O ARQUIVO DE ALCEU AMOROSO LIMA: SABERES CRUZADOS

Leandro Garcia RODRIGUES√

RESUMO

O arquivo de Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Athayde) é um dos conjuntos documentais mais importantes para a pesquisa interdisciplinar, abarcando diferentes áreas do conhecimento e provocando a ideia de saberes e subjetividades que se interligam. Cartas, telegramas, aerogramas, manuscritos, diplomas, fotografias, livros, revistas, quadros, diversos objetos museológicos e outras tipologias documentais e textuais formam este complexo acervo que atualmente compõe o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL), localizado na cidade de Petrópolis (RJ), instituição que salvaguarda o legado intelectual deste autor. Neste sentido, o CAALL pode ser enquadrado na categoria de “casa-museu”, categoria esta que possibilita pensarmos o lugar do arquivo pessoal dentro de uma estrutura maior, em constante diálogo com biblioteca, jardim e as dependências da própria casa. O objetivo deste artigo é analisar um pouco a constituição deste espaço e do seu conteúdo, falando um pouco da sua composição e contribuindo para a divulgação da obra e do pensamento deste intelectual.

Palavras-chave: Alceu. Arquivo pessoal. Casa-museu. Biblioteca.

Pensar a constituição dos arquivos pessoais é tarefa sempre complexa e que, em muitos casos, foge às regras e cânones da sistematização próprias da arquivologia tradicional. Em geral, diz-se que o arquivo pessoal obedece a uma lógica criada pelo seu titular, de acordo com a sua visão de organização e hierarquização de valores em relação aos itens nele guardados.

 Artigo recebido em 28/03/2021 e aprovado em 03/06/2021. √ Doutor e Pós-doutor em Estudos Literários - PUC-Rio. Prof. Adj. II de Teoria Literária na Faculdade de Letras da UFMG. E-mail: [email protected]

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Assim aconteceu com o arquivo do escritor e intelectual católico Alceu Amoroso Lima (1893-1983), um imenso conjunto documental formado por cartas, fotografias, manuscritos, datiloscritos, bilhetes, telegramas e outras tipologias documentais. Todo esse conjunto foi formado ao longo de décadas de intensa atividade intelectual, iniciada em 1919, quando Alceu publicou o seu primeiro livro e iniciou-se na crítica literária profissional, no periódico O Jornal. Entretanto, desejo aqui trabalhar a noção de casa-museu1, pois creio que esta seja adequada para pensar a complexidade deste espaço, pois é impossível pensar o arquivo de Alceu dissociado da sua biblioteca e da sua própria casa. Há, de fato, um verdadeiro amálgama destes ambientes e o que eles possuem, que provoca uma espécie de teia semiótica2 entre os diferentes saberes que se entrecruzam entre os seus conteúdos.

1. O ARQUIVO, O ESCRITÓRIO, A CASA AZUL

Rua Mosela no 289, Petrópolis, . Este é o endereço da casa que Alceu Amoroso Lima possuía nesta cidade serrana fluminense. Adquirida nos anos 40 do século passado, a famosa Casa Azul era uma espécie de refúgio do crítico literário, onde ele gostava de ler, escrever e receber poucos amigos. Afinal, era o seu espaço reservado, no qual gostava de passar dias e temporadas para cuidar do seu jardim, responder dezenas de cartas diariamente, escrever suas crônicas semanais para diversos veículos de imprensa. Mas também era o seu lugar para rezar, meditar, muito próximo à igreja do Sagrado Coração de Jesus, na qual Alceu participava da missa diária das 7h da manhã, geralmente celebrada pelo seu amigo Leonardo Boff, então frade franciscano3.

1 Utilizo aqui este conceito, da forma como ele foi desenvolvido, por Lívia Reis no seu ensaio Arquivar a vida: cartas, diários, ensaios, biblioteca, casa-museu; Cf. Referências. 2 Reinaldo Marques fala de “forças retóricas” para pensar situações idênticas: “Na cena dos arquivos literários movimentam-se, pois, forças que ora se atraem e ora se repelem, demarcando um espaço dinâmico percorrido por pulsões tanto ativadoras quanto inibidoras de processos criativos, de conhecimento, de negociações políticas, de horizontes éticos. Também percorrem os arquivos literários forças retóricas que têm no discurso seu objeto primordial de atuação e de expressão” (MARQUES, 2015, p. 38). 3 Em depoimento a mim enviado, via correio eletrônico, Maria Teresa Senise, neta de Alceu Amoroso Lima, assim recompõe as suas lembranças do avô e da Casa Azul: “Como os livros se acumulavam, VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 22, n. 39, p. 98-117, jan./jul. 2021 – ISSN 1984-6959 – Qualis B1 99

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Uma casa antiga, no alto de uma pequena elevação, com dois andares, na encosta de um morro, algo bem próprio da geografia petropolitana. Foi para ela que o crítico transferiu uma imensa parcela da sua biblioteca e do seu arquivo pessoal, mantendo uma outra parte no seu endereço carioca, na Rua Paissandu, no bairro do Flamengo. Entretanto, nos seus últimos anos de vida, foi na Casa Azul que Alceu concentrou o seu arquivo, e ele próprio começou a sua organização.

Rua Mosela 289, Petrópolis – a Casa Azul (Fonte: CAALL)

Neste sentido, a Casa Azul pode entrar na categoria de casa-museu, isto é, uma espécie de espaço biográfico, múltiplo de diferentes ambientes e saberes, cada um com linguagem e vida próprios e diversos suportes de memória que se

minha avó sugeriu que eles fossem sendo levados, aos poucos, pra Petrópolis. Isso foi uma ideia ótima, já que eles cada vez mais estendiam a moradia pra Serra e cada vez menos ficavam no Rio. Ele era uma outra pessoa longe do Rio. Nos idos de 60, eu estudava no internato do Colégio Sion de Petrópolis, e nos fins de semana ia pra Mosela. Na minha cabeça, era lá que eles moravam e o Rio se tornou uma passagem. Lembro que o correio chegava lá abarrotado de livros e a parte de cima da casa mal comportava. O apartamento da Rua Paissandu, no Flamengo, foi sendo deixado aos poucos. Os três quartos de empregados, que ocupavam o sótão da casa, foram ocupados pelos livros sem nenhum critério de identificação, apenas por ordem de chegada. A rotina era cumprida rigorosamente. Missa às 7, café. Então ele subia pro escritório, descendo apenas pro almoço ao chamado de uma campainha. Não havia intervalo e ele só descia novamente pro jantar, bem mais tarde. Aí sim ia pra varanda e, ao som dos clássicos, andava de um lado pro outro. Metódico ao extremo. Não lembro de nenhuma visita, de nenhuma saída extra que não fosse as citadas missas e também à padaria. Lembro que minha avó barrava e dificultava qualquer tentativa de aproximação de repórteres”. (mensagem recebida em 13/3/2021)

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interligam simbólico e subjetivamente4. Penso num espaço de narrativas de vida cujo texto é formado por documentos e diferentes modalidades textuais, inúmeras grafias que deixaram rastros e marcas do seu titular. Vida, obra e casa me fazem lembrar o que Philippe Artières afirmou acerca das suas próprias impressões dos seus lugares de memória, nos quais “Tivéssemos reunidos os rascunhos, os antetextos das nossas existências” (ARTIÈRES, 1998, p. 21). Não sabemos exatamente quando o escritor começou esta tarefa, nem mesmo se alguém o ajudou neste mister. Sabemos que, no final dos anos 40 e início dos 50, Alceu teve como secretário particular o escritor João Etienne Filho, então estudante de Direito da Universidade do Brasil, que naquele momento residia no Rio de Janeiro, e por seis anos secretariou o crítico na sede do antigo Centro Dom Vital, na Praça 15, coração da então capital federal. Etienne fez a primeira organização do seu arquivo de correspondência passiva, definindo os correspondentes, localizando as cartas enviadas por cada um e separando-as em ficheiros particulares para cada remetente. Com o retorno de Etienne à sua cidade, Belo Horizonte, tudo indica que Alceu deu continuidade ao trabalho do seu ex-secretário, aos poucos e lentamente, mas realizando-o na casa de Petrópolis e não mais nos seus endereços cariocas – residencial e/ou profissional.

4 Xikito Affonso Ferreira, neto e biógrafo de Alceu Amoroso Lima, relembra aspectos importantes daquele imóvel: “A Rua Mosela 289, de que os Amoroso Lima fazem sua residência principal nas últimas duas décadas de vida, é uma ladeira que serpenteia morro acima a partir do [rio] Piabanha. [...] O traço doméstico é o que marca essa construção sem estilo particular. Três arcos sem maior imaginação abrem-se sobre a varanda para a qual dão duas salas e o quarto do casal. A decoração no interior da casa é discreta, espontânea, nada tem de solene nem enfeitada. [...] O escritório de Alceu, eis um cômodo alado, seu pé-direito chega ao forro do telhado aumentando a sensação de espaço. De dia o sol forte despeja claridade no ambiente, de noite alguns abajures derramam uma luz amarela e mansa. É área de uns 40 m2, suficientes para um quarto e sala modernos. As paredes estão forradas de livros, mas ainda deixam espaço no canto para a estante de concreto em que se apoia uma dúzia de fotos de companheiros de viagem. D. Hélder Câmara aparece viçoso e trajando vestes esvoaçantes, dirigindo-se a uma capela na subida para o morro. desembarca no cais do no Rio antes da Segunda Guerra. Pe. Lebret também figura na galeria. Um par de poltronas importado da Casa Maples em Londres e de couro já surrado forma um subambiente no escritório. Uma mesinha com espaço apenas para a combalida Remington, onde vovó datilografa alguns dos artigos do marido, antecede a escrivaninha de trabalho de Alceu. Ela é enorme, nela Alceu esparrama folhas de papel almaço virgens e apoia volumes de consulta. [...] Tristão leva ali a manhã toda a despejar seus garranchos que a datilografia torna legíveis ao comum das pessoas quando se trata de material de impressão, mas também uma parte substancial dos textos chega a destinatários sem beneficiamento. [...] No sótão, junto a estantes de livros de acabam de ocupar todo o andar, moram ainda nove arquivos de aço, cada um com quatro gavetas, que guardam a correspondência passiva de Alceu”. (FERREIRA, 2015, pp. 337-340)

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Ao contrário de alguns escritores que pensaram e até organizaram seus arquivos pessoais com regras arquivísticas5, Alceu Amoroso Lima não deixou nada escrito a este respeito, não deixou um manual próprio para se compreender a sua práxis de arquivamento, não promoveu pistas que atualmente nos ajudem na decifração dos seus documentos. Mas escolheu, separou, selecionou e construiu o seu próprio arquivo. Neste sentido, Reinaldo Marques afirma:

Como lembra Artières, “para existir, é preciso inscrever-se: inscrever-se nos registros civis, nas fichas médicas, escolares, bancárias”. [...] Nesses procedimentos importa salientar, a meu ver, tanto o gesto seletivo e classificatório quanto a intencionalidade por parte do indivíduo que constitui seu arquivo pessoal. [...] Nessa direção, pode-se afirmar que está presente no arquivamento do escritor uma clara intenção autobiográfica, voltada especialmente para os aspectos intelectuais e culturais de sua trajetória de vida. [...] Arquivando, o escritor deseja escrever o livro da própria vida, da sua formação intelectual; quer testemunhar, se insurgir contra a ordem das coisas, afirmando o valor cultural dos arquivos. Mas como é impossível arquivar nossas vidas de uma vez por todas, e em sua totalidade, os arquivos do escritor apresentam um caráter lacunar, de inacabamento. Conservando seus papéis e documentos, funcionam como suplementos da memória e da obra do escritor. Com seu poder de rasurar, intervir, modificar e suplementar, afirmam o caráter também inacabado não somente de sua autobiografia, como também da própria obra, problematizando a noção de texto último, definitivo. (MARQUES, 2015, pp. 194-196)

Em sua seleção do que deveria ser ou não arquivado, certamente, Alceu escolheu e estabeleceu prioridades; e também descartou materiais, uma vez que é normal a prática do descarte na organização e manutenção dos arquivos. A opinião de Reinaldo Marques é certeira quando lembra da intenção autobiográfica do escritor na organização do seu arquivo pessoal, e a própria seleção do que deve ser mantido corrobora esta proposta, uma vez que cada documento mantido diz um pouco de si próprio, especialmente o porquê de o mesmo estar ali guardado. Sintomaticamente, no arquivamento de si está também o arquivamento do outro, uma vez que, no caso de Alceu Amoroso Lima, a maioria dos documentos do seu arquivo pessoal é formada por sua correspondência passiva, isto é, as milhares de cartas que recebeu dos seus inúmeros correspondentes. Ou seja, arquivar-se é também arquivar o outro6.

5 Dentre tantos exemplos, foi o caso de Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Rubião, Henriqueta Lisboa e Benedito Nunes. 6 Uma situação sintomática diz respeito à práxis arquivística da escritora Henriqueta Lisboa, como bem explica Rodrigo Oliveira: “Quanto ao ato de arquivar, nota-se que Henriqueta Lisboa conservava VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 22, n. 39, p. 98-117, jan./jul. 2021 – ISSN 1984-6959 – Qualis B1 102

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Encontram-se aproximadamente 32.450 cartas recebidas ao longo de sua vida, enviadas por centenas de correspondentes desde familiares até amigos próximos e/ou distantes, escritores em início de carreira ou com a mesma já configurada, críticos literários, estudantes, políticos, artistas, sacerdotes, teólogos, bispos, jornalistas, diplomatas, editores, diretores de periódicos, leitores e até presos políticos. Uma verdadeira rede de sociabilidade que demonstra o seu arco de contatos e interesses pessoais, demonstrando a importância do gênero epistolar na construção e troca de opiniões, impressões e sentimentos os mais diversos. Desta forma, o arquivo de um escritor, longe de ser uma fonte para se provar algo, mostra-se como mecanismo de problematizações epistemológicas e hermenêuticas, provocando as mais diversas (re)avaliações do cânone literário, das biografias, das histórias contadas e/ou transmitidas e, principalmente, das certezas engessadas pelos mais diversos motivos e porquês. Ou seja, o arquivo emerge como uma (des)organização híbrida, transversal, atravessada pelos mais diversos saberes e linguagens – pois nada na composição de um arquivo pessoal é sem intenção. Tudo isso nos leva a (re)pensar o arquivo de um escritor como uma potência de produção e de metabolismo do conhecimento que provoca as mais diversas possibilidades de interpretação, como nos lembra Eneida Maria de Souza:

O convívio permanente com arquivos de escritores e a necessidade de sistematizar tanto seus dados pessoais, quanto sua produção literária e intelectual, exigiam mudanças no modo de abordagem do texto. A sedução pelos manuscritos, cadernos de notas, papéis esparsos, correspondência, diários de viagem e fotos tem como contrapartida a participação efetiva do pesquisador para a construção de ensaios de teor biográfico (SOUZA, 2011, p. 9).

certa prática compulsiva de armazenamento de informações sobre si, sobretudo no que se refere à sua imagem veiculada nos jornais – a recepção crítica de suas obras e convívio social. Chegava a arquivar até 15 exemplares de uma mesma notícia e sempre circulava seu nome nessas reportagens, o que denota certa preocupação com sua imagem intelectual” (OLIVEIRA, 2010, p. 75). Ao contrário, Alceu Amoroso Lima não tinha essa compulsão sobre si próprio, pois no seu arquivo não encontramos uma seleção semelhante àquela feita por Henriqueta. Defendo a ideia que, para Alceu, arquivar-se era arquivar os seus contatos, amigos, correspondentes – as suas relações.

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Problematizando as teorias e opiniões de Eneida Maria de Souza, o professor Rodrigo Oliveira no seu ensaio O espaço exterior do arquivo, corrobora esta visão interdisciplinar e problemática dos arquivos pessoais, de forma particular aqueles com uma identidade mais literária, afirmando que:

O estudo de fontes primárias, oriundas de Acervos literários, articulado à produção literária dos escritores, possibilita ao pesquisador a construção de múltiplos discursos tramados entre vida e obra, além de proporcionar a conservação memorialística da imagem autoral. Para Eneida Maria de Souza, a crítica biográfica permite o estudo da literatura “além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção”. Louis Hay, ao traçar um panorama histórico sobre a origem e a consolidação da crítica genética e de sua importância na análise literária, afirma que “a literatura sai dos arquivos”. Em contrapartida, Jacques Derrida postula que todo arquivo guarda intrinsicamente certo princípio de consignação quer promove a comunicabilidade entre espaço interior e exterior, pois “não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior”. (OLIVEIRA, 2010, p. 69).

“A literatura sai dos arquivos” – esta afirmação de Louis Hay, citada e analisada por Rodrigo Oliveira, parece-me das mais intrigantes, problemáticas e potentes quando pensamos o arquivo de um escritor como um espaço plural e multifacetado. Tal fato nos causa, no dia a dia da pesquisa, grandes surpresas, especialmente nas descobertas e nos achados que alimentam a vida de um pesquisador de arquivos, sempre à procura por novidades e situações que revigorem o conhecimento científico a partir de textualidades quase sempre muito antigas que, mesmo com o passar do tempo, ainda produzem o efeito do novo.

Alceu no seu escritório da Casa Azul – (Fonte: CAALL)

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Voltando ao arquivo de Alceu, é difícil escolher uma das suas dimensões para analisar, dado o seu tamanho e variada constituição, o que certamente excederia os limites deste artigo. Entretanto, opto por três que considero fundamentais:

1.1 SÉRIE CORRESPONDÊNCIA PASSIVA – CARTAS DE ESCRITORES

Na minha opinião, trata-se do mais importante conteúdo deste acervo, especialmente àqueles pesquisadores interessados na história da literatura brasileira, particularmente no período modernista. Além de ter trocado cartas com os principais nomes da nossa produção literária, Alceu também dialogou com críticos e historiadores da nossa literatura, o que possibilita acompanhar os bastidores do nosso modernismo e também o modernismo de outros países, já que Alceu também manteve correspondência como remetentes de outros países. Também se faz interessante a pesquisa de autores não canônicos, desconhecidos e muitos nunca citados nos manuais de teoria e historiografia literárias. Uma vez que foi um dos principais críticos literários do seu tempo, era comum que escritores em início de carreira lhe enviassem os seus livros, na esperança de o crítico analisá-los ou, pelo menos, citá-los em alguma das suas inúmeras crônicas de crítica literária. Acompanhar este diálogo é também descobrir novidades modernistas em pleno século XX.

1.2 ALCEU PROFESSOR

Esta dimensão do seu arquivo é de suma importância não apenas para conhecermos um pouco mais do educador, mas também da sua longa carreira em diferentes posições no ensino brasileiro. Alceu foi reitor e professor da antiga Universidade do Distrito Federal, catedrático da então Universidade do Brasil (atual UFRJ), PUC-Rio (da qual foi um dos fundadores) e na Universidade Santa Úrsula. É interessante a papelada desta época: provas de alunos, listas nominais, programas de matérias a serem lecionadas, modelos de avaliações, esquemas de tópicos para aulas e outros documentos institucionais. Interessante ver nomes

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de alguns dos seus ex-alunos, tais como Maria Julieta Drummond de Andrade, Paulo Francis, e tantos nomes hoje em dia importantes para a nossa cultura e pensamento. Não menos importante é a documentação relativa aos seus mais de 30 anos como membro titular do Conselho Federal de Educação, especialmente quando da criação das disciplinas de Teoria Literária e Literatura Comparada, bem como as discussões e estabelecimento dos primeiros conteúdos curriculares para estas disciplinas. Tudo isso se faz importante para a história da educação brasileira, com recorte à dimensão universitária da mesma. Em particular, temos um pouco da história do ensino de Letras no brasil.

1.3 SÉRIE RECORTES DE JORNAIS

Com um imenso quantitativo de documentos, temos nesta série os recortes dos seus artigos publicados semanalmente na imprensa brasileira. Por muitas décadas, Alceu publicou em três jornais de grande circulação (no mínimo!), escrevendo textos diferentes para cada um, fazendo desta atividade uma verdadeira difusão de conhecimentos não apenas sobre crítica literária, mas também teologia, catolicismo, filosofia, educação, comportamento, política, biografia e assuntos gerais ligados à vida intelectual. A bem da verdade, algumas destas crônicas foram compiladas e publicadas pelo próprio autor, ao longo de algumas publicações. Todavia, a imensa parte desta sua produção intelectual ainda permanece nos arquivos dos respectivos jornais ou então no seu arquivo pessoal, recortadas e acondicionadas à espera de alguém que as reúna e publique, contribuição esta que seria de grande vulto à história do pensamento e também da crítica literária brasileira.

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O escritório de Alceu na Casa Azul – (fonte: CAALL)

Certamente, outros fundos temáticos mereceriam a nossa análise aqui, recomendo ao futuro leitor e pesquisador uma visita ao CAALL, no sentido de averiguar e sentir de perto um pouco daquilo que estou afirmando. E o que dizer da série fotográfica, dos documentos relativos ao Vaticano e ao Concílio Vaticano II, das cartas recebidas de presos e familiares de presos políticos... Tudo é interessante e corroboram a grandeza intelectual e humanitária do seu titular. As dinâmicas que constituem um arquivo são complexas e sempre movediças, principalmente no que diz respeito aos deslocamentos dos fundos documentais entre os mais diversos espaços, do privado ao público, como bem observa e alerta Reinaldo Marques no seu livro Arquivos literários, o qual cito mais uma vez aqui:

Nessa passagem, os arquivos dos escritores são drasticamente afetados, seja em termos topológicos, da acomodação espacial dos materiais, seja no sentido nomológico, segundo princípios e leis atinentes ao tratamento arquivístico de fundos documentais. Suas coleções documentais experimentam complexos processos de desterritorialização e reterritorialização, com impactos em termos de valor cultural e literário. [...] Nesse deslocamento do espaço privado para o espaço público opera-se uma metamorfose por meio da qual o arquivo do escritor transforma-se em arquivo literário. Com o conceito de “arquivo de escritor” quero designar um arquivo pessoal, cuja localização se dá no âmbito privado, de uma economia doméstica. Trata-se de arquivo formado por um escritor ou escritora, relacionado à sua vida e atividade profissional, cujos fundos documentais são reunidos segundo critérios e interesses particulares. [...] Por outro lado, com a noção de “arquivo literário” pretendo denominar o arquivo pessoal do escritor alocado no espaço público, sob a guarda de

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centros de documentação e pesquisa de universidades, de bibliotecas públicas, de fundações culturais (MARQUES, 2015, pp. 18-19).

Neste sentido, fica clara a complexidade da investigação científica feita em arquivos, nas chamadas fontes primárias, nos guardados textuais dos mais diversos autores e personalidades. Reinaldo Marques pensa muito a dimensão do “arquivo literário”, mas suas teorias certamente possibilitam-nos pensar a ideia de arquivo nas mais diferentes possibilidades. Termino esta seção com algumas de suas dúvidas em relação ao arquivo literário, perguntas que devem permear a pesquisa arquivística e que sempre penso em relação ao arquivo particular de Alceu Amoroso Lima:

Que relações de forças atravessam os arquivos literários? Como se colocam atualmente os conceitos de público e privado? Que papel cabe ao Estado, às universidades e fundações na custódia de arquivos literários e culturais? Que ordenamento jurídico regula as relações entre os espaços público e privado, impondo-lhes limites? Em que circunstâncias o interesse da sociedade deve prevalecer sobre o interesse privado? Como fica a acessibilidade dos cidadãos a esses arquivos? (Idem, p. 32).

Não tenho respostas para todas estas indagações. Mas continuo pensando este espaço da Casa Azul, passando a falar um pouco acerca da sua biblioteca e da sua íntima relação como arquivo.

2. A BIBLIOTECA E O ARQUIVO

Assim como o arquivo, a biblioteca foi sendo formada aos poucos e, de acordo com depoimentos de familiares, através de dois movimentos contínuos e interligados: envio de exemplares por conta dos respectivos autores e o deslocamento – feito pelo próprio Alceu – de parcelas de sua biblioteca do apartamento da Rua Paissandu, no Flamengo, para a casa de Petrópolis. Na Casa Azul, os livros foram alocados no segundo andar, onde ficava o escritório de Alceu, ao lado do espaço do próprio arquivo. Ou seja, desde o início, houve uma profunda interligação entre escritório, arquivo e biblioteca, por isso que sempre os penso em união de espaços – cada um com sua peculiaridade, porém partes integrantes de um todo memorialístico e de produção de conhecimento. Concordo com Silvana Santos quando ela afirma:

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A biblioteca e/ou arquivo pessoal constitui uma história de vida. O conhecimento, a experiência e os registros dessa experiência acumulados por uma pessoa ou instituição constituem uma variada e rica fonte informativa. [...] Bibliotecas e acervos pessoais são uma extensão do próprio titular. Em princípio, o acervo compreende as primeiras edições e reedições subsequentes de suas próprias obras. Complementando, inclui também os livros lidos, os que vão ser lidos, os livros compartilhados com amigos, discípulos e mestres, os dicionários, guias e outras fontes de referência para a elaboração de seu ofício. Na maioria das vezes, esse material é enriquecido com anotações pessoais que permitem leituras diversas e, portanto, são uma fonte de estudo e pesquisa. Compõem ainda a coleção as revistas, jornais, recortes e separatas onde recebem destaque as resenhas, críticas e opiniões sobre o seu trabalho; os slides, vídeos, fitas cassetes que, em geral, testemunham momentos ou fases da vida do titular. (SANTOS, 1995, p. 105)

“A biblioteca constitui uma história de vida” – creio que esta afirmação se aplica perfeitamente à biblioteca pessoal de Alceu Amoroso Lima, corroborando para o que afirmamos anteriormente acerca de “espaços biográficos”. Isto é, seus livros eram parte constante e vital da sua vida, não apenas a profissional, mas também a pessoal. Sua biblioteca, atualmente no CAALL, consta de aproximadamente 30 mil volumes. Mas já teve mais, especula-se que já foi de 50 mil unidades. Em 1979, a Prefeitura da cidade de Petrópolis inaugurou o Centro Cultural Tristão de Athayde, um importante complexo formado por diversos aparelhos culturais, inclusive a Biblioteca Municipal, para a qual Alceu doou perto de 20 mil livros do seu acervo pessoal, no sentido de aumentar o quantitativo daquele espaço. Não sabemos quais os critérios que o crítico usou para fazer essa seleção e posterior doação, nada ficou registrado. Entretanto, analisando alguns exemplares ainda disponíveis nesta instituição pública, sou levado a supor que a decisão foi muito subjetiva, por questões de gosto pessoal. Dentre os tantos itens do antigo acervo bibliográfico de Alceu, hoje na Biblioteca Municipal, destaco o exemplar de O ovo apunhalado (Editora Globo, 1975), de Caio Fernando Abreu, com a seguinte dedicatória: “Para / Alceu Amoroso Lima / com o abraço / e a admiração do / Caio Fernando Abreu / 13.11.75”. Na sua biblioteca pessoal, grande parte destes volumes possui diversas notas marginais, resultado da sua leitura criteriosa de crítico literário e produtor de conhecimento, sempre atento em aprender/apreender novidades, lançamentos, novos autores e outros já consagrados, brasileiros e/ou estrangeiros, no sentido de

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formular as suas opiniões e teorias, postulados que contribuíram muito (e ainda contribuem) para se pensar o nosso processo literário, particularmente o modernista. De fato, em alguns exemplares, são vários os comentários de Alceu anotados e grafados nas margens das páginas, como testemunhas do seu processo de leitura atenta e minuciosa, provocando as formulações e teorias da sua reflexão crítica. Pensando sistematicamente nestes registros à margem nos livros, trago a opinião de Telê Ancona Lopez, que há décadas pesquisa o arquivo e a biblioteca de Mário de Andrade, um dos mais importantes escritores da nossa literatura e também grande amigo de Alceu Amoroso Lima. Para Telê,

O livro anotado ganha dupla feição, novo significado. Ao discurso do autor que o escreveu, sobrepõe-se o do leitor, o qual, no caso de Mário, desdobra-se em um segundo trabalho de autoria, dentro da tipologia da marginália sua. O livro anotado é tecido histórico onde convivem sucessivos momentos do passado, pistas do estudo, da crítica, da criação literária e até de dados biográficos. Às anotações reveladoras de um processo de estudo, caracterizadas pelo destaque de um tópico, pela síntese, pela simples indicação, justapõem-se, às vezes em um mesmo livro, trechos com traços à margem ou sublinhados. (LOPEZ, 1991, p. 434).

“O livro anotado é tecido histórico” – realmente, e enquanto é este tipo de tecido, o livro está sempre suscetível a intervenções, mudanças e apropriações, num constante movimento que obriga a transgredir até mesmo as fronteiras do objeto livro, passando a funcionar como espaço de criação, de construção de conhecimento e não apenas de uma leitura passiva7. Como exemplo desta relação interligada entre o arquivo e a biblioteca de Alceu, em edição recente da Revista Brasileira, editada e publicada pela Academia Brasileira de Letras, analisei a amizade entre o crítico literário e o romancista José

7 A respeito das notas de leitura anotadas nos livros, esta importante marginália bibliográfica, lembro aqui o que nos afirma Luciano Costa Santos: “Dispondo apenas das margens laterais, superior e inferior da página para desenvolver-se, é próprio da nota marginal ser, em geral, tópica e concisa. Tópica, por deter-se nalgum destaque da página – parágrafo, trecho de parágrafo, frase, expressão ou mesmo vocábulo –, dispensando-se de dissertar sobre a estrutura da obra em seu conjunto. E concisa, colhendo em poucas palavras o essencial do que tem a dizer. Reduzida às margens, a nota encontra-se destinada a tão somente secundar a obra, comentando ou emendando aspectos, muitas vezes secundários, acrescentando dados, chamando a atenção, com sinais gráficos, para a relevância ou suposto equívoco de certos trechos, enfim, instaurando um diálogo marginal do autor das notas com o autor da obra. Não obstante sua “marginalidade” física e sua relativa “secundariedade” de conteúdo, esse diálogo não será de somenos importância para o entendimento do percurso da obra do próprio autor das notas e, nesse sentido, pode ser visto como obra em si mesmo, a demandar sua própria chave de leitura. Para tanto, cumpre tomar as notas em seu conjunto e verificar se daí ressaem núcleos conceptivos que contribuam para enriquecer a compreensão do pensamento de seu autor”. (SANTOS, 2009, pp. 48-49). VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 22, n. 39, p. 98-117, jan./jul. 2021 – ISSN 1984-6959 – Qualis B1 110

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Américo de Almeida, autor de A Bagaceira, primeiro romance do chamado ciclo regionalista do Nordeste8. A própria dedicatória já e, em si própria, uma peça digna de investigação:

É um ciclo literário que perdura e durará enquanto persistir nos espíritos a repercussão do fenômeno que o provoca. / Tristão de Athayde, Affonso Arinos, p. 163

Tristão de Athayde: Se nem mesmo a epopeia admirável de pode ainda traduzir o “horror da realidade”, eu, bicho do mato, não alcançaria exprimi-lo. Mas senti-lo como ninguém. No mais, invoco (em minha gíria forense) os doutos suplementos de sua crítica de adivinhão. José Américo de Almeida Paraíba do Norte, 1928.

Alceu anotou fartamente o exemplar d’A Bagaceira que recebera de José Américo de Almeida, percebendo ali algo novo na literatura brasileira, ou seja, o que hoje chamamos de regionalismo ainda não era, naquele momento, um conceito ou uma nomenclatura crítico-historiográfica, daí a ideia de novidade que se instaurava com o romance recém publicado na Paraíba. Transcrevo, abaixo, alguns registros feitos pelo crítico no verso da folha de rosto deste volume:

p. 3 – muito bom p. 26 – autorreflexão p. 90 – descrição do sertanejo p. 172 – 1ª. decaída p. 182 – citar p. 214 – perplexo p. 227 – descrição admirável em três linhas – citar p. 245/246 – descrição admirável – citar p. 249 – citar antepassado da mãe preta p. 251 – reflexões sutis

Há, em quase todas as folhas deste exemplar, anotações marginais feitas por Alceu ao longo do seu processo de leitura. Particularmente, o último capítulo foi fartamente sublinhado e demarcado pelo mesmo – quer com asteriscos, quer com linhas verticais às margens direita e esquerda – no sentido de ressaltar a importância da conclusão deste romance. Na última folha, à página 331, Alceu

8 Disponível em: https://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes/arquivos/revista_brasileira_104_internet_0. pdf (Data de acesso: 10/3/2021).

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esboçou o começo do seu futuro texto crítico a ser publicado na imprensa, onde lemos: “Eu afirmo sem hesitar que este livrinho de um desconhecido pode ser explorado com vantagem, ao lado, senão acima, dos maiores romances brasileiros. Pois não é apenas um grande livro novo: é um grande livro humano”. Em 11/3/1928, Alceu Amoroso Lima publicou, em O Jornal, a crônica Uma revelação, na qual apresentava ao público A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Um texto imenso, com especial lupa analítica, do qual destaco a seguinte passagem:

Não posso entrar em mais detalhes. Não quero privar o leitor do gosto de desvendar a trama angustiosa, esse entrechocar de instintos bárbaros e primitivos que o autor sabe fazer viver com tanta paixão e tanta sutileza. [...] Só noto um defeito sério, além de certa parcialidade no realismo dos sentidos: a falta de impressão de “tempo”. O livro se passa entre 1898 e 1915, os dois períodos da seca. E, no entanto, não se sente bem a passagem do tempo. Talvez que a narrativa pedisse mais de um volume. Como teve de fazer Proust para colocar o leitor no tempo vivo. Eu afirmo sem hesitar: este livrinho de um desconhecido pode ser colocado, com vantagem, ao lado dos maiores romances brasileiros. Pois não é apenas um grande livro nosso: é um grande livro humano. (LIMA, 1930, pp. 138-140)

Percebe-se que Alceu termina o seu artigo usando – embora com poucas modificações – o pensamento que ele manuscreveu no seu volume de leitura e análise. Como este exemplar da biblioteca dialoga com o arquivo? De forma integral, pois nele encontramos dezenas de cartas enviadas por José Américo de Almeida, algumas das quais narrando com riqueza de detalhes todo o processo de criação d’A Bagaceira, como podemos perceber nesta carta de 2/4/1928, enviada a Alceu, da qual retiro esta passagem:

Paraíba do Norte, 2 de abril de 1928

Meu generoso confrade e amigo: Acabo de receber a sua carta que é mais um documento de estímulo para o obscuro escritor provinciano. Eu escrevi o romance A Bagaceira do nordeste e para o nordeste. Certo de que somente as sensibilidades impregnadas das mesmas impressões imediatas poderiam compreendê-lo. E por aqui não houve quem não o sentisse, porque todos estavam acostumados a observá-lo na realidade de nossa vida dramática. Posso dizer que cheguei a criar a crítica indígena: não faltou homem de imprensa que não viesse dar o seu juízo comprobatório. Mas sempre me pareceu que no sul o ambiente físico e a paisagem social da tragédia seriam considerados falsos. É tudo tão diverso por aí! E eu tinha medo também da incompreensão cultural: seria recusada minha arte bárbara que reage em fórmulas novas contra o academicismo pé de boi... VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 22, n. 39, p. 98-117, jan./jul. 2021 – ISSN 1984-6959 – Qualis B1 112

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Mas – digo-lhe com a maior sinceridade – sempre confiei no seu extraordinário discernimento crítico e, principalmente, na orientação da sua inteligência brasileira que não se desvirtua e, antes, se define com mais vigor pelo grande conhecimento comparativo das literaturas estrangeiras. [...]

Infelizmente, não é possível aqui transcrever todas as cartas de José Américo tratando, especificamente, da gênese d’A Bagaceira, especialmente as suas inspirações e também motivações para começar a escrevê-lo, bem como os ambientes e formulação de personagens e enredo. Na verdade, essas cartas – unidas ao exemplar deste romance presente na biblioteca de Alceu – nos permitem fazer uma espécie de biografia crítica d’A Bagaceira9. Este é apenas um caso de amostragem, porém o arquivo e a biblioteca de Alceu permitem outras associações e configurações críticas, num movimento de associação entre cartas, livros, dedicatórias, fotografias e outras textualidades.

3. A CRIAÇÃO DO CAALL – INSTITUCIONALIZAÇÃO

Alceu Amoroso Lima faleceu em Petrópolis, no dia 14 de agosto de 1983, após um longo período de internação hospitalar. Estava viúvo há dois anos e praticamente passava todo o seu tempo na Casa Azul, indo ao apartamento carioca apenas para visitá-lo e organizar e deliberar o essencial para a sua manutenção. Após a sua morte, a casa permaneceu fechada por alguns meses, sem que a família pensasse numa finalidade imediata para a mesma. Houve uma primeira intenção, por parte da Prefeitura Municipal de Petrópolis, de transformar o imóvel num centro cultural, incluindo o mesmo no roteiro turístico da cidade. Contudo, esta intenção não foi adiante. Ainda enfermo, no hospital, Alceu teve uma longa conversa com o professor Cândido Mendes de Almeida, amigos de longa data, na qual pediu que Cândido levasse adiante a sua missão intelectual e apostólica à frente do laicato católico

9 Walter Benjamin indica aspectos sintomáticos a respeito desses espaços: “Não há nenhuma biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número de criaturas das regiões fronteiriças. Não precisam ser álbuns de colar ou de família, nem cadernos de autógrafos ou textos religiosos: muitas pessoas se afeiçoam a folhetos e prospectos, outras a fac-símiles de manuscritos ou cópias datilografadas de livros impossíveis de achar; e, com certeza, revistas podem compor as orlas prismáticas de uma biblioteca”. (BENJAMIN, 1987, p. 234)

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brasileiro, ampliando e promovendo o seu legado num sentido mais amplo possível. Assim, Cândido Mendes comprou o imóvel e o seu conteúdo, incorporando-o ao patrimônio da sua universidade homônima, fundando o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, o CAALL, em 4 de dezembro de 1983. Este tipo de institucionalização nunca é uma tarefa fácil e simples de ser compreendida e assumida, já que ocorrem aquelas forças de desterritorialização e reterritorialização, já lembradas anteriormente por Reinaldo Marques. Institucionalizar uma biblioteca e um arquivo pessoal significa, dentre tantas coisas, sistematizar, organizar e adequá-los corretamente a normas e postulados da arquivologia e da biblioteconomia, bem como de outras ciências. Há de se aplicar alguma ordem, alguma lógica organizativa no sentido de otimizar o conteúdo desses acervos. Assim, desterritorializam-se esses mesmos conteúdos – de uma ordem outrora dada pelo próprio titular – para reterritorializá-los sob um novo método, uma nova arrumação coordenada por saberes científicos que, no geral, são oriundos da Universidade. Entretanto, esse trâmite não é fácil e muito menos simples, pois ocorrerão desestruturas, desorganizações e realocações de itens documentais os mais diversos. Neste sentido, uma sensação muito comum é o sentimento de traição à lógica primária do titular, aos seus porquês pessoais para arquivar de acordo com o seu próprio jeito. No caso de Alceu, em relação às cartas que recebeu, ele costumava guardá-las pela ordem de chegada das mesmas: as mais atuais sobrepostas àquelas mais antigas. Com a institucionalização do seu acervo, as regras da arquivologia foram mais fortes e esta ordem mudou, tendo os documentos sido alocados em ordem crescente, a começar pela primeira carta da respectiva correspondência. Isto ocorreu em relação a todas as tipologias documentais, tais como as fotografias, agrupadas e agora sistematizadas de acordo com nomes, lugares, situações registradas, pessoas etc. Ou então os recortes de jornais, agora agrupados pelos respectivos anos e décadas de sua publicação, isto sem dizer da localização do periódico ou situações do tipo: um mesmo texto (re)publicado em diferentes veículos de comunicação.

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Outro problema sério, no meu entendimento, muito comum às instituições desta natureza, é a constante troca de equipes de arquivistas, bibliotecários, estagiários etc. Em geral, cada profissional tem o seu próprio método de trabalho e de compreensão acerca dos documentos e sua organização e sistematização. Com a mudança das equipes, ao longo dos anos, mudam-se também algumas regras e uma nova arrumação tem lugar. Nem sempre os profissionais concordam com a linha de trabalho dos seus predecessores, introduzindo novas lógicas de trabalho, o que provoca reflexos no arranjo arquivístico, dentre outras consequências.

4. SE FOR POSSÍVEL CONCLUIR...

Creio que o arquivo é um processo sempre aberto, talvez um dos melhores exemplos de work in progress que temos. O arquivo nunca está concluído, seu inventário está sempre por fazer, ainda mais quando estamos trabalhando com acervos e materiais pessoais. Assim, tentando concluir, retorno à opinião de Philippe Artières:

Pois, por que arquivamos nossa vida? Para responder a uma injunção social. Temos assim que manter nossas vidas bem organizadas, pôr o preto no branco, sem mentir, sem pular página nem deixar lacunas. O anormal é o sem-papéis. O indivíduo perigoso é o homem que escapa ao controle gráfico. Arquivamos portanto nossa vida, primeiro, em resposta ao mandamento “arquivarás tua vida” – e o farás por meio de práticas múltiplas: manterás cuidadosamente e cotidianamente o teu diário, onde toda noite examinarás o teu dia, conversarás preciosamente alguns papéis colocando-os de lado numa pasta, numa gaveta, num cofre: esses papéis são a tua identidade; enfim, redigirás a tua autobiografia, passarás a tua vida a limpo, dirás a verdade. (ARTIÈRES, 1998, p. 11)

“Por que arquivamos nossa vida?” – uma pergunta certamente com múltiplas respostas. Creio que Alceu Amoroso Lima não deve ter pensado nela de forma sistemática e programática – foi arquivando segundo sua vontade, selecionando e arrumando em obediência à sua própria lógica do guardar e do preservar. Todavia, de uma forma ou de outra, arquivou e arquivou-se. Também creio que ele não pensou na institucionalização da sua Casa Azul, da casa da Mosela, como gostava de referir-se ao seu refúgio na região serrana do Rio; sequer imaginou que a mesma

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hoje seria um centro de estudos pertencente a uma grande universidade. Mas isso ocorreu. Inexoravelmente ocorreu.

ALCEU AMOROSO LIMA'S ARCHIVE: CROSSED KNOWLEDGES

ABSTRACT

The archive belonged to Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) is one of the most important documentary sets for interdisciplinary research, covering different areas of knowledge and provoking the idea of knowledge and subjectivities that can be interconnected. Letters, telegrams, aerograms, manuscripts, diplomas, photographs, books, magazines, pictures, various museum objects and other documentary and textual typologies form this complex collection that currently makes up the Alceu Amoroso Lima Center for Freedom (CAALL), located in the city of Petrópolis (RJ), an institution that safeguards the intellectual legacy of this author. In this sense, CAALL can be classified in the category of “museum- house”, a category that allows us to think about the place of the personal archive within a larger structure, in constant dialogue with the library, garden and the premises of the house itself. The purpose of this paper is to analyze the constitution of this space and its content, talking a little about its composition and contributing for the dissemination of the work and the thought of this important intellectual.

Keywords: Alceu Amoroso Lima; Personal archive; Museum-house; Library.

REFERÊNCIAS

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