Revista SUG Nº21, 24 - 40 (2018) Sociedad Uruguaya de Geología

DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA: UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI)

FROM STILT HOUSES TO THE RISK OF COASTAL EROSION: A NATURAL, HISTORICAL AND POLITICAL OVERVIEW OF THE ENVIRONMENTAL CONFLICTS IN AGUAS DULCES ()

Mota, G.S.; Goso Aguilar, C. & Nicolodi, J.L.

Universidade Federal do Rio Grande, Instituto de Ciências Humanas e da Informação, Departamento de Geografa. Avenida Itália km 8. Bairro: Carreiros. Cidade: Rio Grande - RS - Brasil [email protected]

RESUMO Com o objetivo de caracterizar as áreas de risco de erosão costeira do balneário Aguas Dulces, Departamento de Rocha/Uruguai, e compreender as origens da situação de vulnerabilidade foi desenvolvida uma análise sistêmica (predominantemente qualitativa) de aspectos naturais, históricos e políticos condicionantes de sua gênese. Para compor este trabalho-síntese, utilizou-se de pesquisa histórica acerca da evolução da localidade, análise crítica de normativas relacionadas ao uso da terra e a caracterização da área exposta à ameaça contemplando elementos vulneráveis, danos possíveis e a distribuição das estratégias de proteção costeira empregadas. Centenário em sua história e com décadas de convivência com a erosão costeira registrada na memória da comunidade, a ocupação próximo da costa tem sua origem relacionada com mudanças culturais internacionais e um processo de apropriação da paisagem que desenvolveu-se por todo século XX. Sob um modelo de ordenamento territorial que inicialmente pouco considerou a dinâmica natural em sua proposta, a consolidação dos atuais confitos ambientais manifesta-se como resultado de escolhas históricas e políticas sobre um ambiente intensamente responsivo. Neste contexto, ações de intervenção sobre o ordenamento territorial a partir da década de 1970, mesmo que tardias, obtiveram impacto positivo no controle da expansão das áreas de risco de desastres, possibilitando uma análise crítica de suas potencialidades e fraquezas.

Palavras-chave: Ordenamento Territorial; Gestão Ambiental; Gerenciamento Costeiro; Risco de Desastres.

ABSTRACT With the objective to characterize the coastal erosion risk areas of Aguas Dulces, Department of Rocha/Uruguay, and to understand the origins of the situation of vulnerability, a systemic analysis (predominantly qualitative) of natural, historical and political aspects was developed. To compose this synthesis work, historical research about the evolution of locality, critical analysis of land use regulations and the characterization of the area exposed to the hazard were applied, considering vulnerable elements, possible damages and the distribution of coastal protection strategies employed. Centennial in its history and with decades of coexistence with the coastal erosion registered in the memory of the local community, the occupation near the coast has its origin related to international cultural changes and a process of appropriation of the landscape that has developed throughout century XX. Under a spatial planning model that initially didn’t consider the natural dynamics in its proposal, the consolidation of the current environmental conficts is manifested as a result of historical and political choices about an intensely responsive environment. In this context, the adoption of actions over land use planning from the 1970s, even years apart, had a positive impact on the control of the expansion of disaster risk areas, allowing a critical analysis of their potentialities and weaknesses.

Keywords: Land Use Planning; Environmental Management; Coastal Management; Disasters Risk.

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INTRODUCCIÓN deste sistema se recuperar plenamente com seus próprios recursos. Anualmente, milhões de O dinamismo que os processos naturais e pessoas encontram-se expostas à uma situação humanos impõem sobre o ambiente costeiro de risco, uma relação direta entre ameaça, acaba por torná-lo um rico universo de análise. vulnerabilidade individual e danos possíveis Neste cenário, a paisagem é constantemente (Silveira et al. 2014), seja por condicionantes moldada e situações de risco de desastres naturais, antropogênicas, tecnológicas, biológicas acabam por se manifestar quando a consolidação ou sua soma. Uma situação não muito distinta do espaço humano torna-se incompatível com o quando trata-se da erosão costeira, a erosão dinamismo dos processos exógenos ali atuantes. ou retrogradação da linha de costa causada por São poucos aqueles autores que buscaram fatores naturais e antropogênicos (Souza 2009). singrar as águas da história ou das ciências O presente trabalho objetiva caracterizar as sociais, navegando sobre temas relativos às áreas de risco de erosão costeira do balneário práticas humanas (simbólicas e materiais) Aguas Dulces, Departamento de Rocha/Uruguai, e construídas à beira-mar ou no convívio direto traçar um panorama dos elementos condicionantes com os oceanos, no avançar dos séculos. Dentre da situação de risco constatada através da análise quem enfrentou esse desafo de nos apresentar histórica e política das mudanças implementadas às águas marinhas e às praias, focando- no balneário desde sua concepção. Assim, as como temas centrais de suas pesquisas trata-se de um trabalho-síntese a respeito das publicadas em livro, pode-se citar o trabalho do décadas de confitos derivados pela variação historiador francês Alain Corbin – O Território da linha de costa na localidade, sendo dado o do Vazio: a praia e o imaginário social em 1989. enfoque às variáveis históricas condicionantes Segundo a terminologia adotada pelo United do estado de risco presente. Resultados Nations International Strategy for Disaster quantitativos diretamente relacionados ao Reduction (UNISDR 2009), o desastre corresponde monitoramento dos processos de variabilidade à uma séria interrupção no funcionamento morfodinâmica (a ameaça em questão) não de uma comunidade capaz de causar perdas estão no escopo do atual trabalho, utilizando- de vidas e impactos materiais, econômicos se de dados secundários quando disponíveis. e ambientais que estão além da capacidade O balneário Aguas Dulces pertence ao

FIGURA 1. Localização do Balneário Aguas Dulces no Departamento de Rocha. FIGURE 1. Localization map of Aguas Dulces beach in .

25 DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA:UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI) município de , Departamento de Rocha, (Hockett apud Richardson et al. 1989). norte da costa atlântica do Uruguai (Figura Estrutura política organizacional e evolução 1). Distante 70 km da capital departamental, de normativas locais, bem como planos, Rocha (via Ruta 9), 264 km da capital nacional, diretrizes e instrumentos de políticas públicas (via Ruta 9) e 84 km da fronteira foram compilados e analisados sob contexto com o Brasil, Chuí (via Ruta 9). O acesso entre espaço-temporal de abrangência. Comumente, Castillos e Aguas Dulces é realizado pela Ruta 16. aspectos legislativos relacionados com o ordenamento territorial e uso da terra detém METODOLOGIA protagonismo na consolidação de áreas de risco de desastres e, aqui, receberam destaque. Para efetivar o objetivo proposto, utilizou-se A caracterização da orla urbanizada de de abordagem qualitativa e quantidade integrada Aguas Dulces concentrou-se na classifcação com base conceitual de cunho sistêmico e de aspectos conceituais relacionados ao risco evolutivo. A análise organizou-se sobre os eixos de desastres na orla, sendo eles: ameaças prioritários defnidos pela proposta metodológica identifcadas, evidências da erosão costeira, NHP (Mota 2017), destinada a avaliação danos possíveis, suscetibilidade, vulnerabilidade, conceitual da gênese histórica das áreas de risco risco e capacidade de enfrentamento da de desastres (Figura 2). Em prol da compilação comunidade (conforme terminologia UNISDR de subsídios necessários para uma discussão 2009). Especifcamente em relação a este último satisfatória em torno da gênese do risco de erosão item, realizou-se o registro fotográfco de todo costeira, aspectos Naturais, Históricos e Políticos o perímetro da orla edifcada a beira-mar com (NHP) foram compilados no contexto da área de o intuito de classifcar os tipos de estruturas de estudo sob um viés espaço-temporal de análise. proteção costeira presentes. A metodologia A pesquisa histórica fundamentou o estudo empregada para esse registro é baseada no de evolução da comunidade afetada, com intuito monitoramento da orla proposto por Oliveira de reconhecer, descritivamente, as forçantes & Koerner (2015), fundamentado no registro (drivers) culturais, socioeconômicas, urbanísticas fotográfco de um mosaico contínuo de todo pós- e políticas que consolidaram o cenário de praia. O levantamento foi realizado do extremo vulnerabilidade. Coleta de dados, através de norte ao extremo sul da orla edifcada do balneário, pesquisa bibliográfca-documental de fontes com fotografas passíveis de sobreposição primárias e secundárias é a essência da pesquisa, lateral parcial através de software de desenho residindo na revisão crítica destes dados uma vetorial (Photoshop CS6), garantindo que todo etapa importante, visto que toda informação trecho fosse historicamente documentado no histórica obtida é resultado de interpretação formato fotográfco e descritivo, lote a lote.

FIGURA 2. Proposta metodológica NHP aplicada à realidade da erosão costeira em Aguas Dulces. FIGURE 2. NHP methodological proposal applied to coastal erosion in Aguas Dulces.

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A classifcação das estruturas de proteção pleistocênicos e um holocênico) está inserido, costeira foi realizada com base na metodologia justamente, neste trecho que contempla a costa modifcada de Teixeira (2007), na qual foram do Rio Grande do Sul até (Rosa et al. identifcados, quantitativamente, os padrões 2017), cerca de 60 km a norte de Aguas Dulces. construtivos predominantes. Os dados Ainda em um contexto regional, apesar compilados foram tratados através de estatística da erosão costeira se tratar de um processo descritiva para reconhecer a frequência de uso tipicamente progressivo, eventos críticos são de cada modelo construtivo, sendo agrupados registrados na incidência de eventos de alta em doze classes passíveis de coexistência: energia de ondas relacionadas à passagem dunas, resíduos de construção, pneus, postes de sistemas polares e ciclones extratropicais madeira, muros de madeira, muros de concreto, associados, condicionando ondulações dos enrocamento, blocos de concreto, sacos quadrantes SW, SE e S. Principais causadoras plásticos, palaftas, aterro e ausência de proteção. da erosão na costa, estes padrões de ondulação A coexistência de até três classes distintas em estão relacionadas a ocorrência de marés uma mesma estrutura de contenção pôde ser meteorológicas positivas, mais comuns durante reconhecida durante o levantamento realizado o inverno, primavera e outono. Durante o verão, em Novembro de 2016 e em Agosto de 2017. predomina a incidência de ventos alísios, vagas irregulares e um padrão acrescivo na RESULTADOS E DISCUSSÃO costa — reconstituindo parcialmente a erosão dominante durante o inverno (Calliari et al. 2006). Os resultados obtidos foram reunidos Sob caráter local, a orientação da linha de costa de acordo com a metodologia supracitada, possui direção NE-SW, com azimute aproximado envolvendo a caracterização da área de risco de de 25°, o que favorece a incidência de ondulações erosão costeira, a elaboração de um panorama oriundas dos quadrantes SW-S-SE. Porém, visto histórico de evolução do balneário baseado em a infexão da costa imposta pelo promontório de pesquisa histórica documental e a análise crítica , cerca de 6 km ao sul de Aguas das políticas e instrumentos de ordenamento Dulces, ocorre a proteção parcial de ondulações territorial historicamente atuantes na localidade dos quadrantes SW e S sobre o balneário. para que, enfm, possa ser discutida a gênese Em termos demográfcos, a ocupação do risco de erosão costeira em Aguas Dulces. é predominantemente composta por segundas residências. Das 1589 residências Caracterização do risco permanentes existentes no balneário, apenas 194 são ocupadas durante todo o ano. A O balneário Aguas Dulces está inserido população fxa anual, estimada em 417 no contexto sul-americano atlântico da Wave- habitantes (INE 2011), é multiplicada durante Sandy Dominated Coast of Rio Grande do Sul, o verão, trazendo turistas do Departamento segundo a classifcação expandida do litoral de Rocha, interior do Uruguai e Argentina. brasileiro proposta por Dominguez (2006). De Dentre os indicadores de erosão costeira forma simplifcada, trata-se de uma planície propostos por Souza et al. (2005), puderam ser costeira confgurada pela sucessão de sistemas identifcados in situ: pós-praia muito estreito deposicionais laguna-barreira de idade ou inexistente devido à inundação permanente pleistocênica e holocênica, as quais acabaram por durante as preamares de sizígia; retrogradação isolar os corpos de água e confgurar as lagoas, geral da linha de costa nas últimas décadas, lagunas e banhados típicos da fronteira atlântica evidenciado pelo colapso de edifcações e Brasil-Uruguai. Os sedimentos que compõem destruição da infraestrutura urbana; presença esta geomorfologia são oriundos, especialmente, de escarpamentos em depósitos eólicos atuais; do Rio de la Plata, em um ambiente deposicional exumação e erosão de depósitos paleolagunares, dominado pela ação de ondas e deriva litorânea evidenciado pela presença de fósseis da fauna bidirecional — mais intensa e com predominância quaternária depositados no pós-praia; construção vetorial de transporte no sentido norte durante e destruição de estruturas artifciais erguidas o inverno (Domínguez 2006). De La Coronilla sobre depósitos marinhos ou eólicos holocênicos; (litoral norte do Uruguai) para sul, promontórios presença de concentrações de minerais rochosos tornam-se progressivamente mais pesados em determinados trechos da pós-praia. frequentes, resultando no embaiamento destas Neste contexto, fósseis retrabalhados da praias pela maior proximidade do embasamento megafauna pleistocênica foram identifcados Pré-Cambriano em relação a linha de costa. Logo, no pós-praia de Aguas Dulces, com destaque o registro mais contínuo dos quatro sistemas para um fragmento de carapaça de Glyptodon laguna-barreira (três sistemas deposicionais sp. localizado junto à depósitos concentrados

27 DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA:UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI) de bioclastos marinhos e minerais pesados. cênica e potencial turístico. Analisando a Uma ocorrência fossilífera comum no contexto situação diagnosticada, defne-se que o grau de fronteiriço Brasil-Uruguai, segundo Lopes (2009). vulnerabilidade de uma edifcação é inversamente Em termos de exposição às ameaças proporcional ao potencial de investimento relacionados com a erosão costeira, toda a faixa em estruturas de proteção costeira de seus urbanizada da orla foi classifcada como suscetível proprietários. Logo, aqueles que podem arcar com à erosão. Por sua vez, a porção suscetível a estruturas de contenção mais resistentes estão inundações por marés meteorológicas positivas menos vulneráveis do que aqueles impossibilitados é principalmente aquela disposta de forma de implementar iniciativas de proteção costeira ou adjacente aos principais sangradouros, já que que utilizam-se de estratégias de baixa efciência. sofrem com transbordamentos potencializados Pelo fato do processo erosivo não ser pela impermeabilização/compactação do solo uma novidade e acompanhar a história do e falta de infraestrutura de drenagem urbana balneário Aguas Dulces desde os primeiros adequada. Por fm, outra ameaça que pode parcelamentos do solo destinados a construção estar relacionada ao recuo da linha de costa de residências permanentes, o convívio com o no sentido continente é a transporte eólico e risco e o desenvolvimento de uma capacidade de avanço de dunas sobre construções, a qual não enfrentamento pela população é notável. A forma se desenvolve atualmente na maior parte da de enfrentamento atuante hoje no balneário é orla urbanizada devido a obliteração das dunas predominantemente individual, com a construção frontais, sendo sua mobilidade passível de análise de estruturas rígidas sem fundação ou estudo nos extremos sul e norte da orla. Nas porções geotécnico com o uso de blocos de rocha, sacos distais sem urbanização, as dunas encontram- de areia e estruturas em madeira, bem como a se com cobertura vegetal desenvolvida, o que implementação de acessos, na forma de escadas impede sua ampla mobilidade, como pode e rampas de madeira ou de concreto (Figura 4). ser constatado também em Cabo Polonio. Por não se tratar de uma forma defnitiva de A distribuição espacial das áreas urbanas se lidar com o problema da erosão costeiras suscetíveis às ameaças possibilita delimitar em áreas urbanas, estas estruturas rígidas de os limites da zona de perigo e a área de proteção costeira tornam-se perenes e requerem risco de erosão costeira, perímetro no qual manutenção constante, além de liberar resíduos os elementos do sistemas valorados pela na pós-praia, podendo resultar em acidentes sociedade possuem probabilidade de danos àqueles que utilizam a praia para banho e lazer. maiores que zero, sendo eles: colapso e Iniciativas essencialmente individuais, como são, condenação de edifcações, destruição de não apresentam uniformização nas soluções obras de contenção e de infraestrutura urbana, aplicadas ou adequação técnica específca, avarias em construções passíveis de reparo, resolvendo a questão apenas localmente e redução da faixa de praia, lesões aos usuários transferindo o foco erosivo para porções mais e fauna pela presença de obras inadequadas e vulneráveis do sistema. Neste cenário, observa-se resíduos de construção civil na faixa de praia. a defesa da propriedade privada como prioridade, Em Aguas Dulces, a zona de exposição ao elencando preocupações com a degradação perigo da (erosão costeira compreende a faixa ambiental, prejuízos à paisagem cênica ou danos de contato entre a urbanização e o pós-praia, à balneabilidade para uma posição subordinada. um perímetro de aproximadamente 2,5 km de Em eventos extremos, como a passagem extensão, considerando as construções do do ciclone extratropical pela costa uruguaia extremo sul e do norte. Os 1,9 km da porção registrado no fnal de Outubro de 2016, ações norte da orla são compostos por malha urbana estatais foram observadas em prol da remoção contínua, diferentemente dos 600 m restantes ao de resíduos de construção e da condenação de sul. A primeira fleira de casas, construídas sobre edifcações por um corpo técnico público, prática as dunas e de frente para a linha de costa, é a que que foi questionada por grupos de moradores possui maior risco de danos em eventos de maré que entraram com ação civil contra a iniciativa. meteorológica positiva (Figura 3). A intensidade do Segundo relato do Intendente de Rocha, cerca risco destas construções é também condicionado de 4.500m³ de entulhos foram retirados da praia pela vulnerabilidade individual de cada edifcação, nas primeiras semanas que sucederam o evento sendo aquelas com estrutura de proteção costeira extremo. Ainda de acordo com o mesmo, tratava- menos vulneráveis que as em situação oposta. se de escombro “producido por construcciones Dentre os elementos vulneráveis constatados, que están donde no tienen que estar” (Subrayado sejam eles materiais ou imateriais, destacam-se: 2016). Como saldo fnal da crise, 25 construções edifcações, infraestrutura urbana, população foram destruídas e outras seis receberam local, população turística, fauna e fora, paisagem notifcação para demolição, totalizando cerca de

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FIGURA 3. Extremo norte (acima) e porção central (abaixo) da orla de Aguas Dulces: assentamentos irregulares (em laranja) encontram-se entre a proposta urbanística de avenida beira-mar e a linha de costa. Fonte: SIG Rocha, 2010 (sig.rocha.gub.uy). FIGURE 3. Northern (above) and central (down) Aguas Dulces portions: irregular occupation (orange) between urbanistic coastal avenue and coastline.

9.000m³ removidos pelo governo departamental desenvolvimento de novas dunas frontais. até Dezembro de 2016 (Mota 2017). Uma coleta de dados com intuito de Durante levantamento realizado em Agosto caracterizar estatisticamente os padrões de 2017 se constatou a materialização na individuais de proteção costeira foi realizada paisagem das ações políticas tomadas no ano no dia 23 de Agosto de 2017. Ao total, 129 anterior, sendo o número de residências na construções foram classifcadas na orla de Aguas orla inferior ao observado no levantamento Dulces, passíveis de exposição à ação direta da de Novembro de 2016. Tal ação possibilitou o energia de ondas. Somam-se a esse número, surgimento de “lotes vazios”, os quais ampliaram 10 lotes vazios intercalados às edifcações, localmente a faixa de praia e, em alguns apresentando resíduos de construção ou alguma casos, chegaram a possibilitar o surgimento de forma de proteção costeira resultante de uma novas dunas frontais a frente de construções. possível remoção recente, totalizando assim Apesar destes resultados promovidos por um universo amostral de 139 casas e lotes esta ação estatal, é preciso destacar que, compreendidos sobre a pós-praia e as dunas. agora, algumas residências que não estavam Na porção central do balneário, a organização suscetíveis aos danos diretos da erosão, por da malha urbana é mais densa, em especial ao se encontrarem protegidas atrás da primeira sul do eixo central de acesso ao balneário, a linha de edifcações a beira-mar, apresentam avenida Los Palaftos. Nas extremidades norte situação de maior vulnerabilidade que outrora. e sul é possível observar residências esparsas Com isto em vista, estratégias de atualização intercaladas por dunas com escarpas de erosão. dos padrões construtivos de proteção costeira Dentre as estruturas de proteção à erosão devem ser esperados. Em contrapartida, alguns costeira presentes no balneário se registrou proprietários adotaram o mantenimento das a presença de dunas, resíduos de concreto, dunas frontais como estratégia, incorporando postes de madeira, muros de madeira, muros de a vegetação ao desenho arquitetônico da concreto, enrocamento, blocos de concreto, sacos edifcação. Assim, originam-se estruturas de plásticos preenchidos (com areia, de forma geral), contenção híbridas, unindo a implementação palaftas e aterro como estratégia de contenção. de estruturas rígidas com o fomento ao Como solução primária descrita nos 139 lotes

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FIGURA 4: Erosão costeira em Aguas Dulces (Novembro de 2016): proteção com sacos de areia e postes de madeira (A), muros de concreto (B), lona e enrocamento (C), muros de madeira (D); escarpas erosivas em dunas (E, F e G); presença de minerais pesados e entulhos no pós-praia (H). FIGURE 4. Coastal erosion in Aguas Dulces (2016): sand flled bags and wooden posts (A), concrete walls (B), plastic flm and rocketed (C) erosional escarpments in dunes (E, F, G), heavy minerals and backshore beach debris (H).

30 Mota, G.S.; Goso Aguilar, C. & Nicolodi, J.L. amostrados, predominou o uso de enrocamentos tendência futura local, visto a sua rápida aderência rochosos (37,4%), seguido por muros de madeira pela comunidade. A compilação com o número de (27,3%), dunas (14,4%), muros de concreto (5,8%), ocorrências de todas as estruturas classifcadas sacos de areia (5%), palaftas (1,4%) e postes de no balneário é apresentada na Figura 5. madeira (0,7%). Cerca de 8% dos lotes analisados As construções presentes entre a linha de não possuíam nenhum tipo de estrutura. costa e a avenida Cachimbas y Faroles são Porém, notou-se que é comum a opção consideradas pela governança local como por estruturas rígidas mistas, em soluções asentamientos irregulares por estarem sobre que compreendem mais de um material terrenos fscais. Ausentes no planejamento em sua concepção. Neste cenário até três ofcial, seus proprietários não possuem direitos tipos de materiais puderam ser identifcados legais sobre a terra, sendo os contratos de simultaneamente nas estruturas de proteção compra e venda classifcados como informais. costeira, sendo que os enrocamentos estavam Com carga tributária distinta em relação às presentes em, aproximadamente, 48,9% das edifcações presentes no planejamento ofcial, estruturas de contenção, seguido por 35,2% estes assentamentos são onerados por encargos dos muros de madeira, 28,8% das dunas e distintos devido sua situação de irregularidade. 15,1% dos sacos de areia. As palaftas, símbolo Esta é uma das estratégias departamentais histórico do balneário, foram observadas como para se incentivar a desapropriação em Aguas forma primária ou secundária de proteção em Dulces, atuando na forma de negociações apenas 2,9% das edifcações. Outro elemento de entre proprietários e o governo departamental destaque é a utilização combinada de estrutura desde 1976. Tal iniciativa conta com incentivos rígidas com a preservação parcial de dunas, em fscais que facilitariam a compra de terrenos geral vegetadas, o que pôde ser constatado como em áreas devidamente fracionadas por forma de proteção em 27 construções, cerca aqueles proprietários de assentamentos de 21% das 129 edifcações caracterizadas. A irregulares, desde que garantissem a notável expressão destas estruturas híbridas na demolição da construção (Mota 2017). paisagem atual pode manifestar-se como uma Quarenta anos depois, a aderência por parte

FIGURA 5. Representação estatística da ocorrência de materiais em estruturas de contenção à erosão costeira em Aguas Dulces mediante caracterização de campo. Em azul, soluções principais empregadas nas 139 edifcações e lotes da orla (Σazul = 100%); em vermelho, ocorrência das soluções de forma complementar, alcançando até três tipos de materiais por obra de proteção costeira (Σazul+vermelho > 100%). FIGURE 5. Statistical representation of diverse materials in Aguas Dulces coastal defense structures. Blue column main solutions in 139 cases (Σblue = 100%); red column complementary solutions with three different material types (Σblue+red > 100%).

31 DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA:UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI) daqueles que possuem construções a beira-mar ali presentes: áreas naturais preservadas, foi tímida, entretanto a posição departamental atualmente requisitadas pela expansão do não mudou e a estratégia se mantém. Enquanto turismo de natureza, lado a lado com porções tais mudanças não se manifestam na paisagem, intensamente fragmentadas pela especulação a posição da Intendencia Departamental imobiliária e silvicultura (MVOTMA 2013). de Rocha também é mantida em relação É especialmente na década de 1940 quenota- aos danos causados pela erosão costeira: se o início de um processo especulativo em torno edifcações destruídas ou condenadas não da compra e venda de parcelamentos de terra podem ser reconstruídas ou reformadas por na costa uruguaia, um processo que se iniciou- estarem sobre terrenos fscais, o que fomenta se em Montevideo e seguiu para Canelones, prolongadas disputas judiciais e confitos. Maldonado e, posteriormente, Rocha. Um ciclo de fracionamento, urbanização e adensamento Panorama histórico recorrente, que se encerra para iniciar-se novamente em uma nova região. O processo Como delimita Leicht (2012), nunca houve um acarretou em profunda mudança no uso da terra, grande projeto territorial para a costa uruguaia, transformando áreas rurais próximas à linha de sendo o resultado de diferentes políticas setoriais costa em solo urbano com edifcações pequenas que acabaram por imprimir distintos padrões e sem as condições de infraestruturas ideais, ao longo da zona costeira do país. É a partir tais como saneamento, sistema de drenagem da década de 1930 que o governo do Uruguai urbana e distribuição de energia elétrica. encara o turismo como uma importante atividade Mudanças no uso da terra e o desenvolvimento econômica, criando em 1935 a Dirección Nacional sem ordenamento territorial estão intimamente de Turismo que pautou o desenvolvimento dos relacionados com a interpretação abusiva balneários costeiros a partir de Montevideo, da Ley de Centros Poblados (1946), como é a mais povoada cidade do país. Dentre os delimitado nas Diretrizes Departamentais de principais instrumentos que coordenaram a Ordenamento Territorial de Rocha (Rocha 2012). ocupação da terra nesta faixa estão a Ley de Ainda segundo a mesma fonte, nela se Centros Poblados (1946), o Código de Aguas estabelecia que os centros urbanos de veraneio (1978) e a Ley de Ordenamiento Territorial (2008). poderiam ser enquadrados em um caráter de A consolidação dos balneários uruguaios vai exceção, passíveis de fracionamento sem a ao encontro de uma mudança cultural vinda da implementação de serviços de água e energia, Europa no fnal do século XIX, quando a orla obrigatórios nas demais áreas. Utilizando-se deixa de ser uma paisagem pouco atraente para desta base legal, centenas de propriedades o desenvolvimento urbano e começa a ser vista rurais foram fracionadas em um período de dez através do discurso médico que recomendava anos, originando lotes individuais com 540 m2 banhos de mar. Ao longo do século XX esse de área média, sem abastecimento de água ideal é confrmado com a implementação de potável, ruas ou saneamento. O resultado foi um facilidades em infraestrutura e tecnologia. Logo, o contexto urbano caracterizado por manzanas balneário torna-se o espaço para a consolidação com lotes pequenos, amontoados e sem de utopias, admitindo múltiplas leituras para sistema de saneamento em uma heterogênea aqueles que podiam usufruir deste espaço. O realidade ao longo de todo o departamento. fenômeno da segunda residência manifesta-se Para algumas destas áreas a urbanização a partir desta pretensão, destinada à prática do foi consolidada, mas, em outras, o modelo turismo e recreação de forma sazonal, criando se resumiu ao simples parcelamento do solo. paisagens culturais enraizadas na história da Estudo realizado pela Dirección Nacional sociedade de uma determinada região. O modelo de Ordenamiento Territorial (DINOT) em 1999 urbanístico dos balneários, indo ao encontro indicou que 27% dos fracionamentos urbanos com o seu ideal utópico, distingue-se da cidade costeiros são classifcados como consolidados de origem da maior parte da sua população e 58% como semiconsolidados (insufciente futuante, que frequenta o local durante o verão infraestrutura básica - ausência de ruas e feriados. Nele, se destacam diferentes malhas pavimentadas ou niveladas, serviços gerais, urbanas, a convivência com o verde, serviços carência de planejamento em espaços públicos) específcos e a presença da rambla, destinada à em um contexto que pouco considerou a realidade interação social e a prática esportiva (Leicht 2012). ambiental local para sua implementação. Segundo A zona costeira do Departamento de relatório do PROBIDES (2002), assentamentos Rocha está inserida em um cenário de estabelecidos entre a década de 1940 e 1960 diversidade natural que resulta em diferentes não estabeleceram critérios para o novo uso da níveis de desenvolvimento dos balneários terra, estando especialmente preocupados com

32 Mota, G.S.; Goso Aguilar, C. & Nicolodi, J.L. a divisão máxima do território. A mobilidade 31 de Janeiro de 1901 registra a reivindicação de sistemas eólicos, a paisagem litorânea, a de moradores contra o impedimento de acesso preservação da vegetação nativa e de sua fauna à propriedade de Amabilio Olivera, por onde associada foram ignoradas. Como refexo deste era realizado o trajeto até Aguas Dulces, movimento demográfco, novos moradores demonstrando que o balneário já era um espaço permanentes chegam à zona costeira, como cultural de convivência requisitado na época. é evidenciado por dados censitários: em 1963 Como os relatos indicam, as terras foram doadas eram 1.855 moradores em localidades costeiras ao povoado de Castillos por famílias tradicionais de Rocha, já em 1996 o número passa para 7.310 com o intuito de ali consolidar o balneário. Entre (PROBIDES, 2002). Mudanças defnitivas nesse as décadas de 1940 e 1950 é construída a Ruta procedimento seriam observadas apenas em 2003 16, interligando a cidade de Castillos com Aguas com a implementação do Plan de Ordenamiento Dulces, o que acelerou signifcativamente a y Desarollo Sustentable de la Costa de Rocha. evolução do balneário com a implantação de No que diz respeito especifcamente ao linhas de transporte coletivo e o trânsito frequente balneário Aguas Dulces, este surgiu como um de veículos automotores particulares. Neste conjunto de casas em uma região de referência cenário, entre a natureza intocada e construções para embarcações, em especial pela presença de vida útil perene, o balneário crescia sem do Cerro de la Buena Vista, um alto topográfco nenhum plano de ordenamento. No ano de 1967, a de referência para a localização, e a existência Presidência da República decidiu que o Ministerio de água doce aforante na costa de Castillos de Ganadería, Agricultura y Pesca assinaria um que marcou a toponímia local. No início do convênio com a Intendencia de Rocha para a século XX, acabou por transformar-se em um regularização do balneário. Em 1972 é formada balneário com a construção de habitações na a Comisión Administradora de Aguas Dulces forma de palaftas de palha, junco e troncos com o objetivo de ordenar o desenvolvimento rústicos sobre campos de dunas, já indicando a do território, sendo o Engenheiro Agrimensor construção de assentamentos muito próximos César Quintana o responsável técnico pelo à linha de costa desde sua origem, suscetíveis desenvolvimento dos planos locais, tendo que a ação das variações momentâneas do nível do adaptar sua proposta urbanística aos loteamentos mar (marés meteorológicas) em terras públicas. que ali existiam, o que deu à malha urbana do Seria em 1999 reconhecido como de interesse balneário um aspecto único. Em 1976 é aprovada nacional, o que possibilitou ações em relação a Ordenanza de Urbanización del balneario ao ordenamento territorial (Curto et al. 2011). Aguas Dulces, estabelecendo normatizações Néstor Rocha, escritor e morador da região, para a edifcação e infraestrutura. Em 1982, relata trechos da história oral do balneário em 1999, 2006 e 2015 versões revisadas desta seus artigos para a revista Más Rocha (2016), normativa seriam publicadas, nas três últimas possibilitando compreender a evolução da datas sob o título de Ordenanza de Edifcación. paisagem. Segundo o autor, o balneário possui características únicas que estão atreladas En vez del damero español, las manzanas cuadradas, diretamente ao padrão de construções em se adaptó a una realidad y evitó al máximo las terrenos fscais e a intervenção antropogênica demoliciones que atentaban el derecho de propiedad sobre a dinâmica natural. Os primeiros relatos legítimo porque lo que construyeron no fue violentando do plantio de Pinus, Eucalyptus e Acacia datam ninguna ley. Fue tan trabajoso y esmerado el trabajo da década de 1930, refexo de uma preocupação que hizo Quintana que sólo se demolieron cuatro com o transporte eólico de sedimentos no sentido viviendas y a una de ellas por sus condiciones dos campos produtivos. No ano de 1942, o poder humildes el Gobierno Departamental les dio el terreno executivo remete ao Consejo de Estado um y les construyó el mismo ranchito. (Rocha 2016) projeto de decreto-lei que regulamenta o plantio destas espécies exóticas em regiões serranas, Ainda segundo o autor, tais atualizações se de banhado e para a contenção do avanço refetem na consolidação do espaço urbano do das dunas costeiras. Assim, o plantio destas balneário, compondo diferentes etapas de um espécies deixa de ser uma tendência entre projeto urbanístico maior idealizado por César proprietários locais e passa a ser uma estratégia Quintana. Na porção proximal, adjacente à governamental com consequências que perduram. linha de costa, entre as avenidas Cachimbas y Apesar de haver imprecisão em relação a Faroles e Jose Rondoni, se observa uma malha origem defnitiva do balneário, Rocha (2016) se urbanística de geometria irregular inserida ampara de relatos e documentos históricos para em um todo de forma retangular paralelo traçar a história centenária de Aguas Dulces. a linha de costa, produto da adaptação às A Ata da Comissão Auxiliar de São Vicente de construções ali consolidadas previamente ao

33 DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA:UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI) planejamento. Por sua vez, na porção distal é mar e, consequentemente, da área de risco. reproduzido um projeto urbanístico idealizado, A orientação da malha urbana em relação com geometria em diamante (Figura 6), um novo à drenagem fuvial e a ausência de um sistema símbolo de Aguas Dulces após as palaftas. de drenagem pluvial adequado acabam por Os padrões de mudança no uso da terra podem intensifcar processos erosivos no interior do ser constatados através de dados censitários balneário e na zona de deságue, que ocorre no e fotografas aéreas. Segundo censo de 1963 pós-praia, concentrando o fuxo das águas na área realizado pelo Instituto Nacional de Estatística do dos sangradouros, potencializando sua erosão. A Uruguai (INE), haviam 562 habitações construídas empresa estatal responsável pelo fornecimento no balneário, organizadas de forma paralela à de água, Obras Sanitarias del Estado (OSE), linha de costa, ocupando uma área de 24 hectares. abastece boa parte das residências, mas não a Muitas destas edifcações construídas em terrenos sua totalidade, situação que se agrava durante públicos e sem autorização, o que levaria o poder o veraneio quando a população local aumenta executivo a criar a Comisión Administradora de drasticamente. A condução de águas pluviais Aguas Dulces para resolver a questão jurídica é superfcial com desembocadura no sistema do balneário em desenvolvimento. Analisando eólico, explorando a característica de boa as fotografas aéreas de 1966 é possível verifcar permeabilidade dos depósitos sedimentares a orientação da malha urbanística proposta por locais, já que a pavimentação do substrato em estes assentamentos: paralela à linha de costa, vias e quintais é uma exceção (Curto et al. 2011). próxima do limite entre terras emersas e o oceano. Neste cenário, o turismo destaca-se Com a análise dos dados de 1998 fca evidente a como a principal atividade de Aguas Dulces, expansão do balneário em direção ao continente, atraindo investimentos e propiciando a melhoria conforme planejamento proposto, com a presença dos serviços locais. Também se confgurou de 1.183 habitações (um crescimento de 110% com como principal catalisador do processo de destaque para o período entre os anos de 1963 e construção do espaço urbano do balneário, 1975). Em relação às edifcações mais próximas resultando em mudanças na identidade à linha de costa, expostas diretamente à ameaça da comunidade e em confitos ambientais da erosão costeira, constata-se um pequeno que se estendem da sua origem até hoje. avanço dos limites nordeste e sudoeste da orla em comparação com as edifcações consolidadas Panorama político-institucional até 1966 (PROBIDES 2002), indicando sucesso no controle da expansão urbana a beira- A organização territorial da República Oriental

FIGURA 6. Evolução do registro fundiário e modelos urbanísticos (esquerda) e zoneamento do balneário de acordo com a Ordenanza de Edifcación (direita). Fonte: SIG Rocha (sig.rocha.gub.uy). FIGURE 6. Fund record evolution and urbanistic models (left) and beach zonifcation accord Building Ordinance Rules (right).

34 Mota, G.S.; Goso Aguilar, C. & Nicolodi, J.L. del Uruguay é dada com base na subdivisão em sem prejuízos ambientais com base na Ley departamentos, os quais são governados por um de Evaluación del Impacto Ambiental (Lei Intendente, representante do poder executivo, 16.466/1994) conforme analisa Curto et al. (2011). e uma Junta Departamental composta por 31 Conforme estabelecido pela LOTDS em membros, representantes do poder legislativo, seu Art. 8º, diversos tipos de instrumentos de por um período de cinco anos, eleitos em ordenamento territorial poderão ser utilizados regime eleitoral de sufrágio universal direto. em escala regional e local para a gestão do uso A implementação do terceiro nível de governo da terra no Uruguai. Para a área de estudo que e administração, na forma dos municípios, é compreende este trabalho, constata-se que a bastante recente na histórica política uruguaia, maior parte das publicações foi realizada após ainda em fase de implementação. Conforme 2008, ano de publicação da Lei 18.308. Entretanto, delimitam Schelotto & Abreu (2012), o modelo existem também planos anteriores com relevância institucional construído ao longo do início do para o tema. No que compreende o balneário período republicano, entre os confitos dos séculos Aguas Dulces e seus arredores, destacam-se XIX e início do XX, não atendia às exigências os seguintes instrumentos, aqui organizados reivindicadas pelo nível local de organização. da escala regional para a local de análise: Plan Assim, implementou-se um modelo de governo Estratégico de Desarollo de la Región Este (2012), híbrido que estava entre uma proposta provinciana Diretrices Departamentales de Ordenamiento e local. Neste contexto se iniciaria uma divisão Territorial y Desarollo Sostenible (2012), Plan de do território, culminando na criação dos 19 Ordenamiento y Desarollo Sustentable de la Costa departamentos existentes hoje, a partir de uma Atlántica (2003), Plan Local de Ordenamiento divisão que sofreu infuência de iniciativas locais, Territorial Los Cabos (2015), Plan Local de história hispânica, projetos de nacionalização de Ordenamiento Territorial Lagunas Costeras territórios fronteiriços e especulações eleitorais. (2010) e Ordenanza de Edifcación (2015). É na década de 1990 que observam-se Diferentemente das leis, os planos têm um profundas políticos-administrativas em relação enfoque mais técnico, em um formato de relatório ao planejamento e gestão territorial do Uruguai. que democratiza o acesso à informação. Neste tipo Destaca-se neste período, as inovações de publicação é realizada uma contextualização da implementadas a partir de 2005, após a ascensão área em destaque, apresentando os antecedentes do governo progressista, acarretando em ao plano, bem como dados demográfcos, mudanças institucionais aceleradas que refetem econômicos, fsiográfcos, estratégicos e no território e em aspectos sociais, culturais e políticos-administrativos, fundamentais demográfcos ao propor transformações que para a compreensão do contexto regional. aumentam a complexidade de um sistema de O Plan Estratégico de Desarollo de la Región governança multinível (Schelotto & Abreu 2012). Este (PDR) foi publicado em junho de 2012 e Dentre estes novos marcos legais, destaca- é resultado de um esforço conjunto de quatro se a Lei 18.308 de 30 de Junho de 2008, a governos departamentais (Rocha, Maldonado, política nacional de Ordenamiento Territorial y Treinta y Tres e Lavalleja), do governo nacional Desarollo Sostenible (LOTDS), o instrumento e de instituições locais com apoio fnanceiro da que estabelece as diretrizes máximas para o União Européia (UE) e Ofcina de Planeamiento y planejamento territorial do Uruguai. Esta lei foi Presupuesto (OPP), responsáveis pelo programa responsável pela modernização da legislação Uruguay Integra. Trata-se de um plano destinado em relação ao tema, estabelecendo direitos e ao desenvolvimento ordenado da região leste deveres territoriais aos cidadãos, além de criar do Uruguai, com o intuito de corrigir antigas instrumentos de ordenamento territorial, tais desigualdades territoriais que se instalaram ao como: directrices y programas nacionales (escala longo das décadas, pautando um prognóstico nacional), estrategias regionales (escala regional), para a região focado no equilíbrio entre suas directrices y ordenanzas departamentales necessidades socioeconômicas e ambientais, e planes locales (escala departamental), conforme destacado no prólogo do documento: planes interdepartamentales (escala “este documento representa la visión de un futuro interdepartamental) e instrumentos especiales. para nuestra región, una región que debe ser No que tange especifcamente à problemática capaz de brindar mejor oportunidades de vida deste trabalho, a LOTDS (Uruguay 2008) prevê para todos nuestros ciudadanos en un ambiente que, para os fracionamentos da faixa costeira sano y bien administrado” (Uruguay 2012, p.5). já aprovados e não consolidados, unicamente Da mesma forma que ocorre com o PDR, será autorizada a construção apresentando um o documento Directrices Departamentales de Plan Especial que estabeleça o reordenamento, Ordenamiento Territorial y Desarrollo Sostenible reagrupamento e reparcelamento da área (DOTDS), publicado em novembro de 2012 pelo

35 DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA:UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI)

Departamento de Rocha, é também apresentado grandes temas, todas as quais contam com uma na forma de relatório, contando com aspectos abordagem analítica que inclui a contextualização conceituais e caracterização regional nos capítulos da problemática, os resultados esperados e as que antecedem os assuntos estratégicos de ações a realizar. Em consideração à problemática ordenamento territorial. Em termos conceituais, analisada, destaca-se a linha estratégica sete: as diretrizes departamentais delimitam o Gestão Integrada e Sustentável da Zona Costeira. ordenamento territorial como um projeto político O Plan de Ordenamiento y Desarollo de longo prazo com base na sua legislação Sustentable de la Costa Atlántica, o Decreto hierarquicamente superior, a Lei 18.308/2008. nº12 publicado em 1 de setembro de 2003 Porém, antes de analisar a função específca pelo Departamento de Rocha. Sua origem está das DOTDS (Rocha 2012) torna-se necessário vinculada ao Proyecto de Ordenanza Costera del compreender o papel dos instrumentos Departamento de Rocha, de onde se origina a departamentais para a proposição de diretrizes maior parte do texto original publicado em Abril de ordenamento em seu território, observando de 2000 (Documentos de Trabajo nº24) pelo até onde se estendem suas obrigações e Programa de Conservación de la Biodiversidad poderes. Como destacado, a Constituição y Desarollo Sustentable en los Humedales del da República (Uruguay 1997), no Art. 262, Este (PROBIDES). De carácter pragmático, estabelece que o governo departamental, na a nomenclatura “plano” resume-se somente fgura do Intendente e da Junta Departamental, ao título do decreto, apresentando estrutura são responsáveis pelo pleno exercício, com organizacional na forma de normativa. A exceção exceção dos serviços de segurança pública. se resume aos anexos, relacionados à delimitação Até a aprovação da Lei 18.308 em 2008, conceitual e caracterização física regional. a jurisprudência nacional entendia que cabe O argumento do interesse comunitário ao departamento todas as competências acima do interesse particular perpetua ao longo relacionadas ao urbanismo, o que da publicação: “compatibilizar los intereses atualmente é estabelecido pelo seu Art. 14: particulares con los intereses comunes o generales; subsidiariamente, se subordinan los [...] los Gobiernos Departamentales tendrán la primeros respecto de los últimos” (Rocha 2003, competencia para categorizar el suelo, así como para Art. 2º). Surge ainda, o conceito de solidariedade establecer y aplicar regulaciones territoriales sobre intergeracional como princípio básico do decreto: usos, fraccionamientos, urbanización, edifcación, “es responsabilidad ineludible de todos, proteger demolición, conservación, protección del suelo y la integridad de la costa, conservarla como policía territorial, en todo el territorio departamental propiedad de todos y legarla en estas condiciones mediante la elaboración, aprobación e implementación a las generaciones futuras, atendiendo a los de los instrumentos establecidos por esta ley, en el intereses departamentales, nacionales y globales” marco de la legislación aplicable”. (Uruguay 2008, (Rocha 2003, Art. 2º). Considerações que têm Art.14) impacto direto sobre a gestão dos recursos naturais e a qualidade ambiental do território. A mesma lei, conforme apresentado No Capítulo 2 do decreto (Rocha 2003) é anteriormente, também é a responsável estabelecida a delimitação espacial da costa pela identifcação dos instrumentos legais atlântica do Departamento de Rocha, bem utilizados pelo departamento para gestão como alguns conceitos legais relacionados à territorial, tendo alguns a sua elaboração e proteção costeira. A Zona de Protección Costera aprovação competência exclusiva dos governos (Art. 8º) compreende à um conceito amplo, departamentais: directrices departamentales, englobando espacialmente a Ribera Marítima, ordenanzas departamentales e planes locales. a Faja de Exclusión, Faja de Defesa de Costas Assim, as DOTDS (Uruguay 2012) e termina junto à Zona de Interfase. A Ribera representam um importante marco conceitual, Marítima (Art. 9º) é o espaço compreendido defnindo classifcações de uso da terra entre o fm da ação das ondas em maré baixa e (categorias de suelo – Art. 31 da Lei 18.308), o limite médio das marés altas registradas nos dos regimes de uso (regímenes de gestión del últimos vinte anos, sendo um domínio público, suelo – Decreto Departamental nº17/2011) e inalienável, imprescritível e inembargável. A Faja da potencialidade de transformação (atributo de Exclusión (Art. 10) é defnida pelo Art. 13 da potencialmente transformable – Art. 34 da Lei Ley de Centro Poblados, tendo início ao fm da 18.308). Estruturalmente, as diretrizes para o zona anterior e possui largura de 150 metros. ordenamento territorial do Departamento de Para essa faixa não se admite, a partir da data do Rocha contam com a delimitação de oito linhas decreto, a construção de vias públicas paralelas estratégicas de ação, organizadas em quatro à linha de costa, o fracionamento do solo para

36 Mota, G.S.; Goso Aguilar, C. & Nicolodi, J.L. fns urbanos e novas construções. A Faja de Los Cabos (Rocha 2015a) abrange a área Defesa de Costas compreende a faixa de 250 costeira entre La Paloma (sudeste) e Aguas metros a partir da ribera marítima, sendo que toda Dulces (nordeste). O documento é organizado atividade que pretenda ser realizada nesta faixa integralmente na forma de normativa, precisa ser admitida perante as normas vigentes hierarquizado em 9 capítulos e 37 artigos que e o tipo de uso da terra delimitado. Por fm, a partem de diretrizes gerais a delimitações Zona de Interfase é contígua à anterior, onde as específcas para cada tipo de balneário presente modalidades de uso da terra têm infuência direta no perímetro. Como já observado em planos sobre a costa e, assim, precisam obedecer à um anteriormente comentados, o Plano Los Cabos estatuto de ordenamento territorial específco. também faz um zoneamento estratégico e a Sanções, multas e a predisposição para a classifcação do uso da terra em sua área de criação de taxas para a proteção da zona costeira abordagem. Segundo essa classifcação, o também são contempladas no decreto, com balneário Aguas Dulces é enquadrado como uma destaque para o Art. 47 que determina a criação Área Costeira de Uso Residencial em um Núcleo de uma taxa para a conservação da faja costera Urbano Consolidado (Art. 6º), conjuntamente com (Tasa de Defensa de la Faja Costera) e o Art. 48 , La Paloma, La Pedrera, Punta que defne o procedimento de sanções contra Rubia e outros balneários consolidados ou não infratores do modelo de ordenamento territorial. da região. No que diz respeito a categorização No que diz respeito à área de estudo, o balneário do tipo de uso da terra, destaca-se o fato que, Aguas Dulces encontra-se no Sector III “Cabo enquanto o Plano Departamental se restringia Polonio – Punta Palmar” (Art. 13 – Sectorización), à delimitar as categorias, o Plano Local delimita classifcado como suelo urbano (Art. 14 – espacialmente as áreas destinadas a cada Clasifcación de suelos) e áreas de desenvolvimento classe de uso da terra e, inclusive, estabelece urbano-turístico com base na proposta de parâmetros específcos para cada categoria. zoneamento estratégica, conjuntamente à No Capítulo 4 do Plan Los Cabos (2015), de Uso Barra de Valizas e (Art. 17): e Ocupação do Solo, são estabelecidas normas específcas para o uso da terra em balneários não Son ocupaciones irregulares de la ribera y de la faja consolidado ou em processo de fracionamento, de defensa que por su grado de consolidación deben determinando qualitativa e quantitativamente as ser objeto de planes especiales. Actualmente se exigências técnicas que devem ser respeitadas encuentran en proceso de regularización por parte na construção de novas edifcações. A introdução del Gobierno Departamental. Los planes especiales deste capítulo, na forma do Art. 16, salienta que deberán tener como objetivo restituir la ribera a su as normas de uso e ocupação do solo para estado natural así como conservar la faja de defensa os balneários consolidados é estabelecida de costas y la zona de interfase de acuerdo a las pela Ordenanza General de Edifcación directivas de la presente normativa. Como principio (2015), a qual será analisada a seguir. básico de la ordenación futura de estas situaciones, A Ordenanza de Edifcación é um instrumento se debe considerar que la ilegalidad, o las situaciones departamental pragmático de ordenamento de hecho, nunca podrán ser fuente de derechos territorial com escala local de atuação e é adquiridos por los infractores. Las construcciones responsável por defnir as especifcações ilegales, ya se trate de asentamientos o edifcaciones técnicas, quantitativas e qualitativas, a dispersas, que el plan especial identifque como respeito dos projetos que podem ou não ser inapropiadas en tanto alteren la morfología y executados. Publicada originalmente sob o título estructura de la costa, o perturben la accesibilidad del de Ordenanza de Urbanización del balneario público hacia la zona de la playa o degraden el medio Aguas Dulces em 1976 e atualizada em 1982, natural con residuos sólidos y/o líquidos, deberán ser 1999, 2006 e 2015 pelo Departamento de eliminados, restituyendo posteriormente el territorio a Rocha como Ordenanza General de Edifcación, su estado original. (Rocha 2003, p.10) conta com a delimitação de normas específcas para diferentes zonas do departamento, Do ponto de vista dos planos locais ou além de defnir as taxas e procedimentos parciais, conforme estabelecido pelo Decreto técnicos que devem ser apresentados para a 12/2003 do Departamento de Rocha, até obtenção da outorga para construir, demolir então, existem dois instrumentos elaborados: ou reformar qualquer edifcação, ações que Plan Local de Ordenamiento Territorial requerem a ciência da Intendencia Municipal. Lagunas Costeras (2010) e Plan Local de Dentre as especifcações próprias para cada Ordenamiento Territorial Los Cabos (2015). setor do departamento, há a individualização de Somente o segundo contempla a área de estudo. normas específcas para os balneários, visto sua O Plan Local de Ordenamiento Territorial distinta realidade ambiental. Neste item, entitulado

37 DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA:UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI)

Ordenanza de Edifcación para Balneario Aguas A progressão da vulnerabilidade é um processo Dulces, constam especifcações técnicas complexo, cujas raízes mergulham na colonização quanto aos materiais que podem ser utilizados latina e, sobretudo, no período pós-colonial, que nas edifcações (Art. 1º), a hierarquia de ruas e coincidiu com o abandono ou a ausência de controle avenidas que o balneário deve respeitar e quais as do meio e má qualidade do controle da expansão suas dimensões (Art. 2º) e quais as características urbana em um contexto natural frágil. (VEYRET 2015, permitidas para a construção nas diferentes p. 90) zonas que compõem o balneário (Arts. 3º a 8º). Conforme consta no instrumento, o balneário O padrão de apropriação das orlas naturais, Aguas Dulces é compartimentado em quatro seja em um modelo histórico ou atual, segue uma zonas, possuindo normas técnicas específcas evolução recorrente em termos de mudanças para as dimensões da construção e o percentual de na paisagem. Macedo (2006) sintetiza, em um endereços comerciais e residenciais que podem exemplo conceitual, as transformações no uso da coexistir naquela zona, em prol de uma evidente terra que envolvem desde a descoberta do sistema padronização das construções. Por não apresentar natural inexplorado até a consolidação de orlas mapas anexados ao seu documento, é necessário urbanizadas a beira-mar. Na fgura dos primeiros buscar informações geoespaciais referentes a visitantes é que se consolida o interesse primário delimitação do zoneamento proposto através do sobre as áreas, ao encontrarem uma possibilidade contato direto com a Intendencia ou do sistema de escape temporário dos centros urbanos. A de informações geográfcas departamentais. difculdade de acesso torna o ambiente único, Dois sistemas de informações geográfcas dando um tom de exclusividade para a já valorada merecem atenção em relação ao objeto de paisagem. Aos poucos a área vai perdendo análise. O primeiro é de escala nacional, o seu tom exclusivo, sendo conhecida por um Sistema de Información Territorial (SIT), e número maior de potenciais visitantes e desperta compreende um extenso catálogo de dados interesse potencial econômico voltado ao turismo. georreferenciados, projeções cartográfcas e A infraestrutura é aprimorada para receber esse leis que podem ser acessados em ambiente GIS novo perfl de turistas, sendo implementadas online através da página ofcial do Ministerio facilidades logísticas e de acomodação. de Vivienda Ordenamiento Territorial e Medio No seguinte momento, os habitantes são Ambiente (MVOTMA) na internet. O segundo é de progressivamente rodeados pela proliferação de escala departamental, o sistema de informações segundas residências, resultado da passividade geográfcas do governo de Rocha, onde podem da governança local no ordenamento do territorial ser acessados mapas temáticos de diversas e ocasionando a elevação dos valores no preço escalas, dados georreferenciados e a legislação da terra. A evolução da paisagem se consolida vigente no território através da página ofcial do com a transformação do cenário natural em uma departamento. Ferramentas relevantes em prol da malha urbana clássica, cuja retícula-padrão de democratização da informação, possibilitando que loteamentos é incompatível com as condições aspectos legais possam ser visualizados sobre fsiográfcas do meio, resultando em decréscimo uma base cartográfca em constante atualização. da qualidade ambiental, confitos sociais e inadequação sanitária. Mesmo perante essas Elementos condicionadores da gênese diferenças, o estímulo econômico em torno das áreas de riscos do turismo nessas áreas segue incentivado, adaptando-se à realidade do novo perfl Como pode ser constatado em boa parte do de usuários através da prestação serviços planeta, grandes centros populacionais estão específcos ou da especulação imobiliária. localizados na zona costeira ou próximo dela, A realidade de Aguas Dulces não se distancia passíveis de sua infuência. Não muito diferente muitos dos padrões perpetuados na costa. ocorre no Uruguai, com a região metropolitana Mesmo levando em consideração sua realidade de Montevideo concentrando cerca de metade específca de pequeno e centenário balneário da população do país às margens do Rio de la em uma região de baixa densidade demográfca, Prata (INE 2011). Mesmo diante da signifcativa confitos em torno da propriedade da terra não relevância das cidades costeiras na história desses podem ser ignorados. Isto pode ser facilmente países, não seria antes do fnal do século XIX que a diagnosticado através do perfl demográfco orla costeira tornar-se-ia valorada pela sociedade, atual, cuja razão entre residências permanentes despertando o interesse para um modelo de e sazonalmente ocupadas evidencia um ocupação mais próximo da linha de costa e, cenário dominado pelas segundas residências. consequentemente, dos riscos associados a isto. Atualmente, apenas 12% das residências são ocupadas durante todo o ano (INE 2011). Por

38 Mota, G.S.; Goso Aguilar, C. & Nicolodi, J.L. mais que uma aparente democratização do expansão das áreas de risco de erosão costeira, padrão socioeconômico de utilização desses conforme constatado através da análise das serviços tenha se desenvolvido entre a origem do mudanças no uso da terra em fotografas aéreas balneário e os dias atuais, trata-se de um modelo entre a década de 1960 e 1990 (PROBIDES desigual de construção do espaço urbano que 2002). Logo, ao analisar historicamente a acaba, também, por manifestar desigualdades infuência dos padrões de intervenção atuantes na própria proteção costeira, essencialmente sobre o ordenamento territorial realizadas na individualizada neste caso específco. governança das comunidades costeiras, distintas Neste contexto, a paisagem observada é forçantes políticas podem ser identifcadas na resultado da história natural sobreposta pela gênese das áreas de risco: sobreposição de história de consolidação do espaço humano. Por competências entre entes governamentais, mais que a erosão costeira seja um processo da permissividade histórica na exploração das dinâmica exógena da Terra, esta confgura uma leis de ordenamento, desenho urbano inicial situação de risco quando a apropriação humana da incompatível com a dinâmica natural do meio, paisagem passa a ser uma realidade, em uma linha intervenção tardia na regulação do território, temporal que abandona as escala dos milhões de difculdade de aderência das políticas públicas anos dos processos geológicos e avança para o para a realidade local, processo de construção padrão secular da geomorfologia antropogênica. de propriedades privadas sobre terrenos Antes pouco requisitado para fns recreativos, públicos, resistência jurídica de proprietários e é a partir do fnal do século XIX que uma mudança passividade inicial na fscalização do seu território. cultural transforma os ambientes costeiros em Desta forma, evidencia-se como situações áreas de interesse social. Logo, ainda no fnal do de risco de desastres existentes hoje em orlas século XIX e começo do século XX, os primeiros urbanizadas são o resultado de escolhas parcelamentos do solo já são evidenciados no políticas e transformações culturais através Brasil e Uruguai, acompanhados pelo surgimentos de décadas de evolução local e regional da dos balneários, destinados ao turismo sazonal paisagem. Tal constatação vai ao encontro das classes mais abastadas. Em conjunto com do conceito de risco proposto por Veyret o processo de valoração da paisagem inicia-se (2015), na qual este traduz geografcamente o processo antropogenização com o plantio de as escolhas políticas e de organização dos espécies exóticas e a transformação dos primeiros territórios tomadas ao longo da história. acampamentos em construções permanentes, a partir da implementação de infraestrutura CONCLUSÃO logística e a popularização dos veículos automotores. Penecontemporaneamente, A permissividade inicial das governanças é, ainda, na implementação dos primeiros locais diante da ocupação em áreas suscetíveis assentamentos permanentes sobre o pós- aos danos causados pela erosão costeira, ainda praia e dunas frontais que o risco de erosão nas origens do balneário e como resultado da costeira manifesta-se pela primeira vez, exigindo sobreposição de competências institucionais e da adaptação dos métodos construtivos na orla apropriação equivocada de normativas, permitiram com a instalação das primeiras soluções de a manifestação de danos no passado e um cenário proteção costeira individual: as palaftas. de vulnerabilidade atual em Aguas Dulces. Este Neste cenário, a convivência com o risco processo histórico de consolidação do risco é uma antiga realidade para os moradores e acabou, também, por fomentar a degradação usuários de Aguas Dulces, como um processo ambiental do sistema costeiro com a justifcativa crônico de erosão que também materializa da proteção de propriedades privadas (segundas episódios de desastre em eventos meteorológicos residências) que encontram-se inseridas em extremos. Propostas construtivas de proteção um contexto de terrenos públicos, reconhecidas costeira oriundas da governança estatal não pelo Estado como asentamientos irregulares e possuem destaque na história do balneário, palco de prolongadas disputas judiciais entre havendo respostas mais efetivas sobre o proprietários e governo departamental. Neste ordenamento territorial diagnosticadas a partir contexto, consolida-se um cenário de históricas da 1967, quando já haviam construções fxas ações individuais de enfrentamento à ameaça assentadas sobre a orla. Desde então, planos da erosão costeira que colaboram discretamente e modelos urbanísticos foram aplicados à na redução defnitiva do risco de desastres e realidade do núcleo costeiro em prol do controle que podem, ainda, catalisar processos erosivos das construções em terrenos públicos e, apesar sobre áreas de uso coletivo. Assim, o risco de de um aparente tímido resultado alcançado, tais erosão costeira diagnosticado demonstra-se ações tiveram papel fundamental no controle da como o resultado de um imbricado sistema de

39 DAS PALAFITAS AO RISCO DE EROSÃO COSTEIRA:UM PANORAMA NATURAL, HISTÓRICO E POLÍTICO DOS CONFLITOS AMBIENTAIS EM AGUAS DULCES (URUGUAI) variáveis sociais e fsiográfcas, produto de uma Journal of Sedimentary Petrology, v. 27, p. 3-26. indissociável interface entre aspectos históricos, GOSO, C. (2006). Aspectos sedimentológicos políticos e naturais em constante dinamismo. y estratigráfcos de los depósitos Diante desta realidade e dos cenários futuros cuaternarios de la costa platense del possíveis para as áreas de risco de erosão costeira departamentos de Canelones (Uruguay). sul-americanas, fca evidente a necessidade em Latin American Journal of Sedimentology se fazer uma refexão crítica em relação às ações and Basin Analysis, 13 (1), p. 77-89. de governança do passado, sejam elas marcadas GOSO, C.; FAURE, J.; PRATTO, D.; BARRETO. pela intervenção ou omissão no planejamento do L.; PICCHI, D.; SCAGLIA, F.; PARIS, A.; território. Somente reconhecendo cada escolha SAMANIEGO, L.; UBILLA, D.; GARCÍA, G. outrora implementada e a sua consequência (2014): Vulnerabilidades geoambientales de manifestada sobre esse sistema complexo é la costa del departamento de Canelones. que prognósticos menos pessimistas poderão En: Goso, C. (compilador y revisor): Nuevas ser esperados. Em Aguas Dulces, ações de miradas a la problemática de los ambientes intervenção sobre o ordenamento territorial nas costeros. Sur de Brasil, Uruguay, Argentina. décadas de 1960 e 1970, mesmo que tardias p. 173-196. DIRAC, Montevideo, Uruguay. e com desfecho distante do ideal almejado, GOSO, C.; PRATTO, D.; FAURE, J., SCAGLIA, F.; obtiveram resultados signifcativos no controle da ARBALLO, V.; PARIS, A. (2007). Estudio de expansão das áreas de risco ao longo das últimas dinámica costera en Canelones (Uruguay): décadas, demonstrando a importância de ações primeros resultados. V Congreso Uruguayo de cunho urbanístico e de planejamento na gestão de Geología, Resumen. CD Actas. Montevideo. de áreas de risco de desastres. Um balneário IMFIA (2008). Estudio de la zona costera de La centenário em sua história, cuja valorização de Floresta. Informe Final. Disponible en [Fecha de acceso: 22.03.2012]. Agradecimientos MARCOMINI, S. & LÓPEZ, R. (2006). Geomorfología costera y explotación de arena de playa Agradecemos à Universidade Federal do Rio en la Provincia de Buenos Aires y sus Grande (FURG) e a Universidad de la República consecuencias ambientales. Revista Brasileira (UdelaR) pelo apoio, à CAPES pelo fnanciamento de Geomorfología, Año 7 (2), p. 61-71. da pesquisa e aos revisores pelas contribuições. MEDINA, R.; LOSADA, I.; LOSADA, M.; VIDAL, C (1995): Variabilidad de los perfles de playa: REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS Forma y distribución. En: Ingeniería del Agua. Vol. 2 Número Extraordinario. p. 133-142. ÁLVEZ, C. & GOSO, C. (2014): Sedimentación MTOP (1979). Conservación y mejora de playas. PNUD/ dunar y vulnerabilidad a la erosión en la URU 73-007, 593 pp. UNESCO. Montevideo costa atlántica uruguaya. En: Goso, C. SHORT A.D. & WRIGHT L.D. (1984). Morphodynamics (compilador y revisor): Nuevas miradas a la of high energy beaches –an Australian problemática de los ambientes costeros. perspective. In Coastal geomorphology Sur de Brasil, Uruguay, Argentina. p. in Australia (ed. B: Thom), p.43-68. 173-196. DIRAC, Montevideo, Uruguay. DRAGANI W.C. & ROMERO, R.I. (2004). Impacts of a possible local wind change on the wave climate in the upper Río de la Plata. International Journal of Climatology, 24 (9), p.1149-1157. FRANCO, P., BURONE, L, DE MELLO, C., MAHIQUES, M., MUÑOZ, A., ORTEGA, L., MARÍN, Y., ALFAGEME, V., FONTAÁN, A., JIMÉNEZ, P., IGUAL, T., CARRANZA, A., MASELLO, A., BÉCARES, M., GOMEZ, R., RUBIO, L. (2011). Caracterización ambiental del margen continental uruguayo (200 – 1000 m de profundidad) un enfoque multiproxy: resultados preliminares. En Actas do XIII Congresso da Associacao Brasileira de Estudos do Quaternário. Brasil. FOLK, R. & WARD, C. (1957). Brazos River bar, a study in the signifcance of grain size parameters:

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