicável. Chegava no meu gação. Posso dizer que o senhor está fa- apartamento, cumprimentava-me e ia zendo por mim o que papai faria se esti- assentar-se lá no canto da sala, e ficava vesse vivo! A todos os meus amigos e folheando os jornais, entregue a uma in- pessoas que me conhecem, quando te- quietação que me intrigava. Pensava: nho de vir à sua casa, vou logo dizendo “Henrique é muito jovem para mergulhar com o maior orgulho: “Estou indo encon- em cogitações muito aquém de sua ida- trar-me com o padrinho.” Sim, com o de de rapaz descuidado e de tempera- padrinho que sempre me recebe, com mento alegre.” Olhou-me, então, o meu toda a consideração possível, de quem rosto apreensivo, dizendo: sempre encontro uma acolhida paternal – Estou ficando preocupado com e compreensiva, onde recebo os mais a situação lá em casa. A pensão que pa- sensatos conselhos de minha vida, onde pai deixou à minha mãe é bem insignifi- ouço as orientações seguras para a vida cante. As despesas estão aumentando e imensa que vou seguir, e onde sei que eu mal posso ajudar no sustento da casa, terei o apoio que sempre esperamos de pois que somente estudo o curso clássi- um ente muito amado, que nos ampara e co, sem ter trabalho algum. segura, se houver uma queda – O que você resolveu, então? imprevisível, e que nos consola e eleva o nosso ânimo, quando uma queda brusca – Procurar trabalho. Até o fim faz oscilar, por momentos, a nossa cren- deste mês vou buscar o meu certificado ça num futuro promissor e mais seguro. militar, pois agora tudo quanto é firma, escritório ou casas comercial que nos em- – O que você não pode é desani- prega vai logo pedindo a carteira de re- mar. Lutarei com todas as forças que servista, de identidade e, em certos seto- Deus me deu para que você arranje uma res, exigem até o título de eleitor. colocação condigna à sua cultura e ta- lento. – Pode ficar sossegado, Henrique, Diário de um negro atuante Ironides Rodrigues 165

– É o que anseia o meu coração, Henrique cumpriu o que prome- quando vejo mamãe mal podendo andar, tera, lutando para tirar todos os docu- com aquele defeito físico que a faz man- mentos exigidos para os vínculos car nos passos incertos. Quero ganhar o empregatícios, e agora, mais confiante suficiente para custear meus estudos, dar na vida, com sorriso mais bonachão e um certo conforto à mamãe, comprar as pleno da mais pura letícia, Henrique me minhas roupas, ter dinheiro para o cine- rompe, neste Natal chuvoso e de nu- ma, festas e tudo aquilo que faz o gáudio vens sombrias, ameaçando fortes tem- da gente jovem. O que me assusta, tam- porais. Trazia um forte resfriado, mas bém, é saber que a casa em que moro, estava mais corado e seus olhos relu- na Pacheco da Rocha, há mais de 15 anos, ziam uma indizível satisfação por tra- já foi reclamada pela senhoria, não sei se balhar com um advogado tão humano para uso de gente da família ou para au- e paternal como Dr. Dacle, companhei- mento exorbitante de aluguel. Encontrar ro de bancos acadêmicos que viveu outra moradia, com o preço módico que anos a fio em meu apartamento de ali pagamos atualmente, vai ser coisa Bento Ribeiro, negro maravilhoso, pa- muito difícil. O jeito é encontrar um em- ladino notório que, junto a mim, sem- prego logo, a fim de não deixar mamãe pre pelejamos a favor da eterna causa atemorizada com a nossa situação. da independência cultural e econômi- ca da gente negra. THOTH 3/ dezembro de 1997 166 Depoimentos Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 167

Palestra proferida na Biblioteca Nacional de Angola, em Luanda, a 20 de abril de Aspectos da 1989, por ocasião da visita de Abdias Nascimento a esse país, na qualidade de consultor da UNESCO, com o objetivo de experiência auxiliar na formação do teatro angolano. afro-brasileira Quero que este seja um encontro informal, mais um diálogo entre irmãos do que uma palestra dirigida à platéia. Por isso, não pretendo apresentar aqui um texto pronto e acabado dentro do rigor acadêmico. Minha intenção é de conversar sobre várias dimensões da experiência afro-brasileira, registrando alguns fatos e aspectos importantes dentro do ponto de vista da nossa comunidade. Espero que, após essa apresentação, o diálogo vá fornecer caminhos de maior esclarecimento. Abdias Nascimento Para começar do princípio, é necessário mencionar o fato geralmente esquecido ou subestimado da presença THOTH 2/ agosto de 1997 168 Depoimentos

de africanos nas Américas antes da Entre os pesquisadores que mais chamada “descoberta” de Cristóvão se destacam nesse ramo do Colombo. Há uma série de pesquisas e conhecimento estão Alexander von estudos que não deixam dúvidas a respeito Wuthenau, Frederick Petersen, Harold desse acontecimento histórico. Análises da Lawrence e, principalmente, Ivan Van arte, dos artefatos e da arqueologia pré- Sertima com seu livro pioneiro (1976), colombianos mostram que, séculos antes reunindo dados dos vários campos dos europeus, os africanos imprimiram na estudados numa tese histórica intitulada face da América, de forma inapagável, as Eles vieram antes de Colombo, rica em marcas africanas em artefatos tão antigos detalhe de documentação e fatos. como de 600 anos antes de Cristo. A Certamente, as afirmações e começar do México, cujas civilizações conclusões desses estudiosos de olmeca, tolteca, asteca e maia, bem como a inca, no Peru, revelam um nenhuma forma diminuem o valor e a relacionamento íntimo e regular com os capacidade dos artistas e construtores povos da África: marinheiros, navegadores, indígenas das notáveis culturas pré- comerciantes; homens e mulheres cultos colombianas nas Américas. Mas se que desempenharam um papel importante comprova o liame existente entre o na vida e nos tempos antigos da América, México, a Guatemala, a Colômbia e, conforme o documentado estudo feito principalmente, o Peru pré-colombianos, por Elisa Larkin Nascimento em seu livro por exemplo, nas suas técnicas de Pan-Africanismo na América do Sul mumificação, que são iguais às do Egito (1981; 109-119). Baseando-se em negro da Antigüidade. A história oral de extensa bibliografia, a autora nos informa origem maia diz que os primeiros que: habitantes do México eram negros, e se Em San Agustín e Tierradentro (no assinala a identidade entre várias interior sul da Colômbia) os traços, deidades do submundo egípcio e do os símbolos, as técnicas artísticas e panteão olmeca, similitudes que funerárias, bem como os caracteres ultrapassam o nível da coincidência. somáticos africanos se evidenciam Ademais, o México, o Egito e o Peru freqüentemente nos túmulos, nas antigos compartilham a mesma palavra, estátuas e nas urnas funerárias das Ra, para designar o sol, e os hieróglifos culturas indígenas pré-colombianas. mexicanos e egípcios para essa palavra Mesmo em 800 a/C., nos objetos são iguais. Esses autores afirmam que a de terracota da Mesoamérica primordial, comparação das realizações pré- nas estátuas e nos apinés de pedra e colombianas com as negro-egípcias revela murais do período pré-clássico e clássico, uma evidente continuidade. Inclusive antes e depois da hegemonia tolteca, essa consideram as famosas pirâmides- influência africana se revela. escadas maias e astecas de Teotihuacán, Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 169

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(foto 27) que estava na Thoth 2

Escultura em pedra de uma cabeça africana da América pré-colombiana. Olmeca, período clássico. Vera Cruz, México, cerca de 800-400 anos a.C. Foto reproduzida do livro de Ivan Van Sertima They came before Columbus (Nova York: Random House, 1976)

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Escultura pré-colombiana em pedra, datada de aproximadamente 900 a.C., em San Agustín, Colômbia THOTH 2/ agosto de 1997 170 Depoimentos Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 171

Tikal, Chitchén-Itzá, Uxmal, Cholula e do da diminuta elite branco-eurocentrista e Vale Chicama, no norte do Peru, como sim da estrutura básica da realidade remontando à Babilônia e ao Egito brasileira. Toda a edificação do Brasil - antigos. material e espiritual - deve-se ao africano Esta não é a oportunidade para o escravizado, em que pese aos esforços aprofundamento desse importante ponto que, no decorrer dos séculos, sempre da história cultural dos povos negro- tentou demonstrar o contrário. Isto é, africanos e afro-americanos. Meu intuito tento exibir o Brasil aos olhos do mundo foi apenas registrar, como uma espécie como um país europeu, com uma de introdução ao período escravagista “diminuta fração do seu povo de que se inicia com o desembarque de composição mestiça”, conforme chega Colombo nas ilhas que denominou de a afirmar o Ministério de Relações “Espanhola”, hoje Haiti e República Exteriores no seu livro Brasil 1966. Dominicana, a presença anterior dos Tal posição das elites dominantes africanos no chamado Novo Mundo. E marcou o processo de institucionalização presença não como “descobridores” ou nas estruturas do país de um forte “conquistadores”, mas como parceiros conteúdo racista antiafricano. E, à medida igualitários no intercâmbio de valores que o povo brasileiro crescia em número culturais, documentado nas breves e a sociedade se organizava, uma cultura referências que acabei de sumariamente de natureza discriminatória impunha descrever. sobre a maioria da população, que é de Não se pode honestamente falar origem africana, valores transplantados em cultura e arte brasileiras sem da Europa com o objetivo de erradicar imediatamente invocar os fundamentos no país a herança africana trazida pelos africanos que lhe são inerentes. Aliás, africanos escravizados e perpetuada freqüentemente se fala na “contribuição” pelos seus descendentes. dos povos africanos e suas culturas à Uma das primeiras medidas formaçõa brasileira, como se fosse um tomadas nessa linha de orientação foi enxerto num organismo já existente. aquela de, por todos os meios, apagar da Sempre protesto que o Brasil nunca lembrança do afro-brasileiro a etapa existiu sem os povos africanos, pois antes histórica do escravismo. Ou então a de de sua chegada existiam as nações tentar minimizar a perversa crueldade indígenas, e que a cultura brasileira não inerente ao sistema. Como observou existe sem a africana, pois dela é feita certa vez o incansável defensor da desde seus primeiros fundamentos. dignidade do homem negro Sebastião Portanto, não se trata de “contribuição” Rodrigues Alves: THOTH 2/ agosto de 1997 172 Depoimentos

A primeira medida do crioulos”. As chamadas ciências sociais escravagista, direta ou indiretamente, vêm construindo todo um suporte teórico era produzir o esquecimento do negro, que serve à elite brasileira como prova especialmente de seus lares, de sua irrefutável dessa generosidade não-racista. terra, de seus deuses, de sua cultura, Chegam até a se convencer de que a para transformá-lo em vil objeto de própria escravidão no Brasil foi um sistema exploração. (1977:7) benigno, generoso, não racista, e amigável Sem dúvida, simultaneamente ao para com o africano. E essa elite, de tão desaparecimento do seu passado, se convencida da verdade absoluta de tais procurou também a obnubilação de sua teorias, criou um ferrenho tabu em torno identidade original. A classe dirigente e do assunto. O negro que denuncia o seus porta-vozes teóricos - historiadores, racismo brasileiro, como sempre o fiz, é cientistas sociais, literatos, educadores, condenado ao ostracismo e rotulado de e assim por diante - têm formado uma fascista ou racista às avessas. consistente aliança que opera há séculos Para fundamentar a teoria da a teoria e a prática da exploração dos democracia racial, sempre se assinala que africanos e seus descendentes no Brasil. no Brasil não há segregação racial por E não esqueçamos que, se oficialmente lei, com placas anunciando lugares não existem hoje os escravocratas reservados para negros e para brancos. senhores de engenho, seus descendentes Sem nos referir aos exemplos dessas estão bem ativos manipulando latifúndios, práticas que existiram, sim, sobretudo no empresas industriais de vários tipos, Estado de São Paulo antes de 1945, cabe capitaneando o sistema bancário e o afirmar que o racismo não consiste mercado financeiro, mas, principalmente, apenas nesse tipo de segregação. A se colocando no papel de testas-de-ferro prática da discriminação não declarada das multinacionais que sugam em nosso resulta tão perniciosa quanto aquela país todo o resultado do trabalho do povo anunciada em placa. O caminho brasileiro brasileiro. é esse: enquanto se declara uma Certamente, é outra a idéia que sociedade anti-racista, discrimina o negro vocês estão acostumados a ver divulgada de forma humilhante na prática cotidiana pelos brasileiros. O Brasil vem da vida coletiva. O negro ocupa hoje uma propagando pelo mundo afora, há muito posição análoga à da escravidão. Se hoje tempo, uma imagem benigna de o trabalho é remunerado, ele é o menos “democracia racial” em que apresenta o remunerado e o mais desempregado. Se país como uma generosa nação de há sistema educativo, habitação, serviços brancos que não sabem o que seria médicos, ele é o que tem menos acesso. discriminar os seus “negrinhos e Especialmente, há todo um esquema para Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 173

lhe tirar a identidade própria, a Caso o negro perdesse a memória consciência histórica e cultural de seu do tráfico e da escravidão, ele se passado e origens africanas, o que leva a distanciaria cada vez mais da África e um processo de inferiorização e danos acabaria perdendo a lembrança do seu psicológicos já bem conhecidos por todos ponto de partida. E esse ponto de partida aqueles povos sujeitos à colonização é o ponto básico: quem não tem passado européia. não tem presente e nem poderá ter futuro. Evocar o tráfico, analisar cientificamente Com vistas à obliteração da a escravidão, deve constituir para os afro- memória do afro-brasileiro e à imposição brasileiros uma obrigação permanente e sobre ele de noções, conceitos e valores diária. Não é uma forma de estranhos, em nenhum nível de ensino autoflagelação, nem motivo de jamais se implantaram cursos sentimentalismo piegas. Da mesma forma sistemáticos de cultura e história que o holocausto para o povo judeu, o africanas. Quando se fala em nossas tráfico e a escravidão fazem parte escolas de História Universal, inalienável do ser total dos afro- obviamente está-se referindo à história brasileiros. Omiti-los de nossa bagagem da Europa. E as crianças negras, desde histórica será o mesmo que amputar as primeiras letras, aprendem a se nosso potencial de luta libertária, autodesprezar: não encontram nem nas desprezando as lutas e os sacrifícios dos aulas nem nos livros didáticos nada que nossos antepassados para que a nossa fale do que foram e fizeram seus raça fosse livre e sobrevivesse. antepassados, nenhuma referência à família negra, aos fundamentos africanos Como esquecer, por exemplo, na construção da nacionalidade brasileira. aqueles primeiros africanos escravizados Em contrapartida, a criança branca se que chegaram ao Brasil no início do vê retratada dignamente nos livros século XVI, africanos de origem banta, escolares, na situação oposta à da criança embarcados em São Paulo de Luanda negra, o que naturalmente cria na criança para o porto de Salvador da Bahia? Como branca um óbvio sentimento de esquecer que foram eles, aqueles bantos, superioridade. E é assim sutilmente, que lançaram, no ventre da terra virgem, atuando nos refolhos mais íntimos da as primeiras sementes de uma cultura e criança e dos adolescentes, que o racismo uma civilização que depressa se à moda brasileira vem operando há expandiria por todo um território de séculos e praticando um verdadeiro extensão continental? Como esquecer a genocídio da raça negro-africana no país. primeira república livre criada nas terras Genocídio de que têm sido também do Novo Mundo - as Américas - pelos vítimas as populações indígenas. africanos que resgataram sua liberdade THOTH 2/ agosto de 1997 174 Depoimentos

e fundaram o Quilombo dos Palmares? Engels como a Internacional Socialista De 1595 a 1696, aqueles africanos apoiaram o colonialismo, não liderados pelos bantos resistiram aos reconhecendo o caráter revolucionário holandeses, aos portugueses e aos das lutas de africanos nas Américas bandeirantes de São Paulo. Uma guerra (Haiti, São Domingos, México, Palmares) de mais de um século! O heroísmo de e na África (Samoury Touré, El Mahdi, Zumbi, seu último rei, conferiu à Cetewayo, para mencionar somente República dos Palmares a legenda de alguns exemplos). verdadeira Tróia Negra. Em Palmares As raízes desse sistema de houve uma notável experiência de prática pensamento transformador que denomino socialista: no uso útil da terra, na O Quilombismo (Nascimento, 1980) se distribuição do resultado do trabalho, na encontram em nossa própria experiência igualdade efetiva de convivência das histórica. Trata-se de uma proposta de etnias que lá se encontravam: as organização social e política da nação africanas, a indígena e a européia. brasileira que incorpora a uma visão Essa forma de organização dos socialista e democrática a dimensão da africanos para o resgate da sua liberdade convivência multirracial e o combate a e dignidade humana existiu em todo o todas as formas do racismo, recuperando território brasileiro durante os quase 400 o lado positivo da identidade histórica e anos de escravidão. Não esqueçamos que cultural africana de nosso povo. a bota invasora de Diogo Cão pisou a Agredido por todos os lados e por terra africana em 1482 e no Brasil só em todos os meios, o africano escravizado 1888 se destrói o perverso regime defendeu como pôde o que lhe restava escravagista. Foi o último país em todas de identidade humana. Para isso, ele se as Américas a abolir a escravidão. utilizou das religiões ancestrais. Mas Essa prática histórica do nesse campo, teve que enfrentar a socialismo nos quilombos constitui, para religião oficial do Estado, o catolicismo. mim, a verdadeira fonte de inspiração e A Igreja Católica, que também tirava exemplo para a formulação de um lucro financeiro com a escravidão, não sistema de pensamento e ação deu tréguas às religiões de origem verdadeiramente revolucionário e africana. Elas foram e são acusadas, até autêntico para nós. Ela não busca suas os dias de hoje, de serem cultos raízes nas formulações teóricas de fetichistas e animistas. Mas os templos origem européia que sempre ignoraram afro-brasileiros - os “terreiros”, como são nossos exemplos revolucionários conhecidos - conseguiram manter as anticoloniais. Como assinala Elisa Larkin estruturas da cultura e religião africanas Nascimento (1981:52-72), tanto Marx e com brilho e vitalidade. O sistema Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 175

africano de pensamento simbólico, de meridional africana são julgados teologia e cosmologia atualmente culturalmente menos desenvolvidos que confronta em pé de igualdade a os chamados sudaneses. Essa distorção arrogância colonizadora das chamadas tem sido denunciada, e um passo foi dado religiões cristãs: a católica e os vários para sua correção em relação ao Brasil ramos protestantes. com o recente trabalho pioneiro de Nei Lopes Bantos, malês e identidade A cultura religiosa afro-brasileira negra (1989), uma contribuição de resulta da confluência de vários sistemas fundamental importância para o africanos de filosofia e fé. Há elementos conhecimento da experiência africana no bantos, nagôs (iorubás), ewes e outros, Brasil. incluindo também influências das crenças indígenas ao território cultural brasileiro. No tempo colonial, a Igreja Sendo o chamado sincretismo com a Católica discriminava o negro do seu religião católica uma função da repressão culto. Não bastava que ele fosse batizado exercida pela Igreja contra os cultos afro- nas mesmas águas de Cristo que brasileiros, o fenômeno espontâneo, e batizavam os brancos. Daí se originam portanto mais autêntico, do sincretismo as diferentes irmandades: de Nossa religioso reside sobretudo nessa mistura Senhora do Rosário, de São Benedito, de de várias religiões africanas. Santo Elesbão, de Santa Efigênia e outras. Isso acontecia no contexto Inegavelmente, predomina no urbano, pois na zona rural os africanos contexto religioso a contribuição nagô, do eram mantidos em aglomerados de povo iorubá, originário sobretudo da região composição étnica mista, com as que hoje compreende partes da Nigéria, conseqüentes barreiras linguísticas, do Benim e do Togo. Entretanto, a religiosas e culturais dificultando-lhes a presença banta também se verifica nas comunicação. Nas cidades se religiões afro-brasileiras, como por constituíam nações que se baseavam exemplo na deusa Pomba-Gira frouxamente em critérios étnicos e (Bombomjira). Em seus Estudos afro- funcionavam mais como sociedades de brasileiros (1973), o sociólogo francês ajuda mútua, de coesão social, de prática Roger Bastide estuda detalhadamente religiosa e exercício cultural. A classe esse sincretismo e sua dimensão banta dominante se utilizava das nações como na religião afro-brasileira. expediente para criar e manter divisões A presença da cultura banta no entre os africanos, da mesma forma que Brasil tem sido subestimada por uma atualmente, para o mesmo objetivo de espécie de tradição entre os estudiosos, dividir para reinar, usa dezenas de em que os povos da região central e categorias étnicas para definir o THOTH 2/ agosto de 1997 176 Depoimentos

descendente de africano: mulato, mestiço, embora não em termos de arquivo ou moreno, moreno claro, moreno escuro, escritura fossilizada. A transmissão por mulato escuro, mulato sarará, fusco, meio da escrita fria e inerte significava cabra, bode, negro fechado, negro aço e o oposto à essência do conhecimento assim por diante. Jogam com vocábulos efetivo, adquirido pelos africanos via vazios de sentido, já que todos, no final uma relação direta, afetiva, no encontro de contas, são tratados como negros. Mas interpessoal com o fato conhecido e dificultam aquela unidade do povo afro- com as idéias contempladas. Neste brasileiro, maioria da nossa população, que ponto crucial, podemos perceber a o tornaria invencível e democraticamente dicotomia que diferencia as culturas o detentor do poder no Brasil. africanas das européias: apesar do desenvolvimento da escrita por Um dos aspectos do genocídio africanos também, a linguagem oral dos africanos no Brasil a que nos prevalece como base da comunicação referimos anteriormente está na e da transmissão cultural. A palavra destruição das línguas que eles falavam falada não é a palavra morta da escrita: no seu continente de origem. As línguas ela é, em si mesma, movimento e ação. africanas não conseguiram salvar-se do esmagamento, exceto no contexto Os griots, os akpalo, assim religioso, restritas ao próprio rito. A como os sacerdotes de Ifá, os tentativa de sua destruição representa, Babalawô, desempenhavam esses sem dúvida, mais um ato na tragédia papéis sociais e rituais de bibliotecas genocida sofrida pelos africanos e seus viventes, ou armazéns peripatéticos do descendentes em meu país. Além de saber e do conhecimento africanos. E obliterar o principal instrumento de isso por acaso acontecia porque os comunicação humana, social e cultural, africanos fossem “bárbaros”, o que já é fato muito grave, junto à “selvagens” ou “ignorantes”? Para o destruição veio a imposição da língua chauvinismo europeu, certamente. do colonizador: a língua portuguesa. Mas, para aqueles que de fato querem Com essa violência a mais, visaram saber a verdade, diremos com as palavras atingir profundamente o espírito do historiador negro norte-americano africano, apagando sua história Lerone Bennett: conservada na oralidade, e portanto Precisamos dizer para o mundo apagando sua memória. Esse é um branco que há coisas no mundo que ponto crucial na experiência afro- vocês nem sonham em sua história, brasileira, quando se leva em conta que em sua sociologia e em sua a tradição e o conhecimento eram uma filosofia. (In Ladner 1973: xiii.) realidade viva e dinâmica na África, Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 177

O historiador George G. M. Também no Brasil tem sido assim. James, confirmando as afirmações de O branco é quem tem definido o negro, a Cheikh Anta Diop, refere-se à invasão começar pela Igreja Católica, que do Egito por Alexandre Magno, que batizava compulsoriamente o negro- resultou na compilação da filosofia e africano escravizado. Depois o envolvia do conhecimento egípcios pelos num tecido cultural alienador de suas membros da escola grega de origens, a ponto de levar o negro a Aristóteles. Vejamos nas próprias extremos de ridículo. Um fato serve para palavras do historiador James: ilustrá-lo. (...) os verdadeiros autores da filosofia Ao falecer o escritor Machado de grega não foram os gregos, mas o povo Assis, o abolicionista branco Joaquim da África do Norte comumente Nabuco, que na imprensa e no parlamento chamado de egípcios; e o elogio e a tanto combateu a escravidão como honra falsamente atribuídos aos advogou o abolicionismo, escreveu uma gregos durante séculos pertencem carta a José Veríssimo, também escritor, ao povo da África do Norte e, desta porque este publicara um artigo elogioso forma, ao continente africano. a Machado de Assis e o qualificara de Conseqüentemente, esse roubo do mulato. Nesse episódio, Nabuco revela legado africano pelos gregos levou o conceito de inferioridade racial que ele a opinião mundial ao erro de que o tinha dos africanos, assim como o continente africano não deu nenhuma desprezo que a eles votava. Eis um trecho contribuição à civilização e que seu povo de sua carta: está naturalmente na retaguarda. Essa Seu artigo no Jornal está belíssimo, distorção se tornou a base do mas esta frase me causou arrepio: preconceito racial que tem afetado “Mulato, ele foi de fato um grego da todos os povos de cor. (1978:7) melhor época”. Eu não teria chamado Essas inverdades, distorções e o Machado de mulato e penso que mistificações estão sendo expostas e a nada lhe doeria mais do que essa verdade sobre o papel da África no síntese. Rogo-lhe que tire isso quando processo civilizatório universal está reduzir os artigos a páginas emergindo graças aos esforços de um permanentes. A palavra não é literária grupo de cientistas e intelectuais negros e é pejorativa, basta ver-lhe a em que se destacam Cheikh Anta Diop, etimologia. Nem sei se alguma vez ele George G. M. James, Chancellor a escreveu e que tom lhe deu. O Williams, Theophile Obenga, Ivan Van Machado para mim era um branco, e Sertima e outros. creio que por tal se tomava: quando THOTH 2/ agosto de 1997 178 Depoimentos

houvesse sangue estranho isso em lei? Nenhuma. Os milhões de ex- nada afetava a sua perfeita escravos foram apenas atirados para o característica caucásica. Eu pelo olho da rua. Não se cuidou de que precisavam de trabalho remunerado para menos só vi nele o grego. (In Bojunga, que pudessem comer, morar, sustentar a 1979: 190) família, cuidar da saúde, da educação, do Num detalhe, pelo menos, Nabuco vestuário e outras necessidades básicas. estava certo: mulato é vocábulo Muito ao contrário dessas medidas ditadas pejorativo, e a designação correta seria pela necessidade imediata e pela a palavra “afro-brasileiro”. Um negro ser consciência ética, as classes dirigentes chamado de grego é infinitamente ainda trataram de acelerar a imigração mais pejorativo. Porque sangue grego, européia para atender supostos reclamos sim, é irremediavelmente um sangue de mão-de-obra. O trabalhador europeu estranho à realidade negra ou brasileira. vinha atender a dois propósitos da política Na verdade, considerar sangue brasileira: 1) ajudar a embranquecer o estranho o sangue africano, aquele povo brasileiro, majoritariamente africano mesmo homem e mulher escravizados (Skidmore, 1976); 2) preencher os lugares que foram os únicos que trabalharam para no mercado de trabalho até então a construção do país, é algo que só a ocupados pelo africano escravizado. O mente patologicamente enferma pode africano servia como trabalhador sem fazer. Ainda mais Nabuco, que mamou remuneração; porém agora, no mercado nos seios da mulher africana: causam de trabalho pago, ele passou a ser mão- muita estranheza tais conceitos emitidos de-obra rejeitada. Até os dias de hoje, por ele. passados 100 anos da abolição, os Não é pertinente e nem pretendo, documentos do Ministério do Trabalho no espaço desta palestra, analisar assinalam a discriminação racial como pormenorizadamente a experiência dos importante fato no desemprego. E, quando africanos e seus descendentes no Brasil. um afro-brasileiro consegue um emprego, Só queremos tocar de leve alguns pontos sempre recebe salário inferior ao salário que fazem de uma população de cerca do trabalhador branco exercendo a de 80 milhões de negros uma autêntica mesma ou equivalente função. nação africana colonizada internamente Vejamos rapidamente alguns numa sociedade dita multirracial. números fornecidos pelo Instituto Ponto importante é aquele da Brasileiro de Geografia e Estatística restrição à cidadania do afro-brasileiro. (IBGE), um órgão oficial. Em 1980, os Teoricamente, o ex-escravo adquiriu a 50% mais pobres da população cidadania plena com a promulgação da economicamente ativa recebiam até um lei que aboliu a escravidão, a 13 de maio salário mínimo. Entre os brancos, de 1888. Mas quais foram as medidas somente 24% se situavam nessa faixa práticas para assegurar a eficácia dessa salarial, contra 47% dos negros. Os que Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 179

recebiam salário superior a 10 mínimos das mulheres negras. Ou seja: há uma representavam 3,72% da população hierarquia em que o dado racial prevalece economicamente ativa. Entre os brancos, sobre o do sexo. Os homens brancos essa faixa representava 8,5%, enquanto ganham mais; em seguida vêm as somente 1,5% dos negros ganhavam mulheres brancas, depois os homens tanto. No Nordeste, onde os negros negros e, em último lugar, as mulheres somam quase três vezes mais que os negras. brancos, 60% daqueles integrados na Na verdade, não existe restrição população economicamente ativa mais funesta à cidadania do que a ganham um salário mínimo ou menos. agressão econômica, via discriminação Na educação, em 1980, 35% da no trabalho, da qual o afro-brasileiro tem população maior de cinco anos de idade sido vitimado de 1888 até os dia atuais. eram analfabetos. Na população branca, Não obstante, não só essa restrição somente 25% eram analfabetos, tem atropelado a cidadania dos africanos comparados com 48% entre os negros, no Brasil. Já fizemos menção do ou seja, quase o dobro. Os brancos tinham esmagamento das línguas de origem 1,6 vez mais oportunidades de completar africana e da imposição do português. de cinco a oito anos de estudo; 2,5 vezes Aqui entra em cena mais uma vez a mais oportunidades de completar de cinco perversidade do racismo brasileiro. Antes a oito anos de estudo; 2,5 vezes mais de abolido o sistema escravista, o cidadão oportunidade de completar de nove a onze (branco, por definição), mesmo anos de estudo; e seis vezes mais analfabeto, podia exercer o direito cívico oportunidades de completar doze anos ou do voto. Abolida a escravidão, e no intuito mais de estudos. Em outras palavras: os de negar a cidadania daquele que negros já nascem com menos chances acabava de adquiri-la, a República de chegar aos estudos de segundo grau proclamada em 1889 prescreveu em lei e praticamente sem nenhuma chance de que só poderiam votar os cidadãos que atingir a universidade. soubessem ler e escrever o português. Quanto à mulher negra, a situação Tal restrição vigorou até há apenas três ainda é pior. Em 1980, em termos de anos. Somente nas eleições estaduais de distribuição de renda, temos o seguinte 1986 caiu essa restrição. quadro: entre os homens brancos, 23,4% Porém há ainda mais. O Código percebem até um salário mínimo; na Penal de 1891, o primeiro da República mesma faixa estão 43% da mulheres recém-instituída, criou a figura de brancas, 44,4% dos homens negros e contravenção penal denominada 68,9% das mulheres negras. Acima de vadiagem. O que isso queria dizer na 10 salários mínimos, temos apenas 8,5% prática? Que todo aquele sem domicílio dos homens brancos, 2,4% das mulheres certo, emprego e meio de sobrevivência brancas, 1,4% dos homens negros e 0,3% (ou seja, todo aquele que se encontrasse THOTH 2/ agosto de 1997 180 Depoimentos

nas condições do escravo recém- Mesmo pretensos cientistas, como liberto) estava sob a mira da polícia, o mulato Nina Rodrigues, que viveu nos podendo ser preso arbitrariamente e fins do século passado e começo deste, por tempo indeterminado. Uma revelavam sua colonização mental ao violência inominável endossada pela fazerem afirmações como esta: “A raça estrutura jurídica vigente no país. Uma negra no Brasil permanecerá para lei casuística, feita especialmente para sempre como a base de nossa aqueles milhões de brasileiros aos quais inferioridade como povo” (1945:28). Nina a sociedade dominante negava tudo: Rodrigues, psiquiatra que foi, estudou o emprego, moradia, alimento, agasalho, africano como um ser geneticamente educação, cuidado de saúde, tudo patológico, de conformidade com enfim. As penitenciárias, as prisões de definições científicas correntes na época. modo geral, têm na sua população Esse era também o fundamento ds idéias carcerária uma maioria negra. Como que a sociedade brasileira vinha também na prostituição as mulheres elaborando durante todo o período negras estão presentes em alta colonial. A conseqüência dessa posição porcentagem. O mesmo se pode dizer pode ser verificada no esforço da das milhões de crianças que vivem da importação de brancos para clarear a mendicância ou da delinqüência, sem face do povo, a ponto de se erigir uma lar, abandonadas à própria sorte. verdadeira ideologia do branqueamento ou da mestiçagem como política de Repito o que já afirmei diversas Estado e como compulsão social (ver vezes: a forma de destruição da raça Skidmore, 1976 e Nascimento, 1978). negra no Brasil tem sido mais eficaz Tanto as ciências sociais, com Gilberto do que nos países ostensivamente Freyre à frente, como a literatura, liderada racistas, como os Estados Unidos da por Jorge Amado, se prestaram a esse América do Norte e a África do Sul. triste papel de forças auxiliares das Porque nesses países a vítima pode classes dominantes no seu projeto de identifcar o seu inimigo e lutar contra esmagamento da população de origem ele. Já no Brasil, o inimigo mascara sua africana. Pois a isso se reduz a famosa crueldade a ponto de confundir não só miscigenação compulsória pregada como a comunidade internacional, mas até um outro evangelho pelos advogados de mesmo o próprio negro brasileiro. Não um Brasil branco com escala na se pode negar a existência de um morenidade. segmento negro que introjetou os valores da classe dominante, e que Até mesmo figuras respeitáveis pensa e atua de conformidade com os da inteligência brasileira, como o interesses dessa elite eurocentrista. cientista social e escritor Caio Prado São os assimilados ou aculturados de Jr., davam endosso a esse odioso aquém e de além-mar... racismo discriminador da sociedade Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 181

convencional brasileira. Estudando o É esse tipo de raciocínio desenvolvimento econômico do país, Caio “científico” que tem decretado a Prado divide-o em áreas geográficas: a inferioridade do trabalhador negro e as Região Norte-Nordeste (os Estados da “sensivelmente superiores” qualificações Bahia, Alagoas, Pernambuco, Maranhão do trabalhador europeu. Com tais e Sergipe), onde a presença africana é mais arrogantes e falsas noções de visível, tanto demográfica quanto superioridade em todos os níveis, a culturalmente falando; e a área Sul, que sociedade brasileira dominante elaborou abrange os Estados de São Paulo, Rio de a teoria da democracia racial. Segundo Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio essa teoria, no Brasil não há racismo, Grande do Sul, e onde o imigrante europeu é o mais visível. Eis o texto de Caio Prado Jr.: inclusive porque o povo é miscigenado, isto é, somos mestiços, o que segundo tal (...) a imigração européia constitui fator teoria impediria a existência das particularmente notável na estimulação desigualdades por causa das diferenças dos padrões culturais da população de raça. Afortunadamente, grande parte brasileira. O que tem como - a maiores dos africanos no Brasil - já comprovação fácil e imediata a grande percebeu os objetivos de mascaramento diferenciação verificada, sob esse aspecto, entre o sul e o norte do país, e dessa teoria. Já sabemos que democracia que se deve em grande senão principal racial, na prática de nossa vida diária, parte, à incorporação num caso, e quer dizer discriminação racial e esta deve ausência em outro, de apreciáveis ser sofrida quieta e solenciosamente para contingentes demográficos que se não perturbar a paz do supremacismo situavam em níveis sensivelmente branco. superiores aos da preexistente massa Por isso, não é de admirar que um da população trabalhadora do país. Gilberto Freyre tenha inventado o luso- (1966:130.) tropicalismo como apoio ao salazarismo A conclusão de Caio Prado é óbvia: na África e no Brasil. E as classes o Sul é a área “avançada”, isto é, mais dirigentes foram sensíveis a essa urbanizada, industrializada, comercializada, orientação; tanto assim que a política porque recebeu grande número de exterior do Brasil, principalmente sua imigrantes europeus. Esses imigrantes atuação nas Nações Unidas, permaneceu brancos vinham com apoio financeiro do atrelada aos interesses de Portugal Estado, enquanto a “massa preexistente” colonialista durante todo o tempo em que de mão-de-obra africana, do Norte- na Assembléia Geral se discutia o Nordeste, devido ao abandono a que foi processo de independência de Angola, relegada, se tornou um pária vegetando nas Moçambique e Guiné-Bissau. Em meu grandes extensões dos latifúndios. livro O quilombismo, analiso em detalhe THOTH 2/ agosto de 1997 182 Depoimentos

os votos do Brasil na ONU, os quais discriminam no Brasil a população negra, mereceram do historiador José Honório ainda se infiltram em vários países da Rodrigues o seguinte registro: África exibindo hipocritamente, como credencial de isenção neocolonialista, a Votamos sempre com as potências população de origem africana. Esta, ao coloniais nas Nações Unidas, contrário da imagem que tentam veicular, cedíamos a todas as pressões continua explorada e humilhada de forma portuguesas, a do governo oligárquico vil, exatamente por causa de sua de Salazar ou a da colônia, e vez por identidade original africana. outra disfarçávamos nosso alinhamento colonial com as Temos toda a certeza de que abstenções. Não tínhamos uma nossos irmãos africanos não se iludem palavra de simpatia pela liberdade com esse tipo de demagogia. Esperamos africana. (1964: 372.) que a comunicação e o intercâmbio de idéias entre nós afro-brasileiros e os Esses votos em favor do africanos da África venham a crescer e colonialismo salazarista foram votos da aprofundar-se cada vez mais. A sociedade dominante que se autoproclama comunidade afro-brasileira está disposta branca, ocidental e cristão. Porque o povo a apoiar e fazer pressão, junto ao governo afro-brasileiro, que é maioria, mas, como brasileiro, para a realização de iniciativas na África do Sul, está destituído de poder, que possam ajudar o desenvolvimento repito, o povo afro-brasileiro não foi angolano. Por outro lado, consideramos cúmplice desse episódio lamentável da de fundamental importância o política externa brasileira. Também o relacionamento e o contato direto com povo negro do Brasil jamais se associou nossos irmãos africanos. à promiscuidade dos governos do país com o governo racista da África do Sul. Axé, Angola livre! Em constantes demonstrações públicas, em insistentes e reiterados abaixo- assinados, os negros têm exigido o imediato rompimento das relações displomáticas que o Brasil ainda mantém com o governo da matança legalizada de BIBLIOGRAFIA africanos - o apartheid -, já definido pela opinião pública internacional e pela Alves, Sebastião Rodrigues (1977). ONU como crime contra a humanidade. “Somos todos iguais perante a lei”, Os negros do Brasil não estão solidários comunicação ao I Congresso de Cultura e nem apóiam essa política conivente Negra das Américas (Cáli, Colômbia, com o assassinato coletivo de africanos. 1977). Ironicamente, os próprios arquitetos Bastide, Roger (1973). Estudos afro- brasileiros dessa política externa, que brasileiros. São Paulo: Perspectiva. Aspectos da experiência afro-brasileira Abdias Nascimento 183

Bojunga, Cláudio (1978). “O brasileiro Nascimento, Abdias do (1978). O negro, 90 anos depois”, in Encontros genocídio do negro brasileiro. Rio de com a civilização brasileira I. Rio de Janeiro: Paz e Terra. (1980). Janeiro: Civilização Brasileira. – . O quilombismo. Petrópolis: Vozes. Diop, Cheikh Anta (1974). The African origin of civilization. Westport: Prado, Caio (1966). A revolução brasileira. Lawrence Hill. São Paulo: Brasilense.

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Texto escrito em 1964, em comemo- O negro desde ração ao vigésimo aniversário do Teatro Experimental do Negro. dentro Povos brancos, graças a uma con- junção de fatores históricos e naturais que não vem ao caso examinar aqui, vieram a imperar no planeta e, como seria con- seqüente, forçaram, sobre aqueles que dominam, uma concepção do mundo fei- ta à sua imagem e semelhança. Num país como o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre es- tes valores está o da brancura como sím- bolo do excelso, do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas todas as perfeições. Na cor ne- gra, ao contrário, está investida uma car- ga milenária de significados pejorativos. Em termos negros pensam-se todas as Guerreiro Ramos imperfeições. Se se reduzisse a axiologia THOTH 3/ dezembro de 1997 186 Depoimentos

do mundo ocidental a uma escala cro- são meus. Sirvo-me deles para marcar o mática, a cor negra representaria o pólo sortilégio que a cor negra evoca no espí- negativo. São infinitas as sugestões, nas rito deste escritor. Pois que se fosse bran- mais sutis modalidades, que trabalham a ca a pessoa de que se trata - Gregório consciência e a inconsciência do homem, Fortunato -, a elaboração do pensamen- desde a infância, no sentido de conside- to teria, evidentemente, tomado outras di- rar, negativamente, a cor negra. O de- reções. Se o guarda-costas fosse claro, mônio, os espíritos maus, os entes huma- as aproximações seriam muito diversas. nos ou super-humanos, quando perver- (Experimente o leitor traduzir para o sos, as criaturas e os bichos inferiores e branco o texto acima.) O comentário do malignos são, ordinariamente, represen- caso nos jornais e nas ruas se assinala tados em preto. Não têm conta as ex- de ângulos muito elucidativos da degra- pressões correntes no comércio verbal dação da cor escura. De uma revista ca- em que se inculca no espírito humano a rioca transcrevo, por exemplo, este reserva contra a cor negra. “Destino ne- excerto. “Gregório quis saber se terá uma gro”, “lista negra”, “câmbio negro”, chance, um dia, de ser acareado. Disse- “missa negra”, “alma negra”, “sonho ne- lhe eu que, na pior das hipóteses, defron- gro”, “miséria negra”, “caldo negro”, tar-se-á com o General no sumário de “asa negra” e tantos outros ditos impli- culpa, na Justiça comum. O preto pare- cam sempre algo execrável. Ainda nas ceu ficar satisfeito. Esfregou as mãos pessoas mais vigilantes contra o precon- (...). Deixei o quarto do negro e com ele ceito se surpreendem manifestações caminhei para a sala (...). Perguntei quais irrompidas do inconsciente em que ele eram seus amigos (...) o preto respon- aparece. Há dias, um lider católico, culto deu (...)”. A cor humana aí perde o seu cidadão, anti-racista por princípio, num caráter de contingência ou de acidente dos seus artigos, em que focalizava a mo- para tornar-se verdadeiramente substân- mentosa tragédia culminada no suicídio cia ou essência. Não adjetiva o crime. do presidente Vargas, escrevia: “(...) pe- Substantiva-o. las revelações tremendas do arquivo se- Tais escritos são de autoria de pes- creto do seu mais íntimo guarda-costas, soas brancas. Mas, na verdade, mesmo se verificou que o governo do Brasil pos- as pessoas escuras sofrem obnubilação suía uma éminence grise, que no caso em face da cor negra. Um dos mais dra- era uma eminência negra! E que essa máticos flagrantes disto é esta declara- asa negra do presidente (...) escondia em ção de uma autoridade policial de cor ne- suas fichas secretas o mais terrível libe- gra: “(...) o preto, é verdade, é feio. Uma lo contra um regime de traficâncias e raça feia, de pele escura. Não agrada favoritismos.” E mais adiante reporta- aos olhos, o negro é antiestético, e a ma- se aos “que acudiam a rojar-se aos pés nifestação deste sentimento é tida como da eminência negra, para dela conseguir preconceito.” Este, como a quase totali- as mais escusas intervenções”. Os grifos dade dos nossos patrícios de cor, é um O negro desde dentro Guerreiro Ramos 187

cidadão aculturado ou assimilado, como exige ser aferida por critérios específi- diriam os que cultivam aquela típica ci- cos. A beleza negra vale intrinsecamen- ência de exportação e de intuitos te e não enquanto alienada. Há, de fato, domesticadores - a antropologia. Mas pra- exemplares de corpos negros, masculi- tiquemos um ato de suspensão da bran- nos e femininos, que valem por si mes- cura e com este procedimento feno- mos, do ponto de vista estético, e não menológico nos habilitaremos a alcançar enquanto se alteram ou se aculturam para a sua precariedade e, daí, a perceber a aproximar-se dos padrões da brancura. profunda alienação estética do homem Há homens e mulheres trigueiros, de ca- de cor em sociedades europeizadas como belos duros e de outras peculiaridades a nossa. De repente se nos torna perceptí- somáticas e antropométricas, nos quais vel a venda por sobre os nossos olhos. É é imperioso reconhecer a transparência como se saíssemos do nevoeiro da bran- de uma autêntica norma estética. A be- cura - o que nos parece olhá-la em sua leza negra não é, porventura, uma cria- precariedade social e histórica. E ainda ção cerebrina dos que as circunstâncias que por um momento, para obter certa vestiram de pele escura, uma espécie de correção do nosso aparelho ótico, pode- racionalização ou autojustificação, mas ríamos dizer que das trevas da brancura um valor eterno, que vale, ainda que não - só nos poderemos libertar à luz da ne- se o descubra. Não é uma reivindicação grura. racial o que confere positividade à ne- grura: é uma verificação objetiva. É, as- Revelar a negrura em sua validade sim, objetivamente que pedimos para a intrínseca, dissipar com o seu foco de beleza negra o seu lugar no plano egré- luz a escuridão de que resultou a nossa gio. Na atitude de quem associa a bele- total possessão pela brancura - é uma za negra ao meramente popular, folclóri- das tarefas heróicas da nossa época. Pior co, ingênuo ou exótico, há um precon- do que uma alma perversa, dizia Péguy, ceito larvar, uma inconsciente recusa de é uma alma habituada. Nossa perver- aceitá-la liberalmente. Eis por que é digna são estética não nos alarma ainda por- de repulsa toda atitude que, sob a forma de que a repartimos com muitos, com qua- folclore, antropologia ou etnologia, reduz os se todos - é uma lesão comunitária que valores negros ao plano do ingênuo ou do passou à categoria de normalidade des- magístico. Num país de mestiços como o de que, praticamente, a ninguém deixa nosso, aceitar tal visão constitui um sinto- de atingir. A ninguém? Não. Uns poucos ma de autodesprezo ou de inconsciente sub- se iniciaram já na visão prístina da ne- serviência aos padrões estéticos europeus. grura e se postam como noviços diante dela, isto é, emancipados do precário A aculturação é tão insidiosa que ain- fastígio da brancura. Purgado o nosso da os espíritos mais generosos são por ela empedernimento pela brancura, estamos atingidos e, assim, domesticados pela bran- aptos a enxergar a beleza negra, uma cura, quando imaginam o contrário. beleza que vale por sua imanência e que É o que parece flagrante na poesia de THOTH 3/ dezembro de 1997 188 Depoimentos

motivos negros. De ordinário, a negrura Como era linda, meu Deus! aí aparece subalterna, principalmente Não tinha da neve a cor, quando se focaliza a mulher, a qual se Mas no moreno semblante celebra, em regra, em termos puramente Brilhavam raios de amor. dionisíacos, como se neles se esgotasse a sua especificidade. Ledo o rosto, o mais formoso De trigueira coralina. De anjo a boca, os lábios breves E eu que era um menino puro Cor de pálida cravina. Não fui perder minha infância No mangue daquela carne! Em carmim rubro engastados Dizia que era morena Tinha os dentes cristalinos; Sabendo que era mulata Doce a voz, qual nunca ouviram Dizia que era donzela Dúbios bardos matutinos. Nem por isso não era ela Era uma moça que dava ...... Deixava... mesmo no mar ...... Límpida alma - flor singela Pelas brisas embalada, Assim falou o nosso grande Vinicius Ao dormir d’alvas estrelas, de Morais. Falaram no mesmo tom, com Ao nascer da madrugada. a melhor das intenções, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Nicolas Guillén Quis beijar-lhe as mãos divinas, e a legião de seus imitadores. Todavia, Afastou-mas - não consente; pondo a salvo o propósito generoso de A seus pés de rojo pus-me, tais poetas, nos refolhos de suas produ- -Tanto pode o amor ardente! ções se surpreende, via de negra, o es- tereótipo: “Branca pra casar, negra pra cozinha, mulata pra fornicar!” Labora Não são raros, aliás, os momen- pela ocultação da negrura toda esta tos em que Luís Gama alcança a visão pátina de associações pejorativas e de essencial, não contigente, da beleza equívocos sinceros que vestem nosso negra. Referem-se-lhe, entre outras, espírito e que precisam ser purgados expressões como “as madeixas cres- mediante a reiteração, em termos egré- pas, negras”, “flor louçã”, “formosa cri- gios, dos valores negros. No Brasil, oula”, “Tétis negra”, “cabeça envolvi- quem talvez mais perto chegou, em al- da em núbia trunfa”, “amores... lindos, guns momentos, da visão não domesti- cor da noite”, “ebúrneo colo”. Neste cada da beleza negra foi Luís Gama, particular, Luís Gama antecipou os no século passado, que escreveu ver- movimentos revolucionários atuais, sos como estes: O negro desde dentro Guerreiro Ramos 189

foto 15

O sociólogo Guerreiro Ramos, com obras do concurso de artes plásticas sobre o tema O Cristo Negro, promovido pelo TEN. Rio de Janeiro, 1955 THOTH 3/ dezembro de 1997 190 Depoimentos O negro desde dentro Guerreiro Ramos 191

como o Teatro Experimental do Negro Femme nue, femme obscure! e o da negritude, dos intelectuais de for- Huile que ne ride nul souffle, huile mação francesa, em que se destacam calme aux flancs de l’athlète, aux flancs Birago e David Diop e Léopold Sédar- des princes du Mali, Senghor (senegaleses), Gilbert Gratiant, Gazelle aux attaches célestes, les Etienne Lero, Aimé Césaire (Martinica), perles sont étoiles sur la nuit de ta peau. Guy Tirolien e Paul Niger (Guadalupe), Délice des jeux de l’esprit, les reflets Léon Laleau, Jacques Roumain, Jean-F. de l’or rouge sur ta peau qui se moire. A l’ombre de ta chevelure, s’éclaire Brière (Haiti), Jean-Joseph Rabéarivelo, mon agoisse aux soleils prochains de tes Jean Rabémananjara e Flavien Ranaivo yeux. (Madagascar). Todos esses poetas per- ceberam a beleza negra não desfigurada Femme nue, femme noire! pela contingência imperialista como “for- Je chante ta beauté qui passe, forme ma (...) fixa na eternidade”, no dizer de que je fixe dans l’éternel um deles, Léopold Sédar-Senghor, autor Avant que le destin jaloux ne te do poema “Femme noire”, no qual assim réduise en cendres pour nourrir les racines se expressa: de la vie.

Esta verdadeira revolução poéti- Femme nue, femme noire ca de nossos tempos se conjuga com todo Vêtue de ta couleur qui est vie, de ta for- um movimento universal de auto-afirma- me qui est beauté! ção dos povos de cor e tem, ela mesma, J’ai grandi à ton ombre, la douceur de grande importância sociológica e políti- tes mains bandait mes yeux. ca. Não deixam mais dúvida quanto a Et voilá qu’au coeur de l’été et du midi, isso versos como os que se seguem, de je te découvre terre promise du haut d’un Aimé Césaire: haut col calciné ...... Et ta beauté me foudroie en plein coeur comme l’éclair d’un aigle. Et nous sommes debout maintenant, mon pays et moi, les cheveux dans le Femme nue, femme obscure! vent, ma main petite maintenante dans son poing énorme et la force n’est pas Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases en nous, mais au-dessus de nous, dans du vin bouche qui fais lyrique ma bouche. une voix qui vrille la nuit et l’audience Savane aux horizons purs, savane que comme la pénétrance d’une guêpe frémis aux caresses ferventes du Vent d’est, apocalyptique. Tam-tam sculpté, tam-tam tendu qui Et la voix prononce que l’Europe nous grondes sous les doigts du Vainqueur, a pendant des siécles gravés de mensonge et gonflés de pestilences, Ta voix grave de contre-alto est le chant car il n’est point vrai que l’oeuvre de spirituel de l’Aimée. l’homme est finie THOTH 3/ dezembro de 1997 192 Depoimentos

que nous n’avons rien à faire au monde às avessas; daquele de que foram arau- que nous parasations le monde tos Gobineau, Lapouge, Rosenberg et Qu’il suffit que nous nous mettions au pas caterva. Trata-se de que, até hoje, o ne- du monde gro tem sido um mero objeto de versões mais l’oeuvre de l’homme vient seulement de cuja elaboração não participa. Em to- de commencer das estas versões se reflete uma pers- et il reste à l’homme à conquerir toute pectiva de que se exclui o negro como interdiction immobilisée aux coins de sujeito autêntico. Autenticidade - é a pa- sa ferveur lavra que, por fim, deve ser escrita. Au- et aucune race ne possède le monopole tenticidade para o negro significa idonei- de la beauté, de l’inteligence, de la dade consigo próprio, adesão e lealdade force ao repertório de suas contingências exis- et il est place pour tous au rendez-vous tenciais, imediatas e específicas. E na de la conquête et nous savons maintenant medida em que ele se exprima de modo que le soleil tourne autour de autêntico, as versões oficiais a seu res- notre terre éclairant la parcelle qu’a peito se desmascaram, e se revelam nos fixée notre volonté seule et que toute seus intuitos mistificadores, deliberados étoile chute le ciel en terre à notre ou equivocados. O negro na versão de commandement sans limite. seus “amigos profissionais” e dos que, mesmo de boa fé, o vêem de fora é uma A rebelião estética de que se trata coisa.Outra - é o negro desde dentro. nestas páginas será um passo preliminar da rebelião total dos povos de cor para (Publicado originalmente na revista se tornarem sujeitos de seu próprio des- Forma, nº 3, outubro de 1954.) tino. Não se trata de um novo racismo, O negro desde dentro Guerreiro Ramos 193

UMA ORQUÍDEA PARA EFRAÍN

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Foi um triste entardecer de um dia de maio de 1978. Eu já penava dez anos de exílio imposto pela ditadura. Visitava outras vítimas dos militares de plantão - Dona Neuza e o ex-governador Leonel Brizola, exilados como eu em Nova York. Estávamos numa pequena sala do apartamento ocupado pelo casal no Hotel Roosevelt, quando o telefone chama. Brizola responde a uma chamada do Brasil, e em seguida me passa o fone. Alguém desejava falar comigo. Do outro lado do fio telefônico, me veio a voz inconfundível do amigo/irmão, o poeta Gerardo Mello Mourão. Que disparou a notícia terrível como um tiro no coração: – O Efraín acaba de falecer! Assim partiu o primeiro irmão da Santa Hermandad de la Orquidea a ir prestar contas à eternidade. Ele era o mais jovem entre os seis: Godofredo Iomi, Raúl Young, Efraín Bó (argentinos), Gerardo Mourão, Napoleão Lopes Filho e eu mesmo (brasileiros), além de outros que por gravitação também se somavam ao grupo de poetas que escolheu a parasitária orquídea como seu emblema. Morreu Efraín, finalizando uma existência de agonia espiritual profunda. Sua obra El hombre verde é o resumo do seu deambular pelo mundo, de coração doado e recebido, confrangido ao peso do amor e escrevendo com o próprio sangue a peripécia que Deus (o dele) lhe havia destinado. No próximo dia 3 de maio de 1998, lá vão 20 anos sem Efraín. Sem dúvida o intelectual mais bem dotado da sua geração, poeta, crítico de arte, ele foi um erudito como poucos existem. Mas dedicava uma atenção especial ao esforço de pessoas humildes e marginalizadas pela arrogância das elites. Publicando este seu ensaio sobre o escultor José Heitor, queremos recordar a face sofrida de Efraín, visitando o túmulo do poeta Friedrich Holderlin em Heidelberg, Alemanha, na década dos setenta. A.N. THOTH 3/ dezembro de 1997 194 Depoimentos A escultura de José Heitor Efrain Tomás Bó 195

A etnografia levantou a primeira dúvida. Os objetos dos povos primitivos - talhas, esculturas, desenhos - não podiam A escultura de ser nomeados com a linguagem da his- tória da arte e, menos, interpretados sob José Heitor a luz de cânones do que chamamos com o largo nome de estética. O velho filóso- fo da arte Wilhelm Worringer, em um en- saio que leva o título de Ars uma?,(1954) aponta lucidamente a problemática da pluralidade de atividades criadoras, no tempo e no espaço, que nos acostuma- mos a incluir na “arte” e que pertencem, as atividades, a diferentes universos de expressão. A irrupção do primitivo, ou do primitivismo, na arte ocidental tem fre- qüência periódica. Uma vez chamamos de primitivo a ingenuidade conceitual do artista, ou artesão, do objeto estéti- co; outra vez primitivismo é uma ótica especial do artífice que parece como descoberta primeira na reprodução de Efrain Tomás Bó* coisas, paisagens e pessoas; também é THOTH 3/ dezembro de 1997 196 Depoimentos

primitivismo a apresentação de temática crítica de arte pode reconhecer um re- indígena aludindo às formas específicas pertório de motivos primitivos, uma que são o fazer do verdadeiro homem estimulação ou, simplesmente, uma imi- primitivo. tação formal despojada de conteúdo. De que maneira ou em que medi- da o primitivismo, em nossos dias, é uma real atitude espiritual e estética? Em Como situar José Heitor muitos casos, na maioria talvez, não é nada mais (e vale repetir Worringer) que Eu não diria que José Heitor é um a conquista de novos estímulos confundi- escultor primitivo. É autodidata, sim. Mas da - a conquista estimulante - com a possi- domina seus instrumentos de trabalho e bilidade de dar fundamentação realmen- domestica o material, a matéria, até se te nova à arte. tornar obediente à sua decisão estético- E voltemos à arte em geral. Não se espiritual. Suas formas se constituem em pode negar um livre impulso criador in- um repertório de formas primitivas, sim. serido em nossa natureza cultural. Po- Porém é sua fantasia excitada que o pro- rém essa natureza cultural é segunda jeta mais que a busca, a recuperação dos natureza, é natureza adquirida, é o pro- mitos e sonhos perdidos, a vivência re- duto de uma experiência determinada trospectiva daquilo que Abdias Nasci- com origem em processos reflexivos e mento - que é quem melhor o conhece representativos. E a arte - sempre como artista negro - chama de negritude. Worringer - no sentido categorial é, no Eu não diria que é primitivo um artista fim de contas, um conceito moderno, com plástico como José Heitor, que é capaz raízes que não vão muito além do de criar a imensa complexidade temática helenismo e que - o conceito -, separan- de Drama de mendigos negros; formas do com um corte absoluto natureza de conjugadas e modeladas sobre uma linha, cultura, deu ser, ou categoria ôntica, ao ou itinerário, curva, as formas disformes objeto estético, sendo que a conceituação ou as deformações das formas são o veí- é vigente ainda na atualidade. culo rítmico do drama temático. A Como, então, unificar perspectiva- expressividade não está na análise mente todos esses universos de expres- morfológica e, sim, na noção das neces- são e configurar seus produtos com a sidades que impõe a atitude dramática. qualificação artística? Em relação ao Não há, em José Heitor, o natura- primitivismo no tempo, a etnografia nos lismo primário dos primitivos. Seu con- levantou a dúvida quando assinalou a im- junto tem diferentes valorizações que vão possibilidade de atribuir estímulos e in- desde o modelado objetivo e realista do tenções estéticas, de nossa estética, a conjunto à subjetividade minuciosa, diluí- criação e criadores primitivos. Em rela- da em abstrações, de cada um dos com- ção ao primitivismo contemporâneo, a ponentes do conjunto. Não há, em José A escultura de José Heitor Efrain Tomás Bó 197

foto 17 (detalhe) é uma das belas obras em obras belas das uma é (detalhe) Os mendigos negros madeira de José Heitor

foto 18 Jose Heitor esculpindo na madeira THOTH 3/ dezembro de 1997 198 Depoimentos A escultura de José Heitor Efrain Tomás Bó 199

Heitor, a simplicidade de olhos que des- nova matéria, da abstração pela destrui- cobrem, assombrados, a exuberância do ção do objeto? Não; desconhece, certa- mundo exterior; José Heitor mostra, con- mente, o enorme mistério pitagórico do trariamente, uma complexidade fixada, dodecaedro; diedros e triedros de suas não nos objetos múltiples e, sim, na composições não são concreções autô- polivalência modal de todos os objetos nomas e sim, somente, processos motivos de sua escultura. Que unidade unificadores e ordenadores dos elemen- há, através de um vértice, entre a coruja tos como rígida conseqüência do conjun- cardealmente quadrificética e a cabeça, to. três vezes cabeça, em dimensão unitá- É, então, anacrônico? Não, é um ria, de Noctambulação? Eu não afirmo; atualizador de símbolos sempre vigentes insinuo - ou talvez postulo - que a situa- que põem de manifesto sua força de ex- ção dos elementos é estranha ao momen- pressão quase sem preliminares. to espacial da tetracoruja e da unidade trifácica: é uma manifestação existenci- Se é necessária, e válida, uma clas- al do artista da negritude que volta, ou se sificação, coloquemos José Heitor na ór- projeta retrospectivamente, ao mundo bita imensa do barroco, barroco enquan- ancestral, onde tudo era um e um era to o artista, agora José Heitor, que acre- tudo. dita na validez do êxtase, faz uso da ex- periência irracional (já falaremos de seus Como classificar José Heitor? sonhos e mistérios na inspiração) e se Como encontrar uma fórmula de expres- embrenha, como seu êxtase e mistério, são dentro de uma escola, de um movi- na busca do que está além da pura figu- mento, de uma dedicação temática ou, ração objetiva. de um modo geral, como uma manifesta- ção do tempo em que vivemos? Não Como barroco, José Heitor não é acredito que tenha - nem que seja ne- nada tranqüilizador na sua obra ofereci- cessária uma classificação precisa, clas- da: a matéria - a madeira original -, nas sificação que os críticos utilizam, não sem- suas mãos, quer ser outra coisa que o pre para julgamento do artista individual, que pode ser. Como barroco, o artista senão para facilidade de sua localização: escultor se esforça com paixão na aco- encontrada a escola, o movimento, o tem- modação entre destino, objeto, forma e po vivido, ou a ideologia, ou as influências, pesadez de suas criaturas. Como barro- nos inclinamos a descrever o objeto es- co, o escultor se desprende do contato tético singular em função de outras linhas, das coisas visuais, intensificando o liris- que não as que anunciam a existência mo e burilando, acariciando, até à individual da obra. extenuação, sua matéria, a madeira. Não há espaços livres e ociosos na sua obra; É último moderno nosso artista, no o espaço fluido, o espaço vazio visível do sentido de preocupação por combinações interior de Prece de mãe pobre gestan- técnicas, topológicas, experiência de te se ondula, se torna sólido no jogo rít- THOTH 3/ dezembro de 1997 200 Depoimentos

mico de cada um dos membros que or- Heitor, nas motivações subjetivas, o ganizam o acontecimento espacial da es- grau de sua compenetração no fazer ar- cultura. No âmbito do barroco, o resulta- tístico e, sobretudo, sua relação com a do de material e técnica de José Heitor é matéria de trabalho. Para que orientar o uma expressiva subjetividade nos porme- diálogo dentro das razões geométricas da nores da ação. escultura ou para abstracionismos resul- tantes de estilização e cálculos simétri- O escultor cos das figuras primárias? Perguntei:

E quem é esse José Heitor de cujo - Você fala com a madeira? Qual mistério - em suas obras - pretendemos a pergunta e como ela te responde? participar? Poucos são os dados pessoais. - Sim - respondeu -, falo quando Eu o conheci através de Abdias Nasci- ela, a madeira, aceita que eu a transforme mento, quem, em busca de obras para num sonho meu. Ela manda que eu tente. seu Museu de Arte Negra (Departamen- Os amigos da cidade buscam, to de Artes Plásticas do Teatro Experi- para José Heitor, o material de trabalho mental do Negro), me levou até a cidade e o achado e posse do mesmo. É o pri- do escultor, Além Paraíba, situada na di- meiro estímulo à obra. Novamente per- visa de Minas Gerais com o Estado do guntei: Rio. Foi fácil encontrar sua casa. Todos na cidade o conhecem. É ferroviário com - Quando cai em suas mãos um um modesto emprego na Estrada de Fer- pedaço de madeira, você já vê a forma? ro Leopoldina. Sem atingir os trinta anos, A dureza do material é um obstáculo ou bem escuro, de linhas raciais firmes, alto ajuda a dar a forma por você concebida? e delgado, aparenta uma adolescência Você respeita a madeira como matéria prolongada - sua fantasia excitada -, po- ou quer transformá-la em instrumento rém não poderia dizer se é introvertido dócil de tua idéia? - E acrescentei: - A ou é tímido. Falando de sua arte, sua lin- cor da madeira e sua textura são parte guagem se multiplica, a comunicação se de seus objetos ou você prefere que ela, torna fluente. Manifesta, com proprieda- a madeira, desapareça como matéria? de, seu pensamento ao compasso de um Respondeu sem hesitar: grande entusiasmo. Não teve mestres; sua vocação lhe foi revelada pela facili- - Pouco tempo depois que ela, a dade na reprodução de objetos e figu- madeira, vem a minhas mãos, eu vejo nela ras. Já artista, por obra e graça da graça, quase a obra. Estou como em transe. sua arte, vale repeti-lo, se põe de mani- E a quero macia, porque ajuda a dar a festo quase sem preliminares, sem o iti- forma que concebo. Ou talvez seja sem- nerário do aprendizado, oficial e mestria. pre macia, quando aceita ser transfor- Tive um diálogo com ele, diálo- mada em meu sonho, quando é um ins- go que somente queria indagar de José trumento dócil de minha idéia. A escultura de José Heitor Efrain Tomás Bó 201

Não me disse imediatamente de - Para que esboço no papel se seu respeito pelo físico, pelo material. minhas formas, que não acho deforma- Como artesão, antes de tudo, o obstácu- das, já estão prefiguradas em meus so- lo da dureza, mas a seguir agrega: nhos? Eu reproduzo, ou copio, eu não sei, o que eles, meus sonhos, me dizem como - Claro que cor e textura são par- pensamento. Também não sei se é o en- tes de minhas esculturas. E também o tusiasmo que me guia no trabalho; sei tronco com a disposição de seus galhos. que estou intranqüilo, agitado, até a tare- Eu queria penetrar mais na rela- fa cumprida. Quando acabo, é quando ção entre sua obra e as fontes e indaguei começo a descobrir o que fiz. Vejo, ob- diretamente: servo, apalpo minhas figuras acabadas e - São as formas naturais, são as fico assombrado de seu traçado, das com- figuras humanas as que provocam seu binações das formas, do volume, da cor trabalho ou a provocação vem do senti- e da lisura de sua superfície. do íntimo, dentro de seu pensamento, des- Eu sei, e já o disse em parágrafos sas formas e figuras? precedentes, que é a fantasia excitada o José Heitor se torna veemente, que guia a criação e o trabalho de José quer fazer valer em mim a validez de seus Heitor. Para que saber mais sobre tudo sonhos e me responde: isso se tudo está dito em sua obra? Quis saber, porém, de suas ferramentas, se - É de mim, de meu íntimo, da inti- elas o ajudam ou atrapalham no sentido midade de meu pensamento que me vem que as ferramentas obrigam à limitação a provocação. E o pensamento é pro- de formas. duto de sonhos quase sempre agitados, nervosos, excitantes, que eu tenho e Nosso escultor é um finíssimo me possuem, mesmo à luz do dia, em marceneiro e conhece todas as sutilezas, plena vigília. propriedades e possibilidades das ferra- mentas do ofício. Me respondeu: Continuei: - Só uso formões paralelos e goivas - Quando você deforma os ros- e elas, as ferramentas, longe de limitar tos, ou toda a anatomia; quando você minha idéia, protegem a maior liberdade equilibra um vazio com uma massa; em minha criação. Goiva e formão são quando você rompe com a figura natu- prolongamentos de minha mão. ral, você o faz a partir de um desenho, de um esboço original, ou suas formas Nosso diálogo deixou de ser sobre deformadas vão saindo ao compasso a matéria física e formal de sua arte. Eu desses sonhos? quis saber o que está por detrás, determinante no sentido intelectual na sua Não vacilou nem um instante em obra. Perguntei: responder: THOTH 3/ dezembro de 1997 202 Depoimentos

- Você acha que a raça, que o povo Algumas motivações dentro do qual você vive, que tua infân- cia e adolescência, suas alegrias e suas O conhecimento de um artista tristezas têm influência em seu trabalho? como José Heitor somente pode ser di- Por exemplo: a escultura africana não era reto, quer dizer, em sua obra mesma. Não gratuita, feita pelo simples prazer de or- se pode deixar de observar nessa obra namentação; tinha, em suas melhores ex- um sentido profundo ou, talvez, melhor pressões, um sentido mágico ou religioso que profundo, obediente - da realidade, nas formas e movimentos. Sua escultu- dos objetos reais. Quem poderia dizer que ra quer ter um sentido além da pura vi- os objetos reais, formalmente obedien- são formal? tes, não estão presentes em sua obra? Dessa vez José Heitor não foi vee- Porém, fantásticos ensueños - já vimos mente e nem foi veloz na resposta. Sere- sua origem - configuram suas formas até no, com voz quase monótona, me contou a destruição da forma original. Volto à de sua infância, de seu diálogo com uma fantasia excitada de José Heitor para grande árvore do quintal de sua casa, da afirmar que essa fantasia é instrumento estreita relação com o pai e com a mãe, criador. E é também - a fantasia excita- relação estreita que eu vejo prolongada da - ingenuidade original na busca de co- nesta sua longa adolescência. De pronto municação e esclarecimento e em afã de sua fala se tornou grave: falava de sua plasticidade por meio de fenômenos que raça, de como percebeu que tinha uma caem no âmbito dos sentidos. sensualidade negra, que estava possuído Vamos à sua obra. É uma das mais por uma religiosidade negra, que era ne- importantes que já tenha realizado: a Sim- gro de pele e de espírito e que pele e patia carrancuda, da coleção de Abdias espírito o guiavam de uma maneira parti- Nascimento. Nasceu, me disse José Hei- cular pelo mundo. E agregou: tor, de um sonho. Um sonho fisicamente - É claro que digo com minha es- sonhado em um dia de carnaval. É um con- cultura, ou quero dizer, algo mais que a junto musical popular. Quer dizer, o foi ori- pura visão formal. Uma árvore, uma ginalmente, pois agora, a obra acabada, coruja, uma cobra e mesmo o homem estamos longe da primeira objetividade. Po- são da Terra, com raízes profundas demos ser testemunhas da intencionalidade nela. Quando os arrancamos da Terra, do escultor até a realidade formal. A pro- para a representação da arte, não cor- cura de posições e movimentos menos cor- tamos seu mistério original. Eu sei que rentes, de músicos, instrumentos, é mais a negritude é isto: volver à fontes pri- que a vontade do artífice, é a comunica- meiras, às raízes, ao que fomos na li- ção, também o esclarecimento daqueles berdade de nossos mitos, de nossas sonhos e representações de fantasia exci- lendas e de nossos deuses. tada em movimento unificador e ordenador. A escultura de José Heitor Efrain Tomás Bó 203

A tendência atual - poderíamos terior da figura que se ondula, se eleva e dizer mais, última - de José Heitor se re- se apresenta em uma multiplicidade ex- flete com abundância nessa belíssima pressiva de recursos. Como há em pin- peça que é a Simpatia carrancuda. Se tura a perspectiva simultânea, há, em es- dilatam as dimensões, o peso se extrema cultura, o volume simultâneo, o todo em e o volume se agiganta. Suas esculturas um: é a qualificação quantitativa do es- - de José Heitor - estão feitas para habi- paço. A superfície do crânio da Cabeça tar em âmbitos espaçosos, com todas as do ídolo não é lisa, apresenta estrias condições da monumentalidade. Nunca paralelas, procedimento que, curiosamen- suas figuras são estáticas, como planta- te, está na velha e primeira escultura afri- das em sua base. O dinamismo que se cana, não se sabendo se como tema de- transfere de uma figura a outra, que dá corativo premeditado ou como alegoria forma a uma nova forma, que, como bar- de significação mágica. roco, não vive das parcialidades, e sim Eu suponho todas e cada uma das do conjunto, é a característica dominan- esculturas deste artista sem passado e te da Simpatia e de todas as obras. É com enorme vir-a-ser, que é José Heitor, curioso descobrir aspectos das normas como envolvidas, cada uma, por um úte- de trabalho, métodos de expressão, po- ro imenso e sutil, cujas paredes vivas, do deríamos dizer. O conjunto - sempre a útero, pressionam, sem pausa, as formas Simpatia carrancuda - forma uma mas- contidas. E esse útero imenso e transpa- sa compacta. Os membros não estão rente forma e deforma até a destruição soltos do corpo, estão assinalados por de seu conteúdo; forma e deforma para cortes, unidos ao corpo, como na escul- dar vida; e destrói para transformar; e tura autenticamente primitiva, no tempo. transforma para recriar, recriando para As formas se elevam e se redondeiam, a simplificação. Não sei o itinerário futu- em obediência à atividade musical na Sim- ro de José Heitor. Sei o que pode fazer patia, sustentando o equilíbrio pela elas- fazendo o que fez agora; apoiado em ticidade, pelo dinamismo que antes tentei poderosas formas de humanidade che- caracterizar. gará - pode chegar - à síntese de for- Quero me referir, especialmente, ma e conteúdo, de forma e matéria, a uma das peças de José Heitor que maior como signo de algo - superado o pro- impressão me causam. É a Cabeça do blema da qualidade - a algo que, à ídolo, também no Museu de Arte Negra maneira de Max Bense, seria “mais do TEN. A escultura é um resultado en- comunicação da existência que comu- tre o volume total e o modelado da su- nicação do objeto”, mostrando antes perfície. A superfície da testa e do rosto que nada a possibilidade de ser, a pos- é perfeitamente lisa para o tato e é o in- sibilidade ontológica da obra de arte. ______*Poeta, escritor e educador, membro da Santa Hermandad de la Orquidea, faleceu em 3 de maio de 1978. De nacionalidade argentina, viveu no Brasil desde 1941. Artigo publicado originalmente no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 11.08.68 THOTH 3/ dezembro de 1997 204 Depoimentos Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 205

Projeto Estudos Relatório Final da Mesa Redonda Regional - Estudos Contemporâneos Contemporâneos da Temática Racial Afro-Brasileira (Rio de Janeiro, 1997)

Introdução O projeto Estudos Contemporâne- os da Temática Racial Brasileira é uma “O negro no Brasil não é iniciativa do Grupo Interministerial para anedota, é um parâmetro Valorização da População Negra e do da realidade nacional.” Núcleo de Estudos Contemporâneos do Guerreiro Ramos Negro Brasileiro (NEINB) da Universi- dade de São Paulo (USP). O objetivo é avaliar a situação atual dos estudos de assuntos relativos à co- munidade afro-brasileira, com vista à articulação de propostas e rumos para estudos futuros e para a orientação de políticas públicas de apoio e incentivo à pesquisa nessa área. Realizaram-se me- sas redondas em São Paulo, Belo Hori- zonte, Salvador e Rio de Janeiro. Numa Pesquisadores do Rio de Janeiro coordena- segunda etapa do projeto, os resultados dos por Elisa Larkin Nascimento dessas mesas redondas seriam discuti- THOTH 3/ dezembro de 1997 206 Depoimentos

dos, sintetizados e encaminhados oficial- Dados sobre a realização da mesa mente às autoridades governamentais res- redonda, as instituições e ONGs ponsáveis pela implementação das res- representadas, e os participantes pectivas políticas, em reunião com os coordenadores das mesas redondas re- Datas: 25 de abril de 1997, em duas ses- gionais, representantes dos setores go- sões e 13 de junho de 1997. vernamentais interessados, e outras au- Local: Centro de Documentação da Cul- toridades. Até o momento, essa segunda tura Afro-Brasileira, Centro Cultural José etapa não se realiza. Apresentamos, a Bonifácio, Gamboa (Centro), Rio de Ja- seguir, o texto do relatório da Mesa Re- neiro. donda regional do Rio de Janeiro. Espe- ramos, em edições próximas, poder pu- Participantes: Representantes de insti- blicar os outros relatórios e as notícias tuições acadêmicas e entidades da soci- sobre o prosseguimento do projeto. edade civil organizada engajadas na rea- lização de pesquisas sobre a temática ra- O presente Relatório Final foi ela- cial brasileira em suas diversas dimen- borado com base na aprovação final da sões, e pesquisadores individuais com Minuta de Relatório distribuída pela co- produção na mesma área (ver listagem ordenadora a todos os participantes após abaixo). a primeira reunião da mesa redonda. Os Coordenador do Projeto: Prof. Dr. participantes apresentaram sugestões de Hélio Santos (NEINB/USP, GTI). modificações no texto provisório, e na Coordenadora da Mesa Redonda: segunda reunião estas modificações fo- a Prof . Elisa Larkin Nascimento (Insti- ram discutidas, finalizadas e aprovadas. tuto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasi- O propósito do relatório é o de apresen- leiros). tar resumidamente os dados sobre o evento, as principais linhas de discussão e as propostas concretas articuladas. Instituições acadêmicas Estas se dividem em quatro categorias: e entidades/ONGs representadas 1) propostas de linhas gerais para orien- na mesa redonda: tação da articulação de políticas públi- cas, 2) propostas concretas de ações e Universidade Federal do Rio de Janeiro políticas públicas, 3) proposta dirigida aos (UFRJ) Instituto de Filosofia e Ciências pesquisadores e instituições acadêmicas Sociais (IFCS); Núcleo da Cor; Centro e 4) propostas dirigidas ao GTI para o Interdisciplinar de Estudos Contemporâ- prosseguimento dos trabalhos deste pro- neos (CIEC); Setor de Literatura Afri- jeto1. cana de Língua Portuguesa, Faculdade de Letras. ______Universidade do Estado do Rio de Janei- 1As primeiras sessões foram gravadas, e as fitas estão à disposição da coordenação do projeto. ro (UERJ): Setor de Relações Interna- Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 207

foto 19 Foto: Revista Black People

Participantes da Mesa Redonda do Rio de Janeiro, abril de 1997, Centro Cultural José Bonifácio. Da esquerda para a direita, 1a. Fileira: Helena Costa (CEAA/Candido Mendes), Sebastião Soares (IPCN), Luís Carlos Gá (IPDH), Elisa Larkin Nascimento (Ipeafro), Hélio Santos (NEINB/USP), Vera Cristina (Cebrap). 2a. Fileira: Lívio Sansone, Jocimar Oliveira de Araújo (UFRJ), José Marmo (Projeto Arayê), Maria José da Silva (SME/ SEE), Lia Vieira (Aspecab), Maria Alice Resende (Fac.Ed./UERJ), Sílvio Carvalho (Proafro/CCS/UERJ), Geovani Santos Fonseca (NEAB/UFF), Éle Semog (CEAP). 3a. Fileira: Yvonne Maggi (UFRJ), representante de Anreanice de Melo Corrêa (Proeper/UERJ), Armando Flávio Gamboa (Pré-Vestibular), Nei Lopes, Paulo Roberto dos Santos (Gab. Senador Abdias Nascimento), Abigail Páscoa (GTI), Kátia Lopes (Black People), Hilton Cobra (Centro Cultural José Bonifácio), Conceição Evaristo (NEAB/UFF), Silvânia Damasceno Martins (UFRJ), Carmen Lúcia Tindó Secco (UFRJ), Roseli Rocha (Aspecab), Nelson Silva de Oliveira (CIEC/UFRJ) THOTH 3/ dezembro de 1997 208 Depoimentos Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 209

cionais e Convênios; Programa de Estu- IPCN - Instituto de Pesquisas das Cultu- dos e Debates dos Povos Africanos e Afro- ras Negras. Americanos (PROAFRO); Programa de Projeto Negritude Brasileira, Casa Se- Estudos e Debates da Religião nador Correia. (PROEPER); Faculdade de Educação. Rede de Lideranças Negras Pró-Saúde/ Universidade Federal Fluminense(UFF): Projeto Arayê, ABIA (Ass. Bras. Faculdade de Letras, Núcleo de Estudos Interdisciplinar da AIDS). Afro-Brasileiros (NEAF); Faculdade de Grupo Eléékò (Niterói). Educação, Programa de Educação s/ o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB); Intecab - Instituto da Tradição e Estu- Escola de Enfermagem, Núcleo de Estu- dos da Cultura Afro-Brasileira. dos sobre Saúde e Etnia Negra (NESEN). Grupo União e Consciência Negra. Universidade Gama Filho (UGF) - Aspecab - Associação de Pesquisa da Mestrado em Sexologia e Departamento Cultura Afro-Brasileira (Niterói) de Filosofia. Criola - Coletivo de Mulheres Negras Pontifícia Universidade Católica do Rio de Lista dos Participantes. a Janeiro (PUC-RJ): Departamento de Psi- 01. Prof . Dra. Carmen Lúcia Tindó cologia; Núcleo de Alunos Negros. Secco, Supervisora, Setor de Letras Afri- Conjunto Universitário Cândido Mendes: canas, UFRJ. a Centro de Estudos Norte - Americanos 02. Prof . Dra. Laura Padilha, Diretora, (Cesna) e Centro de Estudos Afro-Asiáti- Faculdade de Letras/NEAF, UFF. cos (CEAA). 03. Prof. Dr. Sílvio de Almeida Carvalho Universidade de São Paulo (USP): Institu- Filho, Coordenador, Proafro/UERJ. a to de Psicologia, Núcleo de Estudos 04. Prof . Maria Alice Resende Gonçal- Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro ves, Faculdade de Educação, UERJ. (NEINB). 05. Prof. Dr. Lívio Sansone, vice-dire- GTI - Grupo de Trabalho Interministerial tor, CEAA/Cândido Mendes. para Valorização da População Negra. a 06. Prof . Dra. Yvonne Maggi, Diretora, Ipeafro - Instituto de Pesquisas e Estudos IFCS/UFRJ. Afro-Brasileiros (RJ). a 07. Prof . Dra. Heloísa Toller Gomes, Cenun - Coletivo de Estudantes Universi- Conselheira, Proafro/UERJ. tários Negros. 08. Éle Semog, Ceap, IPDH. Conselho Geral dos Pré-Vestibulares para 09. Luiz Carlos Gá, presidente, IPDH. Negros e Carentes. 10. José Marmo da Silva, coordenador, Ceap - Centro de Articulação das Popula- Projeto Arayê: Programa de Prevenção ções Marginalizadas. do HIV/AIDS para a Comunidade Afro- IPDH - Instituto Palmares de Direitos Brasileira, Rede de Lideranças Negras Humanos. Pró-Saúde. THOTH 3/ dezembro de 1997 210 Depoimentos

11. Armando Flávio Gamboa, Pré-Ves- 32. Prof. Dr. Marco Antônio Guimarães, tibular para Negros e Carentes. Depto. de Psicologia, PUC/RJ. a 12. Nei Lopes, pesquisador independente. 33. Prof . Dra. Helena Theodoro Lopes, a 13. Prof . Rosália Lemos, Eléékò, Universidade Gama Filho, Intecab. mestranda UFRJ. 34. Marta de Oliveira, Projeto Negritude a Brasileira. 14. Prof . Vanda Maria de Souza Ferreira, a Fundação Municipal de Educação de 35. Prof . Aureanice de Melo Corrêa, Niterói. Proeper/UERJ. a 36. Prof. Dr. Jacques D’Adesky, Cesna/ 15. Prof . Lia Vieira, Aspecab. a Cândido Mendes. 16. Prof . Maria José Lopes da Silva, Se- 37. Silvânia Damacena Martins, aluna da cretaria Municipal de Educação, Secre- UFRJ, ex-aluna do Pré-Vestibular para taria Estadual de Educação, Rio de Ja- Negros e Carentes. neiro (pesquisadora independente). a 38. Luiz Carlos Sant’Ana, Pesquisador do 17. Prof . Aureanice de Melo Corrêa, CIEC/UFRJ. Prpeper/ UERJ. 39. Nelson Silva de Oliveira, Pesquisador 18. Roseli Rocha, Aspecab. do CIEC/UFRJ. 19. Geovanni Santos Fonseca. 40. Márcia Regina de Lima Silva, CEAA/ 20. Jurema Elimar Araújo, Cenun/UFF. Cândido Mendes. 21. Helena Costa, pesquisadora, CEAA/ 41. Jurema Werneck, Grupo Criola. Cândido Mendes. 42. Dulce Mendes de Vasconcellos, CED/ CUN. 22. Juca Ribeiro, Grupo União e Cons- 43. Profa. Dra. Isabel Cruz, Escola de ciência Negra. Enfermagem, Núcleo de Estudos sobre 23. Mauro César Ryff, NEAF/UFF. Saúde e Etnia Negra (NESEN), UFF. 24. Laura Moutinho, Núcleo da Cor/ 44. Prof. Dr. Marco Antonio Guimarães, o IFCS/UFRJ. Dept de Psicologia, PUC-RJ. 25. Abigail Paschoa, GTI. 26. Sebastião Soares, IPCN. Patrono 27. Vera Cristina de Souza, Cebrap, NEINB/USP. In Memoriam, foi eleito patrono 28. Conceição Evaristo, UFF, Centro da Mesa Regional do Rio de Janeiro o Cultural José Bonifácio. grande sociólogo afro-brasileiro profes- 29. Jocimar Oliveira de Araújo, Núcleo da sor Dr. Guerreiro Ramos, cuja atuação Cor/IFCS/UFRJ. nas décadas de 40, 50 e 60 concretizava 30. Prof. Dr. José Flávio Pessoa de Bar- o propósito de unir a pesquisa à atividade ros, diretor, Intercom/UERJ. social concreta, assim colocando o traba- 2 31. Dr. Sérgio da Silva Martins, Coorde- lho acadêmico a serviço da coletividade . nador do AJIR/CEAP.

2 Este propósito encontra-se desenvolvido em A redução sociológica, de Guerreiro Ramos (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965). Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 211

Definição do tema no sentido de garantir a essa população a sua cidadania plena. As mesas redon- Para nossos propósitos, a expressão das que compõem este projeto visam a “Temática Racial Afro-Brasileira” refe- contribuir para a identificação de áreas re-se a todos os aspectos da vivência dos de atuação e para a articulação de políti- descendentes de africanos no Brasil, aí cas públicas na área da pesquisa que incluindo a sua herança histórico-cultu- possam contribuir para esse objetivo ge- ral africana. Assim, os estudos da Áfri- ral. ca, sua história e suas civilizações estão Já existem avanços e conquistas plenamente integrados na temática em no que se refere ao desenvolvimento de questão. pesquisas sobre essa temática. O tema já atrai pesquisadores e existem mais pro- jetos em execução, em comparação com Resumo dos trabalhos realizados anos anteriores. Entretanto, na sua maior parte, esses avanços constituem o resulta- A reunião destacou-se, no enten- do de esforços individuais e não da execu- dimento unânime dos participantes, como ção de políticas públicas ou institucionais oportunidade inédita, e muito rica, de reu- articuladas e sistemáticas. O objetivo das nir pesquisadores individuais e represen- mesas redondas, então, é ajudar na pas- tantes de diversas instituições e de todos sagem do plano dos projetos individuais os níveis acadêmicos, bem como repre- ao das políticas planejadas. sentantes de ONGs engajadas em traba- Em algumas áreas, notadamente lhos com as comunidades afro-brasilei- saúde, direito e educação, existem ras. O objetivo de tal diversidade no uni- pouquíssimas pesquisas no âmbito aca- verso de participantes foi o de propiciar dêmico focalizando especificamente as um diálogo o mais enriquecedor possível, necessidades e a situação emergente da possibilitando diversas contribuições des- população afro-brasileira. Entretanto, o de múltiplos pontos de vista e assegu- trabalho das ONGs e entidades da soci- rando que as conclusões levassem em edade civil organizada tem demonstrado conta as necessidades refletidas no tra- que essas três áreas são emergenciais, balho social comunitário. fato que realça a importância das pes- O tema aglutinador dos diversos quisas realizadas fora da academia. Di- trabalhos representados, e que orientou versas doenças prejudicam especifica- a condução da própria Mesa Redonda, mente essa população, impondo uma ne- foi o da cidadania. O Prof. Dr. Hélio cessidade urgente de implementação de Santos enfatizou que, ao criar o Grupo políticas públicas. Apesar das conquis- de Trabalho Interministerial para Valori- tas no sentido do quadro constitucional, zação da População Negra, a Presidên- ainda não existem normas claras de di- cia da República reconheceu a necessi- reito, no campo civil e criminal, sobre as dade de se articularem políticas públicas relações raciais. As pesquisas existen- THOTH 3/ dezembro de 1997 212 Depoimentos

tes sobre a diversidade cultural e a ex- 2) Os parcos recursos dedicados clusão da população afro-brasileira na pelas agências financiadoras, tanto às área da educação se limitam quase ex- pesquisas quanto à publicação dos tra- clusivamente às séries iniciais do primei- balhos realizados nessa área. ro grau (1a à 4a série). Na maioria das 3) A preferência quase exclusiva pesquisas realizadas sobre educação, a das agências financiadoras por temas questão racial ou de cor não se apre- dentro da área, aparentemente considera- senta como variável, o que resulta na dos “aceitáveis”. Exemplo: em História, falta de dados adequados para a privilegia-se o tema da escravidão, ne- vinculação desses itens aos problemas gligenciando-se os períodos pós-abolição apontados no quadro geral do ensino. e contemporâneo, e há uma grande lacu- Os participantes externaram sua na com referência à História da África. convicção da importância da reunião e 4) A relutância em se reconhecer do diálogo entre pesquisadores e insti- como academicamente legítima essa área tuições, ressaltando que o isolamento, de pesquisas, obrigando os pesquisado- conseqüência da falta de divulgação res a utilizar-se de formas sinuosas de dos trabalhos, freqüentemente compro- identificação dos temas de projetos, quan- mete sua eficiência. Fizeram observa- do não de subterfúgios, para encaixá- ções gerais sobre o quadro atual, tra- los nas rubricas reconhecidas pelas agên- çaram linhas gerais de orientação para cias de financiamento de pesquisas. a articulação de políticas públicas, apre- Exemplo: o estudo de literaturas africa- sentaram propostas específicas de ação nas realiza-se sob a rubrica “Literatu- para o futuro. ras de Língua Portuguesa”. 5) A ausência da temática nos cur- Observações gerais sobre o qua- rículos obrigatórios das universidades, dro atual fato em si mesmo expressivo e parcial- mente indutor ao desprestígio da questão Os participantes observaram, de for- no âmbito das agências financiadoras. ma geral: 6) A proliferação relativamente 1) A falta de conhecimento mú- desorganizada de exigências burocráti- tuo, entre as instituições e os pesqui- cas para a obtenção de bolsas de pesqui- sadores, dos trabalhos realizados e em sas, a complexidade e arbitrariedade des- andamento, fato que implica num atra- sas exigências, e o limitado acesso dos so para o desenvolvimento do tema. pesquisadores às informações sobre as Pelo menos em parte, essa situação é mesmas. conseqüência da falta de verbas e de 7) A relativa ausência de material decisão editorial para a divulgação dos didático e de fontes bibliográficas sobre trabalhos realizados nessa área. o tema, seja em nível de ensino funda- mental ou superior, mais uma vez em Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 213

parte conseqüência da falta de verba e ção, do direito e da saúde acima referi- de decisão editorial para publicações. dos, pesquisas importantes na área da lin- 8) A importância do vínculo entre güística são realizadas por pesquisado- o ensino superior e o ensino fundamental res individuais sem vínculo com institui- nessa matéria, sobretudo no que se refe- ções acadêmicas. re à revisão e produção de material didá- 13) O papel da academia no senti- tico e à contínua e dinâmica relação com do de estimular o debate dos temas emer- os professores do ensino básico. gentes da comunidade afro-descenden- 9) O limitado acesso dos afro-bra- te, no intuito de esclarecer as suas priori- sileiros à formação acadêmica, fato que dades e objetivos, e de conduzir, em par- levou à criação, em vários Estados, de ceria com a comunidade, pesquisas ca- cursos de pré-vestibular para negros e pazes de contribuir para desenvolver suas carentes. A Coordenação do Pré-Vesti- prioridades e seus objetivos. bular no Rio de Janeiro fez-se presente à 14) A fundamental importância da reunião. Esse movimento conquistou bol- religiosidade afro-brasileira enquanto sas em universidades particulares; entre- articuladora da dimensão filosófica e tanto, o número de bolsas e o seu valor epistemológica de origem africana que vêm sendo diminuídos, fato alarmante ob- caracteriza a sociedade e a cultura bra- servado também em relação às bolsas sileiras. concedidas pelo sistema público. 10) A dificuldade de manter o alu- Propostas articuladas: linhas gerais no negro na universidade, em razão de de orientação para a articulação de graves fatores socioeconômicos que im- políticas públicas. plicam na falta de recursos básicos para o prosseguimento do estudo. Os participantes identificaram, 11) As dificuldades encontradas na como linhas gerais de orientação para a orientação de pesquisas sobre a temática: articulação de políticas públicas, a neces- além da escassez de professores titula- sidade de: dos com formação adequada para dar (1) mapear os pesquisadores, as orientação, verifica-se em certos casos instituições e os trabalhos que estão sen- a pouca sensibilidade e a falta de prepa- do realizados, para que pesquisadores e ro específico sobre o tema entre aqueles instituições possam conhecer quem so- que aceitam orientar. mos, onde estamos, o que estamos reali- 12) A existência de pesquisadores zando; que trabalham fora da estrutura formal (2) publicar, divulgar e socializar da academia, realizando pesquisas impor- os trabalhos realizados; tantes, freqüentemente produzindo assim subsídios para trabalhos acadêmicos. (3) legitimar academicamente essa Exemplos: além dos campos da educa- área temática, multidisciplinar e THOTH 3/ dezembro de 1997 214 Depoimentos

interdisciplinar, enquanto categoria de (9) divulgar as oportunidades de pesquisa, sem prejuízo da necessidade de, obtenção de fomentos e simplificar a sua ao mesmo tempo, apoiar pesquisas que execução, evitando a duplicação de exi- focalizam o tema nas diferentes áreas e gências burocráticas e a criação de pro- disciplinas acadêmicas já estabelecidas; cessos desnecessariamente complexos e (4) nomear a área em sua dificultados; especificidade, em vez de se recorrer a (10) incentivar a realização de se- eufemismos para encaixar as pesquisas minários e fóruns de debates que reú- em áreas convencionalmente reconheci- nam pesquisadores do âmbito acadêmi- das, não apenas como procedimento para co com aqueles da sociedade civil orga- a execução de projetos, mas sobretudo nizada; como gesto instaurador de novas pers- (11) articular a pesquisa realizada pectivas, inovadoras em relação ao que por integrantes e entidades do movimen- se produz convencionalmente, e para que to negro e da sociedade civil com as haja um nível de visibilidade capaz de pesquisas acadêmicas; criar mecanismos contribuir para a própria legitimação da para que os pesquisadores da comunida- temática enquanto área de pesquisa aca- de estejam presentes dentro da institui- dêmica; ção acadêmica, na execução das pesqui- (5) priorizar a formação de pro- sas, e para que esta traga benefícios à fessores orientadores capacitados para comunidade, ressaltando a importância, orientar efetivamente os pesquisadores nessa articulação, de organismos repre- cujos projetos focalizam esse tema; sentantes de pesquisadores e estudantes (6) apoiar iniciativas de fundação negros (como por exemplo o Cenun). e consolidação de departamentos, cen- Neste ponto, há uma urgência tros, núcleos ou institutos de pesquisa de prioritária para a área da saúde em natureza interdisciplinar, dentro e fora das relação a questões que afetam instituições acadêmicas, focalizando essa notadamente a comunidade afro-bra- área temática, sem prejuízo dos traba- sileira, tais como doenças raciais-étni- lhos sobre o tema dentro das disciplinas cas, AIDS, drogas, saúde mental, saú- convencionais; de da mulher, da criança e do adoles- (7) apoiar a criação de bibliotecas cente; especializadas e outros recursos, como (12) articular formas concretas videotecas, pinacotecas, bancos de da- de estreitamento de intercâmbio e co- dos e recursos disponíveis por meio da laboração entre o setor acadêmico, o tecnologia informatizada, e fortalecer os ensino superior e secundário e o ensi- projetos dessa natureza já em execução; no básico, de uma forma dinâmica e (8) definir formas de socialização contínua, e sobretudo em relação à dos caminhos para obter recursos para produção e distribuição de materiais di- pesquisas, dentro e fora da academia; dáticos e para-didáticos; Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 215

foto 20

Participantes da mesa redonda no Rio de Janeiro. Da direita para a esquerda: Abigail Páscoa, Hélio Santos, Lia Vieira THOTH 3/ dezembro de 1997 216 Depoimentos Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 217

(13) legitimar a pesquisa do existentes, o apoio às iniciativas que con- multiculturalismo na área educacional; tribuam para a execução das propostas (14) priorizar a formação de do- concretas relacionadas a seguir. centes especialistas para preencher as 3. Criar um órgão específico de demandas socioeducacionais dos grupos fomento às iniciativas de execução das étnicos excluídos em todos os níveis do propostas concretas relacionadas a se- ensino; guir. (15) priorizar a investigação do 4. Instituir, junto às agências de cotidiano escolar no que tange à questão fomento à pesquisa, a figura dos consul- racial em todos os níveis do sistema edu- tores para assuntos relativos à área dos cacional: educação infantil, séries inici- estudos da temática afro-brasileira. ais e finais do primeiro grau, o ensino 5. Apoiar a criação, dentro das médio e a universidade; universidades, de unidades de Estudos da (16) priorizar a discussão e o de- África e sua Diáspora com autonomia bate sobre o papel das políticas públicas acadêmica para implementação e desen- na reversão das desigualdades raciais; volvimento de suas atividades, tais como (17) priorizar a discussão e o de- cursos de graduação, programas de pós- bate sobre as políticas multiculturais que graduação strictu e lato sensu, cursos se apresentam no contexto brasileiro e de atualização e extensão. em outros contextos; 6. Incentivar e apoiar a publica- (18) valorizar e incentivar o levan- ção de trabalhos realizados e outras for- tamento e o estudo da documentação, mas de divulgação dos mesmos, como acervo e história das religiões afro-bra- produção de vídeos e outros recursos sileiras, bem como de sua importância audiovisuais. para a formação afro-cultural brasileira; 7. Apoiar a criação de cursos de (19) promover e incentivar a par- especialização e de atualização, para ticipação dos líderes espirituais das reli- orientadores de pesquisas em nível de giões em seminários, palestras e debates graduação e pós-graduação, bem como que ampliem as informações sobre as para professores universitários e do en- mesmas. sino básico. 8. Financiar concursos para a pro- Propostas concretas de ações e polí- dução de livros didáticos. ticas públicas 9. Financiar a criação de bibliote- 1. Priorizar a criação, pelos órgãos cas especializadas e de centros de re- de pesquisa já existentes, de rubricas cursos audiovisuais, e o fortalecimento capazes de nomear e legitimar essa área daqueles que já existem. de pesquisa específica. 10. Criar bolsas da Capes para o 2. Fortalecer, dentro das rubricas pré-vestibular. THOTH 3/ dezembro de 1997 218 Depoimentos

11. Criar formas de auxiliar os alu- 18. Fazer respeitar o princípio da nos que ingressam nas universidades por liberdade religiosa e igualdade de direi- meio dos cursos comunitários dos pré- tos e deveres para todos, incluindo nos vestibulares para negros e carentes3 no currículos, onde se ministra Educação sentido de garantir a sua permanência na Religiosa, o item Religiões Afro-brasilei- universidade, ajudando-os a custear os ras. estudos. 19. Incluir no programa de 12. Criar formas de complemen- reestruturação do patrimônio público cul- tar as bolsas oferecidas pelas universi- tural o tombamento, a restauração e a dades particulares com as quais os cur- reforma de espaços físicos religiosos sos pré-vestibulares para negros e ca- afro-brasileiros de relevante importância rentes mantêm convênios. na construção histórica da Nação, como 13. Apoiar iniciativas para a for- por exemplo, no Estado do Rio de Janei- mação de profissionais de saúde nos as- ro, as igrejas de Santo Elesbão e Santa suntos específicos à comunidade afro- Efigênia e Nossa Sra. do Rosário, bem brasileira. como algumas quase centenárias comu- 14. Apoiar a criação, dentro de nidades de terreiro, hoje relegadas ao instituições acadêmicas, de Centros de abandono. Atendimento à Saúde voltados também 20. Exigir dos meios de comunica- para as questões específicos à comuni- ção, concessionários do Estado, a dade afro-brasileira. reavaliação do tratamento freqüentemente 15. Incentivar a inclusão do levan- discriminatório, folclorizador, e des- tamento de dados relativos à questão ra- qualificador dado às tradições e religiões cial ou de cor em pesquisas realizadas afro-brasileiras. em todas as áreas e que digam respeito à realidade brasileira. Proposta dirigida a pesquisadores e 16. Incluir o item cor em levanta- instituições mentos oficiais que possam eventualmen- Convidamos os pesquisadores que lidam te servir como fontes de dados para pes- com vocábulos oriundos das línguas afri- quisas. canas circulantes no Brasil a refletir so- 17. Proceder ao levantamento dos bre o preciosismo ou esnobismo de grafar materiais didáticos e paradidáticos exis- esses vocábulos em seu estado original. tentes em relação o tema, e a divulgação Assinalamos a conveniência de se utili- desse levantamento no sentido de poder zarem, nesses casos, as regras para a subsidiar o primeiro e o segundo graus e grafia de palavras de origem africana e o pré-vestibular sobre os materiais já dis- indígena já estabelecidas por filólogos poníveis e onde se localizam, para serem como Antenor Nascentes. A adoção des- utilizados ao desenvolver trabalhos. sa prática traz implicações políticas posi-

3 Tais bolsas seriam concedidas diretamente aos alunos, já que os pré-vestibulares para negros e carentes anunciaram uma política de autogestão, não recebendo nenhum tipo de financiamento de fora. Projeto Estudos Contemporâneos Elisa Larkin Nascimento 219

tivas, pois, quanto mais abrasileirarmos 2. Publicar um órgão informati- os vocábulos de etimologia africana que vo sobre a rede de pesquisadores e ins- circulam no Brasil, mais estaremos tirando tituições que se inicia com este projeto deles o rótulo de “exóticos” para e com o banco de dados, em articula- incorporá-los oficial e definitivamente ao ção com os serviços informativos que léxico brasileiro e afirmarmos, assim, já existem em algumas instituições, no cada vez mais, a africanidade da língua sentido de ampliar e democratizar as falada no Brasil. informações reunidas por estas inicia- tivas4. Propostas concretas dirigidas ao 3. Assegurar outras formas de GTI, para o prosseguimento deste prosseguimento e socialização dos tra- Projeto balhos dessas mesas redondas, bem 1. No banco de dados que está como dos trabalhos e resultados das sendo construído pelo GTI em colabora- mesas redondas previstas em nível na- ção com a USP, sugerimos a cional. Como passo inicial neste senti- especificação, no questionário, das áre- do, todos os participantes de todas as as de atuação (saúde, educação, violên- mesas redondas devem receber cópi- cia, etc.) dos pesquisadores, bem como as dos relatórios, bem como cópias dos outras iniciativas no sentido de atingir um relatórios das reuniões em nível nacio- mapeamento não apenas dos pesquisa- nal e de outros textos produzidos no dores, mas também das instituições e dos decorrer do projeto. projetos de pesquisa realizados, em exe- cução e planejados para o futuro.

4 O Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) colocou à disposição, como auxiliar para este fim, o informativo eletrônico Afro-Notícias, acessível por meio de e-mail. Trata-se de um meio de divulgação de seminários e outros eventos, lançamentos de livros, defesas de tese e notícias políticas em relação à questão racial. A inscrição é gratuita. THOTH 3/ dezembro de 1997 220 Depoimentos As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 221 THOTH 3/ dezembro de 1997 222 Sankofa: memória e resgate THOTH 3/ dezembro de 1997 As civilizações africanas no mundo antigo 222 Sankofa: memória e resgate Elisa Larkin Nascimento 223

O conhecimento e a civilização As civilizações egípcios espalharam-se pelo mundo afo- africanas no ra, em viagens antigas nunca imaginadas por uma Europa que se julga única dona mundo antigo da tecnologia marítima e “descobrido- ra” solitária dos continentes. Pesquisas recentes comprovam a presença africa- na na Europa, na Ásia e nas Américas antigas. Em todos os cantos do mundo, o africano se fez presente, influenciando e enriquecendo as outras civilizações. Uma característica da civilização africana que tanto influenciou o mundo é a sua matrilinearidade. Na verdade, essa constitui uma das grandes qualidades pró- prias às antigas culturas africanas. De- vido à sua importância, nos deteremos, numa primeira parte deste texto, para fazer uma pequena reflexão a respeito dela. Na segunda parte do trabalho, apre- sentamos uma introdução à contribuição africana que influenciou os primórdios e a antiguidade do mundo todo. Dividimos Elisa Larkin Nascimento THOTH 3/ dezembro de 1997 224 Sankofa: memória e resgate

essa segunda parte em três seções: 1) a te, à lua, às coisas materiais, e à esquer- presença africana na Ásia; 2) a presen- da, que pertence à feminilidade passiva, ça africana na Europa; 3) a presença contrastada com a direita, ligada à ativi- africana na Américas. dade masculina” (Diop, 1978: 12). Cheikh Anta Diop, no seu livro A unidade cultural da África Negra: do- A civilização matrilinear e suas mínios do patriarcado e do matriarcado implicações na antiguidade clássica (1959, 1978), exa- Por ser uma característica cultu- mina detalhadamente as teorias ral eminentemente africana, o eurocentristas, mostrando a falsidade da matriarcado tem sido caracterizado pela suposição da evolução de todas as soci- antropologia e etnologia clássicas como edades humanas rumo ao patriarcado. uma forma primitiva de organização fa- Segundo essa teoria, por exemplo, civili- miliar. Os escritos de Friedrich Engels zações avançadíssimas como foram os (1943) constituem um exemplo perfeito impérios de Gana e Asante na África, e dessa atitude, uma vez que Engels reúne o Egito antigo, seriam ilustrações de um e avalia, aceitando como dados incontes- “estágio avançado da barbárie”, devido táveis as teorias de estudiosos europeus unicamente à sua estrutura social que postulavam uma evolução cultural matrilinear. Ao mesmo tempo, as tribos universal a todos os povos. Nesse con- nômades guerreiras germânicas, cujas ceito, existiriam várias fases de organi- práticas bárbaras (violência sistemática zação familiar: um estado de promiscui- contra as mulheres, infanticídio e cani- dade total e indiscriminado, em que o balismo, entre outras) foram registradas único parentesco conhecido de uma cri- pelos escritores romanos, representari- ança seria pelo lado da mãe; um estado am a fase da “civilização superior” gra- intermediário em que seria proibido o ças apenas ao seu sistema patriarcal. casamento entre irmã e irmão; a família Na verdade, mostra Diop, nunca monógama matrilinear; e finalmente a foi provado que algum povo tivesse avan- família monógama patriarcal. Desneces- çado de um estado “primitivo” matriarcal sário assinalar que, dentro dessa hierar- para o “superior”, patriarcal. Antropó- quia do suposto “progresso” humano, o logos constatavam sistemas matrilineares modelo europeu representa o estágio entre os povos que eles estudavam e que mais avançado. haviam anteriormente classificado como Como tudo que é europeu, de primitivos. Alguns desses povos, devido acordo com essa visão, o patriarcado é freqüentemente ao contato com o colo- superior. “Representa a espiritualidade, nizador europeu, começavam a adotar a luz, a razão e a delicadeza. O práticas características do patriarcado. matriarcado, por outro lado, se associa Então, os cientistas declaravam estar di- às entranhas cavernosas da terra, à noi- ante de uma “transição” entre os estágios As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 225

inferiores e superiores de evolução soci- uma população original, agrária e de ori- al, “prova” da sua universalidade! gem meridional (africana), com sua cul- tura matrilinear, posteriormente domina- Diop apresenta, no lugar da teoria da por invasores do norte. Esses invaso- do matriarcado universal “primitivo”, sua res eram povos nômades, guerreiros própria hipótese: a dos dois “berços” de agressivos, e praticavam o patriarcado. desenvolvimento humano, o do norte e o do sul. Segundo Diop, as formas de or- O caráter do sistema matrilinear ganização social surgem fundamental- não implica uma dominação da mulher mente das condições concretas da vida sobre o homem, mas a divisão de respon- dos povos. No norte, o cárater nômade sabilidades e privilégios. O poder é, na da existência dos povos indo-arianos im- maioria da vezes, compartilhado entre plicava uma subvalorização da mulher, mulher e homem, assegurando um equi- que constituía um empecilho à mobilida- líbrio estável nos negócios de Estado. de tribal, um peso a ser carregado nos No caso do Egito antigo, essa par- deslocamentos coletivos. Nesse contex- tilha do poder se expressa desde o pri- to, ela não tinha uma função econômica meiro e mítico soberano e deus, Osíris, produtiva. Por outro lado, nas civiliza- que exercia tanto o poder político como ções meridionais estáveis e agrárias, a o espiritual em conjunto com sua irmã e mulher desempenhava uma função cen- esposa Ísis. Esta, como já observamos, tral. Ela representava, socialmente, o valor ofereceu o conhecimento da agricultura, máximo da vida agrícola: a estabilidade. que Osíris prontamente transmitiu à hu- Suas atividades no campo garantiam o manidade como um todo, em viagens para sustento da coletividade, enquanto os outras terras. Assassinado por Set, Osíris maridos desempanhavam as funções ar- teve o seu corpo despedaçado, e os pe- riscadas, incertas ou até prejudiciais à co- daços espalhados pelos quatro cantos do munidade, como a caça, a pesca e a guer- mundo. Foi Ísis que reconstituiu o corpo ra. O papel da mulher no desenvolvi- de Osíris e o ressuscitou. Ela também mento da técnica agrícola constitui o tema ensinou ao filho Hórus os segredos e a de muitos mitos e lendas: Ísis, por exem- filosofia do pai, de forma a assegurar a plo, primeira deusa da mitologia egípcia continuidade da mensagem do Ma’at, a e irmã de Osíris, foi quem doou ao ho- filosofia da justiça, da verdade e do direi- mem o conhecimento da agricultura. A to que fundamentava a matriz ética da mulher, nessas sociedades agrícolas, é nação. protagonista da vida econômica, e o sis- tema social reflete esse fato. Essa história, sobre a qual se fun- dam as normas e práticas político-soci- Diop mostra que em muitos casos ais do Egito faraônico, estabelece uma onde houvesse uma aparente evolução base forte do exercício do poder em con- de sistemas matrilineares para patriar- junto. Nas palavras de Sonia Sánchez cais, inclusive o da Grécia antiga, houve (1985: 50) THOTH 3/ dezembro de 1997 226 Sankofa: memória e resgate

(...) as mulheres, assim como os A tradição das rainhas-mães afri- homens, eram consideradas divinas. canas estabelece-se na antiga Núbia ou Nessas condições favoráveis, as Cush, com a linhagem das kentakes (300 deusas retinham o seu prestígio ao se a.C. - 300 d.C.), que reinavam por direi- tornarem esposas; o casal constituía to próprio e não na qualidade de esposas, a unidade religiosa e social: a mulher com todos os poderes de administração atuava como aliada e complementar civil e militar (Clarke, 1985). Na Bíblia e ao homem; ela tinha os mesmos nos registros históricos, encontramos o direitos que o homem, os mesmos exemplo de Makeda (1005-950 a.C.), poderes na justiça: ela herdava, era rainha de Sabá, soberana de um reino que proprietária. Acima de tudo, as se estendia desde partes do Egito à Etiópia, mulheres ostentavam nomes que Sudão, Arábia, Síria e até a regiões da Ín- designavam os atributos divinos de dia. Além de controlar o comércio Deus. riquíssimo da região, de ouro, marfim, éba- no, pedras preciosas, óleos e especiarias, São abundantes os exemplos de as rainhas africanas dessa época, inclusi- mulheres soberanas no Egito antigo, tan- ve Makeda, se caracterizavam como to na esfera da condução e administra- grandes construtoras, sendo responsáveis ção do Estado como também nas esfe- pela ereção de palácios, estátuas, monu- ras religiosa e espiritual. Havia as rai- mentos, complexos urbanos, represas e nhas como Nefertiti, Tiye, Nefertari e sistemas hidráulicos sofisticadíssimos. outras, estadistas em regime de cola- boração com seus maridos faraós. Cleópatra não foi a única guerrei- Havia as sacerdotisas soberanas nos ra africana a enfrentar as legiões roma- centros primordiais do culto religioso, nas. Amanirenas, uma das kentakes ou num contexto em que o poder político candaces da Núbia, atacou os invasores e o espiritual eram igualmente funda- imperialistas em 29 a.C., liderando uma mentais à condução dos assuntos de guerra de defesa nacional que durou cin- Estado. Houve também uma faráo fe- co anos. Com um aparato bélico bem minina, Hapshetsut, que reinou sozinha superior, os romanos conseguiram des- durante a XVIII Dinastia. Cleópatra, truir várias cidades, até chegar à capital, muito além de ser a amante de um im- Napata. A rainha não capitulou: atacou perador romano, foi a estadista defen- de novo as já cansadas legiões de Roma, sora da soberania de seu país contra a e ganhou uma negociação direta com maior potência imperialista que o mun- César Augusto. Os romanos acabaram do conhecera. Ela conseguiu manter desistindo do tributo que queriam cobrar durante tanto tempo a independência de Cush. do Egito devido à sua competência po- A história da África conhece mui- lítica e ao seu poder de barganha e ne- tas rainhas-guerreiras, estadistas que em gociação enquanto chefe de Estado. vários casos enfrentaram militar e politi- As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 227

camente os escravistas e colonizadores europeus. Angola nos dá o exemplo da rainha N’Zinga, contemporânea de Zum- bi e soberana competente o suficiente para resistir aos dominadores portugue- ses e holandeses. Gana oferece a figura da rainha Yaa Asantewaa, que liderou a guerra dos Asante contra o domínio in- glês. Esses exemplos não configuram ca- sos isolados, mas confirmam uma tradição que nasce de profundas raízes histórico- culturais: o sistema social e político Esta “deusa negra” do Templo dos Leões em Naga, matrilinear que caracteriza, desde seus datada de 100 a.C., é provavelmente uma rainha primórdios, a civilização africana. meroítica descendente das kentakes, ou rainhas-mães, núbias. Fonte: (Van Sertima, 1984: 32)

A rainha Nefertiti, esposa de Akhenaton (Amenhotep IV), reinou durante a XVII Dinastia egípcia. Fonte: Van Sertima, 1984: 52 THOTH 3/ dezembro de 1997 228 Sankofa: memória e resgate

Cleópatra, desenho de Earl Sweeney. O pai de N’zinga, rainha-guerreira soberana de Angola, lutou Cleópatra, Ptolomeu XII, era filho ilegítimo de contra o domínio português e holandês num período Ptolomeu XI, fato esquecido por aqueles que a des- histórico contemporâneo a Zumbi dos Palmares. crevem como grega de sangue puro. Desenho repro- Fonte: ensaio de , in Van Sertima, duzido do ensaio de John Henrik Clarke, in Van 1984: 131 Sertima, 1984: 127 As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 229

Em vez de desprezar e reprimir a meno se deu não só dentro do território mulher, o modelo matrilinear estimula seu continental, como também no exterior. desenvolvimento como ser humano e, por- Com efeito, o africano e sua cultura se tanto, sua contribuição produtiva à soci- fizeram presentes em todos os cantos do edade em conjunto. Podemos indagar, mundo antigo. então, aos antropólogos europeus qual a Nesta segunda parte do presente civilização mais avançada: a que nega a texto, focalizamos as influências africa- metade da cidadania sua plena condição nas fora do continente, na Ásia, Europa humana ou aquela que reconhece e esti- e América. Pesquisas recentes, docu- mula em todos a sua capacidade de rea- mentando esses fatos, vêm sendo reali- lização e participação na vida coletiva? zadas em campos específicos. Seus re- De nenhuma forma estamos ale- sultados, entretanto, não têm sido ampla- gando que na África não existam o patri- mente divulgados, em razão não apenas arcado, o machismo e a opressão da de seu alto nível de especialização como mulher. Entretanto, os milênios de influ- também de sua natureza contestatória aos ência de outras culturas, sobretudo a pressupostos da supremacia branca ain- muçulmana e a judaico-cristã, têm seu da subjacentes aos padrões da academia papel nessas questões, que aqui não po- não especializada. O historiador guianês demos examinar por falta de espaço. Ivan Van Sertima, professor da Rutgers University, fundador e diretor da revista Journal of African Civilizations, tem A África no mundo antigo sido um pioneiro incansável no empreen- dimento de divulgar, editar e estimular os trabalhos nesse campo. Van Sertima Predomina na consciência coleti- editou vários livros sobre a África do va ocidental-eurocentrista um estereóti- mundo antigo (1983, 1985, 1985a, 1985b; po da África como continente escuro, Van Sertima e Rashidi, 1985), reunindo abrigando tribos primitivas, imóveis no trabalhos de pesquisa que documentam tempo e no espaço, com suas culturas e revelam, com fascinante riqueza de arcaicas e estáticas. Segundo essa ima- detalhes, a presença africana, tão domi- gem, não haveria comunicação e troca nante e fundamental à construção das de idéias entre as várias etnias africa- civilizações do mundo antigo. Esses tra- nas, e muito menos entre elas e o restan- balhos vêm confirmar as conclusões de te do mundo. filólogos e pesquisadores dos séculos A realidade histórica é bem o con- XVIII e XIX como Godfrey Higgins, trário desse estereótipo. Desde os seus Gerald Massey, George Rawlinson e primórdios, a África tem sido o palco de Albert Churchward (Rashidi, 1985; Van intensas movimentações, migrações e tro- Sertima, 1985). John Baldwin dizia no cas comerciais e culturais, e esse fenô- século XIX (1872: 66-7), por exemplo: THOTH 3/ dezembro de 1997 230 Sankofa: memória e resgate

Aceita-se hoje que povos da raça canas precursoras do Egito dinástico, tam- cushita ou etíope, também referida bém caracterizadas pela matrilinearidade: como hamita, foram os primeiros Cush e Núbia, ou Ta-Seti. Conforme já civilizadores e construtores em toda observamos (Thoth 1), o povo de Ta-Seti a Ásia Ocidental, e que são se chamava Anu-Seti, indicando sua cor evidenciados nos restos de suas negra. No Egito, anu significava ser línguas e arquitetura e na influência humano, e também a cor preta. Duas de sua civilização, nos dois lados do cidades importantes do Egito, Mediterrâneo, na África oriental e Hermonthis no sul e Heliópolis no nor- no vale do rio Nilo, como também te, chamavam-se Anu. A palavra anu no Hindustão e nas ilhas do mar também indicava o lar das almas Índico. renascidas das pessoas fisicamente mortas. A marca da civilização egíp- Uma primeira e fundamental ob- cia fica registrada, em regiões muitos servação sobre essa influência africa- remotas da Ásia e da Europa, por in- na no mundo antigo diz respeito à sua termédio da organização social de ca- natureza matrilinear. A literatura reli- ráter matrilinear e mediante essa pa- giosa egípcia registra uma primordial lavra anu, que iremos encontrar no expressão do fenômeno: as viagens de mundo antigo desde o Japão até a Ir- Osíris pelo mundo na sua missão landa. civilizatória a outras terras. Rei e deus do Egito, Osíris era o mestre da filoso- fia do Ma’at (teoria da verdade, da jus- A presença africana na Ásia tiça e do direito). Além de levar e ensinar a outros povos do mundo as ci- ências da agricultura e da metalurgia, A presença e a contribuição afri- bem como a arte da civilização, Osíris canas na construção da civilização nos pregava também a mensagem religio- vales dos rios Tigre e Eufrates está ex- sa e os princípios da moral e da ética tensamente documentada. John do Ma’at. De acordo com essa mes- Baldwin (1872: 17-18) dizia no século ma tradição, quando Osíris deixou o passado: Egito para cumprir essa missão, Ísis, sua irmã e esposa, reinava com sabe- Os povos descritos nos escritos doria, “em dignidade e em verdade”, hebraicos como os de Cush foram durante a ausência do governante-par- os civilizadores primordiais do ceiro (Sánchez 1984). Sudoeste Asiático, e na mais remota antiguidade sua influência se A presença africana nas civili- estabeleceu em todas as regiões zações asiáticas, bem como na Europa litorâneas, desde o extremo leste até e nas Américas, nos remete em pri- o extremo oeste do Mundo Antigo. meiro lugar àquelas civilizações afri- As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 231

Suméria e Elam Susa deixou para os anais da his- tória o legendário herói e rei guerreiro A história universal conhece como Memnon, o Etíope. Filho de Titono, go- primeira presença cultural na Ásia oci- vernador da Pérsia, Memnon se aliou a dental a do Suméria, nação que flores- Tróia, liderando uma força de dez mil ceu no vale dos rios Tigre e Eufrates du- susianos e dez mil etíopes em sua defe- rante o terceiro milênio antes de Cristo. sa. Foi cantado por Homero, Virgílio, Tudo indica que Suméria foi uma entre Ovídio, Diodorus Siculus e outros poetas várias colônias de Cush, com população romanos: “Era preto como o ébano e o e cultura originárias do vale do rio Nilo. homem mais bonito que vivia, e como Os próprios sumérios denominavam-se Aquiles, usava armas forjadas por a si mesmos “cabeças-pretas”, numa Hafestos.” auto-identificação que os distinguia de outros povos da região. Foram esses Os descendentes de Elam conti- cabeças-pretas, de provável origem afri- nuaram presentes na história da região. cana, o povo responsável pela constru- O Baluquistão (área que compreende par- ção e florescimento da famosa cidade- te do Irã e parte do Paquistão) ficou co- Estado de Ur. Na terceira dinastia de nhecido como Gedrósia, o país dos escu- Ur, um dos governantes (2142-2122 a.C.) ros, e em tempos modernos sua popula- foi Gudea, que subjugou Susa e grande ção negra ainda se destaca. Um parte de Elam. Gudea construía templos renomado historiador da Pérsia conclui ao deus Anu. Grandes construções ur- que o país seria povoado originalmente banas caracterizavam Ur, com pirâmides por “negros, aqueles conhecidos pelos cujas laterais subiam na forma de esca- gregos como Anariakoi ou não-arianos e das no estilo núbio (as chamadas que viviam no litoral ao norte do golfo ziggurats). Pérsico até a Índia, e seus descendentes sobreviveram naquelas regiões distantes” A primeira cultura avançada da do Baluquistão (Percy Sykes, apud Pérsia (hoje Irã) se chamava Elam e ti- Rashidi, 1985: 22). Até hoje, a região se nha sua capital em Susa. Desde o século chama Khuzistan, terra de Khuz ou Cush. passado, arqueólogos europeus demons- traram semelhanças significativas entre as culturas materiais de Elam e do vale Arábia do rio Nilo. A ascendência da divindade feminina Kirisha ou Pinikir e a posição A península Arábica, habitada des- de relativa igualdade da mulher (ela assi- de há mais de oito mil anos, foi povoada nava documentos, conduzia negócios, her- originalmente por negros, chamados dava e deixava patrimônios, representa- Veddoids, cujos descendentes hoje for- va em juízo) indicavam o caráter mam parte significativa da população da matrilinear da sociedade, confirmado pela Arábia do sul. A proximidade da Arábia forma da sucessão real. à África Oriental sempre implicou o in- THOTH 3/ dezembro de 1997 232 Sankofa: memória e resgate

tercâmbio e, em vários momentos histó- Índia ricos, a fusão de Estados e povos da Áfri- A Índia constitui um exemplo clás- ca e da Arábia, sobretudo na fase pré- sico da teoria dos dois berços formulada islâmica, cuja civilização pertence à re- por Diop. Povoada originalmente por uma gião sul, chamada Arábia Feliz na litera- população africana que vivia da agricul- tura greco-romana. Essa região recebeu tura e que desenvolvia uma civilização migrações do norte, e a mistura entre os de origem africana, a Índia foi invadida negros e migrantes resultou na popula- mais tarde pelos arianos, povos nômades ção de Sabá, cuja lendária rainha Makeda e guerreiros que dominaram os habitan- administrou um reino próspero e exten- tes originais e lhes impuseram uma cul- so, repleto de centros urbanos e rico em tura alheia, de natureza patriarcal, ca- produção agrícola, esta apoiada num sis- racterizada, entre outras coisas, pelo sis- tema avançado de irrigação aliado a uma tema de castas. terra excepcionalmente fértil. O comér- cio florescia, auferindo grandes lucros, e a ciência avançava, sobretudo nos cam- pos da engenharia e da medicina. Tudo isso propiciou as condições para que a rainha Makeda realizasse a visita diplo- mática ao rei Salomão de Israel, osten- tando enorme riqueza e sendo recebida como estadista poderosa a tratar de ne- gócios políticos e econômicos. Menelik, o filho de Makeda com Salomão, inicia uma linha real da Etiópia que continua desde aquela época até o reino de Hailé Selassié, quase três mil anos depois. No VIII século antes da era cris- tã, o rei Samsi e sua rainha It’amra (721- 705 a.C.) erigiram complexos arquitetônicos como o templo Awwam, comparável ao Grande Zimbábue. Sua maior conquista tecnológica, entretanto, foi a construção da represa Marib, que serviu à popula- ção durante mais de mil anos. Seus portões ainda existem, bem preservados, testemunhando a grandeza do empreen- dimento. O Buda da Índia, século I da era cristã. Fonte: Van Sertima e Rashidi, 1985: 81 As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 233

Jovens dravidianos modernos. Marco Polo chamava Dravida de “A Índia Maior”. Tudo indica que os dravidianos, um povo de evidente origem africana e cujos costumes, língua e herança cultural exibem laços com a antiga civilização egípcia, foram os construtores dos complexos urbanos de Harappa e Mohenjo-Daro. Após conquista- dos, foram reduzidos ao status de escravos, sendo eles os sudras (negros), ou intocáveis, do sistema de castas. Fonte: Van Sertima e Rashidi, 1985:40

Duas esculturas, uma máscara em terracota (Harappa, 2.300 a.C.) e uma estatueta de figura feminina em bronze (Mohenjo-Daro, 2.500 a.C.), retratam um tipo físico africano. Fonte: Van Sertima e Rashidi, 1985: 85 -98 THOTH 3/ dezembro de 1997 234 Sankofa: memória e resgate

Heródoto, o grande escritor grego raça cuxita ou etíope de fato se estendia, conhecido como Pai da História, nos nos tempos mais remotos, pelo litoral do conta: “Existem duas grandes nações oceano do Sul desde a Abissínia até a etíopes, uma em Sind e outra no Egito”. Índia. Toda a península da Índia era po- Sind significa a região correpondente à voada por uma raça dessa natureza an- Índia e ao Paquistão de hoje. O historiador tes da chegada dos arianos.” e antropólogo indiano Bharatiya Vidya A primeira grande civilização in- Bhavan, falando da história de seu país, diana é aquela do vale do rio Indo, com afirma (apud Chandler, in Van Sertima e sua capital Harappa, que floresceu de Rashidi, 1985: 80, 82): “Temos de começar 2200 a 1700 a.C. e foi conquistada, por com os povos negros ou negritos da Índia volta de 800 a.C. , pelos arianos, que to- pré-histórica, que foram seus primeiros maram as terras do Paquistão e de toda habitantes. Originalmente, parecem ter a Índia do norte. Essa civilização origi- vindo da África através da Arábia e das nal era agrícola e sua população, negra. costas do Irã e Baluquistão.” Depois da conquista, os arianos impuse- ram um sistema de castas baseado em critérios raciais. A própria palavra Diodorus Siculus, historiador ro- varna, que em sânscrito significa casta, mano escrevendo no reinado de César também quer dizer “cor”. A casta infe- Augusto, refere-se (apud em Rashidi, rior se chamava sudra, ou seja: “negro”. 1985: 34) ao deus Osíris, símbolo e perso- Evidentemente, a degradação do povo nagem histórico da civilização africana: conquistado, com base na sua identidade negra, foi uma das técnicas de subjuga- Da Etiópia ele passou pela Arábia, ção. O fato constitui um exemplo, entre fronteiriça com o mar Vermelho, até muitos, indicando que o racismo não co- a Índia e as mais remotas costas meça com o capitalismo mercantil euro- habitadas. Construiu muitas cidades peu do século XVII. na Índia, uma das quais chamou de Nysa, querendo manter a lembrança No VI século a.C., surge uma con- daquela, no Egito, onde foi criado. Ele testação profunda a esse sistema de cas- deixou muitas marcas de seu ser tas. O culto fundado por Siddhartha nessas partes, pelas quais os Gautama, o Buda, nasce e floresce entre habitantes são induzidos a afirmar, e as populações negras das regiões cen- afirmam, que esse deus nasceu na tral, oriental e sul da Índia. O próprio Índia. Buda é evidentemente negro: é só exa- minar suas estátuas e constatar os tra- Estudos lingüísticos e dos sistemas ços africanos clássicos para se conven- de escrita da região confirmam, nas pa- cer do fato. lavras de Henry e George Rawlinson (apud Rashidi, 1985: 33), “(... ) que uma Cumpre registrar também a dinas- tia Nanda do século IV a.C., de origem As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 235

sudra (negra) e responsável por uma re- samurai ter coragem, é preciso que te- nascença cultural importantíssima. A di- nha sangue negro.” nastia Mauryana, também negra, a su- Os negros ainu, caracterizados cedeu, e esse poder sudra se extendeu nas lendas como anãos (fato que indica durante 150 anos (Van Sertima e Rashidi, uma ascendência twa), aparecem em 1985: 38-42). toda a história chinesa, inclusive consti- Hoje, a população negra indiana tuindo algumas das dinastias mais anti- continua enorme, na pessoa dos gas. As chamadas dinastias divinas co- dravidianos, os “etíopes orientais” da li- meçam com a de Fu-Hsi (2953-2838 teratura grega. Interessante observar que a.C.). Negro de cabelo lanudo, esse até hoje a grande maioria das divindades monarca foi o responsável pela origem cultuadas pelos dravidianos do sul da Ín- das instituições políticas, sociais, religio- dia são deusas-mulheres. sas e da escrita que iriam perdurar na China. Shen-Nung (2838-2806 a.C) in- troduziu a agricultura no país. Mais uma China, Japão e Sudeste Asiático vez, constatamos a natureza matrilinear nas culturas dessas dinastias. Na China, a presença do negro africano data do período plistoceno (de Da China, ainda de acordo com 50 mil a 10 mil anos atrás). James E. Brunson, os negros migraram para o Brunson, no seu ensaio sobre a presença Camboja, onde desenvolveram a cultura africana na China (in Van Sertima e Funan, que floresceu por volta de 300 Rashidi: 1985: 120-37), relata que se en- d.C., com uma tecnologia de engenharia contram restos do Homo sapiens hidráulica muito avançada. No século sapiens negro, denominado Liu Chiang, VI, os khmer absorvem essa cultura e a nas províncias de Szechuã e Kiangs. A misturam com o culto budista a Shiva. mitologia chinesa, em vários casos, iden- Responsáveis pelo famoso complexo tifica uma raça original chamada Ainu, arquitetônico de Angkor Wat, os khmer de nariz chato e cabelo duro. Conforme eram “escuros, com o cabelo em carapi- já observamos, a palavra Ainu originou- nhas”. se no Egito, onde designava o ser huma- no e a cor preta, e se espalhou através do mundo antigo com essa conotação da cor negra. De acordo com os dados levanta- dos por Brunson, os ainu também estão presentes na história japonesa, com des- taque para o comandante Sakanouye Tamuramaro, cuja valentia lendária é ho- menageada com o provérbio: “Para um THOTH 3/ dezembro de 1997 236 Sankofa: memória e resgate

O Buda na Tailândia, no século VI ou VII. Fonte: Van Sertima e Rashidi, 1985: 45

À esquerda, jovem da Malásia moderna. À direita, escultura chinesa da dinastia Shang, com tipo humano melanésio. Fonte: Van Sertima e Rashidi, 1985: 44, 128 As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 237

A presença africana na Europa antiga vestígios desse culto e provas de sua exis- tência na Europa desde muito cedo. O historiador romano Plínio, escrevendo no Desde a Grécia antiga e suas ilhas, II século d.C., observa a prática desse a presença africana pode ser constatada culto na Inglaterra e na Alemanha. Tal- na Europa por meio de riquíssima docu- vez tenha sido introduzido com as incur- mentação arqueológica, lingüística e his- sões de Senusert I e Tutamés III, faraós tórica. James Brunson (in Van Sertima, egípcios que visitaram a Europa entre 1985: 62) conclui seu ensaio sobre o as- 1.900 e 1.450 a.C. As legiões romanas sunto com a seguinte observação: que invadiram e conquistaram a Europa até o seu extremo norte incluíam tam- (...) não se pode negar a presença e bém grande número de africanos, muitos o papel africanos na Europa antiga dos quais certamente praticavam o culto (isto é, as ilhas mediterrâneas e Egéia, a Ísis. Existe também, o registro de mais e a própria Grécia). Schliemann, após de mil etíopes que invadiram a Espanha excavação em Tiryns e Myceanae, por volta de mil anos antes da era cristã, replicou aos seus colegas e e que ficaram na região de Cádiz, duran- estudiosos: “A mim me parece que te um século e meio, formando uma co- esta civilização pertencia a um povo munidade coesa com capital em Talikah. africano.” Sobre Creta, observou A comunidade tinha um rei eleito e es- Evans: “Gostem ou não do fato, os trutura sóciopolítica definida, antes de ser estudiosos clássicos são obrigados a aniquilada pelos romanos, quando inva- considerar as origens. Os gregos que diram e conquistaram o país (Van discernimos nessa nova aurora não Sertima, 1985: 134-135). eram nórdicos de pele clara, mas Entre as mais fortes influências essencialmente a raça de cabelo preto africanas na Europa está a dos mouros1. e pele escura.” Estes têm origem no povo garamante, que Um fenômeno que merece desta- habitava o Saara por volta do ano 5.000 que é a proliferação de Nossas Senho- a.C. Após invadir o Egito em 640, os ras negras em toda a extensão da Euro- mouros atravessaram até a Espanha, sob pa, sendo mais famosas as de Loretta na a liderança do general Djebel el Tarik, Itália, Nuria na Espanha e Czestochawa cujo nome deu origem à palavra Gibraltar. na Polônia. As imagens dessas madonas O domínio africano na Europa durou de negras correspondem a uma prática reli- 711 até 1260, e gerou uma renascença giosa que tem origem no culto a Ísis, deusa nas artes, ciências, e literatura. A mate- núbia e egípcia da fertilidade, irmã e es- mática, a arquitetura, a religião, enfim, posa de Osíris e mãe de Hórus. Existem quase todas as manifestações culturais

______1 Ver discussão sobre a identidade racial dos mouros no ensaio desta autora, “Sankofa: significado e intenções”, na revista Thoth no 1. THOTH 3/ dezembro de 1997 238 Sankofa: memória e resgate

européias sofreram a influência africana outro africano, ficou conhecido sobretu- dos mouros. E o centro de todo esse do pela sua preocupação com a pobreza reflorescimento da atividade intelectual e sua generosidade. Foi autor de vários era exatamente o , sede da grande hinos e ensaios teológicos. Tanto ele civilização negra do Egito. como os outros dois papas negros foram canonizados. Pouco conhecida é a existência de três papas africanos da igreja católica Esses papas são descritos e retra- durante os primeiros séculos de sua exis- tados em desenhos feitos pelos seus con- tência. O primeiro é Vítor I, 14o papa temporâneos como africanos fisicamen- depois de São Pedro. Assumiu a cadei- te bem caracterizados. Entretanto, as re- ra papal no ano 189 d.C. e foi o respon- presentações posteriores, em livros didá- sável pela fixação da festa da Páscoa no ticos e histórias da Igreja, os pintam como domingo. Também foi o primeiro a cele- brancos de clássico perfil romano. A brar a missa em latim. Miltíades, que falsificação da história fica patente na assumiu em 311, testemunhou a suspen- comparação dos retratos (Edward Scobie, são da perseguição aos cristãos e a vitó- “African popes”, in Van Sertima, 1985: ria de Constantino. Gelásio I (492-6), 96-107).

À direita, o papa Vitor I, retratado à época com fisionomia africana. À esquerda, o retrato do mesmo papa exibido no Vaticano. Fonte: Edward Scobie, “African popes”, in Van Sertima, 1985: 98-9 As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 239

À esquerda, brasão de família da Inglaterra, com fisionomia acentuadamente africanóide. À direita, um cavaleiro andante medieval, normando, também evidentemente africano. Há vários outros exemplos, citados e ilustrados por em sua resenha do livro Ancient and modern Britons, de David MacRitchie, publicado em 1881. Fonte: Van Sertima, 1985: 251-60

À esquerda, retrato de um mouro em Marrocos, datado de 1841. À direita, um exemplo da imagem do santo Johannes Morus, símbolo sagrado da figura do mouro na Europa. Esse ícone, do século XIX, encontra-se hoje num museu alemão. Fonte: reproduzidas do ensaio de Wayne B. Chandler (in Van Sertima, 1985: 146 e 162) THOTH 3/ dezembro de 1997 240 Sankofa: memória e resgate

Quanto à Europa do Norte, um dos europeus. Relatam freqüentes encontros fatos históricos que ensejam a presença dos romanos com esses africanos. Os africana é que o Estado egípcio consti- vikings, os anglo-saxões e até os habi- tuía o poder marítimo vigente, tanto no tantes da Groenlândia tiveram contato sentido bélico como comercial, da anti- com africanos em épocas remotas, de guidade. Sua indústria de armas e uten- acordo com a sua literatura e tradição sílios, feitos de bronze, requisitava a utili- oral (Luke, Clegg e Rashidi, in Van zação do estanho, e desde a XII dinastia, Sertima, 1985: 223-60). quase dois milênios antes de Cristo, faraós A riqueza de evidências e detalhes como Senusert I e Tutamés III enviavam apresentada nos trabalhos reunidos por expedições navais à Europa do norte em Ivan Van Sertima constitui um universo busca desse metal. De acordo com fascinante, revelando os resultados de MacRitchie, um dos destacados historia- pesquisas e estudos científicos caracte- dores desse país, três províncias da Es- rizados pelo rigor acadêmico e a docu- cócia eram negras até o século X, e no mentação exaustiva estabelecidos por século XVIII as ilhas ocidentais de Skye, Cheikh Anta Diop como modelo e pa- Jura e Arran ainda tinham maioria negra drão do trabalho afrocentrado. Esta bre- (Luke, “African presence in the early ve exposição não faz justiça nem ao es- of the British Isles and forço nem às realizações de seus auto- Scandinavia” e Rashidi, “Blacks in early res. Entretanto, não poderíamos deixar Britain”, in Van Sertima, 1985). Até hoje de registrar, mesmo inadequadamente, a são notórios na Irlanda os fomorianos, existência e a dimensão desses estudos lendários andarilhos marítimos africanos sobre a presença e a influência africa- que a invadiram e a tentaram conquistar nas na Europa. em tempos remotos. Duas deusas cultuadas na religião tradicional irlande- sa, Nath e Anu (Aine ou Danu), remon- A presença africana nas Américas tam à prática na Irlanda dos cultos egíp- cios a Neith e Hathor. Dois morros ir- Não é de hoje que se observam os landeses que lembram seios pela sua for- rastros africanos nas Américas pré-co- ma física são conhecidos como os seios lombianas. Já em 1862, o historiador de Anu. Assim, mais uma vez encontra- mexicano Orozco y Berra os constatava mos a reminiscência lingüística do Anu- no seu livro História antiga e da con- Seti nubiano. quista do México, e em 1922 se publi- Nas mitologias escandinava, ingle- cava o primeiro volume da trilogia A Áfri- sa, francesa e alemã encontramos refe- ca e a descoberta da América, de Leo rências a homens pretos, de pequena es- Wiener. As pesquisas de Alexander von tatura e cabelos lanudos. Essas referên- Wuthenau revelam na arte pré-colombia- cias são mais explícitas nos escritos dos na, sobretudo na do México, uma riqueza romanos que as relativas aos bárbaros enorme de testemunhos visíveis da pre- As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 241

sença pré-colombiana de africanos nas Van Sertima enumera os vários Américas. Entretanto, é Ivan Van estudos que, em diversas áreas de es- Sertima, no seu livro They came before pecialização, constataram nas tradições Columbus (1976), que reúne de forma orais e escritas dos maias freqüentes mais sintética as evidências dessa hi- referências ao “povo negro que veio pótese, colhidas por diversos pesqui- da nascente do sol”, como o descreve sadores, inclusive os citados, em cam- o Popul Vuh, obra que equivale a uma pos tão variados como a etnologia, espécie de bíblia, registrando o conhe- craniologia, botânica, arqueologia, o- cimento mítico-religioso e histórico dos ceanografia, filologia, história cultural, maias. Há uma identidade de palavras lingüística e serologia. Riquíssimo em e expressões entre as línguas maia, inca detalhes e ilustrações, o livro é capaz e egípcia que ultrapassa os limites do de convencer o mais cético dos leito- acaso. A identidade entre as técnicas res quanto à veracidade da tese apre- de engenharia e arquitetura das pirâ- sentada. mides egípcias e mexicanas, bem como as relações espaciais e astronômicas Van Sertima demonstra, relatan- nelas representadas, também é algo do minuciosamente os fatos, que até demasiadamente preciso para se atri- 1974 haviam aparecido crânios buir à sorte. As técnicas de mumi- africanóides em Titilco, Cerro de las ficação utilizadas pelos indígenas no Mesas e Monte Albán, no México, con- México e outras partes da América do firmando a opinião do antropólogo Norte, bem como na Colômbia e prin- Frederick Peterson de que existia en- cipalmente no Peru, são idênticas àque- tre os anciãos do período pré-clássico las desenvolvidas no Egito antigo. Es- da civilização dos maias, povo pré-colom- sas técnicas envolvem substâncias quí- biano do México e América Central, “um micas de fórmulas extremamente substrato de características negróides que complexas, as quais seria muito difícil se misturava aos mágicos”. reproduzir por acaso ou coincidência Os esqueletos e os crânios es- entre um continente e outro. tudados por especialistas demonstram Talvez o testemunho mais elo- a presença de 13,6% de africanos na qüente dessa presença africana nas população olmeca (precursora dos Américas se encontre nas gigantescas maias) do período clássico. Diante cabeças da cultura olmeca, a primor- dessas pesquisas, complementando as dial entre as mexicanas. Localizadas informações antes conhecidas, a As- no centro do território sagrado desse sociação Internacional de Ame- povo, em La Venta, San Lorenzo e Três ricanistas reconheceu em 1974 que Zapotes, as esculturas pesam 40 tone- não faltavam mais fatos para compro- ladas cada, feitas de um só pedaço de var a presença africana nas Améri- basalto. Reproduzem com exatidão o cas antigas. tipo étnico africano, a ponto de consti- THOTH 3/ dezembro de 1997 242 Sankofa: memória e resgate

tuírem retratos perfeitos de guerreiros ou reis nubas. Van Sertima coloca lado a lado fotografias das esculturas des- ses africanos, deixando clara a identi- dade entre ambos. Da mesma forma, justapõe retratos de reis mandingas com esculturas de barro pré-colombi- anas, representando deuses mexicanos de Vera Cruz e Oaxaca, por exemplo, e mostrando a identidade não só dos traços físicos como de detalhes como brincos e penteados. Esses “testemu- nhos visíveis” reunidos por Von Wuthenau e Van Sertima são retratos altamente sofisticados dos africanos nas Américas, imortalizados na finíssima escultura indígena da época. Cabeça mandinga no México do século XIV. Feita pelos mixtecas de Oaxaca. Compare-se com a cabeça clássica do Benim. Fonte: Van Sertima, 1976: fig. 5

À esquerda: cabeça esculpida em pedra, retratando um tipo africano da cultura olmeca (Vera Cruz, período clássico). À direita, em cerâmica, uma figura miscigenada (Vera Cruz, período clássico). Fonte: Van Sertima, 1976: figs. 4A e 24 As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 243 , embarcação construída por africanos do lago Chade, reproduz a mais a reproduz Chade, lago do africanos por construída embarcação , Ra I naval desenvolvida pelos antigos egípcios. Fonte: primitiva engenharia Sertima, 1976: fig. 12 Van As correntes marítimas, chamadas pelos africanos de “rios dentro do mar”, Sertima, 1976: fig. 10 Van Américas. Fonte: que vão da África até as THOTH 3/ dezembro de 1997 244 Sankofa: memória e resgate

Duas gigantescas cabeças africanas, em basalto, do período pré-clássico da cultura olmeca, no México, ambas encontradas em San Lorenzo. Fonte: Van Sertima, 1976: fig.29

Compare-se a cabeça de um chefe nuba, do sul do Sudão, com uma cabeça olmeca em pedra encontrada em La Venta. Fonte: Van Sertima, 1976: fig. 27 As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 245

As cabeças africanas aparecem Núbia estavam reunificando politicamen- dentro de complexos arquitetônicos que te, sob a sua égide, um Egito há muito constituem praças cerimoniais-religiosas desestabilizado por invasões e conquis- ladeadas por pirâmides. Essas pirâmides tas que desagregavam suas estruturas. mexicanas são feitas no estilo núbio, com A XXV Dinastia egípcia, a dinastia dos as laterais em forma de escadas. Sur- faraós núbios (Piankhy, Shabaka, gem no México sem vestígios de prece- Shabataka, Taharqa), foi a responsável, dente ou antecessor, enquanto na África entre 900 e 600 a.C., por uma renascen- o milenar processo de desenvolvimento ça da cultura clássica egípcio-núbia e pelo dessa engenharia encontra concretamen- restabelecimento de sua unidade políti- te manifestado nas formas predecessoras ca. O Egito sob os reis núbios constituía, encontradas em sítios arqueológicos. no período, a maior potência bélica do Uma série de outras marcas rituais, mundo. E exatamente nesse período arquitetônicas, simbólicas, artísticas, mi- aparecem no México as enormes cabe- tológicas e tecnológicas em relação a ças de rosto e cabelo africanos, portan- essas praças cerimoniais e às práticas do o elmo usado pelos guerreiros núbios. religiosas mexicanas constituem comple- Neste contexto, torna-se compreensível a xos de fenômenos culturais tão detalha- atitude dos americanos ao erigir monumen- dos e específicos que sua comunalidade tos tão impressionantes aos representan- à África e às Américas ultrapassa as tes desse povo estrangeiro visitante. possibilidades da mera coincidência. A dúvida sobre a capacidade dos A partir do período de elaboração antigos africanos de atravessar o mar das gigantescas esculturas olmecas, en- reflete o preconceito histórico antia- tre 900 e 500 a.C., Van Sertima identifi- fricano. A experiência marítima africa- ca os africanos retratados como possí- na era muito superior à dos europeus do veis integrantes da poderosa marinha século XV. Para os egípcios, a constru- mercante e bélica núbia, e propõe esse ção naval, o comércio marítimo e a mari- período de contato como sendo o mais nha de guerra não constituíam novidade importante entre uma série de visitas afri- alguma, pois desde 2.600 a.C. construí- canas às Américas. am naves de grande porte. Tecnicamen- Para articular uma visão não- te, os navios africanos eram sensivelmente eurocentrista desses fatos, impõe-se ne- superiores às caravelas européias de dois cessariamente a referência às civilizações milênios mais tarde. Suas estruturas, em africanas clássicas. Realmente, seria papiro ou madeira costurada, eram flexí- difícil conceber a presença africana no veis e portanto agüentavam melhor o México há dois milênios e meio sem co- impacto das águas em tempestade. Uti- nhecer o estágio de seu desenvolvimen- lizavam ao mesmo tempo o remo e a vela, to naquela época. Trata-se de um perío- o que permitia a propulsão do navio nas do em que os faraós africanos da antiga calmarias. Colombo e seus colegas, ao THOTH 3/ dezembro de 1997 246 Sankofa: memória e resgate

contrário, dependiam unicamente da vela, no meio do mar” que levavam, e levam, ficando dias ou semanas parados no meio o navegante numa trajetória infalível em do mar. Os fenícios, famosos marinhei- direção às Américas. Trata-se de parte ros da antiguidade que navegavam na- do mesmo complexo de correntes marí- quele tempo a serviço dos reis núbios, timas que trouxe Pedro Álvares Cabral utilizavam naves construídas pelos afri- até o Brasil. Algumas dessas correntes canos ou então a partir de modelos dese- partem da costa ocidental da África di- nhados por seus engenheiros. Com suas retamente em direção à península do duas viagens transatlânticas no Ra I e Iucatán, região do litoral mexicano onde Ra II, em 1964 e 1965, o norueguês Thor floresciam naquela época as civilizações Heyerdahl (1971) provou na prática con- clássicas maia e tolteca. Exatamente em creta a viabilidade para a travessia às 1311, de acordo com a concepção cíclica Américas do modelo mais simples do do tempo no calendário maia, o Popul navio egípcio em papiro. Vuh registra o retorno à sua terra do deus- serpente emplumado, Quetzalcoatl, na As técnicas de navegação utiliza- forma de um homem escuro, alto e das pelos africanos para atravessar o barbado, vestido de branco. O retrato Saara ultrapassavam em sofisticação e coincide perfeitamente com a figura do eficácia as dos navegadores de Colombo, imperador africano islamizado, que tra- que de acordo com ele próprio “eram java vestes brancas e portava barbicha. cegos e só conseguiam localizar-se quan- do se aproximavam da terra”. Os nave- O embarque de Abubakari foi re- gadores europeus não conheciam a lon- gistrado pelos historiadores árabes da gitude, referência utilizada pelos chine- época, respeitados convencionalmente ses e pelos árabes (termo que pelos historiadores como fonte fidedigna freqüentemente significa africanos de dados históricos africanos. Levando islamizados) desde dois séculos antes de em conta as correntes marítimas e as via- Cristo. gens de Heyerdahl, entre outros fatos, fica patente a viabilidade da chegada às Um segundo momento do contato Américas do imperador africano. A pro- entre a África e a América emerge dos liferação de práticas religiosas e rituais registros das tradições orais dos maias iguais, as identidades de complexos de no México e dos africanos do Império de traços culturais, elementos lingüísticos, Mali no século XIV. O imperador deuses e divindades, mitos e símbolos, Abubakari II, irmão do lendário Mansa compartilhados entre a cultura maia e as Musa, assume o trono na primeira déca- culturas africanas de Mali, fornecem a da daquele século. Fascinado pelas his- corroboração da tese. Vale a pena ob- tórias que lhe contam os seus súditos pes- servar, mais uma vez, entretanto, que, cadores dos territórios litorâneos, quando encaramos o volume de materi- Abubakari manda construir uma frota al reunido no livro de Ivan Van Sertima, de navios e embarca, em 1311, pelos “rios fica mais do que evidente que o único As civilizações africanas no mundo antigo Elisa Larkin Nascimento 247

obstáculo à aceitação geral da tese da de sua primeira viagem, este o negou, presença africana nas Américas antes desconfiando da vericidade das informa- de Colombo é o eurocentrismo, que não ções. Mas se arrependeu amargamen- deixa a ciência abalar sua convicção da te o rei quando, na volta de Colombo da inferioridade africana. primeira viagem, teve oportunidade de conhecer índios vivos e outras provas da Desde sua primeira viagem às existência das novas terras. Baseando- Américas, Colombo realizava trocas com se, então, em informações obtidas de fon- os índios caribenhos, que lhe vendiam tes africanas por Bartolomeu, irmão de tecidos africanos (almayzars) e outras Colombo, e confirmadas pelo joalheiro e peças elaboradas a partir de tradições geógrafo Jaime Ferrer, que comerciava próprias à África Ocidental. Na sua se- na África, Dom João confiou a Colombo gunda viagem ao Caribe, Colombo obte- o encargo de negociar com os reis da ve dos indígenas da ilha de Espanhola Espanha o Tratado de Tordesilhas. Esse (hoje República Dominicana e Haiti) vá- tratado reservou para Portugal as terras rias pontas de lança feitas de uma liga continentais ao leste da linha traçada, que metálica aromática, que os índios afirma- mais tarde viriam a constituir o Brasil. vam ter adquirido dos “homens negros e altos que vinham de onde nasce o sol”. Não havia, na Europa daquela épo- Os índios chamavam essas pontas de lan- ca, qualquer noção da existência, ao sul ça de gua-nin. Em Portugal, após en- das ilhas visitadas por Colombo, de ter- trevista com Colombo, o rei mandou ana- ras continentais sul-americanas. Os reis lisar a liga metálica, que resultou ser exa- da Espanha assinaram o tratado sem sa- tamente aquela utilizada na África Oci- ber que estavam entregando a Portugal dental, feita de 18 partes de ouro, seis uma terra continental em extensão e ri- partes de prata e oito partes de cobre, e queza. Os extensos dados históricos le- cujo nome em todas as línguas africanas vantados por Van Sertima apontam para do grupo mande é guanin. esta conclusão: as informações de Dom João sobre a existência das terras ame- Soa irônico talvez, mas os dados ricanas lhe teriam sido transmitidas pe- históricos apontam à aprendizagem pe- los primitivos do Continente Escuro! los europeus sobre as rotas ocidentais e as terras existentes nas Américas a par- Existem muitos outros detalhes da tir de fontes africanas. Dos seus domí- conexão África-América na antiguidade, nios na Guiné, teria chegado a Dom João que infelizmente não dispomos de espa- de Portugal a notícia da existência de “ter- ço para registrar neste pequeno texto. ras muito ricas” no além-mar. O próprio Vale a pena observar, entretanto, que, Colombo, recém-retornado de uma visi- quando consideramos o volume de evi- ta a essas regiões da África Ocidental, dências cientificamente comprovadas e fixou-se na idéia de fazer a travessia. reunidas no livro de Ivan Van Sertima, Quando propôs a Dom João o patrocínio ficamos convencidos de que o único obs- THOTH 3/ dezembro de 1997 248 Sankofa: memória e resgate

táculo à aceitação geral da tese da pre- BIBLIOGRAFIA sença africana nas Américas antes de Colombo é o eurocentrismo, que não dei- xa a ciência abalar sua convicção da in- Baldwin. John. Pre-historic nations (1872). ferioridade africana. Nova York: Harper and Brothers. Clarke, John Henrik (1984). “African warrior queens,” in Van Sertima, 1984. Conclusão Diop, Cheikh Anta (1959). Anteriorité des Além de fascinante pela riqueza civilisations négres: mythe ou vérité historique? Paris: Présence Africaine. de informações desconhecidas da popu- lação e da academia não especializada, – (1978). The Cultural Unity of Black Africa. o estudo das antigas civilizações africa- Paris: Présence Africaine 1963; 2a edição, Chicago: Third World Press. nas resulta ser de primeira importância na recuperação da auto-estima de um Engels, Frederick (1943). The origin of the family, private property and the state. povo considerado incapaz de contribuir à Nova York: International Publishers. evolução das ciências exatas, da civiliza- ção e da cultura chamada erudita. O re- Heyerdahl, Thor (1971). The Ra expeditions. gistro dessas realizações dos povos afri- Middlesex: Penguin Books. canos precisa ser incorporado à literatu- Nascimento, Abdias (1991). A luta afro- ra didática, de maneira a incluir os afri- brasileira no Senado. Brasília: Senado canos no cenário da história humana como Federal. protagonistas de sua própria vida em li- Sánchez, Sonia (1984). “Nefertiti: queen berdade e como construtores do progres- to a sacred mission”, in Van Sertima. so humano. Nas palavras do senador Van Sertima, Ivan (org.) (1983). Blacks in Abdias Nascimento (1991: 26): science. Ancient and modern. New Brunswick (EUA) e Oxford (RU): Para recuperar sua própria Transaction Books. identidade e resgatar a dívida que tem – (1985). African presence in early para com seus cidadãos de origem Europe. New Brunswick/Londres: africana, urge à Nação brasileira Transaction Books. mergulhar nas dimensões mais profundas desta herança civilizatória – (1984). Black women in antiquity. New Brunswick/Londres: Transaction africana. Essas verdades têm que ser Books. ensinadas nas nossas escolas, para restituir ao contingente majoritária da Van Sertima, Ivan e Rashidi, Runoko (orgs.) nossa gente o seu auto-respeito, a sua (1985). African presence in early Asia. New Bruswick e Oxford: Transaction Books. auto-estima e a sua dignidade, fontes do protagonismo histórico e da Wuthenau, Alexander von (1975). Unexpected realização humana. faces in ancient America. Nova York: Crown Publishers. O preconceito nos livros infantis Guiomar Ferreira de Mattos 249

Publicado na revista Forma, nº 4, O preconceito dezembro de 1954 nos livros infantis Humberto de Campos relata-nos em suas Histórias maravilhosas que, certa vez, houve uma festa no céu, ofe- recida aos pombos brancos. Era uma ho- menagem de Nosso Senhor ao Divino Es- pírito Santo, que desceu ao mundo tranformado em uma pomba cor de neve. E foram convidados todos os pombos brancos que havia na terra. Os pombos negros, porém, deveriam ficar na terra tomando conta dos borrachos. Isto por- que, diz-nos textualmente, o conto de Humberto, “quando Deus pôs preto no mundo foi para tomar conta de filho de branco”. Neste e noutros exemplos, que seria fastidioso transcrever, e que qual- Guiomar Ferreira de Mattos quer pessoa achará, facilmente, em qual- quer livro de histórias, estampa-se o pre- THOTH 3/ dezembro de 1997 250 Sankofa: memória e resgate

conceito, incutido, criminosamente, no tos não têm consciência de estarem in- espírito infantil. Assim é que as pobres cutindo preconceitos nas crianças. Por das crianças, que nascem tão puras, tão exemplo, à mesa, certa mãe se queixa a fraternas, sem a menor idéia ou tendên- seu marido da empregada negra ou ju- cia de discriminação racial ou de cor, são dia. Não somente a criançada ouve avi- a isso induzidas pelos adultos corrompi- damente, como passa a tratar a domésti- dos, de mentalidade defeituosa, pretensos ca como o faz sua mãe, que revela, in- educadores, que, com suas “histórias ins- conscientemente, seus preconceitos, em trutivas”, de “fundo moral”, lhes confor- cada um de seus atos. Os livros escola- mam, viciosamente, a mentalidade, de- res muito contribuem para a formação formando-a desde a mais tenra idade. dos prejulgados. Enquetes afetuadas em Enquanto tal se fizer com a infância, vários países mostraram que os manuais adeus mundo melhor! Fraternidade en- escolares e, notadamente, os livros de His- tre os homens? Igualdade de oportunida- tória dão uma imagem desfavorável dos de para todos? Como assim, se os pretos povos estrageiros e são injustos com res- nasceram para servir aos brancos? De peito aos grupos minoritários existentes que modo, se, até entre os animais, exis- num país. Assim, esses livros, ao invés te discriminação; se até entre eles há os de fazerem compreender os ideais a que bem e os malnascidos, os marcados des- está ligada certa categoria de imigran- de o berço? Induz-se, destarte, a infân- tes, fazem com que ela seja julgada se- cia a situar os pretos em posição inferior, gundo os princípios em vigor no grupo servil, pejorativa. majoritário. Pode haver nela seres ho- nestos, trabalhadores, amáveis, sociáveis; Arnold M. Rose, ao estudar a ques- se forem pobres e ignorantes e, ainda, tão racial diante da ciência moderna, em não tiverem adotado os costumes de sua seu L’origine des préjugés, nos diz, mui- nova pátria, serão tratados com despre- to bem, que “os preconceitos são o fruto zo por certos autores de livros escolares de uma propaganda deliberada. Sua pre- e pela maioria da população. As crian- sença entre a infância faz crer a muitos ças mais velhas também ensinam as mais que a repulsão racial é inata. Nada mais novas a terem preconceitos. Muito cedo falso! Não é inata, mas, sim, inculcada a infância fixa, estabiliza toda sorte de nas crianças desde os quatro anos de ida- regras, às quais todos os membros do de. Os preconceitos fazem parte de uma bando devem se submeter. Sancionando, tradição cultural que se transmite, por as- assim, os preconceitos, põem, por vezes, sim dizer, espontaneamente; as crianças mais ardor ainda que os adultos ao os adquirem em contato com seus pais, inculcá-los aos mais jovens. Chegam até professores, colegas. Certos pais não a inventar histórias para mostrarem a que querem que os filhos os possuam; outros, ponto os representantes dos grupos ao contrário, os inculcam, porque estão minoritários são perigosos ou estúpidos” convictos de que é acertado possuí-los. (Sabemos todos como é prodigiosa a ima- Na maioria dos casos, entretanto, os adul- O preconceito nos livros infantis Guiomar Ferreira de Mattos 251

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Dra. Guiomar Ferreira de Mattos, 1950, acompanhada de Abdias Nascimento (esq.) e Claudiano Filho THOTH 3/ dezembro de 1997 252 Sankofa: memória e resgate O preconceito nos livros infantis Guiomar Ferreira de Mattos 253

pretos? Anjinhos de tais cores certamente ginação infantil). “Tais histórias não pas- vão para o inferno. Pelo menos, nunca sam de jogos de imaginação. Mas po- foram representados em nenhuma corte dem contribuir, poderosamente, para a celestial. Recorde-se aqui a inspirada formação de atitudes de espírito. Uma canção-bolero “Angelitos negros”, em enquete mostrou que muitos adultos atri- que um pintor é exortado a pintar anjinhos buem a origem de seus preconceitos a negros: um incidente havido na infância. Em cada geração eles se modificam ligeira- Aún que la Virgen sea blanca mente. De tempos em tempos são apli- Pinta angelitos negros cados a novos grupos minoritários, dei- Que también se van al cielo xando de ser aplicados a um grupo con- Todos los negritos buenos siderado, outrora, minoritário. Por vezes se reforçam, por vezes se enfraquecem. Pintor, si pintas con amor Mas se transmitem do mesmo modo que Porque desprecias tu color os jogos, as boas maneiras ou tudo o que Si sabes que en el cielo constitui a tradição cultural.” También los quiere Dios? Veja-se esta quadrinha que as cri- anças estão aprendendo nas escolas, a pro- Siempre que pintas iglesias pósito do Natal: Pintas angelitos buenos Pero nunca te acordaste Cabelos loiros De pintar un ángel negro Olhos azuis És meu tesoiro Registre-se que, apesar de a bela Nosso Jesus doutrina do Cristo encontrar-se estam- Tenta-se fixar como imperfeito, pada em todos os evangelhos, seu Na- não egrégio, primitivo, fora do Bem e tal tem servido de motivo, consciente do Belo, tudo aquilo que não seja bran- ou inconscientemente, para a difusão de co ou oriundo do branco. Atente-se na sentimentos e de atitudes os mais con- canção “Céu moreno”, interpretada por Sílvio Caldas, na qual o autor convoca trários às sua pregações. É preciso, a sua amada morena nestes termos: pois, que se adote uma atitude dinâmi- “Vem! Ajuda-me a ensinar a Deus a ca contra a difusão do preconceito. Pela fazer um anjo da cor que Ele não tem formação de uma mentalidade nova, no céu!” E termina: “Hei de suplicar a deliberadamente, poder-se-á fazer ruir Madalena que também fique morena, por terra prejulgados que não mais po- que é formoso um céu assim!” dem subsistir no mundo moderno, des- Portanto, a concepção generaliza- moralizados que foram à luz da Ciên- da é mesmo a de que no céu não há an- cia, insubsistentes que são à luz da sã jos morenos. Que dizer dos pardos ou Moral. THOTH 3/ dezembro de 1997 254 Sankofa: memória e resgate Cecune - Centro Ecumênico de Cultura Negra 255 THOTH 3/ dezembro de 1997 256 Movimento Negro Hoje Cecune - Centro Ecumênico de Cultura Negra 257

Com o objetivo de capacitar li- deranças populares afro-brasileiras, o Cecune - Centro Centro Ecumênico de Cultura Negra - Cecune, de Porto Alegre, idealizou e de- Ecumênico de senvolveu o Projeto Universidade Livre - Curso de Africanidades Brasileiras, em Cultura Negra que intelectuais negros do Rio Grande do Sul e de outros Estados puderam trans- mitir seu conhecimento e experiência a militantes engajados nas áreas política, comunitária, sindical, educacional e cul- tural. Organizado em quatro módulos (História e Cidadania, Organização e Resistência, História das Artes, Culturas e Religiões e Práticas Metodológicas Afro-Brasileiras), o Projeto, realizado em colaboração com o Centro de Documen- tação e Pesquisa da Universidade do Vale dos Sinos, desenvolveu-se median- te aulas ministradas em fins de semana. A idéia básica foi suprir as lacunas do currículo escolar com relação à comuni- THOTH 3/ dezembro de 1997 258 Movimento Negro Hoje

dade negra, contribuir para a formação psicossociologia de comunidades, a psi- de indivíduos conscientes de sua identi- cóloga Conceição Correa das Chagas, do dade étnica e mais capacitados ao pleno Rio de Janeiro. Esta atuou em todos os exercício de sua cidadania, e estimular a módulos no propósito básico de promo- pesquisa e a produção intelectual como ver a integração dos conteúdos, propici- meios de autodesenvolvimento e contri- ando o envolvimento dos participantes e buição comunitária. o desenvolvimento de sua auto-estima, além de favorecer a identificação dos Na visão dos dirigentes do Cecune, sentimentos em função dos temas estu- o Projeto Universidade Livre representa dados e de facilitar a troca de experiên- um passo importante para a sistematiza- cias. ção dos esforços de capacitação do con- junto do Movimento Negro diante de suas debilidades e desafios, de vez que os Estruturação do Movimento Negro embates futuros da luta anti-racista e a dinâmica própria da conjuntura histórica Reconhecer os fatos políticos e exigirão cada vez mais o uso do planeja- econômicos da História da África que mento estratégico nas ações políticas de influenciaram a trajetória dos descenden- promoção da consciência e da cidada- tes de africanos no Brasil foi o objetivo nia. Num prazo mais longo, o projeto visa do Módulo I - História e Cidadania, a criar um cenário específico para a cons- cargo dos professores Helena Theodoro trução de uma teoria do e para o negro, Lopes (doutora em Filosofia pela Univer- de modo a neutralizar, ao menos em par- sidade Gama Filho - RJ), Edílson Nabarro te, os paradigmas supostamente “neu- (sociólogo gaúcho) e Marcos Rodrigues tros” e “universalistas” da estrutura da Silva (doutorando em Sociologia e formal de ensino em nosso país, em es- coordenador geral do Projeto). A temática pecial no que se refere à história, à desse módulo, realizado entre os dias 3 e 5 cultura e à realidade socioeconômica de maio de 1996, incluiu, além de aspectos dos afro-brasileiros. Além disso, como históricos, a análise sociológica da atual si- uma releitura da história do negro deve tuação dos afro-brasileiros, bem como o abranger necessariamente o acervo de processo de estruturação das organizações experiências do conjunto da comuni- que compõem o Movimento Negro Con- dade, a Universidade Livre oferece um temporâneo. campo fértil para a sistematização do O poeta Luís Silva - mais conhe- amplo leque dessas experiências, ten- cido pelo pseudônimo “Cuti” - e o pro- do em vista a organização das ações fessor Marcos Rodrigues da Silva foram de cidadania e resgate histórico. os responsáveis pelo Módulo II, Organi- Um aspecto inovador do Projeto zação e Resistência (de 5 a 8 de agosto foi a intervenção de uma profissional es- de 1996), que teve como objetivo relaci- pecializada em psicologia clínica e onar os fatos históricos da resistência ne- Cecune - Centro Ecumênico de Cultura Negra 259

gra com a trajetória das organizações afro- um ecumenismo que, tendo como elo de brasileiras nas cinco últimas décadas. A ligação o traço racial da negritude, preten- temática incluiu a quilombagem, revoltas e de unir, a partir de uma ampla visão insurreições, os clubes abolicionistas, a im- etnocultural, todas as diferenças, inclu- prensa alternativa, o movimento pan- indo gênero, faixa etária, formação pro- africanista e o mito da democracia racial. fissional, cultura religiosa, cultura políti- Organizado com o propósito de ca e classe social. Dentro dessa pers- estimular o estudo científico e sistemático pectiva, o Cecune tem desenvolvido, des- das manifestações culturais afro-brasilei- de a sua criação, propostas de reflexão ras, o Módulo III - História das Artes, Cul- e questionamento com vistas a turas e Religiões - esteve a cargo do jorna- aprofundar o pensamento crítico acerca lista e videasta paulista Joel Zito de Araújo, da questão étnica, percebida sob uma ao lado do professor Marcos Rodrigues da ótica ao mesmo tempo local, nacional e Silva. Fizeram parte da temática desse internacional, interna e externa à popu- módulo uma releitura da cultura negra a lação afro-brasileira. Por enfatizar sua partir da visão ecológica, a dança afro-bra- diretriz ecumênica - que propicia um es- sileira e o Teatro Experimental do Negro. paço de convívio democrático entre di- Durante a realização desse módulo- de 11 ferentes -, a organização construiu uma a 13 de abril de 1997 -, foram lançados o imagem de seriedade e confiabilidade, ao livro Negro - uma identidade em cons- mesmo tempo em que foi ampliando seu trução e o vídeo A exceção e a regra. poder de arregimentação na comunida- de negra e sua penetração junto a pes- Projetos de políticas públicas em soas e instituições da sociedade em ge- educação, habitação e saúde, estrutura e ral capazes de apoiá-la em suas iniciati- ação nos encontros de massa, dinâmica de vas. Com esse apoio, aliado à prestação grupo em ações populares e desenvolvi- voluntária de serviços por seus colabo- mento econômico das comunidades negras radores - chamados “assessores técni- foram alguns dos temas discutidos no cos” -, o Cecune consegue imprimir aos Módulo IV - Práticas Metodológicas Afro- trabalhos que realiza um cunho de qualida- Brasileiras. Realizado entre os dias 17 e 19 de e reverter seus resultados à comunida- de outubro, esse módulo esteve a cargo da de negra - sempre que possível a custo zero, enfermeira Berenice Assumpção Kikuchi, ou pelo menos ao menor custo possível. especialista em Saúde Pública, ao lado de Ivair Augusto Alves dos Santos, do Minis- Três linhas de ação nortearam a tério da Justiça, e do professor Marcos construção da identidade do Cecune. A Rodrigues da Silva. primeira foi a elaboração de um pensar acerca da identidade negra em suas di- Voluntariado e custo zero mensões de passado, presente e futuro, por Criado em março de 1987, o meio de espaços de leitura e discussão. A Cecune - Centro Ecumênico de Cultura segunda linha adotada referia-se a ações Negra é uma ONG voltada à prática de voltadas para construir a imagem da insti- THOTH 3/ dezembro de 1997 260 Movimento Negro Hoje

tuição e consolidar a sua presença no meio o Cecune vem desenvolvendo atividades- em que estava inserida. Desse ponto de piloto em termos de educação formal, de vista, as comemorações do Centenário da onde nasceu o Projeto Universidade Livre. Abolição da Escravatura propiciaram a presença da nova organização junto a es- Na área da comunicação, o Cen- colas de todos os níveis, tanto públicas tro produz e distribui um periódico tri- quanto privadas, convidada a debater di- mestral elaborado por uma equipe de vo- ferentes temas relacionados à população luntários composta de militantes de di- afro-brasileira. A terceira linha consti- versificado perfil profissional. Com tira- tuiu-se na formação de um acervo bási- gem de 10 mil exemplares, o Jornal do co de textos, imagens e som destinados Cecune é distribuído gratuitamente, ten- a servir de recursos pedagógicos para do seus custos de impressão cobertos apoiar as ações desenvolvidas nas duas por anúncios comerciais de interesse da outras frentes. comunidade. Já em relação à arte, as atividades têm se concentrado no terre- A partir do quarto ano de exis- no da música, com destaque para as tência do Cecune, sob a pressão de no- Mostras de Pagode de Porto Alegre, re- vas demandas, fez-se necessário consti- alizadas em 1993-4, que reuniram gru- tuir a organização do ponto de vista jurídi- pos musicais desse estilo no espaço cul- co, definir sua política de ação e formar tural da Usina do Gasômetro, que até sua estrutura administrativa. Delimitou-se então não costumava ser freqüentado um leque de colaboradores, sempre sob o pelo público negro. Com entrada franca, princípio do voluntariado, cuja relação com sem custos de cachê e realizado em dias a entidade se dá mediante patrocínios, de transporte coletivo gratuito, os even- apoios e assessorias. Os atuais projetos tos foram sucesso de público e crítica. do Cecune enquadram-se em três áreas, Ainda no campo da música, o Projeto definidas como prioritárias: capacitação, Alberto Barcellos, o Roxo - Samba na comunicação e arte. Na área da Usina promoveu audições mensais com capacitação, o Centro tem promovido artistas da cidade, num trabalho regis- encontros, seminários, fóruns e palestras trado em LP e CD, com o patrocínio prin- sobre temas relacionados à negritude, cipal da Fumproarte, órgão da Secreta- com a preocupação de abrir espaços de ria Municipal de Cultura. Por fim, ainda aproximação entre representantes de di- em matéria de música, o Cecune criou, versos segmentos da comunidade negra em 1994, o seu coral. Na mesma linha e nomes significativos da intelectualidade das demais propostas do Centro, de tra- de origem africana no Brasil e no exteri- balho voluntário e custo zero, esse pro- or. O propósito, aqui, é investir cada vez jeto tem como objetivo maior a constru- mais na formação de quadros, melhoran- ção de uma proposta de canto coral do o grau de intervenção negra, indivi- direcionada ao resgate da cultura negra dual ou coletiva, na sociedade. Nos dois em suas manifestações musicais, mais últimos anos, dentro dessa perspectiva, especificamente de canto comunitário. Cecune - Centro Ecumênico de Cultura Negra 261

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Evento Os 25Anos do Vinte de Novembro. Porto Alegre, 19-11-1996 - Casa de Cultura Mario Quintana. Painel: jornalista Marisa Souza da Silva, jornalista Vera Daisy Barcellos Costa, poeta Oliveira Silveira e arquiteta Helena Vitória dos Santos Machado

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A assistência do evento THOTH 3/ dezembro de 1997 262 Movimento Negro Hoje Como surgiu o 20 de novembro? Oliveira Silveira 263

Para muita gente, o Movimento Como surgiu o 20 Negro contemporâneo nasceu em julho de 1978, com a manifestação de protes- de Novembro? to realizada em frente ao Teatro Munici- pal de São Paulo, marco de fundação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial. Fruto da desinformação, essa visão é ao mesmo tempo imprecisa e injusta, pois ignora as dezenas de organizações afro-brasileiras surgidas na primeira metade daquela dé- cada no Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre - para não falar da Frente Negra, do Tea- tro Experimental do Negro e de tantas outras entidades precursoras, de um tem- po em que a luta negra não se chamava “movimento”. Uma das mais importan- tes dessas organizações, pela ousadia e pioneirismo de suas propostas, é o Grupo Palmares, fundado em 20 de julho de 1971 por Antônio Carlos Cortes, Ilmo da Oliveira Silveira THOTH 3/ dezembro de 1997 264 Movimento Negro Hoje

Silva, Oliveira Silveira e Vilmar Nunes. O Grupo Palmares nasceu na Rua Ousadia por desafiar abertamente o re- Tomás Flores, 303, bairro Bom Fim, onde gime ditatorial instalado em 1964, para o foi realizada a primeira reunião em 20 de qual a questão racial constituía uma es- julho de 1971. Isso acontecia após vários pécie de anátema. E pioneirismo por le- bate-papos na Rua da Praia, quando um vantar a bandeira do 20 de Novembro, dos maiores contestadores do 13 de maio data da morte de Zumbi dos Palmares, era um preto alto chamado Jorge Santos em 1695, como o “Dia do Negro”, mais ou Jorge dos Santos, ator nato, não buri- tarde - e aí, sim, por influência do MNU lado. Mas ele não foi à reunião inicial nem - rebatizado como “Dia Nacional da se integrou ao grupo. Sua contribuição Consciência Negra”. foi essa de alimentar as discussões in- formalmente. Os iniciadores do grupo em Para esclarecer esse aspecto, 20 de julho foram Antônio Carlos Cor- nada melhor que as palavras de um dos tes, Ilmo da Silva, Oliveira Silveira e fundadores do Grupo Palmares, o poeta Vilmar Nunes. Depois foram chegando Oliveira Silveira, em seu artigo “A outras pessoas, como as universitárias idealização do 20 de Novembro”, publi- Anita Leocádia Prestes Abad e Nara cado no número de novembro de 1993 Helena Medeiros Soares (falecida). Elas da Gazeta Afro-Latina, cuja íntegra pu- participavam do grupo no primeiro ato blicamos a seguir. evocativo do 20 de Novembro. Segundo o documento contendo a programação, A idealização do 20 de Novembro Ilmo já se afastara, mas Vilmar e Cortes ainda continuavam. Cortes não acompa- Oliveira Silveira nhou toda a trajetória do Grupo Palmares em sua primeira fase, que se estendeu até 1978. Mais tarde surpreendeu optan- A data de 20 de novembro vem do por uma linha político-partidária sendo evocada no Brasil há 22 anos. E direitista, mas conservou uma postura há 15 anos é chamada Dia Nacional da negra. Helena Vitória dos Santos Macha- Consciência Negra. Tudo começou em do compareceu ao primeiro vinte e de- Porto Alegre no ano de 1971, quando o pois ingressou no grupo, foi coordenado- Grupo Palmares assinalou a data reali- ra e uma das principais responsáveis pela zando ato em homenagem ao Estado linha do grupo no nível das idéias, ao lado Negro dos Palmares e propondo uma al- de Anita (durante o tempo em que atuou) ternativa para as infundadas comemora- e de Marisa Souza da Silva. ções do dia 13 de maio. A denominação Dia Nacional da Consciência Negra, É longa a lista de pessoas que tra- dada pelo MNUCDR sete anos mais tar- balharam no Palmares ou tiveram uma de, em 1978, foi uma conseqüência do passagem por ele: Antônia e Marli trabalho do Grupo Palmares, de Porto Carolino, Gilberto Alves Ramos, Maria Alegre. Conceição Fontoura, Margarida Como surgiu o 20 de novembro? Oliveira Silveira 265

Martimiano, Irene F. Santos, Leni Souza, notícia na imprensa. Na ocasião, ofere- Otacílio R. Santos, Rui R. Moraes, Vera ceu um exemplar de Palmares - la Daisy Barcellos, Ceres Santos, Hilton guerrilla negra, edição uruguaia. Só a Machado... Todos na lista sujeita a omis- partir daí sua obra iria contribuir para o sões incluída no folheto Palmar Palmares trabalho do grupo que mais adiante en- (Porto Alegre, Associação Negra de carregou o componente Oliveira de apre- Cultura, 1991). Haveria uma segunda sentar o autor ao editor para a primeira fase como grupo de trabalho (GT edição em português de Palmares - a Palmares) do Movimento Negro Unifi- guerra dos escravos, pela Editora Mo- cado na década de 80 e uma terceira já vimento. desligado do MNU, fase em que surgiu Realizado o primeiro ato evocativo (e teria sido como decorrência do do vinte, em 71, o trabalho não parou. Palmares) o trabalho musical do gru- Ao lado de outras promoções feitas ao po Coisapreta. Helena e Marisa, longo de cada ano, o Palmares continuou rearticuladoras nessa fase iniciada em assinalando e divulgando a data. A práti- 1987, poderão dizer se ela se encerrou ca foi sendo adotada no centro do país, ou se o trabalho do Grupo Palmares ain- especialmente em São Paulo e Rio. Sete da continua de forma silenciosa ou indi- páginas da “Revista ZH” do jornal Zero reta... Hora de Porto Alegre em 1972; espetá- culo musical, exposição de pintura e pa- Consolidação: trabalho duro lestra em 1973 (além de entrevista con- cedida a Alexandre Garcia, o mesmo da O grupo tomou o nome de TV Globo, então na sucursal do Jornal Palmares em homenagem ao Estado ne- do Brasil em Porto Alegre, publicada em gro livre do século XVII, reconhecido como 13 de maio); manifesto através do Jornal “momento maior” na história do negro no do Brasil (novamente Alexandre Garcia), Brasil. Dentro do grupo, quem sugeriu a com idéias do grupo, histórico de Palmares- data de 20 de novembro, dia da morte he- Estado, a proposta de reformulação dos li- róica de Zumbi, foi o componente Oliveira, vros didáticos quanto à história do negro, com base em livros de Édison Carneiro e em 1974; encontro cultural (com o grupo Ernesto Ennes, além de um dos fascículos artístico Afro-Sul) em 1975; livreto Mini- da coleção Grandes personagens de história do negro brasileiro no vinte de nossa história, da Editora Abril, número 1976; e evento cultural na Associação Satélite-Prontidão (de negros) com a pre- dedicado a Zumbi. A importante obra de sença de Oswaldo Camargo, escritor Clóvis Moura, Rebeliões da senzala, não paulista, minibiblioteca e grupo Nosso Te- chegou a ser consultada na época. Tam- atro (depois Razão Negra), em 1977 - são bém é oportuno observar que o historiador fatos que mostram a ação continuada e de- branco Décio Freitas só ficou conhecido cidida do Grupo Palmares em prol da con- do grupo no dia do ato em 20 de novembro solidação de sua proposta em nível local e de 1971, quando compareceu por ter lido a nacional. THOTH 3/ dezembro de 1997 266 Movimento Negro Hoje

Quando em 1978 se formou o ção) hoje pode registrar como marco ini- Movimento Negro Unificado contra a cial de uma outra fase o ano de 1971, Discriminação Racial (MNUCDR) e pro- quando surgiu uma nova e decisiva força pôs num congresso seu, em Salvador-BA motivadora e aglutinadora: a evocação que a data fosse chamada Dia Nacional do vinte de novembro. da Consciência Negra, já se iam sete anos de trabalho duro do Grupo Palmares, Algumas distinções reconhecido e seguido por outras entida- des do país. O MNUCDR, depois MNU, O Palmares foi sempre um grupo apenas batizou a data com uma expres- de negros e com isso legitimou sua pro- são feliz e contribuiu para ampliar o seu posta como iniciativa gerada no seio da âmbito. No manifesto de Salvador, en- comunidade negra e por ela imposta à tretanto, nenhuma referência foi feita ao sociedade. Há grupos que preferem ser Grupo Palmares e seu pioneirismo. Só mistos e assim perdem às vezes a opor- em 1981, em sua revista no. 3, em 1988 tunidade de marcar sua ação política no jornal Nêgo de abril e em 1991, tam- como genuinamente negra. bém em seu jornal e no transcurso dos Parece que o Movimento Negro “20 anos do vinte”, é que o MNU abriria (MN) não quis assimilar bem a proposta espaço para fazer justiça ao grande es- do Grupo Palmares relativamente ao vin- forço político do grupo sulino. Uma das te. O MN individualiza (há exceções), fundadoras do MNU, a antropóloga Lélia ressaltando a figura de Zumbi, na linha Gonzales, refere “o alerta geral do Gru- da historiografia oficial, que destaca o in- po Palmares” e a proposta gaúcha nas divíduo, o herói singular, como se fizesse páginas 31 e 57 de seu importante traba- tudo sozinho. Individualismo, coisa tão lho Lugar de negro, em parceria com cara ao sistema capitalista. O Grupo Carlos Hasenbalg (Rio, Marco Zero, Palmares sempre valorizou e destacou 1982). Mas grande parte do Movimento Zumbi como o herói nacional que é, mas Negro nacional parece desconhecer a preferiu sempre centrar a evocação no iniciativa sul-rio-grandense de 1971 e sua coletivo - 20 de Novembro - Palmares, o continuidade. Como que paira a idéia de Momento Maior. Ou: Homenagem a que tudo começou em 1978, quando o Palmares em 20 de Novembro, dia da que houve então foi uma convergência morte heróica de Zumbi. E afinal o Esta- para um novo estágio da luta, em que o do negro foi uma criação coletiva da MNU desempenhou, sim, um papel fun- negrada. damental. O 20 de Novembro traz também O Movimento Negro brasileiro um possível perigo: seu uso pelo (como por influência negra norte-ameri- oficialismo e por outros setores ou insti- cana se passou a chamar a luta mantida tuições sociais. O capitalismo tem o po- sempre, no escravismo e no pós-aboli- der de absorver bem os golpes que lhe Como surgiu o 20 de novembro? Oliveira Silveira 267

são desferidos. E o poder de reciclá-los, Vinte de novembro de 1695, data redirecionando-os, utilizando-os a seu da morte heróica de Zumbi, marco para favor. Quem, como e por que, ou para delimitar no tempo um Estado negro, ter- que, está empunhando a bandeira do vin- ritório livre ao longo de todo um século - te? É bom saber, em cada situação. A o XVII - lá na Região Nordeste. O revista Tição já alertava para isso em Palmar, a Angola Janga. 1979, no seu segundo número. A existência, continuidade e cres- E vem aí o ano de 1995. Estão fa- cimento do MN importam mais que a ini- lando em 300 anos da morte de Zumbi. ciativa deste ou daquele grupo, entidade, Não seria mais afirmativo falar em qua- setor. Mas certamente cabe, ao longo da tro séculos de Palmares ou em 400 anos luta, trabalhar a memória e a verdade his- do início de Palmares (já que tudo co- tórica. meçou lá por 1595, se não foi antes)? THOTH 3/ dezembro de 1997 268 Movimento Negro Hoje Como surgiu o 20 de novembro? Oliveira Silveira 269

ERRATA

No número 2 da Revista Thoth, a legenda desta foto saiu errada, pelo que a republicamos neste número.

Inauguração da Escola Municipal Professor Abdias Nascimento, São Luís do Maranhão, 1991. Da esquerda para a direita, Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento, José de Ribamar Marinho Caldeira, João Francisco dos Santos e o prefeito de São Luís, Jackson Lago THOTH 3/ dezembro de 1997 270 Movimento Negro Hoje Como surgiu o 20 de novembro? Oliveira Silveira 271

SENADO FEDERAL SECRETARIA ESPECIAL DE EDITORAÇÃO E PUBLICAÇÕES Praça dos Três Poderes, s/no – CEP 70168-970 Brasília – DF Senador ABDIAS NASCIMENTO GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO THOTH 3/ dezembro de 1997 272 Movimento Negro Hoje

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SIMBIOSE AFRICANA Nº 2 Acrílico s/ tela - 91 x 61 cm, de Abdias Nascimento, Buffalo, USA, 1971 1997 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES