Revista Estudos Feministas ISSN: 0104-026X [email protected] Universidade Federal de Santa Catarina Brasil

Afonso da Silva, Daniel Sanhas de poder. Carnets du pouvoir. 2006-2013. YADE, Rama. : Editions du Moment, 2014, 456p. Revista Estudos Feministas, vol. 24, núm. 2, mayo-agosto, 2016, pp. 657-659 Universidade Federal de Santa Catarina Santa Catarina, Brasil

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SSanhasanhas d dee p poderoder

Carnets du pouvoir. 2006-2013. esportes. O ano é 2009. O mês, junho. Ano e meio depois, em fins de 2010, seria nomeada YADE, Rama. embaixadora da França na Unesco. Aceitaria com gosto. Suas ambições nacionais e interna- Paris: Editions du Moment, 2014, 456p. cionais, nesse cargo, ganhariam fôlego. Mas sua fidelidade ao presidente (2007- 2012) não disfarçaria seu descontentamento com seu partido. Romperia com a UMP. Iria para o Mulher, negra, africana. Nascida no , parti radical e depois para a Union des démocrates crescida na França. Vive em Paris. Jovem. 20 para et indépendants (UDI). 30 anos. Percurso escolar de elite. Melhores Assistiria à derrota de Sarkozy para o socia- colégios em e em Paris. Depois, Sciences lista François Hollande em 2012. Seria destituída Po . Mãe professora, pai diplomata. Engajamento da Unesco no mesmo ano. Certa frustração político precoce. Simpatia pela direita. Filiação contaminaria suas atitudes. Mas continuaria, em juvenil ao partido do presidente Jacques Chirac sua convicção, livre. Fazendo política. Como (1995-2007), a Union pour un mouviment populaire sempre fez. Seu nome, Rama Yade. Que apresenta (UMP). Convocação para participar da campa- sua própria trajetória nessa fabulosa autobiografia nha de Nicolas Sarkozy como sucessor de de suas funções públicas intituladas Carnets du Jacques Chirac. Secretária Nacional da UMP em pouvoir. 2006. Referência jovem e afro-europeia do Autobiografias do exercício do poder partido. Devotada aos assuntos de África e da correspondem a práticas que remontam aos diáspora. Ajuda Nicolas Sarkozy bater Ségolène mais remotos períodos clássicos gregos e Royal em 2007. Acede ao governo eleito no romanos desde quando parte importante dos mesmo ano. Assume no Quai d’Orsay – ministério combates políticos se dá por escrito. Sua função do exterior francês – como secretária de estado designa a defesa de feitos, a negação de encarregada de direitos humanos. Exerce funções defeitos e o desejo de fazer o ainda não feito. políticas e diplomáticas. Acaba objeto de Nos tempos mais recentes essa prática tem tido polêmicas e críticas severas. Por sua idade – é a na França um dos canteiros mais proficientes. mais jovem no governo. Por sua origem – é afro- Os Mémoire de guerre do general De francesa. Por sua cor – é negra. Por seu gênero – Gaulle revigoraram a tendência do político- é mulher. escritor e do escritor-político incentivada pelos Conquista amigos e inimigos. Alguns de im- iluministas de Voltaire a Diderot a Marat e portância. Cultiva argumentos fortes e posições afirmada pelo J’accuse de Émile Zola às voltas firmes. Diz-se livre. Fiel ao partido. Mais ainda aos com o affaire Dreyfus . Toda a presidência seus valores pessoais. Desfila talentos intelectuais. francesa desde os tempos do general-presidente Domina a oratória. Tem o dom do discurso, e o (1958-1969) tem por fundamento defender-se faz em vários idiomas. Envolve o interlocutor. Seduz pela pena de seus mais variados responsáveis. ouvintes, leitores e telespectadores. Usa a impren- Mas durante a presidência de Nicolas Sarkozy sa a seu proveito. Promove combates. Muitos essa prática foi amplificada e merece destaque muito dignos. Advoga pela promoção de valores e reflexão. ocidentais e universais. Nem sempre consegue Poucos presidentes franceses contemporâneos ser bem-entendida. Sobrevive a solavancos, crises foram tão controversos quanto Nicolas Sarkozy. e ameaças do e no poder. Dois anos encarrega- Venerado por sua energia, mas detestado por sua da no Quai d’Orsai , vai chefiar o ministério dos onipresença. Respeitado por sua determinação,

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Estudos Feministas, Florianópolis, 24(2): 292, maio-agosto/2016 657 mas condenado pelo decoro da tradição. Em Eleito Nicolas Sarkozy presidente da França seus tempos presidenciais, 2007-2012, ele era visto em maio de 2007, Rama Yade aguardaria até como um americano enrustido. Outsider . Inculto, junho para ser nomeada ao Quai d’Orsay, para impolido, excessivamente midiático. Em tudo a secretaria de direitos humanos. Ela tinha 29 Nicolas Sarkozy fora, para seus críticos, distante anos. Aos poucos foi se transformando na principal dos segredos internos do quase místico presidente vedete do governo. Mas não impunemente. François Mitterrand (1981-1995). E muito pouco Parte importante de seu Carnets du pouvoir vai seguidor dos gestos simples e verdadeiros de seu endereçada diretamente aos mais variados antecessor Jacques Chirac (1995-2007). No bojo conflitos internos e externos que seu cargo lhe dessa reprovação, sua oposição, encarnada nos causou. Muitas das tensões foram com seus partidos de esquerda e de extrema-direita, superiores diplomáticos. aproveitou essa conjuntura para ascender. Um dos momentos mais complicados teve avançou no exorcismo de lugar quando da visita de estado do coronel seu Front National , reduzindo a importância de Gaddafi à França em fins de 2007. Essa visita seu pai-fundador Jean-Marie Le Pen e dando fora resultado de três movimentos. A visita do sotaques mais amenos às suas posições candidato Sarkozy à Líbia em 2006, o projeto controvertidas. François Hollande, por sua vez, francês de unir os países do Mediterrâneo e a conseguiu vender a imagem de candidato da libertação de enfermeiras búlgaras. normalidade, aquele que eleito restabeleceria Quando candidato, Nicolas Sarkozy visitara o decoro político à vida pública francesa. Do o norte da África e fora a Trípoli. Seu objetivo era primeiro turno das eleições presidenciais de 2012, restabelecer relações com a Líbia. Desde os François Hollande, Nicolas Sarkozy e Marine Le tempos do presidente Valéry Giscard d’Estaing Pen foram os principais colocados. Do turno (1974-1981), a interação franco-libiana vem seguinte, François Hollande bateria Nicolas tendo mais baixos que altos. O coronel Gaddafi Sarkozy por escrutínio cerrado. 51% a 48%. era tido como persona non grata e era alvo de Imensa decepção tomou conta da equipe sabotagens internacionais recorrentes. Muitas e dos militantes do presidente derrotado. Nicolas delas operadas pela França. Mitterrand e Chirac Sarkozy ameaçava sair da vida política. Mas os seguiram a mesma toada. Sarkozy propunha primeiros momentos da presidência Hollande se rever essa condição. Especialmente em função mostraram muito conturbados. Múltiplos escândalos de seu projeto de União pelo Mediterrâneo. O públicos e privados foram se apoderando de candidato francês estava convencido da sua gestão. A curva ascendente de desespero social importância do Mediterrâneo na contenção dos seguiu crescente. As crises que ele prometera imigrantes. E, para tanto, sabia ser imperativa a reverter estavam longe de ser contidas. Nesse cooperação da Líbia de Gaddafi. Uma vez contexto foi que os compagnons de route de eleito, incluiu a Líbia em sua primeira visita oficial Nicolas Sarkozy entraram em ação. E assim, à África. Foi ver Gaddafi. Certa ratificação da desde fins de 2012, quantidade importante de imagem internacional do ditador dependeria Mémoires de responsáveis políticos ligados à de seus gestos. O dossiê das enfermeiras búlgaras presidência Sarkozy passaram a defender por foi o melhor encontrado. escrito seu legado 1. Entre eles, Rama Yade. Desde 1999 o regime do coronel mantinha cinco Rama Yade foi convocada a participar da enfermeiras búlgaras e um médico palestino presos campanha de Nicolas Sarkozy em 2006 por razões sob acusação de terem inoculado o vírus HIV em concretas, estratégicas e pragmáticas. Mulher, crianças líbias. As provas eram controversas. Mas negra e imigrante assimilada, sua função era justa- os maus-tratos aos encarcerados eram evidentes. O mente entronizar uma mensagem de diversidade, apoio do presidente francês ao coronel líbio estaria de pluralidade e de tolerância da parte do condicionado à libertação desses presos. O candidato. Com isso se propunha que a França mandatário africano liberaria as enfermeiras em de uma eventual presidência Sarkozy não seria meados de 2007, mas imporia como contrapartida racista, nem anti-muçulmana, tampouco machista. ser recebido oficialmente no Élysée com todas as Essa mensagem deveria ser enviada especialmente honras devidas aos chefes de estado. Esse foi o aos países africanos e aos eleitores franceses de pacto. A data da recepção seria fixada para 10 origem africana residentes na França. Além do de dezembro de 2007. Exatamente quando lobby frente aos afro-franceses pela metrópole aconteceria a Journée internationale de droit e pelos departamentos ultramarinos, Rama Yade de l’homme promovida por Rama Yade que reagiu. seria a responsável pelas turnês do presidenciável Conquanto tenha liberado as enfermeiras, nos países africanos entre 2006 e 2007. o regime líbio não deixara de ser uma ditadura

658 Estudos Feministas, Florianópolis, 24(2): 657-659, maio-agosto/2016 tampouco de afrontar os direitos humanos. imprensa passariam a questionar a utilidade de Rama Yade considerava, nesses termos, indigno uma secretaria de direitos humanos. O Élysée e receber o coronel em visita oficial na França, a UMP intensificam ainda mais esforços para especialmente durante a realização da jornada convencê-la às eleições europeias. Ela continua pelos direitos humanos. Ciente da diatribe, o refutando. Permanece no cargo e no Quai d’Orsay . coronel, já em espaço aéreo francês, hesitava Mas fraca. Continuaria assim até meados de em aterrissar. O presidente francês fora informado. 2009, quando seria indicada para o ministério Sua reação foi convocar imediatamente a do esporte. Do esporte iria para a Unesco. Da causadora desse mal-estar. Rama Yade quase Unesco para outro partido. Tudo relatado quase fora defenestrada do governo nesse episódio. dia a dia em seus Carnets du pouvoir . Nicolas Sarkozy lhe impôs se retratar. Somente Esses e outros momentos contidos no relato após esse mea culpa o coronel se faria receber. de Rama Yade correspondem ao testemunho O balanço da visita daria razão a Rama histórico vivo de uma história imediata do poder. Yade. Gaddafi impusera ao estado francês Alguns momentos de importância como a gestão montar uma tenda nas cercanias da avenida francesa da crise financeira de 2008, por exemplo, Champs-Élysée – ele se recusava pernoitar em passam quase sem nenhuma menção. O que parece hotéis em todo país que lhe recebia. Exigiu o compreensível. As funções de Rama Yade estavam prolongamento de sua permanência. Quis ser ligadas apenas indiretamente a esse tema. Mas a recebido nos mais suntuosos espaços franceses. gestão da crise tangeu a maior parte dos movimentos Do Louvre ao Palais de Versailles . Paris ficara da presidência Sarkozy e poderia ter sido mais ao seu encargo nesses dias de dezembro de frontalmente abordada. Como também a relação 2007. Os protestos contrários à sua presença com os “emergentes”, em especial, com o Brasil. foram crescentes. A memória desses dias Sobre o Brasil ela fala apenas en passant , na página desastrosos para a presidência de Sarkozy seria 384, ao propor estratégia mais arrojada da França em parte redimida somente na investida vis-à-vis da Guiana Francesa, “ base avancée du francesa contra o coronel na primavera de 2011. Brésil ”, para melhor aproveitamento da Copa do Outro momento crítico descrito com relevo Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. nos Carnets du pouvoir ocorrera na recepção Nenhuma dessas e outras ausências diminuem a de Bashar Al-Assad no dia da festa nacional força e a energia de Carnets du pouvoir que exala francesa, em 14 de julho de 2008. As razões acima de tudo uma convicção muito antiga e eram as mesmas. Receber ou não receber. No muito acertada: a política e o poder são um país cálculo presidencial das ambições da União de gigantes onde os fracos não têm vez. pelo Mediterrâneo, sim. Nas condicionantes da NNotasotas encarregada de direitos humanos, não. Mas Al- 1 Entre os principais, GUAINO, Henri. La nuit et le jour . Paris: Assad acabou sendo recebido. Plon, 2012. BOROIN, François. Journal de crise . Paris: No contexto da libertação de Íngrid Éditions JCLattès, 2012. LE MAIRE, Bruno. J ours de pouvoir . Betancourt na Colômbia em meados 2008, Nicolas Paris: Éditions Gallimard, 2013. ALLIOT-MARIE, Michèle. Au Sarkozy e as lideranças da UMP iniciaram coeur de l’État . Paris: Éditions Plon, 2013. convencer Rama Yade a apresentar candidatura RReferênciaseferências às eleições europeias. Queriam enviá-la de Paris Referências a Bruxelas. A encarregada de direitos humanos ALLIOT-MARIE, Michèle. Au coeur de l’État . Paris: hesita. Vêm os preparativos para os Jogos Olímpicos Éditions Plon, 2013. de Pequim. Dalai Lama solicita audiência com BOROIN, François. Journal de crise . Paris: Éditions o presidente francês. Os mandatários chineses JCLattès, 2012. acompanham o diálogo. A relação sino-francesa DE GAULLE, Charles. Memoires de guerre – dispunha de muitos avanços nos últimos tempos. L’Appel, 1940-1942 (1954), L’Unité, 1942-1944 Tendia a melhorar. Nicolas Sarkozy declina da (1956), Le Salut, 1944-1946 (1959). Paris: Plon, solicitação do mestre espiritual. Reporta Rama 1954-1959. Yade e Carla Bruni-Sarkozy para encontrar Dalai GUAINO, Henri. La nuit et le jour . Paris: Plon, 2012. Lama. Viriam os contenciosos entre Rússia e LE MAIRE, Bruno. Jours de pouvoir . Paris: Éditions Ossétia. O presidente francês fora em pessoa Gallimard, 2013. mediar o processo. Rama Yade ficaria a parte. YADE, Rama. Carnets du pouvoir. 2006-2013. Paris: Começaria a perder progressivamente espaço Editions du Moment, 2014. no governo. Tudo para fazê-la sucumbir às eleições europeias. Ela não sede. Diz não para Daniel Afonso da Silva o presidente e não ao seu partido. Setores da Ceri-, Paris,

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