Quantos Aqui Ouvem Os Olhos Eram De Fé Os Fortes Nascem No Sertão De Euclides E Se Revigoram Na Narrativa Teleaudiovisual
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Quantos aqui ouvem os olhos eram de fé Os Fortes nascem no sertão de Euclides e se revigoram na narrativa 1 teleaudiovisual MIRANDA LEÃO, Aurora Almeida de (mestranda)2 UFJF (MG) Resumo Um drama familiar une mãe e filha nas profundezas áridas do sertão nordestino. A fortaleza feminina agiganta-se num cenário inóspito, no qual o machismo viceja sólido e o coronelismo permanece, ainda que com feições atualizadas. O estigma da pobreza subserviente e da submissão introjetada persiste num cotidiano em que o dinheiro manda e assegura vida longa à corrupção. Em meio ao deserto, que o sol revigora, e ao preconceito, que a ignorância enraíza, três forças se confrontam: homem, céu e movimento, ou, por outra, terra, fé e renovação. Mesmo sendo muitas as adversidades, o amor é força capaz de erigir o novo e segue encontrando razões que nenhum coração desconhece. É nessa ambiência que George Moura, Sérgio Goldenberg, José Luiz Villamarim e Walter Carvalho, escrevem sua metáfora de Brasil. As intertextualidades conjugam cinema, literatura e música, as quais investigamos pelo viés da construção narrativa, a partir das classificações de Cândida Gancho, e de conceitos como dialogia, memória cultural e literacia, que podem nos servir de referencial teórico, a partir do pensamento de Mikhail Bakhtin, Yuri Lotman, Tarkovski, Luis Espinal e Mirian Tavares. Palavras-chave: Narrativa, Teledramaturgia, Música, Sertão, Brasil Introdução Onde nascem os fortes é a supersérie da TV Globo que inaugurou o ano de atrações ficcionais das 23h. Estreou em 23 de abril de 2018, sendo a oitava trama exibida nesse horário. Escrita por George Moura e Sergio Goldenberg, com colaboração de Flavio Araujo, Mariana Mesquita e Claudia Jouvi, tem direção de Walter Carvalho e Isabella Teixeira, direção artística de José Luiz Villamarim e direção-geral de Luísa Lima. O título é forte e nele já estão embutidas intertextualidades importantes: há o laureado filme Onde os fracos não tem vez (Oscar 2008); o sertão radiografado por 1 Trabalho apresentado no GT de História das Mídias Audiovisuais, integrante do V Encontro Regional Sudeste de História da Mídia – Alcar Sudeste, 2018. 2 Bacharel em Comunicação com Especialização em Audiovisual em Meios Eletrônicos (UFC). Mestranda do PPGCOM da UFJF, linha de pesquisa Cultura, Narrativas e Produção de Sentido; email: [email protected] Euclides da Cunha (“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”); e a presença vigorosa de uma atriz como Patrícia Pillar (intérprete de personagens marcantes, símbolos de energias opostas como o bem e o mal – basta lembrar obras como as novelas O Rei do Gado, A Favorita, ou o filme sobre a estilista Zuzu Angel). Portanto, de cara, estamos diante de uma obra que anuncia e carrega muitas significações. A narrativa contextualiza a história de dois irmãos gêmeos, Maria (Alice Wegmann) e Nonato (Marco Pigossi), que decidem fazer uma trilha de bicicleta na cidade em que a mãe viveu a infância e para onde nunca mais voltou. Nessa trajetória, Maria conhece e se apaixona por um morador, enquanto Nonato - depois de um desentendimento com um empresário local -, desaparece misteriosamente. Esse empresário (Alexandre Nero) vem a ser o pai do rapaz por quem Maria se apaixona. Para os criadores, Onde nascem os fortes (ONF) objetiva ser um retrato do sertão contemporâneo. As filmagens tiveram locações em Pernambuco, Piauí e Paraíba. Segundo George Moura, um dos autores, o grande desafio é apresentar apenas um foco narrativo: É uma história que se desdobra, mas o coração permanece bem íntegro ao longo dessa jornada. E o que isso requer na escrita? A primeira coisa que você precisa fazer é aprofundar os personagens, porque a jornada é formada por reviravoltas. Então cada um deles têm várias camadas. Como acontece um pouco na vida, nós não somos uma pessoa com uma faceta só. [...] Se a gente pensar essas matrizes, essas forças, o Pedro é um pouco de empresário empreendedor, que foi o Delmiro Gouveia na vida real, o Irandhir é um pouco Conselheiro, mas não é isso, e a Maria é um pouco o universo do cangaço, onde não tem rei nem lei, a lei é da força.Tem uma frase que eu gosto muito, para construir um personagem, que diz assim: 'Entre o que o homem diz que é, e o que de fato ele é, existe um abismo gigante!’ (MOURA, 2018) Por ser de lá, na certa por isso mesmo A supersérie é a primeira a ser exibida depois de Os dias eram assim, que abordou o período sombrio da ditadura no país. Enquanto naquela havia Sophie Charlotte, Cássia Kiss e Natália do Valle com papéis preponderantes, aqui há Alice Wegmann, Patrícia Pillar e Débora Bloch em destaques femininos. Enquanto os personagens masculinos tinham em Os dias a força da interpretação de Antônio Calloni, Renato Goes, Daniel de Oliveira e Gabriel Leone, em Onde nascem estão Alexandre Nero, Fábio Assunção, Henrique Diaz e Gabriel Leone. Fazemos essa alusão para referendar a relevante literacia que a teledramaturgia brasileira possui, capaz de convocar uma vasta produção de sentidos e diversas significações a partir de seu conhecimento e análise. No imaginário teleaudiovisual já existe a imagem de Patrícia Pillar como uma mulher forte - seja pertencendo ao universo rural (O Rei do Gado e Amores Roubados), ou ao universo urbano (novela A Favorita, e seriado Mulher, de 1998). Débora Bloch ainda está fortemente presente no imaginário do teleaudiente como a mulher sofrida e guerreira mostrada na supersérie Justiça. Alexandre Nero emprestou seu talento para criar personagens importantes – basta lembrar os mais recentes: o ‘Comendador’ da novela Império e o bandido de A Regra do Jogo. Fábio Assunção fez com maestria o vilão Renato Gomes da novela Celebridade e, mais recentemente, fez o bom empresário e pai dedicado de Totalmente Demais (novela das 19h, 2016). Já o ator Henrique Diaz trouxe para a tevê o talento concebido e lapidado em muitos anos de teatro: fez o empresário corrupto na minissérie Felizes para sempre ?, o trabalhador desonesto e sofrido de Justiça, e esses personagens se mesclam na construção do personagem de Onde nascem, o corruptível delegado da fictícia cidade de Sertão. Já Gabriel Leone – talento descoberto em Malhação, estourou para o país em Velho Chico, e destacou-se também na narrativa da supersérie Os dias -, compõe com galhardia a figura do jovem idealista, com pitadas de bom moço e justiceiro, evocado agora em Onde nascem. Dizemos isso para reiterar que, numa narrativa audiovisual, tudo o que aparece na tela tem um sentido de ser, que está muito além do que aparece no texto audiovisual. Basta ver o que afirma Luis Espinal sobre a potência imagética: Ao ver uma imagem cinematográfica, não a recebemos como algo completamente neutro e inédito. Esta nos sugere outras imagens anteriores, as quais estão carregadas de vivências. Estas imagens próprias do espectador, que o cinema desvelou por associação de imagens, traem suas emoções, suas vivências e seu mistério; criam um estado afetivo e este estado afetivo aflora e comove o espectador. Neste caso, o espectador não saberá o que o comove. Portanto, umas imagens conscientes oferecidas pela tela se relacionam com imagens subconscientes que não afloram, mas estas imagens do subconsciente estão carregadas de emoções que criam um estado afetivo para o espectador. (ESPINAL, p. 68). Outrossim, essa pujança das imagens é parte fundamental da literacia do cinema. Literacia é uma alfabetização que oportuniza o aprendizado da leitura das imagens mas não apenas isso: a literacia é uma ferramenta de aprendizado para ensinar a ver/ler imagens de cinema de forma crítica, como nos esclarece Mirian Tavares: Compreender que a imagem cinematográfica não é inocente e que é fonte inesgotável de significações é uma arma eficaz contra o embotamento dos sentidos e contra a absorção cega dos significados, engendrada por um dispositivo que se transforma e se adequa a novas realidades, mas que mantém intacta a sua capacidade de sedução pela imagem. (TAVARES, 2017). E assim como há uma literacia do cinema, que é mister levar em conta ao se estudar o audiovisual, também existe uma literacia na teledramaturgia, herdeira mais evidente da Sétima Arte. Ou seja: é possível reconhecer em qualquer obra de nossa ficção seriada uma dialogia com obras anteriores. Isso aparece de várias formas: são intertextualidades que fazem a riqueza do acervo teledramatúrgico. Essas podem ser observadas como inspiração, influência, citação, paródia, enfim, são releituras múltiplas, que reafirmam e corroboram a ideia defendida pelo teórico russo Mikhail Bakhtin, “todo texto é devedor de outro texto que lhe antecedeu”. Basta seguir esse raciocínio para ter clara a ideia de que uma obra televisual já nasce devedora de suas antecessoras. Outrossim, isso também pode ser confirmado se seguirmos com o pensamento de Bakhtin, a partir de seus conceitos de dialogismo e alteridade, uma vez que o autor considera que “a palavra é um drama com três personagens, representado fora do autor”. Ou como esclarece Vera Lúcia Pires: ...porque para todo discurso é imprescindível uma resposta. Na busca pela compreensão, o discurso vai longe, torna-se um elo, entra em um diálogo onde o sentido, além de não ter mais fim, contém toda a memória coletiva do dizer. De fato, para Bakhtin a produção do discurso envolvia um trio, composto pelo autor, pelo destinatário e por todas as vozes-outras que sempre-já nele habitavam, pois o “diálogo” é o acontecimento do encontro e interação com a palavra do(s) outro(s). A alteridade é, para o autor, um processo dialógico em que o elemento comum é o discurso.(PIRES, 2002) Acreditamos, enfim, que, ao estudar a teledramaturgia, devemos recorrer ao respeitável capital teledramatúrgico brasileiro, inegável e importante de ser conhecido e referenciado por estudantes e pesquisadores, consagrando a essa vasta produção o lugar meritório que deve ocupar nas searas culturais.