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Cadernos Metrópole ISSN: 1517-2422 [email protected] Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil

Leitão, Gerônimo Transformações na estrutura socioespacial das cariocas: a como um exemplo Cadernos Metrópole, núm. 18, julio-diciembre, 2007, pp. 135-155 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=402837797007

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Gerônimo Leitão

Resumo Este trabalho pretende contribuir para uma melhor caracterização da dinâmica da pro- Abstract dução do ambiente construído nas favelas This work intends to contribute to a better cariocas, a partir de um estudo sobre a fa- characterization of the production dynamics vela da Rocinha, localizada na zona sul da of the constructed environment in cidade do . Procuramos de- of Rio de Janeiro, by means of a study of monstrar, inicialmente, que, ao longo de Rocinha, located in the south part of the cinqüenta anos, de um espaço de uso predo- city. First, we demonstrate that, during minantemente residencial, a Rocinha evoluiu a period of fifty years, Rocinha’s space para outro, cada vez mais complexo. Nesse use, which used to be a predominantly período, ocorreram mudanças significativas residential, became more complex. Changes no processo de construção da moradia, sen- also happened in the dwellings’ construction do que, nos últimos vinte anos, verificou-se, process and, over the last two decades, a também, a estruturação de um expressi- significant informal real estate market has vo mercado imobiliário informal na . been structured in the . Despite the Apesar das particularidades da Rocinha, as particularities of Rocinha, the considerations considerações sobre essa comunidade con- about this community can contribute to an tribuem para uma compreensão do que understanding of what happens in other ocorre nas demais favelas cariocas, no início slums of the city of Rio de Janeiro, in the do século XXI. beginning of the 21st century. Palavras-chave: favelas cariocas; Rocinha; Keywords: Rio de Janeiro’s slums; rocinha; mercado imobiliário informal; produção da informal real estate market; dwelling moradia em assentamentos informais; estru- production in informal settlements; socio- tura socioespacial de favelas. spatial structure of slums.

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Rocinha: a maior favela empresas têm tido, inclusive, acesso a linhas da América Latina, uma especiais de financiamento, o que contribuiu para estimular, ainda mais, o crescimento cidade cearense ou mais dos negócios.6 Novas oportunidades surgem um bairro carioca? todos os dias, inclusive no setor das ativi- dades turísticas: a cidade passou a ser, re- Nos últimos vinte anos, poucas cidades1 no centemente, incluída no roteiro de agências, estado do Rio de Janeiro cresceram tanto, que levam até lá visitantes – estrangeiros, proporcionalmente, quanto esta: sua po- sobretudo – para conhecerem as belezas da pulação praticamente triplicou.2 Os novos natureza, as peculiaridades do seu urbanis- moradores vieram, em sua maioria, do nor- mo e o estilo de vida de seus moradores. deste do país. São cearenses, paraibanos, A vitalidade da atividade comercial pernambucanos, alagoanos, enfim, gente de nessa cidade só parece menor do que a da todas as partes dessa região3 do país. Diz- construção civil: a impressão que se tem é se, mesmo, que os moradores dessa cidade a de que se está num canteiro de obras per- se não são nordestinos, são filhos ou netos manente, tal o número de edificações sendo daqueles que vieram tentar a sorte no Rio construídas, ampliadas e reformadas. Para de Janeiro e por aqui ficaram. atender a uma demanda crescente por es- Como em qualquer outra cidade flumi- paço, a solução encontrada por muitos é a nense, nesta também existem lugares onde verticalização das moradias,7 investindo tu- 136 moram os que têm maior renda e outros on- do que podem nas fundações, já que delas de vivem aqueles que são mais pobres.4 Isso depende, principalmente, esse processo de pode ser verificado não apenas na aparência crescimento para o alto. Muita gente não de ruas e de edifícios. Pode ser observado, acredita em quanto se paga e quantas são as também, nas palavras dos próprios morado- transações de compra, venda e locação que res: quando alguém diz que mora neste ou ocorrem nessa cidade: num de seus bairros, naquele lugar, está dando mais informações o valor do aluguel de um apartamento, só do que tão-somente seu endereço. para citar um exemplo, equivale ao de um O diversificado comércio local – com imóvel com características semelhantes nos mais de 1.500 estabelecimentos – não fica bairros da Glória, Catete e Flamengo, na zo- nada a dever ao de muitas cidades e é mo- na sul da cidade do Rio de Janeiro.8 tivo de orgulho para os moradores, quando Mas lá não se vive só para o trabalho: afirmam que, cada vez mais, não é preciso a cultura e o lazer também têm o seu lu- sair para outros lugares em busca daquilo gar – e importante. É bem verdade que não que precisam comprar.5 Há quem diga, in- há um cinema ou um teatro – mas esse tam- clusive, que não passa um mês sem que um bém é um problema de outras cidades do in- novo estabelecimento comercial abra suas terior fluminense. Porém, da casa noturna portas. São, em sua quase totalidade, micro de espetáculos – onde já se apresentaram e pequenas empresas, embora já se tenha alguns dos principais artistas da música po- notícia do interesse de grandes organizações pular brasileira – aos grupos amadores de se instalarem lá. Muitas dessas pequenas teatro – que, muitas vezes, realizam suas

cadernos metrópole 18 pp. 135-155 20 sem. 2007 transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a rocinha como um exemplo apresentações pelas ruas da cidade –, pas- e à violência, como aconteceu, anos atrás, sando pelos cantadores nordestinos que com o município de Duque de Caxias, na entoam seus versos na feira realizada na Baixada Fluminense. Para essas lideranças, praça principal e a escola de criada não é justo que “toda uma comunidade de no final dos anos 80, pode-se dizer, sem gente trabalhadora” tenha “sua reputação medo de errar, que a cultura está presente manchada” pela ação de um pequeno grupo por toda parte.Tudo isso sem contar a Rá- de criminosos. Muitos se queixam, também, dio FM, inaugurada há alguns anos e que se de arbitrariedades praticadas por policiais.14 transformou em mais um motivo de orgu- Mesmo assim, reconhecem, com pesar, o lho para a comunidade local,9 assim como poder que o narcotráfico possui na cidade o sistema de tv a cabo, cuja implantação e que se manifesta de diferentes modos: da conectou a cidade ao que acontece no resto assistência social a famílias pobres à garan- do mundo.10 tia de manutenção da segurança nas áreas Nessa cidade, as associações de mora- situadas no entorno dos pontos de comer- dores têm lutado, ao longo dos anos, pela cialização de drogas. melhoria das condições de vida da população Essa “cidade”, contudo, não existe. local. Algumas são mais atuantes e repre- Exceto, talvez, no imaginário de muitos de sentativas do que outras, contudo, essas en- seus moradores. Nesse imaginário, existe, tidades desempenham, ao lado de outras or- sim, uma cidade chamada Rocinha. Localiza- ganizações não-governamentais, um impor- da na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, tante papel no dia-a-dia da comunidade.11 é, para muitos, a maior favela da América 137 Mas também existem problemas – e são­­ Latina – uma expressão invariavelmente uti- muitos. A começar pela infra-estrutura, que a lizada, principalmente pela imprensa, para maioria de seus habitantes considera o prin- qualificá-la. Para quem mora na Rocinha, cipal problema existente na comunida­de. São é algo mais do que isso: trata-se de uma inúmeras as queixas referentes à ausência de verdadeira cidade, com vários “bairros”, investimentos do poder público em obras de que possuem, cada um deles, uma identi- saneamento básico – não sem ra­zão: a maio- dade própria. Alguns dos cearenses que lá ria das ruas não possui rede de esgoto e o vivem – e são muitos – chegam mesmo a abastecimento de água é bastante precário dizer, num misto de orgulho e exagero, que em algumas localidades. Apesar das diver- a “Rocinha é a segunda maior cidade do sas clínicas privadas que lá se instalaram nos Ceará,­ depois de Fortaleza”, tal o número últimos anos – algumas até sofisticadas12 ­­ – , ­­­­ de “conterrâneos”. a população reivindica, também, um melhor­ Nem a “maior favela da América Latina”, atendimento público na área de saúde. nem a “segunda maior cidade do Ceará”: des- Há, ainda, a violência13 – um assunto de a metade dos anos 1980, a Rocinha é mais sobre o qual a maioria dos moradores evi- um bairro15 da cidade do Rio de Janeiro, por ta comentar com aqueles que são de fora. decisão da então administração municipal – As lideranças de associações comunitárias um destino certamente não imaginado pelas lamentam que, volta e meia, jornais e revis- espanholas que cultivavam uma pequena roça tas associem o lugar onde vivem ao crime nesse local, cinqüenta anos antes.

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Ocupando, atualmente, uma área de (Índice de Desenvolvimento Humano) da aproximadamente 454.000 metros qua- cidade – 0,89, numa escala de 0 a 1 –, en- drados, na encosta dos morros Dois Irmãos quanto a Rocinha tem o quarto pior – 0,59. e Laboriaux, a Rocinha limita-se na parte Quanto à educação, metade da população da mais baixa com a auto-estrada Lagoa-Barra Gávea tem nível superior, enquanto que so- (RJ-071) e se desenvolve até os pontos mais mente 2% de seus moradores são analfabe- altos, margeando a Estrada da Gávea. O ter- tos. O oposto ocorre na Rocinha: 20% dos reno ocupado pela favela apresenta forma cidadãos que lá vivem não sabem ler nem de concha e é constituído de uma parte pla- escrever e apenas 2% tiveram acesso a cur- na, que representa o núcleo central, junto à sos universitários. Enquanto que a escolari- entrada do Túnel Dois Irmãos, desenvolven- dade média na Gávea alcança doze anos de do-se, em seguida, por terrenos de grande estudo, na Rocinha reduz-se a quatro anos. declividade até o topo do morro. Variadas Ainda no campo da educação: na Gávea, fontes apontam números que oscilam entre apenas 5% das crianças de 7 a 14 anos es- 45 mil e 200 mil habitantes, contudo, dados tão fora da escola, porém, na Rocinha, 25% apresentados pela Prefeitura da Cidade do das crianças não têm acesso à escolas. Rio de Janeiro16 revelam uma população de No que se refere à renda, a dispari- 56.313 moradores, no ano de 2000. dade é tão acentuada quanto nos índices A Rocinha tem como vizinhos os bair- relativos à educação: a renda per capita da ros da Gávea e de São Conrado – duas Gávea é dez vezes maior do que a da Ro- 138 áreas residenciais das elites cariocas. Essa cinha. Na Gávea, apenas 1% dos morado- proximidade evidencia, especialmente para res ganham menos de meio salário mínimo o olhar do visitante estrangeiro, as dispa- por mês. Na Rocinha, esse número alcan- ridades da distribuição de renda em nos- ça 41%. Na Gávea, a renda média men- so país: afinal, não é necessário caminhar sal é de R$2.042,00, na Rocinha, apenas muito mais do que um quilômetro para ir R$214,00. A taxa de mortalidade infantil do “inferno” dos precários casebres de ma- na Rocinha é cinco vezes mais alta do que deira – localizados em áreas de risco na na Gávea. Os moradores desse bairro, no encosta, sem água corrente e esgoto – ao entanto, vivem, em média, 13 anos a mais “céu” das sofisticadas lojas de um dos mais do que aqueles que vivem na Rocinha. requintados shopping-centers do Rio de Por sua vez, no que diz respeito ao Janeiro, onde é possível encontrar os mais acesso à infra-estrutura de saneamento bá- caros artigos de consumo. sico, 99% dos moradores da Gávea dispõem Os dados apresentados, em março de de rede de esgoto oficial, ao passo que na 2001, pelo Relatório de Desenvolvimento Rocinha, 60% da população não possui es- Humano do Rio de Janeiro – elaborado pela gotamento sanitário adequado. Entretanto, Organização das Nações Unidas em parceria é possível encontrar, nessa comunidade com o Instituto de Pesquisa Econômica Apli- favelada, áreas relativamente bem provi- cada (Ipea) e a Prefeitura da Cidade do Rio das de infra-estrutura – abastecimento de de Janeiro – confirmam essa polarização água, esgotamento sanitário, vias pavimen- social: a Gávea tem o segundo maior IDH tadas, iluminação pública –, como no caso

cadernos metrópole 18 pp. 135-155 20 sem. 2007 transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a rocinha como um exemplo do Bairro Barcelos (setor localizado na par- no senso comum – de que as moradias na te baixa do morro, junto ao acesso do Tú- favela teriam exclusivamente um valor de nel Dois Irmãos). Porém, também é possível uso, não se imaginando, portanto, que pos- encontrar locais de ocupação mais recente, sam ter, também, um valor de troca. E, de onde as construções são bastante precárias, acordo com essa visão, mesmo que ocorram desprovidas de qualquer infra-estrutura e, transações de compra e venda, elas seriam não raro, situadas em áreas de risco. inexpressivas do ponto de vista quantitati- A Rocinha é, também, o lugar “onde as vo. Afinal, a precariedade da infra-estrutura coisas acontecem primeiro”, como afirma urbana nesses assentamentos informais, uma liderança comunitária local, destacando a situação irregular da posse da terra e as os projetos inovadores de geração de renda características das edificações – na quase e de promoção social que tiveram início lá e totalidade dos casos, fora dos padrões edilí- acabaram por repercutir em outras favelas cios da cidade oficial – parecem tornar ainda cariocas. Além de ser esse lugar “onde as mais surpreendente a possibilidade da exis- coisas acontecem primeiro”, a Rocinha, ape- tência de um mercado imobiliário na favela. sar de todas as suas particularidades, é uma Entretanto, várias reportagens, publicadas favela cuja dinâmica de produção do habitat nas últimas duas décadas, têm destacado traduz o que acontece – em escalas diferen- algumas particularidades desse mercado ciadas – nas demais favelas cariocas. informal, cujo surgimento é associado às transformações ocorridas na estrutura so- cioespacial da favela, nesse mesmo período, 139 “É mais caro do que bem como à mudanças na relação dessas co- munidades com o Estado. na Glória”: o mercado A Rocinha, pelas suas dimensões e, imobiliário da Rocinha também, pela sua peculiar localização no tecido urbano da cidade do Rio de Janei- Ao longo das duas últimas décadas, observa- ro, ocupa lugar de destaque no noticiário se a estruturação de um expressivo mercado referente ao mercado imobiliário informal. imobiliário informal na Rocinha, sendo que, Em 1979, uma extensa matéria publicada a partir do final da década de 1970, passa a sobre essa comunidade favelada, no Jornal ocorrer uma crescente diferenciação socio- do Brasil,18 chama a atenção do leitor para a espacial interna, originando o surgimento de “frenética atividade de exploração imobiliá­ vários “bairros” – à semelhança do que se ria, construção, vendas (barracos: CR$100 verifica em outras grandes favelas cariocas. mil para cima) e aluguéis de quarto e de ca- A existência de um mercado imobiliário­ sas e barracos, que começam em CR$2 mil na favela é tema recorrente, há anos, no no- e daí sobem”. Os autores da reportagem ticiário da imprensa carioca.17 As matérias, destacam, nesse “frenético” mercado imo- quase sempre, destacam os valores alcança- biliário, as chamadas “habitações coletivas”, dos pela venda e locação de imóveis – sur- não só pelos valores cobrados na locação preendentes, no relato dos jornalistas. A sur- desses imóveis, mas, principalmente, pela presa se deve, em parte, à idéia – freqüente precariedade das condições de salubridade

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e pelas reduzidas dimensões dos cômodos: pelo menos, um salário mínimo. Mas, ainda “São edifícios de dois, três, quatro, cinco há os que chegam sem emprego, por terem andares, constituídos apenas de quartos e, conhecidos ali ou porque a favela está per- modo geral, a cada pavimento, correspon- to do mercado de trabalho da Gávea e São dendo a um banheiro. Abrigam casais, e, Conrado”. Existem, ainda, as áreas mais va- modo geral, famílias de cinco ou mais pes- lorizadas da comunidade, como a Via Ápia, soas. Ou duas famílias dividem o aluguel de que é “considerada a rua nobre da parte CR$2 a CR$3 mil”. baixa da favela, porque, ali, foi feito há al- Seis anos mais tarde, em novembro de guns anos um loteamento e os comercian- 1985, o mesmo Jornal do Brasil publicaria tes locais arremataram os terrenos, embora uma reportagem19 sobre a relação existente ninguém tenha escritura definitiva”. entre os investimentos realizados pelo po- Em dezembro de 1989, uma reporta- der público – a execução de obras de sanea­ gem com o título “A Rocinha vira o jogo: A mento básico e de pavimentação – com a favela mais famosa do Brasil torna-se um elevação dos valores de aluguéis praticados bairro popular integrado à paisagem”, pu- nas comunidades faveladas. A realização blicada pela revista Veja, ressalta as trans- dessas melhorias e o empobrecimento de formações que ocorreram na comunidade, setores da classe média estariam atraindo decorrentes – em parte – de investimentos novos moradores para a favela. Mais uma realizados pelo poder público, bem como vez, a Rocinha é alvo de destaque: “Em al- seus impactos na estrutura socioespacial da 140 gumas favelas, sobretudo na Zona Sul, co- favela, ressaltando o que define como “clas- mo a da Rocinha, os aluguéis de kitchnetes­ semedização da Rocinha”: “As casas estão chegam a Cr$300 mil, com reajustes se- ficando melhores, mais amplas, servidas por mestrais. Ali, os antigos proprietários com- esgotos e luz elétrica. Os aluguéis começam pram e reformam velhos prédios para alu- a subir, e um apartamento pode custar até gá-los a quem não consegue mais pagar por 500 cruzados novos por mês”. apartamentos em Copacabana ou Quase dez anos após a publicação dessa e hoje procuram a favela, que hoje é mais reportagem pela revista Veja, em 6 de de- um grande bairro”. zembro de 1998, o Jornal do Brasil volta A existência de uma empresa de admi- a enfocar o mercado imobiliário informal nistração de imóveis no interior da favela, da Rocinha, com a informação, prestada bem como os valores alcançados pela loca- por um dirigente da Associação Comercial ção e venda desses imóveis, são destacados e Industrial da Rocinha (Acibro), de que nessa matéria, que revela, ainda, que, em “um imóvel de dois quartos na Rocinha 1985, mudanças estão em curso na favela pode custar até R$45 mil”, sendo que “o da Rocinha: “Barraco, mesmo, só na par- aluguel de um apartamento do mesmo ta- te alta do morro, que se junta à favela do manho não sai por menos de R$500, preço Vidigal. Ali, os barracos são vendidos por de um equivalente em Botafogo (Zona Sul)”. Cr$5 milhões a Cr$20milhões, e não é Apesar dos valores elevados, haveria algu- sempre que tem para comprar. A maioria mas vantagens para quem compra ou aluga das famílias tem renda média mensal de, imóveis na Rocinha. O não pagamento do

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Imposto Predial e Territorial Urbano é uma Copacabana e mais altos do que a média dos delas, como afirmava o então administrador anunciados em bairros tradicionais da cida- da XXVII Região Administrativa, Jorge Luís de, como Botafogo, e ”. Os Nascimento da Silva: “Só pagam os que mo- dados foram obtidos junto à Empresa Bra- ram nas áreas mais nobres. Isto equivale a sileira de Avaliação Patrimonial (Embrap), 20% da população. Por áreas mais nobres, que havia realizado pesquisas sobre o preço entenda-se o Bairro Barcelos, considerado o médio do aluguel de um sala e quarto em Baixo Rocinha, a Via Ápia e a Dionéia”. bairros das zonas Norte e Sul – como La- Outra vantagem proporcionada pelos ranjeiras e (R$400); Glória imóveis adquiridos no mercado imobiliá- e Catete (R$410); Tijuca (R$360); Grajaú rio da Rocinha, destacada por Jorge Luís, e (R$350) e (R$300) –, “é que muitos não pagam luz e água: tem concluindo que os valores levantados nessas muito gato por aí”. As declarações de um áreas, eram “bem inferiores à base de preço morador recente da Rocinha, “integrante da de casas e apartamentos com a mesma di- nova classe média que veio para a favela”, mensão na Rocinha”. apontam outras vantagens: proximidade de Ainda nessa matéria, um dos sócios locais de trabalho e de amenidades. Segun- de uma das imobiliárias que atuam na Ro- do Marcus André Figueiredo, funcionário cinha – a Mauro Imóveis – aponta as razões de um hotel em São Conrado, apesar de para o elevado valor dos aluguéis na Roci- gastar um pouco mais com o novo aluguel nha: “O aluguel de um quarto e sala aqui (R$400), valeu a pena deixar o município de custa de R$400 a R$500, e não há quase 141 Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense: “O que imóvel maior do que isto. Os preços são eu gastava de passagens de ônibus já dá a altos principalmente pela localização privi- diferença do aluguel. Agora vou a pé e ainda legiada da favela: é na Zona Sul, perto da pego um solzinho. Trabalho perto e tenho praia, segura e com ônibus pra todo lugar”. tudo o que quero por aqui”. As justificativas apresentadas pelo sócio da Em março de 1999, o jornal O Globo, Mauro Imóveis são confirmadas pelo depoi- revelava que “morar na Rocinha é tão caro mento de outro entrevistado, morador de quanto em Copacabana”. De acordo com a um quarto e sala na estrada da Gávea: “Já matéria publicada, a Rocinha seria “um dos pensei em me mudar para um dois quartos bairros mais novos e valorizados do Rio” em Jacarepaguá de R$350, mas gastaria a e, mais uma vez, são destacados os servi- diferença com o ônibus para vir para o tra- ços, o comércio diversificado e os meios balho na Rocinha”. de transporte disponíveis na comunidade: Meses após a publicação dessa maté- “um supermercado, dois bancos, cerca de ria – na edição de 31 de outubro –, o jornal dois mil pontos comerciais de variados ra- O Globo aponta quem seriam “os grandes mos e linhas de ônibus para qualquer ponto donos das favelas”: “Apenas oito famílias da cidade”. Para surpresa, certamente, de têm mais de 500 imóveis – entre lojas, ca- muitos leitores, “a maior favela da América sa, apartamentos e quartos de aluguel – em Latina, convertida em bairro em 1993, tem quatro das principais favelas do Rio: Roci- imóveis para alugar por preços iguais aos de nha, Rio das Pedras, Vidigal e Jacarezinho”.

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Para o contador Ricardo Dias – que adminis- o seu Cozzi, que administra imóveis na tra três prédios do cearense José Edvard de Rocinha desde 1966, sendo, atualmente, Souza, com 47 apartamentos e duas lojas –, responsável pela cobrança de mais de 300 no mercado imobiliário da Rocinha, a oferta aluguéis. Nos últimos anos, seu Cozzi tem supera a demanda: “Como tem muita gente um novo cliente na sua administradora, co- construindo, chega a não ter mercado para mo relata Paiva (2002): “Um amigo, mora- tanto imóvel e os preços diminuem”. Há, no dor de um prédio em frente ao mar de São entanto, quem esteja disposto a investir nes- Conrado – o bairro de luxo onde se situa a se mercado e um dos “maiores investidores” Rocinha – comprou uma pequena quitinete é o motorista Antônio Bahia Rosa, mineiro na favela. Ele tinha dinheiro na poupança e de 47 anos, que “construiu um prédio (com chegou à conclusão de que poderia ganhar 14 imóveis de aluguel) na Estrada da Gávea” bem mais se usasse o capital para comprar e, noutro terreno próximo, “está construin- imóveis aqui e alugar. A quitinete custou do o maior prédio na encosta da Rocinha, R$7.800 e está rendendo ao proprietário com sete andares e 50 conjugados para alu- R$200 por mês. “Ele já me disse que quer gar”. Nesse prédio, que se encontrava em comprar outros”. construção quando foi feita a reportagem, Os “preços altos no mercado imobiliá- “nos três primeiros andares prontos, 22 rio da favela” voltaram a ser notícia na edi- apartamentos já estão alugados por R$200, ção de 24 de março de 2002 de O Globo, enquanto outros 18 já têm pretendentes”. com destaque para “uma casa de três anda- 142 Apesar da situação irregular do imóvel, seu res – com quadra de futebol, piscina, sauna, proprietário não tem dúvidas quanto à esta- churrasqueira e dez vagas de garagem – na bilidade da edificação, afirmando, com con- Rocinha”, “avaliado pela associação de mora- vicção: “Por problema de segurança, esse dores e pela administradora Passárgada em prédio não cai”. Os herdeiros de Francisco R$500 mil – preço médio de um apartamen- Gonçalves Marinho – o Chicão – estão, por to de luxo com quatro quartos na Gávea”. sua vez, entre os “maiores locadores da Ro- De acordo com essa matéria, uma classe cinha”. Os doze irmãos da família Marinho média empobrecida estaria se voltando para administram cinco prédios, com cerca de a Rocinha, “sobretudo aqueles que querem 200 quartos e 16 lojas. Um dos herdeiros fugir do aluguel, de IPTU e de taxas de con- entrevistados aponta as diferenças entre o domínio, luz e gás”. mercado de locação de imóveis na favela e o Uma outra característica do mercado praticado na cidade oficial:“Dá para viver de imobiliário da Rocinha seria revelada na edi- aluguel, mas aqui as regras são outras. Tem ção de O Globo, de 10/8/2002: a venda de de ser compreensivo com alguns inquilinos lajes para construção de novas moradias. De que não podem pagar”. acordo com a reportagem publicada (“Laje O mercado imobiliário da Rocinha co- na Rocinha custa dois terrenos na Zona Oes- meça a atrair os investimentos até mesmo te”), “a falta de áreas livres para construir daqueles que não vivem na favela, como fez crescer a tendência nos últimos anos de afirma um corretor com atuação destacada verticalização das favelas. Com isso, as pró- na comunidade – Edvaldo Roberto Ramos, prias lajes das casas acabam virando objeto

cadernos metrópole 18 pp. 135-155 20 sem. 2007 transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a rocinha como um exemplo de negócio”. Como exemplo das transações vem na comunidade, a Passárgada se des- envolvendo a compra e venda de lajes na co- taca em relação às demais administradoras munidade, é apresentado o caso do motoris- existentes na Rocinha pela sua estratégia de­ ta Lourival Calixto da Silva, de 49 anos, pai ­mar­keting­ –­­ “credibilidade e transparência”, de dois filhos, que “chegou há seis anos da afirma um dos sócios, é o lema da firma – e Paraíba para trabalhar como vigilante e foi por ter sido a que mais cresceu em volume morar na Rocinha pagando R$300 de alu- de negócios, nos últimos anos. No início guel”. Após ter sido demitido da empresa na de suas atividades, a Passárgada trabalha- qual trabalhava, Lourival “usou R$4.500 de va apenas com imóveis situados na área a indenização para comprar o direito a cons- montante da localidade denominada “Curva truir nos 45 metros quadrados da segunda do S”, na estrada da Gávea. Por ocasião da laje de uma casa na favela”. Lourival sequer realização das entrevistas, havia ampliado pensou em procurar moradia em outro lu- suas atividades, administrando a locação, gar, que não a Rocinha: “Na Zona Oeste e venda e compra de imóveis em toda a Ro- na Baixada não tem trabalho. E os patrões cinha. Ao contrário do que ocorre com as daqui não contratam quem mora longe por- outras administradoras da comunidade, “a que não querem dar vale-transporte”. Passárgada só administra imóveis de tercei- As matérias publicadas pela imprensa ros”, afirma Jorge Ricardo, gerente finan- ao longo dos últimos 25 anos apontam a ceiro e sócio da administradora. emergência de um mercado imobiliário in- Para esse sócio, a grande diferença en- formal expressivo, que traduz, ao lado de tre uma administradora de imóveis que atua 143 outros aspectos, o caráter heterogêneo da na cidade oficial e outra que atua na favela favela carioca, no início do século XXI – uma é a “burocracia”. Para dar um exemplo do favela que deixou de ser somente o local de que significa essa “burocracia”, Jorge Ricar- “moradia precária e provisória” dos migran- do afirma que, enquanto na cidade oficial, tes recém-chegados para tornar-se uma ou- para alugar um imóvel, além “de toda uma tra cidade, com regras e normas próprias de documentação, exigem, ainda, um fiador ou organização espacial. depósito de um determinada quantia”, na favela, tudo seria “mais simples”. Na Passár- gada, o candidato à locação de um imóvel Administradoras de terá que apresentar como documentação cópias do registro de identidade e do Ca- imóveis e empreiteiras dastro de Pessoa Física (CPF), além de um em uma favela? comprovante de renda – que poderá ser fornecido pela própria administradora, no Em 2002, quatro administradoras atua- caso de trabalhadores do setor informal. O vam na Rocinha, prestando serviços de lo- pagamento de um depósito no valor de um cação, compra e venda de imóveis. Dentre mês do aluguel e de uma taxa de R$20 – essas quatro, optamos pela Administradora para custear o reconhecimento do contrato Passárgada, para realizar nossa pesquisa. – são as exigências adicionais para que se Criada em 1999, por dois sócios que vi- alugue um imóvel na administradora. Jorge

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Ricardo esclarece, ­ainda, que “tudo é feito encontra-se “superaquecido, já tem algum na presença de duas testemunhas, mais o tempo”, três corretores vinculados à admi- dono do imóvel e o futuro inquilino”, con- nistradora atuam em diferentes pontos da cluindo que, “sem dúvida, é uma burocracia Rocinha. Assim como na cidade oficial, há bem menor”. uma valorização diferenciada dos imóveis, Em 2002, a Passárgada administrava segundo a sua localização. Para Jorge Ricar- os imóveis de 280 clientes, sendo cerca de do, a estrada da Gávea está para a Rocinha, 400 o número de locatários. A inadimplên- assim como a zona sul está para a cidade cia sempre foi baixa – “tinha mês que zera- do Rio de Janeiro. Outras áreas valoriza- va, todo mundo pagando, sem problema”, das da Rocinha seriam o Bairro Laboriaux, destaca Jorge Ricardo. Entretanto, “nos úl- a localidade denominada Trampolim e a rua timos tempos, a crise apertou” e o número Dionéia – esta última seria “a nossa Barra de inadimplentes cresceu. Até mesmo entre da Tijuca, o que tiver pra vender, vende na aqueles que, tradicionalmente, eram consi- hora”. De acordo com Jorge Ricardo, as ra- derados os melhores inquilinos que um lo- zões para a maior valorização dessas áreas catário poderia ter na Rocinha: garçons e estariam associadas ao uso do solo e às con- motoristas de ônibus. A média mensal de dições de acesso: “entra carro, não há pago- inadimplência registrada ao longo de 2001, de e, praticamente, só tem residência”. Já entre os locadores de imóveis, foi de 8%. no Bairro Barcelos, “só compra um imóvel, Nada que comprometesse os negócios da quem é desavisado ou gosta de confusão”: 144 Passárgada, onde o fundamental é “esco- “afinal, é um entra e sai de todo mundo e, lher a dedo” o inquilino, pois o que vale “é além disso, tem muitos bares”. Para Jorge a palavra, é como no tempo do fio do bigo- Ricardo, essa área é a “porta de entrada de” – ressalta Jorge Ricardo, consciente das da Rocinha” e, pela sua localização junto à peculiaridades de um contrato de locação auto-estrada Lagoa-Barra – favorecendo o firmado na cidade informal. acesso do “pessoal do asfalto” –, atraiu a Segundo o sócio da Passárgada, mui- presença do narcotráfico, que, estabeleceu tos moradores da zona sul da cidade estão ali um dos principais pontos de comerciali- “vindo para a Rocinha”, onde só “precisam zação de drogas na zona sul da cidade. “E pagar aluguel e a conta de luz”. Jorge Ricar- aí”, conclui Jorge Ricardo de forma reti- do afirma que, no primeiro momento, esse cente, “fica difícil”. Porém, segundo o sócio recém-chegado à Rocinha procura alugar da Passárgada, muito mais do que o acesso um imóvel na estrada da Gávea – “na beira à infra-estrutura, o que determina o valor da rua, que é a galinha dos ovos de ouro de um imóvel na Rocinha é “a segurança da do mercado” –, para, em seguida, “depois estrutura do prédio” e as possibilidades de de melhor conhecer a comunidade”, buscar ampliação futura, horizontal – o que é cada outro, no interior da favela, com maiores vez mais raro – e vertical. dimensões e menor valor de aluguel. No que diz respeito às transações imo- A principal fonte de receita da Passár- biliárias, a diferença mais significativa entre gada são as transações de compra e venda o que ocorre na cidade oficial e o que se dá e, como o mercado imobiliário da favela na favela está associada à situação fundiária:

cadernos metrópole 18 pp. 135-155 20 sem. 2007 transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a rocinha como um exemplo a quase totalidade dos imóveis comercializa- nha –, somente no bairro Barcelos, “a situa- dos na Passárgada não possui uma escritu- ção fundiária é regular”. Valquíria Rosa afir- ra registrada no Registro Geral de Imóveis. ma que os moradores dessa localidade da Há, contudo, uma maneira de superar essa Rocinha pagam o Imposto Territorial Pre- situação,­ diz Jorge Ricardo: através de um dial Urbano – IPTU – e as transações imobi- documento produzido na administradora – liárias que lá se realizam são registradas em um “instrumento particular de compra de cartório. Confirmando as informações pres- benfeitorias e cessão de posse” –, envolven- tadas por Jorge Ricardo e por diretores das do quem compra e quem vende, com cópias entidades representativas da comunidade, para as partes e para a administradora, é a ex-administradora regional afirma que, possível efetuar uma transação. Segundo nos demais setores da Rocinha, quando há Jorge Ricardo, esse documento – com um transações de compra e venda de imóveis, a custo de R$100 para as partes – foi elabo- associação de moradores realiza um contra- rado “a partir de uma escritura oficial da to entre as partes, com a presença de tes- cidade” e “adaptado às condições da Roci- temunhas, cobrando por esse procedimento nha”. E ressalta, ainda, que, em situações uma taxa. De acordo com Valquíria Rosa, de partilha de bens – como no caso de “se- esse documento tem sido reconhecido nas paração de casais e herança” –, o documen- decisões tomadas pelo Juizado de Pequenas to produzido pela administradora “tem sido Causas que atua na Rocinha. aceito como prova pela Justiça”. A ex-administradora da XXVII RA tam- Embora reconheça que todo o processo bém concorda com Jorge Ricardo, no que se 145 envolvendo a posse de imóveis possa gerar refere às semelhanças existentes entre o que “alguma incerteza”, Jorge Ricardo acredita ocorre na Rocinha e no restante da cidade: que, no “final das contas, não dá problema”: há realmente, na Rocinha, uma valorização “se alguém diz que é proprietário e vende diferenciada dos vários setores que a inte- seu imóvel, e, mais tarde aparecer outro di- gram, em função de fatores distintos. Nesse zendo que é dono, vai ter que provar que sentido, aponta o Bairro Barcelos como a lo- o que está dizendo é verdade”. As associa- calidade de maior valorização, seja pelo pre- ções de moradores também “registram” as ço de imóveis, seja pelos valores pagos por operações de compra e venda de imóveis, aluguéis. Isto se deve, afirma Valquíria Rosa, cobrando uma espécie de “imposto de trans- não apenas por ser “uma área de maior visi- missão” – uma taxa de 3%, em média, do bilidade” – pela sua localização junto à auto- valor do imóvel. Contudo, segundo Jorge estrada Lagoa-Barra –, mas, também, por ser Ricardo, muitos moradores questionam a a área mais bem dotada de infra-estrutura na destinação dada aos recursos arrecadados favela. Por outro lado, as áreas periféricas, pelas associações, com o registro das tran- de mais difícil acesso e praticamente despro- sações imobiliárias: “Ninguém vê o que é vidas de qualquer infra-estrutura – como o feito com esse dinheiro”, diz. bairro 199, Macega e Roupa Suja – seriam as No que diz respeito à questão da pro- localidades ocupadas pela população mais po- priedade da terra, de acordo com Valquíria bre, geralmente, em edificações muito precá- Rosa – ex-administradora regional da Roci- rias. Para a ex-administradora da XXVII RA,

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a qualidade do padrão construtivo do imóvel, viços trabalha na obra como ajudante, para sua localização e externalidades (“se é perto reduzir os custos. Mas, Edivando assegura de uma vala, por exemplo, cai o valor da ca- que “não tem jeito: a maioria tem que con- sa”) seriam os fatores determinantes na va- tratar um pedreiro, um especialista, porque lorização dos imóveis na Rocinha. A questão não é todo mundo que entende de obra”. da violência – a proximidade de áreas onde Dependendo do porte do serviço, sua equi- o narcotráfico se instala para realizar suas pe de trabalho é composta por duas a cinco ações de comercialização de drogas – não pessoas. “Do cimento ao tijolo, da esquadria interferiria, acredita Valquíria Rosa, no pro- à tinta, tudo é apresentado pelo emprei- cesso de formação de preços dos imóveis na teiro, quando a obra é de empreitada”, diz Rocinha, pois essa situação estaria “incorpo- Edivando, embora, reconheça que, eventual­ rada ao cotidiano dos moradores”. mente, o contratante possa comprar, por Dentre os diversos pequenos emprei- conta própria, algum material. teiros que constróem na Rocinha, optamos O custo do material de construção, por entrevistar Edivando da Costa Passos, aliás, ­representa uma preocupação adicional por ser um dos que mais atuam na Dionéia, para quem constrói na Rocinha. Apontan- uma das localidades mais valorizadas da co- do como exemplo o metro cúbico de areia, munidade – a “nossa ”, co- Edivando afirma que o custo desse mate- mo ele mesmo define. Edivando – 38 anos, rial para quem constrói é o somatório do “nascido e criado na comunidade” – traba- preço cobrado na loja e o valor pago pelo 146 lha como empreiteiro na Rocinha há dezes- seu transporte até o local onde é realizada seis anos. Trabalha por empreitada – “do a obra. Grupos de jovens e adultos fazem chão até a chave” – ou por diária, de acor- esse transporte – “em sacos de nylon, de 60 do com as possibilidades e necessidades de kg, do tipo usado em padarias” –, cobrando quem contrata. Além das referências dadas de acordo com a distância a ser percorrida e por aqueles que foram seus clientes, esse com a cota altimétrica a ser vencida: “quanto empreiteiro costuma anunciar seus servi- mais longe e mais alto, mais caro”. Segundo ços nos jornais comunitários que circulam Edivando, essa despesa com o transporte de na Rocinha. Outros seis empreiteiros têm material onera consideravelmente o custo na Dionéia seu principal mercado de traba- da obra: “há casos que o material chega aqui lho, porém, a concorrência não preocupa em cima quase pelo dobro do preço”. Edivando, que, nesses dezesseis anos, ra- A maioria dos que contratam Edivan- ras vezes ficou parado: “aqui tem sempre do “querem construir para morar”, em- alguém precisando de um pedreiro, de um bora, existam casos – e muitos – em que, bombeiro, de um eletricista”. além da moradia, se constrói, também, “um Na maioria das vezes, as obras são fei- quitinete ou um apartamento para alugar, tas por etapa, estendendo-se, em vários ca- com cerâmica e pintura mais barata”. Não sos, por anos: “o morador paga uma etapa, há um projeto arquitetônico da edificação pára a obra porque não tem mais dinheiro previamente elaborado: após “bater a la- e quando tem, recomeça”, afirma Edivando. je”, Edivando prepara “um desenho, para Muitas vezes, o próprio contratante dos ser- saber onde ­fica o banheiro, onde vai ficar

cadernos metrópole 18 pp. 135-155 20 sem. 2007 transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a rocinha como um exemplo a cozinha” e os demais compartimentos. lajotas cerâmicas – algumas vezes, com ma- Esse desenho é submetido ao cliente, “pa- teriais de qualidade: “é uma coisa que o pes- ra que ele possa dar opinião”, mas, em ge- soal valoriza”, diz Edivando. ral, o empreiteiro já tem “a metragem” da Edivando já construiu cerca de vinte área a de ser edificada e uma “idéia do que prédios, quase todos na Dionéia, a maioria a pessoa quer”. Porém, “se não der tudo no com dois e três pavimentos. O maior de to- térreo”, esclarece Edivando, “a gente cons- dos – motivo de um indisfarçável orgulho – trói um segundo andar” – o que ocorre com tem quatro pavimentos e foi construído para freqüência. O dimensionamento dos cômo- um cliente que “mora no prédio e aluga os dos varia de acordo com o “que se tem de outros apartamentos”. Esses apartamentos, área para construir” e as demandas do con- com “quarto, uma salinha pequena, cozinha tratante. Os quartos, afirma Edivando, têm, e banheiro, com área coletiva de serviço, em média, cerca de seis metros quadrados na laje, onde tem três tanques com varal”, e são voltados para a sala e, até mesmo, constituem uma tipologia freqüente, não para a cozinha, uma vez que, diante das apenas na Dionéia, mas também em outras dimensões reduzidas do espaço disponível, localidades da Rocinha, particularmente no evita-se comprometer área útil com uma Bairro Barcelos. circulação conectando os compartimentos. Quando perguntamos a esse emprei- Para Edivando, uma “boa cozinha” deve ter teiro se costuma aceitar serviços fora da como dimensões, aproximadamente, 2,00m Rocinha, a resposta revela as mudanças no x 2,80m e um banheiro, nas mesmas condi- processo de produção da moradia na fave- 147 ções, algo em torno de 1,00m x 1,80m. A la: “depende, vai depender do acerto, por- área de serviço, por sua vez, está localizada, que aqui tem muito trabalho e já tenho uma invariavelmente, na laje de cobertura. clientela. Acho difícil eu pegar obra lá fora”. Mas é na execução das fundações que todo cuidado é pouco: não só para não com- prometer a estabilidade da edificação, como também para garantir a possibilidade de Considerações finais futuras ampliações. Desse modo, de acordo com o número de pavimentos que o cliente Não são apenas os estudiosos do tema que pretende construir, Edivando afirma que já se dão conta de que as favelas passaram por sabe “qual bitola de ferragem utilizar”. A transformações expressivas: em 1998, na laje, quase sempre, é pré-fabricada – “mais produção do filme Orfeu, o cineasta Cacá rápida de fazer e gasta menos madeira de Diegues20 reconheceu, em entrevista publi- escoramento”, destaca o empreiteiro. Os cada em O Globo, que a favela cenográfica revestimentos interno e externo, por sua criada para as filmagens teria de ser bem di- vez, não são considerados uma prioridade: ferente daquela existente há quase cinqüenta “a maioria entra na casa com o tijolo cru: anos: o adensamento populacional, as mu- alguns chegam a emboçar por dentro, mas, danças no padrão construtivo das moradias por fora é mais difícil”. Banheiro e cozinha, e o quadro de violência seriam as diferenças no entanto, são revestidos com azulejos e fundamentais entre essas duas favelas.

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Em entrevista publicada em 2002, as regras de segurança e desconhece as exi- Sandra Cavalcanti – secretária de Serviços gências urbanas mínimas” diz Sandra Caval- Sociais no governo Carlos Lacerda, no iní- canti. O imóvel assim construído não existe cio da década de 1960 – também percebe formalmente para as autoridades municipais, as transformações ocorridas na estrutura “por isso, não paga impostos”, mas, ressalta sócio-espacial das favelas cariocas: “As fave- a ex-secretária, “isso não o impede de exigir las do meu tempo na Secretaria de Serviços que o poder público lhe forneça serviços de Sociais eram muito diferentes das de hoje. boa qualidade”. Aquele caráter transitório e precário do bar- Sandra Cavalcanti enfatiza, ainda, a raco, acabou”. expressão dessa cidade construída à mar- Por sua vez, em artigo publicado no gem das normas urbanísticas que não pode, jornal O Globo, em 27 de março de 1998 portanto, ser ignorada, afinal, “represen- (“Cidade informal X Cidade formal, uma fal- ta, hoje, milhões de metros quadrados de sa – ou parcial oposição”), a ex-secretária construção em alvenaria, erguidos graças descrevia as características dessa “nova fa- ao poder econômico destes cidadãos infor- vela” carioca. Para Sandra Cavalcanti, a pre- mais”. Para ela, a “autoridade pública (que) cariedade dos barracos de madeira e telhas abandonou as possibilidades legais e prefe- de zinco é algo que pertence ao passado, riu caminhar pelas ilegais”, seria a princi- uma vez que “as maiores favelas do Rio, ho- pal responsável pelo crescente processo de je, são formadas por casas de negócios, con- favelização observado na cidade do Rio de 148 sultórios, escritórios, moradias confortáveis, Janeiro, a partir da década de 1980. Nesse enfim, são cidades informais, enquistadas na sentido, considera que a postura “tolerante cidade formal”. A autora do artigo destaca e populista” do poder público, nos últimos as diferenças existentes entre essas duas vinte anos, teria dado origem a um quadro cidades – a formal e a informal. De acor- de consolidação e expansão dos assentamen- do com Sandra Cavalcanti, na cidade oficial, tos informais. Sandra Cavalcanti, não acre- “o cidadão ‘urbano’, só pode construir em dita na possibilidade de promover a integra- terreno legalizado”, necessitando de uma ção entre a favela e a cidade formal, uma licença para tanto e, por essa razão, “obe- vez que as regras que regem a estruturação dece às regras do urbanismo e segurança”. desses espaços seriam absolutamente distin- Cumpridas as exigências legais, seu imóvel tas e – mais do que distintas – antagônicas. passa a integrar o cadastro municipal, o que Trata-se, portanto, resume, de um “embate faz com que tenha de pagar os impostos de- entre a ordem e a desordem urbanas”. vidos – “em troca”, afirma a ex-secretária, Essa “nova favela”, na qual se observa “fica com o direito de exigir serviços públi- uma maior diversidade do uso e da ocupação cos de boa qualidade”. do solo – particularmente nos assentamen- Na cidade informal, por outro lado, es- tos de maior porte – faz com que seja ne- ses procedimentos não são observados: “o cessário, ressalta Valladares (2000, p. 12), cidadão ‘favelado’ constrói onde bem quer, “abandonar a visão simplista e idealizada invade propriedades públicas e privadas, de- que atribui às favelas uma função exclusiva- vasta a Mata Atlântica, não se importa com mente de moradia, para nos darmos conta

cadernos metrópole 18 pp. 135-155 20 sem. 2007 transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a rocinha como um exemplo de que se tornaram importantíssimos mer- e mais de 57% têm lavadora de roupas”. cados de bens e serviços”. De acordo com Alguns dados chamaram particularmente a essa autora, comerciantes e profissionais li- atenção dos pesquisadores: “na favela, 15% berais já se deram conta desse novo quadro: das pessoas utilizam carro próprio e 2,4% os primeiros, “adaptando-se às novas neces- têm empregada mensalista”. Por último, no sidades de sua clientela, especializando-se, que diz respeito à escolaridade, a pesquisa renovando os produtos e seus estoques, aponta que 37% dos entrevistados possuem aceitando cartões de crédito”, enquanto que ensino fundamental completo, 13% têm o médicos, dentistas, advogados e professores médio completo, e apenas 1,3% completa- “também viram ali a possibilidade de ven- ram o superior der seus serviços a menor custo, em troca As mudanças observadas, ao longo dos de uma clientela segura, com necessidades e último vinte anos, na relação Estado/Favelas – demandas constantes” (ibid., p. 12). que deram à população favelada a certeza de A pesquisa de opinião e mercado reali- que a política de remoções havia chegado ao zada em 2002, pelo Núcleo de Pesquisa do fim – podem explicar, em parte, a expan- ISER/VivaRio – Favela, Opinião e Mercado –, são do mercado imobiliário informal. Com confirma, por sua vez, a diversidade do per- a consolidação das favelas, afirma Cavallieri fil socioeconômico da população favelada no (2003, p. 294), estas “se auto-regularam, município do Rio de Janeiro21. De acordo estruturaram mercados de compra, venda e com essa pesquisa – realizada pela primeira aluguel de imóveis sem que fossem neces- vez, no Brasil, em favelas, segundo o ISER –, sários títulos legais de propriedade” – um 149 “os moradores de comunidades pobres do processo definido por Francisco Rocha La- município do Rio se concentram na classe C goa, jurista e Procurador do Estado do Rio (51,3%), mas existe uma parcela significati- de Janeiro, como “legalidade favelada”. va na classe B (24%)”. Observou-se, ainda, Desse modo, são realizadas transações imo- na pesquisa “a existência de pessoas da clas- biliárias, por meio de contratos verbais ou se A2 (2,5%), B1 (6,8%) e B2 (17,3%) nas através de registros em associações de mo- comunidades”, sendo que “menos de 1% radores, que acabam por cumprir o papel de pertence à classe E”. Outras informações co- “cartórios” (ibid., p. 294). letadas – na qual a determinação da classe Ao analisar as características des- foi feita de acordo com o Critério Brasil de se mercado imobiliário informal, Abramo Classificação Social – revelam que “cerca de (2000) afirma que este constitui, atualmen- 59% das pessoas entrevistadas disseram es- te, um dos principais mecanismos de acesso tar satisfeitas com a vida que levam, sendo à favela. Há, ainda, evidências empíricas de que 38% dessas ganham entre 1 e 3 salá- que, muitas vezes, os preços alcançados por rios mínimos”. Quanto aos bens de consumo esses imóveis são elevados, quando compa- relacionados durante as entrevistas, “tele- rados aos praticados no mercado imobiliá­ visão, geladeira, lavadora de roupa e vídeo rio da cidade oficial. Nesse sentido, uma cassete são alguns mais possuídos”, sendo pergunta está presente, explícita ou impli- que “cerca de 96% dos moradores têm citamente, em todas as reportagens publi- TV em cores, 55% possuem vídeo cassete cadas sobre o crescimento e a expressão do

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mercado imobiliário informal, citadas ante- gêneros alimentícios na birosca ao lado ou riormente: quais as razões que levariam al- de materiais de construção na loja de um guém a pagar um preço tão elevado por um conterrâneo. Fazem com que a vizinha to- imóvel localizado em uma favela? me conta das crianças por uma quantia irri- Ao responder a essa pergunta, Abramo sória, permitindo que a mãe trabalhe como (2003, p. 189) chama atenção, inicialmente, diarista nas casas de “madames” em São para o fato de que uma das possíveis razões Conrado. Proporcionam uma oportunidade “para explicar os preços elevados da mora- de trabalho em uma obra da Barra, indicada dia em favela explora o nexo entre o mer- pelo vizinho solidário. No lançamento dos cado de trabalho e o mercado imobiliário condomínios privados Nova e No- onde a informalidade no primeiro impede a vo , na Barra da Tijuca, as campanhas entrada no mercado formal do segundo”. A publicitárias afirmavam que ao comprar um proximidade­ do local de trabalho e as rela- apartamento, se adquiria, também, um “es- ções de vizinhança constituídas no interior tilo de vida”. Na Rocinha, por sua vez, é da favela seriam outras justificativas: ao ad- possível afirmar que, quase sempre, quan- quirir um imóvel na favela, revela Abramo do alguém compra – ou aluga – uma casa, (2000, p. 16), a família tem a possibilidade está tendo acesso, também, a um “modo de de “redefinir a composição dos seus gastos sobrevivência”. e garantir uma estratégia de estabilidade Abramo destaca, contudo, que estudos residencial relacionada à proximidade do recentes sobre a localização do emprego 150 trabalho (permanente ou esporádico) e a ex- de moradores de favelas no Rio e em São ternalidades de vizinhança indispensáveis à Paulo, revelam que uma parcela significativa sua reprodução”. Esse autor destaca, ainda, dessa população trabalhava na própria fave- como fator que diferencia o mercado imo- la. Desse modo, conclui esse autor, é possí- biliário informal do formal, a importância vel caracterizar a favela “como um local de das “relações de vizinhança” como parte concentração de atividades de serviço e co- das estratégias de sobrevivência de uma fa- mércio (informais) que geram um fluxo de mília que vive na favela. Geralmente, essas recursos que constituem um “circuito eco- relações possibilitam a redução dos gastos nômico” interno (...) que alimenta o merca- familiares, como no caso, descrito pelo au- do imobiliário local” (2003, p. 1.566). A tor (2000, p. 17): “Em nossa pesquisa, en- expansão desse mercado imobiliário infor- contramos um número expressivo de mães mal pode ser também atribuído aos deslo- solteiras proprietárias de imóveis na favela. camentos residenciais de um setor da favela O emprego dessas chefes de família é viabi- para outro, motivado por razões diversas: lizado pela existência de relações de solida- da melhoria das condições de renda à pro- riedade entre vizinhos e parentes na favela cura de uma moradia com melhor padrão em relação ao cuidado diário de seus filhos o construtivo e melhor localizada, passando que permite a sua ausência do lar durante a pelo aumento do aluguel do imóvel ocupado jornada e/ou semana de trabalho”. (Baltrusis, 2003). Na Rocinha, as redes de solidariedade Ao longo das últimas três décadas, permitem o acesso à compras parceladas de afirma Abramo (2003, p. 208), “o acesso­

cadernos metrópole 18 pp. 135-155 20 sem. 2007 transformações na estrutura socioespacial das favelas cariocas: a rocinha como um exemplo a moradia nas favelas da cidade do Rio de da “fronteira de expansão” territorial das Janeiro se alterou de forma substanti- ocupações residenciais dos pobres urbanos va”. Nesse sentido, é possível afirmar que, nas grandes metrópoles nacionais” (2003, atualmente, a forma principal de acesso à p. 210), determinando, assim, uma redefi- moradia na favela carioca seria através do nição das estratégias de acesso à moradia. mercado de compra e venda de lotes, lajes e A trajetória da paraibana Natilda Moi- imóveis, que configuram a existência de um zinho22 – 46 anos, há vinte na Rocinha – é, mercado imobiliário informal, “na medida portanto, cada vez menos provável na favela em que essas transações não são regulariza- do início do século XXI: “Do terreno rece- das nos fóruns legais (registro de imóveis) ­e/ bido de graça da associação de moradores, ou­­­ governamentais (administrações locais e (Natilda) fez brotar 12 imóveis – um bar, federais)”, conclui Abramo (2003, p. 209). casas para si e os três filhos e sete quitine- Essa forma de acesso à moradia na favela tes, pelas quais cobra aluguéis de R$150 a se contrapõe, portanto, ao processo “clássi- R$200. A evolução de Natilda, de invasora a co, na seguinte seqüência sistematizada por empresária de imóveis, ilustra bem a trans- Abramo (2003, p. 209): inicialmente, ”a formação das favelas cariocas. (...) Natilda, ocupação individual e/ou coletiva de um lote por exemplo, até hoje não emboçou e pintou urbano”; em seguida, a “rápida construção o exterior da sua casa. “Preferi usar o di- de uma moradia precária (em madeira ou nheiro para fazer as quitinetes”. “pau a pique”; tem início um “longo investi- Na Rocinha do início do século XXI, até mento familiar na melhoria da residência”; e mesmo nas áreas de ocupação mais recen- 151 o conseqüente “desmembramento da unida- te e praticamente desprovidas de qualquer de residencial em “frações” familiares”. Pa- infra-estrutura, compra-se o acesso à terra: ra Abramo, o surgimento desse expressivo vai longe o tempo em que numa “terra sem mercado imobiliário informal na favela es- dono”, era possível “chegar e construir um taria associado, também, ao “esgotamento barraco” para “começar a vida”.

Gerônimo Leitão Professor Adjunto da Escola de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Gradução em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected]

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Notas

(1) “A dez minutos da zona sul do Rio de Janeiro, na favela da Rocinha (...) vivem 145.000 pes- soas, uma população equivalente à das cidades mineiras de Uberaba ou Uberlândia” – Veja, 9 de agosto de 1978.

(2) “A antiga maior favela da América Latina (...) fazia, até então, parte do bairro de São Conrado, mas neste período se consolidou como outro bairro da Zona Sul carioca (...), atualmente com população estimada em 150 mil habitantes (dados da Light )” – Jornal do Brasil, 6 de dezembro de 1988.

(3) Os levantamentos feitos pela União Pró-Melhoramento dos Moradores da Rocinha, no final de 1987, revelam, nas palavras de uma diretora da entidade, que “a Rocinha é a capital do Nordeste no Rio de Janeiro”: em cada grupo de 14 pessoas, oito são cearenses e três paraibanos.

(4) “Com diferentes classes sociais – dos bem miseráveis aos que têm antena parabólica e pis- cina e carro na garagem, hoje a Rocinha é chamada de favela, mas já superou esses limites. É um bairro, uma cidade, irregular e montanhosa, como muitas feitas pelos portugueses.” Fernando Gabeira, Rocinha: 7 dias na mais famosa favela do mundo, Revista Marie Claire, junho de 1992.

(5) “A facilidade de comércio e serviços é um dos fatores que mais atraem moradores à Rocinha. Segundo a 27ª Região Administrativa, lá estão instalados dois correios, uma agência ban- cária, quatro escolas públicas, 26 creches, agência de modelos, 12 locadoras de vídeos, 25 casas de material de construção, hotel, 25 açougues, oito padarias, uma escola de samba, 152 um time de futebol, rádio FM e posto de táxi, entre outros negócios”. – Jornal do Brasil, 6 de dezembro de 1998.

(6) “VIVA CRED atinge 500 empréstimos concedidos. Mostrando a grande aceitação pelas co- munidades, VIVA CRED, com apenas 10 meses de funcionamento, ultrapassou os quinhen- tos empréstimos concedidos. Foram especialmente três as comunidades: a Rocinha, o Vidi- gal e o Rio das Pedras. Quem se beneficiou? (...) bares, biroscas, comerciantes de atacado e varejo, sapatarias, comércio de produtos nordestinos, comércio de produtos para animais, papelarias, armarinhos, lojas de material de construção, lojas de roupas, farmácias, lojas de discos, lojas de artigos para festas, sacolão, distribuidora de bebidas, mini-mercados, jornaleiros, óticas. Mas, também muitos prestadores de serviços: oficinas mecânicas, lan- chonetes, transportadoras, sorveterias, locadoras, pizzarias, escolas, creches, cabeleireiros, barbeiros, restaurantes, chaveiros, fotógrafos, serviços de computador, serviços de eletrici- dade, buffet, jornal, aluguéis. E produtores de quentinhas e de roupas. (...) Com crédito, o seu negócio pode dar aquele passo que só com as economias do próprio negócio não se consegue dar. Com crédito, você pode fazer aquele negócio que aparece, no momento em que ele aparece. O crédito do VIVA CRED tem essa característica: ele sai rápido, sem buro- cracia e na medida certa para o seu negócio.” Jornal Correio da Zona Sul, fevereiro/1998.

(7) “A expansão da Rocinha, assim como do Pavão-Pavãozinho (Copacabana), do (Botafogo) e do Vidigal, ocorre sobretudo na vertical. Nessas favelas é comum se encontrar ferros saindo dos tetos, indicando a construção de mais uma laje. O urbanista Victor Zveibl vê com preocupação o crescimento para cima das favelas mais antigas. Segundo ele, a falta de ventilação e a insolação trazem riscos à saúde.” – O Globo, 15 de março de 1998.

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(8) “Os dados da Associação Comercial e Industrial da Rocinha (Acibro) mostram que um imóvel de dois quartos na Rocinha pode custar até R$ 45 mil. O aluguel de um apartamento do mes- mo tamanho não sai por menos de R$ 500 mensais, preço de um equivalente em Botafogo (Zona Sul)”. – Jornal do Brasil, 6 de dezembro de 1998.

(9) “Se uma emissora FM já dá um toque de charme e muito balanço, imagine se, além disso, ela levar o nome do bairro mais charmoso da Zona Sul. A Rocinha agora tem um motivo a mais para se orgulhar, após a inauguração, no último dia 2 de março, da Rádio Rocinha, a mais antiga rádio comunitária do bairro, porém agora FM”. Jornal Correio da Zona Sul, dezembro/1997, p. 26.

(10) “TV ROC: Rocinha já tem a sua tv por assinatura com 33 canais, (...) permitindo a melhoria da imagem e som, oferecendo, além dos canais convencionais, filmes inéditos, desenhos, esportes, noticiários, documentários, etc., 24 horas no ar. Os moradores da Rocinha terão em seus lares a mesma informação e espetáculos que as cidades mais avançadas do mundo. Jornal Correio da Zona Sul, fevereiro / 1998.

(11) “A Rocinha já tem ONGs há muito tempo, só que as pessoas não chamavam assim; existem os centros comunitários, todas essas instituições que podemos dizer que são ONGs comu- nitárias com outras características. A primeira ONG que entrou lá foi o Roda-Viva. (...) O Roda-Viva tinha um projeto chamado Sementinha, que era um pequeno recurso para os grupos organizados. (...) Agora, uma coisa é preciso dizer dessas ONGs: todas fazem os seus projetos com gente da comunidade; dificilmente tem alguém de fora. (...) Logo em seguida veio o VivaRio, trazendo o VivaCred”. Depoimento de José Martins de Oliveira, publicado na página 47 do livro Fala Favela, organizado por Dulci Pandolfi e Mario Grynspan, em 2003. 153 (12) “Inaugurado na Rocinha, serviço de ultra-sonografia com tecnologia de 1º mundo. Um dos aparelhos de última geração na área de ultra-sonografia pertence ao Instituto Welikson, o instituto resolveu instalar-se na Rocinha, após convites de diversas pessoas conhecidas, moradores da comunidade. (...) O Instituto Welikson funciona na Travessa Kátia, 28/301”. Jornal Correio da Zona Sul, abril/1997.

(13) “A invasão da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, na madrugada de quarta-feira, por du- zentos homens das polícias Civil e Militar plantou mais uma promessa entre a população ca- rioca e abriu um desafio às autoridades – liquidar com uma associação marginal autônoma e paramilitar que há anos cresce sob o dinheiro do tráfico de drogas nos morros da cidade”. Revista Isto É, 8 de junho de 1988.

(14) “Arbitrariedades policiais tiram a tranqüilidade da favela. Práticas arbitrárias têm levado ao desespero os moradores da maioria das favelas, principalmente da Zona Sul da Cidade. Inúmeras têm sido as reclamações dos moradores e líderes comunitários contra a violência policial. Moradores estão sendo agredidos e até denúncias (anônimas) de torturas existem em uma das favelas ”. Jornal Correio da Zona Sul, abril/1997.

(15) O Decreto 5.280, de 23 de agosto de 1985, criou a XXVII Região Administrativa, responsá- vel pela Rocinha. O Decreto 6.011, de 4 de agosto de 1986, criou e delimitou o bairro da Rocinha, sendo este outorgado pela Lei 1.995, de 18 de junho de 1993.

(16) Coleção Estudos da Cidade. “Os dados mais recentes de população de favelas na cidade do Rio de Janeiro”, publicado em Rio Estudos, número 46, fevereiro de 2002.

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(17) Em Imaginário Espacial e Discurso: o caso das favelas cariocas e o noticiário dos jornais, Pereira (2000, p. 181) afirma que “o surgimento de um mercado imobiliário dentro das fa- velas só irá ser noticiado a partir da década de 80”, não havendo referência à essa questão nas matérias coletadas nas duas décadas anteriores.

(18) “Rocinha, Cidade aberta: à luta, à vala e ao mutirão”. Jornal do Brasil, 31 de maio de 1979.

(19) “Melhorias (na infra-estrutura) estimulam especulação imobiliária na favela”.

(20) “Historicamente, (...) a favela está numa espécie de terceira geração, que é a que Orfeu quer, pela primeira vez, retratar no cinema. Até os anos 50, a favela era representada como em Orfeu da Conceição e em Rio 40 graus, de forma lírica. E era lírica mesmo, um lugar onde moravam relativamente poucas pessoas, que tinham uma vida praticamente rural. Depois dessa fase lírica, devido à grande migração e ao inchamento das favelas, tornou-se um lugar superpovoado e marcado pela miséria. Começou o que eu chamo de fase da queixa. Hoje, uma favela da terceira geração luta pela afirmação, pelo orgulho de ser favelado mesmo convivendo com todos os problemas como a violência”.

(21) Informações coletadas em O Plural, informativo mensal do ISER - VIVARIO, setembro de 2002.

(22) Descrita por Paiva: “A favela que se ergue”. Urbana Instituto Light . Publicação Semestral ano 1, n. 1, novembro de 2002, Rio de Janeiro.

154 Referências

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