Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020
A historicidade da ficção seriada: temporalidades e modos de narração 1 teledramatúrgica
2 Daniel Rossmann JACOBSEN 3 Leonardo Miranda RANGEL 4 Miranda PEROZINI 5 Patrícia Cardoso D'ABREU Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES
RESUMO
A partir de pesquisas, reflexões e debates do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ficção Seriada (Gefics) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), este artigo busca contextualizar a ficção seriada no processo de reinvenção do folhetim através da história, partindo dos jornais impressos do século XIX e alcançando a ficção audiovisual contemporânea on demand. Explorando classificações que dão conta das obras tanto em sua anatomia interna quanto em seu contexto externo, este trabalho se baseia em uma revisão bibliográfica básica composta de Meyer, Sodré, Campedelli e Jost para apontar os diferentes tempos pertinentes à cultura da ficção seriada: o tempo cronológico, o tempo industrial e o tempo individual.
PALAVRAS-CHAVE: ficção seriada; historicidade; folhetim; temporalidades.
1. INTRODUÇÃO A ficção seriada, ou seja, os produtos audiovisuais produzidos para serem consumidos de forma “fatiada” em capítulos ou episódios, encontrou definitivamente seu espaço na academia. O que antes era encarado como produto de baixo valor estético se mostrou importante objeto de estudo cultural, ao ser investigado como socialmente relevante e de importância comercial inegável, suscitando estudos sérios na academia principalmente a partir dos anos 1990, como explicam Castilho e Lemos (2018). Com origem no folhetim francês do século XIX, o modo de consumir histórias em pequenos
1 Trabalho apresentado no IJ04 – Comunicação Audiovisual, da Intercom Júnior – XVI Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Graduando em Comunicação Social - habilitação em Jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ficção Seriada (Gefics/Ufes). E-mail: [email protected]. 3 Graduando em Comunicação Social - habilitação em Jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Integrante do Gefics/Ufes. E-mail: [email protected]. 4 Graduanda em Comunicação Social - habilitação em Jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Integrante do Gefics/Ufes. E-mail: [email protected]. 5 Orientadora do trabalho. Docente no departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Coordenadora do Gefics/Ufes. E-mail: [email protected]. 1
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pedaços conquistou a televisão e, recentemente, a internet, sendo produto central das plataformas de streaming de consumo on demand. O termo “ficção seriada” atua como um guarda-chuva, que abriga sob si uma gama de produtos cuja complexidade constitutiva, muitas vezes, leva a confusões entre as categorias telenovela, série, minissérie, microssérie, seriado e sitcom. Produto tão importante na comunicação e na mídia contemporânea, reflexo da ideologia da transparência tão prezada nas sociedades democráticas (JOST, 2012), a ficção seriada tem motivado a criação de grupos de estudo e pesquisa no Brasil e no mundo. Se destacam o Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva (OBITEL), com grupos integrantes em todo o Brasil, e o Grupo de Pesquisa Ficção Seriada da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (GP Ficção Seriada – Intercom), além da crescente massa de monografias, dissertações e teses na área, produzidos em faculdades e programas de pós-graduação em Comunicação Social em todo o país. Na Universidade Federal do Espírito Santo, o destaque é o Grupo de Estudos e Pesquisas em Ficção Seriada (Gefics), que teve suas atividades iniciadas no segundo semestre de 2019. Este trabalho manifesta algumas das primeiras impressões do Gefics a partir dos estudos desenvolvidos até o momento e objetiva elucidar conceitos úteis para estudos futuros, além de encaminhar discussões que terão sucessão em outros artigos.
2. A FICÇÃO SERIADA: FORMATOS INDUSTRIAIS E FORMAS DE SUSPENSÃO DRAMÁTICA A expressão “ficção seriada” é utilizada para designar a variedade de obras audiovisuais produzidas de forma descontínua: novelas, minisséries, microsséries, séries, seriados e sitcoms. A estrutura interna dessas obras é a da suspensão sistemática que se dá de duas formas: em capítulos ou em episódios. Entendemos capítulo como parte de uma trama cujas causas e consequências estão necessariamente ligadas a um drama maior definido na sinopse e a mercê da audiência. Um capítulo é, assim, a parte de um todo no qual várias suspensões orbitam e\ou sustentam a suspensão diária de uma trama principal fracionada. Todo capítulo é, portanto, parte articulada internamente a
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uma obra com começo e fim e articulada externamente a determinada audiência. Este é o caso de novelas (como Pecado Capital, Roque Santeiro, Barriga de Aluguel e Avenida Brasil), minisséries (como O tempo e o vento, Anos Dourados, O sorriso do Lagarto e Os dias eram assim) e microsséries (como Dalva e Herivelto – Uma Canção de Amor, O canto da sereia e Chacrinha). É importante ressaltar que, tradicionalmente, a articulação externa dos capítulos com a audiência se dá de forma quantitativa no caso específico das telenovelas (daí serem chamadas de “obras abertas”) e de forma qualitativa no caso de minisséries e microsséries (daí serem classificadas como “produtos diferenciados”). Já episódio definimos como parte independente de uma trama que se articula em temporadas fechadas. Um episódio é uma situação ou conflito que se resolve em si, a despeito de suas causas e consequências dramáticas no interior de uma temporada. Todo episódio é, portanto, uma suspensão independente articulada internamente a uma temporada que, por sua vez, se articula externamente a uma audiência específica. Este é o caso de séries (como Batman, As Panteras, e Black Mirror), seriados (como Jornada nas Estrelas, Dallas, Mulher e Lost) e sitcoms (como A Feiticeira, Armação Ilimitada, Seinfeld e Friends). As suspensões de uma obra de ficção seriada ocorrem de quatro formas: I) Dentro de um capítulo: durante a exibição de um capítulo de novela, é necessário que os diversos plots pertencentes a ela sofram alguns avanços em suas respectivas tramas. Para que isso ocorra, a estrutura de um capítulo deve ser dividida em blocos, sendo estes separados por intervalos comerciais. Mas, para que o interesse na exibição do capítulo não se perca, e o telespectador troque de canal durante a pausa, é importante que as suspensões que precedem os intervalos comerciais despertem a curiosidade para os acontecimentos do próximo bloco. Em Amor de Mãe (TV Globo, 21 horas, 2019), por exemplo, os intervalos aconteciam nos principais polos de tensão do capítulo, e deixavam o telespectador ainda mais ansioso para o que aconteceria a seguir. Um exemplo disso são as descobertas da personagem Lurdes (Regina Casé) a respeito de seu filho desaparecido, Domênico (Chay Suede);
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II) De um capítulo para o outro: Tendo em vista que a telenovela é exibida diariamente, é necessário criar ápices de tensão no final de cada capítulo para prender o telespectador e o incentivar a acompanhar os desdobramentos da trama apresentados no dia seguinte. Diferentemente das séries, onde cada episódio tem um plot próprio, a ser desenvolvido e resolvido, os capítulos de novela são finalizados no momento de maior ápice dramático. O grande sucesso de João Emanuel Carneiro, Avenida Brasil (TV Globo, 21 horas, 2012) foi marcado por finais de capítulos explosivos, com momentos importantes para o desenvolvimento da trama: a morte de Genésio (Tony Ramos) provocada acidentalmente por Tufão (Murilo Benício), na Avenida Brasil, a descoberta de Carminha (Adriana Esteves) de que Nina (Débora Falabella) era Rita e a morte de Max (Marcello Novaes) são alguns exemplos. As suspensões de cada capítulo de Avenida Brasil, inclusive, ficaram marcadas esteticamente na memória do público, por “congelarem” dramaticamente alguma personagem ao som de uma música de suspense seguida pelo famoso refrão “oi, oi, oi”; III) De um episódio para outro: Em um episódio, com a conclusão de sua trama individual, torna-se necessário articular elementos que encadeiam situações que se resolverão no episódio seguinte, ou em outro momento da temporada. A suspensão no fim de um episódio é geralmente carregada com mais suspense que uma suspensão de capítulo de telenovela, visto que se supõe um intervalo maior entre dois episódios em relação a dois capítulos. Em Pretty Little Liars (ABC Family, 2010), por exemplo, o fim de cada episódio exibia as mãos do antagonista “A.”, com suas usuais luvas, realizando um ato instigante que despertava a curiosidade do espectador sobre o desenrolar da narrativa; IV) De uma temporada para outra: A temporada de uma série, seriado ou sitcom desenvolve em si uma trama central de grande complexidade. Em cada trama episódica, que contém começo, meio e fim, se fazem presentes os elementos que, vistos na totalidade da temporada, corroboram para a resolução da trama central. No entanto, com o fim de uma temporada e, com ela, a resolução desse conflito maior, não se tem obrigatoriamente o fim de toda a série. Criam-se então suspensões que possibilitem a retomada da ficção em outra temporada, que por sua vez desenvolverá outro conflito
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central diferente do já resolvido. A essas suspensões chamamos “ganchos”. Observa-se então que a suspensão de uma temporada para outra não está apenas nos acontecimentos de seu último episódio, mas está esboçada e já introduzida no decorrer dos seus episódios. Algumas temporadas também podem não encerrar um conflito central em si. A série opta pela suspensão misteriosa, com um gancho de continuidade. Dessa forma, tanto o capítulo como o episódio estruturam, de forma particular, suspensões dramáticas da ficção seriada: o primeiro como divisão articulada das tramas de novelas, minisséries e microsséries; o segundo como evento articulado das tramas de séries, seriados e sitcoms. Aqui, ressaltamos que as mudanças provocadas no consumo on demand dos seus formatos são objeto fundamental para a reflexão sobre ficção seriada, mas não são foco deste trabalho.
3. A POLISSEMIA DE UMA MATRIZ CULTURAL E A ANATOMIA INTERNA DAS OBRAS FOLHETINESCAS Veiculados em capítulos ou em episódios, os formatos industriais da ficção seriada têm como matriz cultural o folhetim. Ao investigar a obra Sinclair das Ilhas, Meyer (1996) discorre sobre a designação palavra “folhetim”, por conta de sua variada significação. De início, indicava o rodapé da primeira página dos periódicos, um espaço vazio destinado ao entretenimento. Nele, uma espécie de vale-tudo criativo diferenciava a parte do jornal na qual se podia treinar a narrativa. Tornou-se um espaço tão importante de liberdade e recreação na primeira metade do século XIX que passou a ser rentável e a ocupar um “lugar de honra” no jornal. Neste processo, as experimentações narrativas de uma literatura que se tornava industrial ampliaram o campo semântico da palavra. Assim, de um modo de publicar a ficção na primeira metade do século XIX, o folhetim passou a influenciar a anatomia interna do romance e criou suas estratégias para modelar um gosto em formação: o da leitura e audição de novelas (cuja estrutura se caracteriza pela duração mais longa que o conto e mais breve que o romance) com temas adequados ao grande público, anatomia fundada no corte-suspensão e simplificação das caracterizações.
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Ainda de acordo com Meyer (1996), o romance se adaptou às novas condições de corte, suspense e redundâncias para reativar memórias ou esclarecer o leitor que “pegou o bonde andando”. É o folhetim-romance, uma nova forma de ficção que brotou das novas necessidades comerciais do jornalismo. Criticado por ser “literatura industrial”, fez sucesso e começou a generalizar o modo de publicação da ficção, uma vez que todos os romances passaram a ser publicados nos jornais e revistas em folhetim (ou seja, de forma seriada) antes de serem publicados como livros. Mas nem todos eram romance-folhetim, que se constituiu como um gênero específico do romance. Ou seja: o folhetim-romance era uma forma de publicar a ficção; o romance-folhetim era um gênero do romance. Um gênero popular cujo formato se estruturava em capítulos. Posteriormente, os meios eletrônicos ofereceram novos suportes para esta ficção popular em capítulos (ou episódios) e a ficção seriada encontrou suporte no rádio, na televisão e na internet.
Especificamente na televisão, o gênero passou a utilizar a capacidade do veículo para misturar diversas manifestações artísticas como teatro, música e literatura. Exemplos disso são as novelas Orgulho e Paixão (2018), que trazia uma releitura das obras de Jane Austen, Meu Pedacinho de Chão (2014), em que os atores exploraram interpretações bastante teatrais, além de cenários e figurinos lúdicos. Cheias de Charme (2012) e Rock Story (2016) são exemplos de novelas que misturaram bem o universo musical com a narrativa folhetinesca, com atores que interpretavam personagens cantores, compositores, produtores, e DJs. Em Cheias de Charme, as três protagonistas da história formaram um trio musical, As Empreguetes, no qual as próprias atrizes colocavam voz nas músicas do trio, e gravavam os videoclipes. Isso fez com que o plot das protagonistas se tornasse mais palpável e conquistasse o público. Campedelli (1987) ressalta que a característica de “liquidificador cultural” da TV fez com que o folhetim se reinventasse: surgia a telenovela – termo que a autora critica, uma vez que, para ela, o correto seria chamar o produto de folhetim, já que é um subproduto da literatura e um tipo especial de ficção. Apesar da mudança na nomenclatura, o formato manteve as características do romance-folhetim, como o estilo melodramático, atenuado pelas novas formas de criação e a junção e o desenvolvimento
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de diferentes eixos pertencentes a uma única trama dividida em capítulos - o folhetim-romance televisivo.
Se o folhetim-romance dos rodapés de jornais estimulavam a recreação e o debate, a chegada da televisão fez ainda mais, na medida em que conseguiu adaptar o mundo à ótica familiar (SODRÉ, 2001). Diferentemente do teatro, por exemplo, o “liquidificador cultural” propunha às famílias um contato íntimo com a cena e o produto, uma vez que o palco havia se deslocado para a intimidade da casa e a plateia era composta por quem estava sentado no sofá. Este contato íntimo, direto e pessoal estabelecido pela familiaridade, o autor dá o nome de “alcance da cena”. A “astúcia do vídeo” (SODRÉ, 2001) também fez com que muitos elementos narrativos fossem incorporados, mesclados e desenvolvidos para que o gênero passasse pelas adaptações necessárias ao novo veículo eletrônico e para que seguisse estimulando os espectadores a interagir. Assim, segundo Campedelli (1987), a telenovela começou a trabalhar com o conceito de multiplots: diversas histórias conectadas direta ou indiretamente fazem com que, juntas, o folhetim apresente a chamada progressão. Cada plot aparentemente tem a sua autonomia de desenvolvimento, mas todos dependem do entrelaçamento entre eles e do desenvolvimento e avanço da trama, o chamado enovelar. Essa sucessividade de acontecimentos permite a manipulação e modificação do roteiro. Porém, para que o público acompanhe a história proposta, são necessários outros recursos: os ganchos e suspensões. Devido à extensão da narrativa (que varia em média entre cem e cento e cinquenta capítulos), a exibição diária da telenovela necessita da suspensão em um capítulo a ser retomada como gancho no capítulo imediatamente posterior. Assim, suspensão e gancho são os responsáveis por permitir que uma sequência de acontecimentos que leva a um pequeno “clímax” possa ser “congelada” e resolvida posteriormente. Na anatomia interna da telenovela, ganchos e suspensões têm o objetivo de deixar o telespectador ansioso para a próxima parte da história. Esse recurso é utilizado tanto durante um capítulo - nos finais de cada bloco, para que o telespectador não desligue a televisão ou mude de canal - como também no final de sua exibição diária - para manter o interesse do público para o capítulo do dia seguinte.
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Cada narrativa possui ganchos e suspensões de acordo com a intenção do autor. As pequenas interrupções permitem que o responsável pela história possa decidir os rumos da obra de acordo com a reação da audiência, fazendo com que o telespectador se torne um coautor. Para além de ter possibilitado que a opinião pública influenciasse diretamente em sua exibição diária, a telenovela também promoveu o contato entre diferentes regiões e culturas. É o caso de telenovelas de sucesso como Caminho das Índias (2009), Velho Chico (2016), Órfãos da Terra (2019), e Duas Caras (2008). Em Caminho das Índias, por exemplo, a audiência experienciou a cultura indiana, materializada em um universo cuja trama principal incluía o envolvimento amoroso de Maya (Juliana Paes), e Raj (Rodrigo Lombardi), filho de um tradicional comerciante de tecidos protagonizado por Tony Ramos, Opash Ananda. O romance dos dois, arranjado por suas famílias, ambas de alta casta - como é denominada as classes sociais indianas - sofre turbulências após a aparição de Bahuan (Márcio Garcia), um intocável que se apaixona por Maya. Devido ao sucesso do folhetim e à imersão dos personagens na cultura do país, expressões indianas passaram a fazer parte das conversas e do cotidiano do telespectador brasileiro. A interferência da audiência e a pluralidade de conteúdos fez com que o gênero fosse essencial para o surgimento de novos formatos industriais. Nesse sentido, como entendemos o subgênero literário folhetim como matriz cultural para esses desdobramentos, a reflexão acerca das recentes reconfigurações dos formatos de série, seriado e sitcom não deve prescindir dos estudos literários.
4. TRANSFORMAÇÕES DA NARRATIVA FICCIONAL Jost (2012) aponta, a partir da sistematização do crítico canadense Northrop Frye, que a ficção seriada acompanhou transformações observadas na literatura ao longo da história. Essa mudança diz respeito à ascensão das ficções mais próximas da realidade e das aspirações do público. Para Frye (1973), as narrativas ficcionais se organizam em cinco modos: mítico, romanesco, mimético alto, mimético baixo e irônico. Partindo de Aristóteles, para quem as diferenças nas posições dos personagens são responsáveis pelas diferenças nas obras
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de ficção, o crítico definiu cada um dos cinco modos levando em consideração o papel do herói, em suas habilidades e qualidades/defeitos, em relação aos humanos. Entendendo o herói como o alguém que faz alguma coisa, ou seja, aquele que move o enredo, Frye (1973), em sua Teoria dos Modos, define como mítica a ficção em que o herói é superior em condição tanto aos humanos quanto ao ambiente desses humanos. Já a ficção romanesca é aquela em que o herói, embora humano, é superior em grau aos outros humanos e seu meio. Na ficção romanesca, algumas leis da natureza são suspensas, como cita o autor, permitindo fenômenos inaturais como armas encantadas, feiticeiras e animais falantes. As ficções imitativas elevadas (o mesmo que miméticas altas, a depender da tradução adotada), são aquelas em que o herói é superior em grau aos outros humanos, mas não ao seu ambiente. São as histórias em que o herói é um líder ou domina uma habilidade, tem paixões ou poderes maiores que os dos demais, mas se sujeita à ordem da natureza e à crítica social. Por sua vez, as ficções imitativas baixas, o mesmo que miméticas baixas, são aquelas em que o herói não é superior nem aos demais humanos nem ao seu ambiente. Nesse tipo de ficção o herói mantém a mesma humanidade que o público, fazendo dessa humanidade comum um fator de identificação entre as situações da ficção e as situações da vida cotidiana. Quando a ficção trata de um herói inferior aos demais e ao próprio público em poder ou inteligência, tem-se uma ficção irônica. O objetivo de Frye era criar conceitos para entender a literatura. Para Jost (2012) essas definições também são úteis para compreender a ficção seriada audiovisual. Para o crítico canadense, as mudanças observadas na literatura dizem respeito à passagem gradual das ficções elevadas para as baixas, uma vez que se observa uma regressão tanto na produção quanto na recepção das ficções de inspiração mítica e uma ascensão das ficções miméticas baixas. Na ficção seriada audiovisual, observa-se, por exemplo, o declínio das ficções de viagens interplanetárias, como Star Trek (1966-1969) e Lost in Space (1965-1968), e ficções de magia, como Bewitched (A Feiticeira, 1964-1972) e I Dream of Jeannie (Jeannie é um Gênio, 1965-1970), enquanto cresce o sucesso de ficções da vida pessoal e/ou profissional, passando por Friends (1994-2004) e chegando a Grey’s Anatomy (2005-) e Orange Is The New Black (2013-). Contudo, a mudança
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gradual dos modos ficcionais predominantes não significa uma limitação absoluta da produção e consumo de modos outros. Assim, se verificam sucessos pontuais de ficções elevadas na contemporaneidade, como por exemplo Game of Thrones (2011-2019), Stranger Things (2016-) e Chilling Adventures of Sabrina (2018-). A erosão progressiva do herói foi um fenômeno fundamental para que as ficções seriadas modernas aparentem ser mais realistas que as antigas, tendo tido, segundo Jost (2012), dois momentos: a fissura, em que o herói se divide em dois personagens com dons complementares, como em Killing Eve e em Gilmore Girls, e a fragmentação do herói em muitos personagens, em que se tem um herói coletivo, como em Friends e em Pretty Little Liars. Para Jost (2012, p. 36), “essa evolução não é senão um caso de renovação das fórmulas narrativas; ela articula diferentes relações do telespectador com a ficção”. Uma das características que contribuiu para a ascensão das ficções baixas, na última década, é o realismo. Uma vez que o herói, na mimética baixa, não possui dons ou características superiores aos humanos, e obedece às mesmas regras, a ficção-seriada com aspectos realistas gera a identificação imediata do telespectador com o herói, seus conflitos e até mesmo sua família e cotidiano. Para Jost (2012), o que seduz o telespectador não é a cópia exata do nosso mundo, mas o modo de narração, ou seja, a criação de um discurso com o qual ele está familiarizado. A intenção, assim, é realizar uma espécie de apagamento do autor, para que o receptor sinta que os relatos são uma janela para o real. Sendo assim, o recurso pode se desdobrar em domínios do saber: o enciclopédico, o saber-ser, e o saber-fazer. Em séries de sucesso no Brasil como How to Get Away With Murder (2014), e Grey’s Anatomy (2005), o saber-fazer é destaque, visto que tanto a primeira quanto a segunda tratam de especialidades técnico-profissionais de seus personagens. O universo do Direito, em How to Get Away With Murder, e o da Medicina, no cotidiano da médica Meredith Grey, protagonista da série que leva seu sobrenome. Já o saber-ser aparece em obras como Desperate Housewives (2004), onde cada personagem, com sua sua personalidade e comportamento singulares, reagem a um plot específico. Porém, a ascensão do estilo não seria possível sem a contribuição de inovações
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tecnológicas advindas da última década. O streaming, amplamente conhecido em 2020, surgiu por volta de 1920, quando George O. Squier patenteou um sistema de distribuição e transmissão de sinais por meio de linhas elétricas. Entretanto, a prática só passou a ser difundida anos depois, haja vista os recursos tecnológicos da época. Com a expansão de uma nova forma de transmitir entretenimento, empresas de transmissão e criação de conteúdo ficcional/televisivo se apropriaram da técnica - que entrega ao espectador a chance de acompanhar eventos, músicas, filmes e seriados ao vivo, ou gravados, a qualquer momento e em qualquer lugar - e de dispositivos de alta tecnologia desenvolvidos a partir dos anos 2010, como a chegada da Smart TV em 2011, - um tipo de aparelho capaz de se conectar à internet e, consequentemente, plataformas de streaming como Spotify e Telecine Play - mesmo ano de ascensão da plataforma de mais conhecida mundialmente, a Netflix. Assim, o consumo, que antes era rígido, passou a ser flexível, chamado “On Demand”. Ou seja, assistir, a partir da última década, não é mais um hábito perpetuado por horários rígidos e determinados previamente. Agora, o produto ficcional está ao alcance de um clique. A nova relação dos indivíduos com a tecnologia também é o enredo principal de ficções seriadas de mimética baixa, como Black Mirror (2011), uma série de sucesso onde cada episódio retrata, de maneira independente, histórias distintas que abordam as consequências comportamentais de indivíduos inseridos em realidades tomadas por tecnologia, opinião pública e ciência. A série é mais um exemplo de como a ficção baixa é agradável ao público, a medida que outros produtos busquem suas características, ainda que seus cenários sejam universos que mesclam o real e o surreal, como em Stranger Things (2016).
5. FICÇÃO SERIADA: AS INTERSEÇÕES ENTRE DIFERENTES FORMATOS De qualquer forma, em ficções de todos os modos se observam fatores comuns. As ideias de verdade, mentira, segredo, intimidade, o desconhecido que o espectador visa conhecer, são presentes num amplo leque de ficções seriadas audiovisuais que conduzem para a compreensão de Jost (2012) de que a ficção seriada é sintoma da
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ideologia da transparência, senão totalmente pelo fato de que aquilo que se chega a conhecer não precisa necessariamente ser uma verdade, mas apenas estar munido de aparências de realidade. Especificando as séries americanas, mas sendo a ideia aplicável às produções de outros países, o autor conclui que Desmascarando as mentiras, oferecendo o espetáculo de uma verdade com face humana, descoberta pelo estabelecimento dessa relação entre duas subjetividades, as séries americanas trazem uma consolação para a perda definitiva da transparência nas sociedades democráticas. O sucesso das séries explica-se menos pela sua capacidade de refletir de forma realista sobre o nosso mundo do que por suas condições de fornecer uma compensação simbólica. É também necessário as observar como sintomas de nossas aspirações e por aquilo que elas dizem sobre nós. (JOST, 2012, p. 69-70).
A telenovela brasileira é o tipo de representação do real mais consumido no país. O produto é não só caracterizado pela mimética baixa e os traços folhetinescos - multiplots e melodramas - como pelo retrato fiel ou abstrato das aspirações e conflitos vivenciados pelo país em seus respectivos anos de exibição. Ao analisar o enredo de algumas das tramas de maior sucesso no Brasil entre 2009 - 2019, títulos como Avenida Brasil (2012), Fina Estampa (2011), A Lei do Amor (2016) e A Força do Querer (2017) possuem algo em comum. Todos os produtos trabalham com a realidade do brasileiro e abordam temas de muito ou quase nenhum debate na época. Avenida Brasil e Fina Estampa, por exemplo, contam a história de personagens suburbanos que ascenderam socialmente mas, ainda assim, não deixam para trás sua origem. É o caso de Tufão (Murilo Benício), e Griselda (Lilia Cabral). Ambas exibidas em 2012, as tramas retratam um momento brasileiro de ascensão da Classe C, que adquire cada vez mais poder de compra. O Divino, bairro onde o folhetim de João Emanuel Carneiro é ambientado, é a materialização do subúrbio, que se desenvolve conforme a evolução das personagens e do comércio e atrativos locais, como o salão de Monalisa (Heloísa Périssé), e o tradicional time de futebol Divino F.C, cuja sede recebe eventos e bailes de charme, outro estilo popular da época. O protagonismo feminino de Griselda em Fina Estampa foi a contribuição do autor, Aguinaldo Silva, para o momento em que o Brasil tinha como presidente a primeira mulher, Dilma Roussef. A atriz, Lilia Cabral personificou as questões de gênero ao interpretar uma mulher, mãe solteira, chefe de
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família, que não correspondia aos estereótipos femininos, instigando discussões sobre o papel da mulher brasileira. Griselda repercutiu temas que perpassam a vestimenta, vaidade, escolha da profissão, e chegam até mesmo ao o uso de expressões que antes não eram tidas como problemáticas. É o caso de “Marido de Aluguel”, por exemplo, (A forma como a personagem intitula o seu trabalho de “faz tudo”). Já A Lei do Amor, exibida em 2016, é ambientada em um vilarejo fictício paulista chamado São Dimas, cuja principal fonte de renda é uma fábrica de tecelagem administrada por Fausto (Tarcísio Meira) e Magnólia (Vera Holtz), que cresce às custas de falcatruas e alianças políticas e religiosas. Após vinte anos separarem a primeira e a segunda fase da novela, o lugar se mostra tomado por disputas políticas, e o progresso parece valer mais que o bem estar dos cidadãos. Os empreendimentos industriais lançam poluentes nos rios, o crescimento vertical aumenta devido à especulação imobiliária, e numerosas igrejas evangélicas estão instaladas no local. Curiosamente, 2016 foi o ano em que o Brasil iniciou mais um ciclo de escândalos e instabilidades políticas, com o impeachment de Dilma Rousseff, a deflagração de um número recorde de fases da Operação Lava Jato (17), manifestações populares, quedas de ministros, a proposta da polêmica Reforma da Previdência e, principalmente, a ascensão da Bancada Evangélica. Em sua sucessora, A Força do Querer (2017), a mulher volta a ser destaque após a história real da traficante Bibi Perigosa, interpretada por Juliana Paes, tomar as telas. Os coadjuvantes da trama passam a ser os homens, que possuem seus enredos entrelaçados e dependentes do protagonismo das personagens. Se tratando de assuntos relevantes mas, até então, pouco comentados, a novela de Glória Perez trouxe à tona o debate sobre a transexualidade com a história, aceitação, e mudança da personagem Ivana, interpretada pela atriz estreante Carol Duarte. Assim como acontecia na época em que foi exibida, a trama deu ao tráfico e ao cotidiano do crime e das favelas um forte apelo, caracterizando o cenário de violência brasileira, marcado por invasões de favelas cariocas e embates entre policiais e traficantes, que também aconteciam no folhetim. O serviço de streaming não foi o único que, após o seu surgimento, alterou as formas de se consumir e produzir ficções seriadas. No Brasil, as telenovelas ganharam recursos importantes para sua produção e aprimoramento. As cidades cenográficas
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feitas em 3D se tornaram as melhores alternativas para uma representação cada vez mais fiel e bem elaborada do real, como em Órfãos da Terra (2019) e Salve-se Quem Puder (2020), onde até um furacão foi recriado com ajuda de um recurso chamado fotogrametria aérea. A evolução do Chroma-Key, usado para sobrepor uma imagem a outra por meio da anulação de uma cor padrão que pode ser verde ou azul, as filmagens em alta definição, ou 4K, e a possibilidade de se exibir e gravar telenovelas em formato 16x9 ampliam as possibilidades dos autores. Amor de Mãe (2020) e O Outro Lado do Paraíso (2017) são exemplos de telenovelas que carregam um ar cinematográfico por conta de seu formato de gravação e paleta de cores. O leque foi aberto, e as mudanças tecnológicas no Brasil, experienciada por todos, é também pauta e até mesmo plot de personagens folhetinescos. Vivi Guedes, interpretada por Paolla Oliveira em A Dona do Pedaço (2019), protagonizou o universo de influenciadores digitais, elevando seu poder de convencimento à vida real, quando, por exemplo, apareceu em um comercial real durante o horário nobre. Entretanto, a blogueira não foi a primeira a atravessar as barreiras televisivas. Em 2012, adequada aos recursos tecnológicos da época, Cheias de Charme fez com que o trio intitulado “As Empreguetes” virasse uma febre do cotidiano popular. Os videoclipes eram exibidos on-line em uma página dedicada exclusivamente para a banda, no site da emissora. Quando as três protagonistas são detidas, artistas populares no Brasil aderiram à campanha “Empreguetes Livres”, até então fictícia. Até o diário da personagem Cida (Isabelle Drummond), virou livro após o folhetim. A Rede Globo, por sua vez, aderiu ao estilo de consumo on demand em 2015, com a plataforma GloboPlay. O aplicativo, que possui conceito semelhante à Netflix, reúne boa parte das produções da emissora, séries e filmes de sucesso nacionais e internacionais, além de transmitir, ao vivo, a programação televisiva. O recurso fez com que até mesmo capítulos, que tradicionalmente são consumidos com um intervalo de um dia, possam ser visualizados e digeridos com maior flexibilidade, devido à ampla disponibilidade causada pelo novo serviço.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A fim de constatar se ainda hoje se observa a descensão das ficções elevadas e a
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ascensão das ficções baixas, faz-se necessário realizar estudos posteriores que levem em conta as especificidades das ficções seriadas produzidas e consumidas nos últimos anos, os eventos sociohistóricos e culturais do período, o perfil demográfico da amostra espectadora e o desenvolvimento tecnológico recente. O que tentamos, neste trabalho, foi encadear uma série de conceitos estudados no Gefics que nos ajudam a entender os diferentes tempos pertinentes à ficção seriada. Inicialmente, um tempo cronológico nos aponta como a polissemia de uma determinada matriz cultural (o folhetim) permitiu experimentações narrativas que levaram a diferentes ritualidades no hábito de consumir histórias. Em seguida, um tempo industrial, localizado na produção do folhetim eletrônico (radionovelas e telenovelas) se reestrutura tanto em relação a capítulos (minisséries e microsséries) como em relação a episódios (séries, seriados e sitcoms), estabelecendo uma complexa arquitetura interna de obras que, para além do consumo comercial, levam ao compartilhamento de imaginários e à consolidação de memórias. Em terceiro lugar, um tempo individualizado, proporcionado pela oferta on demand, abrem lastro para investigarmos diferentes modos de contar e compartilhar histórias.
REFERÊNCIAS CAMPEDELLI, Samira Youssef. A telenovela. São Paulo: Ática, 1987.
CASTILHO, Fernanda; LEMOS, Ligia Prezia (Orgs.). Ficção seriada: estudos e pesquisas. vol. 1. Alumínio: Jogo de Palavras; Votorantim: Provocare, 2018.
FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Tradução Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973.
JOST, François. Do que as séries americanas são sintoma? Tradução Elizabeth Bastos Duarte e Vanessa Curvello. Porto Alegre: Sulina, 2012.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala: Função e linguagem da televisão no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001.
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