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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL – IACS Departamento de Cinema e Vídeo Licenciatura em Cinema e Audiovisual

IZABEL DE MELLO SOUZA BARBOSA FELÍCIO

CÚMPLICES DE UM RESGATE E A ADULTIZAÇÃO DE MENINAS Uma análise da influência da mirim na formação infantil e do papel do educador audiovisual como mediador dessa relação

Niterói – Rio de Janeiro 2017

IZABEL DE MELLO SOUZA BARBOSA FELÍCIO

CÚMPLICES DE UM RESGATE E A ADULTIZAÇÃO DE MENINAS Uma análise da influência da telenovela mirim na formação infantil e do papel do educador audiovisual como mediador dessa relação

Monografia apresentada ao Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense como requisito para obtenção do título de licenciatura em Cinema e Audiovisual.

Orientadora: Profª Drª Mariana Baltar Freire

Niterói – Rio de Janeiro 2017

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiro à Deus e aos meus mentores espirituais por terem me dado forças e me guiarem até aqui.

Aos meus pais, Liliane e Domício, por me apoiarem em minhas decisões e me ensinarem a seguir os meus sonhos e não ter medo de tentar.

Aos meus irmãos Roberta e João Pedro por toda a parceria de vida.

Aos meus sobrinhos Pedro Henrique e João Lucas, por terem me dado alegria de viver.

A todos aqueles da minha família que sempre me apoiaram e acreditaram em mim e um agradecimento em especial à minha avó Maria Luiza, que é o meu exemplo de vida, que batalhou para criar a sua família, sem nunca desistir. Vó, você é a pessoa mais incrível que eu conheço, tenho muito orgulho e por poder te dar a alegria de ver mais uma neta se formando.

Agradeço também aos meus amigos por poder dividir a minha com vocês, um agradecimento mais especial a minha melhor amiga Tamires, que me deu um apoio enorme durante a minha graduação e a minha amiga Letícia por me apoiar e me ajudar durante o meu processo de escrita.

Ao meu namorado, Gustavo, que me apoiou durante esse ano e acreditou mais em mim do que eu, sou muita grata por ter você na minha vida.

À minha médica Helena, por todo apoio, por cada palavra escutada e dita, você me ajudou a acreditar que eu conseguiria.

E não poderia esquecer da família que a UFF me deu, a Equipe Faraday Racing, agradeço a cada membro que me deu forças para continuar na graduação, que me ajudaram a sorrir e a sonhar, sem vocês eu não estaria aqui.

Aos meus professores desde o primeiro dia de aula, aos 3 anos, à graduação, sem vocês, eu não nada seria.

E à minha querida professora orientadora, Mariana Baltar, que acreditou em mim e me fez acreditar que eu seria capaz de concluir essa jornada.

Todos vocês foram muito importantes na minha caminhada, entrar na universidade foi um sonho realizado e concluí-la está sendo emocionante. A Izabel antes da UFF é totalmente diferente da Izabel que está se formando, sou muito grata por toda essa experiência, por ter tido o privilégio de estudar em uma universidade incrível e poder estudar sobre o que eu amo, esse trabalho de conclusão de curso, reflete tudo o que eu sou.

Amo todos vocês!

RESUMO

Este trabalho busca fazer um panorama sobre a importância das no cotidiano dos brasileiros e a relação delas com a formação de personalidades e o incentivo ao consumo. Partindo de um macro analisando a sociedade e encaminhando-se para o micro do mundo infantil. Para isso há a análise da novela Cúmplices de um Resgate e a partir disso há a busca por entender qual é o imaginário formado por esse programa e como ele influencia a formação do eu nos telespectadores mirins, principalmente as meninas. Diante disso, busca-se encontrar o espaço do educador audiovisual entre a relação crianças e telenovela.

Palavras-chaves: Adultização. Telenovela infantil. Educador audiovisual.

ABSTRACT

This work tries to give an overview of the importance of soap operas in the daily life of Brazilians, their relation with the formation of personalities and the incentive to consumerism. Starting from a macro view and analyzing the society and moving towards the micro of the children's world. For this there is the analysis of the novel Cúmplices de um Resgate (Complices of a Rescue) and from this point is the search to understand which is the imaginary formed by this program and how it influences the formation of the self in the young viewers, especially the girls. In the face of this, it is sought to find the space of the audiovisual educator between the relation childrens and soap operas.

Keywords: Adultization. Soap opera. Audiovisual educator.

Se você pode sonhar, pode fazer! Walt Disney

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Regina e Orlando como reis ...... 42 Figura 2: Passagem de tempo na telenovela ...... 44 Figura 3: Regina e Rebeca...... 45 Figura 4: Manuela e Isabela ...... 46 Figura 5: Milie Bobby Brown em 2016 e 2017 ...... 49 Figura 6: Manuela e Joaquim se beijam ...... 51 Figura 7: Isabela e Téo se beijam ...... 52

LISTA DE TABELAS

Tabela 1– Comparativo de preço ...... 38

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11

1 UMA ESTREITA RELAÇÃO: TELENOVELA E SOCIEDADE BRASILEIRA ...... 13

1.1 A importância da telenovela no cotidiano do brasileiro ...... 13

1.2 Telenovela como precursora de debates ...... 17

1.3 Telenovela como representação ...... 21

1.4 Telenovela e consumo ...... 24

2 TELENOVELA INFANTIL, UM ESPAÇO DE BRINCADEIRA? ...... 27

2.1 Panorama histórico das telenovelas infantis ...... 27

2.2 Criança, mídia e representação ...... 31

2.3 Criança e consumo ...... 36

3 CRIANÇA-ADULTO? COMO O EDUCADOR AUDIOVISUAL PODE INTERFERIR NA ADULTIZAÇÃO CRIADA PELA MÍDIA ...... 40

3.1 Cúmplices de um resgate ...... 41

3.2 Construção de personalidades ...... 46

3.3 Adultização ...... 47

3.4 Infância e namoro ...... 50

3.5 Cúmplices e o consumo ...... 53

3.5 O educador audiovisual e a mediação ...... 53

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 57

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 61

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INTRODUÇÃO

A televisão é parte das famílias brasileiras. A estreia do primeiro canal televisivo brasileiro, a TV Tupi de São Paulo, foi em 18 de setembro de 1950 marcando o início de uma grande mudança social; a partir desse momento, um novo meio de comunicação é inserido nos lares, expandindo as formas de se obter conhecimento. Em 21 de dezembro de 1951, estreava a primeira telenovela brasileira, Sua vida me pertence, exibida duas vezes na semana e apresentada ao vivo pela TV Tupi de São Paulo. Nesse momento, começa o formato que se tornará o mais visto da televisão no país.

A novela foi se tornando parte do cotidiano dos brasileiros e passou a influenciar gerações, assim, foi inevitável que esse gênero de sucesso alcançasse todos os públicos. Desde 1969, com A pequena Órfã, exibida pela TV Excelsior, o público infantil começou a ser o alvo principal de alguns folhetins. Percorrendo altos e baixos, as telenovelas infantis sempre estiveram presentes nas programações, mas foi a partir de 2012 que a produção nacional voltada ao telespectador mirim ganhou força com as narrativas produzidas pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT).

As novelas são espaços de referência para os telespectadores, elas possuem um papel importante na sociedade, trazendo a debate diversas questões sociais e oferecendo repertórios diversos. Para muitas famílias brasileiras, esse produto audiovisual é muito mais do que apenas um entretenimento, ele faz parte do dia a dia, chegando a interferir na dinâmica familiar. Quando esses folhetins passam a ser feitos para o público infantil, toda essa dinâmica e influência começa a ter crianças como público alvo.

O público infantil está em fase de formação de suas personalidades, nesse sentido, utilizam de diversas referências para formarem suas opiniões, interesses e desejos. Assim como a família, escola e a igreja, os produtos audiovisuais influenciam as crianças de forma direta, por isso, é necessário que haja um cuidado com o que elas são expostas, para que não haja interferências que prejudiquem as suas formações como indivíduos. Desse modo, é fundamental entender como as telenovelas estão inseridas no cotidiano do brasileiro e como interferem na sociedade e no indivíduo. 12

As telenovelas infantis são muito populares entre as crianças do país; por isso, buscando entender como essa relação se dá e como o educador audiovisual pode interferir nela, a pesquisa analisou a novela Cúmplices de um Resgate, exibida em 2016 pelo canal SBT e procurou conhecer o que essa narrativa transmite para os telespectadores, principalmente para as telespectadoras.

A interferência das telenovelas e de outros produtos da mídia na formação das crianças é de conhecimento de todos e um assunto que não pode deixar de ser notado. Cada vez mais as crianças estão sendo bombardeadas com diversas informações sem um acompanhamento, com isso, têm acesso a programações que não são próprias para as suas faixas etárias. Impedir que elas tenham contato com esses produtos não é um caminho possível, dessa maneira, é necessário encontrar caminhos para que se estimule o questionamento sobre o que é assistido.

Na primeira parte da pesquisa foi feita uma pesquisa bibliográfica com o objetivo de contextualizar de forma geral e conhecer as relações entre as telenovelas e a sociedade, já evocando a discussão sobre como um programa pode interferir de forma tão ativa no cotidiano de uma nação. Dentro disso, foi analisado como as novelas fornecem ao debate público questões que estão na sociedade, como ela é um espaço de representação e como elas induzem ao consumo.

Após compreender como as telenovelas se relacionam com a sociedade em geral, é preciso entender como essas relações acontecem no campo das telenovelas e as crianças. O segundo capítulo aborda um pequeno histórico das novelas infantis desde o surgimento da televisão. Evidenciando as mudanças ocorridas nas programações, apresenta como a criança trabalha a representação do eu, utilizando os programas como referência e percebendo como o consumo é estimulado desde cedo pela mídia.

A descrição da novela Cúmplices de um Resgate acontece no terceiro capítulo. Inicialmente, há a descrição do enredo para que a narrativa possa ser compreendida. Dessa forma, pretendeu-se entender como as personalidades das personagens foram trabalhadas na novela, além de questionar a adultização das crianças, observando como o namoro é inserido precocemente no cotidiano infantil e a relação entre o consumo e a telenovela. Ao final, almejou-se encontrar um possível caminho de estimulação do olhar crítico através do trabalho do educador audiovisual. 13

1 UMA ESTREITA RELAÇÃO: TELENOVELA E SOCIEDADE BRASILEIRA

A telenovela é um espaço que provoca discussões de âmbito social e pessoal, tendo potencial de estimular uma revisão dos valores e opiniões do telespectador. Um produto feito para a família e muitas vezes considerado como feminino, está inserido no cotidiano das famílias brasileiras através de uma relação íntima. Paula Guimarães Simões e Vera França apontam que os telespectadores veem os personagens como amigos, conversam sobre eles e dão palpite sobre o que eles devem fazer, colocando-se em diálogo com a narrativa, portanto. Dessa maneira, a telenovela ocupa um lugar importante na cultura e na sociedade brasileira (2007, p.53). Por estar inserida no ambiente doméstico, a televisão, como afirma Heloisa Buarque de Almeida1, permite que o telespectador tenha acesso a vários lugares e situações sociais que anteriormente eram vedadas à maioria, retirando o espectador de seu lugar social como única referência. Nesse sentido, ela é uma janela para o mundo, já que trouxe mudanças significativas para a sociedade ao estreitar realidades e disseminar conhecimento. Interação que acontece há décadas e que possui diversas camadas, faz com que a telenovela brasileira seja considerada um produto genuinamente brasileiro e que lançou o mercado latino-americano para mundo, ao ser exportada para diversos países. O telespectador e a telenovela são agentes de uma relação estreita que possui diversos significados, ambos se influenciam e se modificam. A novela tem a possibilidade de ajudar a mudar a sociedade, e o cidadão muda a novela. Além disso, a telenovela estimula questionamentos, debates e mudanças, afeta o cotidiano dos espectadores, dita moda e tendências, numa dicotomia entre ser considerada membro da família, mas também ser um produto de grandes emissoras que buscam o lucro.

1.1 A importância da telenovela no cotidiano do brasileiro

A televisão está presente na casa de um número expressivo da população. Segundo dados do IBGE de 20112, 96,88% dos domicílios brasileiros possuem pelo

1 2003, p.213. 2 https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/lista_tema.aspx?op=0&de=14&no=6. Acessado em novembro 14

menos uma televisão - um número muito expressivo se pensarmos que 95,75% da população possui geladeira em casa. Esse bem durável é considerado imprescindível no cotidiano do brasileiro e o seu uso chega a 4 horas e 31 minutos por dia durante a semana e 4 horas e 14 minutos nos fins de semana3. O programa que prende mais o espectador no sofá e é a ficção mais conhecida da TV brasileira é a telenovela. Que apareceu pela primeira vez na década de 1950 e a partir disso se tornou um dos principais produtos da cultura nacional. Como disse Rondinele Aparecido Ribeiro (2015, p.160),

É indubitável que a implantação da tevê no Brasil redimensionou a promoção de entretenimento para a sociedade. Presente no país desde 1950, a televisão constitui-se como produto cultural mais difundido na sociedade. É tida pela crítica uma das invenções mais importantes do século XX, sendo responsável por redimensionar a oferta de entretenimento por ser o veículo de comunicação que mais atinge os lares brasileiros.

A expansão da televisão brasileira e o fortalecimento da telenovela como o produto principal da indústria local aconteceu a partir de 1970 e contou com o monopólio da Rede Globo e a interferência do regime militar. A partir desse momento, a exportação da novela para Portugal e outros países foi iniciada, ampliando também a indústria nacional. Esther Hamburger coloca que esse fator de exportação do produto nacional “distingue a indústria brasileira nacional no panorama mundial” (2005, p.30). Inicialmente influenciada pelas soap opera4 americanas, a novela incorporou a cultura nacional e foi influenciada pelo teleteatro e pela literatura brasileira criando um gênero local de forte expressão e comercialização. De acordo com Esther Hamburger (2005, p.38),

Durante os anos de 1970 e 1980, a novela se consolidou como repertório

de 2017, acesso em agosto de 2017. 3 De acordo com a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República na Pesquisa de mídia Brasileira em 2015. 4 Soap opera é um gênero de obras de ficção dramática ou ficção cômica difundido pela televisão norte- americana, organizadas em séries compostas por episódios transmitidos regularmente em um período indeterminado de duração.

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compartilhado entre os segmentos mais diversos de público; nos anos 1990, ligeiramente enfraquecida pela redução da audiência, ela continuou a captar e expressar noções contraditórias sobre as relações entre domínios como masculino e feminino, público e privado, política e intimidade, notícia e ficção, mas a segmentação de audiências, de produtores e programadores colocou em questão a possibilidade de uma representação nacional. Talvez o repertório compartilhado, possível nos anos 1970 e 1980, presente ainda nos anos 1990 e no início do novo milênio, esteja perdendo sua capacidade de aglutinar a nação brasileira.

A capacidade citada pela autora de aglutinar a nação brasileira é a forma como a novela aborda temas para debate que mexem com a população, instigando o debate e resultando em ações efetivas influenciadas pelo marketing social presente nos folhetins. Como os exemplos citados pela autora, há a novela Explode Coração (1995), que abriu espaço para as mães divulgarem cartazes com foto dos filhos desaparecidos, ou De Corpo e Alma (1992) que, ao abordar um caso de transplante de coração, incentivou a doação de órgãos (HAMBURGER, 2005, p.134). Ao tocar em assuntos como esse, há uma comoção da sociedade, a qual se une em busca de melhorar essa realidade, tornando a narrativa um meio muito eficaz de induzir uma mudança social. Paralelamente, no âmbito do doméstico, a telenovela tem a capacidade de delimitar os horários das tarefas da família, pois

os sentidos da telenovela não são somente confinados aos modos de vê-la ou aos significados que ela constrói e que interagem com as audiências. Ela ainda contribui para a estruturação do dia, mostrando as atividades da família, funcionando, como já atestou Leal, como um relógio para atividades corriqueiras, definindo o horário das refeições, de ir para cama, de fazer a janta, de realizar os deveres da escola etc. (ANDRADE, 2002, p.32)

O aparelho de televisão faz parte do cotidiano do brasileiro e está presente nas salas, quartos e até cozinhas dos lares brasileiros. Por estar no ambiente doméstico, o ato de assistir à televisão acontece de forma relaxada e confortável. O espectador pode assistir à programação vestindo qualquer roupa, em qualquer ambiente de sua residência; diferentemente de outras formas de entretenimento, 16

não é necessário se deslocar, nem pagar pelo produto cada vez que o consome. Além disso, têm o total controle de qual canal assistir e, desde o advento de aparelhos gravadores, há a possibilidade de assistir ao programa que quiser a qualquer hora, adequando a programação a suas necessidades. Pensar no aparelho televisivo compartilhando o ambiente íntimo da audiência é um fator importante para se pensar como a relação se estabelece, já que os telespectadores se relacionam com os personagens como se estivessem

acompanhando a história de algum amigo. Como se conhecessem o personagem, comparam o que se passa na vida cotidiana das pessoas conhecidas de si próprios (ALMEIDA, 2003, p. 211). A força e a repercussão de uma novela mobilizam diariamente uma comunicação dada em rede, possibilitando que as pessoas externem experiências públicas e privadas, divirjam sobre opiniões distintas em relação às ações de personagens e desdobramentos da história (IMMACOLATA, 2002). Ela é um mecanismo de facilitação da comunicação social, que consegue unir as pessoas, fornecendo a sensação de pertencimento a uma comunidade:

Ela (telenovela) possui uma penetração intensa na sociedade brasileira devido a uma capacidade peculiar de alimentar um repertório comum por meio do qual pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se posicionam e se reconhecem umas às outras. Longe de promover interpretações consensuais, mas, antes, produzir lutas pela interpretação de sentido, esse repertório compartilhado está na base das representações de uma comunidade nacional imaginada que a TV capta, expressa e constantemente atualiza (IMMACOLATA, 2002, p.2).

Para além de unir uma comunidade e influenciar o cotidiano dos cidadãos, a televisão e a teledramaturgia são caminhos de expansão de repertório para o espectador. Elas “quebram” as paredes da casa e levam o sujeito a conhecer novos mundos, novas formas de viver e muitas possibilidades de arranjo social diferentes daquelas que ele está acostumado. Ademais, elas podem estreitar barreiras dentro dos lares, ao colocar em pauta assuntos antes não discutidos entre membros de uma mesma família. A telenovela tem a capacidade de “atingir um público nacional composto por 17

telespectadores das mais variadas idades, de ambos os sexos, classes sociais distintas e das mais variadas regiões do país” (HAMBURGER, 2005, p.27), conectando diferentes públicos a um mesmo tema, expandindo barreiras e influenciando o cotidiano do povo de uma forma direta. A sociedade e a novela estão ligadas de uma forma potente, uma vez que a telenovela fala da sociedade e a sociedade fala da telenovela.

1.2 Telenovela como precursora de debates

“Os discursos produzidos em uma cultura [...] trazem a marca da sociedade e do contexto que estão inscritos” (SIMÕES e FRANÇA, 2007, p.50). As autoras afirmam que a cultura é marcada de forma direta pela sociedade na qual ela está inserida, da mesma forma que a sociedade é atravessada pela cultura que ela está produzindo. Não seria diferente quando se trata de telenovela brasileira.

As telenovelas, como já visto, possuem uma relação familiar com o telespectador, uma vez que entram em contato no ambiente doméstico e, para além disso, compartilham sentimentos e sentido. As narrativas dessa ficção são tentativas de interpretação da vida real, pois como expõem Paula Guimarães Simões e Vera França, a “realidade é plural e não pode ser reduzida a uma mera representação. Esta não dá conta de trazer toda a complexidade da vida social” (2007, p.55). Percebe-se, nesse sentido, que as questões humanas possuem muitas particularidades, diversas visões e problemáticas; cada ser humano é específico e lida com uma dificuldade de forma diferente. Colocar toda essa complexidade em tela em 200 capítulos é uma tarefa difícil, tendo que a obra ser resumida para que consiga contar a história. Ao interpretar a vida real, a telenovela cria enredos que falam do cotidiano e dos sentimentos que existem na sociedade. São histórias que podem não ter acontecido na vida do espectador, mas que ele reconhece quando o personagem vive dilemas sentimentais parecidos com o que ele viveu. Os sentimentos como amor e ódio, por exemplo, são universais, e são eles que ajudam a encurtar a distância entre o produto televisivo e quem assiste. Dessa forma, o espectador se coloca no lugar do personagem ao reconhecer sentimentos já experimentados por ele próprio. As novelas trabalham com isso, despertam questões que estão na sociedade para a TV e desenvolvem enredos que poderiam acontecer com qualquer um. 18

É justamente essa estreita relação entre a telenovela e a sociedade que vem sendo apontada como a “marca específica da telenovela brasileira” (SIMÕES e FRANÇA, 2007, p.53). Para além de uma relação individual e questões de âmbito pessoal, a telenovela é muitas vezes a precursora de debates sobre temas muitas vezes considerados polêmicos e que são silenciados pela sociedade. Temos como exemplo a autora Glória Perez, que está sempre apresentando questões para debate, como fez na novela Caminho das Índias (2009) com a esquizofrenia, em Salve Jorge com o tráfico de mulheres e atualmente em A Força do Querer (2017) com a transexualidade. Com esses assuntos em pauta na televisão, eles começam a ser discutidos entre

aqueles que assistem, entre vizinhos, entre desconhecidos no ônibus, espalhando o tema, consequentemente. Nesse sentido, outros meios midiáticos começam a colocar em debate esses conteúdos, como a reportagem no jornal O Globo no dia 03 de setembro de 2017, sobre destransição, ou como no programa Encontro com Fátima Bernardes5, quando transexuais relataram suas experiências durante transição. Os questionamentos levantados na novela ganham proporções nacionais e influenciam na mudança de opinião dos telespectadores. Por ser considerada um produto com credibilidade, o seu poder de transformação é expressivo, pois tem a capacidade de conseguir quebrar a primeira barreira ao colocar em pauta muitos temas que são considerados tabus. As novelas têm papel importante nas mudanças ocorridas socialmente relacionadas a assuntos como sexualidade e emancipação feminina, já que, ao mostrar cenas que levantam esses questionamentos, o gancho para que os espectadores iniciem a conversa sobre, acontece - possibilitando, portanto, o diálogo acerca de um assunto que é silenciado dentro de casa. Além disso, consegue viabilizar um caminho de descoberta de novos mundos e novas configurações familiares e pessoais, pois expõem diversas possibilidades.

5 Programa de matinal diário de variedades da Rede Globo, apresentado pela jornalista Fátima Bernardes.

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Dado que os meios de comunicação massivos, em especial a televisão, são agentes significantes, fabricantes de sentidos que não apenas reproduzem a realidade, mas também a definem, encontramos na telenovela uma estrutura formal propulsora de identidades. Trabalhando com a experiência do telespectador, os folhetins apresentam personagens que ratificam valores e conceitos. Sendo a sociedade um produto humano e o homem um produto social, num cíclico processo de exteriorização – interiorização indicado por Berger (1985), a televisão tem seu papel de destaque neste sistema ao capturar ideias e imagens latentes no cenário social, apropriar-se temporariamente delas, moldá-las e devolvê-las para os indivíduos, que prontamente as reabsorvem. (MAIA, 2007, p.12)

Muitas das mudanças que estão acontecendo no corpo social são retratadas na tela e isso ajuda a disseminar essas modificações, podendo despertar o interesse de modificação em alguns espectadores ou a rejeição por outros. Nem sempre a telenovela consegue abordar questões que ajudem a mudar a sociedade e que são aceitas por todos, no entanto, elas conseguem expor muita gente a situações que repudiam e, assim, através do desconforto, tentam induzir mudanças. Entretanto, a novela não é um produto imparcial. Ela coloca na tela questões que o autor considera relevantes e dá soluções que ele acredita serem corretas dentro do contexto. Muita das vezes a maioria da população concorda com essa visão, porém pode haver uma rejeição ao que está sendo transmitido. Como aconteceu com a novela Malhação, na qual a Polícia Militar de São Paulo lançou uma nota de repúdio6 contra o folhetim, pois sentiu-se prejudicada quando foi ao ar, no dia 30 de maio de 2017, uma cena em que dois jovens personagens foram abordados por um policial militar- que usava um figurino parecido com o uniforme utilizado pela PM paulista - de maneira discriminatória e racista. A PM paulista achou necessário defender-se ao ter a sua imagem prejudicada por um programa que possui uma audiência expressiva na maior emissora de televisão do Brasil. Outro caso ocorreu quando a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso

6 http://www.policiamilitar.sp.gov.br/noticias/noticia-interna/2017/5/1387/nota-de-repudio-da-policia- militar-a-rede-globo-de-televisao, acesso em agosto de 2017. 20

Nacional divulgou nota oficial de repúdio7 ao beijo gay que foi ao ar na novela Babilônia (2015), da Rede Globo. Assinada pelo presidente da Frente, o deputado João Campos, a nota emitida expressava o descontentamento dos deputados, os quais acreditavam que a emissora tinha a clara intenção de afrontar os cristãos em suas convicções e princípios, querendo exibir, de forma impositiva, para quase toda a sociedade brasileira, o modismo denominado por eles de “outra forma de amar”, contrariando costumes, usos e tradições. Duas notas de repúdio com o intuito de proteger dois setores da sociedade distintos. Não compete a esse trabalho o julgamento se foram corretas ou não, mas expor que as telenovelas nem sempre são vistas de forma positiva pela sociedade e que os debates nem sempre tem frutos na mudança para o melhor. A teledramaturgia conta a história da sociedade em que está inserida e a influencia de volta. Em muitos momentos ficção e realidade se misturam e não é possível diferenciá-las. Essa mistura acontece como decorrência de a televisão ser um parâmetro de comportamento para muitos cidadãos. Segundo Romano citado por Vera França e Paula Simões (2007, p.52), a televisão “tem sido uma das mais importantes referências de valores e hábitos ‘modernos’ para os telespectadores” (1998, p. 79). Crianças batizadas com nomes de personagens, donas de casas vestindo a mesma blusa da protagonista, lojas denominadas com nome de novela, linguajar incorporado, esses fatores exemplificam como a televisão afeta o corpo social. Entretanto, o espectador não pode ser visto apenas como passivo e coadjuvante dessa relação; eles têm a capacidade de filtrar o que recebem, de questionarem o que veem e, muitas vezes, de não concordarem com o que é visto. Quando vemos a dona de casa vestindo a mesma roupa da personagem, ela está se inspirando e carregando elementos da narrativa ficcional para vida pessoal. O telespectador nem sempre deseja reproduzir o que é visto em tela, às vezes ele pode buscar elementos naquele personagem para a sua vida, de forma a configurar uma identidade própria mais complexa. A afinidade com algum personagem ou com uma trama a ponto de fazer com que o cidadão incorpore signos daquela narrativa em sua vida pessoal acontece de

7 https://www.opopular.com.br/editorias/magazine/deputado-goiano-lan%C3%A7a-nota- de- rep%C3%BAdio-a-beijo-gay-1.808377, acesso em agosto de 2017.

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acordo com a situação pessoal do telespectador. Se ele vai ou não torcer por um personagem, se vai aceitar o desenrolar da história, ou até mesmo assistir à novela até o fim, está relacionado com o íntimo de quem está assistindo. Esther Hamburger exemplifica isso ao comentar sobre a defesa da personagem Léia, da novela Rei do Gado, por parte de um entrevistado homossexual, em relação ao fato de a mesma ter abandonado o marido para ficar com o amante. Tal indivíduo, que se assumiu publicamente na favela em que morava, toma essa posição, pois se identifica, pois se identifica com o comportamento apaixonado e desinteressado da personagem, que assim como ele, teve a coragem de buscar a sua felicidade, mesmo indo contra os padrões sociais (2005, p.143).

1.3 Telenovela como representação

Os criadores das obras se apropriam de elementos da realidade na construção dos universos ficcionais: na caracterização das personagens, na realização das ações e na configuração dos sentimentos que irão perpassar a estrutura da narrativa ficcional (SIMÕES e FRANÇA, 2007, p. 54).

Nesse sentido, os elementos básicos encontrados na telenovela são muito semelhantes ao que vivenciamos, mas com regras respectivas daquele universo, sendo necessário, portanto, que o espectador compreenda e aceite essa configuração proposta. A novela coloca em pauta processos que estão acontecendo no corpo social de forma recorrente, como as mudanças nas relações entre pais e filhos e a independência feminina. Entretanto, nem todas as situações apresentadas em telas já foram experimentadas pelo telespectador, por isso, acaba acontecendo ali o primeiro contato.

[...] a novela expõe os espectadores a mundos e situações por muitas vezes distintas daquilo que eles vivem, como eles próprios reconhecem, mas ao fazer isso os familiariza com esses mundos que parecem ser de início tão distantes dos seus. A o mesmo tempo, usa sentimentos e relações amorosas e familiares – que permitem a compreensão de todas as situações, mesmo quando referidas a universos sociais muito distantes daquilo vivido por cada espectador. (ALMEIDA, 2003, p.209) 22

As representações vistas em tela são agentes de significação que auxiliam na elaboração de uma identidade do indivíduo que acontecem durante toda a sua vida. Ao trazer para o âmbito do público questões privadas, como relacionamentos extraconjugais, amores impossíveis, assuntos íntimos de sexualidade, vícios, entre outros, as narrativas inserem o telespectador nela; logo, mesmo que não tenham passado por experiência semelhante, ele as reconhece e acredita ser uma história verdadeira, pois os sentimentos tratados são universais. O contato com essas histórias auxilia o indivíduo a entender as suas próprias questões e abre para a possibilidade de mudança da sua opinião. Heloisa Buarque de Almeida diz:

Pelas comparações que fazem entre os personagens e as pessoas com quem convivem em suas vidas cotidianas, pela aproximação que sentem com certos personagens ou certas situações vividas por eles, é possível notar como os espectadores reveem a si mesmos, colocam-se em diálogo com a narrativa (2003, p.211).

As narrativas trabalham sentimentos em sua estrutura. Há a mocinha apaixonada, o vilão odioso, a senhora triste e muitas outras representações sentimentais. Essa estruturação é responsável por fazer com que o telespectador consiga se familiarizar com a novela e assim voltar a assisti-la. Heloisa Buarque de Almeida (2003, p.210), citando Raymond Willians (1992), afirma que a associação dos sentimentos às formas narrativas auxilia na formação da sensibilidade ao interagir com a sociedade e fazer parte dela. Assim, através dessa construção de sensibilidade, a novela promove um processo reflexivo, de acordo com a autora.

O processo reflexivo possibilita que o indivíduo instigado pela telenovela potencialize ou até mesmo comece um processo de reconstrução e mudança do eu. A mídia é muitas vezes responsável por um processo de reflexão sobre como a sociedade está organizada, pois abre-se para debates. Quando um tema que aflige o meio social é representado na novela, o espectador é exposto a alguma questão que possivelmente quer esconder. A cada vez que ele é submetido àquele assunto e discurso, vai questionando se o que está vendo é certo ou não e indaga a si.

O autor de novelas Walcyr Carrasco, em uma participação no Programa do 23

Faustão8, na Rede Globo em 2014, declarou9 que, em certa ocasião, um repórter gay foi falar com ele dizendo que sua mãe, a qual era evangélica e tinha interrompido sua relação com o filho, o procurou para falar que o aceitava depois de assistir à novela Amor à vida (2014). Esse é um belo exemplo de como a teledramaturgia trabalha com os sentimentos, provoca questionamentos e mudanças no ser humano.

No entanto, para que toda essa mudança aconteça, é necessário, como já dito anteriormente, que haja uma identificação do público com o que é visto. Esse processo depende de alguns fatores para que ocorra e, muitas das vezes, está ligada ao íntimo do espectador. A relação entre ele e a narrativa ficcional é bem complexa e varia de acordo com a novela e com quem está recebendo a história.

O telespectador toma partido de um personagem em detrimento do outro de acordo com as suas convicções e a sua experiência de vida. Os seus gostos para novela compartilham da mesma lógica das suas escolhas de roupa, externalizando o que está em seu íntimo, o que ele é, acredita e se identifica. Dessa maneira, pode- se interpretar uma pessoa de acordo com a novela que ela aprecia e, principalmente, por qual história ela torce.

Há uma interação diária entre espectador e telenovela, mesmo que não haja um diálogo direto, há apropriação da vida real pela ficção e da ficção pela vida real. Rondilene Ribeiro destaca que, de acordo com a profundidade dos temas retratados e pelo serviço de formativo que prestam à nação, é indiscutível que a telenovela deixou de ocupar o posto de mero entretenimento para se consolidar numa narrativa acerca da nação, que promove alterações de comportamento, infiltra no cotidiano das pessoas e torna-se onipresente na vida do telespectador (2015, p.167). Telenovela e sociedade são indissociáveis, é necessário falar de uma quando se fala da outra. Ana Paula Guimarães Simões e Vera França apontam que

Diversos são os materiais simbólicos a que os indivíduos têm acesso e que participam do processo de constituição social da realidade.

8 Domingão do Faustão é um programa de auditório brasileiro exibido aos domingos da Rede Globo apresentado pelo apresentador Fausto Silva. 9 http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/01/26/o-publico-nao-deixa-eu-separar-a- paloma- do-bruno-diz-walcyr-carrasco.htm, acesso em agosto de 2017.

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Dentre esses materiais também estão as obras de ficção. Assim, as narrativas ficcionais podem ser entendidas como instrumentos que, produzindo sentidos através da construção de representações, colaboram na organização da experiência humana e na construção da própria vida social (2007, p.54).

Essas representações são importantes para a formação da personalidade, sentimentos e preferências do indivíduo, estando presente desde muito cedo com os desenhos animados e continuando mais tarde com as telenovelas. Elas não são apenas um meio de entretenimento, mas ajudam a traçar novas possibilidades ao social. Mesmo sendo quase uma reprodutora do mundo real, a novela consegue levar a diversos lugares, mundos e sensações não antes experimentadas por muitos espectadores.

1.4 Telenovela e consumo

Por ser um ambiente que mexe com os sentimentos dos espectadores, a TV é uma ótima mídia para criar comportamentos e, consequentemente, vender produtos. Como cita Heloísa Buarque de Almeida (2003), a mobilização do afeto e dos valores é um meio de atingir os indivíduos, uma ferramenta, e, por isso, de fato busca estar de acordo com os valores, normas e sonhos daqueles indivíduos que pretendem atingir enquanto consumidores. Diante desse contexto, nota-se que a propaganda é muito frequente nas novelas e nos intervalos, sendo o horário da novela das 21h na Rede Globo um dos mais caros da televisão. Ao ser considerada um programa que a gera tendências, que instiga a população a mudanças e debates, ela passa a ser um ambiente propício para a divulgação de marcas, produtos e estilos de vida. A relação sentimental do espectador com a novela sugere, para ele, a sensação de que os personagens fazem parte de suas vidas, que são seus amigos. Dessa forma, quando algum deles apresenta um produto durante a narrativa, há a ilusão de que aquele produto é realmente utilizado pelo personagem, engatilhando a curiosidade do espectador em conhecê-lo. Entretanto, o espectador não tem conhecimento de que essa forma de publicidade se chama Tie In10 e está presente

10 Tie In é a inclusão sutil de produtos, serviços, marcas e empresas em obras de entretenimento, principalmente audiovisuais, como novelas, reality shows, filmes, games e etc. 25

exatamente para que ele sinta como se o personagem estivesse apenas usando aquele produto, e não o anunciando. O Tie In é uma ação de publicidade permitida e não considerada uma mensagem subliminar ou algum tipo de mecanismo que influencia o espectador a fazer algo de forma inconsciente, mas, ao se repetir diversas vezes, a marca fixa- se no imaginário de quem assiste, tornando-se associada à novela e, pela relação sentimental que a mesma estabelece com o espectador, a marca começa a ser vista de outra forma por ele. É um método eficiente que, se utilizado de forma inteligente, consegue alavancar as vendas da marca. As roupas, acessórios, cortes de cabelo e objetos de cena que aparecem nas telenovelas sendo usados por personagens influenciam a moda nas ruas e são buscados pelos espectadores. É comum ver pessoas no cotidiano usando acessórios, roupas e cortes de cabelo parecidos com algum personagem que está no ar. Também é comum centrais de atendimento ao espectador receberem ligações ou e-mails perguntando sobre a cor de um esmalte, a marca de uma camisa e muitos outros questionamentos sobre o que está na TV. Sabendo que possui essa influência, a Rede Globo de televisão criou a sua loja online11, na qual vende produtos, como livros sobre novelas, dvds de novelas antigas, roupão igual aos participantes do BBB12, cd de trilha sonora, acessórios iguais ao da personagem da novela das 21 horas, entre muitos outros objetos inspirados no que é transmitido em sua programação. Um exemplo atual são as gargantilhas usadas pela personagem da atriz Juliana Paes na novela A Força do Querer, chamada de chokers: elas estão em diversas lojas de acessórios, é possível encontrar por preços populares e até banhadas a ouro. Estão nos pescoços de diversas mulheres brasileiras. Por ser tratar de uma personagem forte, mesmo que tenha feito escolhas erradas que a levaram para a vida criminosa, a Bibi13 é vista como um símbolo de mulher que busca realizar os seus sonhos e desejos; portanto, uma espectadora, ao usar o

11 http://www.loja.globo/, acesso em agosto de 2017. 12 Big Brother Brasil (BBB) é um reality show que consiste no confinamento de um número variável de pessoas em uma casa no Projac, estúdios da Rede Globo, na qual são vigiados durante 24 horas por dia, sem poderem se conectar com o mundo exterior. Os confiados passam por diversas provas e por eliminações do público até que restem apenas 3, o escolhi entre eles pelo público recebe atualmente um prêmio de R$:1,5 milhão. O programa encontra-se em sua 17ª edição. 13 Nome da personagem da atriz Juliana Paes na novela a Força do Querer. 26

mesmo acessório que ela, sente-se mais segura e, inconscientemente, transmite uma imagem associada à personagem. De tempos em tempos saem rankings14 com os acessórios mais pedidos na central da emissora, fortalecendo essa venda de produtos associados aos programas exibidos por ela. O vínculo entre espectador e telenovela pode acontecer de diversas maneiras e possui um potencial econômico que é utilizado pelas grandes emissoras. A novela está longe de ser apenas um produto de entretenimento, ela é pensada e estruturada para trazer questionamentos para a sociedade, instigar mudanças e lucrar. Entretanto, elas não estão apenas restritas ao público adulto. As telenovelas voltadas ao público infantil ganham cada vez mais espaço, sendo esse um mercado consumidor muito explorado. Ademais elas possuem um papel que influencia diretamente e de forma muito expressiva a formação da personalidade das crianças, já que estão em uma fase de desenvolvimento do eu. A relação novela e criança passa pelos questionamentos apresentados na com o adulto, mas abre possibilidades de vínculo para além dos expostos acima.

14 https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/moda/elas-no-tapete-vermelho/acessorios-de-a-forca-do- querer-sao-mais-pedidos-da-globo,d4e68415612fc1c8a92e910c59763919riogc7dd.html, acesso em agosto de 2017.

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2 TELENOVELA INFANTIL, UM ESPAÇO DE BRINCADEIRA?

As telenovelas feitas para o telespectador infantil foram produzidas ao longo da história da televisão brasileira. Há relatos de dramaturgias voltadas a esse público desde 1969, com A pequena Órfã, exibida bela TV Excelsior. Inicialmente, havia mais programas infantis em diversos formatos, como de auditório e show de calouros, do que novelas. Gurilândia, exibido de 1955 a 1976 na Tv Tupi foi o primeiro a ser produzido, tornando-se o precursor de um mercado que iria ganhar o país décadas depois.

2.1 Panorama histórico das telenovelas infantis

Mattos (2002, apud Colvara, 2007), divide a história da televisão do Brasil em seis fases: Fase Elitista (1950 – 1964), Fase Populista (1964 – 1975), Fase do Desenvolvimento Tecnológico (1975 – 1985), Fase de Transição e da Expansão Internacional (1985 – 1990), Fase da Globalização e da TV paga (1990 – 2000) e a Fase da Convergência e da Qualidade Digital, que começa nos anos 2000 e que não teve fim até a publicação do texto.

A divisão é desenvolvida pelo autor baseada no contexto social, econômico, político e cultural do Brasil. Colvara comenta que “ao elaborar o relato dos programas faz-se uma rápida síntese do como eram, e também como estava a situação da televisão no momento o qual era produzido e exibido” (2007, p.1). Dessa forma, ao citar os contextos históricos e analisar o conteúdo dos programas, Mattos possibilita uma contextualização importante que nos ajuda a entender o desenvolvimento dos programas infantis e como o contexto da sociedade interfere no que é visto na tela.

A fase elitista está localizada no começo da televisão no país; na década de 50, os televisores eram caros e apenas a elite tinha acesso a eles. A época é marcada por programas infantis preocupados com a cultura transmitida e com incentivo à leitura, a audiência era baixa e ainda não havia o domínio da linguagem televisiva. Programas como Sítio do Pica Pau Amarelo, Teatrinho Trol, Gurilândia e o desenho Pica Pau faziam parte da programação.

Já a fase populista é atravessada pelo Regime Militar (1964 – 1985). Com a rápida industrialização do país, a venda de televisores aumentou consideravelmente. 28

A administração dos programas tornou a ser cada vez mais profissional, facilitando, assim, o surgimento de grandes ícones, como o Capitão Aza, entretanto, o governo tinha controle do que era veiculado na televisão e a utilizava como disseminadora de seus ideais. A programação infantil não era deixada de lado e trouxe imagens que reforçavam os princípios do regime, provocando uma diminuição no estímulo à leitura, diferente de como acontecia na década anterior. As telenovelas continuavam presentes, como a Jerônimo, o Héroi do Sertão, que foi ao ar na TV Tupi em 1972 a 1973. Além disso, há a entrada de desenhos estrangeiros e uma americanização da programação que, com isso, faziam parte da grade a versão brasileira, como Sesame Street, os programas Uni-Duni-Tê, Mister Show, Capitão Furação, entre outros.

No final da década de 70, acontece a fase do desenvolvimento tecnológico, no qual há uma solidificação da televisão e uma padronização da programação em todo o território nacional. A Rede Globo investe em novela infanto-juvenil e especiais musicais. Colvara afirma que

Há o início tímido do que seria hoje a nossa maior preocupação, exploração do mercado consumidor infantil pela Indústria, iniciado pela Fonográfica. Pois os especiais musicais feitos, logo em seguida eram lançados vinis com a trilha sonora e consequentemente lançamento dos artistas que os integravam, como também o programa Zás Trás, o primeiro programa a ter uma trilha sonora comercializada (2007, p.8).

A mudança na grade da programação na qual o Xou da Xuxa entra no lugar do Sítio do Pica Pau Amarelo em 1986 é uma das questões fundamentais para a compreensão da alteração do que era considerado programação infantil. A década de 80 comporta a fase da transição e da expansão internacional, é nela que a criança passa a ser vista como um consumidor em potencial.

O programa apresentado pela Xuxa é inovador, trazendo uma tecnologia nunca vista na televisão. A apresentadora é um marco quando se fala em programação infantil, pois criou-se um mercado novo no qual a sua marca foi expandida para produtos, discos com músicas infantis, shows e filmes que ultrapassaram as fronteiras do Brasil e ganharam o mundo. Não é à toa que ela é conhecida como a “Rainha dos Baixinhos”, apesar de toda a sua imagem erotizada no começo de carreira, que foi 29

reproduzida por outras apresentadoras de programas de auditório, como a Mara Maravilha.

Diversas atrações que se tornaram sucesso foram lançadas nessa fase, como O programa do Bozo, Clube da Criança, Balão Mágico e Show Maravilha. Esse período divulgou múltiplos artistas que irão fazer sucesso durante décadas, como Angélica, Mara Maravilha, Jair Oliveira e Simony.

A internet e a televisão a cabo trouxeram uma nova forma de relação com a tv. A fase da globalização e da tv paga inicia o que conhecemos hoje como programação televisa. A insatisfação da audiência com o que era visto na tv aberta é evidenciada pelo número de adeptos à tv a cabo e pela portaria15 publicada pelo Ministro da Justiça, José Gregori, em setembro de 2000, “obrigando as emissoras a respeitar e informar os limites classificatórios por faixa etária para o horário, como também a natureza de seu conteúdo” (2007, p.12). Assim, há um maior controle do que é exibido, já que após um regime militar que censurava, houve uma mudança brusca no que era mostrado na televisão, principalmente na programação infantil, que deixou de ter a preocupação com o educativo e passou a ter o papel de entretenimento.

Por volta de 1996, os programas voltados para as crianças vão perdendo espaço para outras atrações das emissoras. A década de 90 ainda teve espaço para algumas atrações como Tv Colosso, Cometa Alegria e Angel Mix, apesar do número cada vez menor de atrações, houve a exibição de telenovelas infantis como Caça Talentos (1996 – 1998) e Chiquititas (1997 – 2001)16. A segunda foi uma produção em parceria com uma emissora argentina, a Telefé, sendo considerada um marco na teledramaturgia infantil.

A fase da convergência e da qualidade digital é a com maior interatividade entre os diversos meios de comunicação, como a televisão e a internet. O espaço infantil na grade de programação é cada vez menor, tendo eles acesso muitas vezes a programas que não são recomendados para as duas faixas de idade. Colvara citando

15 Portaria é um ato administrativo normativo que visa à correta aplicação da lei no senado, expressando em minúcia o mandamento abstrato da lei, com o mesmo valor da regra legislativa. Sendo usada na maioria dos casos para detalhar leis. 16 A transmissão foi dividida em 5 temporadas. 28 de julho de 1997 – 31 de julho de 1998 (1ª temporada), 3 de agosto – 25 de dezembro de 1998 (2ª temporada) 5 de abril – 9 de julho de 199 (3ª temporada), 12 de julho – 31 de dezembro de 1999 (4ª temporada) e 17 de abril de 2000 – 19 de janeiro de 2001 (5ª temporada). 30

Potsman (1999) “aponta uma precocidade forçada, pois não há mais espaço para esta infância, a instantaneidade é a palavra de ordem” (p.15). Elas têm acesso cada vez mais cedo a assuntos do mundo adulto, encurtando a inocência infantil.

A televisão está em constante mudança desde o seu surgimento, evoluindo de acordo com as tecnologias e com transformações ocorridas na sociedade. Atualmente, nas emissoras de maior audiência da televisão aberta, há pouquíssimos programas para o telespectador infantil. Segue abaixo a quantidade de horas semanais de atrações para crianças nos seis principais canais abertos, de acordo com a programação do estado do Rio de Janeiro:

- Rede TV!: Zero hora. - Rede Globo: Zero Hora17.

- Rede Record: 1h35m.

- Rede Bandeirantes: 4h25m.

- Sistema Brasileiro de Televisão (SBT): 43h10m.

- Tv Cultura: 69h47m.

Dentro desse cenário em que há poucas opções para a criança telespectadora, duas emissoras investem na programação voltada a esse público, a Tv Cultura e o SBT. A Tv Cultura possui uma programação voltada para educação, já o SBT tem programas que não se preocupam com essa questão, mas que fazem bastante sucesso entre o público infantil. Investindo desde sempre em programas como Chaves, o Sistema Brasileiro de Televisão viu nas telenovelas infantis um ambiente a ser explorado e acertou em cheio.

Diversos foram as telenovelas infantis de sucesso desde a década de 90, como em 1991, Chiquititas em 1997, O Diário de Daniela em 2000, Gotinha de Amor e em 2001, Cúmplices de Um Resgate em 2002, todas

17 Na Rede Globo, há a transmissão de 3 programas classificados como livres, mas que seus formatos não se encaixam em uma programação voltada apenas ao público infantil, são eles, Os trapalhões, A cara do pai e Malhação. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, são consideradas crianças as pessoas de até 12 anos incompletos. 31

transmitidas pelo SBT, Floribella em 2005, transmitida pela Band, Rebelde em 2005 pelo SBT. Apenas Chiquititas e Floribella foram produções nacionais, sendo a primeira uma coprodução Brasil e Argentina.

Após Rebelde, em 2005, há uma falta dessas produções, até o SBT começar a produzir remakes das telenovelas infantis que já havia transmitido. A primeira novela foi Carrossel, em 2012, uma adaptação escrita por Íris Abravanel.

O interesse desse estudo são as telenovelas infantis lançadas a partir de 2012 pelo SBT, que intensificaram a relação das crianças com as novelas e a televisão. A contextualização foi necessária para entendermos que a teledramaturgia infantil esteve sempre na programação, passando por altos e baixos. No país em que a novela faz parte do cotidiano dos cidadãos ditando moda e é agente de construção de personalidades, era inevitável que ganhasse todas faixas etárias.

Com o sucesso de Carrossel, o Sistema Brasileiro de Televisão continuou investindo em novelas para o público infantil, sendo uma das poucas emissoras com uma teledramaturgia para as crianças. As novelas seguintes foram: Chiquititas (2013), Cúmplices de um Resgate (2015) e Carinha de Anjo (2016). Todas elas versões brasileiras de enredos já existentes, muitos argentinos, e tendo os seus formatos originais já transmitidas pelo canal.

Como visto anteriormente, a teledramaturgia é agente de significação que auxilia na elaboração de uma identidade do indivíduo que acontece durante toda a sua vida. As crianças também transpassam por essa transformação e de uma forma ainda mais potente do que a que acontece com os adultos, já que estão em fase formação de suas personalidades.

2.2 Criança, mídia e representação

O processo de construção da identidade da criança está diretamente ligado às experiências que lhes foram proporcionadas, bem como aos grupos de convívio a que foi exposta e também as escolhas passíveis de ser tomadas. Essas experiências são peças importantes no que se refere a esta construção de identidade, uma vez que, proporcionam experiências e relações afetivas que são essencialmente um fator determinante em sua aprendizagem comportamental (LOPAS; COUTINHO, 2011, p.2). 32

A autora explicita como todo o meio em que a criança está inserida influencia na formação da sua personalidade. A mídia que ela tem contato também faz parte desse universo que irá moldar quem ela se tornará, visto que é através desse meio que ela fantasia vivências, projeta-se em personagens, em situações vividas por eles, espelha neles sentimentos, além de reproduzir o que vê. Joice Araújo Esperança e Cleuza Maria Sobral Dias afirmam que

No cenário contemporâneo, as relações que as crianças constroem no seu cotidiano passaram a ser intermediadas pelas experiências vividas via comunicação televisiva. Em razão disso, podemos afirmar que a mídia excede os limites do entretenimento, constituindo-se em um importante elemento formador, devido ao papel que desempenha no processo de educação (2008, p.1).

As telenovelas infantis são parte da rotina das crianças e junto com outros programas, como os desenhos animados, auxiliam na formação da estrutura social que elas estão inseridas. Há o horário dos desenhos, da escola, da novela, do dever de casa, sendo quase impossível conseguir separar as mídias da vida dessas crianças que crescem em um mundo globalizado. Esperança e Dias (2008) citando Buckingham (2002), destacam que “à medida que a mídia converge, a lógica para separar a mídia verbal da visual, ou as tecnologias eletrônicas das não-eletrônicas, ficará cada vez mais difícil”. Evidencia-se que não é possível mais separar os universos tecnológico analógico, sendo necessário o entendimento e a adaptação para que essa relação aconteça da maneira mais saudável possível, pois são eles que estão ajudando a moldar os adultos de amanhã.

Maya Götz (2016) diz que o telespectador mirim se imagina na posição do personagem e escolhe o acompanhar ao longo da história de acordo com os valores e objetivos similares aos deles, podendo até ser de gênero ou forma diferente deste, uma vez que não é isso que leva em consideração ao fazer a escolha. Em seu texto, ela vai desenvolvendo como a criança negocia a sua identidade através dos desenhos animados, pois em muitos momentos elas utilizam deles para expressar e entender sentimentos que possuem. Um episódio que aborde uma situação de bullying 33

vivenciada por um determinado personagem pode ser usado pela criança para trazer esse assunto aos pais ou para outras pessoas. Além disso, Götz cita que as crianças e adolescentes imitam frases e trejeitos que são vistos na televisão, sendo necessária uma atenção em relação a isso, já que podem repetir ações que prejudiquem o próximo e eles mesmos. Por isso, é necessário que eles assistam a programas que abram suas mentes, mudem estereótipos e que tenham o cuidado com a mensagem que estão transmitindo para esses telespectadores. Ademais, os adultos precisam prestar atenção nos detalhes que esses pequenos seres humanos carregam sobre o que assistem, pois muito disso irá fazer parte de suas identidades e muitas outras são tentativas de expressar opiniões e sentimentos que eles possuem. Como esclarece Lopas e Coutinho

A criança quando exposta a determinada mídia, seja a televisão ou a internet, está posta a receber informações sobre diversos tipos de personagens, fantasias, enredos e atmosferas ao mesmo tempo. Isso resulta em uma sucessiva série de projeções pessoais, onde ela tem a oportunidade de “fantasiar as vivências‟ daquele personagem, graças ao movimento de empatia a que estamos sujeitos; e isso a auxilia a desenvolver sua própria identidade, podendo também ocasionar consequências de caráter negativo ao seu desenvolvimento, dependendo da mensagem divulgada (2011, p.6).

As possibilidades da mídia em relação à formação da personalidade de uma criança são diversas e sensíveis, pois como declaram Esperança e Dias (2002) “sem as mediações necessárias, os/as telespectadores infantis não podem contar com a maturidade suficiente para filtrar e compreender as informações e visões de mundo transmitidas” (p.70). Dessa maneira, pode ser prejudicial à constituição da criança ser exposta a qualquer programa sem uma supervisão do que assiste, uma vez que ela está também desenvolvendo a capacidade de discernimento, porquanto que também constataram as autoras, que os telespectadores mirins constroem concepções de natureza, gênero, violência e consumo sob a influência dos desenhos animados e seriados, aos quais têm acesso.

Além de tudo, os programas infantis são um meio de sociabilização infantil, como pontuam Esperança e Dias 34

Ao pensar nas interações que as crianças estabelecem com as mídias, há ainda que se considerar os vínculos, as rodas e os grupos em que se desenvolvem conversas e brincadeiras, pois as mídias são, para as crianças, “elos” de ligação com o outro, uma referência compartilhada capaz de intermediar relações entre pares (2008, p.15).

O produto midiático é um dos meios que as crianças utilizam para socializar, visto que elas compartilham de um mesmo referencial, que as unem em um grupo social importante, o qual possibilita a troca de informações e a interação. As brincadeiras sempre desempenharam esse papel inclusivo, mas com o advento das mídias, há mais uma possibilidade. Esperança e Dias citando Brougère (2004) relatam que

De acordo com o referido pesquisador, o grande valor da televisão para a infância reside no fato de que ela oferece às crianças, que pertencem a ambientes diferentes, referências únicas para a organização de interações coletivas: “Numa sociedade que fragmenta os contextos culturais, a televisão oferece uma referência comum, um suporte de comunicação” (2008, p.8).

A televisão é esse caminho para uma sociabilização, pois permite que diversas pessoas, não importando classe social, tenham um repertório comum, podendo, assim, usar dele para engatilhar uma conversa - como é muito comum vermos em lugares públicos, em ônibus ou filas de banco, pessoas comentando de alguma novela ou algo a que assistiram. Com as crianças, a mídia também possui essa potência de servir de base para uma interação em diversos ambientes, como na escola, espaços de recreação, entre outros. Com elas, houve o surgimento de uma nova forma de relação e um novo meio de aprendizagem. Novamente, Esperança e Dias explicam como a televisão trouxe para o mundo contemporâneo uma nova estrutura:

No cenário contemporâneo, muitas relações que as crianças estabelecem com seus pares passaram a ser intermediadas pelas experiências possibilitadas pela comunicação televisiva. O formato homogeneizante da programação infantil permite que crianças de diferentes 35

partes do mundo assistam aos mesmos desenhos animados, aos mesmos personagens criados virtualmente e aos mesmos astros mirins. Além disso, assistem as mesmas campanhas publicitárias de salgadinhos, e roupas, de jogos e brinquedos. Diante dessa condição, a TV educa as crianças, uma vez que fabrica modos de ser infantil (DORNELLES, 2005), interferindo nos modos de pensar, sentir e desejar, nas formas de relacionamento que estabelecem com seus pares e com os adultos, na construção de conceitos e valores. Pensar as infâncias no contexto da contemporaneidade, requer, portanto, considerar o predomínio da linguagem audiovisual e o papel das corporações da mídia nas experiências extra-escolares das crianças (2008, p.2).

O predomínio da linguagem audiovisual não é só percebido nas falas infantis, mas também nos objetivos que as crianças possuem. É comum que as mochilas estampem personagens de desenhos ou novelas, que as roupas sejam parecidas com os personagens, que o arco de cabelo seja igual ao da uma das meninas da telenovela atual, entre muitos outros objetivos com esses temas. O consumo está diretamente relacionado a esse ambiente, principalmente quando o público-alvo é mais influenciável porque ainda está em formação da personalidade. Para além de ter um determinado produto, ser dono de um objeto que está na moda ou é igual ao da televisão é um status entre as crianças.

Esperança e Dias comentam no texto que a posse desses bens relacionados a desenhos animados e seriados incitava uma hierarquia no grupo observado. A popularidade e a aceitação do grupo dependiam também dos objetos que cada um possuía. Assim, quem era dono dos brinquedos ditava as regras das brincadeiras, sendo o grupo subordinado à vontade dele. As autoras confirmam isso ao relatarem que

A posse de produtos constituía-se em fator de pertencimento e de diferenciação, garantindo privilégios a quem os possuía, como a posição de líder no grupo e na organização das brincadeiras. Isso se manifestava não apenas nos momentos em que brincavam, mas, igualmente, nas trocas, nos acordos, nas negociações e nas interações que estabeleciam, nas quais a popularidade e a aceitação grupal das crianças oscilavam conforme os 36

brinquedos e os objetos que possuíam e que levavam para a escola em dias alternados (2008, p.9).

É evidente que o consumo é um mediador das relações infantis, que utiliza dos meios audiovisuais para conquistar esse espaço. A partir da década de 80, quando as crianças foram vistas como consumidoras e não mais como filhos de consumidores, houve um movimento de busca desses clientes pelos publicitários.

2.3 Criança e consumo

O consumismo é um hábito que é desenvolvido. Com o mundo globalizado, todos são impactados pela mídia, assim, o ambiente está mais propício ao desenvolvimento de consumidores. Dessa forma, com as crianças sendo vistas como compradores mirins e o acesso constante aos meios de comunicação, a formação de crianças consumidoras tem grandes chances de ser eficiente. De acordo com Baumel et al. (2014, p.1):

o capitalismo e o poder do consumismo estão tão presentes nos dias atuais, que acabam envolvendo principalmente as crianças, que são mais fáceis de serem influenciadas do que os adultos. As crianças de hoje são vistas pela mídia como adultos.

Impactadas cada vez mais cedo pelo consumismo, os meninos e meninas tornam-se consumidores fiéis de muitas marcas e criam um hábito de consumo que reproduzem durante toda a vida. Além disso, de acordo com o programa Criança e Consumo18 da ONG Alana19, as crianças brasileiras são fortes influenciadoras das compras feitas pela sua família, representando 80% das decisões de compras de uma família20, essas decisões são sobre quase todo o tipo de compra, como carros, roupas,

18 Programa iniciado em 2006 com a missão de promover a conscientização e a defesa dos direitos das crianças frente à comunicação mercadológica. 19 Criada em 1994, o Alana é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que aposta em programas que buscam a garantia de condições para a vivência plena da infância. 20 Pesquisa feita pela TNS/InterScience em outubro de 2003. 37

eletrodomésticos e alimentos. Um consumidor infantil influi nas escolhas da família, aumentando o consumo dela e se tornará um consumidor ativo quando adulto, possibilitando, assim, um ciclo de aquisição longo.

A televisão é um dos principais espaços para que o contato com o consumismo aconteça precocemente. Belizário, Eberle e John (2010, p.4) citando Susan Linn (2006) ressaltam que a

autora ainda acrescenta que através do grande tempo que as crianças ficam expostas diante da televisão, é praticamente impossível que elas não sejam influenciadas de alguma forma por este meio de comunicação, seja por meio de comportamentos, linguagens, modos de vestir, assuntos discutidos ou os próprios brinquedos utilizados, que ganham formas reais dos personagens apresentados na programação.

Os desejos de adquirir os produtos são iniciados por essa exposição de possibilidades na televisão. Ela apresenta aos telespectadores uma infinidade de itens que, ao serem comprados, atrelam-se muitas vezes aos programas que eles assistem, potencializando o desejo. Apresentar durante o intervalo de uma telenovela, como Cúmplices de um Resgate, por exemplo, uma mochila estampada com as personagens principais, ou mostrar uma boneca que é a réplica da Isabela ou da Manuela21, estimulam o querer e geram um valor considerável a esses produtos, pois, como mencionado anteriormente, a criança que possui esses objetos fica no topo da hierarquia de popularidade em seu grupo social.

Os itens que dão um lugar de destaque a criança em seu meio social, são aqueles que estão em maior evidência na mídia, dessa forma, há uma supervalorização deles que reflete em seus custos no mercado. Foi feita uma busca pela internet pelos preços de 3 itens escolares, caderno de 96 folhas com espiral universitário e capa dura, estojo com dois compartimentos e mochila com rodinhas, com o objetivo de constatar a diferença de valores de artigos que possuíam a mesma finalidade, mas que apresentavam estampas diferentes. A comparação foi feita entre

21 Personagens principais da novela, que são gêmeas e interpretadas pela atriz Larissa Manoela. 38

produtos que apresentavam a estampa relacionada à telenovela Cúmplices de um Resgate e um correlato com uma estampa qualquer.

Tabela 1– Comparativo de preço

Item Tema Outro tema Telenovela Caderno R$12,72 R$9,25 Estojo RS27,99 R$9,90 Mochila R$80,00 R$59,90

De acordo com os números, fica evidente como o preço dos produtos varia por causa da estampa relacionada à telenovela. Os consumidores mirins são induzidos a querer os itens que remetem à novela, apresentando as possibilidades de compra, sem levar em consideração o valor de cada um, assim, como argumentam Lopas e Coutinho:

a publicidade apresenta produtos e ofertas como se todos tivessem condições de adquiri-las, como se fosse só uma questão de escolha. Crianças são, portanto mais vulneráveis, uma vez que, não compreendem que elas as vezes não possuem poder para consumir aquele produto específico (2011, p.5).

Conforme Postman (1999, apud Pereira, 2008, p.10, apud Baumel et al., 2011, p.4), “(...) a televisão revela às crianças, na mais tenra idade, as alegrias do consumismo, o contentamento decorrente de comprar quase tudo”. De acordo com Baumel et al., esse contato acarreta um amadurecimento precoce, pois as crianças começam a ter contato com uma questão que deveria apenas ser dos adultos. O excesso de consumismo pode gerar consequências pessoais, como vícios de tabaco e álcool, e coletivas, como o excesso de lixo produzido.

Para além disso, desenhos animados e telenovelas produzem estereótipos e estilos de vidas que influenciam os telespectadores ao criarem padrões a serem alcançados. As mídias são importantes no desenvolvimento da personalidade das crianças, mas são um risco, caso não haja uma mediação dessa relação. 39

Paulo Freire (1996, apud Lopas. Coutinho, 2011, p.7), afirma que

Ensinar exige bom senso, e isso significa respeitar a capacidade da criança de refletir sobre seu consumo individual, e não privá-la disso. Ensinar exige criticidade, exige que como responsável e educador, deve-se ensinar a criança a aprender com os próprios erros e acertos. Ensinar que consumir é errôneo, é uma lição utópica, visto que, ser humano é estar condicionado ao consumo, basta que se compreenda os limites e as consequências desse consumo.

Como já visto, a novela é um espaço de múltiplas possibilidades que podem ser benéficas ou maléficas. As emissoras transmitem programas sem questionarem muito as suas consequências perante quem assiste, dessa forma, o espectador precisa desenvolver a capacidade de questionamento, para que não seja influenciado de maneira negativa, entretanto, para que haja esse desenvolvimento, é necessário alguém para ensinar, ainda mais em tempos que as telenovelas infantis ganham crescentemente espaço entre os telespectadores mirins.

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3 CRIANÇA-ADULTO? COMO O EDUCADOR AUDIOVISUAL PODE INTERFERIR NA ADULTIZAÇÃO CRIADA PELA MÍDIA

A telenovela Cúmplices de um Resgate, exibida na emissora SBT entre os dias 3 de agosto de 2015 e 13 de dezembro de 2016, é o remake da novela mexicana Cómplices al Rescate, exibida no Canal de Las Estrellas entre 7 de janeiro e 12 de julho de 2002, já tendo sido exibida pelo SBT no mesmo ano. Cúmplices de um Resgate conta a história de duas irmãs gêmeas que são separadas quando nascem, Manuela (Larissa Manoela) e Isabela (Larissa Manoela), a primeira fica com a mãe biológica e a segunda é sequestrada e passa a fazer parte de outra família. As duas se reencontram 12 anos depois, tornam-se amigas e decidem trocar de lugar, para que Isabela, que não sabe cantar, faça parte de uma banda, assim, Manuela, que canta muito bem, passa a ficar no lugar da irmã em alguns momentos, as duas inicialmente não sabem que são irmãs, apesar da grande semelhança. No decorrer da história, o pai da Isabela acaba falecendo e, como não deixa herança para a mãe da Bela, sua esposa, ela fica furiosa e resolve sequestrar Manuela para ficar com o dinheiro que ela receberia de salário por ser integrante da banda.

O remake de Cúmplices faz parte de um investimento do Sistema Brasileiro de Televisão no público infantil. A escolha dessa telenovela para análise aconteceu, após o meu estágio da disciplina de “Pesquisa e Prática de Ensino”, no Jardim Escola Sonho de Criança, situado em São Gonçalo, Rio de Janeiro, em uma turma do segundo ano do ensino fundamental. A sala era composta por 22 crianças, sendo 7 meninos e 15 meninas com idade média de 8 anos. Durante o estágio era recorrente na fala das crianças a referência às séries, novelas, desenhos, entre outros produtos midiáticos, e a novela Cúmplices de um Resgate era a preferida da maioria dos alunos. Despertou a minha atenção, em especial, o interesse das meninas na vida pessoal da atriz principal da telenovela, Larissa Manoela; era recorrente comentarem sobre os namoros da atriz e discutirem sobre qual dos namorados elas mais gostavam.

A temática do namoro era bastante presente nas conversas, como foi notado, por exemplo, em um exercício proposto, no qual as alunas tinham de filmar os coleguinhas de sala e fazer perguntas. Observou-se que foi perguntado a todas as meninas qual menino elas gostavam na sala. Além disso, ao serem questionadas sobre como era a narrativa da telenovela Cúmplices, elas evidenciaram a questão 41

amorosa das personagens principais e a rivalidade entre duas personagens femininas na novela.

Encontrar na fala de crianças de 8 anos assuntos como esse despertaram o meu interesse sobre o que elas assistem e como isso influencia suas formações de personalidade, principalmente em relação às meninas, já que esse comportamento foi encontrado apenas com elas, os meninos não queriam saber do assunto namoro e se protegiam quando alguma coleguinha tentava introduzi-lo. Por ser mulher e me preocupar com a formação de jovens em uma sociedade que perpetua ideais machistas, quis entender como essa relação acontecia e como um educador audiovisual poderia mediar o relacionamento de crianças com os produtos midiáticos, buscando sempre despertar o questionamento do que é visto.

Para entender como esse processo poderia acontecer, busquei analisar a telenovela mencionada diversas vezes por eles. Assisti aos 15 primeiros capítulos e dois outros que foram importantes para narrativa, o capítulo 302 e o 353, pois neles as personagens principais dão seus primeiros beijos.

3.1 Cúmplices de um Resgate

Os primeiros 15 capítulos da telenovela apresentam a narrativa principal que irá nortear toda história. No primeiro capítulo é usado um artifício lúdico para explicar que uma das gêmeas foi tirada de sua mãe ao nascer. Nele, a personagem Dóris (Duda Wendling), uma menina de uns 7 anos, vai à biblioteca ler um conto de fadas e, a partir disso, somos levados até um reino, no qual uma camponesa grávida, chamada Rebeca (Juliana Baroni), espera a volta do seu marido. Ela acaba dando à luz a duas meninas, mas desmaia logo após o parto, em seguida um suposto médico entra em sua casa e leva um dos bebês. A bebê sequestrada é levada para a majestade Regina (Maria Pinna), que fingia estar grávida de seu marido Orlando (Alexandre Barros).

Passam-se 12 anos na história e conhecemos a Manuela e a Isabela, duas gêmeas que vivem em mundos opostos. Manuela é uma camponesa muito meiga, que tem uma mãe e uma avó muito carinhosas, já a Isabela é uma menina estressada, que vive em uma mansão e tem uma relação ruim com a sua mãe. Após apresentar esse cenário, voltamos para o ambiente que a narrativa irá acontecer, um pequeno vilarejo em São Paulo. 42

A escolha por explicar, de forma lúdica, como um bebê é sequestrado sem que a mãe perceba ou sem que ela saiba anteriormente estar grávida de gêmeas, foi assertiva, pois tudo é possível no conto de fadas. Além disso, a maldade da Regina foi suavizada ao vermos a história em um âmbito mais infantil, assim, o espectador mirim teve contato com uma narrativa possível de ser compreendida por ele. O lúdico é muito utilizado para adequar a história à faixa etária da criança que ainda está desenvolvendo o seu discernimento de mundo, sendo utilizado por eles para compreenderem sentimentos e ideias, como visto no segundo capítulo. Esse momento conto de fadas aconteceu apenas no primeiro capítulo, entre aqueles que foram analisados.

Um universo mágico foi criado para através da linguagem audiovisual uma história poder ser contada e compreendida de forma facilitada pelos espectadores. Remeter os figurinos e cenários aos contos de fadas, já conhecidos pela maioria daqueles estão assistindo, abre para a possibilidade daquela história ser apenas fantasia, já que não há muita verossimilhança com o ambiente em que a criança que assiste se encontra, além de remeter a histórias familiares ao público, fortalecendo a ideia de que a história contada pode não ser real. No mundo da fantasia, tudo é possível, dessa maneira ele é um caminho facilitador para a narrativa.

Figura 1: Regina e Orlando como reis

Fonte: Print screen do primeiro capítulo22

22 Disponível em: http://www.sbt.com.br/cumplicesdeumresgate/videos/categoria/6331/Cap-01-03-08- 15.html, acesso em dezembro de 2017. 43

Após esse primeiro ponto, somos levados pela Dóris até o Vilarejo dos Sonhos, onde está a Manuela cantando com sua banda em um coreto na praça; alguns personagens são mostrados e logo depois somos levados até o quarto da Isabela, que está cantando, mas de uma forma bem desafinada. Além do visual oposto das duas irmãs, a forma como cantam reforça a oposição da personalidade das duas personagens, que são uma o contrário da outra. A demarcação da personalidade dos personagens nas vestimentas e em seu modo de fala é característico dessa narrativa, os personagens ou são bons, ou são maus, inteligentes ou desastrados, o meio termo não está presente nos capítulos colocados em análise.

O lúdico é utilizado de outras maneiras na novela, como dando voz aos pensamentos dos animais e através da computação gráfica, na qual vários elementos aparecem na tela, como quando há conversas por mensagem de texto e os balões de conversas são vistos, ou quando o tempo passa e o cenário é enquadrado e uma mão desliza um botão que faz o dia virar noite. Durante todos os capítulos há inserções dessas imagens que remetem à tecnologia, deixando a narrativa bem mais dinâmica ao tornar a tela interativa, além de despertar a atenção do espectador. Ademais, o uso de efeitos especiais, auxilia na diminuição da verossimilhança, possibilitando interpretações menos rígidas da narrativa.

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Figura 2: Passagem de tempo na telenovela

Fonte: print screen do primeiro capítulo23

A questão visual é bem marcada, como dito anteriormente, nesse sentido, a personalidade dos personagens é evidenciada em suas roupas. A Rebeca é uma mulher doce, amorosa, assim, veste roupas coloridas, saias rodadas, já a Regina é uma mulher rígida, dessa forma, as suas roupas são mais sérias, muitas vezes utilizando alfaiataria.

23 Disponível em: http://www.sbt.com.br/cumplicesdeumresgate/videos/categoria/6331/8bdbfd3bc64bd9d904cc957034a d8996/Capitulo-01-030815-Parte-3.html, acesso em novembro de 2017. 45

Figura 3: Regina e Rebeca

Fonte: print screen do capítulo 10124

As gêmeas também possuem um estilo próprio caracterizando cada uma, de forma a ser fácil reconhecer quem é quem e para deixar visível a diferença de personalidade entre elas. Apesar de estarem quase sempre vestindo uniforme escolar, assim como as outras crianças da novela, elas usam acessórios que as singularizam. Manuela é mais meiga, ingênua e muito feliz, já Isabela é mais ríspida, durona e um pouco infeliz. Seus acessórios seguem suas características, a primeira usa frequentemente uma faixa no cabelo de três tiras finas que variam de cor e, quando não está de uniforme, usa roupas floridas. Já a Bela usa tiaras grossas de cores fortes, como preto, vermelho e roxo, usa óculos de grau com a armação em preto com brilhos, suas roupas são majoritariamente pretas e tem mechas roxas no cabelo. As duas são bem opostas, na personalidade e em suas roupas.

24 Disponível em: http://www.dailymotion.com/video/x3mhzxr, acesso em novembro de 2017. 46

Figura 4: Manuela e Isabela

Fonte: print screen do capítulo 225

3.2 Construção de Personalidades

A individualidade de cada personagem é bem demarcada visualmente, de uma forma bem extrema, da mesma maneira que as características dos personagens foram criadas. Há uma divisão marcada entre o bem e o mal, é raro ver um personagem bonzinho fazendo algo ruim ou ao contrário. O mal tem como maior representante a mãe da Isabela, a Regina, que faz de tudo para conseguir o que quer e não nutre nenhum tipo de amor por alguém. Como ela roubou a sua filha, tenta ao máximo mantê-la longe dos holofotes, mesmo a menina sonhando se tornar cantora. A primeira cena da Regina é uma discussão com a Bela sobre a vontade dela de fazer as audições na gravadora em que seu tio Geraldo (Nando Pradho) trabalha, a Dó-Ré- Music, mas a mãe diz para a menina que ela canta muito mal e que irá se frustrar caso tente entrar para a banda que o seu tio está formando. As falas maldosas da mãe são constantes no cotidiano da filha, evidenciando como isso influenciou a personalidade da Isabela, que reproduz a forma como é tratada. Além dela, há outros vilões na trama que tentam sempre impedir que a Manuela ou a Isabela consigam o que elas sonham.

Já o bem é representado pela mãe da Manuela, a Rebeca, uma moça simples, batalhadora, quase ingênua, que ajuda a todos e nunca se desvia do bom caminho.

25 Disponível em: http://www.sbt.com.br/cumplicesdeumresgate/videos/categoria/6349/7cf10bc40c0e30c815839bce885 937c9/Capitulo-3-050815-Parte-3.html, acesso em novembro de 2017. 47

As duas personagens são extremos, não existem momentos que a Regina é boa ou que a Rebeca é má, são estereótipos delimitados, sem deixar espaço para um meio termo. A verossimilhança é prejudicada nesses momentos, pois restringe as possibilidades do ser. Entretanto, há a possibilidade de mudança dos personagens. Durante a história, as pessoas ruins vão aprendendo com seus erros e mudando aos poucos, até se regenerarem e se tornarem boas, como foi o caso da Isabela, que aos poucos vai mudando o seu modo de ver a vida. Em vários momentos, palavras de inspiração e reflexão sobre a vida acontecem na novela, como quando o Pastor Augusto (Augusto Garcia) ajuda um morador de rua e eles conversam sobre serem iguais, sendo esse um ponto positivo na narrativa, pois discute as relações pessoais.

A novela levanta questões que são importantes para a formação desses telespectadores mirins, que utilizam desse repertório para criar uma base de entendimento de mundo. Cúmplices de um Resgate apresenta, nesses capítulos analisados, diversas narrativas e estruturas familiares, eles não entram em questões consideradas mais polêmicas, como gênero e opção sexual, mas discutem temas como perda de familiares, abandono, mentiras e a relação entre a igreja católica e a protestante. Sendo um gancho para que a conversa possa acontecer dentro de casa, como visto anteriormente, as telenovelas são um caminho para o diálogo entre a família, podendo começar desde cedo com os folhetins infantis. Entretanto, é necessário ter a preocupação com o que está sendo representado, pois os telespectadores mirins ainda não possuem o discernimento necessário para e nem o costume de questionar o que está sendo assistido.

3.3 Adultização

Em umas das primeiras cenas da novela, a personagem Manuela conversa com a sua mãe e a sua avó sobre a apresentação que acabou de fazer. Após sua mãe dizer que a banda arrasou, a menina responde: “É, e foi tudo ensaiado e trabalhado em equipe para chegarmos até aqui”. Após receber outros elogios, continua: “Obrigada, vozinha. Obrigada, mãe, tudo o que vocês falam para mim é muito importante, viu?” As falas da menina são bem mais maduras do que de uma menina de 12 anos, é recorrente ver a Manuela falando frases que não condizem com a sua idade. Ela é uma menina muito doce e educada, mas que possui um linguajar diferente do que é visto nas crianças da sua idade. Além disso, as questões enfrentadas por ela 48

não são comuns em sua faixa etária. Manu e Isabela passam por questões de rivalidade com outra menina que quer virar a vocalista da banda, ademais, as duas vivem adversidades familiares que as induzem a ter uma postura mais adulta, como quando a Manuela dá conselhos de vida para a mãe e a Bela precisa lidar com a sua mãe sempre tentando estragar os seus planos.

A adultização26 das crianças é evidente em suas falas e situações que vivenciam, como, por exemplo, no trecho em que a Priscila (Giovanna Chaves), menina que quer ficar no lugar de vocalista da banda C1R, tenta acabar com o namoro entre Manuela e Joaquim (João Guilherme Ávila) de várias formas, assim como na parte em que envia diversas cartas se passando por uma fã do Joaquim, deixando Manu com ciúmes.

As narrativas apresentadas são comuns com personagens adultos. Em alguns momentos, temos a impressão de que é uma história de adultos sendo representada por crianças. O mundo infantil está sempre presente nas vestimentas, como o uniforme, mas há momentos que os personagens não são crianças, são mini adultos. Trabalham questões amorosas complexas e armam contra os outros, essas não deveriam ser preocupações para uma criança.

Essa adultização não está restrita apenas à representação, os atores da novela também apresentam essa mudança. A atriz Larissa Manoela e o ator João Guilherme, que interpretaram Manuela/Isabela e Joaquim começaram a namorar durantes as gravações da telenovela, eles tinham respectivamente 15 e 13 anos. Em suas redes sociais, colocaram declarações de amor para oficializar o namoro, João escreveu em sua página: “Vida, meu amor, amor da minha vida, pequena, linda, tumtum, enfim... São muitos apelidos carinhosos, mas todos se referem a você! Larissa, eu te amo muito e sempre vou te amar! Você hoje faz 15 anos. Há 15 anos, papai do céu te trouxe de presente para o mundo! Parabéns"27. De acordo com o estatuto da criança e do adolescente eles não eram mais considerados crianças, pois possuíam mais de 12 anos, entretanto, são jovens adolescentes, que estão em um relacionamento sério e fazendo declarações de amor como adultos.

26 De acordo com Andrade e Odinino, 2017. 27 Retirado de: http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/12/joao-guilherme-assume-namoro- comlarissa-manoela-e-se-declara-te-amo.html, acesso em novembro de 2017. 49

O título da matéria no site Ego que divulga o namoro dos dois é “João Guilherme assume namoro com Larissa Manoela e se declara: “Te amo””28.Esse tipo de notícia é muito comum, as crianças e jovens são cada vez mais vistos como mini adultos, principalmente aqueles que trabalham com a mídia. É notável a mudança e amadurecimento das crianças quando passam a ser reconhecidas, como um exemplo, está a atriz Milie Bobby Brown, a Eleven da série Stranger Things29. No lançamento da primeira temporada da série, a menina com 12 anos, apareceu com um vestido de cor bege rodado e com um tênis dourado; um ano depois, na estreia da segunda temporada, a atriz se apresentou com um vestido com mangas de couro e um sapato de salto.

Figura 5: Milie Bobby Brown em 2016 e 2017

Fonte: Site BuzzFedd30

A postura da Milie e a sua maquiagem também mudaram em um ano. A indústria que está por trás e que possibilitou essa pessoa tornar-se pública e famosa influencia na imagem dos famosos e os “amadurece”, principalmente as meninas. Os meninos da série estão com a mesma idade que a atriz, mas continuam transmitindo

28 http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/12/joao-guilherme-assume-namoro-com-larissa- manoelae-se-declara-te-amo.html, acesso em novembro de 2017. 29 Série do streaming Netflix lançada em 2016, que tem como protagonistas 5 meninos e 1 menina. 30 https://www.buzzfeed.com/ramosaline/o-antes-e-depois-de-millie-bobby-brown-abriu- umdebate?utm_term=.vkDN6kE5W#.axW0GQ54z, acesso em novembro de 2017. 50

a imagem de crianças. A mulher precisa propagar a ideia de femme fatale, de ser sexy, muito mais cedo que o homem, uma vez que o senso comum difunde a concepção de que as mulheres amadurecem antes que os homens e, com isso, há uma cobrança excessiva sobre as meninas.

Retomando a Cúmplices de um Resgate, as personagens femininas precisam lidar com muitos dilemas que deveriam surgir apenas na vida adulta, questões essas que nos capítulos analisados só aparecem entre as meninas. As disputas e as maldades são, na maioria das vezes, protagonizadas por pessoas do sexo feminino. Assim, questiona-se o que está sendo transmitido para as telespectadoras mirins, pois as telenovelas são espaços importantes de formação do eu para essas crianças. Como já visto no segundo capítulo desse trabalho, é através da mídia que muitos dos telespectadores negociam as suas identidades, conhecem novos mundos e armazenam referências, além de reproduzirem o que é visto.

Os capítulos 302 e 353 foram escolhidos para análise, pois são neles que as gêmeas beijam os meninos que elas são apaixonadas. A separação desses capítulos aconteceu, já que neles há a realização de um desejo das protagonistas; neles, elas conseguem o namorado que irá dar o final feliz que faltava.

3.4 Infância e namoro

No capítulo 302, a Manuela e o Joaquim estão no casamento da tia dela, a Helena (Thays Gorga), e conversam sobre o pedido de namoro que o menino tinha feito à menina, mas que ainda não tinha sido respondido. Então, ele a pede em namoro novamente, ela aceita e eles se beijam de forma romântica, com uma trilha sonora cantada por ele sobre amar. A cena é bem romântica, típica de filmes Chick Flick31, deixando o telespectador suspirando pelo casal na tela, entretanto, é necessário levar em consideração que são duas crianças que estão ali e que esse tipo de cena alimenta um imaginário em relação a relacionamentos de forma muito precoce. A referência da cena é a relação adulta, sendo a única diferença é que são duas crianças na cena, mas as falas e comportamentos são de adultos.

31 "Chick Flick" é um termo em inglês que se refere aos filmes feitos para o público feminino, geralmente são comédias românticas. A narrativa gira em torno de relacionamentos, com as protagonistas sempre almejando ter um parceiro perfeito. 51

Figura 6: Manuela e Joaquim se beijam

Fonte: print screen do capítulo 30232

Esse imaginário continua sendo alimentado no capítulo 353, quando a Isabela e o Téo se beijam na praia. Eles estão sentados no meio de um coração formado por várias velas na areia, com o mar e a lua ao fundo. Um cenário muito romântico, mas com duas crianças sozinhas, seria quase impossível que tal cena se repetisse na vida dos telespectadores, já que não condiz com a faixa etária deles. Nesse mesmo capítulo, a personagem Priscila tenta separar Manu e Joaquim ao enviar cartas de uma suposta fã para ele; há, portanto, a tentativa de separar um casal e uma briga por ciúmes, retomando a ideia de que a narrativa só se diferencia das novelas para adultos pelos atores serem crianças.

32 Disponível em http://www.dailymotion.com/video/x4v04yi, acesso em novembro de 2017 52

Figura 7: Isabela e Téo se beijam

Fonte: print screen do capítulo 35333

A reprodução dessas histórias pode ser prejudicial à formação da imaginação e dos desejos, principalmente das meninas, uma vez que a narrativa é exposta pelo olhar das protagonistas, como comentam Andrade e Odinino,

desde os modos de se vestir e se portar ao estilo de dançar, as condutas em geral podem estar apoiadas pela tendência de a menina ter a protagonista da novela como modelo, tendo em vista a importância desta narrativa no contexto da cultura brasileira, onde o papel do consumismo é preponderante no contexto das culturas infantis em nosso país. A partir disso, a criança passa por um processo de “adultização” precoce e por conseguinte de “erotização”, cujo aspecto remete ao universo adulto como principal referência (2017, p.61).

É preocupante perceber que uma novela produzida para o público infantil, reproduz o ideal de que uma menina só terá um final feliz quando tiver um namorado. Quase todos os personagens da trama terminaram com um par, associando a felicidade ao relacionamento, não importando qual a idade do indivíduo. A influência do que é apresentado na televisão sobre as crianças é expressiva e requer atenção, um exemplo visível de como o que elas assistem está nos produtos que elas compram e nas roupas que vestem.

33 Disponível em http://www.dailymotion.com/video/x60y0aq, acesso em novembro de 2017. 53

3.5 Cúmplices e o consumo

Em 2016, mais de sete milhões34 de itens licenciados da novela foram comercializados, entre eles, material escolar, perfume, bonecas, kit de festas, bijuterias, roupas, livro, álbum de figurinha, maquiagens e até mesmo extrato de tomate. Ao estampar a telenovela favorita das crianças em produtos, a venda pode expandir, pois, como já visto, as crianças são responsáveis por 80% das compras feitas em casa, assim, utiliza-se da falta de senso crítico delas para lucrar.

Cúmplices de um Resgate foi uma telenovela que inspirou a moda entre o público infantil, tendo vários acessórios vistos em tela sendo utilizados pelos telespectadores, como o arco com pompons usado pela Dóris e as faixas de cabelo da Isabela. São diversas as possibilidades de produtos com o tema da novela e, como o mercado consumidor infantil é mais fácil de ser induzido, há um conjunto favorável para a indústria.

Durante os episódios analisados, não foram encontradas ações de propagandas durante a narrativa, diferentemente de outra telenovela, Chiquititas35, em que propagandas de marcas eram feitas de forma explícita durante a história. Esse é um setor economicamente muito favorável para o as emissoras, uma vez que o retorno financeiro é bem alto. Por esse motivo, o SBT não quer deixar de investir nas telenovelas infantis.

Desde 2012, com o sucesso das novelas infantis, um novo local de referência na vida das crianças surgiu. Dessa maneira, é necessária uma atenção em relação ao que é assistido por elas e uma busca por incentivar o pensamento crítico, gerando, assim, um espaço potente de atuação para o educador audiovisual, o qual pode mediar essa relação.

3.5 O educador audiovisual e a mediação

Barbero (1997) citado por Ribeiro e Tuzzo (2013) afirma que o telespectador não é apenas um receptor de informações produzidas pelos meios de comunicação, mas também um produtor de significados. Não se pode resumir quem assiste em um

34 http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2016/12/13/os-numeros-de-cumplices-de- umresgate.html, acesso em 21/11/2017. 35 Telenovela exibida pelo SBT em 2013. 54

reprodutor do que vê, pois mesmo que de forma pequena, há um processo de questionamento sobre o que é visto. Ele completa afirmando que

o processo da recepção é mediado por práticas rotineiras que estão inseridas dentro de um contexto social e cultural do sujeito que recebe a mensagem. Essas práticas estão constantemente presentes nas interpretações que os receptores fazem de um conteúdo midiático (2013, p.3).

Barbero (2003) sugere que existem 3 lugares de mediação que interferem em como o receptor recebe. São elas: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. A cotidianidade familiar é um espaço primordial de reconhecimento, o autor observa que a família é o lugar em que o indivíduo se encontra como pessoa e que é o espaço no qual pode expor suas ânsias e frustrações. Já a temporalidade social é o tempo que os produtos midiáticos falam, podendo ser diferente o tempo da narrativa com a continuidade do tempo narrado, e a competência cultural é a bagagem cultural que o espectador possui, não somente vinda da educação formal, mas de todo o seu conhecimento adquirido, que irá dialogar com o que assiste. As mediações são feitas de forma inconsciente, levando em consideração esses fatores acima.

Como exposto anteriormente, a telenovela é um espaço relevante para o surgimento de debates de temas que são considerados polêmicos pela sociedade, além de ser um caminho que induz mudanças no corpo social. Entretanto, ela ainda pode ser um programa que fornece questões que não são saudáveis para o telespectador, perpetuando hábitos ruins e sem nenhum tipo de interesse além do entretenimento. A novela Cúmplices de um Resgate possui pontos positivos que influenciam o bom comportamento das crianças e as ajudam a entender muitas questões que ainda irão encontrar durante a vida, porém, reproduz ideias que muitas mulheres estão tentando desconstruir há algumas décadas.

Ribeiro e Tuzzo comentam que

A grande importância no meio de comunicação é a forma e a qualidade que se produz a mensagem. Levando esse pensamento para televisão brasileira temos um cenário atual onde a maior parte dos programas 55

não são educativos e nem possuem temas que proporcionam algum engrandecimento cultural. Esse é o problema, a má qualidade com que trabalham aqueles que detém o poder da informação como forma de alienação na construção da mensagem (2013, p.8).

Um dos pontos que prejudicam a formação de repertório dos espectadores mirins é a falta de preocupação em relação a alguns conteúdos que são exibidos, que, muitas vezes, mesmo preocupados e interessados no público infantil, os autores não buscam apoio de profissionais da área da educação infantil ou da psicologia para construírem enredos mais coesos para a faixa etária do público-alvo. Ribeiro e Tuzzo sugerem que seja feita uma mudança nos programas, tornando-os de qualidade e não desligando a TV, mas para que isso ocorra, há uma batalha enorme contra um sistema que detém muito poder na sociedade. Brigar contra as emissoras de televisão em busca de programas com maior qualidade para as crianças é necessário, mas poderá levar um tempo para que haja uma mudança significativa, assim, é preciso buscar meios mais imediatos que consigam despertar o olhar crítico nos espectadores que ainda estão em fase de formação e que são os mais influenciáveis.

Um meio que pode ser eficiente na mudança do olhar das crianças é através do educador audiovisual. Estando em contato com esse público em escolas e oficinas, é possível trazer para debate o que eles estão vendo em casa, quais são os programas que eles têm contato e trazer de forma natural o olhar crítico sobre o que é visto.

É fundamental que uma mediação mais direta seja feita, pois a televisão está em grande parte do cotidiano das crianças, elas a assistem durante horas, consomem produtos que veem nela, utilizam o que nela é transmitido para criar repertórios, para lidar com seus sentimentos e reproduzem muitas das falas, gestos, comportamentos e estilos de seus personagens favoritos. Os outros educadores precisam lidar com apostilas a serem preenchidas, provas a serem dadas e festas a realizarem, não sobrando tempo para trazer ao debate algo que está tão evidente dentro e fora das salas de aula.

Os educadores audiovisuais estão sendo formados e são um meio potente de mudança, agregando à educação básica um olhar diferente do que estão acostumados e tocando em assuntos que são evitados ao potencializar os lugares de mediação propostos por Barbero. Além de toda a potência de se ensinar o fazer, ver e compreender o audiovisual, esses educadores podem trabalhar com o cotidiano e 56

transformar esses pequenos seres, ajudando-os a se livrar das amarras dessa mídia homogeneizante.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As telenovelas estão inseridas no cotidiano da população brasileira há algumas décadas. Elas são consideradas parte da família, estando na sala enquanto jantam ou quando sentam para relaxar após um dia cansativo de trabalho, ao mesmo tempo em que são um gênero nacional de exportação mundial e muito rentável. A relação da população com um produto midiático de forma tão estreita instiga a entender como essa conexão acontece e quais são as suas consequências.

A novela influencia os horários domésticos, une a comunidade e é um espaço de expansão de diversos repertórios do expectador, além de ter a capacidade de alcançar diversos públicos e provocar o debate de questões consideradas tabus pela sociedade. Esse meio de comunicação possui diversas potências que mexem com a estrutura social, uma telenovela pode mobilizar uma nação contra um político, por exemplo, como também ajudar homossexuais a serem aceitos por suas famílias.

Através das narrativas trabalhadas nos folhetins, os espectadores são expostos a temas que auxiliam na formação de uma identidade. Ao trazer para a tela questões como relacionamentos extraconjugais, sexualidade, amores impossíveis, entre outras coisas, as telenovelas colocam o telespectador em contato com temas que talvez não tenham tido contato ainda ou que nunca teriam, dependendo do local em que eles vivem. O repertório expandido pela novela não é apenas cultural, mas também está no âmbito dos relacionamentos do indivíduo com ele mesmo e com a sociedade que o cerca. Através desse conhecimento, o telespectador consegue questionar, com família e amigos, assuntos que, antes desse contato, não seriam debatidos.

Paralelamente, esse produto midiático é responsável por uma grande renda das emissoras brasileiras, cada vez mais as telenovelas são exportadas, no entanto, o lucro não vem apenas disso, são diversos os produtos inspirados nas novelas. É comum vermos pessoas usando roupas e acessórios de personagens, gerando um mercado de consumo ativo e que se renova a cada nova narrativa. O consumo e as telenovelas estão sempre ligados, pois ela utiliza de diversos mecanismos para fomentar o mercado.

Desde muito cedo, o cidadão brasileiro é colocado em contato com as novelas, dando continuidade a um hábito nacional. Pensando nesse telespectador mirim, durante toda a trajetória da televisão, diversos programas infantis foram criados e a 58

telenovela foi um deles, entretanto, em 2012, houve um aumento expressivo no incentivo da produção das telenovelas infantis pelo SBT, sendo hoje um dos poucos canais abertos que possui uma programação voltada especificamente para esse público.

A relação da criança com a telenovela é semelhante a do adulto, porém é preciso levar em consideração que esse telespectador está em fase de formação da sua identidade e ainda não possui o discernimento desenvolvido, sendo um público- alvo vulnerável. Os desenhos animados e as telenovelas são muito utilizados pelas crianças na negociação da identidade infantil; nesse sentido, as referências assistidas auxiliam no entendimento de sentimentos, de situações e acontecimentos. O imaginário infantil ainda em formação precisa de um repertório para expandir e entender tudo o que se passa com eles e com o mundo ao seu redor e é na ficção televisiva que eles encontram muitos caminhos para desenvolverem as suas personalidades. Além disso, a televisão também é um caminho de sociabilização, pois, por terem conhecimentos parecidos, crianças de diversos lugares conseguem utilizar isso como um gancho para uma interação.

Assim como os adultos, os telespectadores mirins também estão expostos ao mundo do consumo, porém, de uma forma muito mais preocupante, pois é nessa faixa etária que os hábitos de compra são formados. Quando expostos desde cedo a uma consumação exagerada, é cada vez mais difícil mudar esse hábito. Ademais, as telenovelas criam um estereótipo de estilo de vida, que ficará no imaginário daquela criança, a qual tentará alcançá-lo, sem muitas vezes entender o valor das mercadorias.

A televisão auxilia a formação do eu e ajuda a desenvolver questões sociais, ao mesmo tempo em que produz ideais de personalidades e modos de vida – uma dualidade que está entrelaçada e que pode ser prejudicial a telespectadores pouco questionadores. A mediação inconsciente, levando em consideração a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a bagagem cultural que o espectador possui, não somente vinda da educação formal, mas de todo o seu conhecimento adquirido, que irá dialogar com o que ele assiste, acontece com todos aqueles expostos à TV, entretanto, é necessária uma maior intervenção para que o telespectador possa discernir melhor as informações que recebe pela mídia. 59

Após compreender a relação entre a telenovela e sociedade, telenovela e crianças, o estudo buscou fazer um recorte nesse universo e analisou a telenovela infantil Cúmplices de um Resgate, folhetim que faz muito sucesso entre o público infantil. Essa análise foi importante e enriquecedora, já que foi possível conhecer esse produto que está tão ligado às crianças de hoje.

Cúmplices de um Resgate é uma novela feita para o público infantil, que trabalha com o lúdico e tenta ensinar bons comportamentos aos telespectadores, mas, em muitos momentos, perde um pouco do enredo voltado às crianças e as usa apenas como personagens de uma narrativa adulta. Enquanto toda a estrutura visual remete ao infantil, as personagens agem como adultas e possuem questões de adultos. A temática do namoro é recorrente na narrativa, mesmo com personagens com idade entre 8 e 13 anos, assim, cria-se um ideal de relacionamento e de estilo de vida, que não é semelhante ao das crianças que assistem à novela.

A telenovela traz a debate muitas questões pertinentes, como intolerância religiosa, inclusão e adoção, mas perpetua um ideal machista, quando as personagens femininas brigam por causa de homens e desejam ter um relacionamento. Essas problemáticas fazem parte do cotidiano feminino, da mesma forma que do masculino, entretanto, quando tais pontos são evidenciados, há uma supervalorização dos relacionamentos, deixando um pouco de lado todas as conquistas femininas e não dando o mesmo valor ao assunto quando visto pela ótica masculina.

Como as telenovelas influenciam na formação da identidade do telespectador mirim, é necessária uma mediação dessa relação, de forma a questionar o que é visto. Estimulando a análise dos conteúdos que são expostos desde cedo, os telespectadores poderão encontrar novas possibilidades de ser e expandir ainda mais os seus repertórios de mundo. Apesar da telenovela ser um espaço dicotômico, ela auxilia o telespectador em muitas questões e impedir que ele a assista não é possível. A busca por mudança nas programações é um caminho viável, mas que demanda tempo, por isso, o educador audiovisual tem um papel importante nessa relação, pois, estando em contato com esses telespectadores, ele pode, através de atividades, fomentar aos poucos a análise crítica. Esse é um espaço cheio de potências para esse educador, uma vez que trabalhará com o audiovisual e o cotidiano infantil. 60

A mediação da relação telenovela e crianças pelo educador audiovisual é um ponto que pode ser mais aprofundado em trabalhos futuros, pensando, na prática, como poderá ser feito. Esse trabalho conseguiu concluir um panorama da influência das telenovelas em adultos e crianças brasileiras, buscando sempre entender os pontos positivos e negativos, sem apelar para soluções radicais, já que não seria possível. Foi detectado que é preciso um olhar mais atento sobre a programação a qual as crianças estão sendo expostas, a fim de evitar uma adultização das mesmas. Esse campo de estudo é muito amplo e oferece diversas abordagens para além desse recorte.

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