Quantos aqui ouvem os olhos eram de fé Os Fortes nascem no sertão de Euclides e se revigoram na narrativa teleaudiovisual1 MIRANDA LEÃO, Aurora Almeida de (mestranda)2 UFJF (MG)

Resumo

Um drama familiar une mãe e filha nas profundezas áridas do sertão nordestino. A fortaleza feminina agiganta-se num cenário inóspito, no qual o machismo viceja sólido e o coronelismo permanece, ainda que com feições atualizadas. O estigma da pobreza subserviente e da submissão introjetada persiste num cotidiano em que o dinheiro manda e assegura vida longa à corrupção. Em meio ao deserto, que o sol revigora, e ao preconceito, que a ignorância enraíza, três forças se confrontam: homem, céu e movimento, ou, por outra, terra, fé e renovação. Mesmo sendo muitas as adversidades, o amor é força capaz de erigir o novo e segue encontrando razões que nenhum coração desconhece. É nessa ambiência que George Moura, Sérgio Goldenberg, José Luiz Villamarim e Walter Carvalho, escrevem sua metáfora de Brasil. As intertextualidades conjugam cinema, literatura e música, as quais investigamos pelo viés da construção narrativa, a partir das classificações de Cândida Gancho, e de conceitos como dialogia, memória cultural e literacia, que podem nos servir de referencial teórico, a partir do pensamento de Mikhail Bakhtin, Yuri Lotman, Tarkovski, Luis Espinal e Mirian Tavares.

Palavras-chave: Narrativa, Teledramaturgia, Música, Sertão, Brasil

Introdução

Onde nascem os fortes é a supersérie da TV Globo que inaugurou o ano de atrações ficcionais das 23h. Estreou em 23 de abril de 2018, sendo a oitava trama exibida nesse horário. Escrita por George Moura e Sergio Goldenberg, com colaboração de Flavio Araujo, Mariana Mesquita e Claudia Jouvi, tem direção de Walter Carvalho e Isabella Teixeira, direção artística de José Luiz Villamarim e direção-geral de Luísa Lima.

O título é forte e nele já estão embutidas intertextualidades importantes: há o laureado filme Onde os fracos não tem vez (Oscar 2008); o sertão radiografado por

1 Trabalho apresentado no GT de História das Mídias Audiovisuais, integrante do V Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2018. 2 Bacharel em Comunicação com Especialização em Audiovisual em Meios Eletrônicos (UFC). Mestranda do PPGCOM da UFJF, linha de pesquisa Cultura, Narrativas e Produção de Sentido; email: [email protected]

Euclides da Cunha (“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”); e a presença vigorosa de uma atriz como Patrícia Pillar (intérprete de personagens marcantes, símbolos de energias opostas como o bem e o mal – basta lembrar obras como as novelas , , ou o filme sobre a estilista Zuzu Angel). Portanto, de cara, estamos diante de uma obra que anuncia e carrega muitas significações.

A narrativa contextualiza a história de dois irmãos gêmeos, Maria (Alice Wegmann) e Nonato (), que decidem fazer uma trilha de bicicleta na cidade em que a mãe viveu a infância e para onde nunca mais voltou. Nessa trajetória, Maria conhece e se apaixona por um morador, enquanto Nonato - depois de um desentendimento com um empresário local -, desaparece misteriosamente. Esse empresário () vem a ser o pai do rapaz por quem Maria se apaixona.

Para os criadores, (ONF) objetiva ser um retrato do sertão contemporâneo. As filmagens tiveram locações em Pernambuco, Piauí e Paraíba. Segundo George Moura, um dos autores, o grande desafio é apresentar apenas um foco narrativo:

É uma história que se desdobra, mas o coração permanece bem íntegro ao longo dessa jornada. E o que isso requer na escrita? A primeira coisa que você precisa fazer é aprofundar os personagens, porque a jornada é formada por reviravoltas. Então cada um deles têm várias camadas. Como acontece um pouco na vida, nós não somos uma pessoa com uma faceta só. [...] Se a gente pensar essas matrizes, essas forças, o Pedro é um pouco de empresário empreendedor, que foi o Delmiro Gouveia na vida real, o Irandhir é um pouco Conselheiro, mas não é isso, e a Maria é um pouco o universo do cangaço, onde não tem rei nem lei, a lei é da força.Tem uma frase que eu gosto muito, para construir um personagem, que diz assim: 'Entre o que o homem diz que é, e o que de fato ele é, existe um abismo gigante!’ (MOURA, 2018)

Por ser de lá, na certa por isso mesmo

A supersérie é a primeira a ser exibida depois de , que abordou o período sombrio da ditadura no país. Enquanto naquela havia Sophie Charlotte, Cássia Kiss e Natália do Valle com papéis preponderantes, aqui há Alice Wegmann, Patrícia Pillar e Débora Bloch em destaques femininos. Enquanto os personagens masculinos tinham em Os dias a força da interpretação de Antônio Calloni, Renato Goes, Daniel de Oliveira e Gabriel Leone, em Onde nascem estão Alexandre Nero, Fábio Assunção, Henrique Diaz e Gabriel Leone.

Fazemos essa alusão para referendar a relevante literacia que a teledramaturgia brasileira possui, capaz de convocar uma vasta produção de sentidos e diversas significações a partir de seu conhecimento e análise. No imaginário teleaudiovisual já existe a imagem de Patrícia Pillar como uma mulher forte - seja pertencendo ao universo rural (O Rei do Gado e Amores Roubados), ou ao universo urbano (novela A Favorita, e seriado Mulher, de 1998). Débora Bloch ainda está fortemente presente no imaginário do teleaudiente como a mulher sofrida e guerreira mostrada na supersérie Justiça. Alexandre Nero emprestou seu talento para criar personagens importantes – basta lembrar os mais recentes: o ‘Comendador’ da novela Império e o bandido de . Fábio Assunção fez com maestria o vilão Renato Gomes da novela e, mais recentemente, fez o bom empresário e pai dedicado de (novela das 19h, 2016).

Já o ator Henrique Diaz trouxe para a tevê o talento concebido e lapidado em muitos anos de teatro: fez o empresário corrupto na minissérie Felizes para sempre ?, o trabalhador desonesto e sofrido de Justiça, e esses personagens se mesclam na construção do personagem de Onde nascem, o corruptível delegado da fictícia cidade de Sertão. Já Gabriel Leone – talento descoberto em Malhação, estourou para o país em , e destacou-se também na narrativa da supersérie Os dias -, compõe com galhardia a figura do jovem idealista, com pitadas de bom moço e justiceiro, evocado agora em Onde nascem.

Dizemos isso para reiterar que, numa narrativa audiovisual, tudo o que aparece na tela tem um sentido de ser, que está muito além do que aparece no texto audiovisual. Basta ver o que afirma Luis Espinal sobre a potência imagética:

Ao ver uma imagem cinematográfica, não a recebemos como algo completamente neutro e inédito. Esta nos sugere outras imagens anteriores, as quais estão carregadas de vivências. Estas imagens próprias do espectador, que o cinema desvelou por associação de imagens, traem suas emoções, suas vivências e seu mistério; criam um estado afetivo e este estado afetivo aflora e comove o espectador. Neste caso, o espectador não saberá o que o comove. Portanto, umas imagens conscientes oferecidas pela tela se relacionam com imagens subconscientes que não afloram, mas estas imagens do subconsciente estão carregadas de emoções que criam um estado afetivo para o espectador. (ESPINAL, p. 68). Outrossim, essa pujança das imagens é parte fundamental da literacia do cinema. Literacia é uma alfabetização que oportuniza o aprendizado da leitura das imagens mas não apenas isso: a literacia é uma ferramenta de aprendizado para ensinar a ver/ler imagens de cinema de forma crítica, como nos esclarece Mirian Tavares:

Compreender que a imagem cinematográfica não é inocente e que é fonte inesgotável de significações é uma arma eficaz contra o embotamento dos sentidos e contra a absorção cega dos significados, engendrada por um dispositivo que se transforma e se adequa a novas realidades, mas que mantém intacta a sua capacidade de sedução pela imagem. (TAVARES, 2017).

E assim como há uma literacia do cinema, que é mister levar em conta ao se estudar o audiovisual, também existe uma literacia na teledramaturgia, herdeira mais evidente da Sétima Arte. Ou seja: é possível reconhecer em qualquer obra de nossa ficção seriada uma dialogia com obras anteriores. Isso aparece de várias formas: são intertextualidades que fazem a riqueza do acervo teledramatúrgico. Essas podem ser observadas como inspiração, influência, citação, paródia, enfim, são releituras múltiplas, que reafirmam e corroboram a ideia defendida pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, “todo texto é devedor de outro texto que lhe antecedeu”. Basta seguir esse raciocínio para ter clara a ideia de que uma obra televisual já nasce devedora de suas antecessoras.

Outrossim, isso também pode ser confirmado se seguirmos com o pensamento de Bakhtin, a partir de seus conceitos de dialogismo e alteridade, uma vez que o autor considera que “a palavra é um drama com três personagens, representado fora do autor”. Ou como esclarece Vera Lúcia Pires:

...porque para todo discurso é imprescindível uma resposta. Na busca pela compreensão, o discurso vai longe, torna-se um elo, entra em um diálogo onde o sentido, além de não ter mais fim, contém toda a memória coletiva do dizer. De fato, para Bakhtin a produção do discurso envolvia um trio, composto pelo autor, pelo destinatário e por todas as vozes-outras que sempre-já nele habitavam, pois o “diálogo” é o acontecimento do encontro e interação com a palavra do(s) outro(s). A alteridade é, para o autor, um processo dialógico em que o elemento comum é o discurso.(PIRES, 2002) Acreditamos, enfim, que, ao estudar a teledramaturgia, devemos recorrer ao respeitável capital teledramatúrgico brasileiro, inegável e importante de ser conhecido e referenciado por estudantes e pesquisadores, consagrando a essa vasta produção o lugar meritório que deve ocupar nas searas culturais. Dito isso, veremos que essa literacia está presente em Onde nascem os fortes com extrema competência, fomentando a criação de novas leituras, a partir de seus intérpretes, criadores, cenas, cenários, situações, temporalidades, espaços e trilha musical.

E vou tomar aquele velho navio...

Tomando de empréstimo um verso da letra da música Vapor Barato, de Jards Macalé e Wally Salomão, vamos abordar aqui as intertextualidades que percebemos em Onde nascem os fortes. Para isso, além de levar em conta as intertextualidades, vamos levar em conta a questão da memória cultural, uma vez que ela é alicerce para os processos que fundamentam a produção textual, logo também a criação audiovisual. Dito isso, vamos prosseguir tomando a construção narrativa como um processo que leva em conta a memória, as intertextualidades e a produção de novos significados.

As minisséries Amores Roubados, O Canto da Sereia e Justiça são assinadas pelos mesmos criadores de Onde nascem os fortes. Todas elas tem o distintivo especial da qualidade narrativa – diálogos, conflitos, situações, música e fotografia. Entre elas, pulsa uma bela dialogia: seja a escolha de uma música internacional para conduzir as chamadas de lançamento (em Justiça, foi o “Hallelujah”, do compositor canadense Leonard Cohen, em Onde nascem foi Your Song, de Elton John, e ademais uma canção que foi sucesso nos anos 80 pela voz nordestinamente rascante de Raimundo Fagner).

Para o teórico russo Mikhail Bakhtin, o fundamento de toda linguagem é o dialogismo, a troca entre quem diz e quem ouve: “A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo” (BAKHTIN, 1961, p.293). Na relação dialógica, o discurso é um jogo, um movimento, no qual acontece transformação e até subversão dos sentidos, carregado de subjetividade:

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (BAKHTIN, 1929, p. 95) A riqueza das intertextualidades também se manifesta na ambiência nordestinada, na qual se destacam mulheres belas e sofridas, homens agressivos, violentos e incapazes de se doar, mesmo às mulheres por quem aparentam estar apaixonados.

Indo mais além, percebemos intertextualidades ainda com a narrativa da minissérie Os dias – embora seja obra de outra direção e outros autores (porém, o diretor de fotografia é o mesmo, o paraibano Walter Carvalho). Cabe ressaltar que o personagem Leon (Mauricio Destri) daquela, compõe uma rica intertextualidade com o personagem Ramirinho (Jesuíta Barbosa) desta. Ambos são artistas e com sexualidade que diverge dos padrões então considerados normais.

A fotografia é um receituário de grandes enquadramentos: em todas, repete-se a assinatura de Walter Carvalho, artesão de frames emblemáticos, como o da camisa suja de sangue num varal aberto em pleno sertão (assim em Amores Roubados, em Justiça, em Onde nascem os fortes, como assim também no belíssimo Abril Despedaçado, filme de Walter Salles). Nesse sentido, cabe bem uma definição de Luís Espinal:

A imagem cria um clima afetivo mais eficaz que qualquer argumento racional. No cinema, aceita-se uma imagem por simpatia, não por lógica. Na linguagem da imagem, estabelece-se o modo de pensar intuitivo e mágico. (ESPINAL, 1976, p. 78) A trilha sonora traz canções que marcaram época e, portanto, já habitam algum lugar recluso da sensibilidade do telespectador. É essa sensibilidade que é convocada a emoldurar a narrativa ficcional e concorre com loquaz potência para forjar uma teia de significações para a construção narrativa de Onde nascem os fortes.

Tudo isso nos remete ao teórico russo Yuri lotman, para quem a cultura é um repositório de inteligência e memória coletivas, através do qual nos valemos das capacidades de conservar e elaborar novos caminhos textuais:“El texto es um espacio semiótico en el que interactuán, se interfieren y se autoorganizan jerárquicamente los lenguajes” (Lotman, 1996:105).

Só uma palavra me devora...

Uma das músicas mais fortes da trilha de Onde nascem os fortes é Jura Secreta. A parceria de Sueli Costa e Abel Silva foi gravada em 1976 por Simone, ganhando depois regravações de Fagner (1978), Wanderléa, Zizi Possi e Zélia Duncan. A gravação mais conhecida é a de Fagner, opção escolhida para a trilha, mais condizente com a ambiência da série por tratar-se de um cantor nordestino com voz acentuadamente trovadoresca.

Nas chamadas de lançamento, a canção internacional usada foi Your song , sucesso de Elton John, usada na série em cenas com o casal Maria e Hermano. Mal Necessário, do compositor gaúcho Mauro Kwitko, é o tema de Ramirinho (Jesuíta Barbosa), personagem transexual, filho do juiz Ramiro (Fábio Assunção), que encarna a artista Shakira do Sertão. Sucesso de 1978 na voz de Ney Matogrosso, a música ganhou gravação do próprio Jesuíta. Diz a letra: Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher, sou a mesa e as cadeiras desse cabaré.

Assim, quando se ouve a canção, antes mesmo de entender ou perceber a cena, sobrevém uma carga emocional, forjada anteriormente, uma vez que “a cultura é a anexação de textos, e os textos são unidades básicas da cultura (LOTMAN, 1996b)”. E a canção dirá mais ou menos, conforme o repertório musical do telespectador, mas por certo não soará como um som inédito ou sobre o qual exista uma neutralidade emotiva. Ainda que não lembre, o público por certo já ouviu a canção (um dos grandes sucessos da carreira de Ney Matogrosso) e com ela tem maior ou menor relação. Isso transpõe para a cena uma série de significações que só enriquecem a construção narrativa. Então, nos parece oportuno lembrar de Lotman, para quem memória é conservação de textos, e é de textos conservados através dos tempos que se erige uma “memória comum”, formada por textos que constantemente são evocados, como se fora um cânon da cultura, do qual emergem uma variedade de subculturas com suas memórias e coletividades locais.

Nesse viés, se a cultura pode ser considerada um misto de significantes e significados, sendo, portanto, um lugar onde transitam memórias, parece-nos oportuno lembrar Irene Machado:

Cultura é fenômeno interativo sem existência isolada e com um campo conceitual unificado fundado no processamento, na troca e na armazenagem de informações [...] A cultura como texto implica a existência de uma memória coletiva que não apenas armazena informações como também funciona como um programa gerador de novos textos, garantindo assim a continuidade. (2003, p. 28 e 102, apud TERRA, 2014, p.77). Outra canção, da qual tiramos o título deste artigo é Frevo Mulher, do compositor paraibano Zé Ramalho. Em compasso binário, o seu ritmo, alcunhado de agalopado, é produto de uma alquimia idealizada por Ramalho, que mistura frevo e forró, gêneros dominantes nas festas juninas do Nordeste. Há ainda o clássico Vapor

Barato, de Jards Macalé e Wally Salomão, lançada em 1971 por Gal Costa, marco na história da música brasileira (que já esteve em outras trilhas, sendo a mais relevante a do filme Terra Estrangeira, dirigido por Walter Salles e Daniella Thomas, e lançado no início deste século).

A escolha da belíssima canção Todo homem, música e letra de Zeca Veloso, para ser o tema de abertura, dá um tom terno e quase atávico à narrativa, enfatizando a presença imanente e ancestral da mãe/terra/mulher. É de arrepiar e diz muito, ainda que as significações estejam nos subtextos.

O que queremos reafirmar é que a trilha é ela também um texto, através do qual a narrativa se enriquece e há um reforço na produção de sentidos. O texto musical contribui fortemente na elaboração de uma ambiência propícia a várias significações, que remonta ou reintroduz o telespectador num universo que ele já frequentou e do qual tem informações, ainda que vagas. Valer-se de uma composição musical de outra década ajuda a dar corpo a um universo dramatúrgico específico e a reavivar um tempo que, embora distante no calendário, plantou raízes que continuam a brotar sementes nos dias de hoje, contextualizando uma gramática emocional que a narrativa quer referendar ou precisa ter como esteio.

... a música faz mais que oferecer uma ilustração paralela da mesma ideia e intensificar a impressão decorrente das imagens visuais; ela cria a possibilidade de uma impressão nova e transfigurada do mesmo material: alguma coisa de qualidade diversa. Ao mergulharmos no elemento musical a que o refrão dá vida, retomamos inúmeras vezes as emoções que o filme nos despertou, e, a cada vez, a nossa experiência é aprofundada por novas impressões. Com a introdução da progressão musical, a vida registrada nos fotogramas pode modificar sua cor, e, em alguns casos, até mesmo sua essência.[...] A música, porém, não é apenas um complemento da imagem visual. Deve ser um elemento essencial na concretização do conceito como um todo. Bem usada, a música tem a capacidade de alterar todo o tom emocional de uma sequência fílmica; ela deve ser inseparável da imagem visual a tal ponto que, se fosse eliminada de um determinado episódio, a imagem não apenas se tornaria mais pobre em termos de concepção e impacto, mas seria também qualitativamente diferente (TARKOVSKI, 1998, p. 196 e 197)

As duas linhas narrativas

Homem, céu e movimento. Terra, fé e renovação. Esses são os pilares elencados pelos autores para a construção dramático-narrativa da supersérie. E os personagens que representam essas forças são Pedro, Ciro e Maria. Mas essa tríade, assumidamente inspirada em Euclides da Cunha, o emérito repórter da histórica guerra travada nos sertões nordestinos, alicerça as duas forças narrativas, conforme a classificação de Todorov, e os preceitos elencados por Cândida Gancho, David Bordwell, e Leandro Saraiva/Newton Cannito. Elas são duas linhas opostas e paralelas, as quais, no caso de Onde nascem, assim são construídas: o embate entre o poder dos arcaicos mandatários do poder – aqui representados pelos homens, o empresário Pedro e o juiz Ramiro -, e as forças da renovação (que perseguem um mundo novo e a liberdade) – representados por Maria, Hermano e Ramirinho.

Então, nos parece oportuno lembrar de Lotman, para quem memória é conservação de textos, e é de textos conservados através dos tempos que se erige uma “memória comum”, formada por textos que constantemente são evocados, como se fora um cânon da cultura, do qual emergem uma variedade de subculturas com suas memórias e coletividades locais. É aqui que nos parecem emergir ‘textos’ ou construções narrativas que estão na nossa memória comum: de Euclides da Cunha, passando pelo cangaço com Lampião e Maria Bonita, até os muitos significados que podemos associar a significantes que compõem a narrativa de ONF. Isso porque

Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto tenso, que traz em seu cerne uma resposta, já que implica sujeitos. O ser humano, juntamente com seu discurso, sempre presume destinatários e suas respostas. A compreensão de um enunciado vivo é sempre prenhe de respostas (BAKHTIN, 1979). A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. (BAKHTIN, p.132).

Considerações finais

A identidade brasileira ganha corpo e se firma não apenas por meio da literatura, mas também, e talvez principalmente, pelas imagens vistas por milhões de brasileiros nas telas de televisão, como afirma Maria Cristina Palma Mungiolli (2007, p.9). Mas no caso de Onde nascem os fortes o que pretendemos observar neste artigo é de que modo seus autores trabalharam com diversas referências e intertextualidades para atingir o constructo narrativo que vemos na tela. De que elementos se valeram e por que escolheram esses ? Como a autoria – escritores, direção, fotografia – estabeleceu seus padrões discursivos para chegar ao produto final que é a narrativa da supersérie ?

Pelo que vimos observando ao longo de nossa análise, já apontamos as influências ou inspirações principais: Os Sertões, de Euclides da Cunha; as músicas que simbolizam uma época do país e uma ambiência inóspita (como o cenário natural) que eles também quiseram enfatizar; uma palheta de cores terrosas e sombrias que marca a constituição das cenas e os figurinos dos personagens; uma luz que é potente como o sol quando o discurso que se privilegia é o do movimento contrário ao estabelecido, e sombria quando é a força da brutalidade, da arrogância e da servidão ao poderio econômico que precisa prevalecer; uma maquiagem quase ausente no elenco; o recurso à literacia, através do qual há releitura de tomadas, citações de enquadramentos usados anteriormente, dialogia entre personagens similares; padrões de comportamento assemelhados, e parâmetros reavivados de mulheres guerreiras, mães e/ou jovens libertárias, bem como personagens masculinas sórdidas, vis, anacrônicas, também são redimensionadas na obra em questão.

De tudo isso se valem os criadores de Onde nascem os fortes para elaborar uma narrativa em que o alto sertão nordestino, também conhecido como Brasil profundo, ganha relevo, bem como o movimento que se faz em torno dele e de suas configurações. Assim, ao escolher contar a história dos irmãos gêmeos que se embrenham pelo sertão em busca de aventuras cheias de emoção, para – através desse fio condutor – também contar a história do empresário que resolveu permanecer no seu rincão acreditando que lá também é possível se erigir o progresso; bem como a história do juiz que se corrompe, nos parece que os autores deslocam o epicentro das mais diversas questões políticas estruturais brasileiras das grandes cidades para o sertão (a cidade fictícia se chama Sertão e essa escolha opera também no sentido de afirmar que qualquer cidade do sertão é um nicho de miséria, fome, corrupção, coronelismo, preconceitos de toda ordem, descaso com saúde, educação e demais políticas públicas.). Esse deslocamento é uma opção assumida e bastante ousada, sobretudo se pensarmos estar sendo exibida em ano de eleições majoritárias no Brasil, e num tempo em que a velocidade das inovações tecnológicas, do movimento contínuo de informações, das fake news, dos podcasts e de outras invenções da contemporaneidade, esboçam-se em franca oposição ao ambiente narrativo. Ademais porque, no cenário em que se passa o enredo, não há acesso à internet e, portanto, a nenhuma dessas inovações que fazem o cotidiano das grandes cidades.

A ousadia é clara e talvez um dos propósitos seja mostrar que há um enorme contingente no país que vive à margem dessas tantas inovações porque sequer tem acesso a questões básicas como saneamento, saúde, educação. Ao criar o universo narrativo que permeia a supersérie e nele incluir temas musicais criados nos anos de 1970 – quando no país ainda imperava fortemente a ditadura militar –, a narrativa cria um espaço propício para uma vasta produção de sentidos.

Por fim, assomam indagações como: estarão os autores a dizer que a mesma trilha musical dos anos de chumbo, tantas vezes censurada e de execução proibida, é igualmente propícia ao universo ficcional por eles criado para estes conturbados anos da segunda década do século XXI ? Se as músicas falavam de um tempo sombrio naqueles anos, elas ressurgem na narrativa para sinalizar que caminhamos para um tempo semelhante, ou estão lá para nos lembrar que uma volta ao passado poderia significar uma nova interrupção no processo de construção de uma nação democrática ? A cidade de Sertão seria a metáfora de um país perdido em meio a degradação de perspectivas políticas construtivas e a aridez da esperança que parece ser preponderante ? As imagens fotográficas e as situações dramáticas que dialogam com outras obras podem corroborar o mito do eterno retorno ou são apenas digressões em meio a avalanche de imagens descartáveis que nos ‘perseguem’ cotidianamente via redes sociais, sites e plataformas digitais ?

São questões que nos interpelam agora e que deixamos ao leitor ou possíveis dialoguistas para que nos ajudem a elaborar como partes da construção narrativa, as quais agigantam a obra, uma vez que a criação artística é tão maior e mais rica quanto mais sentidos impulsionar e quanto mais releituras permitir.

Referências

Livro

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