O ARQUIVO DE ALCEU AMOROSO LIMA: SABERES CRUZADOS Leandro Garcia RODRIGUES√ RESUMO O arquivo de Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Athayde) é um dos conjuntos documentais mais importantes para a pesquisa interdisciplinar, abarcando diferentes áreas do conhecimento e provocando a ideia de saberes e subjetividades que se interligam. Cartas, telegramas, aerogramas, manuscritos, diplomas, fotografias, livros, revistas, quadros, diversos objetos museológicos e outras tipologias documentais e textuais formam este complexo acervo que atualmente compõe o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL), localizado na cidade de Petrópolis (RJ), instituição que salvaguarda o legado intelectual deste autor. Neste sentido, o CAALL pode ser enquadrado na categoria de “casa-museu”, categoria esta que possibilita pensarmos o lugar do arquivo pessoal dentro de uma estrutura maior, em constante diálogo com biblioteca, jardim e as dependências da própria casa. O objetivo deste artigo é analisar um pouco a constituição deste espaço e do seu conteúdo, falando um pouco da sua composição e contribuindo para a divulgação da obra e do pensamento deste intelectual. Palavras-chave: Alceu. Arquivo pessoal. Casa-museu. Biblioteca. Pensar a constituição dos arquivos pessoais é tarefa sempre complexa e que, em muitos casos, foge às regras e cânones da sistematização próprias da arquivologia tradicional. Em geral, diz-se que o arquivo pessoal obedece a uma lógica criada pelo seu titular, de acordo com a sua visão de organização e hierarquização de valores em relação aos itens nele guardados. Artigo recebido em 28/03/2021 e aprovado em 03/06/2021. √ Doutor e Pós-doutor em Estudos Literários - PUC-Rio. Prof. Adj. II de Teoria Literária na Faculdade de Letras da UFMG. E-mail: [email protected] VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 22, n. 39, p. 98-117, jan./jul. 2021 – ISSN 1984-6959 – Qualis B1 98 O ARQUIVO DE ALCEU AMOROSO LIMA: SABERES CRUZADOS Assim aconteceu com o arquivo do escritor e intelectual católico Alceu Amoroso Lima (1893-1983), um imenso conjunto documental formado por cartas, fotografias, manuscritos, datiloscritos, bilhetes, telegramas e outras tipologias documentais. Todo esse conjunto foi formado ao longo de décadas de intensa atividade intelectual, iniciada em 1919, quando Alceu publicou o seu primeiro livro e iniciou-se na crítica literária profissional, no periódico O Jornal. Entretanto, desejo aqui trabalhar a noção de casa-museu1, pois creio que esta seja adequada para pensar a complexidade deste espaço, pois é impossível pensar o arquivo de Alceu dissociado da sua biblioteca e da sua própria casa. Há, de fato, um verdadeiro amálgama destes ambientes e o que eles possuem, que provoca uma espécie de teia semiótica2 entre os diferentes saberes que se entrecruzam entre os seus conteúdos. 1. O ARQUIVO, O ESCRITÓRIO, A CASA AZUL Rua Mosela no 289, Petrópolis, Rio de Janeiro. Este é o endereço da casa que Alceu Amoroso Lima possuía nesta cidade serrana fluminense. Adquirida nos anos 40 do século passado, a famosa Casa Azul era uma espécie de refúgio do crítico literário, onde ele gostava de ler, escrever e receber poucos amigos. Afinal, era o seu espaço reservado, no qual gostava de passar dias e temporadas para cuidar do seu jardim, responder dezenas de cartas diariamente, escrever suas crônicas semanais para diversos veículos de imprensa. Mas também era o seu lugar para rezar, meditar, muito próximo à igreja do Sagrado Coração de Jesus, na qual Alceu participava da missa diária das 7h da manhã, geralmente celebrada pelo seu amigo Leonardo Boff, então frade franciscano3. 1 Utilizo aqui este conceito, da forma como ele foi desenvolvido, por Lívia Reis no seu ensaio Arquivar a vida: cartas, diários, ensaios, biblioteca, casa-museu; Cf. Referências. 2 Reinaldo Marques fala de “forças retóricas” para pensar situações idênticas: “Na cena dos arquivos literários movimentam-se, pois, forças que ora se atraem e ora se repelem, demarcando um espaço dinâmico percorrido por pulsões tanto ativadoras quanto inibidoras de processos criativos, de conhecimento, de negociações políticas, de horizontes éticos. Também percorrem os arquivos literários forças retóricas que têm no discurso seu objeto primordial de atuação e de expressão” (MARQUES, 2015, p. 38). 3 Em depoimento a mim enviado, via correio eletrônico, Maria Teresa Senise, neta de Alceu Amoroso Lima, assim recompõe as suas lembranças do avô e da Casa Azul: “Como os livros se acumulavam, VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 22, n. 39, p. 98-117, jan./jul. 2021 – ISSN 1984-6959 – Qualis B1 99 O ARQUIVO DE ALCEU AMOROSO LIMA: SABERES CRUZADOS Uma casa antiga, no alto de uma pequena elevação, com dois andares, na encosta de um morro, algo bem próprio da geografia petropolitana. Foi para ela que o crítico transferiu uma imensa parcela da sua biblioteca e do seu arquivo pessoal, mantendo uma outra parte no seu endereço carioca, na Rua Paissandu, no bairro do Flamengo. Entretanto, nos seus últimos anos de vida, foi na Casa Azul que Alceu concentrou o seu arquivo, e ele próprio começou a sua organização. Rua Mosela 289, Petrópolis – a Casa Azul (Fonte: CAALL) Neste sentido, a Casa Azul pode entrar na categoria de casa-museu, isto é, uma espécie de espaço biográfico, múltiplo de diferentes ambientes e saberes, cada um com linguagem e vida próprios e diversos suportes de memória que se minha avó sugeriu que eles fossem sendo levados, aos poucos, pra Petrópolis. Isso foi uma ideia ótima, já que eles cada vez mais estendiam a moradia pra Serra e cada vez menos ficavam no Rio. Ele era uma outra pessoa longe do Rio. Nos idos de 60, eu estudava no internato do Colégio Sion de Petrópolis, e nos fins de semana ia pra Mosela. Na minha cabeça, era lá que eles moravam e o Rio se tornou uma passagem. Lembro que o correio chegava lá abarrotado de livros e a parte de cima da casa mal comportava. O apartamento da Rua Paissandu, no Flamengo, foi sendo deixado aos poucos. Os três quartos de empregados, que ocupavam o sótão da casa, foram ocupados pelos livros sem nenhum critério de identificação, apenas por ordem de chegada. A rotina era cumprida rigorosamente. Missa às 7, café. Então ele subia pro escritório, descendo apenas pro almoço ao chamado de uma campainha. Não havia intervalo e ele só descia novamente pro jantar, bem mais tarde. Aí sim ia pra varanda e, ao som dos clássicos, andava de um lado pro outro. Metódico ao extremo. Não lembro de nenhuma visita, de nenhuma saída extra que não fosse as citadas missas e também à padaria. Lembro que minha avó barrava e dificultava qualquer tentativa de aproximação de repórteres”. (mensagem recebida em 13/3/2021) VERBO DE MINAS, Juiz de Fora, v. 22, n. 39, p. 98-117, jan./jul. 2021 – ISSN 1984-6959 – Qualis B1 100 O ARQUIVO DE ALCEU AMOROSO LIMA: SABERES CRUZADOS interligam simbólico e subjetivamente4. Penso num espaço de narrativas de vida cujo texto é formado por documentos e diferentes modalidades textuais, inúmeras grafias que deixaram rastros e marcas do seu titular. Vida, obra e casa me fazem lembrar o que Philippe Artières afirmou acerca das suas próprias impressões dos seus lugares de memória, nos quais “Tivéssemos reunidos os rascunhos, os antetextos das nossas existências” (ARTIÈRES, 1998, p. 21). Não sabemos exatamente quando o escritor começou esta tarefa, nem mesmo se alguém o ajudou neste mister. Sabemos que, no final dos anos 40 e início dos 50, Alceu teve como secretário particular o escritor João Etienne Filho, então estudante de Direito da Universidade do Brasil, que naquele momento residia no Rio de Janeiro, e por seis anos secretariou o crítico na sede do antigo Centro Dom Vital, na Praça 15, coração da então capital federal. Etienne fez a primeira organização do seu arquivo de correspondência passiva, definindo os correspondentes, localizando as cartas enviadas por cada um e separando-as em ficheiros particulares para cada remetente. Com o retorno de Etienne à sua cidade, Belo Horizonte, tudo indica que Alceu deu continuidade ao trabalho do seu ex-secretário, aos poucos e lentamente, mas realizando-o na casa de Petrópolis e não mais nos seus endereços cariocas – residencial e/ou profissional. 4 Xikito Affonso Ferreira, neto e biógrafo de Alceu Amoroso Lima, relembra aspectos importantes daquele imóvel: “A Rua Mosela 289, de que os Amoroso Lima fazem sua residência principal nas últimas duas décadas de vida, é uma ladeira que serpenteia morro acima a partir do [rio] Piabanha. [...] O traço doméstico é o que marca essa construção sem estilo particular. Três arcos sem maior imaginação abrem-se sobre a varanda para a qual dão duas salas e o quarto do casal. A decoração no interior da casa é discreta, espontânea, nada tem de solene nem enfeitada. [...] O escritório de Alceu, eis um cômodo alado, seu pé-direito chega ao forro do telhado aumentando a sensação de espaço. De dia o sol forte despeja claridade no ambiente, de noite alguns abajures derramam uma luz amarela e mansa. É área de uns 40 m2, suficientes para um quarto e sala modernos. As paredes estão forradas de livros, mas ainda deixam espaço no canto para a estante de concreto em que se apoia uma dúzia de fotos de companheiros de viagem. D. Hélder Câmara aparece viçoso e trajando vestes esvoaçantes, dirigindo-se a uma capela na subida para o morro. Jacques Maritain desembarca no cais do no Rio antes da Segunda Guerra. Pe. Lebret também figura na galeria. Um par de poltronas importado da Casa Maples em Londres e de couro já surrado forma um subambiente no escritório. Uma mesinha com espaço apenas para a combalida Remington, onde vovó datilografa alguns dos artigos do marido, antecede a escrivaninha de trabalho de Alceu. Ela é enorme, nela Alceu esparrama folhas de papel almaço virgens e apoia volumes de consulta.
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