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SAMBA E AUTOCONSERVAÇÃO: POSSIBILIDADES PARA A SALA DE AULA doi: 10.4025/imagenseduc.v1i3.13377

Christian Muleka Mwewa*

* Universidade do Sul de Santa Catarina – Programa de Pós-Graduação em Educação. [email protected]

RESUMO: O artigo parte da análise do documentário Cartola (2007), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. Pretendo analisar a relação de agregação que Cartola estabelecia com os participantes do universo do . A análise busca oferecer possibilidades de se trabalhar com o documentário em sala de aula. O argumento central está alicerçado na ideia de autoconservação (ou autopreservação) personificada por Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980). Autoconservação é pensada, aqui, no sentido da busca da manutenção e continuidade do exercício da subjetividade pretendida pelo sujeito em análise, ou seja, por Cartola. Como considerações finais, ofereço algumas pistas para o trabalho em sala de aula. Palavras-chave: Cartola. Documentário. Música para os olhos.

ABSTRACT: SAMBA AND SELF-PRESERVATION: POSSIBILITY FOR THE CLASSROOM. The article begins with the analysis of documentary Cartola (2007), Lírio Ferreira and Hilton Lacerda intend to analyze the relationship of aggregation that Cartola established with the participants of the universe of Samba. The analysis seeks to offer opportunities to work with the documentary in the classroom. The central argument of the analysis is based on the idea of self (or self-preservation) personified by Angenor de Oliveira, Cartola (1908-1980). Self-preservation is thought here in the sense of seeking to maintain and continue the exercise of subjectivity required by the subject under review by Cartola. As final remarks, offer some clues to work in the classroom. Keywords: Cartola. Documentary. Music for the eye.

1 Sinopse e ficha técnica do filme a ser documentário, portanto, oferece elementos analisado suficientes para o leitor/telespectador criar um itinerário particular diante da realidade Angenor de Oliveira (1908–1980), segundo apresentada. Os diretores foram felizes em o próprio artista, na realidade, era para ser privilegiar, muitas vezes, a voz do próprio Agenor, mas, por erro do escrivão, foi registrado Cartola na narrativa do seu percurso no universo como Angenor. De todo modo, ele ficou mesmo do samba. Nesse sentido, o documentário se conhecido como Cartola, sendo um dos mais torna exemplar para as novas gerações daqueles influentes artistas da música popular brasileira. O que pretendem entrar no mundo da música. E documentário Cartola (2007), de Lírio Ferreira e passa a ser primordial para os professores que, Hilton Lacerda, sobre sua vida e carreira, abre por ventura, venham a utilizá-lo como mão de didatismos, expediente comum em instrumento pedagógico. produções do tipo, optando por uma abordagem voltada para iniciados na obra do sambista, 2 Introdução fundador, nos anos de 1920, da escola de samba . Depoimentos de personalidades Em entrevista concedida a Roberto Silveira, como Cacá Diegues, , Hermano um dos diretores do documentário em análise, Vianna e Nelson Motta atestam o talento ímpar Hilton Lacerda, quando questionado sobre a do autor de composições como As rosas não falam capacidade e a legitimidade de pernambucanos e outras canções inesquecíveis que tocam os construírem “uma cinebiografia à altura do nossos olhos e ouvidos. grande Cartola”1, afirma que: Com direção de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, e produção de Clélia Bessa (produtora [...] ela [a pergunta] não leva em da Raccord Produções Cinematográficas), o consideração o fenômeno cultural, que nos documentário, lançado em outubro de 2007, tem dá direito a interpretar mundos distintos a duração de 88 minutos. É um delicioso convite à compreensão do complexo universo do samba e 1 Este questionamento foi feito por João Máximo no jornal O Globo da trajetória de vida dos seus sujeitos. O de 7 abr. 2007.

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partir de óticas muito próprias, através de preciso considerar o contexto histórico do qual pontos de vista muito particulares. Mas Cartola é fruto. compreendo a pergunta, pois ela nos dá o Cartola traduziu em seus muitas das direito de ver certo preconceito com grandes transformações que ocorreram no Brasil relação aos eixos ali representados. Claro de sua época, Brasil do período pós- que o universo do samba não é restrito a um que algumas pessoas escravocrata. Dessa forma, para fazer uma leitura tentam transformar num lugar cultural de Cartola, levo em conta que seu provinciano, ensimesmado. (SILVEIRA, nascimento deu-se 20 anos após a abolição 2008). oficial da escravidão no Brasil e que ele, como negro, morador da antiga capital, a cidade do Rio Essa pergunta ilustra bem a urgência de nos de Janeiro, sambista, pobre (dentre tantos outros libertarmos de algumas amarras que legitimam adjetivos que qualifico como subalternos), teria apenas certos discursos sobre o universo da que elaborar meios para se relacionar com este cultura popular. Segundo Lacerda, os que contexto, assim como tantos outros de sua proferem tais discursos, no mundo do consumo, época, marginalizados ou não. se consideram “os verdadeiros descobridores da É importante notar que não era o mesmo, alma genuína e lírica do povo. Os grandes naquela época, ser negro (descendente de projetores. Os tradutores que vieram para africanos negros) e branco (descendente dos explicar para o povo o que eles eram e o que eles europeus). Para o universo do samba, porém, representavam” (SILVEIRA, 2008), acirrando essa divisão pode ser tomada de forma ainda mais o corporativismo difundido pela ambivalente, e esse universo, de certa forma, era indústria do entretenimento que influencia, em retratado pelos sambas de Cartola, como o diferentes níveis, as análises dos fenômenos samba Ensaboa mulata, ensaboa, pois nos sociais, principalmente quando se trata da cultura lembra da figura das lavadeiras na representação popular. Em outras palavras, “[...] o mundo social: corporativo se transformou numa espécie de praga que bane a discussão do centro das Ensaboa mulata, Ensaboa, um pedacinho coisas.” (SILVEIRA, 2008), afirma o diretor. ensaboa assim Portanto, é longe desse corporativismo que Olha água, um pinguinho localizo a presente leitura de Cartola a partir do Ensaboa mulata, ensaboa assim documentário anteriormente anunciado. Esta Ensaboa O tanque, um tanquinho análise, em forma de ensaio, atende a um dos Tô ensaboando assim A roupa um tantão assim propósitos do livro: oferecer, de forma mais precisa, Ensaboa mulata, ensaboa possibilidades de trabalhar com o documentário em sala Ensaboa Tô ensaboando de aula. Portanto, o fio condutor centra-se na Tô ensaboando Tô lavando a minha roupa ideia de que, a partir do universo do samba, Lá em casa estão me Cartola reunia (no sentido de atrair) em torno de Tô lavando a minha chamando Dondô si outras pessoas que compartilhavam do mesmo roupa Ensaboa mulata, ensaboa, gosto pelo samba. É uma hipótese de leitura Lá em casa estão me ensaboa interessante se pensarmos na complexidade das chamando Dondon Trabalho um tantão assim relações estabelecidas, em especial, no Zi- Ensaboa mulata, ensaboa Cansaço é bastante sim Cartola. Ensaboa Tô ensaboando A roupa um tantão assim Algumas colocações prévias, porém, são Dinheiro um tiquinho necessárias, pois, no ano de 2008, foi Os fio que é meu, que é assim comemorado o centenário do nascimento de meu Cartola e, tristemente, o centenário da morte de E que é dela REFRÃO Joaquim Maria Machado de Assis, escritor e Rebenta a goela de tanto Ensaboa mulata, ensaboa, fundador da Academia Brasileira de Letras. chorá ensaboa É possível dizer que Cartola foi beneficiado O rio tá seco, o sol não Os filho que é meu, que é pelo contexto histórico do início do século XX, vem não meu e que é dela quando dos primeiros indícios da efervescência Vortemos pra casa Rebenta a guela de tanto do samba no Brasil. Por conseguinte, acabou chorar Chamando Dondon (sic!). O rio tá seco, o sol não influenciando outros sambistas, dentre eles, vem não muitos de seus contemporâneos. A partir daí e Ensaboa mulata, ensaboa, Voltemos pra casa com o perdão da brevidade, como diria Schwarz, é ensaboa 2X chamando, Dondô (sic!).

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É possível pensar esses elementos, os ideais, 3 A autoconservação por meio da agregação a partir das inúmeras composições deixadas por Cartola, tendo em vista que, em alguns de seus A partir da ideia de autoconservação (ou sambas, ele contou com a parceria de outros autopreservação)2 pretendo aqui analisar o sambistas. Não cabem aqui argumentos caráter de agregação personificado por Angenor minimalistas de que essa era uma característica de Oliveira, o Cartola (1908–1980) no geral do universo do samba daquela época, pois documentário CARTOLA – Música para os olhos é por isso mesmo que tomo Cartola como um (2007), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. legítimo representante de uma determinada Entendo autoconservação não no sentido do época ou contexto, enquanto sujeito individual. sacrifício do sujeito que se dilui (ou se sacrifica) Ele legitima, assim, a experiência num mundo em meio a um coletivo no qual ele se torna um que transcende a sua subjetividade a partir do mero objeto diante das vicissitudes da vida social samba para representar um caráter que o unia (ou das forças dos Deuses, como um Odisseu). (Cartola) ao resto da humanidade presente no Autoconservação é pensada aqui no sentido da seu contexto. busca da manutenção e continuidade do Em outras palavras, Cartola se torna um exercício da subjetividade pretendida pelo sujeito mediador entre as pessoas do seu entorno e o em análise, ou seja, por Cartola. samba, a partir de uma relação intersubjetiva. Ou No entanto, concordo com Horkheimer seja, Cartola se torna uma peça fundamental na (2002) quando afirma que “a individualidade relação que as pessoas do seu contexto pressupõe o sacrifício voluntário da satisfação estabeleciam com o samba. Claro está que não imediata em nome da segurança, da manutenção sugiro aqui que, se Cartola não existisse, as material e espiritual da sua própria existência”. O pessoas que o cercava não teriam estabelecido sacrifício de agregar a si um coletivo, no caso de uma relação frutífera com o contexto do samba. Cartola, é pensado como uma astúcia que Não! Mas, seguramente seriam outras pessoas. permitiu a preservação – por ele mesmo, por Não digo isso, mas sim que, da forma como se isso autopreservação – da sua vida enquanto apresenta o documentário, Cartola exerce um sambista que precisou ir por aí a procurar, riu e papel fundamental para os seus amigos em não chorou, legando-nos as mais belas letras de relação ao samba. E esse papel, de alguma sambas famosos. forma, é que nos revela o Cartola que é Argumento que, a partir dos elementos conhecido. apresentados no filme (nosso principal objeto de O contexto do qual ele participava pode ser análise), Cartola3 se configura como um sujeito considerado remanescente de uma sociedade que, para conservar sua sobrevivência no mundo escravocrata na qual as relações hierárquicas, na do samba em que ingressou, elabora mecanismos base da opressão ou do favorecimento, são próprios para agregar em torno de si as pessoas materializadas e mantidas com o respeito com quem compartilhava o gosto pelo samba. daqueles que se embatem pelos restos. Isto é, o Cartola ao qual me refiro é aquele Certamente, houve outros do mesmo patamar de sambista ímpar que, para sobreviver, reuniu à Cartola, mas a história, da forma como nos é sua volta, enquanto sujeito, outras pessoas que contada, não permite que tantos ícones negros, gostavam, igualmente, dos mesmos ideais em especial, sobressaiam, numa época, com a presentes no universo do samba. mesma projeção, falseando assim (por via da cultura, por exemplo) a realidade que essa 2 Em algumas traduções encontra-se autopreservação e em outras cultura pretende representar, pois “no extremo a autoconservação. Conceito difundido pelos escritos dos teóricos da dominação absoluta faz que a cultura nada Escola de Frankfurt, mais precisamente Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Aqui não faço nenhuma diferenciação, portanto expresse das condições que lhe dão vida, se sempre que uso autoconservação lê-se autopreservação e vice- excetuarmos o traço de futilidade que resulta versa. Contudo, a ideia de autopresevação data desde Aristóteles, disso mesmo” (SCHWARZ, 2005). por exemplo, quando descreve, segundo Horkheimer (2002), “o burguês grego como um tipo de indivíduo que, possuindo ao A princípio poder-se-ia pensar como mesmo tempo a coragem do europeu e a inteligência do asiático, inviável falar em Cartola sem uma referência ao isto é, combinando a capacidade de autopresevação com a reflexão, percurso histórico do samba, porém, busco uma adquiriu a competência para dominar os outros sem perder a própria liberdade”. fala pelo telefone, ou seja, pela mensagem que vem 3 No referido filme, Cartola conta que o seu verdadeiro nome era do outro lado, o coração, que muitas vezes é para ser Agenor de Oliveira, mas por descuido do escrivão foi esquecido ao se privilegiar a racionalidade acrescentada a letra ‘N’ e registraram-no como ANGENOR. Cartola só foi perceber tal erro na ocasião de fazer o registro do acadêmica, dentre outras tantas amarras. Assim casamento. A partir deste momento passo a me referir, nesta sendo, pode-se subverter o dito pelo ouvido e análise, a Angenor de Oliveira sempre como Cartola.

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sentido, mesmo porque estou convicto de que para deixar evidente a junção dos dois nomes), outros pesquisadores já realizaram mais onde ocorriam os encontros ‘ecumênicos’ dos completo estudo do percurso histórico do sambistas que conviviam com Cartola, é que se samba. Existe uma vasta bibliografia sobre o dá a intensificação dos encontros entre os assunto que pode ser acessada a partir da sambistas. Têm-se aí, com essa construção, os consulta em diversas bibliotecas, livrarias, internet, elementos agregacionistas que atribuo à Cartola. etc. Em outras palavras, não pretendo me Ele, enquanto líder, torna todos que estão em prender às determinações técnicas a respeito do seu entorno sua extensão. Por ser um binômio, o samba para não ferir o caráter de ensaio deste próprio nome do local já denunciara tal caráter, texto, pois o ensaio: o qual é levado às últimas consequências, ou seja, à falência do lugar, pois, segundo alguns [...] não admite que seu âmbito de depoimentos, não havia gerência para o lugar, competência lhe seja prescrito. [...] todos faziam o que queriam. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele É nessa liberdade de ação do outro que se não começa com Adão e Eva, mas com concentra a continuidade do sujeito no outro, ou aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a seja, os músicos que frequentavam tal ambiente respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais passam a desfrutar no mesmo grau da liberdade resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar de ação que os fundadores do local, o que entre os despropósitos. [...] Compreender, constitui uma cumplicidade na produção do então, passa a ser apenas o processo de convívio mútuo, isto é, da vida em conjunto. O destrinchar a obra em busca daquilo que o desregramento, nesse caso, passa a figurar como autor teria desejado dizer em dado um elemento mediador da agregação5 momento, ou pelo menos reconhecer os promovida por Cartola e que possibilitou sua impulsos psicológicos individuais que autoconservação (sobrevivência para se manter estão indicados no fenômeno. vivo) do ponto de vista da concretização das (ADORNO, 2003). suas ações. Não que sem isso Cartola não

vivesse, mas viveria de outra forma, o que seria Assim, posso dizer que é, a partir do gosto objeto de outra análise e não, por ora, a que pela agremiação denominada ‘Os arrepiados’, pretendo aqui. que Cartola se configurou como um dos Pode-se dizer que os encontros entre os fundadores da hoje conhecida escola de samba frequentadores estruturavam-se a partir de uma Mangueira. Em outras palavras, ele deixa de finalidade, porém, sem os fins determinados na apreciar o ‘objeto’ (Os arrepiados) para passar a sociedade de possuidores a que todos vivemos. ser parte do ‘objeto’ apreciado e, em outras Por mais que o samba possuísse um caráter de dimensões, ele passa a ser o ‘objeto’ apreciado. troca que facultava aos seus executores ou Dito isto, é possível perceber que nesse compositores possibilidades de ascender a movimento de sujeito apreciador para objeto condições financeiras outras, o ‘Zi-Cartola’ faliu, apreciado, Cartola entranha e passa a concentrar afundado em dívidas, pois “todos comiam e em si algumas das características que o ‘objeto’ bebiam de graça sem gerência”, como atesta um apreciado (Os arrepiados) possuía. Ou seja, ele dos depoimentos. Por recusar as possibilidades era alguém que gostava de uma agremiação e de se tornar ou de ficar rico (financeiramente funda outra a partir das influências da primeira, falando), Cartola, a partir do ‘Zi-Cartola’, onde tornando-se assim o próprio ‘objeto’ a ser reunia renomados sambistas, hoje reconhecidos apreciado. Para tanto, passa a agregar um do ponto de vista histórico, alargou a fresta número significativo de pessoas com o mesmo obnublada pelos incentivos exacerbados da fim. Esse número de pessoas pode ser percebido sociedade de consumo, qual seja, o fato de que a nos inúmeros depoimentos registrados em seu busca do exercício da liberdade não se limita aos nome por ‘personalidades’ significativas do universo do samba, como Nelson Sargento e Clementina. Tiradentes, no Rio de Janeiro [...] a casa de Tia Ciata, na Praça Com a construção de um local próprio Onze, um dos berços da cultura sambista” (TINHORÃO, 1986). denominado ‘Zi-Cartola’4 (prefiro essa grafia 5 Não confundir a expressão agregação aqui utilizada com a de ‘agregado’ amplamente difundida pelo professor Roberto Schwarz, principalmente nas suas brilhantes análises da obra de Machado de 4 É preciso considerar que o ‘Zi-Cartola’ era um dentre outros Assis. Para Schwarz o agregado sempre se relaciona com alguém de tantos espaços que tinha o mesmo caráter dos que o antecederam quem provém a sua subsistência material com este outro, portanto, como ponto de encontro dos sambistas, como indica Vianna a relação produtiva é fundamental, porém mediada pelo favor (2007). Como exemplo, “a tipografia do ‘editor e poeta mulato (SCHWARZ, 2005). Francisco de Paula Brito’ [...] na Praça da Constituição, hoje Praça

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materiais estrategicamente colocados para serem que ela caia nas graças do público consumidor, possuídos. para quem não lhe é dado “[...] em nenhum Se Cartola tivesse mais consciência do valor momento o pressentimento da possibilidade da de troca e das possibilidades de produzir mais- resistência.” (HORKHEIMER; ADORNO, valia que os seus sambas possuíam, talvez ele 1985). não fosse o conhecido Cartola. De posse das graças do público, o artista É a partir dessa simplicidade e diminui a distância existente entre o pavor do complicabilidade para explicar os fenômenos anonimato e a aparente evidência efêmera, sociais apontados acima que não advogo a porém, não substitui a complexidade do pobreza ou a miséria alheia, apenas observo que problema inicialmente colocado por essa busca, o caminho que os sujeitos fazem é o caminho qual seja, a insuficiência em-si de se realizar possível que os constituiu como tais. Dessa enquanto um sujeito autônomo. Ele, o maneira, só é possível pensar Cartola e percebê- reconhecimento, só se torna algo valable (válido) lo como tal porque ele se forjou a partir da se, e somente se, concebido postumamente à constelação dos elementos contextuais que o produção cultural, fato este que também pode cercavam, os quais configuraram sua dimensão arrecadar os fundos financeiros tão privilegiados de ação no contexto em que estava inserido. na produção da vida em qualquer contexto O fato de dever muito dinheiro fez com que social. ele, Cartola, voltasse a morar na casa do pai. Assim, é possível dizer que, no caso das Essa consequência pode ser considerada como culturas populares, as quais são compreendidas outra decorrência do fato de o sambista, como uma das dimensões do samba, elas “no se enquanto líder, não valorizar de forma copiosa e dejan descifrar sólo como afirmación y resistencia de los teleguiada o caráter financeiro da produção subalternos. Aparecen, en estas peripecias de su historia, cultural, o que por sua vez não significa que ele como los espacios en que grupos hegemónicos o não o considerasse. Apenas não tomava esse subordinados, y aun excluidos, disputan y negocian el caráter, como atesta o documentário, enquanto sentido social” (CANCLINI, 2002), no qual as princípio da produção cultural assim como o condições materiais são imprescindíveis. querem os direcionamentos da indústria cultural, Ao buscar esse sentido social, Cartola disputa a qual só sobrevive na dilatação das com os mecanismos de ordenação social, a partir possibilidades de venda que uma cultura pode da ideia de correto e incorreto, a sobrepujança possuir. O retorno ao lar paterno, nesse sentido, da sua particularidade, pois declara que, quando tornou-se a outra face possibilitada pelo criança, “[...] não fazia nada que prestasse [...] ‘descuido’ com o caráter rentável do samba, em tudo meu era malfeito [...] não gostava de uma palavra, da cultura, contrariando assim a estudar [...].” (FERREIRA; LACERDA, 2007). busca pela rentabilidade como um dos princípios Cartola, enquanto sujeito, atesta a primordiais da indústria cultural. compreensão dos objetivos que os dispositivos A integração de todos os tipos de artes, a sociais pressupõem legítimas, porém, a partir de música, a pintura, a literatura, a arquitetura etc., Cartola, essas são postas em relação e preconizada pela indústria cultural, é condição diferenciadas das que os mesmos dispositivos primeira para que os gostos do público, como consideram ilegítimas. Ou seja, Cartola ‘separa o um todo, sejam capciosamente atendidos na joio do trigo’, estes até então indiferenciados equalização de tais artes, numa universalidade pelos dispositivos sociais, para melhor prefigurada por essa indústria. funcionalizar a sociedade e, consequentemente, O reconhecimento, uma das promessas da os sujeitos. É a velha máxima: quando não se indústria cultural, se atrelado de forma primeira à sabe onde dói fica-se sem saber qual remédio produção cultural, acaba por fracassar toda tomar. O macabro, nesse caso, é o risco que se tentativa de fruição e exercício da liberdade que corre ao tomar qualquer tipo de remédio, pois a cultura, enquanto dimensão artística, pode fatalmente pode-se incitar outra moléstia. pretender anunciar. Da forma como ele é Portanto, ele, de antemão, colocava-se à margem perseguido pelos artistas, transforma-se no daqueles indivíduos que poderiam obter algum princípio materializador das inúmeras produções reconhecimento social. Tanto que, para amenizar culturais às quais o samba e, por consequência, tal fato, seu pai lhe dava lições escolares no final os sambistas, não estão alheios. O da noite ao retornar para casa. Cartola, reconhecimento também condiciona as entretanto, enquanto sujeito que não tinha no produções desses últimos e as transforma numa reconhecimento um fim, titubeava entre a lição receita de qualquer ‘especialista’ na esperança de escolar e a busca de desenvolver “[...] as suas

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potencialidades inatas.” (HORKHEIMER, sambistas? Como hoje, equivocadamente, se 2002), pois, como afirma o próprio sambista, toma o samba unicamente como oriundo das “não sabia se aprendia a ler ou... tocar violão...” camadas populares e marginalizadas, (FERREIRA; LACERDA, 2007). esquecendo-se da ambivalência territorial das É graças a essa tensão que se configura no manifestações culturais? Em última análise, é sujeito que Cartola encarna a materialidade da preciso perceber o movimento interno dessas resistência, da disputa e da negociação com os manifestações para se desprender do dispositivos de enquadramento social que determinismo territorial e étnico quando se trata Cartola figura como um protótipo do sujeito da cultura. livre, revertendo os pré-conceitos que tendem a Segundo Vianna (2007), “o samba, naquela classificar como sujeitos fadados ao fracasso época [anos 1920 e 1930], não era visto como (dependência) aqueles que não se escolarizam no propriedade de um grupo étnico ou uma classe sentido clássico e, paralelamente, desconsideram social”, haja vista a parceria entre e outras formas de conhecimento, como o , por exemplo. Quais são as possíveis musical. São exemplos como os de Cartola que relações do samba da chamada ‘velha guarda’ põem em questão a universalidade linear do que podem ser feitas com o contexto atual, no ensino escolar, o qual é devedor das antigas Brasil, a partir das relações socioeconômico- formas de catequização empreendidas outrora raciais? Considere-se que, hoje em dia, há um pelos jesuítas. movimento unificador social, racial e econômico Assim, concordo com Moreira quando este do gosto pelo samba retomando o contexto pré aponta uma das tarefas do Cristianismo, anos 1920 e 1930, quando “as classes sociais se afirmando que: misturavam mais desordenadamente no espaço geográfico do Rio de Janeiro” (VIANNA, 2007). O cristianismo no fundo deveria ser Com a separação espacial colocada também isso: um esforço de escovar a hodiernamente entre ‘pobres’ e ‘ricos’, todavia, história a contrapelo e não deixar que se cada um acaba desfrutando do gosto pelo samba apague a memória dos crucificados que ela no seu gueto, ou seja, uns nos bares de classe continuamente produz. [...] A média, outros nas periferias suburbanas, porém, universalidade precisa prestar contas da sua pretensão de ser uma instituição social ambos curtindo aquilo que cada segmento social de intelecção avançada. Precisa aprender a entende por samba na ambivalência da trabalhar interdisciplinarmente, integração entre desiguais. E quem sabe, através interinstitucionalmente, para superar sua do samba, todos poderíamos sonhar os sonhos de tendência ao encastelamento e ao um mundo menos desigual, onde as pessoas não isolamento, ao cultivo do saber pelo gosto mais se relacionem a partir da camada social ou do poder e do prestígio que ele produz. do radical étnico e sim da humanidade que cada (MOREIRA, 2008). um representa na sua individualidade.

A atual configuração social demanda um 4 Considerações finais: pensando alargamento daquilo que compreendo como possibilidades para trabalhar o filme na formação, para que esta não permaneça com os escola mesmos estímulos de outrora. Espero que a dinâmica histórica, um dia, seja o moinho que O filme (documentário) nos oferece tritura e reduz as ilusões dos mesquinhos a pó, inúmeras possibilidades de trabalhar com ele na principalmente quando estes alegam nos educar sala de aula, pois é de uma sensibilidade que de forma descontextualizada. São os mesmos anima as mais obscurecidas almas e as convida mesquinhos que se igualam aos espinhos quando para sonhar os sonhos de Cartola. Minhas se apossam e exalam o perfume (riquezas) que indicações para trabalhar com ele em sala de aula roubam dos povos tomados como subalternos. devem ser tomadas apenas como sugestões. Portanto, é preciso retomar os objetivos da Sublinho isso para não castrar as mais belas e tarefa pedagógica. inovadoras ideias e aplicações que o professor Assim, contemporaneamente, o contexto do possa ter ao ser tocado pelo filme. Assim sendo, samba nos leva a alguns questionamentos, os eu trabalharia com o filme da maneira proposta a quais, em minha opinião, são pertinentes, dentre seguir. tantos outros: como pensar a história do samba a partir da sua nova configuração, ou seja, em quê a tradição da ‘velha guarda’ influenciou os novos

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meninas podem e devem interpretar o 4.1 Proposta de trabalho personagem, pois na arte tudo é possível (2 aulas); 4.1.1 Objetivo (5) Os fatos (as narrações de cada aluno) O objetivo é trabalhar a noção de história de devem ser interpretados em, no máximo, 5 vida; conhecimento do contexto histórico e minutos, por isso há necessidade de o professor geográfico do Brasil; senso de síntese e incentivar os alunos para encontros extraclasse; inventibilidade dos alunos e questões sobre as (6) Tudo ‘na ponta da língua’, os alunos relações socioeconômico-raciais no Brasil. Por filmam (pode ser com uma câmera fotográfica isso, essa atividade deve se dar de forma digital) cada ‘historinha’. Lembrar que é nesse interdisciplinar. momento que deve ser incentivada a inventibilidade (inventar) dos alunos, ou seja, 4.1.2 Material a ser utilizado elaborar elementos novos para representar Criatividade; papéis; máquina fotográfica aquilo que se quer expressar. Portanto, deve-se digital ou celular que filme, e boa disposição dos tomar cuidado para não cair no vale-tudo sem envolvidos. funcionalizar as criações, neste caso as ideias. Utilizar o tempo necessário, mas não mais que 4.1.3 Produtos/resultados esperados duas semanas de aula; Produzir um filme ou documentário do (7) A montagem da sequência das histórias ponto de vista dos alunos e um livro com as pode ser feita de forma aleatória, desde que se dê redações dos alunos. Estes produtos podem ser um sentido de unidade no final da história. financiados e reverter renda para os envolvidos. Também se pode realizar um festival de cinema Referências a partir de cada esquete dos alunos, pequeno episódio selecionado pelo aluno (ver mais ADORNO, T. W. Notas de literatura I. explicações adiante). Criar uma homepage e um blog em que se narrem as etapas do processo e São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. disponibilizem o produto final dos trabalhos. CANCLINI, N. G. Latinoamericanos 4.1.4 Metodologia buscando lugar en este siglo. 1 ed. Explicar o objetivo da atividade para os Buenos Aires: Paidós, 2002. alunos e convidar os outros professores. Fazer a separação dos alunos em grupos e estabelecer o CARTOLA Música para os olhos. Direção: número de aulas que serão necessárias para Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. Produção de atingir o objetivo especificado. Verificar a Clélia Bessa. Documentário. 88 min. Brasil: possibilidade de ambientar as filmagens na Europa Filmes, 2007. escola e na comunidade onde os alunos moram. Esta última atividade pode ser subdividida nas seguintes etapas: CARTOLA. Ensaboa. Disponível em: (1) Dividir a turma em dois grupos; um grupo . Acesso em: 18 set. 2008. sobre o contexto histórico do período em que Cartola viveu, de 1908 a 1980 (1 aula); CARTOLA Música para os Olhos. Sinopse. (2) Em forma de uma redação (narração) cada Disponível em: aluno escreve, no máximo, em uma página, . Acesso em: 04 devem incorporar as sugestões de outros alunos, set. 2008. se pertinentes. Nessa parte o professor deve se comportar como mero orientador/consultor e HALL, S. Da diáspora: Identidades e mediador do debate (2 aulas); mediações culturais. Org. Liv Sovik. Trad. (4) Com a ajuda do professor de Artes, cada aluno que se sentir à vontade pode interpretar o Adelaine la G. Resende et alii. Belo personagem Cartola e/ou dirigir os colegas na Horizonte: UFMG; Brasília: Representações interpretação. Deve-se observar que mesmo as da UNESCO no Brasil, 2003.

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Recebido em 10 de maio de 2011. Aceito em 31 de agosto de 2011.

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