O Enigma Do Clube Da Esquina: Vozes De Uma Outra África Na Pedagogia Do Congado Pedro Henrique Varoni De Carvalho*
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O enigma do Clube da Esquina: vozes de uma outra África na pedagogia do congado Pedro Henrique Varoni de Carvalho* Resumo gia histórica de dominação econômica e política. Procuramos discutir as re- O artigo procura analisar por um lações entre os dispositivos midiáticos ponto de vista discursivo o descom- e os jogos de poder em torno da can- passo entre a inventividade das can- ção brasileira com base na genealogia ções do Clube da Esquina e o reco- de Foucault e, ao fazê-lo, entender as nhecimento midiático em grau de manifestações da cultura popular ru- equilíbrio com outros movimentos ral e sua influência na canção urbana marcantes na história da música po- como espaços de resistência criativa. pular brasileira, como a Bossa-Nova e o Tropicalismo. A importância po- Palavras-chave: Discurso. Clube da lítico-poética da canção popular como Esquina. Música brasileira. Pedagogia espaço de resistência criou no Brasil do congado. uma relação simbiótica entre a voz que fala e a voz que canta, conforme demonstra Luís Tatit. Milton e os de- mais artistas do Clube da Esquina, filiados ao discurso que associa o mi- neiro à introspecção e à discrição, não articularam essa relação nos canais midiáticos, quando o fazem – no final da ditadura –, embalam a associação de suas canções com o discurso políti- co de Tancredo Neves. Esse movimen- * Doutor em Linguística pelo Programa de Pós-Gradua- to revela contradições entre o espaço ção em Letras da Universidade Federal de São Carlos. de resistência a partir de uma heran- Professor substituto do curso de Linguística da UFSCar, integrante dos grupos de pesquisa Labor – Laboratório ça cultural negra que vem dos ternos de Estudos do Discurso e GEMInIS – Grupo de Estudos de congo e das festas de rua de Mi- em Mídias Interativas e Digitais, ambos da UFSCar. nas Gerais, base interdiscursiva das E-mail: [email protected] canções do Clube da Esquina, com o discurso da mineiridade como estraté- Data de submissão: mar. 2017 – Data de aceite: mar. 2017 http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v13i1.6770 119 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 13 - n. 1 - p. 119-138 - jan./abr. 2017 Acontecimento e Qual é esse lugar, o que ele representa? Há uma zona de incômodo, um silêncio regularidade discursiva significante, nos termos de Eni Orlandi (2007), a instigar-nos. Há uma sensação de injustiça quando É como se o silêncio reforçasse um dos se pensa no reconhecimento do Clube da mitos em torno da ideia de mineiridade, Esquina no contexto da música popular em que a não explicitação do “mistério” brasileira (MPB). As características de se torna a estratégia de uma constru- inovação, refinamento harmônico, meló- ção discursiva histórica, tanto a fonte dico, rítmico e poético da produção de ar- da originalidade do Clube da Esquina tistas mineiros, difundida principalmen- como os limites das formas de inscrição te nos anos 1970, não teriam encontrado da singularidade do grupo na rede de o devido valor no panteão dos grandes recados (WISNIK, 2004) que caracteriza movimentos que redefiniram a lingua- a música brasileira desde o surgimento gem da MPB. Tanto a mídia quanto os do samba e da música caipira nas pri- pesquisadores ligados à história da can- meiras décadas do século passado. Há ção popular elegem outros estilos, como um duplo da mineiridade. De um lado, o samba, a Bossa-Nova, a Jovem Guarda o contexto cultural da relação entre a e o Tropicalismo, deixando à margem o cultura territorial mineira e os fluxos Clube da Esquina, em desacordo com a discursivo-artísticos reprocessados ali importância das músicas criadas pelo e produzindo sentido em um local e em grupo. Como o Clube da Esquina pode um momento histórico específicos, força passar despercebido quando, até hoje, a propulsora do “Clube da Esquina”. Entre força de suas canções é celebrada pela in- os ternos de Congo das festas de rua, a ventividade por fãs, críticos e músicos de tradição dos literatos mineiros e as infor- vários países? O apontamento dessa in- mações desterritorializadas trazidas pelo justiça tem motivado a publicação de en- cinema e sons distantes, o Clube da Es- saios, dissertações e teses, demonstrando quina forjou sua singularidade musical os diferentes aspectos de inovação que e poética e uma positividade discursiva. fazem do Clube da Esquina uma escola De outro, o discurso da mineiridade como diferenciada no vasto e rico repertório estratégia de dominação política e eco- da canção brasileira. No entanto, se tais nômica das elites, imputando ao mineiro estudos ampliam as interpretações das características como o silêncio, a parci- canções do grupo, o lugar dessas criações mônia, age como elemento limitador da na série histórica da música brasileira expressão midiática. Limites que não se permanece como ponto a ser elucidado. verificam na inventividade musical do O que acontece com o Clube da Esquina, grupo, mas nas relações desses artistas que, a despeito de toda a expressividade, com os debates ideológicos em torno da não obteve ainda o seu lugar merecido? 120 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 13 - n. 1 - p. 119-138 - jan./abr. 2017 canção brasileira no período mais crítico torno da canção popular a partir do final da ditadura militar, entre o final dos dos anos 1960. anos 1960 e início dos anos 1970. É importante considerar também o O discurso do Clube da Esquina se acirramento da ditadura, que encontrou faz mais pela voz que canta do que pela no canto de Milton Nascimento formas voz que fala (TATIT, 2002), criando um de resistência profundas, evocando ou- deslocamento no jogo discursivo daquele tra opressão, aquela vinda dos tempos momento histórico em que se atribuía da escravidão. Quando, por exemplo, aos cancionistas da música brasileira um a censura interditou todas as letras do papel político ideológico. O público sem- álbum Milagre dos Peixes (1974), o canto pre quer saber quem é o dono da fala, nos onomatopeico de Milton denunciou, como diz Tatit (2002). A hipótese que lançamos em poucos momentos, o contexto político, é a de que a recepção da musicalidade e apesar da interdição do signo linguístico. poética do Clube da Esquina demandou Encontrar o lugar do Clube da Esquina uma complementação nos debates em na série histórica da canção demanda, torno da canção não formulada por seus portanto, elementos complexos que integrantes. A expressão musical que extrapolam a linguagem musical: o dis- se verificava ali, entretanto, colocou curso da mineiridade, as transformações em cheque a relação entre voz que fala socioculturais na capital mineira, que e voz que canta, tal como vinha sendo possibilitaram a eclosão da sonoridade produzida historicamente. A primeira se do grupo, as questões político-poéticas interessando pelo que é dito, a segunda e midiáticas em torno do fenômeno da pela maneira de dizer. Contribuiu para canção popular após o período dos festi- esse efeito a aura de mistério que cerca- vais de música. va a figura mais emblemática do Clube O apontamento de uma relação de- da Esquina, a de Milton Nascimento, sigual entre as narrativas canônicas da cuja voz, tão expressiva quando canta história da música brasileira e o Clube e tão econômica quando fala, instaurou da Esquina é formulado em um artigo outra relação diante de uma demanda de Ivan Vilela (2010), em que o autor para que os astros da música brasileira demonstra a maneira como os aspectos opinassem sobre os principais temas de composição e arranjo fizeram do Clu- da vida nacional. De Milton, bastava o be da Esquina uma escola de inovação canto, como o “Clube da Esquina” atin- harmônica, melódica e rítmica. Vilela gia sua expressão pela musicalidade e ilumina a singularidade da produção do poesia das canções, figurando como um grupo mineiro e aponta dois possíveis contraponto tanto ao aspecto performá- motivos do não reconhecimento das tico introduzido pelo tropicalismo quanto canções do grupo de Milton Nascimento em relação às discussões ideológicas em como um movimento de peso na história 121 Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 13 - n. 1 - p. 119-138 - jan./abr. 2017 da MPB: diferentemente da Bossa-Nova, ausência presente na história da MPB da Jovem Guarda ou do Tropicalismo, é reveladora dos aspectos que norteiam a música mineira não teve apoio nem as escolhas dos estilos musicais consi- projeção na grande mídia. A história da derados importantes. As respostas para MPB é escrita por jornalistas, historia- esses questionamentos estão além dos dores, cientistas sociais e críticos literá- aspectos musicais: envolvem o campo rios que, por vezes, passam à margem semântico discursivo do movimento de aspectos musicais. Assim, tanto a musical e sua relação com os dispositivos mídia quanto a crítica não teriam sido midiáticos, bem como a capacidade da capazes de traduzir a potência inventiva canção popular brasileira de refletir e do Clube da Esquina, o que leva Ivan produzir subjetividades no tecido social: Vilela a lançar uma série de perguntas há uma vida que entra na música e uma cujas respostas se dão pela articulação música que entra na vida. É preciso di- dos aspectos musicais com os midiáticos. ferenciar o lugar simbólico onde o Clube Quais seriam os parâmetros necessários da Esquina acontece (o reconhecimento para que determinada corrente musical da riqueza e a originalidade musical devesse ser tratada como um movimento? e poética da mistura ali verificada) e Seriam as inovações sugeridas? Seriam as contraposições ao movimento vigente, an- onde não acontece (ter essa importância terior à chegada do novo? Seria a qualidade valorizada na mídia e na academia em musical comprovada dos músicos partici- grau de igualdade com a Bossa-Nova e o pantes? Seria o fato de a mídia certificá-lo Tropicalismo).