DOI: 10.12957/Transversos.2021.54887
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DOI: 10.12957/transversos.2021.54887 100 ANOS DE ELISETE CARDOSO: DE CROONER À DIVINA 100 YEARS OF ELISETE CARDOSO: FROM CROONER TO DIVINE Marilda de Santana Silva Universidade Federal da Bahia (UFBA) [email protected] Resumo: Abstratc: O objetivo do presente artigo é comemorar o This article aims to celebrate the Elisete centenário de nascimento de Elisete Cardoso Cardoso's centenary of birth, the singer if she que se estivesse viva completaria 100 anos em were alive would complete 100 years old in 16 de julho de 2020. A Divina, como foi July 20th, 2020. The Divine, how she was denominada pelo jornalista Haroldo Barbosa, called by the journalist Haroldo Barbosa, fez escola e história na música popular made school and story in the Música Popular brasileira. Assim, o que se pretende é destacar Brasileira. Thus, what is intended is highlight cinco gravações importantes em sua carreira, five songs very important in her career, costurada de maneira aparentemente apparently sewed in an informal way with the informal com a narrativa da minha história, narrative of my story, that I am also singer, her que também sou cantora, sua importância na importance in my trajectory that culminates in minha trajetória que culmina na audiência do the audience of the show in honor of Elisete , show em sua homenagem, em março de 2020, in march, 2020, at SESC Pinheiros. In this no SESC Pinheiros. Neste sentido, além de sense, beyond the binomial gender and race, I sua história de vida, do binômio gênero e raça, get inspired in the Conceição Evaristo me inspiro na escrevivência de Conceição escrevivência, that the experience in brazilian Evaristo cuja experiência na sociedade society is crossed by the condition of been a brasileira é atravessada pela condição de ser black woman. mulher e negra. Keywords: Popular Brazilian Music; Elisete Palavras-chave: Música Popular Brasileira; Cardoso; Memory; Centenary. Elisete Cardoso; Memória; Centenário. 1. Primeiras Lembranças... Lembro que, criança, mais ou menos com sete anos, tinha duas colegas gêmeas idênticas. Marise e Miriam. Negras, como eu. Eram minhas melhores amigas, e, eventualmente, as visitava em casa de sua mãe e avó. Sempre que chegava lá, sua avó, cujo nome não me lembro, dizia, "esta Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 21, abr. 2021. Dossiê: O protagonismo da mulher negra na escrita da história das Áfricas e das Améfricas Ladinas menina tem a cara de Elisete Cardoso".1 Aquele nome ainda me soava desconhecido, mas, ao mesmo tempo, me lisonjeava. Deve ser alguém importante. Pensava comigo. Tempos depois, me deparo com a imagem de Elisete nos programas de televisão de Aérton Perlingeiro Show e no “Almoço com as estrelas” exibido pelo SBT em São Paulo com Ayrton Rodrigues e Lolita Rodrigues. E posteriormente, sua imagem aparece no programa Bossaudade que, ao lado de Cyro Monteiro, apresentaram-no na TV Record nos anos de 1965-1966, programa este criado para prestigiar o Samba Nacional. Na minha memória, Elisete era uma mulher negra, elegante, continuamente muito bem vestida, com brincos brilhantes e combinando com o cabelo preso, sempre em coque. Com o tempo, sua voz foi se aproximando dos meus ouvidos pelo gênero Samba-Canção, que para mim, se denominou de Seresta. Naqueles idos, na década de 1970, já no início da minha adolescência, achava sua forma de interpretar com muito vibrato e puxando pelos “erres” um tanto exagerada. Aos poucos, fui me familiarizando com seu timbre grave e quente, uma pronúncia e inflexão acentuada, um repertório muito bem selecionado e sempre acompanhada por grandes músicos. Dentre eles, seu fiel amigo e que a lançou, Jacob do Bandolim e o Conjunto Época de Ouro e o Zimbo Trio. Assim, fui me familiarizando, respeitando e valorizando seu “jeito de cantar”. No presente texto, a voz de Elisete me conduz pelos becos da minha memória, sussurrando no meu ouvido o seu canto de mazelas e querelas de uma voz negra que me conduz pelos subterrâneos “que como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à ‘Memória oficial’, no caso da memória nacional” (POLLAK, 1989: p. 4) resistindo ao tempo do esquecimento. Mas, como a memória é socialmente construída Bergson (1999) complementa que a mesma está carregada de lembranças que envolvem o próprio tempo que perpassou pela trajetória das pessoas. A lembrança é o caminho na qual interliga toda a memória presente no cérebro humano. E essas lembranças voltam em forma de imagens, sons, cheiros, sentimentos... Segundo Bergson (1999) possuímos dois tipos de lembranças: a espontânea e a aprendida. A primeira é aquela que fica armazenada em nossa memória e podemos acessá-las quando for necessário, ficam guardadas nos confins do intelecto humano. E a segunda é nomeada como lembrança- hábito. Neste texto, a lembrança espontânea se faz presente acionada pela história da vida e do canto de Elisete Cardoso, que ao ecoar sua voz negra em espaços midiáticos 1 No presente artigo optei em grafar o nome de Elisete Cardoso conforme sua certidão de nascimento. A artista muda a grafia para Elizeth já no auge da carreira. Assim, quando me referir, tanto em citação quanto em outra fonte que não seja minha, obedecerei a grafia do/a autor/a citado/a. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 21, abr. 2021. 75 Dossiê: O protagonismo da mulher negra na escrita da história das Áfricas e das Améfricas Ladinas traz consigo uma coletividade, uma polifonia, representando outras histórias originárias da periferia e que ganha visibilidade pela persistência, insistência e insurgência no mercado da Música Popular Brasileira. Neste sentido, sua voz e sua história, ancorada num passado não tão longínquo, remonta uma maneira de reverberar também no meu passado, na minha história e experiência de vida particular construída no meu cotidiano e na experiência de artistas negras na sociedade brasileira um ato de afirmação de nossas raízes ancestrais. Inspirada em Conceição Evaristo digo que “a gênese da minha escrita/escuta está no acúmulo de tudo que ouvi na minha infância” (EVARISTO, 2007: p. 20), seja pelas ondas do rádio, na vitrola da minha casa, nas serenatas organizadas por meu pai; na experiência vivida cada vez que a voz de Elisete ecoa/va e reverbera/va aciona/va em mim “a voz, a fala de quem conta/canta para se misturar à minha” (EVARISTO, 2019: p.11). No presente texto exercito a minha escuta/escrita no sentido de dialogar com autores e autoras da historiografia da música popular brasileira de maneira geral; e especificamente no binômio memória-escrevivência cujo horizonte metodológico reverbera a partir da vivência e experiência de vida. O que se pretende é destacar a importância de Elisete Cardoso na Música Popular Brasileira a partir da escrevivência como uma estratégia de memória e questionamento da história. A escrevivência como uma ferramenta, conceituada por uma mulher negra, como um guia da escrita. Não simplesmente como uma experiência individual. Pois a escrevivência é a escrita de nós, do coletivo. A escrevivência ainda como uma memória escrita da vivência, nos conectando com histórias vividas de mulheres negras ampliando a voz de vários sujeitos que representa uma coletividade. Assim, escrever uma memória vivida é uma questão de escrevivência. 2. Pequena História de uma Artista Negra Mas, quem é Elisete Cardoso no Panteão da Música Popular Brasileira? Como sua presença, importância e reconhecimento se tornam referência num País cuja memória é constantemente apagada, sufocada e substituída por novas vozes que não creditam a importância de suas predecessoras? Completando 100 anos do seu nascimento em 2020, a Divina Elizeth tem muito a nos contar com sua voz e presença num ambiente carregado de racismo, machismo, assédio e infantilização das mulheres negras e não brancas; como aconteceu com a artista que sofria ataques constantes, driblado por ela, com muita perspicácia, como contado em sua Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 21, abr. 2021. 76 Dossiê: O protagonismo da mulher negra na escrita da história das Áfricas e das Améfricas Ladinas biografia por Sergio Cabral sobre o assédio do incorrigível Vinicius de Moraes, que não perdia a oportunidade de convidá-la para “dar uma voltinha” (CABRAL, 2010: p. 184). Pesquisando as intérpretes negras na historiografia da Música Brasileira, pude observar que a grande maioria passou a trabalhar muito cedo, tendo que abandonar os estudos para ajudar nas despesas da casa e no sustento da família. Elisete é apenas uma delas. Se na década de 1950 o papel da mulher na sociedade ainda era para ser “recatada e do lar”, donas de casa obedientes; imagine nos anos 1936, período que Elisete Cardoso se insere no mundo artístico, com 16 anos de idade. O início da carreira de cantora de rádio seguia dois caminhos, como cita Hupfer, ou a moça era de uma família que seguia traços artísticos, como o pai que canta ou toca algum instrumento musical, e assim desde criança tem uma relação maior com a música, ou a moça era de família mais humilde, e que em sua maioria, não admitiam ter entre seus integrantes uma artista de rádio, vista, a partir de meados da década de 1930, como uma pessoa de moral duvidosa. (ALMEIDA; SILVA, 2017: p. 11). Elisete se encaixa na segunda opção. Seu pai, Jaime Cardoso, um tocador amador, severo na educação da sua filha com D. Moreninha, viúva do primeiro marido, vivia na sua “cola” que escapava sempre que podia para dançar, cantar e namorar, suas três maiores diversões. Seu Jaime, um mulato de 1,90m de altura inspirava medo em quem ousasse se meter com sua menina. Qualquer atividade que Elisete tivesse que se apresentar em público, era um suplício para conseguir a liberação do seu severo pai. No entanto, paradoxalmente, o pai de Elisete “permite” que ela, com apenas 10 anos, abandone os estudos para ajudar nas despesas da casa.