História: Debates e Tendências ISSN: 1517-2856 [email protected] Universidade de Brasil

Gerhardt, Marcos História ambiental, colonização e genealogia História: Debates e Tendências, vol. 14, núm. 1, enero-junio, 2014, pp. 124-140 Universidade de Passo Fundo Passo Fundo, Brasil

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Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto História ambiental, colonização e genealogia Environmental History, colonization and genealogy Historia ambiental, colonización y genealogía Marcos Gerhardt*

Resumo Introdução

O artigo avalia a possibilidade de com- Este artigo avalia a possibilidade de preender as transformações ambientais compreender as mudanças ambientais pro- geradas pela colonização no Rio Grande duzidas pela imigração e pela colonização do Sul, nos séculos XIX e XX, por meio no por meio do estudo da do estudo da trajetória de famílias imi- trajetória de famílias imigrantes. Escolheu-se grantes. Emprega a abordagem da his- investigar a história das famílias Gerhardt tória ambiental e relaciona a experiência por motivos pessoais e por sua longa trajetó- familiar com a história rio-grandense. ria, que coincidiu com o movimento popula- Conclui que as condições ambientais cional de imigração da Europa para o Brasil também estiveram entre as razões da e de migrações internas dos descendentes imigração para o Sul do Brasil, bem durante os séculos XIX e XX. como das migrações internas posterio- res. A história das famílias estudadas revela indícios de como a presença e o trabalho dos colonos, em interação com outros grupos sociais, geraram profun- * Tem graduação e especialização em História pela Unijuí,, mestrado em História pela Uni- das transformações socioambientais. versidade Estadual de Londrina e doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina.Atualmente, é professor na Palavras-chave: História ambiental. Imi- Universidade de Passo Fundo (UPF) e parti- gração. Famílias Gerhardt. cipa do projeto de pesquisa do Laboratório de Imigração, Migração e História Ambiental da UFSC.

Recebido em 31/07/2013 Aprovado em 21/08/2013 http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.14n.1.4170

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 Adotou-se a abordagem da história [...] percebe-se uma historiografia relativa ambiental, entendida como um campo da ao tema, que assume, muitas vezes, tons triunfalistas, exagerando quanto à contri- História com crescente importância a partir buição, especialmente alemã e a italiana. da década de 1970, que “rejeita a premissa O sul só teria conseguido atingir o nível convencional de que a experiência humana e índices atuais em função do , se desenvolveu sem restrições naturais, de especialmente dessas etnias, dadas suas la- que os humanos são uma espécie distinta boriosidade e abnegação. Trata-se de uma leitura unilateral, com base mais no senso e ‘super-natural’, de que as consequências comum do que na pesquisa, e o desafio é ecológicas dos seus efeitos passados podem superá-la (ou até negá-la), visto que o sen- ser ignoradas”, isto é, “trata do papel e do so comum não é critério de confiabilidade lugar da natureza na vida humana” (WORS- em história (2009, p. 201). TER, 1991, p. 199 e 201). A história ambiental O artigo apresenta, portanto, uma his- liga-se com a história agrária, com a antropo- tória de simples agricultores e trabalhadores logia e com outras ciências. Olha novamente que deixaram uma herança cultural, mate- para assuntos antes abordados ou dirige seu rial e genética. Pesquisar e escrever uma his- interesse para novos temas, como a relação tória de família significa conhecer e explicar humana com as florestas. as experiências vividas por pessoas que, du- Metodologicamente, a pesquisa apoiou- rante algum tempo, mantiveram-se unidas -se na interpretação de variada documenta- pela convivência, pelo trabalho, por laços de ção, ou seja, essa considera como fonte de parentesco e de afetividade, e por sentimen- informação qualquer vestígio da interação tos de pertencimento. humana com os ambientes que foram repo- voados em projetos de colonização. A narra- Trajetórias de colonos tiva foi escrita de modo a ligar as experiên- cias familiares com a história da sociedade A maioria das pessoas que hoje iden- rio-grandense e sua historiografia, contex- tifica-se com o sobrenome Gerhardt está tualizando a vida familiar. Espera-se que o vinculada com famílias que vieram para a artigo seja entendido tanto pelos intelectuais América durante o século XIX. No decorrer da academia quanto pelos membros das fa- daquele século, também pessoas de mesmo mílias estudadas, mesmo que esses leitores sobrenome foram para os Estados Unidos tenham compreensões diferentes sobre o da América e para a Argentina (SCHULZ, texto histórico. 1950). Existe alguma variação na grafia, en- A migração geralmente representa, na contrado nos documentos como Gerhard, memória e na interpretação de muitos des- Guerat ou Kerate (Inventário, 1870; Inven- cendentes, o início de uma caminhada idea- tário, 1874). Nesses últimos casos, pode-se lizada de dificuldades, de trabalho e de êxi- deduzir que o escrivão brasileiro redigiu o to na formação do Sul do Brasil. João Klug sobrenome como lhe foi pronunciado, sem contrapôs essa interpretação e argumentou: ver a palavra escrita.

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 Concentrou-se a atenção na experiên- citado como possível testemunha em uma cia de vida de Joseph Gerhardt, nascido em acusação contra pessoas que tentaram 1817, possivelmente no estado de Hessen, no [...] fazer um engajamento de tropas alemãs sudoeste do que é atualmente o território da a favor do governo rebelde e para iludir os Alemanha. Naquela época, esse era formado habitantes da Picada dos Dois Irmãos que por diversos estados que se unificaram sob se tinham sempre conservado defensores da Legalidade e do Trono de S. M. I. [...] a hegemonia do Império Prussiano, em um (MOEHLECKE, 1986, p. 131). processo que se completou em 1871. Con- forme Max Weber, na região oeste, durante O médico e viajante Robert Avé-Lal- o século XIX, “o aldeamento rural torna-se lemant visitou a colônia São Leopoldo na mais denso, predominam os pequenos agri- metade do século XIX e viu uma alternância cultores, e a cultura torna-se mais dispersa e de plantações de milho, mandioca e feijão, variada”, ao contrário da parte leste na qual dentre outras culturas, bem como elementos predominaram as propriedades maiores remanescentes da floresta, com vigorosos (1997, p. 130). Joseph veio para o Brasil em troncos, pássaros, “magníficas borboletas 1827, aos 10 anos de idade, acompanhando diurnas” e muitas outras formas de vida sil- a migração que fez seu pai Johann e sua mãe vestre. Na percepção desse viajante, as “cul- Elisabeth Sommer. Eles foram instalados turas, com a natureza selvagem, e casinhas na colônia São Leopoldo, fundada para re- de colonos, dispersas por muitas milhas, ceber imigrantes a partir de 1824 e viveram contrastam graciosamente com a floresta algum tempo na picada Dois Irmãos (HIL- verde-negra” (1980, p. 118). Ele visitou tam- LEBRAND, 1824-1853; 1847-1849). Joseph bém as terras situadas nas serras de Ham- estava entre os quase cinco mil alemães que burgo e dos Dois Irmãos, nas quais viu “atle- entraram na província entre 1824 e 1830 tas vegetais agarrados, sem que um vença o (LANDO; BARROS, 1980). Seu nome com- outro. Mas já um terceiro deitou seu forte pleto possivelmente era Johann Joseph – ou, braço em torno dos dois, penetrando-os e em português, João José. estorvando-lhes a circulação, enquanto nos Casou-se com Margareth Altenhofen, altos galhos uma pequena floresta de parasi- com quem teve nove filhos (INVENTÁRIO, tas verdejantes lhes suga a seiva e as prepara 1884). Ela também era filha de imigrantes para a queda” (1980, p. 122). europeus que chegaram ao Brasil em 1827. A existência da floresta, a “maravilhosa Três membros de sua família morreram nos oficina da natureza” que tanto impressionou anos iniciais da colonização, inclusive seu Avé-Lallemant, foi um dos motivos para a irmão Balthasar, falecido em consequência vinda dos Gerhardt e de outros da Europa de ferimentos que sofreu durante a Guer- para o Brasil. As terras florestais não eram ra (HILLEBRAND, 1847-1849; as preferidas pelos criadores de gado, uma FLORES, 1995; HILLEBRAND, sd.). Pos- das principais atividades econômicas no Rio sivelmente Johann, pai de Joseph, estava a Grande do Sul da época, tendo, estas, por favor do Governo Imperial, pois apareceu conseguinte, sido destinadas aos projetos de

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 colonização. A floresta podia ser uma difi- Hillebrand, diretor da colônia São Leopoldo, culdade para a agricultura, mas fornecia aos pediu ao presidente da província “algum ar- colonos a lenha para os fogões domésticos e mamento para os nossos novos colonos que para os fornos das olarias, a madeira para a acabão de ser estabelecidos nas picadas de construção de casas e das instalações rurais e do Salto, sertões bravios e lugares que eram habitadas por variada fauna, vista ermos como aqueles exigem que esses colo- inclusive como caça. Acima de tudo, após o nos tenham ao menos cada hum huma arma desmatamento, as terras de roça nova eram de fogo” (1853, p. 1). muito férteis e rendiam excelentes colheitas. Naquele mesmo ano, nove colonos, A imigração de europeus para o sul do Bra- entre eles Joseph Gerhardt, solicitaram ou- sil teve motivos mais relevantes, de cunho tros lotes rurais ao presidente da província, social, econômico, político, demográfico e argumentando principalmente que sofriam cultural, mas as razões ambientais tiveram, “contínua invasão e assalto de bugres e ti- nesse contexto, espaço significativo e podem gres n’aqueles desertos lugares sem prote- ser consideradas pelos historiadores. ção senão a de Deus” (HILLEBRAND, 1853, Um pesquisador deve saber afastar-se p. 3). Hillebrand escreveu para a mesma do determinismo geográfico e evitar a afir- autoridade afirmando que o requerimento mação de que a vida dos colonos foi regu- dos colonos continha “vergonhosas faltas de lada pelas condições ambientais. Mas tam- verdade” e argumentando que “quando vão bém é preciso saber, como argumentou José fazer erva de matto, muito mais de huma le- A. Pádua, evitar “a dominância do enfoque goa além de suas colônias, como que, essas flutuante”, que, em parte, se “construiu circunstâncias não os impede a permanecer como reação à forte presença do determi- semanas inteiras no sertão, naquele servi- nismo geográfico e biológico no pensamen- ço?!” (1853, p. 4). A expressão “erva de mat- to social da passagem do século XIX para o to” possivelmente foi usada para se referir à XX” (2010, p. 92). Nesse sentido, a vida dos erva-mate (Ilex paraguariensis), um bem flo- imigrantes instalados como colonos no sul restal cujo extrativismo os colonos também não pode ser desligada das condições am- praticavam (GERHARDT, 2011). bientais então existentes. Johann – pai de Joseph – teve a pro- A colonização das terras do Vale do priedade de uma escrava e de seu filho, José Rio dos Sinos e das áreas ao norte deste, na (Livro de registro, 1855-1859). Essa informa- encosta da serra, não se fez sem conflitos ção foi encontrada em um único documento, com posseiros, que reclamavam o direito de o que a torna pouco confiável. Ela está de uso das terras e dos bens ambientais, e com acordo, entretanto, com o contexto da época, populações indígenas da etnia Kaingang na qual existia legislação para restringir a es- (TRAMONTINI, 2003, p. 78). Eles viviam ali cravidão nas colônias, mas, dos 166 escravos muito antes da chegada dos colonos e resisti- existentes em 1848 em São Leopoldo, 87 per- ram o quanto puderam à perda do território tenciam a imigrantes alemães, evidenciando e ao seu repovoamento. Em 1853, Johann D. seu uso lastimável pelos colonos em diver-

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 sas atividades urbanas e rurais (TRAMON- vada da Estrela, Joseph aparece com sua fa- TINI, 2000). mília de 11 integrantes, utilizando somente Joseph e Margareth mudaram-se de 37.500 das 220.000 braças quadradas que São Leopoldo para o Vale do Rio Taqua- tinha seu lote. Naquele ano, cultivaram mi- ri na década de 1850, época em que vários lho, feijão, batata, cevada, centeio, trigo e membros da família compraram terras jun- fava. Além dos dois cavalos e dos seis bovi- to à fazenda São Caetano (ROCHE, 1969, p. nos que possuíam, criavam 50 suínos (Mapa 342). A partir dessa fazenda, à montante, a demonstrativo, 1860). A produção dessa fa- navegação no rio Taquari tornava-se difícil e mília é um exemplo de como os colonos in- perigosa. Aos fundos e ao norte desse lugar tensificaram a transformação do ecossistema existiam bons ervais (Correspondência, 10 natural, que é “um subgrupo da economia ago. 1854). Nas terras do Vale daquele Rio, global da natureza – um sistema local ou re- o casal viveu os anos seguintes (Figura 1). gional de plantas e animais que trabalham Quando de sua morte, no ano de 1883, em conjunto para criar os meios de sobrevi- “em consequência de queimaduras, munido vência”, em um sistema agroecológico, que com os sacramentos da Santa Igreja” (Livro é “um ecossistema reorganizado para pro- de registro, 1873-1915), foi redigido o in- pósitos agrícolas – um ecossistema domes- ventário post-mortem dos bens deixados por ticado”, ou seja, “é um rearranjo, não uma Joseph, documento que se tornou uma im- anulação dos processos naturais” (WORS- portante fonte de informação sobre sua vida. TER, 2003, p. 29). Ele legou aos herdeiros: “Cento e quarenta O ambiente do Vale do Taquari conta- mil e quinhentas braças quadradas de terras va com condições favoráveis à agricultura, ditas na picada de Bôa União, margem do pois tratava-se de uma planície e de terras Rio Taquari...” (Inventário, 1884) e terras lo- férteis. Por outro lado, as terras eram vul- calizadas em São Caetano e na margem do neráveis às grandes enchentes do rio, como . aquela que aconteceu em 1878 (Relatório, Além dos imóveis, ficaram as benfei- 1881). A comunicação com a capital do es- torias, utensílios de cozinha, oito reses, um tado e o transporte da produção colonial ex- cavalo e algum dinheiro. O patrimônio do cedente eram feitos por meio da navegação. casal somou um total de 13:649$000 Réis (In- Na década de 1920, existiam linhas regulares ventário, 1884). Para se ter ideia do que esse entre Lajeado e . A viagem com valor representou na época, pode-se com- o “vapor rápido” durava de nove a onze pará-lo com os preços de alguns produtos: horas. Outras linhas atendiam a circulação uma saca de feijão preto valia sete mil réis, regional (KALENDER, 1922). o quilograma de manteiga custava dois mil A existência da fazenda São Caetano e Réis, e por uma bolsa de arroz descascado se de outras fazendas na região informa sobre cobrava 17$000 Réis (DIE KOLONIE, 1894). a presença de populações no lugar muito No mapa demonstrativo da situação antes do início da colonização por europeus dos 45 lotes que compunham a colônia pri- e seus descendentes. Os estudos de arqueo-

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 logia e história concluíram que populações chegada dos colonos, foram expropriados indígenas Guarani, horticultoras, viviam há e expulsos para lugares mais distantes por milhares de anos nos vales dos rios Taqua- meio de estratégias como a grilagem de ter- ri e Forqueta e dos arroios Forquetina e Boa ras. Essas eram praticadas por membros da Vista (KREUTZ, 2008; MACHADO; SCH- elite econômica regional e viabilizaram al- NEIDER, 2008). Os lavradores nacionais guns dos projetos de colonização (CHRIS- que viviam nessa região como agricultores TILLINO, 2004). e coletores de erva-mate, também antes da

Figura 1 – Estrela em 1922

Fonte: Adaptado de FLATAN, Carlos Kurt. Mappa do Município de Estrella. 1922. Escala 1:100.000. In: Album, 1926. AHRS.

No Gráfico 1, fica evidenciada apre- atuaram no contexto colonial, em terras que sença de um expressivo e crescente número foram fragmentadas em lotes, privatizadas de serrarias em Lajeado no início do sécu- nos projetos de colonização e desmatadas lo XX. Mesmo sem saber quem eram seus para a agricultura. proprietários, é importante notar que elas

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 Gráfico 1 – Serrarias em Lajeado RS

Fonte: Relatórios apresentados pelos intendentes ao Conselho Municipal de Lajeado. 1909-29. AHL.

O casal Joseph e Margareth está sepul- A família de Nicolau Gerhardt e Susan- tado na localidade de Novo Paraíso, em Es- na Nikolay era menos numerosa, com oito trela, o que faz com que aquele cemitério se filhos conhecidos. A caminhada de um deles, configure como um importante lugar de me- o agricultor João Nicolau, é marcada por uma mória familiar. As filhas mulheres casaram nova etapa na trajetória familiar. Ele casou- com membros de outras famílias imigrantes. -se com Guilhermina Friedrich e migrou de Os filhos homens seguiram com suas ativida- Estrela para as “colônias novas” em 1921. Os des como agricultores no vale do Taquari e bens móveis da família foram transportados formaram grandes famílias, de acordo com o até o Planalto em uma carroça de tração ani- padrão reprodutivo da época. Os 12 filhos do mal. O casal e a filha utilizaram o transporte casal José Gerhardt e Margareth Petter, por ferroviário, instalado na região em 1915 (En- exemplo, foram gerados dos 20 aos 31 anos trevista, 22 abr. 2012; Escritura, 1921). de idade da mãe, com um intervalo mínimo Fixaram residência em Serra do Cade- entre cada gestação (Livros de registro, 1873- ado, distrito de Ijuí (fundado como colônia 1928). Por um lado, o grande número de filhos em 1890), hoje município de Augusto Pes- viabilizava as atividades agrícolas no lote ru- tana. A nova migração teve motivos socio- ral, que dependia principalmente do trabalho econômicos e ambientais, especialmente familiar. Por outro lado, tonava o lote insufi- a possibilidade de comprar terras cober- ciente para sustentar as novas famílias cons- tas de florestas, férteis e baratas, junto à tituídas pelo casamento dos filhos, em razão móvel fronteira agrícola e de colonização da consequente fragmentação na partilha da (GERHARDT, 2009). Na Serra do Cadeado, herança e do também decorrente aumento da eles participaram, assim como os demais co- lonos e os lavradores nacionais, da constru- pressão humana sobre os ecossistemas.

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 ção de uma paisagem colonial, que foi par- riores e o forte impacto ambiental da agri- cialmente descrita em 1924: cultura no RS e no Planalto em particular, […], foi decorrente de uma nova concepção O gado é gordo, até brilha, as casas são só- de natureza e de política agrária (2012, p. 67). lidas e firmes, na terra há frutas e árvores carregadas; esse é o quadro que o visitante Em comparação aos valores praticados vê. Têm alguns que ainda estão no começo, nas colônias velhas, o preço da terra era me- mas, com tempo e se entrar dinheiro, mu- nor no Planalto, local em que João Nicolau dam e vão para frente […]. comprou outros quatro lotes coloniais, um No fim da segunda década o retrato da co- para cada filho. Dois deles estavam situados lônia é bem mais agradável. Ao longo das fora da colônia oficial, na fronteira fitogeo- ruas já não há mais a mata selvagem. Bo- nitas residências de colonos, rodeadas de gráfica entre a área de floresta e os campos laranjais em flor, pessegueiros e ameixeiras nativos. O filho Willibald, a quem coube um mostram claramente o progresso. Em ver- desses lotes, dedicou-se à agricultura e ao des campos pastam vacas gordas, cavalos e trabalho na serraria que instalou para bene- terneiros (FESTSCHRIFT, 1924). ficiar a madeira obtida no desmatamento da As mudanças socioambientais foram região (Entrevista, 22 abr. 2012). compreendidas como “progresso”, que per- Em 1928, João Nicolau tentou vender o mitiu instalar os migrantes, alimentar as lote principal, anunciando-o no Die Serra Post famílias de colonos e produzir excedentes (20 jul.). Possivelmente planejou comprar para o mercado regional. Elas correspon- outras terras no local ou migrar para uma deram ao desmatamento de importantes colônia junto à fronteira agrícola, que havia áreas de Floresta Estacional Decidual e tor- se deslocado para o Noroeste do estado. Isso naram inviável a vida de várias espécies não aconteceu e a família continuou moran- animais que habitavam aquele ambiente, do naquele lugar. A comunicação com a parte cuja existência e diversidade foi registrada da família que ficou em Estrela tornou-se di- por Castro (1887), pelo padre Cuber (1975) fícil, mas existiu. Desapareceram da seletiva e por outros cronistas e viajantes da época. memória familiar os nomes de cinco irmãos Enfim, ocorreu uma irreparável perda de e irmãs de Guilhermina, mas Pedro Miguel biodiversidade pela adoção de um modelo Friedrich é lembrado como o tio que vinha de agricultura colonial que não se sustentou visitá-los (Entrevista, 22 abr. 2012). Os laços de Pedro com os familiares de cima da serra por muitas décadas. Como afirma Eunice foram, talvez, mais intensos porque ele estava Nodari, referindo-se à colonização do Oeste casado com Maria Gerhardt, irmã de Nicolau. de Santa Catarina: diferentes “grupos étni- Casamentos assim, de dois ou três ir- cos têm formas distintas de interagir com o mãos com duas ou três irmãs, possivelmente ambiente” e “suas ações modificam ecossis- refletiam a limitação das oportunidades para temas, com impactos de curta, média e longa estabelecer relacionamentos, o que ocorria duração” (2012, p. 35). Para Paulo Zarth, a preferencialmente dentro da mesma etnia. [...] destruição da floresta pela agricultura foi Em alguns casos, como o do casamento de sobretudo uma decisão de política pública Carolina Gerhardt – sobrinha de Joseph – deliberada. A ruptura com os sistemas ante-

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 com João Schneider, foi necessária uma au- pais e casou-se, anos depois, com Olga Wild- torização da autoridade religiosa, pois havia ner, cuja família migrou para o mesmo lugar consanguinidade de segundo grau, sendo (Entrevista, 23 abr. 2012). Os pais de Olga noivos primos (Livro de registro, 1863-1890). nasceram na região da colônia Santa Cruz e Outro caso de casamento entre parentes descendiam de imigrantes vindos da Boêmia, aconteceu “depois de ter obtida a dispensa então parte do Império Austro-Húngaro (Li- do impedimento” e envolveu o casal Martim vro de registro de entrada, 1867-1878). Sebastião e Elisabeth, ambos sobrinhos de Jo- Casamentos entre pessoas de etnias seph (Livro de registro, 1873-1889). diferentes aconteceram com menor frequên- Pode-se ter uma ideia da condição cia, com destaque para o caso de Willibald social da família Friedrich analisando o Gerhardt, que casou com Araci Rosa da Sil- inventário dos bens deixados quando do va, cuja família vivia na região de fronteira falecimento do pai. Os herdeiros eram a com os campos utilizados para a pecuária viúva e os sete filhos, todos nascidos na li- antes de iniciar a imigração oficial. Inclui- nha Dois Irmãos. Quatro eram menores de -se Araci entre os lavradores nacionais que, idade, inclusive Guilhermina, então com 16 no Planalto rio-grandense, são conceituados anos. Os bens imóveis eram compostos por como uma população livre e pobre, de ori- “umas terras situadas neste primeiro dis- gem lusa, hispânica, africana ou indígena, tricto da Estrella”, uma casa, uma cozinha e gerada no encontro cultural e genético des- um paiol, tudo feito de madeira, pois esse sas gentes, que se dedicavam, principalmen- material era abundante. Dentro de casa, te, à agricultura de autoconsumo, à peque- com algum valor, tinham uma mesa gran- na pecuária e ao extrativismo da erva-mate de, três bancos, um armário, uma máquina (ZARTH, 2002). A convivência de diferentes de costura e utensílios de cozinha. A lista grupos sociais resultou em aprendizagens de bens completa-se com uma carroça de mútuas. Um exemplo foi a adoção e a adap- quatro rodas, um arado, três cavalos, quatro tação de conhecimentos agrícolas dos lavra- vacas e quinze porcos (Inventário, 1888). A dores nacionais pelos colonos em Ijuí (SCH- área de terra não era pequena e, por meio NEIDER, 2008). A colonização, entretanto, do trabalho, garantiu o sustento da família alterou definitivamente o modo de vida dos em relativa pobreza. Não permitiu, contudo, lavradores nacionais, pois produziu profun- progredir economicamente. Os casamentos das mudanças socioambientais. dos Gerhardt com os Friedrich aconteceram, Joseph Gerhardt, o personagem central portanto, dentro da mesma etnia e entre pes- dessa história, teve muitos irmãos e irmãs soas de condição socioeconômica parecida. (Figura 2). Do primeiro casamento de seu Nas colônias novas, os casamentos se- pai Johann, com Elizabeth Sommer, nasce- guiram uma lógica semelhante àquela que ram também os filhos Johann, Balthasar, Se- existiu nas colônias velhas, isto é, entre pes- bastian e Peter. No segundo casamento, com soas da mesma etnia. Um exemplo é o de João Bárbara Wagner, que era 27 anos mais jovem Leopoldo Gerhardt, que migrou para Serra que o esposo (HILLEBRAND, 1847-1849), do Cadeado aos 16 anos acompanhando os ele teve outros oito filhos e filhas (Inventá-

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 rio, 1879). Uma parte desses irmãos também bronze instalada junto às “terras em que o pri- migrou com suas famílias para o vale do rio meiro colonizador Johann Gerhardt, em 1853, Taquari na década de 1850. fixou sua residência”, homenageou e agrade- Lauro Thomé fez um interessante estu- ceu aos “pioneiros, a quem, por seu trabalho do sobre a colonização em Arroio do Meio, e bravura, deve-se o continuado progresso e mas uma crítica pode ser feita à abordagem a riqueza presente.” Essa ação é um elogiável etnocêntrica que adotou, ou seja, os imigran- esforço para conservar a memória. Ela reforça, tes foram apresentados como “pioneiros gi- contudo, a visão etnocêntrica e alimenta a in- gantes […] que se dispuseram a enfrentar o terpretação de que os colonos vieram habitar desconhecido e o agreste” (1984, p. 9). Para e cultivar um ambiente intocado e sem gente. Thomé, a história somente iniciou com a Johann Gerhardt – pai de Joseph – fa- chegada dos imigrantes e o desenvolvimen- leceu em 1870 e deixou aos herdeiros um to da região aconteceu por causa do trabalho patrimônio significativo. A lista de bens per- dos colonos de origem europeia. Essa inter- mite saber que a família vivia da agricultura, pretação não pode ser sustentada, pois omi- da pequena pecuária e em relativa simpli- te a participação de outros grupos sociais e cidade, pois as terras e benfeitorias corres- exagera no significado da imigração. pondiam a 97% do patrimônio e os animais Em 1984, a administração municipal de representavam cerca de 2% da herança (In- Arroio do Meio, por meio de uma placa de ventário, 1870).

Figura 2 – Parte da genealogia

Fonte: GERHARDT, Marcos. Genealogia das famílias Gerhardt no Rio Grande do Sul. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2010.

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 É de Sebastian, irmão de Joseph nasci- grande parte do território dessas duas colô- do no Brasil em 1830, que descende um ramo nias corresponde hoje ao município de Cerro familiar (Figura 3) que também migrou para Largo. Localizavam-se em área de Floresta o Planalto do Rio Grande do Sul. A família de Estacional Decidual, na margem direita do José Sebastião, filho de Sebastian, mudou em rio Ijuí, onde as condições ambientais e os 1912 do Vale do Rio Taquari para a colônia solos eram favoráveis à agricultura. Guarani e fixou-se na linha Atolosa, lugar no Claudino Gerhardt, um dos filhos de qual se desenvolveu a colônia Serro Azul e o Luiz Joaquim, migrou com sua família de núcleo Comandahy (MOREIRA; TASSONI, RS para o estado do Pará, em 2004; Entrevista, 25 ago. 2011). A primeira foi 1980. Fixaram-se em Medicilândia, localida- criada em 1902 pela Bauernverein, uma asso- de criada às margens da rodovia transama- ciação colonizadora ligada com Companhia zônica (BR 230), aberta na década de 1970 de Jesus (SCHALLENBERGER, 2009, p. 248- pelo governo militar. Lá trabalharam como 251). A colonização do núcleo Comandahy, agricultores em terras desmatadas (Entre- ao longo do rio de mesmo nome, teve a par- vista, 11 abr. 2012). ticipação do empresário Horst Hoffmann e

Figura 3 – Parte da genealogia

Fonte: GERHARDT, Marcos. Genealogia das famílias Gerhardt no Rio Grande do Sul. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2010.

Do imigrante Balthazar, outro irmão 1931) e se dedicou à atividade madeireira, de Joseph, possivelmente descende José na qual foi sucedido por dois de seus filhos. Albino Gerhardt, que se fixou na região de Os dados coletados por Liliane Wentz reve- (que pertenceu a Passo Fundo até lam importante crescimento do número de

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 madeireiras particulares em Passo Fundo Migrar era uma forma de acessar ecos- durante a década de 1920, quando as “ser- sistemas menos transformados pela ação rarias multiplicaram-se e colocaram abaixo humana, nos quais os bens ambientais esta- pinheirais centenários, ampliando uma ati- vam mais disponíveis. vidade que produziu importantes riquezas As migrações dessa e de outras famí- para empresas e famílias, prolongando-se lias têm, portanto, motivos socioambien- até meados de 1950” (2004, p. 71). tais. Instalaram-se no vale de diversos rios, acompanharam a mudança da fronteira Características agrícola, compraram terras por preços me- nores do que os cobrados nos lugares de A história do tronco familiar de Joseph origem, desmataram, extraíram madeira e Gerhardt é marcada por três características cultivaram solos férteis. Cada uma das mi- essenciais: a primeira são as migrações su- grações é, contudo, diferente, pois acontece cessivas. Jean Roche estudou esse movimen- em um contexto histórico distinto. Elas têm to de população no Rio Grande do Sul, cha- uma historicidade única, marcada pelas con- mou-o de “enxamagem” e organizou-o em dições de seu tempo. quatro fases. A primeira durou de 1824 até As atuais ruas Germano Gerhardt, Fran- 1850 e limitou-se à região próxima de São cisco Gerhardt e Jacob Gerhardt, situadas em Leopoldo; na segunda fase, de 1850 a 1890, , possivelmente correspon- os colonos marcharam para o oeste em bus- dem ao lugar rural onde viveu a família de ca de novas terras, ocuparam os vales dos Kiliana Wasum e Baltazar Gerhardt, sobrinho rios Caí, Taquari e expandiram-se até a atual de Joseph (Livro de registro, 1880-1891). Esse ; a terceira fase começou grupo representa uma parte dos descenden- em 1890 e correspondeu à colonização do tes de Johann que não migrou e continuou Planalto, criando as colônias novas; por fim, vivendo na região do rio dos Sinos. na quarta fase, iniciada em 1914, aconteceu A segunda característica dos Gerhardt, um êxodo do Rio Grande do Sul, com a mi- do tronco familiar de Joseph, válida para o gração de colonos para os estados vizinhos século XIX e início do XX, é sua predominan- (1969, p. 339-361). Os Gerhardt, do tronco te atividade agrícola em pequenas proprie- estudado, são mais um caso e exemplo que dades rurais, ou seja, possivelmente eram confirma a explicação de Roche, pois acom- agricultores na Europa e a maioria deles panharam esse fluxo geral de população. deu continuidade a essa atividade no Brasil. Na avaliação dos historiadores Sílvio Grande parte dos homens do ramo da famí- Correa e Juliana Bublitz, o lia que vivia em Lajeado e Arroio do Meio no final do século XIX aparece, nos livros de [...] que Roche não percebeu, ou simples- mente não assinalou, é que a enxamagem revisão do alistamento eleitoral (1890), dis- humana implicava uma degradação am- criminada como “lavrador”. biental que comprometeria o sustento das Obviamente existiram exceções e o gerações futuras quando não houvesse trabalho agrícola esteve combinado com mais terras por colonizar (2006, p. 54).

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 outras atividades. Alfredo Gerhardt exercia da de 1920 (Cópia da acta, 1922). Esses casos a profissão de ourives em Estrela (Álbum, não foram exceção. Conforme René Gertz 1926, p. 114). João Nicolau, além de agricul- (2010), houve uma relevante participação tor, produzia aguardente para o comércio de imigrantes e seus descendentes na polí- em seu alambique localizado na linha Boa tica rio-grandense no período republicano. Vista, em Estrela (Registros fiscais). Vários João Leopoldo Brentano, filho de Bárbara outros colonos tiveram alambiques, ativi- Gerhardt e neto de Joseph, tornou-se sacer- dade que era favorecida pela facilidade de dote e atuou na formação dos círculos ope- cultivar cana-de-açúcar junto ao vale do rio rários durante os governos de Getúlio Var- Taquari, onde a geada raramente ocorria. gas. Criá-los era uma forma de disciplinar As autoridades municipais de Lajeado re- os trabalhadores das indústrias, sob a coor- gistraram a existência, em 1910, de 66 alam- denação da Igreja Católica, evitando ou de- biques, 28 fábricas de rapadura e quatro sarticulando sua auto-organização em sindi- de melaço (Relatório, 1910). João Gerhardt catos e associações (SOUSA, 1998). Com os – sobrinho de Joseph – possuía uma fábrica círculos operários, se “pretendia suprir a au- de rapadura na localidade de São Caetano sência do Estado na assistência social, ponto (Livro de lançamento, 1897). José Gerhar- fundamental para a expansão e a adesão do dt – outro sobrinho – era alfaiate (Livro de operariado” (DIEHL, 1990, p. 9). registro, 1873-1889). Sebastian Gerhardt A terceira característica é a existência foi contratado pela Câmara Municipal de de uma ampla rede de parentesco. Forma- Taquari para construir uma ponte em São ram-se sete gerações a partir da imigração Caetano (Relatório, 1881). Luiz era “fabri- de Johann para o Brasil e grande parte dos cante das excellentes bebidas: limonada ga- Gerhardt que vive hoje no Rio Grande do Sul zosa, soda Brasil, Estrellina e Orangerade” descende desse mesmo antepassado comum. no distrito de Corvo (O Paladino, 25 dez. Algum cuidado é necessário ao falar em pa- 1931, p. 3), enquanto Adolpho fabricava as rentesco. Um mínimo de cinco grupos fami- “saborosas cervejas ‘corvo’ (branca) e ‘Por- liares diferentes com esse sobrenome vieram co’ (preta)” (O Paladino, 25 dez. 1931, p. 3; para o estado como imigrantes na primeira Álbum, 1926, p. 196). Nicolau Gerhardt, de metade do século XIX e outros imigraram Lajeado, expôs um par de rédeas de couro na segunda metade daquele século (HILLE- trançado na Exposição Estadual de 1901, BRAND, 1824-1853). Parte importante deles como resultado de seu trabalho (Catálogo, estava ligada à Igreja Luterana, como é o caso 1901, p. 218). da família de Jacob Gerhardt (HUNSCHE, Há registros, ainda, de casos de parti- 2004; Livro de registro, 1897-1958), diferindo cipação na vida pública: Nicolau e Sebastian do tronco de Johann, no qual predominou o Gerhardt foram eleitos juízes de paz em Es- vínculo com a Igreja Católica. trela, em 1887 (Relação nominal, 1882-1889), e Nicolau e Adolfo atuaram como membros do Conselho Municipal de Estrela na déca-

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 Considerações finais Rio Grande do Sul, in the nineteenth and twentieth centuries, through the study Cabe ao historiador reescrever a his- of the trajectory of immigrant families. tória de acordo com as abordagens que são Uses the approach of environmental valorizadas em cada época e conforme o history and relates the family experien- ce with the regional history. Concludes olhar sobre velhas e novas fontes, permitin- that the environmental conditions were do refazer as interpretações. Nesse sentido, also among the reasons for immigration este texto visa demonstrar a possibilidade to southern , including the after in- de compreender a história da imigração e da ternal migration. The presence and work colonização do Sul do Brasil na perspectiva of the settlers, in interaction with other da história ambiental. social groups, generated social and envi- A trajetória dessas famílias, apresenta- ronmental transformations. da aqui como um caso dentre muitos, não re- úne informações suficientes para estabelecer Keywords: Environmental history. Immi- fortes vínculos entre a colonização e as trans- gration. Gerhardt’s families. formações ambientais, mas revela importan- tes indícios de que os colonos modificaram Resumen profunda e permanentemente os ambientes que repovoaram. A trajetória também parti- El artículo evalúa la posibilidad de com- culariza e detalha aspectos da história sulina, prender las transformaciones ambienta- que em geral, são abordados pela historio- les generadas por la colonización de Río grafia de modo mais panorâmico. Grande do Sul, en los siglos XIX y XX, O estudo dessa trajetória familiar ali- a través del estudio de la trayectoria de familias inmigrantes. Emplea el enfo- menta, por fim, a ideia de que a imigração de que de la historia ambiental y relaciona europeus para o Brasil e as migrações internas la experiencia familiar con la historia dos descendentes tiveram também razões am- regional. Concluye que las condiciones bientais. Não como um argumento explícito ambientales también se encontraban de atração, mas pela existência de condições entre los motivos de la inmigración en ambientais favoráveis para acolher e susten- el sur de Brasil, así como de la migraci- tar a vida de numerosa população migrante, ón interna posterior. La historia de las que se somou aos habitantes rio-grandenses familias estudiadas evidencia cómo la ou substituiu os indígenas e os lavradores na- presencia y el trabajo de los colonos, en cionais, ocupando seus territórios. interacción con otros grupos sociales, han generado profundas transformacio- Abstract nes socioambientales. Palabras clave: Historia ambiental. Inmi- The article evaluates the possibility of gración. Familias Gerhardt. understanding the environmental trans- formations generated by colonization in

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 Notas GERHARDT, Marcos. Colonos ervateiros: his- tória ambiental e imigração no Rio Grande do 1 Agradeço aos entrevistados, a Bernadete G. Koch- Sul. Esboços, Florianópolis, v. 8, n. 25, 2011. hann, Germano Gerhardt, Angela T. Sperb, Maria ______. História ambiental da Colônia Ijuhy. Ijuí: T. Gerhardt, Sonia O. Gerhardt, Graciela Gerhardt, Teresinha Gerhardt, Luiz R. Schwertner e ao CNPq. Unijuí, 2009. GERTZ, René E. A República no Rio Grande do Sul: política, etnia e religião. História Uni- Referências sinos, São Leopoldo, v. 14, n. 1, p. 38-48, jan./ abr. 2010. Album commemorativo do cincoentenario do muni- HUNSCHE, Carlos H.; ASTOLFI, Maria. O qua- cipio de Estrella, 1926. AHRS. driênnio 1827-1830 da imigração e colonização alemã AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela pro- no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: G&W, 2004. víncia do Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Ita- KLUG, João. Imigração no sul do Brasil. In: tiaia; São Paulo: USP, 1980. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Orgs.). CASTRO, Evaristo Affonso de. Notícia descrip- O Brasil imperial. Rio de Janeiro: Civilização tiva da região missioneira na província de São Pe- Brasileira, 2009. dro do Rio Grande do Sul. Cruz Alta: Typogra- KREUTZ, Marcos R. O contexto ambiental e as phia do Commercial, 1887. primeiras ocupações humanas no Vale do Taquari. Catálogo da Exposição Estadual de 1901: Rio Gran- 2008. Dissertação (Mestrado em Ambiente e de do Sul. Porto Alegre: Officina Typographica Desenvolvimento) – Centro Universitário Uni- de Gundlach e Becker, 1901. vates, Lajeado, 2008. CHRISTILLINO, Cristiano L. Estranhos em seu LANDO, Aldair M.; BARROS, Eliane C. Capi- próprio chão: o processo de apropriações e ex- talismo e colonização: os alemães no Rio Gran- propriações de terras na província de São Pe- de do Sul. In: DACANAL, José H. (Orgs.). RS: dro do RS (O Vale do Taquari no período de imigração e colonização. Porto Alegre: Mercado 1840-1889). 2004. Dissertação (Mestrado em Aberto, 1980. História) – UNISINOS, São Leopoldo, 2004. MACHADO, Neli T. G.; SCHNEIDER, F. Aná- CORREA, Sílvio M. S.; BUBLITZ, Juliana. Ter- lise parcial sobre a cerâmica arqueológica do ra de promissão: uma introdução à eco-história Vale do Taquari, Rio Grande do Sul. Cerâmica, da colonização no Rio Grande do Sul. Santa v. 54, p. 103-109, 2008. Cruz do Sul: Edunisc; Passo Fundo: Ed. Uni- MOEHLECKE, Germano O. Os imigrantes ale- versidade de Passo Fundo, 2006. mães e a Revolução Farroupilha. São Leopoldo, DIEHL, Astor A. Os círculos operários: um pro- s.ed, 1986. jeto sócio-político da igreja católica no Rio MOREIRA, Paulo S.; TASSONI, Tatiani de S. Grande do Sul (1932-1964). Porto Alegre: EDI- Povoadores da Colônia Guarani: 1891-1922. Porto PUCRS, 1990. Alegre: EST, 2004. Festschrift zur Jahrhundertfeier der ersten NODARI, Eunice S. Mata Branca: o uso do ma- Deutschen Einwanderung in Rio Grande do chado, do fogo e da motosserra na alteração da Sul: die Deutschen der Kolonie Serra Cadeado paisagem de Santa Catarina. In: NODARI, Eu- [1824-1924]. Ijuhy: Livraria Serrana, 1924. nice S.; KLUG, João (Orgs.). História ambiental e FLORES, Hilda A. H. Alemães na guerra dos far- migrações. São Leopoldo: Oikos, 2012. rapos. Porto Alegre: PUCRS, 1995.

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História: Debates e Tendências – v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 124-140 Relatório da Câmara Municipal de Taquary, Inventário post-mortem de Josef Gerhardt. Es- apresentado pelo seu presidente Pedro Michel trela, 1884. APERS. ao dar posse á nova Camara em 7 jan. 1881. Cor- Inventário post-mortem de Pedro Friedrich. Es- respondência da Câmara, 1874-1881. AHRS. trela, 1888. APERS. Mapa demonstrativo da colônia fundada em Inventário post-mortem de Pedro Gerhardt. 1856 pelo coronel reformado da Guarda Na- Montenegro, 1874. APERS. cional Victor José Ribeiro em sua fazenda na margem esquerda do rio Taquari, 1860. AHRS. Kalender für die Deutschen Evangelische Ge- meinden in Brasilien, 1922. Cópia da acta da sessão extraordinaria do Conselho Municipal de Estrella, 15 maio 1922. Entrevista com Bruno Oswaldo Gerhardt, por Correspondência expedida pela Câmara Mu- Graciela Gerhardt e Teresinha Gerhardt, 25 nicipal de Estrela. AHRS. ago. 2011. Relatórios apresentados pelos intendentes ao Entrevista com Eliseu Gerhardt, por Marcos Conselho Municipal de Lajeado. 1909-1929. Gerhardt, 11 abr. 2012. AHL. Entrevista com Hugo Gerhardt, por Marcos Revisão do alistamento eleitoral da 4a secção Gerhardt, 22 abr. 2012. do município de Lajeado, 1890. AHL. Entrevista com Rita Gerhardt, por Marcos Livro de lançamento dos contribuintes do im- Gerhardt, 23 abr. 2012. posto da indústria e profissões, 1897. Intendên- Livro de registro de batismo de Hamburgo Ve- cia Municipal da Villa do Lageado. Arquivo lho, 1880-1891. Cúria Metropolitana de Porto Histórico de Lajeado (AHL). Alegre (Cúria). Relatório apresentado pelo intendente João Livro de registro de batismo de Linha Bro- Baptista de Mello ao Conselho Municipal [de chier, 1897-1958. IECLB. Lajeado] em 1910. Porto Alegre: Officinas Ty- Livro de registro de batismo de São Leopoldo, pographicas da Livraria do Commercio, 1910. 1855-1859. Cúria. AHL. Livro de registro de casamento de Dois Irmãos, Registros fiscais de venda de aguardente. 1863-1890. Cúria. Acervo familiar. Livro de registro de casamento de Estrela, O Paladino [jornal], Estrela, 25 dez. 1931. Acer- 1873-1889. Cúria. vo de Luiz R. Schwertner. Livro de registro de entrada de imigrantes des- DIE KOLONIE. Santa Cruz do Sul: Centro de tinados à Nova Petrópolis, 1867-1878. AHRS. Documentação da Universidade de Santa Cruz do Sul., 30 nov. 1894. Jornal. Livro de registro de óbito de Estrela, 1873- 1915. Cúria. DIE SERRA POST., 20 jul. 1928. Museu Antro- pológico Diretor Pestana (MADP). Jornal. Livros de registro de batismo de Estrela, 1873- 1928. Cúria. Inventário post-mortem de Barbara Wagner. Es- trela/Taquari, 1879. APERS. CUBER, Antoni. Nas margens do Uruguai. 1898. Ijuí: Museu Antropológico Diretor Pestana Inventário post-mortem de Bárbara Friedrich. (MADP), 1975. Estrela, 1909. APERS. Inventário post-mortem de João Gerhardt. Es- trela/Taquari, 1870. APERS.

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