ANO edição julho xXI 84 2014 e d i ç ã o 8 4 4 8 o ã ç i d ANO XXI - e ANO XXI - Julho 2014 - nº84

julho 2014 CAPA Imagem estilizada do quadro ANO edição julho xXI 84 2014 “A Sinagoga”, óleo sobre tela, Marc Chagall, 1917 TESTE-CAPA84c(provaprelo).indd 1 26-Jun-14 7:15:33 AM Carta ao leitor

Tishá b´Av, o nono dia do mês hebraico de Menachem finanças, medicina também estão fora de proporção com Av, é o dia mais triste do calendário judaico – a data em seu pequeno número. Têm feito uma luta maravilhosa no que foram destruídos ambos os Templos de Jerusalém. mundo, em todas as épocas; e o têm feito com as mãos Desde a queda do Segundo Templo, vários eventos atadas nas costas (...)”. trágicos – tanto para o Povo Judeu como para o restante da humanidade – ocorreram nessa data. As palavras de Mark Twain reverberaram ao longo dos séculos. O que ele escreveu a respeito do Povo Judeu O nono dia de Av e as Três Semanas de Luto que o vale especialmente para a geração que sobreviveu ao precedem são dias de autorreflexão, em que devemos fazer Holocausto, reconstituiu um Estado Judeu na Terra de um exame de consciência, tanto individual como coletivo. e fez com que o judaísmo voltasse a florescer. Contudo, o judaísmo não vê com bons olhos a tristeza. “Somos a geração de Jó e de Jerusalém”, escreveu Elie Diz um ensinamento judaico que tudo que ocorre na vida Wiesel. De fato, a geração do Holocausto sofreu mais é para o bem e que devemos nos esforçar para enxergar a do que qualquer outra. Mas foi ela que liderou o retorno luz. Mesmo em meio à escuridão. Qual, então, o aspecto a Israel e Jerusalém e reconstituiu um Estado Judeu na positivo da data mais triste do ano judaico? Terra de Israel. Tishá b’Av é também uma data que simboliza a Tishá b’Av é o dia de Jó e de Jerusalém. Por um lado, eternidade judaica. É a própria evidência de que, apesar é a data mais difícil do calendário judaico. Por outro, de todas as adversidades e tragédias que vivenciou, o Povo celebra a imortalidade do Povo Judeu. No nono dia de Judeu não apenas sobreviveu, mas floresceu. Qualquer Av, jejuamos, lamentamos e nos enlutamos – tanto pela pessoa que tivesse presenciado a queda do Segundo destruição da Casa de D’us como pelo exílio e sofrimento Templo de Jerusalém, o poderio romano e a destruição de nosso povo. Mas Tishá b’Av contém uma centelha sutil, da pátria judaica, poderia apostar que o poderoso Império mas muito poderosa: a constatação de que sobrevivemos Romano duraria para sempre e que o Povo de Israel aos assírios, aos babilônios, aos romanos, aos inquisidores, logo desapareceria da Terra. Ocorreu o inverso. aos nazistas e a todos aqueles que lutaram, em vão, contra O Império Romano desapareceu, tendo sido relegado a eternidade dos Filhos de Israel. aos livros de História. Já o Povo de Israel, apesar do exílio, das perseguições, dos massacres, da assimilação Há uma tradição que ensina que Tishá b’Av, o dia em que e do genocídio, permanece uma nação forte e vibrante. caíram os dois Templos, será a data na qual o Terceiro Um povo que foi expulso de sua pátria há dois milênios, Templo será erguido. A partir de então, o nono dia de Av a ela retornou, construiu um estado moderno e, em deixará de ser o dia mais triste do calendário judaico e 66 anos, tornou-se um oásis de democracia, tecnologia e passará a ser o mais feliz. progresso no Oriente Médio. Esperamos que essa era de paz se inicie em breve, para o Mark Twain,um dos grandes escritores norte-americanos, Povo de Israel e para a humanidade toda. escreveu o seguinte a respeito dos judeus: “Se as estatísticas estão corretas, os judeus constituem apenas um por cento da raça humana (...). Adequadamente, jamais se ouviria falar dos judeus; porém se fala, e sempre se ouviu falar deles (...). Suas contribuições aos grandes nomes do mundo na literatura, ciência, arte, música, TANACH

A Terra de Israel: Pátria Eterna do Povo Judeu

“O Eterno D’us disse a Avram: ‘De onde você se encontra, olhe para o norte e para o sul, para o leste e para o oeste. Eu darei a você e aos descendentes, para sempre, toda a terra que você está vendo... Agora vá e ande por esta terra, de norte a sul e de leste a oeste, pois Eu a darei a você’” (Genesis 13:14-17).

primeiro comentário de Rashi sobre a importância da Terra de Israel – para o Criador do Torá merece a devida atenção. Universo, para a Torá – que é a Sua Vontade e Sabedoria “No princípio, D’us criou os céus e a – e para o Povo Judeu. o terra...” (Genesis, 1:1). “No princípio”: Declarou Rabi Yitzhak: a Torá não deveria O que é intrigante sobre esse primeiro comentário é o seu ter começado por nenhum outro verso a timing. Rashi viveu há quase mil anos: um milênio após não ser: “Que este mês (Nissan) seja para vós o primeiro a destruição do Segundo Templo Sagrado de Jerusalém e dos meses do ano” (Êxodo, 12:2), que é a primeira mitzvá o subsequente exílio do Povo Judeu da Terra de Israel, e que o Povo Judeu recebeu como mandamento. Qual quase um milênio antes da criação do moderno Estado de a razão, então, para a Torá iniciar o relato da Criação Israel. Quando Rashi escreveu seu comentário, os judeus com Bereshit? Porque – “Ele revelou a Seu povo o poder já viviam no exílio há mil anos e não podiam retornar de Seus feitos, para lhe conceder a herança das nações à sua pátria legítima. Naquele então, o assim-chamado (Salmos, 111:6). Pois caso os povos do mundo dissessem Novo Mundo nem sequer havia sido “descoberto”. Seu a Israel, “Vocês são ladrões, pois tomaram pela força primeiro comentário, portanto, é um anacronismo – um as terras de sete nações (de Canaã)”, Israel poderia assunto que deixou de ser relevante mil anos antes de sua responder-lhes: “A terra toda pertence ao Santo, Bendito vida – ou profético – uma questão que seria extremamente é Seu Nome. Ele a criou – e a deu àquele que a Seus relevante quase um milênio após seu falecimento. Como olhos Lhe pareceu apropriado. E Ele a deu a eles (as Rashi viveu uma vida sobrenatural e sua obra foi guiada nações de Canaã) por uma expressão de Sua vontade; e pela Divina Providência, podemos seguramente pressupor Ele a retirou deles e a deu a nós por uma expressão de que suas palavras foram proféticas. De fato, seu primeiro Sua vontade”. Rashi comentário sobre a Torá é hoje mais relevante do que nunca. Rashi é o “pai de todos os comentaristas” e Genesis é o primeiro dos cinco livros da Torá – a única obra de Posse da Terra autoria Divina conferida ao ser humano, transmitida por D’us a Moshé no Monte Sinai. O fato de Rashi Um judeu que crê na Torá e um cristão que acredita na iniciar seu comentário sobre a Torá da forma como o Bíblia Cristã não necessitam de convencimento de que a faz é altamente significativo, pois ressalta a inestimável Terra de Israel é a pátria do Povo Judeu. Se há um tema

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Campo de flores no deserto do Negev

que ecoa ao longo de todo o Tanach – a Torá, os Nevi’im três vezes ao dia, para que D’us nos tire do exílio (os Profetas) e os Ketuvim (os Escritos), é o fato de que e nos leve de volta à Terra de Israel. Ao término de cada a Terra de Israel é o presente eterno de D’us ao Povo evento judaico significativo, como Yom Kipur e o Seder de Judeu. Na Torá, vemos que D’us repetidamente reafirma Pessach, proclamamos: “No ano próximo em Jerusalém” essa promessa a nossos Patriarcas e a Moshé, e lemos – Bashaná haba’á b’Yerushalaim”, para nos recordar que sobre o Êxodo do Povo Judeu do Egito e sua jornada a vida judaica e o cumprimento de seus preceitos não através do deserto a caminho da Terra Prometida. Os estão completos se estivermos fora de Eretz Israel e se Nevi’im relatam como o Povo Judeu conquistou a Terra o Templo continuar em ruínas. Durante dois mil anos, e lá estabeleceu um país. Os Livros de Josué e dos Juízes nem um dia sequer transcorreu em que o Povo Judeu se detalham as guerras travadas e vencidas. O Livro de tivesse esquecido da Terra de Israel ou tivesse renegado Samuel relata que o Rei David fundou e deu o nome seu direito à mesma. à cidade de Jerusalém, que estabeleceu como a capital de Israel, e onde reinou por 33 anos. O Livro dos Reis A alegação de que o Povo Judeu retornou a narra que o Rei Salomão, filho do Rei David, construiu Eretz Israel em virtude do Holocausto ou que o o Templo Sagrado de Jerusalém, e que a Terra de Israel Movimento Sionista influenciou os judeus a retornarem foi dividida em dois reinos – o Reino de Israel (Malchut à sua Pátria ancestral, portanto, é um absurdo. Durante Israel) e o Reino da Judeia (Malchut Yehudá). dois mil anos, dia após dia, temos ansiado pelo retorno à nossa Terra e orado a D’us para permitir que tal Historicamente é indiscutível que houve um Estado acontecimento ocorra. Fomos exilados de nossa Judeu na Terra de Israel durante mais de mil anos e que Terra não por opção, mas porque foi conquistada por a cidade de Jerusalém foi fundada e nomeada pelo maior nações estrangeiras, que exterminaram milhões de dos reis judeus, David. Outrossim, é inegável que a Terra judeus e escravizaram e exilaram a grande maioria de Israel é um dos pilares do Judaísmo. É verdade que dos sobreviventes. Através dos séculos, muitos judeus continuamos judeus mesmo tendo vivido no exílio por tentaram retornar à sua Pátria, mas foram impedidos dois milênios, mas muitos dos mandamentos da Torá não pelas nações que a ocupavam. É importante observar que podem ser cumpridos se a Terra de Israel não estiver sob todo judeu que crê na Torá não duvida que a Terra de soberania judaica. Por essa razão, nos últimos dois mil Israel seja nossa herança eterna. A diferença entre anos, os judeus, em todo o mundo, oram, no mínimo, os judeus que apoiam o Estado de Israel e aqueles que

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não o fazem não é que os judeus antissionistas negam O “Testamento de Adão e Eva” nosso direito à Terra de Israel, mas apenas acreditam que e a posse da terra um Estado Judeu somente deveria ser estabelecido após a vinda do Mashiach. Mas, nenhum judeu que acredite A quem pertence o mundo? A D’us ou aos homens? na Torá pode negar que Eretz Israel é a herança eterna do Quem estipula os limites territoriais dos países? Será Povo Judeu. a Organização das Nações Unidas – um organismo fundado apenas em 1945, cujo Conselho de Segurança é A presença judaica na Terra de Israel também é um controlado pelas potências mundiais e cuja Assembleia dos pilares do Cristianismo, pois Jesus foi um judeu Geral é composta praticamente por países que não são que vivia na Judeia, assim como os demais fundadores democráticos e que não respeitam os direitos humanos? do Cristianismo. Não surpreende, portanto, o fato de Questões de posse territorial são muito complexas e milhões de cristãos de todo o mundo – não apenas os controversas porque o mundo não foi criado com linhas evangélicos, mas também os católicos – serem ardorosos divisórias. A humanidade nunca chegou a um acordo defensores do Estado de Israel. sobre como dividir o mundo.

O Cristianismo se originou na Terra de Israel e seus Um incidente histórico envolvendo o Brasil serve seguidores creem que um dos pré-requisitos da Redenção de excelente exemplo de quão complexos os direitos Messiânica seja o retorno do Povo Judeu à Terra de territoriais podem ser. Nos idos de 1500, quando Israel.Como veremos abaixo, o comentário de Rashi não Espanha e Portugal “descobriram” o Novo Mundo, se dirige a judeus e a cristãos que acreditam na Bíblia – dividiram-no por meio do Tratado de Tordesilhas. Mas, estes não necessitam de serem convencidos – mas àqueles já por volta de 1504, os franceses marcavam sua presença que questionam o direito dos judeus à Terra de Israel. no litoral da América Portuguesa, por duas razões: eles, Rashi ensinou aos judeus e aos nossos aliados cristãos também, estavam interessados no pau-brasil, a responder àqueles que desejavam – e que D’us não o mas, o mais importante, eles desejavam desafiar a permita – apagar a presença judaica da Terra de Israel. política de Mare Clausum (“Mar Fechado”) acertada entre Portugal e Espanha pelo Tratado de Tordesilhas. Para se entender o comentário de Rashi e sua profunda O rei da França, Francisco I, insistia no “direito de relevância para os nossos dias, precisamos definir navegar no mar de todos”. Os portugueses sentiram adequadamente certos conceitos históricos e geopolíticos. que suas possessões territoriais recém-adquiridas estavam sendo ameaçadas pelos franceses. O rei de Portugal, D. João III, queixou-se à sua contraparte francesa, que lhe replicou: “Gostaria muito de ver o testamento de Adão e Eva dividindo as terras do Novo Mundo entre Portugal e Espanha”. Com tal declaração, o rei francês expressava seu não reconhecimento do Tratado de Tordesilhas. Afinal, quem ou o que determinara que esses territórios pertenciam à Espanha e Portugal? Por que teriam esses dois países mais direito ao Novo Mundo do que as demais nações europeias? A Coroa portuguesa, percebendo que corria risco de perder a posse dos recém-descobertos territórios para outras nações, decidiu ocupar o Brasil. Percebeu que se não ocupasse o país e o desenvolvesse, os franceses certamente o fariam.

Esse episódio histórico é extremamente revelador. A monarquia francesa estava certa: em nenhum lugar no “Testamento de Adão e Eva” (o Livro de Genesis, que narra a Criação Divina do mundo) consta que o Novo Mundo pertencia aos espanhóis e portugueses. rio jordão Ademais, que autoridade estabeleceu e legitimou o

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mapa desenhado por abraham bar yaaqov para uma hagadá, impressa em amsterdã entre 1695 e 1696, foi um dos primeiros exclusivamente em hebraico. a rota do êxodo e a subdivisão das tribos de israel são claramente indicadas

Tratado de Tordesilhas? Portugal alegava que as terras milhares de anos, mas nunca construíram um país. recém-descobertas lhe pertenciam, mas se não se tivesse Nunca houve governo central nem jurisdição central. apressado em habitá-las e as desenvolver em um país, Os ingleses não invadiram um país e o dominaram: não arriscava perdê-las aos franceses. havia país constituído. Ademais, pode-se argumentar que o território foi adquirido pela guerra e não por roubo, pois A propriedade territorial talvez seja uma das questões as tribos nativas do Novo Mundo haviam conquistado os geopolíticas mais complexas porque são inúmeros os territórios de outras tribos. Os ingleses fizeram com as critérios que podem ser utilizados para determinar tribos indígenas o que estas faziam umas com as outras. quais territórios pertencem a que países. Com efeito, Pode-se, então, argumentar que conquista e ocupação de qual deveria ser o principal critério para decidir a quem território são formas legítimas de uma nação adquirir um pertence uma terra? A seus habitantes originais, àqueles território. Pertenceriam, então, os Estados Unidos à que a habitam por mais tempo, àqueles que lutaram e a Grã-Bretanha, que lutou com muita garra para conquistar conquistaram ou àqueles que a desenvolveram? e ocupar o território e estabelecer as bases do país?

Falemos dos Estados Unidos, como exemplo. Antes Evidentemente, a maioria dos americanos não da chegada dos europeus ao que hoje é o território acreditam que estejam vivendo em território roubado americano, milhões de pessoas, a “população nativa”, e que devam abandonar o país e devolvê-lo aos habitava aquela terra. Os europeus exterminaram quase descendentes das populações nativas daquela terra. E, todos – milhões de pessoas – ativa ou passivamente. Os apesar de o país ter começado como colônia inglesa, os poucos que sobreviveram foram expulsos de sua terra e americanos achariam ridícula a ideia de que seu país submetidos às leis do novo país estabelecido onde eles pertence à Inglaterra. Afinal, os americanos deram e seus ancestrais viviam há milhares de anos. Será que tudo de si para construir uma nação. Declararam a esse fato histórico indiscutível significa que os Estados independência da Grã-Bretanha e lutaram uma guerra Unidos pertencem à população nativa daquela terra? longa e difícil para obter sua liberdade. Cultivaram a Serão os Estados Unidos um país ocupado? Será o terra e construíram suas instituições. Redigiram uma governo americano ilegítimo? Se a população nativa dos Constituição e criaram um código de leis e sistema Estados Unidos exigisse suas terras de volta, teria direito jurídico. Construíram fazendas e fábricas, estradas e a recebê-las? serviços públicos, casas e edifícios, escolas e hospitais. Adotaram uma bandeira e compuseram um hino, criaram Pode-se argumentar, contudo, que os habitantes nativos uma moeda nacional, ergueram um sistema de governo da América do Norte viviam no território, mas não e foram atrás, com sucesso, do reconhecimento de outros eram seus legítimos proprietários. Eles lá habitavam há países.

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Aquele que criou e detém todo o Universo. Essa verdade foi eloquentemente expressa pelo Arcebispo de Viena, Cardeal Christoph Schönborn, em 2005: “Uma única vez na história humana D’us escolheu um país como legado e o ofertou a Seu povo escolhido”. O Cardeal declarou também que a obrigação que recaía sobre os judeus de viverem na Terra de Israel continuava válida até os dias de hoje. O primeiro comentário de Rashi sobre a Torá é dirigido a todos que alegam crer na Bíblia, mas que, no entanto, questionam o direito do Povo Judeu à Terra de Israel. Por meio de seu comentário, Rashi lhes diz: se vocês creem em D’us e na Torá (ou na Bíblia Cristã), devem concordar que a Terra de Israel é a herança eterna do Povo Judeu. Pois o Livro de Genesis nos diz que D’us criou os Céus e a Terra – e, portanto, toda a terra Lhe pertence, não ao homem –, e como detentor de todo o mundo, Ele tem o direito de dá-la a quem quiser. A Terra de Israel pertence ao Povo Judeu porque seu A Cidadela de David foi construída no período hasmoneu Verdadeiro Proprietário a deu como legado a esse povo.

Esse comentário de Rashi é a resposta que o rei português A população nativa pode ter habitado nesse território não pôde dar ao rei francês acerca do Brasil, mas que os antes dos americanos, e os ingleses podem ter judeus podem dar a seus antagonistas quando se trata de estabelecido as bases do país, mas os cidadãos dos Israel: sim, está escrito no “Testamento de Adão e Eva” Estados Unidos da América construíram um país que a Terra de Israel pertence ao Povo Judeu. praticamente do zero. A maioria das pessoas concorda, pois, que o país é legítimo e pertence ao povo americano. Mas, e aqueles que não creem no Tanach ou na Bíblia Cristã ou não acreditam que política e religião Os direitos religiosos e históricos do deveriam se misturar? Nossa abordagem em relação a Povo Judeu à Terra de Israel tais pessoas é perguntar-lhes: a quem pertence a terra? A seus habitantes originais, àqueles que a conquistaram À luz dos conceitos geopolíticos acima discutidos, por meio de guerras e ocupação, ou àqueles que nela podemos começar a apreciar o primeiro comentário de ergueram um estado? Independentemente da resposta, Rashi sobre a Torá. a conclusão será que a Terra de Israel pertence ao Povo Judeu. Pois nós, judeus, somos os habitantes nativos Acerca do Tratado de Tordesilhas, o monarca francês dessa Terra. Por outro lado, nós a conquistamos – não estava certo em sua resposta ao rei de Portugal: em uma vez apenas, mas duas. E nela construímos um país nenhum lugar no Livro de Genesis – o “Testamento judaico por duas vezes – uma vez na época do Tanach, de Adão e Eva” – consta que o Novo Mundo pertencia e, novamente, há 66 anos, com a criação do moderno exclusivamente à Espanha e Portugal. Não encontramos Estado de Israel. no Livro de Genesis ou em nenhum outro livro da Torá ou da Bíblia Cristã que os Estados Unidos pertencem Os judeus são a população nativa da Terra de Israel. à população nativa do território, aos ingleses ou aos Havia milhões de judeus que viviam em um próspero americanos. Em nenhum lugar está escrito que a reino judeu – de fato, dois reinos – Israel e Yehudá – Crimeia pertence à Rússia ou à Ucrânia. Isso se aplica a milhares de anos antes do surgimento do Cristianismo todos os países. Há apenas uma exceção – Israel. e do Islamismo. Isso sem falar que quase todos os países que hoje constituem as Nações Unidas nem O “Testamento de Adão e Eva” bem como o sequer existiam. Assim como as populações nativas restante do Tanach e da Bíblia Cristã afirmam explícita da América, também nós fomos massacrados por e inequivocamente que a Terra de Israel pertence ao invasores estrangeiros, que mataram milhões de judeus, Povo Judeu, tendo-lhe sido legada como herança por escravizaram e exilaram a maioria dos sobreviventes

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e destruíram nossas cidades e nosso Templo Sagrado. à Terra de Israel como uma nação preparada para fazer Durante milhares de anos, nós, judeus, sonhamos por o que fosse necessário para erguer um país em um nosso retorno ao nosso Lar. Nunca deixamos de ansiar território onde nenhum estado fora estabelecido desde a pelo retorno à Terra de Israel e particularmente à queda do Reino de Yehudá. Após quase dois milênios, a Jerusalém. Através dos séculos, sempre que possível, os terra do Povo Judeu se tornou novamente um país – um judeus retornaram à sua Pátria. Mas, ao se estabelecer estado independente – e, Jerusalém, novamente a capital uma analogia com a fundação dos Estados Unidos, de um país. os judeus podem ser comparados não apenas com as tribos nativas, mas com os colonizadores ingleses A transformação espiritual da Terra e com os cidadãos americanos. Como os ingleses, nós conquistamos o território – primeiro na época Os argumentos acima apresentados – religiosos, de Yehoshua (Josué) e, novamente, nas guerras que históricos e geopolíticos – são refutações claras a o Estado de Israel moderno teve que lutar contra os qualquer alegação de que o Povo Judeu não tem direito países vizinhos que almejavam destruí-lo. Finalmente, à Terra de Israel. O Estado de Israel é um dos poucos como os americanos, expulsamos os colonizadores que países no mundo cuja legitimidade não pode ser refutada. ocupavam nossa terra (ironicamente em ambos os casos, Contudo, nenhum outro país tem que lutar por seu os ingleses), declaramos a independência e construímos direito à existência como Israel. Além de lutar contra um belo país. países que querem destruí-lo fisicamente, Israel tem de justificar sua identidade judaica e seu direito à terra que O Povo Judeu na Terra de Israel transformou o deserto é sua. Por que Israel, entre todos os países, é acusado de em um pomar, construiu a única democracia do roubo – de se apossar de território que não lhe pertence? Oriente Médio e desenvolveu as mais bem treinadas Por que essa acusação é levantada contra Israel – e não forças armadas no mundo. O Estado do Povo Judeu contra países da Europa, Ásia e todos os países que foram desenvolveu um dos melhores sistemas educacionais fundados nas Américas? O primeiro comentário de Rashi do mundo, provê atendimento de saúde gratuito para sobre a Torá nos dá essa resposta. todos os seus cidadãos, judeus ou não. O Estado de Israel também construiu uma economia sólida e estável A proibição contra roubo é um dos sete mandamentos e conquistou não apenas reconhecimento internacional, que se aplicam a todos os seres humanos – a todos os mas também a admiração de países em todo o mundo, descendentes de Noé. Se a conquista territorial por meio que se voltam a Israel em busca de auxílio em questões da guerra é sinônimo de roubo, por que não encontramos tecnológicas, médicas, de defesa e na luta contra o em nenhum lugar na narrativa bíblica menção à punição terrorismo. Divina a uma nação por conquistar a terra (e seus habitantes) de outro povo? É claro que a conquista É fato que os judeus apenas se tornaram maioria na Terra militar não está incluída na definição de roubo segundo a de Israel após o Holocausto. Isso porque as potências que Torá (V. Shulchan Aruch HaRav, 649:10). a ocupavam apenas permitiam que um número muito limitado de judeus fizesse aliá. Na verdade, se os ingleses No entanto, a conquista da Terra Prometida pelos judeus não tivessem imposto o Livro Branco, milhões de judeus e sua transferência de posse dos cananeus, nação que teriam ido a Eretz Israel e o Holocausto não teria custado originalmente a habitava e que já não existe, para o Povo a vida de quase sete milhões de judeus. Judeu constituiu uma mudança muito mais profunda e de longo alcance do que qualquer outra transferência de É um fato histórico e incontestável que havia um antigo terra por conquista. Quando o Povo Judeu conquistou a país judeu na Terra de Israel. Mas o fato de que nós Terra que D’us lhes legara, modificou a própria essência éramos os habitantes originais daquela terra e que fomos da Terra. O potencial espiritual da Terra Prometida se expulsos de nossa pátria foi ignorado pelo mundo por tornou realidade – passando por uma transformação: quase dois mil anos. Como nossas legítimas alegações e tornou-se Eretz Israel, a Terra do Povo Judeu – para todo reivindicações foram ignoradas – e tiveram consequências o sempre. Nunca mais essa terra poderia essencialmente catastróficas –, tivemos que retornar ao nosso Lar pertencer a qualquer outro povo. Como está escrito não apenas como seu povo nativo, mas também como no Livro de Levítico (26:32), “E eu assolarei a terra, e guerreiros – prontos para resgatar nossa Pátria – e como se espantarão disso os vossos inimigos que habitarem os construtores de um novo estado. Os judeus retornaram nela”, o que significa que nenhuma outra nação poderá

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1. Vista aérea da Cidade de David e, ao norte, o Monte do Templo, Jerusalém 2. Nos restos de um jarro na Cidade de David uma inscrição: “Jerusalém”, 4º seculo a.E.C. 3. Moedas datadas da época da Grande Revolta encontradas em Silwan, em Jerusalém viver nela de forma pacífica e bem sucedida. A terra achar que essa explicação espiritual é pouco convincente não pode, em tempo e forma alguma, ser removida de para tanto sentimento anti-israelense. Nossa resposta a seu relacionamento intrínseco com o Povo Judeu. Por tais céticos é que o fenômeno da transformação espiritual essa razão, mesmo em nosso exílio, quando “estivemos da Terra de Israel foi corroborado pela História: desde exilados de nosso país, e afastados de nossa terra”, ainda quando o Povo Judeu foi expulso da Terra de Israel até nos referíamos a ela como “nosso país” e “nossa terra”. quando para lá retornou – quase dois mil anos depois – aquele território nunca se tornou um país independente. Essa é a razão mais profunda, espiritual, para tantos países Foi conquistado muitas vezes pelas potências mundiais, odiarem o Estado de Israel – para sermos acusados de nos mas nunca se tornou o país-sede de outra nação. A Terra termos apossado da Terra e para que as Nações Unidas de Israel somente foi um estado independente quando condenem Israel mais do que a qualquer outro país. Os foi o país do Povo Judeu: durante templos Bíblicos, como inimigos do Povo Judeu se ressentem de Israel pelo fato detalha o Tanach, e desde o estabelecimento do Estado de alegarem que não tínhamos o direito de conquistar e de Israel. transformar a essência da Terra Prometida, impedindo permanentemente as outras nações de dela se apossarem. Quanto a Jerusalém, a cidade somente foi capital de dois Para os nossos antagonistas, essa transformação constitui países – do Israel antigo e do Israel moderno. Vemos o um ato de roubo, de apropriação indébita. mundo proclamar, hoje, seu amor por Jerusalém – muitos querem internacionalizar a cidade – mas, estranhamente, Não precisamos nos intimidar com tais acusações. Rashi nenhum país que a tenha conquistado a fez sua capital. nos ensinou muito bem como responder a elas: “Toda a Os líderes muçulmanos alegam que a cidade é sagrada terra pertence ao Santo dos Santos, Bendito Seja; Ele a para o Islã e, contudo, nem o Império Otomano nem a criou”. Em outras palavras, a Terra de Israel é a herança Jordânia a fizeram sua capital enquanto a cidade esteve eterna do Povo Judeu porque D’us assim o decidiu. em seu poder. Consideremos: Amã não tem significado Se alguém não estiver satisfeito com essa situação, as para o Islã e, mesmo assim, quando a Jordânia conquistou reclamações devem ser dirigidas ao Criador, Dono dos a metade de Jerusalém na Guerra de 1948, não transferiu Céus e da Terra. Muitas pessoas podem achar essa linha sua capital de Amã para Jerusalém. O mesmo se aplica a de argumentação absurda. Podem não acreditar ou se todos os seus demais conquistadores: o Vaticano organizou importar com o que dizem a Torá ou Rashi, e podem as Cruzadas para conquistar Jerusalém, mas nunca a fez

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1. Vista aérea de Cesaréia 2. Vista aérea da cidade antiga de Cesaréia e do anfiteatro romano 3. Do Palácio de Herodes, no extremo norte de Massada, uma vista privilegiada do Mar Morto sua capital; preferiu permanecer em Roma, mesmo tendo Santa. Por outro lado, se o Povo Judeu fosse abrir mão de o Cristianismo se originado na Terra de Israel. partes da Terra de Israel, seria em vão: a terra não perderia As palavras de Rashi foram, de fato, proféticas. Muitas sua santidade nem receberia seus novos habitantes. nações podem negar nosso direito à Terra de Israel, mas As decisões dos seres humanos – das Nações Unidas, como ela pertence a D’us – que a legou ao Povo Judeu da União Europeia, dos Estados Unidos – mesmo do como uma herança eterna – e como a essência da terra foi Governo de Israel – não mudarão jamais essa realidade. transformada em Eretz Israel, não há nada que algum ser humano possa fazer para mudar essa realidade. A Terra Aqueles que desejam desmembrar a Terra de Israel de Israel, em sua totalidade, pertence ao Povo Judeu, e – expulsando os judeus de sua legítima Pátria – Jerusalém é sua capital, eterna e indivisível. Durante dois particularmente de Jerusalém e da Judeia e Samaria mil anos, tanto a Terra Santa quanto a Cidade Santa (Yehudá v’Shomron) – estão na contramão da História. aguardaram pelo retorno de seus filhos. O desabrochar do Não terão êxito. Após dois mil anos de exílio, finalmente deserto e o crescimento de Jerusalém é uma indicação de voltamos para casa, para nunca mais sermos exilados. que a Terra e sua capital estão exultantes com a volta de Como o Primeiro Ministro Binyamin Netanyahu seus filhos ao lar. declarou perante as Nações Unidas: “Em nossos dias, as profecias Bíblicas estão-se realizando. Como disse o Um ponto final e importante precisa ser esclarecido sobre profeta Amós: ‘Eles reconstruirão cidades arruinadas e a Terra de Israel: suas fronteiras foram demarcadas por nelas habitarão. Eles plantarão vinhedos e beberão seu Aquele que criou e detém o mundo todo. As fronteiras de vinho. Eles cultivarão jardins e comerão seu fruto. E eu todos os demais países estão sujeitas a discussão: podem os fincarei sobre seu solo para jamais serem novamente ser conquistadas pela guerra, compradas ou renunciadas. expulsos’. Senhoras e senhores, o Povo de Israel voltou As de Israel, não. Pela lei Bíblica, os limites de Eretz para casa para nunca mais ser expulso de lá”. Israel não podem ser aumentados nem diminuídos. Explicando: como muitas leis da Torá se aplicam apenas

à Terra de Israel, é imperativo que sejam estipuladas BIBLIOGRAFIA corretamente. Isso significa que se o Povo Judeu fosse The Lubavitcher Rebbe - Rabi Menachem Mendel Schneerson, conquistar territórios além das fronteiras da Terra de Studies in Rashi: The Land of Israel (Genesis 1:1) - by , Kehot Israel, o território conquistado não seria parte da Terra Publication Society

13 JULHO 2014 nossas festas heróis judeus – presente e passado

Tishá b´Av – o nono dia do mês hebraico de Menachem Av – é o dia nacional de luto para o Povo Judeu. Nessa data, jejuamos durante mais de 24 horas e choramos a queda de Jerusalém e seu Templo Sagrado e os muitos outros episódios trágicos na História Judaica, vários dos quais ocorreram ou se iniciaram em Tishá b’Av.

omo tanto o primeiro de ter de lutar guerras por sua Tishá b’Av não é um dia apenas de quanto o segundo sobrevivência, o Estado de Israel tristeza, mas também um dia em Templo Sagrado de sempre foi alvo de covardes atos que devemos fazer um balanço em CJerusalém tombaram terroristas, que visam a assassinar nossa consciência, um Cheshbon em Tishá b’Av, esse dia indiscriminadamente civis inocentes, Ha’Nefesh. Além de jejuar e observar simboliza o exílio do Povo Judeu inclusive bebês e crianças, mulheres as restrições e costumes do dia, da Terra de Israel e todos os e idosos. Mesmo após termos relatamos os pecados e erros que problemas e sofrimentos daí retornado à nossa Pátria ancestral, levaram à destruição e ao exílio – o decorrentes. Milhões de judeus foram não encontramos paz. ódio infundado entre os judeus e massacrados quando o antigo estado a guerra civil que eles enfrentaram judeu desmoronou e outros milhões Tishá b’Av é o dia mais triste no mesmo quando lutavam contra foram exterminados pouco antes do calendário judaico, mas não é o Roma. No nono dia de Av, nós moderno Estado Judeu renascer. No único dia de luto para o nosso povo. também recordamos os pecados meio tempo – quase 2.000 anos – o Em Israel, o Yom HaShoá – Dia da que levaram à queda do Primeiro Povo Judeu continuamente sofreu Recordação do Holocausto – ocorre Templo: idolatria, violência, horrores indescritíveis: discriminação no dia 27 de Nissan. Nessa data, imoralidade e flagrante desrespeito e demonização, expulsão em massa recordamos os quase sete milhões pela Torá. e pogroms, conversões forçadas e de judeus (não seis milhões, como Inquisições – tudo isso culminando muitos pensam) exterminados pelos O processo de Cheshbon no Holocausto. vilões mais diabólicos da história da Ha’Nefesh é sempre benéfico: humanidade. Alguns dias mais tarde, sempre podemos melhorar, individual Mesmo a fundação do Estado Judeu no quarto dia do mês de Iyar, Israel e coletivamente. No entanto, uma não significou um fim ao violento observa o Yom HaZikarón – Dia autocondenação excessiva não o é. antissemitismo. Israel é o único da Recordação. Este ano, o Estado Não podemos culpar-nos por todas país no mundo cujos inimigos Judeu recordou suas 23.169 vítimas as tragédias que se abateram sobre o conclamam à sua aniquilação. Além de guerra e terrorismo. nosso povo. Não temos o direito de

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julgar-nos e a outros judeus Talvez estejam além do escopo A resposta não reside, como muitos de forma tão desfavorável. Nossos de todas as palavras que já foram creem, na criação do Estado de Israel. antepassados que viveram no antigo pronunciadas por seres humanos. Os triunfos militares do Estado Israel podem ter feito escolhas A Torá, que é o projeto Divino Judeu não removem a dor inexorável insensatas e erros graves – alguns para o mundo e uma fonte pura do Holocausto. É por isso que o país cometeram mesmo pecados e não adulterada da Sabedoria inteiro para e observa dois minutos terríveis – mas nada justificou Divina, provê as respostas a todas as de silêncio em Yom HaShoá e discute, 2.000 anos de exílio e sofrimento. perguntas, exceto a uma – a questão ano após ano, quais as lições que Nada do que eles fizeram justifica do sofrimento humano. De fato, D’us devemos aprender do Holocausto. os pogroms, as humilhações e as não nos forneceu respostas a tais expulsões em massa, as fogueiras da questões. Não podemos reescrever a História. Inquisição, as câmaras de gás e os As palavras, por mais bonitas ou diabólicos experimentos médicos À luz do silêncio da Torá, como nós, inspiradoras que sejam, não podem do Holocausto. Nada justifica o judeus, podemos lidar com mudar o passado: elas servem assassinato de sete milhões de as questões levantadas por de pouco conforto para aqueles pessoas, inclusive de quase dois Tishá b’Av? O que dizer a nossos que sofreram ou perderam entes milhões de crianças, durante a Shoá. filhos quando eles nos perguntam queridos. Só se pode mudar o sobre o Holocausto? O que dizer presente e o futuro. Há apenas uma As inúmeras perguntas acerca a nós mesmos? Como continuar a coisa que podemos fazer acerca do da razão para os sofrimentos ser um judeu que tem confiança passado: mudar a maneira como o desproporcionais do Povo Judeu não em D’us e orgulho de seu povo, percebemos. Não podemos desfazer são novidade, naturalmente. Estão apesar dos dois milênios de as tragédias ocorridas em Tishá b’Av bem além do escopo deste artigo. sofrimento? ou as que ocorreram em virtude de

destruição de jerusalém pelos romanos comandados por tito, david roberts, 1850

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que estava enfermo. Este último, preocupado com a segurança do discípulo, volta-se para Rabi Chanina e diz: “Chanina, meu irmão, não sabes que dos Céus nos impuseram, como governantes, esta nação (Roma), que destruiu a Morada de D’us, queimou Seu Santuário, matou Seus filhos piedosos e fez com que perecessem seus nobres, e esse governante estrangeiro ainda vive... E, no entanto, contaram-me que você passa os dias dedicado ao estudo da Torá, e realiza encontros públicos, à luz do dia, para difundi-la, com um rolo da Torá abertamente em seu colo. Ficarei surpreso se eles não o queimarem vivo, junto com o rolo da Torá”.

Rabi Chanina ignora a advertência de seu mestre. Faz, então, uma pergunta a Rabi Yose ben Kisma, Arco de Triunfo de Tito, Roma. Foi erguido no ano 81 E.C. em comemoração cuja resposta devia ser óbvia: “Rebe, à conquista de Jerusalém pelo imperador Tito Flávio. merecerei um lugar no Mundo Vindouro?”. A resposta de Rabi Yose foi ainda mais desconcertante: Tishá b’Av, mas podemos perceber a o Povo Judeu. O Império Romano, “Eu não sei”, disse. “Diga-me uma História Judaica de forma diferente. que tinha ocupado a Terra de Israel e ação positiva sua que justificasse o Não podemos trazer de volta à destruído o segundo Templo Sagrado seu mérito de receber um lugar no vida aqueles que morreram no de Jerusalém, desejava extirpar o Mundo Vindouro”. Holocausto, mas podemos vê-los sob judaísmo da face da Terra mediante uma luz diferente. a proibição, sob pena de morte, do Rabi Chanina conta a Rabi Yose ensino da Torá. Apesar do decreto acerca de um ato de caridade que ele Para manter nossa fé em D’us e nos romano, certos rabinos e líderes realizou e, após ouvi-lo, Rabi Yose orgulharmos com nossa história e judeus, Rabi Chanina ben Teradyon lhe diz que ele terá, sim, seu lugar herança, precisamos ver a História entre eles, continuaram a estudar assegurado no Mundo Vindouro. Judaica sob diferentes lentes. e ensinar a Torá. Eles perceberam Precisamos entender que a história – assim como o percebeu Roma – Poucos dias depois, Rabi Yose ben de nosso povo é feita de heroísmo e que a Torá é o sangue vital do Povo Kisma deixa este mundo. Ele era de martírio. Judeu. Para difundir a Torá para o um homem tão proeminente que maior número possível de judeus, até mesmo os dignitários romanos A história de Rabi garantindo, assim, a sobrevivência de vão a seu funeral. Ao retornarem Chanina ben Teradyon seu povo, Rabi Chanina dava aulas do cortejo fúnebre, encontram em público, apesar do perigo daí Rabi Chanina ensinando a Torá Um dos maiores Sábios da História decorrente. em público, com um rolo da Torá Judaica foi Rabi Chanina ben em seu colo. Enrolaram-no nesse Teradyon, sogro de Rabi Meir – O Talmud nos conta o seguinte pergaminho da Torá e puseram Rabi Meir Ba’al Haness (o Mestre relato: Certa vez, Rabi Chanina ben fogo nele. Para prolongar seu do Milagres). Rabi Chanina viveu Teradyon fez uma visita a seu colega sofrimento, os romanos trouxeram durante tempos muitos difíceis para e mestre, Rabi Yose ben Kisma, tufos de algodão, molhados n’água,

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colocando-os sobre seu coração, e destruir corpos judeus, mas não para que ele morresse lentamente. conseguem tocar nossa alma e a luz Enquanto o fogo cresce, os alunos do Judaísmo – pois esta eles não perguntam a Rabi Chanina: “Mestre, conseguem extinguir. o que vê?”. E ele responde: “O fogo está consumindo o pergaminho em A história de Rabi Akiva branco da Torá, enquanto as letras estão subindo aos Céus”. Ao longo de toda a História Judaica, nem o judaísmo houve vários Sábios, que, como Rabi nem o Povo Judeu Muitos comentários foram escritos Chanina ben Teradyon, abriram sobre essa enigmática passagem mão de sua vida para assegurar a glorificam o martírio talmúdica. Ela dá origem a muitas eternidade do judaísmo. O mais e a morte. Valorizamos perguntas. Como pôde Rabi Chanina famoso deles foi Rabi Akiva. ben Teradyon, um Sábio que dedicou a vida acima de quase e arriscou sua vida para ensinar e O Talmud narra o seguinte: quando tudo. Grande parte Moshé subiu ao Monte Sinai para difundir a Torá, duvidar que ele teria do destino de nosso um lugar no Mundo Vindouro? receber a Torá, D’us lhe revelou os Ainda mais perturbadora foi a feitos de Rabi Akiva, que iria viver povo não foi resposta de Rabi Yose, de que não muitas gerações mais tarde. Após escolhido por nós. estava certo sobre o lugar de Rabi ter uma visão da extraordinária Chanina no Olam Habá. sabedoria e erudição desse Sábio, Moshé perguntou a D’us: A resposta não é que eles eram “Mestre do Universo, tendo alguém pessoas que duvidavam de seu valor. como ele, é a mim que entregas a Tua A resposta é que para homens Torá? Entrega-a através de da estirpe de Rabi Chanina ben Rabi Akiva”. D’us lhe respondeu: Teradyon, morrer pela Torá era um “Cala-te! Foi assim que decidi privilégio e não um ato de sacrifício e a ti não cabe opinar”. Moshé que requeria a recompensa de um então pergunta a D’us: “Mestre lugar no Mundo Vindouro. Para do Universo, mostraste-me os um judeu como ele, o ensinamento, ensinamentos de Torá de Rabi Akiva, a divulgação e a preservação da agora mostra-me a sua recompensa”. Torá eram atos supremos: ele iria “Vira-te”, D’us diz a Moshé. Ele estudar e divulgar o judaísmo ainda assim o faz e o que vê o choca: ele que arriscasse a sua vida. Ele estava vê o corpo mutilado de Rabi Akiva, pronto a abrir mão de sua vida em após ser executado por Roma. prol da Torá, independentemente “Mestre do Universo!”, Moshé de receber como garantia uma protesta, “Esta é a Torá e esta é a sua recompensa em sua vida futura. recompensa?!”. D’us lhe responde, “Cala-te! Foi assim que decidi e a ti Suas palavras finais a seus alunos não cabe opinar”. refletem sua atitude frente a vida e a morte: a parte física do rolo da Torá Para apreciar quão significativa e – o pergaminho – está queimando, quão enigmática é essa passagem mas a parte espiritual – suas letras, do Talmud, precisamos entender que transmitem santidade ao rolo quem foi Rabi Akiva. Em toda a da Torá – estão subindo aos Céus, História Judaica, ele foi o único a retornando à Fonte de toda a ser comparado a Moshé Rabenu. santidade. De modo semelhante, Segundo algumas opiniões, ele até Ruínas do Segundo Grande Templo Roma e os outros inimigos do Povo superou o nível espiritual do maior destruído no ano 70 E.C. quando Judeu podem queimar rolos de Torá profeta judeu de todos os tempos. Jerusalém foi tomada pelos romanos

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Fortaleza de Jerusalém, sem as muralhas, Torre de David, David Roberts, 1839

Rabi Akiva foi o maior mestre do e graças aos ensinamentos que Vejamos este relato talmúdico sobre Talmud – pilar da Lei, Tradição e transmitiu a seus discípulos sua execução. Enquanto o carrasco Sabedoria Judaicas. Ademais, ele, principais – entre eles, Rabi Shimon romano realizava a pavorosa execução sozinho, salvou o judaísmo. Moshé bar Yochai – autor do Zohar – – e seu corpo era rasgado, em Rabenu trouxe a Torá dos Céus à e Rabi Meir Ba’al HaNess – pedaços – Rabi Akiva sorria – quase Terra, mas foi Rabi Akiva quem o Mestre dos Milagres – a Torá não rindo, mesmo. Ninguém entendia assegurou que não fosse perdida. O se perdeu. o que se passava. O governador judaísmo existe hoje graças a Rabi romano, não acreditando no que via, Akiva. Por ter ensinado a Torá em público, virou-se para ele e disse: “Você deve Rabi Akiva foi preso e encarcerado ser um demônio! Não é possível que Como Rabi Chanina ben Teradyon, pelas autoridades romanas, que o um ser humano possa suportar tanto Rabi Akiva também viveu na Terra sentenciaram à morte. O governador sofrimento e fique sorrindo!”. Os de Israel durante tempos muito romano na Terra de Israel não alunos de Akiva, chocados com o que difíceis, quando o Império Romano se contentou com meramente viam, perguntaram-lhe: “Rebe, o que fez de tudo para extirpar o judaísmo executar o maior Sábio judeu. Por está acontecendo? Como pode sorrir da face da Terra. Percebendo que ter frustrado os malignos planos de num momento destes?”. a Torá corria o risco de se perder, Roma, por ter salvo o judaísmo e, Rabi Akiva organizou e sistematizou assim, assegurado a sobrevivência do Prestemos atenção às palavras finais seus ensinamentos para que fossem Povo Judeu, Akiva seria torturado até de Rabi Akiva – dirigidas tanto a adequadamente transmitidos de uma a morte. Roma escolheu para ele a seus carrascos quanto a seus alunos. geração a outra. forma mais excruciante de execução: “Este é o momento mais glorioso ele seria rasgado, pedaço por pedaço, de minha vida!”, declarou. “Todos Ensinam nossos Sábios que até morrer, com rastelos de ferro. os dias, de manhã e à noite, recito “Toda a Torá está de acordo com Como Rabi Akiva reagiu à sua o Shemá: proclamo minha fé em os ensinamentos de Rabi Akiva”. morte? Protestou ao Mestre do D’us, proclamo a unicidade de D’us, Isto porque graças ao seu trabalho Universo, como Moshé havia feito proclamo como devemos amar a incessante em prol do judaísmo por ele? D’us, assim como está escrito:

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‘E amarás o Eterno, teu D’us, com teste ainda mais difícil do que o de que dançavam em Simchat Torá todo o teu coração, com toda a tua Avraham e Itzhak. enquanto eram conduzidos à morte, alma e com toda a tua força’. Sempre o que levou seus carrascos nazistas entendi a parte ‘com toda a tua alma’ Diz-se que “morre Al Kidush Hashem” a comentarem, entre si, o que o como sendo ‘às custas de tua alma’, um judeu morto pelo simples fato carrasco romano disse à Rabi Akiva: e sempre me perguntei quando teria de ser judeu. Tal morte significa a “Não podem ser seres humanos. a oportunidade de cumprir este maior das elevações espirituais. No É impossível que um ser humano mandamento – sacrificar minha alma entanto, nem o judaísmo nem o Povo aguente tanto sofrimento e se alegre em favor de D’us”. Judeu glorificam o martírio e a morte. desta forma...” Valorizamos a vida acima de quase “Hoje isso está acontecendo”, Rabi tudo. Grande parte do destino de Durante o Holocausto, quando a Akiva concluiu. “Hoje estou sendo nosso povo não foi escolhido por nós. escuridão caía sobre o mundo e nosso morto por ser judeu. Hoje estou Não buscamos nem provocamos um povo era consumido em chamas, os sendo morto por minha fé em D’us ataque a nosso povo e a nosso estilo de Céus estavam lotados com milhões e por fortalecer esta fé entre os vida. O Povo Judeu nunca constituiu de judeus que chegavam. Quando demais. Não é, então, este, o grande ameaça aos países onde viveu. pensamos naquela geração de judeus momento de minha vida – quando – no que passaram e sobreviveram e posso renunciar à minha vida em A grande maioria dos judeus como foram capazes de reconstruir favor de D’us?”. assassinados no Holocausto eram o Povo Judeu e restabelecer a pobres e religiosos. Não eram Pátria Judaica na Terra de Israel e A seguir, Rabi Akiva recitou o verso ameaça para ninguém – política revigorar o Judaísmo – torna-se claro inicial do Shemá: “Escuta, ó Israel, ou economicamente, muito menos que a capacidade de nosso povo é o Eterno é nosso D’us, o Eterno em aspecto belicoso. Eles não praticamente ilimitada. é Um”, e sua alma ascendeu à esperavam nem provocaram uma Eternidade. confrontação com o mal. Mas, diz-se A era do Holocausto foi uma era que a verdadeira medida da força de de heróis e mártires judeus e eles se Assim ensina o Talmud: no ponto um povo é como eles se alçam para alçaram mais alto do que as estrelas mais alto dos Céus reside a alma de dominar o momento quando – eles ascenderam à Eternidade. Rabi Akiva, bem como as almas de surge a confrontação. Apesar de Eles fizeram o impossível. Eles todos os judeus de todas as gerações seu indescritível sofrimento, conseguiram o impensável. E se que foram mortos pelo simples fato o Povo Judeu manteve-se judeu alguém se perguntar como o Estado de serem judeus. durante os 2.000 anos de sua de Israel pôde vencer a Guerra da Diáspora, e, mais notadamente, Independência – como os judeus Uma nação de mártires durante o Holocausto. de Israel venceram contra grandes adversidades – foi porque eles não A história de Rabi Akiva não é Há inúmeras histórias de judeus lutaram sozinhos: lutaram ao lado de apenas a história de um único que deram sua vida para salvar a de uma legião Celestial de quase sete homem, mas de uma nação. O maior outros. Apesar de viverem à sombra milhões de judeus. de nossos Sábios personificou seu de seus carrascos, eles não perderam povo. Através de nossa história, mas a coragem nem a dignidade. Havia O Legado de Joseph especialmente durante o Holocausto, judeus nos campos de morte que Trumpeldor muitos caminharam para a morte colocavam diariamente os Tefilin, com o Shemá em seus lábios. Muitos que comiam Matzá em Pessach, que Através da História Judaica, muitos caminharam para as câmaras de gás acendiam velas de Shabat. Havia judeus renunciaram à sua vida em não apenas rezando, mas cantando. judeus famintos – verdadeiros favor de D’us e do Judaísmo. Mas No Holocausto, quase sete milhões esqueletos humanos – que se sempre houve judeus que arriscaram de judeus foram assassinados, recusavam a comer em Yom Kipur; e até renunciaram à vida pelo Povo morreram Al Kidush Hashem – pela outros que abriam mão da ração Judeu e por nosso direito de viver santificação do Nome de D’us. Eles semanal para conseguir emprestado em liberdade e dignidade. Um dos pagaram o preço supremo por serem um livro de orações, para poderem maiores mártires modernos do nosso judeus. Eles foram submetidos a um recitar algumas rezas. Havia judeus povo foi Joseph Trumpeldor.

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Nascido em 1880, ele era um judeu a seus irmãos-em-armas que não abençoados por pertencer a uma russo destemido – um socialista chorassem pela forma de sua morte: nação de heróis e mártires – do ardente e precursor do sionismo – ele lhes reassegurava que aceitava passado e do presente. Neste último que perdeu um braço no cerco de sua morte com bravura. Trumpeldor Yom HaZikarón, o Primeiro Ministro Port Arthur durante a guerra russo- entendeu que seu sacrifício Binyamin Netanyahu fez uma japonesa. Trumpeldor mudou-se para contribuiria, ao menos em parte, para declaração sobre os 23.169 mártires a Terra de Israel, tornando-se líder o restabelecimento de uma Pátria do Estado de Israel que se aplica da Legião Judaica – precursora das judaica, e, portanto, para a salvação também a todos os judeus de todas Forças de Defesa de Israel. Em 1o de do Povo Judeu. Em seus últimos as gerações que morreram por serem março de 1920, centenas de árabes momentos de vida, esse herói judeu judeus. “Não estaríamos aqui se atacaram o assentamento de Tel percebeu que sua vida e sua morte não fosse pelo seu sacrifício. Não Hai, na Alta Galileia. Trumpeldor não tinham sido em vão: seu legado estaríamos aqui não fosse por sua foi seriamente ferido na sangrenta contribuiria para a eternidade de seu disposição em entregar sua vida para batalha que se seguiu. Quando povo. De fato, ele foi saudado como que pudéssemos estar aqui”. D’us chegou um médico, era muito tarde. herói nacional por todos os lados abençoe sua memória. D’us abençoe Trumpeldor, ciente que estava prestes do espectro político antes e após a o Povo Judeu, e D’us abençoe o a deixar este mundo, confortava o criação do Estado Judeu. Estado de Israel. médico e seus irmãos-em-armas dizendo: “Ein davar, tov lamut be’ad Como Rabi Chanina ben Teradyon Tishá b’Av: O Dia da artzeinu” (Não faz mal, é bom morrer e Rabi Akiva, Joseph Trumpeldor Redenção por nossa terra). teve uma morte famosa. Milhões de judeus na Diáspora e mais de 20.000 Agora concluiremos com uma As palavras finais de Joseph judeus no Estado de Israel também história do Talmud sobre Rabi Trumpeldor se tornaram o lema deram sua vida pelo judaísmo e Akiva, que sempre insistiu que tudo oficioso do Estado de Israel. Mas pelo seu povo, mas suas mortes não que D’us faz é para o bem e que foi não visavam a promover a morte foram famosas e seus nomes não são aquele que enfrentou sua morte com para a Pátria. Ele estava dizendo encontrados no Talmud nem nos júbilo e orações. livros-texto das escolas de Israel. Após a destruição do segundo O tema do último Yom HaShoá em Templo Sagrado, quatro Sábios – Israel foi, “Toda pessoa tem um Rabban Gamliel, Rabi Elazar ben nome”. De fato, cada um deles teve Azariá, Rabi Yeshoshua e Rabi Akiva seu nome. Eram filhos e filhas, pais – estavam a caminho de Jerusalém. e mães, irmãos e irmãs, maridos e Quando chegaram a Har HaTzofim mulheres, professores e amigos. e viram a cidade de Jerusalém O fato de seus nomes não se terem destruída, rasgaram suas vestes em tornado famosos torna seu martírio sinal de luto. Chegando ao Monte do ainda mais significativo. Talvez não Templo, viram uma raposa surgir do saibamos seus nomes, mas jamais os local onde era o Kodesh HaKodashim. esqueceremos. Este era o local mais sagrado do Templo, onde apenas o homem mais Neste Tishá b’Av, o Povo Judeu, a santo de Israel, o Cohen Gadol, podia mais antiga nação que vive na face da entrar, e apenas no dia mais sagrado Terra, se prostrará de luto e recitará do ano – Yom Kipur. Ao presenciar a Meguilat Eichá – as Lamentações essa cena, Rabban Gamliel, Rabi de Jeremias. Jejuaremos e rezaremos, Elazar e Rabi Yeshoshua começaram e, ao lembrarmos os sofrimentos a chorar, mas Rabi Akiva pôs-se a de nosso povo, lamentaremos e sorrir. Eles então lhe disseram: “Por choraremos – abertamente ou que sorris?” Ao que ele respondeu: em nosso coração. Mas ao fazê- “Por que estão a chorar?” E eles Joseph Trumpeldor lo, também devemos sentir-nos disseram: “É um local sobre o qual

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judeus no kotel hamaaravi. alexander bida, 1862 está escrito: ‘o não-Cohen que se Rabi Akiva conclui, então: Ainda não há paz em Jerusalém aproximar, morrerá’ (Números 1:51) “Enquanto a profecia de Uriah não nem no restante do mundo, mas e agora ‘raposas vagueiam por lá’ tinha sido realizada, eu temia que está prestes a vir. Todos os judeus se (Lamentações 5:18). Não é para a de Zechariah tampouco o seria. reunirão na Terra de Israel, o Terceiro chorarmos?” Agora que a de Uriah foi realizada e eterno Templo será construído e o – e Jerusalém e o Monte de Templo sofrimento e a morte serão varridos Rabi Akiva replicou: “Por essa estão totalmente devastados – é da face da Terra. Mais milagroso exata razão, estou sorrindo. Pois certo que a profecia de Zechariah – a ainda: todos os mortos retornarão à está escrito: ´Buscarei para Mim construção do Terceiro Templo – vida – todos os entes queridos que testemunhas confiáveis, Uriah, será realizada”. Então os Sábios lhe perdemos retornarão a nós. o Cohen, e Zechariahu ben disseram: “Akiva, tu nos confortaste. Yeverechiahu´ (Isaías 8:2). Qual a Akiva, tu nos confortaste”. Que seja a Vontade de D’us que esse ligação entre Uriah e Zechariah? dia ocorra muito em breve, em nossos Uriah profetizou na época do Há dois milênios, em Tishá b’Av, dias – Bekarov BeYamenu Mamash – Primeiro Templo, enquanto caiu o segundo Templo de Jerusalém. Amén, ken yehi ratsón. Zechariah o fez durante o Segundo Fomos exilados de nossa Pátria. Templo. Por que, então, são Quatro milhões de judeus foram mencionados junto?”. Rabi Akiva, massacrados apenas na cidade de BIbliografia: então, explica: “Ao mencionar os dois Bethar. A profecia de Uriah de fato Talmud Bavli: Tratados Berachot, profetas junto, as Escrituras tornam se cumpriu. E agora esperamos Menachot, Avodá Zará, Makot a profecia de Zechariah dependente o cumprimento da profecia de Talmud Yerushalmi: Tratado Berachot da de Uriah. Na profecia deste Zechariah. Há uma tradição de que último, está escrito: ‘Portanto, por Tishá b’Av é a data de nascimento do Palestra do Rabi Dr. Schochet, Jacob Immanuel, Judaism: Discourse - Questions sua causa, Tzion será arado como um Mashiach e a data na qual ocorrerá a and answers with Immanuel Schochet - campo’. Na profecia de Zechariah Redenção Messiânica. E quando isso www.youtube.com está escrito: ‘Os idosos e as idosas ocorrer, o 9 de Av se transformará do Blum, Ruthie, Trumpledor Revisited sentar-se-ão, novamente, nas ruas de dia mais triste para o mais jubiloso Jerusalém’. do nosso calendário. www.israelhayom.com

21 julho 2014 homenagem

Moise Safra z’l

Um homem bom e justo, um dos principais banqueiros do Brasil, um grande filantropo que serviu de inspiração para toda uma geração.

o dia 15 de junho de à sociedade síria. Nos anos de 1920, trabalhou no ramo de importações e 2014 a comunidade Jacob E. foi enviado a Beirute, onde exportações, mas, em 1957, a família judaica de São Paulo se estabeleceu. Casou-se com sua Safra formou uma financeira que Nperdeu um dos seus prima Esther e tiveram oito filhos: viria a se tornar o Banco Safra e principais pilares, Elie, Eveline, Edmond, Arlette, fundou a Filobel, uma das maiores fundador de importantes instituições; Moise, Huguette, Gaby e Joseph. indústrias têxteis do país. o mundo das finanças perdeu uma Na cidade onde constituiu família, importante personalidade e o mundo Jacob E. foi um grande benemérito e Em 1969, Moise casou-se com da benemerência judaica e não um dos líderes comunitários, exemplo Chella Cohen e teve cinco filhos: judaica perdeu uma alma nobre, um seguido pelos seus descendentes, que Jacob, Azuri, Edmundo, Esther e homem generoso, sempre disposto se espalharam pelo mundo. Olga. Apesar dos inúmeros negócios, a apoiar as causas dignas e a atender obrigações sociais e comunitárias, os que necessitassem de sua ajuda. Na década de 1950, como Moise e Chella sempre dedicaram Moise deixa uma grande lacuna consequência do cenário político tempo à sua família, a seus filhos, ou, como diria Rabi Nachman de no Líbano decorrente da genros, noras e netos. Eles sempre Bratislav, “uma Cadeira Vazia”. independência do Estado de Israel, foram sua prioridade. a família Safra deixou o país rumo à Nascido em Beirute, Líbano, Itália. Essa não foi a última parada Em 1998, ele fundou um Family Moise era o quinto dos oito filhos do clã, que começou a se espalhar Office, M. Safra & Co., com de Jacob E. e Esther Safra. Seu pai pelo mundo. Em 1954, três filhos sede em Nova York e São Paulo, nasceu em Alepo, em 1891, na Síria, de Jacob E., Edmond, Moise e independente do império bancário então parte do Império Otomano. Joseph, escolheram o Brasil para familiar. Em 2006, Moise vendeu sua Ali vivia uma florescente e estável recomeçar a vida, constituir família parte ao irmão Joseph e começou a comunidade judaica, com instituições e erguer um dos grupos empresariais diversificar seus interesses comerciais. culturais, educacionais e religiosas mais sólidos do País, com ênfase Em 2012, Moise comprou o prédio sólidas, integrada economicamente no setor bancário. No início, Moise comercial Plantantion Place, em

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Londres, e, em 2013, em parceria como o crescimento do Netzah, Conhecido por fazer doações com a gigante chinesa Zhang seu movimento juvenil. Foi também regulares no Brasil e no exterior, Xin, adquiriu 40% de participação um dos fundadores da Escola Moise jamais esqueceu suas raízes no edifício General Motors, em Beit Yaacov. familiares na Síria, apesar de nunca Manhattan, Nova York. ter vivido no país. Em homenagem Não havia projeto comunitário de ao seu passado, destinou recursos A tuação comunitária que não participasse, junto com sua para a construção de um centro esposa Chella, não apenas em São comunitário para judeus oriundos da O nome Safra está inserido na Paulo e Rio de Janeiro, mas em todo Síria em Nova York. Com previsão história da comunidade judaica o Brasil e no exterior. Em Nova de inauguração no final de 2014, paulista em suas mais diversas York, Miami ou Israel, Moise não o projeto será nomeado Centro manifestações – educação, assistência limitou sua atividade filantrópica às Comunitário Moise Safra. social, saúde, cultura. Com seus comunidades judaicas. irmãos Edmond e Joseph, Moise Foram muitas as outras obras em foi, em 1959, um dos fundadores Chella e Moise Safra estão entre que o casal esteve envolvido além das da Congregação Beneficente os principais mantenedores do mencionadas. Durante a Mishmará, Sefardi Paulista, conhecida como Hospital Israelita Albert Einstein, os rabinos afirmaram que é difícil Beit Yaacov. A primeira Sinagoga em São Paulo. Em 2010, a instituição enumerar os inúmeros atos de da Beit Yaacov está localizada inaugurou um sofisticado auditório bondade que Moise realizou durante na rua Bela Cintra. Como com seu nome. O casal esteve sua vida. presidente da instituição durante envolvido na reforma da unidade anos, acompanhou de perto o seu neonatal do Hospital São Paulo, O rabino Efraim Laniado disse desenvolvimento e fortalecimento, ligado à Universidade Federal de São que quando a pessoa termina sua a fundação de novas sinagogas, Paulo (Unifesp), para a ampliação de missão na Terra, D’us manda os como a sinagoga do Guarujá, sua estrutura e instalação de novos anjos ao mundo para ouvir o que a Beit Yaacov Veiga Filho, bem equipamentos. dizem sobre a pessoa. E não houve

23 julho 2014 homenagem

de um parente. Mas ela não sabia usar um orelhão. Sem fichas para usar o telefone, Moise deu-se o trabalho de ir até um bar e comprou uma ficha, ligou para o número que a senhora tinha e mandou chamar seu parente. Então, o filho lhe perguntou por que se dera todo aquele trabalho para uma pessoa humilde e desconhecida. Ao que Moise lhe respondeu que era fácil fazer favores para um rei, mas o difícil era ajudar uma pessoa simples...

Moise foi um homem que sempre se manteve fiel às leis e tradições judaicas, sendo mesmo a personificação do mais importante mandamento do judaísmo: a prática de atos de bondade, Moise e Chella Safra generosidade e caridade. Rabi Moshe ben Maimon, Maimônides, o maior filósofo judeu quem não falasse belas coisas sobre sabia ouvir, sentia empatia pelo e um dos principais legisladores Moise. Lembrou-se, também, sofrimento alheio e, junto com da Lei Judaica, escreve que há de uma ocasião quando ele lhe sua esposa, se envolvia nos problemas oito níveis de Tzedaká – cada um telefonou para dizer que chegara ao das pessoas, sempre encorajando maior do que o outro. O nível mais seu conhecimento que alguns judeus os necessitados e procurando alto de todos – o insuperável e de no Rio passavam necessidade e ele soluções. Ele costumava visitar maior valor – é ajudar alguém que queria enviar ajuda aos mesmos. doentes no hospital, fossem eles esteja passando por dificuldades amigos ou apenas conhecidos. financeiras, para que ele possa se Já o rabino David Y. Weitman disse: Ajudava jovens com poucas restabelecer e não mais ter que “No mundo atual, onde os perigos condições financeiras a estudar depender dos outros. Esse grau de do sucesso são óbvios, tais como e a se casar. Tzedaká se manifesta de diferentes egocentrismo, perda de autenticidade formas: emprestar dinheiro ao e sensibilidade, Moise Safra Azuri, seu filho, relatou em um necessitado, convidá-lo a participar conseguiu manter intactos os valores discurso emocionado em nome de algum negócio ou ajudá-lo a milenares judaicos aprendidos de toda família na cerimônia encontrar trabalho. Moise cumpriu com seu pai, Jacob E. Safra. Grande da Mishmará, como seu pai lhe esse e os demais graus superiores filantropo e mecenas ele atendia a ensinara, quando ele era ainda do mandamento e o fez da melhor todos com seu coração generoso. uma criança de apenas 8 anos, que forma possível – com o máximo de Ele estava ciente de que D’us o quando queremos ajudar alguém, discrição – preservando a dignidade contemplara com riqueza para que devemos nos antecipar em atender das outras pessoas. ele pudesse ajudar os outros em sua suas necessidades. Ele lembrou que, volta, e fazer do mundo um lugar numa ocasião, quando saíam juntos Ensinam os nossos sábios que melhor”. da sinagoga, viram uma senhora todo ato de bondade que um ser humilde que havia chegado a São humano realiza cria um anjo para Todos os que o conheciam sabiam Paulo, vinda do Norte, e estava si e que todos os anjos criados que Moise era um homem que não perdida. Tinha nas mãos um pedaço acompanham sua alma quando ele se contentava apenas em doar, mas de papel com o número do telefone sai da dimensão terrestre e adentra

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Moise e Chella Safra e seus filhos (da esq. para direita) Azuri, Olga, Edmundo, Esther e Jacob, São Paulo, 2013 o Mundo Superior. Não há dúvida “Moise Safra deixa um legado difícil descrever o sentimento de de que uma enorme legião de anjos importante para o sistema financeiro perder um irmão. A perda de meu recebeu Moise Safra no dia em que nacional e internacional”, disse irmão Moise deixa um vazio em meu ele retornou sua alma ao Criador. Roberto Setubal, presidente do Itaú coração”. Joseph Safra Todas as bênçãos das quais ele Unibanco. usufruiu na Terra foram apenas um Por ocasião do seu 75o aniversário, vislumbre das recompensas eternas Para Lázaro de Mello Brandão, sua esposa, filhos, noras, genros e imensuráveis que o aguardam no presidente do Conselho de e netos lhe fizeram uma linda Mundo da Verdade. Administração do Bradesco, homenagem, em que disseram: “Moise foi um dos mais respeitados M anifestações nomes do mundo das finanças “Moise Safra, um grande homem, nacional e internacional. Acreditou um grande marido, pai e avô está Para Cláudio Lottenberg, e investiu no Brasil, representando sempre em nosso coração. Obrigado presidente do Hospital Albert a melhor tradição do setor bancário por fazer parte de nossas vidas. Sua Einstein, “Moise era uma pessoa brasileiro”. história é um exemplo para todos dotada de uma sensibilidade nós. Você é um mestre na arte de instintiva, para quem a palavra “Pessoas do mundo inteiro têm viver, suas palavras são sempre sábias amor era um exercício do cotidiano. feito declarações sobre seu papel e carinhosas, seu lema é honestidade Ele conseguia conciliar a visão no setor financeiro, sobre suas e sensatez, sua compaixão com o de um empresário com a de um contribuições. Amigos mais próximos próximo sempre nos emocionou. humanista. É uma perda muito compartilham lembranças e atributos Você sempre usou justiça e respeito grande. Moise era um grande pessoais que fizeram dele uma pessoa em suas decisões, seu olhar sempre doador do Einstein e eu o maravilhosa. Nesse momento, só verdadeiro e amoroso, seu sorriso considerava meu conselheiro. posso pensar nele como meu irmão contagiante iluminado, a vida inteira Muitas vezes conversei com ele querido, com o qual compartilhei nos ensinou e cativou com seu jeito sobre questões do Hospital e ele nos durante toda a vida momentos humilde e grandioso de ser. Este é o apoiava em todas as nossas obras”. felizes, sucessos e dores. É muito seu legado”.

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BEN HECHT- um judeu acima do bem e do mal POR Zevi Ghivelder

E ste ano assinala o 120º aniversário do nascimento de . Este notável jornalista, escritor, autor teatral, roteirista de dezenas de filmes e sionista combativo, avultou como uma das mais consagradas celebridades americanas do século passado. Ao longo de toda a vida, ele jamais foi indiferente aos rumos do mundo, em geral, e ao povo judeu, em particular. por Zevi Ghivelder

certa altura de sua dos judeus mesmo porque ele era repórter, cobrindo os mais variados fascinante trajetória, antes de tudo um patriota americano. assuntos. Depois da 1ª Guerra Hecht empenhou-se Hecht não se abalou e fez-lhe uma Mundial foi mandado para Berlim Acom devoção em angariar proposta: “Então, telefone para como correspondente do jornal fundos destinados cinco amigos seus, que não sejam Chicago Daily News. Permaneceu aos judeus que confrontavam os judeus, e pergunte se você é judeu durante dois anos na Alemanha e mandatários ingleses na antiga ou americano. Se responderem ali escreveu seu primeiro romance, Palestina. Nessa tarefa, decidiu americano, você ganha 20 mil intitulado Erik Dorn, que alcançou obter doações, talvez vultosas, dos dólares; se disserem que é judeu, significativo sucesso. Depois de três magnatas judeus que eram donos eu recebo uma contribuição de 20 peças encenadas na Broadway, dos maiores estúdios de Hollywood mil dólares”. Dito e feito: os cinco que tiveram pouca repercussão, a porque o admiravam e respeitavam. disseram que Selznick era acima de fama chegou em 1928 quando (No decorrer de sua prolífica carreira, tudo judeu e Hecht, com o cheque lançou a peça (A Hecht teve quatro indicações e duas no bolso, partiu feliz em busca de Primeira Página), em parceria com vitórias nos Oscars). novos doadores. Charles MacArthur. O espetáculo teve 276 apresentações e, desde Na ida para a Califórnia, tinha como Ben Hecht nasceu no Brooklyn, então, tem tido frequentes novas primeiro nome da lista o produtor Nova York, em 1894, filho de versões tanto nos Estados Unidos David O. Selznick, seu amigo imigrantes russos. O pai, alfaiate como em palcos de todo o mundo. de longa data, responsável, entre no ramo de confecções, mudou-se É uma engenhosa e cativante muitos outros, pela realização do depois com a mulher e o único filho, comédia que já foi vista no Brasil filme E o Vento Levou, cujo roteiro Ben, para Wisconsin. O menino e sua versão para o cinema, com foi escrito pelo próprio Hecht. costumava passar o verão em Jack Lemmon e Walter Matthau Não foi uma conversa agradável. acampamentos perto de Chicago, nos principais papéis e direção de Irritado, Selznick disse que não cidade aonde acabou se fixando e Billy Wilder, também alcançou queria nem ouvir falar das agruras onde começou no jornalismo como expressivo êxito.

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Ben Hecht, 1943

Ben Hecht foi um dos primeiros face do que estava acontecendo que optara por combater e sabotar homens de letras a perceber o perigo na Europa. Também conclamou os ingleses na Palestina. A do nazismo desde a sua tomada do os governos dos Estados Unidos não julgava que as ações políticas e poder, em 1933. Passou a escrever e da Inglaterra a fazerem algo diplomáticas de líderes como Chaim em sua coluna diária, publicada em favor dos judeus e sua ira foi Weizmann e Ben-Gurion poderiam em diferentes jornais americanos, aumentando na mesma proporção fazer com que a Grã-Bretanha dezenas de artigos contra o regime em que suas palavras estavam sendo abdicasse do seu mandato na Terra instalado na Alemanha e também ignoradas. Santa. contra o fascismo que crescia na Itália. Pouco depois da invasão da Em 1941, Hecht recebeu uma visita Bergson instou Hecht a atuar em Polônia, em 1939, e já sabendo dos que iria mudar os caminhos de sua duas frentes: usar de sua influência massacres contra os judeus, sentiu, vida. O recém-chegado, vindo da nos meios jornalísticos e artísticos como ele mesmo escreveu, “ferver o antiga Palestina, apresentou-se como americanos no sentido de obter meu sangue judaico”. Assim anotou Peter Bergson, mas seu verdadeiro apoio para a causa revisionista e em suas memórias: “O assassinato nome era Hillel Kook, sobrenome endossar a coleta de fundos para em massa de judeus estava apenas que preferiu esconder porque era as atividades da Irgun. Hecht começando e todo o meu judaísmo sobrinho do então rabino-chefe abraçou as duas tarefas com intenso veio à superfície. Não sei se senti de Jerusalém e assim evitava fervor. No dia 16 de fevereiro de pena das vítimas, mas sei que rugia comprometer sua família. Bergson 1943, já ciente do Holocausto, em mim um enorme impulso de fora discípulo de Vladimir Jabotinsky redigiu um anúncio que foi violência contra os criminosos (falecido em Nova York no ano publicado em página inteira no nazistas”. anterior), fundador do movimento New York Times, provocando revisionista no âmbito do sionismo, inusitado furor. O texto dizia: Ao mesmo tempo, passou a escrever que deu origem à “À venda para a humanidade: 70 mil ácidos textos dirigidos aos judeus Irgun, organização clandestina judeus. Garantia de que são seres americanos que se alienavam em chefiada por Menachem Begin, humanos. 50 dólares por cabeça”.

27 JULHO 2014 PERSONALIDADE

No mesmo mês escreveu para a uma noite só contou com a presença Ellen, filha de Stella, a fundadora publicação American Mercury um de 40 mil emocionados espectadores. do célebre Actor’s Studio, que artigo intituladoO Extermínio dos O espetáculo foi produzido por namorou Brando durante alguns Judeus, dramático relato ainda dois grandes nomes: o cineasta anos, recordou: “Num dos ensaios, desconhecido pelos americanos Ernest Lubitsch e o legendário o desempenho de Marlon foi tão sobre os horrores do Holocausto. produtor Billy Rose, com direção intenso que Luther, o patriarca de O texto foi reproduzido na revista geral de Moss Hart, e tendo como nossa família, chegou a chorar. Reader’s Digest, a de maior circulação mestres de cerimônia dois dos mais nos Estados Unidos. A partir de seu famosos atores do cinema daquela Na verdade, Brando não estava prestígio pessoal, organizou uma época, ambos judeus, apenas representando. Ele se reunião de jornalistas a escritores no (pseudônimo artístico de Meshilem preocupava com o destino dos apartamento do famoso autor teatral Meir Wiesenfreund) e Edward refugiados judeus, assim como e romancista George S. Kaufman. G. Robinson (pseudônimo de anos mais tarde se empenhou na Em sua autobiografia, A Child of the Emmanuel Goldenberg). Em julho, campanha dos direitos civis e dos Century, escreveu: “Compareceram o espetáculo foi apresentado no direitos dos índios”. (No meio da 30 pessoas, alguns amigos, alguns Hollywood Bowl, em Los Angeles, temporada, em virtude de outro inimigos, todos judeus. Disse-lhes e transmitido pela televisão. compromisso já assumido, Marlon como seria importante se todos Brando foi substituído por Sidney nos uníssemos para denunciar os Entretanto, o grande êxito teatral de Lumet, que se tornaria um dos crimes do nazismo. Se juntássemos caráter sionista da autoria de Ben maiores diretores do cinema nossos talentos talvez fossemos Hecht ainda estava por vir. No dia americano). Em princípio a peça era capazes de impedir os massacres. 5 de setembro de 1946 estreou no para ficar apenas um mês em cartaz, Quando terminei minha fala, não teatro Alvin, na Broadway, a peça o tempo disponível do teatro, mas houve nenhum aplauso e eu nem A Flag is Born (Nasce uma Bandeira), acabou se prolongando por quase esperava que houvesse. O que me tendo nos principais papéis Paul um ano e depois percorreu diversos espantou, foi que uma dúzia dos Muni, (da aclamada estados americanos, e chegou, convidados se levantou e foi embora dinastia teatral dos Adler) e um inclusive, aos campos de refugiados sem sequer se despedir. Na saída, ator principiante chamado Marlon da Europa tendo sobreviventes do Beatrice, a mulher de George, disse Brando. O filho de Celia Adler Holocausto como intérpretes. que estava muito sentida com o que conta que quando a mãe chegou em tinha acontecido e chamou a minha casa, voltando do primeiro ensaio Um dos momentos mais atenção para o fato de eu ter tocado da peça, disse: “Tem um rapazinho emocionantes da peça ocorria quando no ponto fraco daquelas pessoas: eles no elenco, nem me lembro do nome o personagem David, interpretado se consideravam mais americanos dele, que é um grande talento”. por , dizia o seguinte do que judeus. Preferi não discutir. monólogo: “Judeus, onde estão Entretanto, Moss Hart (diretor de vocês? Onde vocês estavam enquanto teatro que veio a contar entre seus prosseguia a matança? Onde vocês grandes sucessos o musical My Fair estavam enquanto seis milhões de Lady) aproximou-se de mim e disse judeus eram assassinados? Onde que estava disposto a colaborar de estavam suas vozes para impedir os todas as formas. O mesmo me foi massacres? repetido pelo compositor Kurt Weil”. Não houve voz nenhuma. E vocês, Entusiasmado com aquelas adesões judeus da Inglaterra? Judeus fortes, de tamanha relevância, Hecht judeus ricos, judeus aristocráticos, concebeu e promoveu um colossal poderosos e geniais. Onde estavam evento artístico na arena do Madison seus protestos que poderiam ter Square Garden de Nova York, sob o apagado os incêndios? Em lugar título Nós Jamais Morreremos. Com nenhum! E isto porque vocês não música de Kurt Weil e texto do queriam se expor como judeus. próprio Hecht, a apresentação de Ben Hecht, 1944 Vocês deixaram os judeus morrerem

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Tuxedo Park, NY. “Blue Moon”, com Ben Hecht ao piano e Jimmy Salvo cantando contanto que vocês mesmos não adolescente, ao fim dos espetáculos fundos complementares, serviu para fossem identificados como judeus. percorria a plateia com uma cesta na que Hecht e Bergson comprassem Seu silêncio merece a maldição. Vocês qual os espectadores depositavam uma embarcação dos anos 1930, se esconderam atrás de seus sotaques quanto dinheiro quisessem para caindo aos pedaços, chamada Argosy, britânicos, um bom disfarce para não a causa sionista. Anos mais tarde, incorporada depois da 2ª Guerra serem vistos como judeus”. Anos já bem-sucedido, ele escreveu: à Guarda Costeira dos Estados depois, Brando lembrou que em uma “O público assimilou com grande Unidos, rebatizada como Abril, e das apresentações, quando terminou o entusiasmo a mensagem da peça. em seguida descartada como sucata. monólogo, uma senhora levantou-se Valeu-me como um despertar A Tyre Shipping Company, uma na plateia e gritou, dirigindo-se a ele: político para a questão de os judeus empresa de fachada do movimento e você, onde estava? “Quis responder conquistarem sua pátria”. Walter revisionista, comprou o navio de que quando a guerra começou eu Winchell, o mais famoso e respeitado 400 toneladas que começou a tinha apenas 15 anos de idade, mas jornalista americano daquele tempo, ser reformado para transportar preferi me calar para não interferir na assinalou: “É uma peça que deve passageiros, ou seja, imigrantes ilegais profunda emoção daquela mulher”. ser vista, ouvida e lembrada. Vai para a Palestina. Itzhak Ben Ami, um O clímax do espetáculo acontecia mover seus corações e fazer derramar dos colaboradores de Bergson, foi quando a música de Kurt Weil torrentes de lágrimas dos seus olhos. incumbido de contratar a tripulação. entrava com vigor e o elenco agitava Aconselho que levem muitos lenços uma bandeira azul e branca parecida para o teatro”. O texto continha uma Anos mais tarde, ele recordou: com a atual bandeira de Israel. corrosiva crítica quanto à atuação dos “Eu tinha que encontrar idealistas ingleses na Palestina. Em Londres, o e aventureiros dispostos a enfrentar A escritora americana Miriam jornal The London Evening Standard aquela dura missão. Acabei reunindo Chaikin, uma das colaboradoras enfatizou: “Jamais um espetáculo tão 20 homens com 20 razões diferentes de Bergson, escreveu: “É um canto anti-britânico foi apresentado num para se juntarem a nós. Não eram de esperança que dá lugar a um palco dos Estados Unidos”. todos judeus. sentimento de força e de orgulho destinado a acordar os corações O volume de dinheiro arrecadado A maioria era composta por católicos adormecidos dos judeus americanos”. pela cesta de Navasky no Alvin e em irlandeses dispostos a entrar em O escritor Victor Navasky, então outros teatros americanos, a par de qualquer briga contra a Inglaterra”.

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A função de capitão coube ao como mostrado no filme Exodus. O A Flag is Born foi devastadora. veterano comandante Robert Levitan, navio Ben Hecht foi incorporado à O governo britânico ficou que chamou para ser seu imediato nascente marinha do Estado de Israel particularmente revoltado com um o experiente marinheiro Walter em 1948. artigo de Hecht sob o título Greaves, sobrevivente de três ataques O Ataque É a Melhor Defesa, no qual de torpedos durante a 2ª Guerra. Um Voltando a A Flag is Born, a comparou a luta da Irgun à luta dos dos marinheiros, de 33 anos de idade, peça estava programada para americanos contra os colonizadores era um negro do Brooklyn chamado representações no National Theater, ingleses. Lord Rothermere, dono Walter Cushenberry: “Como negro, em Washington, mas Hecht do jornal Daily Mail, escreveu eu sabia o que era a perseguição rescindiu o contrato porque o teatro que Hecht “é um vulcão sionista e não me conformava com o fato não permitia a entrada de negros. vitriólico”. A embaixada britânica de os judeus refugiados da guerra Ele soube, então, que o Maryland em Washington tentou convencer estarem sendo perseguidos”. Ainda Theater, na mesma região da capital, o presidente Truman a ordenar a com o nome de Abril o pequeno aceitava negros, contanto que se deportação de Peter Bergson, mas navio zarpou para o porto de Bouc, acomodassem no balcão. Na noite seu pedido não foi atendido. Mais na França, em dezembro de 1946. da estreia, Ben Hecht sentou-se na uma vez, Winchell saiu em defesa de Rumou para a Palestina em março de plateia acompanhado de dois amigos Hecht evocando o mesmo exemplo. 1947, com 600 pessoas a bordo, e em negros. Em face disso, a direção Os jornais ingleses reagiram, dizendo alto mar recebeu o nome definitivo de do teatro liberou ingressos para os de uma forma ou de outra que SS Ben Hecht. No mar Mediterrâneo, negros em quaisquer assentos. O caso Hecht e Winchell não passavam a embarcação foi interceptada por teve tanta repercussão, que a cidade de “uma praga de dois idiotas”. Em um destróier britânico e escoltada de Baltimore aboliu as restrições 1948, a Associação dos Exibidores até o porto de Haifa. Os refugiados aos negros em todas as suas casas de Cinematográficos da Inglaterra foram levados para a ilha de Chipre espetáculos. proibiu que qualquer filme que e a tripulação foi encarcerada na tivesse a participação de Ben Hecht fortaleza de Acre, de onde escapou Entretanto, enquanto Hecht era fosse levado às telas de cinco mil durante o célebre e espetacular ataque aplaudido e admirado nos Estados cinemas do país. Foi uma medida que conjunto da Haganá e da Irgun, tal Unidos, a reação inglesa à peça doeu em seu bolso. Os produtores de Hollywood, aos quais havia proporcionado lucros de centenas de milhões de dólares, nem mais lhe atendiam seus telefonemas. Não queriam correr qualquer risco que lhes levasse a perder o importante mercado inglês. Para minimizar seu prejuízo, Hecht concordou em receber a metade do que costumava receber por seus roteiros e inclusive concordou que seu nome não constasse nos créditos dos filmes de sua autoria. Essa proibição só foi levantada quatro anos depois e Ben Hecht fez o seguinte comentário: “Que coisa impressionante! Um grande império declarou guerra contra um homem só e depois fez a paz!” Mas a animosidade de Hecht com relação aos ingleses foi de tal

Anne Sargent, Richard Kneeland E Terry O’Quinn NA TEMPORADA DE 1980-81. natureza que, em 1972, oito anos PEÇA ESCRITA POR BEN HECHT E CHARLES MACARTHUR depois da sua morte, o crítico teatral

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Kenneth Tynan, então diretor do mais numerosos do que nós, mais viver lado a lado com as demais National Theater de Londres, decidiu bem equipados e contam com nações do mundo. Sou obrigado a encenar uma nova montagem da recursos ilimitados. Por mais que recorrer à imagem da luta de David peça A Primeira Página. A atriz isto não nos agrade, esta é a verdade. contra Golias. Eu lhes peço, judeus, Helen Hayes, viúva de Charles Vocês talvez me perguntem o que comprem uma pedra para a atiradeira MacArthur, aceitou de imediato, os judeus americanos têm a ganhar de David!”. porém Rose, a viúva de Hecht, e com o renascimento da nação de portanto herdeira meio a meio Israel. Eu lhes respondo com outra Ben Hecht abandonou o dos direitos autorais, recusou-se a pergunta: o que vocês perderam ativismo sionista pouco depois do dar permissão para a realização do quando seis milhões de nossos estabelecimento do Estado espetáculo “em um país que tanto irmãos estavam sendo assassinados de Israel por ocasião do polêmico perseguiu meu marido”. Foram na Europa? Se nossa vontade e episódio do afundamento do navio necessárias muitas idas e vindas e nossos espíritos forem despertados Altalena. Para quem não está a par, rendas diplomáticas por parte dos decerto venceremos! Uma nação vale lembrar que o Altalena foi britânicos até que ela permitisse o judaica há de permitir que possamos uma embarcação carregada de armas projeto. que seriam entregues à Irgun casa de ben hecht, construída quando as forças de defesa de Israel, Há pessoas nos Estados Unidos, em 1888 embora já empenhadas na guerra notadamente em Nova York, que pela independência, ainda não até hoje se lembram dos peculiares estavam organizadas em uma só e inflamados discursos que Hecht unidade e sob um comando central. costumava fazer para convencer os O julgamento de Ben-Gurion era alienados ou para angariar fundos: no sentido de que o país deveria ”Vou dizer-lhes algumas coisas que contar com um só exército e que a vocês talvez não gostem de ouvir. Irgun não poderia constituir-se Eu recebi um telegrama de Tel Aviv, como um exército em separado. assinado por Menachem Begin, no Em face da obstinação da Irgun qual ele me pede que façamos o de não entregar os armamentos possível e o impossível para ajudar em seu poder, só restou a Ben- os judeus que estão lutando na Gurion a amarga decisão de mandar Terra Santa e enfrentando enormes bombardear e afundar o Altalena, dificuldades. Os inimigos são muito ancorado próximo à costa de

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da peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, que alguns estudiosos apontam como uma expressão de antissemitismo. Lê-se em seu rascunho: “Eu sinto muito que os judeus deixem de reconhecer Shylock como seu irmão. Jamais o considerei um vilão. Pelo contrário. Vejo-o como um dos raros heróis judeus da literatura clássica, talvez o único. Shylock foi um vingador dos insultos proferidos contra os judeus”.

Ben Hecht, um judeu acima do bem e do mal, morreu de um súbito ataque cardíaco, aos 70 anos de idade, em seu apartamento da rua 67 West, hecht e selznick no set de filmagem de “adeus às armas”, 1957 em Nova York. À beira do túmulo, seu elogio fúnebre foi feito por Menachem Begin. Tel Aviv, fazendo vítimas fatais que romance Perfidy (sem tradução para se encontravam a bordo. Para Ben o português) sobre a controvérsia BIBLIOGRAFIA Hecht aquela foi uma ferida que até hoje existente a respeito da jamais se fechou. deportação dos judeus da Hungria “Ben Hecht: The Man Behind the Legend”, de William MacAdams, editora Scribner, para Auschwitz. Hecht deixou, ainda, EUA, 1990. Entretanto, seu judaísmo um projeto inacabado sob o título permaneceu atuante. Em 1954 Shylock, My Brother. “A Child of the Century”, de Ben Hecht, editora Primus Plume, EUA, 1985. escreveu sua autobiografia A Child of the Century, aclamada pelo público Trata-se de um estudo sobre a ZEVI Ghivelder, e pela crítica. Em 1961 publicou o personalidade do personagem judeu ESCRITOR E JORNALISTA

Principais roteiros escritos por Ben Hecht

1931 – The rontF Page (A Primeira página) 1950 – Edge of Doom (Alma em revolta) 1932 – Scarface (A Vergonha de uma nação) 1951 – Strangers on a Train (Pacto sinistro) 1934 – (Século Vinte) 1952 – Angel Face (Alma em pânico) 1934 – Viva Villa! (Viva Vila) 1955 – The ManWith the Golden Arm 1938 – Nothing Sacred (Nada é sagrado) (O homem do braço de ouro) 1939 – Gone With the Wind (E o vento levou) 1956 – Trapeze (Trapézio) 1939 – Gunga Din (Gunga Din) 1956 – The Hunchback of Notre Dame 1940 – Foreign Correspondent (O Corcunda de Notre Dame) (Correspondente estrangeiro) 1957 – A Farewell to Arms (Adeus às armas) 1940 – ( Jejum de amor) 1959 – John Paul Jones 1945 – Spellbound (Quando fala o coração) (Ainda não comecei a lutar) 1946 – Gilda (Gilda) 1962 – Mutiny on the Bounty (O grande motim) 1946 – Notorious (Interlúdio) 1963 – Cleopatra (Cleópatra) 1948 – Rope (Festim Diabólico) 1974 – The Front Page (Nova produção)

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O avanço do racismo na Europa POR JAIME SPITZCOVSKY

A Europa, mergulhada na sua mais grave crise social e econômica desde a 2ª Guerra Mundial, resgata fantasmas como o terrorismo e o racismo, responsáveis por instaurar no continente uma atmosfera de temor, incerteza e desilusão.

m 24 de maio, um atirador ao nacionalismo exacerbado, com 0,74% dos votos, capitaneando um disparou no Museu Judaico plataforma anti-imigração e rechaço partido formado, entre outros, por de Bruxelas, em uma à integração do continente. ultracatólicos e colaboracionistas E das principais capitais franceses do nazismo. Na eleição diplomáticas do planeta, “É um terremoto político”, comentou presidencial de 2012, Marine e ceifou a vida de quatro pessoas. Manuel Valls, primeiro-ministro alcançou a marca de 18%, avançando No dia seguinte, eleições para o francês, sobre os resultados inéditos sobre o voto de operários e da Parlamento europeu produziram em seu país. A Frente Nacional, de classe média cercada pela crise contornos claros de um fenômeno extrema direita, amealhou 26% dos socioeconômica e por um horizonte temido há anos: o avanço da extrema votos, deixando para trás a oposição sombrio de futuro. O desemprego na direita, com raízes historicamente de direita, o UMP, e o governista PS, França orbita na casa dos 10%. fincadas na xenofobia e no do presidente François Hollande. antissemitismo. A líder do partido, Marine Le Pen, A herdeira de Jean Marie Le persegue a estratégia de levar a Pen se esforça para reconstruir A votação para uma das instituições organização fundada por seu pai, a imagem do partido, tentando, mais opacas da União Europeia, Jean Marie, aos holofotes principais por exemplo, afastar o rótulo de geralmente condenada às margens da política francesa, ambicionando antissemita. Mas as conexões do noticiário, ganhou destaque nada menos do que conquistar a familiares e as raízes históricas de inaudito. Serviu para uma miríade presidência do país em 2017. seu movimento alimentam uma de análises e interpretações, levando caudalosa desconfiança. Em nota em consideração as especificidades Negacionista contumaz do oficial, o Conselho Representativo de cada um dos 28 países que Holocausto, Jean Marie Le Pen das Instituições Judaicas da França integram o bloco sediado em liderou a FN de sua fundação, em (CRIF), organização “guarda- Bruxelas. No entanto, um fenômeno 1972, até 2011. Tentou a presidência chuva” da comunidade francesa, inquestionável repousa sobre o do país pela primeira vez em declarou: “A História nos ensinou avanço das forças políticas ligadas 1974, quando obteve escassos que crises econômicas promovem

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nacionalismo e isolacionismo, que Na Alemanha, Grécia e Hungria, “The Post”. Interessante são acompanhados pela rejeição grupos abertamente antissemitas notar sua mudança de posição. Antes ao outro, por sentimentos racistas, e embebidos no neonazismo da eleição de maio, Karagounis havia xenófobos e antissemitas”. registraram conquistas. O Partido classificado a proibição do grupo Nacional Democrático alemão neonazista de “contra- produtiva”. O fotógrafo e pintor francês Ron recebeu 1% dos votos, responsáveis Agam, expoente da comunidade por uma entre as 751 cadeiras do Vários líderes do Aurora Dourada já judaica, desenhou um quadro Parlamento europeu. Udo Voigt, líder foram presos, depois do assassinato desolador: “A democracia da França do partido, tem enfrentado diversas de um militante esquerdista, corre perigo”, afirmou em entrevista tentativas de banir o partido, criado acusados de “dirigir uma organização ao site algemeiner.com. “Judeus na em 1964 e que nunca conseguiu criminosa”. Uma batalha jurídica se França estão agora ensanduichados juntar eleitores em número suficiente iniciou, e a Justiça grega terminou entre um crescente antissemitismo para participar do Parlamento liberando a participação dos dos elementos do islamismo radical alemão. Agora, no entanto, o neonazistas gregos na eleição para o francês e, uma crescente extrema neonazista Voigt frequentará a sede Parlamento europeu. direita que acabará revelando sua do legislativo da União Europeia. face verdadeira mais cedo ou mais Depois de apuradas as urnas, Marine tarde”. O húngaro Jobbik contabilizou 15% Le Pen se apressou a anunciar a dos votos, transformando-se na formação de um bloco de extrema Além da FN, cruzando o canal segunda maior força política do país. direita no Parlamento europeu, ao da Mancha, o Partido pela Outro partido antissemita, o grego lado de aliados vindos da Bélgica, Independência do Reino Unido Aurora Dourada, ultrapassou a marca Holanda, Áustria e Itália. Brandiam promove ações para rejeitar o de 9%. Os dois grupos também como prioridade impedir o avanço rótulo de antissemitismo. Seu líder, alimentam racismo em relação a da integração continental. Do lado Nigel Farage, prefere descrever o ciganos e outras minorias. de fora do Legislativo, em Bruxelas, ideário como “anti-imigração e manifestantes gritavam “fascistas na anti-integração europeia”, e pode “Acredito firmemente que deve ser prisão”. atualmente gabar-se de um feito banido”, afirmou sobre o Aurora histórico: com 27% dos votos, deixou Dourada o vice-ministro da Justiça, Embora os partidos tradicionais para trás os tradicionais trabalhistas e Transparência e Direitos Humanos ainda mantenham a maioria dos conservadores, que monopolizam há da Grécia, Konstantinos Karagounis, votos na Europa, a extrema direita e, décadas a vida política britânica. em entrevista ao jornal israelense em geral, novos partidos à esquerda abocanham fatias crescentes do eleitorado, apoiados num discurso de mudanças. Na Espanha, o Podemos, criado a partir dos protestos de rua, quase chegou à marca de 10% dos votos, enquanto na Grécia, com 26,6%, o vencedor foi o Syriza, cujo líder, Alexis Tsipras, qualificou de “catastróficas” as condições impostas pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional em seu auxílio financeiro a Atenas.

Pesquisa da Liga Antidifamação, instituição norte-americana arquitetada para auscultar a Manifestação em homenagem às vítimas do atentado do Museu Judaico da antissemitismo no planeta, apontou Bélgica, Paris a Grécia como o país com maior

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1. Gabor Vona, líder do Jobbik húngaro 2. marine Le Pen, A herdeira de Jean Marie Le Pen 3. Ronald Lauder fala com jornalistas à saída do museu judaico de bruxelas 4. cerimônia religiosa pelas vítimas do museu judaico

índice do sentimento racista, excetuando de mais diálogo sobre como combater o ódio, Oriente Médio e norte da África. Segundo a xenofobia e o antissemitismo”, exortou o levantamento, 69% dos entrevistados comunicado das lideranças comunitárias sustentaram visões antissemitas. Um exemplo: búlgaras. registrou-se 85% de aprovação ao mito “os judeus detêm poder demasiado no mundo dos negócios”. Pululam no continente outros episódios de intolerância. No dia 4 de maio, num subúrbio Em Tessalônica, no final de maio, vândalos de Bruxelas, a polícia recorreu a jatos d´água atacaram o cemitério judaico. Hoje restam para dispersar cerca de 500 participantes na cidade 1,5 mil judeus, enquanto antes da “Primeira Conferência Europeia da do Holocausto a comunidade reunia 50 mil Dissidência”, arquitetada pelo antissemita pessoas. Após o ataque, Evangelos Venizelos, belga Laurent Louis e que havia sido proibida ministro das Relações Exteriores da Grécia, pelas autoridades locais. Entre os convidados declarou que seu governo “fará tudo o que do evento, o infame artista francês Dieudonné for possível para encontrar e prender os M´bala M´bala, um dos principais porta-vozes perpetradores desse ato antissemita e odioso, do antissemitismo contemporâneo. que vai de encontro aos valores democráticos e de tolerância da sociedade grega”. Dias depois, e às vésperas das eleições para o Parlamento europeu, o atentado contra o Enquanto o governo grego promete reagir, Museu Judaico de Bruxelas. A Europa do JAIME SPTIZCOVSKY, na Bulgária a comunidade judaica local pediu século 21 não pode tolerar a volta da mácula foi editor internacional e às autoridades mais proteção e a prisão do do antissemitismo, do racismo e da xenofobia. correspondente responsável pelas pichações antissemitas Cabe às autoridades europeias agir, com vigor da Folha de S. Paulo em Moscou feitas no muro da sinagoga da capital, Sofia, e rapidez, para que a intolerância retorne à lata e em Pequim. no começo de junho. “Precisamos, também, de lixo da História.

35 JULHO 2014 BRASIL

A história do bar jacob, referência para os judeus

POR Mariana Pollara Zylberkan

Entre garrafas de vinho, barris de arenque importado e conservas de pepino azedo, muitos imigrantes judeus encontraram a primeira referência familiar na nova cidade que escolheram morar, a então quase rural São Paulo do fim da década de 1920.

por Zevi Ghivelder

a rua central do bairro No endereço onde hoje funciona Antes disso, ainda nas últimas do Bom Retiro, a José uma loja de roupas de proprietário décadas do século 19, o Bom Retiro Paulino, funcionou o coreano, um grande balcão de teve uma participação mais bucólica NBar Jacob, único madeira revestido com mármore na história de São Paulo. As margens endereço que muitos dividia espaço com poucas mesas dos rios Tietê e Tamanduateí, que viajantes traziam no bolso no onde clientes se revezavam circundam o bairro, abrigaram longo trajeto entre o Leste europeu para alimentar o corpo com as chácaras e fazendas da elite e o porto de Santos, no litoral da especialidades iídiches e o espírito paulistana que para lá se dirigiam em capital. das tradições que remontavam às busca de momentos suas origens. Era no Bar Jacob que de lazer. Aberto em 1928, o bar e mercearia muitos imigrantes judeus recém- de Jacob Givertz já era um ponto chegados ao Brasil recebiam as cartas A vocação pacata do bairro estabelecido quando as maiores dos parentes que haviam deixado mudou com a chegada da ondas migratórias de judeus para trás. estrada de ferro construída pela chegaram a São Paulo, no fim dos São Paulo Railway, que ligava anos 1930, em decorrência da eclosão Nessa época, o Bom Retiro já estava o porto de Santos ao interior da 2ª Guerra Mundial na Europa. consolidado como principal destino paulista produtor de café. Nas Parentes e amigos informavam em final de judeus vindos da Europa proximidades da Estação da Luz, cartas aos interessados em cruzar atraídos pela presença de parentes foram construídos galpões para o oceano Atlântico que, quando e conterrâneos. A formação da armazenar a carga a ser escoada chegassem a São Paulo, procurassem colônia judaica no bairro intensificou ao porto, dando início, assim, ao um judeu simpático, sempre atrás a atividade comercial praticada na desenvolvimento econômico do do balcão do estabelecimento região, impulsionada, no início do bairro que, na década de 1930, administrado por Givertz, a mulher século 20, pela construção da Estação teve seu ápice com a consolidação Anna, natural de Odessa, na Ucrânia, da Luz, entre outras obras viárias, do comércio através dos imigrantes e as quatro filhas. que trouxe prosperidade ao bairro. judeus.

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estação da luz, são paulo, 1920

No Bar Jacob, os recém-chegados O então rapaz de 18 anos, que produtor de trigo da América do encontravam crédito para comprar deixou a família para encontrar o Sul, o que fez da capital portenha a os primeiros insumos, recomendação irmão mais velho, estabelecido há segunda cidade mais importante das de emprego e fiador para assinar alguns anos em Nova York, já não Américas, atrás somente de Nova o contrato de aluguel, no caso, o teve muita sorte logo no início. York. próprio Jacob Givertz, que ajudou, Diagnosticado com conjuntivite, ao lado de muitos conterrâneos, a Givertz foi proibido pela vigilância No mesmo período, impulsionada estabelecer o primeiro polo judaico sanitária de desembarcar na cidade pela riqueza vinda do campo, a na cidade de São Paulo. Em 1934, americana, que sofria de um surto de população de Buenos Aires saltou, o primeiro censo do estado de São tracoma, doença oftalmológica mais entre 1895 e 1914, de 660 mil para Paulo estimou em 4,5 mil os judeus agressiva do que a branda inflamação 1,5 milhões de habitantes, sendo que do bairro do Bom Retiro, número que o acometeu. Mesmo assim, ele um terço eram estrangeiros. Entre que representava 36% dos moradores foi obrigado a seguir para a próxima os 94 mil russos e poloneses que do distrito. parada do transatlântico: a cidade de moravam na Argentina nas primeiras Buenos Aires. décadas do século 20, Givertz logo A disponibilidade de estender a definiu o destino que parecia carregar mão a desconhecidos, além de Às margens do Rio da Prata, o junto com o próprio nome. Givertz representar um dos valores judaicos jovem imigrante polonês encontrou é uma corruptela da palavra em mais valiosos, era uma forma uma cidade pujante, com uma elite polonês que significa condimento. desse imigrante da cidade polonesa disposta a desfrutar da recém- Ele conseguiu emprego como de Rubishoff, localizada a 18 adquirida prosperidade econômica. garçom em um bar à beira do rio quilômetros da fronteira com a Em 1914, um ano antes de o futuro da Prata, na região da cidade muito Ucrânia, multiplicar a prosperidade fundador do Bar Jacob desembarcar procurada, na época, para passeios que conquistou, apesar de tantos em Buenos Aires, a Argentina havia em família. Lá foi inaugurado o quilômetros distantes de suas acabado de passar, em menos de 30 primeiro passeio público de Buenos origens. anos, de importador para principal Aires, o Alameda.

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Sem dominar o idioma, ele soube Além do trabalho de garçom, Givertz Diante da escolha entre a Sibéria e a se destacar no trabalho ao treinar e encontrou na cidade de Buenos Aires América, Moshe Rabinovitch achou conseguir equilibrar no mesmo braço a companheira de toda a vida e mãe que o segundo destino seria melhor até cinco pratos de uma só vez. Anos de suas quatro filhas: a judia natural para sua família. Ele dera como certo depois, já dono do Buffet Jacob, o de Odessa, Anna Roubinovitch. Eles o envio da família para as terras imigrante polonês soube perpetuar a se conheceram entre uma celebração isoladas no norte do Cazaquistão ao lição aprendida para atrair a atenção e outra da comunidade judaica descobrir o envolvimento da filha dos clientes ainda no primeiro polonesa em Buenos Aires e se mais velha, Feigue, com grupo de emprego em terras americanas. casaram quando Anna completou rebeldes comunistas contrários à 16 anos. Jacob tinha 21 anos. ditadura czarista. Nos Bar Mitzvot e casamentos que iria servir muitos anos depois, Assim como o marido, Anna imigrou Anos depois, em 1913, saudosa da Givertz ensaiava uma espécie de para a cidade de Buenos Aires em primogênita e ansiosa para conhecer coreografia com seus garçons para meio a circunstâncias determinadas os netos nascidos no além-mar, a anunciar o começo dos serviços. por terceiros. Caçula, Anna era então futura sogra de Jacob Givertz Enfileirados e vestidos em ternos ainda criança quando embarcou embarcou rumo à Argentina com a brancos, os garçons atravessavam o em um navio rumo à América do filha caçula. Já em terras portenhas, salão de festas carregando bandejas Sul acompanhada da mãe, Fany Fany foi informada sobre o na altura dos ombros recheadas Roubinovitch, para reencontrar a falecimento do marido e decidiu não com gefilte fish e enfeitadas por velas irmã mais velha, Feigue, que havia voltar mais a Odessa. reluzentes. O efeito espetaculoso era imigrado para a Argentina para fugir ainda maior quando as luzes do salão da perseguição da polícia czarista. Em Buenos Aires, Jacob e Anna eram apagadas e a iluminação era geraram as filhas Rebeca e Olga. feita apenas pelo fogo que vinha das Por influência do namorado, Feigue Mais uma vez, o casal seria afetado bandejas. Roubinovitch pertencia a um grupo por circunstâncias externas que os de comunistas que enfrentavam a empurrariam a se mudar novamente. estrutura política russa totalitarista. O ativismo político da primogênita A partir de janeiro de 1919, era algo inimaginável por seus Buenos Aires foi afetada pelo pais, até o dia em que o namorado seu primeiro pogrom contra os comunista lhe confiou a guarda de judeus durante evento histórico sua arma quando percebeu o cerco conhecido como Semana Trágica. do exército czarista se fechar ao Uma série de motins foi deflagrada seu redor. Os oficiais chegaram a na capital portenha por integrantes vasculhar a casa de Fany e seu marido do movimento socialista contra em busca de armas e panfletos as autoridades policiais e grupos propagandistas da causa comunista. paramilitares. Para a sorte de todos na família, sua mulher pensou rápido e, diante Neste período, Buenos Aires se do alarde dos vizinhos sobre a tornou palco da deflagração de uma invasão dos oficiais no vilarejo em greve organizada por trabalhadores que moravam, escondeu o revolver de diversos setores da economia dentro do sutiã. Passado o susto, o para exigir redução da jornada de simples vendedor de frutas de Odessa trabalho e validação dos direitos decidiu pelo bem de todos embarcar trabalhistas. A força policial, então, a filha e o namorado comunista para dirigiu seus contingentes a combater se casarem na América do Sul. Na o que a população acreditava ser a Rússia pré-comunista, os cidadãos razão do caos argentino no início do que ousassem se opor ao regime século 20: a conspiração comunista czarista eram enviados a cumprir arquitetada por imigrantes judeus Jacob Givertz penas perpétuas na Sibéria. vindos da Rússia que viviam no país.

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Casas de famílias judias e sinagogas foram destruídas arbitrariamente por integrantes de grupos paramilitares e muitos imigrantes tiveram que sair da Argentina. Pelo menos, um dos 700 mortos durante a Semana Trágica era judeu.

Diante do clima de instabilidade, Givertz e sua família decidiram aceitar o convite do irmão de Anna, que prosperava à frente de uma loja de móveis usados na rua Dom José de Barros, no centro de São Paulo. Casado e pai de duas filhas, Givertz se mudou para São Paulo.

Durou pouco o tempo longe das mesas e panelas. Dois anos depois, Givertz abriu o Bar Jacob que, mais tarde, daria origem aos serviços de Anna e Jacob Givertz com o genro Leopoldo de avental bufê para casamentos e Bar Mitzvot da comunidade judaica paulistana. Desde o dia que abriu as portas, o as encomendas, ele voltava para o Bar Jacob sempre foi um negócio bar de charrete, onde a mulher e as estritamente familiar. No Brasil, filhas o aguardavam para ajudar a Givertz e Anna tiveram mais duas descarregar e guardar as compras. filhas: Aida e Carlota. As quatro moças se habituaram a dividir a Quase diariamente era o próprio rotina entre as aulas no Grupo Jacob quem abastecia os tonéis de Escolar João Kopke e na Escola madeira onde eram feitas Tiradentes e o trabalho atrás do as conservas de pepino azedo. balcão no bar do pai. Os pepinos frescos eram lavados e acomodados dentro de uma solução A abertura das portas do bar todas composta por partes iguais de as manhãs era feita por elas, que vinagre e água, temperada com Durou pouco o tempo ainda lavavam o balcão de mármore e cabeças de alho e ramos de dill. recebiam os blocos de gelo entregues A iguaria simples era também a longe das mesas e pela Companhia Antártica, logo cedo, mais versátil e popular entre os panelas. Dois anos antes de os clientes chegarem. Como clientes – acompanha os sanduíches o bar ficava aberto até a madrugada, de pastrami no pão preto ou servia depois, Givertz abriu Anna e o marido sempre pouparam de acompanhamento para o arenque, o Bar Jacob que, mais as filhas do trabalho noturno, ficando que repousava sempre à mostra tarde, daria origem eles responsáveis por encerrar as na vitrine refrigerada por enormes atividades, todos os dias. barras de gelo. aos serviços de bufê para casamentos Cotidianamente, Jacob pegava o Era sobre os tonéis de madeira, onde bonde na Avenida Tiradentes rumo as conservas de pepino eram curtidos e Bar MITZVOT da ao Mercado Municipal de São lentamente no tempero ácido, que as comunidade judaica Paulo para fazer as compras que filhas caçulas de Jacob costumavam abasteceriam o bar. Após empacotar sentar-se para escutar as corridas de paulistana.

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cavalo transmitidas pelo rádio. Era idas ao barbeiro. Jacob levava a e, mesmo nesses momentos, a no mesmo canto do Bar Jacob que terceira filha e também a caçula para autoridade imposta pelo carisma de a filha mais nova Carlota passou os cortar os cabelos no estabelecimento Givertz convencia os beberrões a primeiros meses de vida, acomodada voltado apenas para homens. deixar as confusões da porta do bar dentro de uma caixa de maçãs, para fora. “Vamos brigar lá fora”, forrada por cobertores, e sempre sob Enquanto de dia o Bar Jacob repetiam os mais exaltados. o olhar atento da mãe Anna, que funcionava como mercearia, assumia a dupla função de trabalhar comercializava conservas e outros Foi justamente por ser pai de quatro no bar e cuidar das quatro filhas. produtos importados, à noite o filhas que Jacob deixou o Bom local virava ponto de encontro Retiro por volta de 1938. Nessa No nascimento de Carlota, Jacob de atores e atrizes do teatro época, o prefeito de São Paulo era tinha esperança de que seu desejo iídiche, que forravam as paredes Prestes Maia que, empenhado em de ser pai de um filho homem – do estabelecimento com cartazes concluir as obras de alargamento da para perpetuar seu sobrenome nas escritos no alfabeto hebraico para Avenida Ipiranga, parte integrante gerações anteriores – finalmente seria divulgar as peças que encenavam. de seu Plano de Avenidas, que atendido. Assim que a mulher Anna Era lá também que os grupos de visava expandir o centro, proibiu as começou o trabalho de parto na casa teatro vendiam ingressos para as prostitutas de trabalharem na avenida da família, um sobrado a poucos apresentações. o que empurrou o meretrício para as metros do bar, Jacob colocou sobre pacatas ruas do Bom Retiro. o balcão do bar todas as garrafas de Tanto as filhas quanto Jacob bebida que dispunha e prometeu e Anna se habituaram a fazer as A transformação do bairro em uma rodada grátis aos clientes se a refeições no próprio bar e, como polo de prostíbulos se deu pela parteira voltasse com a notícia de que lembra sua filha caçula Carlota, proximidade com a linha de trem da ele seria pai de um menino. a única ainda viva, sempre após ferrovia Santos-Jundiaí e também os empregados. Ela conta que o devido à própria formação pouco Diante da frustração, Jacob guardou pai sempre colocava em prática planejada das vias, que desenhou calmamente as garrafas de volta nas a máxima de que é preciso antes muitos becos e ruas sem saída, prateleiras e os clientes perderam garantir a alimentação daqueles que onde qualquer atividade podia ser a chance de tomar um trago grátis. dependem de você para só depois praticada de forma escondida, longe Mesmo assim, ele conseguiu sentar-se à mesa. dos olhos de quem estava ao redor. suprir o desejo de ser pai de um homem através da terceira filha, Apesar do clima familiar do bar Assustado com a nova vizinhança Aida, de personalidade destemida Jacob, não eram poucas as vezes que passou a circundar o Bar e companhia constante do pai nas que clientes bebiam além da conta Jacob, seu fundador decidiu partir com a família para a cidade de Santos, no litoral paulista. Todas as economias juntadas ao longo dos anos foram empenhadas na abertura de um restaurante no balneário. Infelizmente, as circunstâncias não favoreceram a nova empreitada e após um par de anos todos voltaram ao Bom Retiro.

Algum tempo depois de voltar a foto: Arquivo Histórico Judaico Brasileiro - AHJB Brasileiro Judaico Histórico Arquivo foto: São Paulo, Givertz percebeu que seria mais rentável apostar na diversificação do negócio e, por isso, começou a se dedicar a organizar festas de casamento e Bar Mitzvot interior do Bar Jacob. as filhas Aida e Carlota da comunidade judaica paulistana.

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As festas do Buffet Jacob, sendo que a foto do meio é a do Barmitzvá de Sergio Ferd o primeiro neto de Jacob

As primeiras festas foram realizadas vivo ficava a cargo de Samuel e Com a saúde cada vez mais em um salão no subsolo da sinagoga sua Orquestra, conjunto musical debilitada pela evolução da localizada na Rua Newton Prado, especializado em canções típicas diabetes, que acometia seus pés com no Bom Retiro. As iguarias do Leste judaicas, liderado pelo barbeiro que infecções recorrentes, Jacob foi aos europeu eram servidas à francesa se transformava em violinista após poucos deixando os negócios sob por garçons trajados de branco. O o expediente. Samuel dividia as a responsabilidade do genro e da próprio Jacob acompanhava o serviço cadeiras na barbearia e também o filha Olga, porém, nunca deixou de de perto e se tornava inconfundível palco nas festas com um rapaz que trabalhar. Alguns anos depois, ele no salão graças à gravata borboleta tocava acordeom. Além de músico ainda abriu a Mercearia e Buffet que sempre usava e se tornou sua e barbeiro, ele também fazia bicos Jacob na Rua Prates, em frente ao marca registrada. O requinte do como eletricista. Parque da Luz. bufê era sempre finalizado com a distribuição aos convidados de Os anos foram passando e Jacob viu Alguns anos depois de sua morte, as maçãs devidamente arrumadas em uma a uma suas quatro filhas casarem festas no salão Maison Suisse, um bandejas de prata. Importadas e e também se despediu tristemente dos últimos endereços onde o Buffet caras na época, as maçãs sempre de sua companheira de vida, Anna, Jacob atuou, não tiveram mais forças acabavam antes mesmo de os garçons que faleceu jovem após sofrer cinco para continuar e cessaram. Mesmo alcançarem o centro do salão com ataques cardíacos. assim, a história de Jacob Givertz e suas bandejas. seu Bar Jacob ecoam na memória dos Após a perda irreparável, Jacob se muitos imigrantes que frequentaram Aos poucos os negócios foram associou ao genro Leopoldo, marido o estabelecimento e experimentaram, prosperando, apesar de Jacob sempre de sua filha Olga, para abrir o Salão além dos pratos lá servidos, a receber os pagamentos de seus Israel, em 1951. A nova empreitada simpatia do senhor sempre de clientes de forma parcelada. levou Jacob a voltar à mesma Rua gravata borboleta. Nessa época, o Buffet Jacob dividia José Paulino que o acolheu quando as atenções dos convidados de desembarcou com a família em seus clientes com outra atração São Paulo e também onde ele se mariana pollara zylberkan, é bisneta de Jacob Givertz. obrigatória nas celebrações da consolidou como referência de Baseou-se em relato e guardados de comunidade judaica. A música ao comida e solidariedade judaica. ILDA KLAJMAN, neta de Jacob Givertz

41 julho 2014 PERSONALIDADE

Sergey Brin, o homem por trás da Google

Aos 40 anos de idade, Sergey Mikhaylovich Brin é cofundador e Diretor de Projetos Especiais na Google Inc. Sergey é dono de uma fortuna pessoal avaliada, hoje, em US$ 30 bilhões. Na lista da Forbes de 2013, ele estava em 21º lugar entre as 100 pessoas mais ricas do mundo.

rin recebeu vários prêmios pela contribuição Em 1979, quando ele tinha apenas seis anos, Sergey que deu ao mundo, juntamente com Larry deixou a então União Soviética junto com os pais Page, também sócio cofundador da Google. e seu irmão mais novo, Samuel, rumo aos Estados b Em novembro de 2009, ainda segundo a Unidos. A decisão de deixar a Rússia tinha sido tomada revista, Brin e Page estavam em 5º lugar por seu pai, desgostoso de como eram tratados os entre as pessoas mais poderosas do mundo. Seu invento judeus na União Soviética. Oficialmente, não havia literalmente mudou a forma como o mundo funciona antissemitismo. Em 1931, o próprio Stalin escrevera que e vem influenciando a vida de bilhões de habitantes do “o antissemitismo era um fenômeno profundamente planeta. Pode-se afirmar que a Google indiscutivelmente hostil ao regime soviético”. Mas, na realidade, o milenar entrou na cultura predominante – o verbo “to google” antissemitismo russo permeava toda a sociedade e os foi recém-incluído no Oxford English Dictionary. judeus eram muito discriminados.

A missão da Google Inc. com receitas de mais de O pai, Michael Brin formara-se em Matemática RS$ 6 bilhões ao ano é “Organizar o mundo da na Universidade Estadual de Moscou; sua esposa, informação e torná-lo universalmente acessível e útil” Genia, também se formara na Escola de Mecânica e seu lema é “Não seja perverso”. e Matemática de Moscou. Apesar das dificuldades que teve que enfrentar por causa do antissemitismo, Deixando a União Soviética Michael conseguiu concluir seu doutorado, mas sua vida acadêmica estava estagnada. Sergey nasceu em 21 de agosto de 1973, em Moscou, na Rússia. Era o primeiro filho de dois matemáticos Tentando impedir os judeus de ocuparem postos na judeus, Michael e Eugenia, ou Genia como é alta hierarquia profissional, os dirigentes comunistas chamada. Em Moscou os Brin viviam em um pequeno dificultavam e, em certos casos, negavam-lhes a apartamento de três quartos, com 35 metros quadrados, entrada às universidades. No Departamento de Física no centro da cidade, que compartilhavam com a avó da Universidade de Moscou, por exemplo, não eram paterna de Sergey. aceitos porque líderes soviéticos não confiavam neles

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1 MIchael BRIN e euGENIA EM COLLEGE PARK, MARYLAND 2. SERGEY COM O PAI EM WASHINGTON, 1980 3. SERGEY BRIN

para trabalharem na pesquisa de fazer parecer. Preocupava muito aos Soviética antes da era de Gorbachev. foguetes nucleares. O próprio pai pais que seus filhos enfrentassem a Com a ajuda da HIAS – Hebrew de Sergey teve que abandonar seu mesma discriminação que eles, caso Immigrant Aid Society, estabeleceram- sonho de se tornar um astrônomo. permanecessem na Rússia. se nos Estados Unidos. No decorrer Ainda na Universidade de Moscou, de sua história, a instituição ajudou as admissões de alunos para outros Em setembro de 1978 seus pais milhares de judeus a deixar países departamentos eram decididas solicitaram formalmente um visto onde eles corriam risco de vida e através de exames. Os judeus eram de saída. Michael foi imediatamente a construir vida nova no mundo avaliados em salas diferentes das de demitido e Genia também foi livre. Em reconhecimento, em outros candidatos – morbidamente obrigada a deixar seu emprego. Nos 2009, Sergey doou US$ 1 milhão à chamadas de “câmaras de gás” – e oito meses seguintes, sem qualquer instituição, onde sua mãe, Eugenia, é eram avaliados com severidade ainda renda fixa, eles viram-se forçados hoje membro do Conselho. maior. a aceitar empregos temporários enquanto esperavam, não sabendo A vida na América Numa entrevista, Sergey conta que, se seu pedido de visto seria em 1977, após ter participado de concedido. Foi nesse período que Quando a família finalmente uma conferência de Matemática Michael começou a ensinar a Sergey aterrissou na América, em outubro em Varsóvia, seu pai disse à sua programação de computadores. de 1979, os Brin foram recebidos no mãe que era hora da família Aeroporto Kennedy, em Nova York, deixar o país. Na conferência, ele Muitos judeus soviéticos nunca por amigos de Moscou. A primeira havia interagido livremente com conseguiram obter vistos de saída, lembrança que Sergey guarda dos os colegas dos Estados Unidos, mas os Brin tiveram sorte e, em maio EUA foi seu deslumbramento, sentado França, Inglaterra e Alemanha e de 1979, a família foi autorizada a no banco de trás de um carro, com descobrira “que os intelectuais do deixar o país. Eles estavam entre os veículos gigantescos voando pela Ocidente não eram monstros”, os últimos judeus que tiveram autoestrada, enquanto seus anfitriões como a propaganda soviética queria a permissão de deixar a União os levavam para Long Island.

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Os Brin estabeleceram-se em trabalhar e ir onde quisessem e serem um grupo de alunos superdotados Adelphi, Maryland. Encontraram abertamente judeus. Eles nunca em Matemática em um programa uma casa para alugar, simples, de foram religiosos. Para eles, como para de intercâmbio de duas semanas blocos de concreto, em um bairro muitos outros imigrantes da Europa na União Soviética. Ele decidiu de classe média baixa, perto da Oriental, ser judeu era algo étnico, levar também a sua família. Seria Universidade de Maryland e baseado em valores e tradições, não uma oportunidade de visitarem matricularam o filho na Paint Branch uma experiência religiosa. Michael os familiares que ainda viviam em Montessori School. Seu pai ingressou costumava dizer que se havia um Moscou, inclusive o avô paterno no Departamento de Matemática da valor judaico que a família Brin de Sergey, ele também um PhD Universidade e sua mãe conseguiu mantinha sem restrições este era o em Matemática, como Michael. um emprego na NASA, em pesquisa amor aos livros e à educação. Na época o império soviético se na área de meteorologia. desmoronava e, no olhar desanimado Apesar de Sergey frequentar a escola de resignação das pessoas, Sergey Para Sergey, seu primeiro ano pública, recebeu a maior parte da pôde ver, em primeira mão, o futuro nos Estados Unidos foi difícil; sua educação em casa. Seus pais, sombrio que teria sido o seu. No seu conhecimento de inglês era ambos matemáticos, alimentaram o segundo dia da viagem, chamou o pai rudimentar e ele falava com um seu interesse por essa ciência e pelo e lhe disse: “Obrigado, por nos ter sotaque pesado. Pressupõe-se sempre domínio da língua russa. Quando tirado da Rússia”. que crianças e jovens aprendem ele tinha nove anos, o pai lhe deu rapidamente um novo idioma, mas seu primeiro computador, um Sergey formou-se pela Universidade ele teve dificuldades em aprender o Commodore 64. A partir de então, de Maryland em 1993. Seus dons inglês. seu interesse pela Matemática e pela para as Ciências Exatas não passaram Computação disparou. despercebidos. Ganhou uma bolsa Segundo seus professores, ele não da Fundação Nacional de Ciências e era uma criança especialmente Em setembro de 1990, após ter foi para a Universidade de Stanford sociável, mas tinha autoconfiança de frequentado o Ensino Médio na para uma pós-graduação em Ciências ir atrás de suas ideias. Sua vida girava Eleanor Roosevelt High School, da Computação. O M.I.T. o em torno de quebra-cabeças, o rapaz entrou na Universidade de rejeitara... Já em 1993, era estagiário mapas e joguinhos de matemática Maryland, para estudar Matemática na Wolfram Research, fabricante do que ensinavam a multiplicar. e Ciências da Computação. software Mathematica. Para os pais de Sergey, aquela era Em meados de 1990, semanas antes uma vida nova e livre. Livres para de fazer 17 anos, seu pai chefiou Atraente, com um sorriso fácil, e uma energia sem fim, Sergey, transborda uma grande autoconfiança. Em Stanford, era conhecido por seu hábito de irromper na sala dos professores sem bater à porta. Um de seus orientadores se recorda: “Ele era um jovem impetuoso, um tanto atrevido, costumava entrar nas salas dos professores sem bater na porta. Mas era tão inteligente, que aquilo se esvaía, e nós o relevávamos”. Sergey participava da vida social da Universidade e praticou todos os tipos de esportes: gostava de esquiar, patinar, tudo. O pai contou que certa vez lhe perguntou se estava fazendo algum curso avançado. Ao que ele a família brin, 2002 respondeu “sim, natação avançada”.

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Continuou em Stanford para fazer o doutorado em Ciências da Computação, centrando seu interesse na área de “Data Mining” – exploração de grandes quantidades de dados em busca de padrões consistentes para detectar relacionamentos sistemáticos entre as variáveis. Foi quando ele começou a pensar no poder de grandes conjuntos de dados e como poderia analisá-los para detectar padrões e resultados inesperados. sergey brin e larry page Em Stanford, ele conheceu Larry Page, judeu e filho de um cientista da Computação da Universidade a sua contribuição decisiva, um de pesquisa usado para explorar a Estadual de Michigan, Dr. Carl trabalho intitulado “The Anatomy Web. Juntos eles desenvolveram o Victor Page, que estava fazendo of a Large-Scale Hypertextual Web algoritmo PageRank. Após analisar o doutorado na mesma área. Search Engine”, ou “A Anatomia de as informações do BackRub com Em entrevista para a revista The um Motor de Buscas na Web para desse algoritmo, perceberam que Economist, Brin revelou que, num Hipertexto, de Larga Escala”. um mecanismo de busca baseado primeiro momento, os dois jovens no PageRank produziria melhores “não se deram bem”: “Nós somos Sergey conta que ele e Larry resultados do que as técnicas ambos do tipo ‘detestável’. Mas, “abarrotaram seus dormitórios com existentes. Baseavam-se na ideia apesar de discordar na maioria computadores baratos” e testaram de usar os links entre as páginas dos assuntos, logo nos tornamos uma nova ferramenta de busca1 na Web para classificar sua importância almas-gêmeas intelectuais e amigos Web. O projeto cresceu rapidamente. relativa. Usando os conceitos íntimos”. Os dois logo perceberam que tinham acadêmicos de citações nas pesquisas conseguido criar um mecanismo como medida de local e valor, Larry O foco de Sergey Brin foi o de busca muito superior aos que e Sergey aplicaram essa ideia à Web: desenvolvimento de sistemas de existiam até então. se uma página se liga à outra, de fato classificação de dados, enquanto que estaria “citando” ou lançando um Page visava aprofundar “o conceito Criando o Google voto para aquela página. de se inferir a importância de um trabalho de pesquisa a partir de A ferramenta de busca criada por BackRub, sua primeira ferramenta de suas citações em outros trabalhos”. Brin e Page classifica as páginas da busca, foi instalada nos servidores da Era assim que se determinava a Web com base na popularidade e universidade em 1996, mas passou a importância de uma página na web – possibilita fazer pesquisas na internet ocupar tanto espaço de banda larga baseando em quantas outras páginas sobre qualquer tipo de assunto ou que ficou difícil para a instituição tinham links levando a ela. Juntos, conteúdo. gerenciá-la. Em 1997, os dois foram autores do que é considerada “cientistas” decidiram renomear sua Como vimos acima, a ideia do ferramenta para “Google”, baseado Google nasceu quando Brin e em “googol”, termo matemático

1 Page estavam trabalhando em utilizado para um número muito Ferramenta de Busca é um programa para procurar palavras-chave, fornecidas um projeto de pesquisa para sua grande, mas não infinito. Um googol 100 pelo usuário, em documentos e bases de tese. Começaram por explorar as equivale a 1,0 × 10 , ou seja, o dados. No contexto da internet, um motor propriedades matemáticas da Rede dígito 1 seguido de cem zeros. de busca permite procurar palavras-chave em documentos alojados na World Wide Mundial (WWW). Seu projeto de Assim, Google se tornava um nome Web, como aqueles que se encontram pesquisa foi inicialmente chamado que abria infinitas possibilidades de armazenados em websites. de “BackRub”. Era um mecanismo informação.

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No princípio, a ferramenta utilizou “Google Inc.”. O problema era que o site de Stanford, sob o domínio a “Google Inc.” ainda não tinha sido google.stanford.edu. formalmente criada e, durante duas semanas, enquanto lidavam com a Larry e Sergey tentaram vender a papelada, os jovens não tinham como ideia por US $1 milhão, mas não depositar o cheque. Outro investidor encontraram interessados. Durante em empresas de tecnologia, David o boom da tecnologia da década Cheriton, professor de Ciências da de 1990, o que interessava aos Computação de Stanford, foi um dos A missão da Google investidores eram os portais, como primeiros a perceber o potencial da Inc. é “Organizar Yahoo! e AOL, que ofereciam Google e investiu outros US$100 mil o mundo da inúmeras ferramentas como e-mail, no projeto. Em 2013, a fortuna de notícias, meteorologia. Acreditava- Cheriton foi estimada em US$ 1,7 informação e torná- se que esses portais dariam maior bilhão. lo universalmente retorno financeiro. Ninguém estava interessado em ferramenta de buscas. Sergey Brin e Larry Page acessível e útil” e conseguiram levantar US $1 milhão seu lema é “Não seja Apesar da falta de receptividade, os e lançaram, em 4 de setembro de dois jovens sabiam que haviam criado 1998, a Google, Inc. A empresa perverso”. algo importante. Por isso, decidiram ainda funcionava na garagem em trancar a faculdade e ir adiante com Menlo Park. No ano seguinte, a o projeto. Os pais de Sergey não empresa tinha oito funcionários e receberam bem a decisão, estavam transferia seus escritórios para Palo céticos e “definitivamente chateados”, Alto, na Califórnia – essas instalações como chegou a revelar a mãe de são conhecidas como Googlepex. Sergey. “Nós acreditávamos que Fizeram sua oferta pública inicial de qualquer pessoa em seu juízo perfeito ações em agosto de 2004, tornando deveria obter um doutorado”. Brin e Page bilionários. Desde então, Google tornou-se a ferramenta Levantaram os fundos necessários de busca mais popular do mundo, para dar inicio à implementação recebendo uma média de 5,9 bilhões do projeto entre os professores de consultas por dia (dado de 2013). de Stanford, familiares e amigos. Conseguiram juntar o suficiente para De 2001 a 2011 Brin atuou como comprar alguns servidores e alugar a presidente de Tecnologia, dividindo famosa garagem em Menlo Park de com Page a responsabilidade do dia uma amiga, Susan Wojcicki. Susan a dia da empresa. Page ocupou a é hoje a vice-presidente sênior da função de CEO e Eric Schmidt, a de Google e é encarregada na Youtube Presidente executivo. de Engenharia e Gerenciamento de Produtos. Nessa mesma época, Brin Sergey é, hoje, o Diretor de Projetos conheceu a irmã de Susan, Anne, sua Especiais na Google, trabalhando futura esposa. com os melhores engenheiros do país. Ele se dedica agora ao Google A decisão de levar o projeto adiante X, o “secret lab” da empresa. Os logo deu frutos. Depois de uma óculos digitais, conhecidos como rápida demonstração, Andy Google Glass, foram o primeiro Bechtolsheim, co-fundador da grande projeto dele na X. Sun Microsystems (ele mesmo um imigrante judeu alemão), fez O Google Glass é um dispositivo um cheque de US$ 100 mil para a semelhante a um par de óculos,

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1. com Anne Wojcicki 2. em israel, com shimoN peres. 3. saboreando um falafel que, fixados em um dos olhos, Vida fora da Google interesse pessoal nessa Fundação e disponibiliza uma pequena tela na descoberta da cura para o Mal de acima do campo de visão. A pequena Brin casou-se em 2007 com Anne Parkinson. A seguir, explicamos a tela apresenta ao seu usuário mapas, Wojcicki, numa cerimônia íntima razão para tal. opções de música, previsão do em uma ilha particular nas Bahamas, tempo, rotas de mapas e, além disso, totalmente não convencional. Em 2006, sua esposa Anne fundou efetua chamadas de vídeo ou tira uma empresa de genômica e fotos de algo que esteja dentro do Os noivos estavam num banco de biotecnologia chamada 23andMe raio de visão e compartilha a foto areia e os convidados os alcançavam que a produz kits para testes de imediatamente pela Internet. Para nadando. O traje dos noivos era um DNA. Quem estiver interessado em tirar uma foto usando os óculos basta maiô branco e uma sunga preta, mapear seu genoma precisa apenas dizer “Tirar foto”. E pronto! respectivamente. Eles ficaram enviar pelo correio o kit com uma casados até 2013 e têm dois filhos. amostra de saliva e, em pouco Segundo Sergey, a ideia que motivou tempo, recebe 600 mil marcadores o desenvolvimento do Google Glass Os interesses de Sergey vão além genéticos. O preço do kit da foi que os smartphones inerentemente da Google. Ele e Anne fundaram e 23andMe é US$ 99, enquanto em nos distanciam das experiências dirigem a Fundação Brin Wojcicki. outros lugares pode chegar a no mundo real – e ele queria um Classificada em 2012 como a quinta US$ 1 mil. O kit foi considerado dispositivo que nos permitisse organização beneficente dos Estados pela revista “Time” como a maior obter informações digitais sem nos Unidos. Naquele ano de 2012, a invenção do ano de 2008. desconectar das demais pessoas. fundação destinara mais de Incomodava-o o fato de que o futuro US$ 223 milhões para seus projetos. Como testador da versão alfa, significava um mundo em que as Brin teve a oportunidade de analisar pessoas andariam olhando para baixo, A fundação tem doados recursos seu genoma, descobrindo que mexendo nos seus smartphones. para as mais diversas causas e tinha uma mutação genética com A Google X também está projetos. Entre essas, a Michael altas possibilidades de ser vir a sofrer desenvolvendo carros sem motoristas, J. Fox Foundation para a cura do do Mal de Parkinson. Seu teste entre outros. Mal de Parkinson. Brin tem um deu positivo para o gene LRRK2.

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Gigante da internet

Ao longo dos anos, a Google lançou inúmeros novos produtos e adquiriu várias outras empresas de internet, além de fazer parcerias com grandes companhias para se tornar um dos negócios de internet com crescimento mais rápido no mundo. Em 2006, adquiriu o YouTube, o site mais popular de streaming de vídeo feitos pelos usuários, por US $1,65 bilhões em ações.

O braço filantrópico da Google Inc., a Google.org, foi criado em 2004 para atuar em áreas que afetam a sociedade como um todo. Desenvolve, por exemplo, tecnologias que ajudam a abordar temas globais como educação, crise energética, gerenciamento da Google Glass, o primeiro grande projeto de brin na X fome e outros. Entre os produtos inovadores da Google estão AdSense/ AdWords, Google News, Google Nem todos com Parkinson têm uma tipo de ciências mais “à la Google”. Maps, Google Earth, Chrome, Gmail, mutação deste gene e nem todos Ele quer primeiro coletar os dados, como também o sistema Android com esta mutação têm a doença. Mas para então encontrar os padrões para telefonia celular. este gene aumenta a probabilidade que levem às respostas. E ele tem o da pessoa vir a ter a doença. Em dinheiro e os algoritmos para fazê- Prêmios e 1999, a mãe de Sergey havia sido lo. Na lista da Forbes-2014 dos 15 reconhecimento diagnosticada com Parkinson, mas, Empreendedores que mais retribuem na época, as pesquisas indicavam que à Comunidade, Brin está em 4º lugar. Em 2003, tanto Brin como Page a doença não era hereditária. Após receberam o MBA honorário do IE o mapeamento, Brin percebeu os Sergey produziu mais de uma dúzia Business School, “por incorporarem o riscos que corria e se empenhou em de trabalhos acadêmicos. É membro espírito empreendedor e dinamismo diminuí-los. da Academia Nacional de Engenharia de comando para a criação de novas e recebeu o título de membro da empresas...”. Em 2004, a dupla Ele chegou a doar US$ 50 milhões Fundação Nacional de Ciências, recebeu o prêmio da Fundação para a pesquisa da doença. além de participar do Programa Marconi, o maior em Engenharia, Concentrou as pesquisas em de Pós-Graduação em Ciências da e foram eleitos membros da diferentes tipos de abordagem Computação na Universidade de Fundação Marconi na Universidade científica, afastando-se do método Stanford, onde fez o mestrado. de Colúmbia. Ao anunciar a sua científico clássico. escolha, John Jay Iselin, presidente Sergey gosta muito de esportes, da Fundação, parabenizou os dois Sergey acredita que se coletando pratica yoga, mergulho e kite-surfing pela sua invenção “que mudou grandes quantidades de informação (surfe à vela). Em 2008, investiu fundamentalmente a forma como a e a análise de grandes conjuntos de US$ 4, 5 milhões em uma informação é recuperada. Sergey Brin dados, pode-se perceber um padrão companhia chamada Space e Larry Page hoje se juntam a um que levaria a outros resultados. Adventures - uma empresa quadro seleto de 32 pioneiros mais Ele propõe que se ignore o uso do americana de turismo especial que influentes no mundo da Tecnologia método científico em favor de um coloca viajantes em órbita. da Comunicação ...”.

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Para vencer a guerra que a mídia faz contra Israel

O caminho para enfrentar esta nova batalha começou a ser traçado há 14 anos, quando dois jovens estudantes britânicos criaram, em Israel, o HonestReporting, uma organização que tem como objetivo defender o Estado Judeu e desmascarar a falta de equilíbrio das notícias quando o tema é o Oriente Médio.

om uma equipe multidisciplinar de alto Quem responde a essa pergunta é Joe Hyams, atual nível, utiliza todos os recursos tecnológicos e CEO da organização, em sua visita ao Brasil em maio informações precisas para mostrar quem são último quando concedeu uma entrevista à Morashá: c os verdadeiros vilões da história. “Mostrar a realidade de Israel e do Oriente Médio através de fatos, dados e análises para defender o Estado Israel está no meio de uma batalha para ganhar a de Israel, país demonizado pela mídia internacional nas opinião pública – travada principalmente através da últimas décadas, não é uma tarefa fácil. Especialmente mídia. Para garantir uma cobertura justa da mídia quando sabemos que uma parte dos profissionais e internacional sobre Israel a HonestReporting foi criada empresas do setor têm posições preconcebidas em em 2000, em Israel, por dois estudantes britânicos. relação a Israel, independente do tema em questão, Trata-se de uma organização não-governamental, sem e a outra tem um grande desconhecimento sobre o país fins lucrativos, e sem vínculos com nenhum instituição e as questões ligadas ao Oriente Médio, em geral. judaica da Diáspora ou do Estado Judeu, partidos ou movimentos políticos. Esta desvinculação de qualquer A nossa preocupação é a influência e o impacto que esfera oficial lhe tem garantido credibilidade junto à esses segmentos têm na opinião pública, de modo geral, opinião pública e, também, à mídia. Fundada por inclusive a juventude judaica. Por isso, este trabalho Joe Hyams e Simon Ploske, em Yom Kipur, logo após exige perseverança, determinação e vigilância contínua”. a eclosão da segunda intifada na Cisjordânia e na Durante sua permanência em São Paulo, ele participou Faixa de Gaza, pretende desmascarar o que considera de encontros com pais e alunos da Escola Beit Yaacov uma sistemática tendenciosidade em relação a Israel e com outras instituições da comunidade, explicando o na mídia ocidental. Como fazer isso, com tanta pressão trabalho realizado pela organização, sua importância para dos inimigos de Israel? Israel e a Diáspora.

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Simon Plosker, editor no Media Center, apresenta o projeto “Combatendo a tendenciosidade da mídia”

Um levantamento de dados realizado sugerindo pautas e intermediando nossos inimigos estão nela há mais pela organização indica que, desde o contatos para as matérias. Este de 40 anos – e a nossa desvantagem ano 2000, já foram obtidos mais de trabalho é realizado através do é imensa. Mas nós acreditamos que centenas de pedidos de desculpas, Media Center, sediado em Jerusalém, podemos diminuir os prejuízos e retratações e revisões de notícias. que conta com uma equipe reverter esse quadro desde que se “Nossos esforços estão mudando o multidisciplinar de profissionais tenha consciência da realidade e da perfil da mídia e as reportagem sobre preparados para cumprir esta tarefa, gravidade da situação”, diz Hyams. Israel em quase todo o mundo. Nós assessorando jornalistas baseados Ressalta, ainda, que é preciso ter a nos dedicamos a defender Israel em Israel ou apenas em visita ao percepção e a convicção de que este contra o preconceito dos meios de país e aos territórios palestinos. Isso é um trabalho importante e deve ser 2 comunicação e, também, a fornecer garante o livre fluxo de informações. realizado. ferramentas educativas e recursos O Centro recebe, em média, mais para quem estiver interessado em de mil solicitações, por ano, de Para ganhar pontos nessa guerra trabalhar em prol de Israel ”. jornalistas interessados em cobrir a não basta conquistar o coração região. do público, é preciso, também, A organização busca assegurar a conquistar sua mente. Apresentar realização de reportagens honestas “A guerra entre Israel e seus fatos concretos, dados plausíveis e e transparentes sobre o país, através inimigos não está mais sendo explicações coerentes que façam as de um monitoramento constante travada apenas nos campos de pessoas prestarem atenção, ouvirem dos veículos de comunicação, batalha. Tanques e bombas não e analisarem a situação sob novas procurando detectar informações são as únicas munições capazes de óticas, aprendendo a identificar as erradas e, também, deturpadas. causar danos irreversíveis. Palavras e calúnias, as distorções, as mentiras. Simultaneamente, presta assessoria a imagens, quando bem manipuladas, Para Hyams, o apoio de um público jornalistas estrangeiros na cobertura têm efeitos igualmente nocivos. bem-informado é fundamental para 3 do Oriente Médio, tanto fornecendo Infelizmente, esta é uma guerra na o fortalecimento do Estado de Israel informações, dados e fatos, quanto qual Israel entrou há pouco tempo – no cenário internacional. Neste

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processo, não basta a correção dos do país. “Que não se deixem Nós nos dedicamos fatos distorcidos nem a exposição enganar pelos que deturpam a a defender Israel das falhas da ética jornalística. É imagem do país, com ou sem necessário, também, incentivar intenção”. Nos Estados Unidos, a contra o preconceito a publicação de reportagens organização trabalha dentro das dos meios de positivas e não apenas de correção universidades, através das Hillel comunicação e, de fatos. “Nossa luta é contra a House, que congregam os estudantes desinformação e a manipulação de judeus. também, a fornecer fatos e imagens que dão às pessoas ferramentas uma falsa impressão sobre o conflito Como parte de sua agenda anual, no Oriente Médio. Infelizmente, HonestReporting organiza, ainda, educativas e recursos notícias negativas sempre ganham missões a Israel para judeus e não para quem estiver manchetes lidas por grandes públicos judeus de vários campos de atuação, e, quando há retratação, geralmente que incluem uma passagem pela interessado em ninguém presta muita atenção e o sede em Jerusalém, com palestras trabalhar em prol espaço dedicado não é o mesmo”, e várias outras atividades, que ressalta Hyams. permitem aos visitantes terem uma de Israel. noção concreta da realidade do país. Apesar de existir há apenas “A experiência nos mostrou que 14 anos, alguns números revelam uma viagem a Israel é, muita a força e a credibilidade vezes, mais eficiente do que várias da organização, cujo site – conferências, pois, quando estão no www.honestreporting.com – tem país as pessoas conseguem visualizar mais de 140 mil assinantes. Cerca de a geografia da região, sua extensão e 70% de seus recursos é decorrente a complexidade regional. Elas têm de doações particulares, 23% de a oportunidade de ver de perto a federações e fundações privadas e integração entre os grupos étnicos 1% de investimentos bancários e que compõem a sociedade israelense, anúncios. O orçamento anual incluiu a coexistência de diferentes investimentos para manutenção culturas,começando, assim, a ver de do Media Center, monitoramento outra maneira as notícias divulgadas da mídia, direitos digitais, relações pela mídia”. públicas, construção de comunidades online, conferências internacionais Nos últimos tempos, a e despesas gerais. No ano passado, HonestReporting tem-se dedicado HonestReporting obteve a graduação a lutar contra a campanha 4 estrelas do Charity Navigator internacional denominada Boicote, para gerenciamento fiscal e Desinvestimentos e Sanções – BDS compromisso com responsabilidade e (em inglês, Boycott, Desinvestment transparência. and Sanctions) cujo objetivo é, em última instância, deslegitimar o país. Dentro dessa perspectiva, o Lançada pelos palestinos e seus HonestReporting organiza, também, aliados em 2005, propõe a adoção programas específicos para grupos de embargos a produtos e serviços judaicos, tão suscetíveis à influência de empresas israelenses produzidos da mídia internacional quanto os nos territórios ocupados. Na verdade, demais. Segundo Hyams, é muito gradativamente foi ampliando seu importante que os jovens conheçam alvo para Israel como um todo. Isto a realidade para que possam se é o que a HonestReporting tem sentir orgulhosos de Israel e, procurado mostrar através de um consequentemente, atuem em defesa trabalho constante. Joe Hyams, São Paulo, 2014

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Reuven Feuerstein, além dos limites da mente

“Imagine um método além de limites, que melhora o aprendizado das crianças pequenas com Síndrome de Down e dos superdotados e de qualquer indivíduo entre estes padrões; que abre as portas das universidades para estudantes menos privilegiados e pode, também, evitar demência nos idosos. pois Este é o Método Feuerstein”. por Zevi Ghivelder

o afirmar que funcionamento. Os resultados Suas teorias vêm sendo aplicadas “a inteligência não é uma obtidos em seu Instituto, ao longo de tanto em salas de aula quanto em estrutura estática, mas um décadas, e a aplicação de suas teorias clínicas e consultórios. Em 1992, A sistema aberto, dinâmico, em mais de 80 países, demonstram recebeu o Prêmio Israel para Ciências que pode continuar a que ele tinha razão. Arrancando Sociais e, em 2012, foi um dos nomes se desenvolver ao longo da vida”, aplausos efusivos sempre que falava indicados para o Nobel da Paz. o psicopedagogo judeu-israelense, em público, Feuerstein era dono de romeno de nascimento, revolucionou um bom humor contagiante. Em seu velório, no pátio do Instituto os conceitos e dogmas vigentes nas Feuerstein, foi homenageado como décadas de 1950 e 1960, relativos Ao morrer em abril último, aos o grande homem que inovou o ao desenvolvimento de indivíduos 92 anos, Feuerstein – cuja marca processo de educação de pessoas com com dificuldades de aprendizagem, registrada eram a barba espessa e necessidades especiais, mudando portadores ou não de necessidades a boina que usava para substituir a sua vida. “Ele foi o Einstein da especiais. Ele foi o pioneiro na kipá – deixa como legado a gratidão educação”, disse a professora Pnina criação e aplicação do conceito de e o reconhecimento de milhares Klei, da Universidade Bar Ilan. Pai que a Inteligência Humana pode ser de pessoas que viram sua vida de quatro filhos – o rabino Refael trabalhada e desenvolvida. se transformar por acreditarem Feuerstein (que continua sua obra, nas teorias que ele criou, além no Instituto), Daniel Feuerstein, O fundamento básico do pensamento de seguidores em todo o mundo, Aharon Feuerstein e Noa Schwartz de Feuerstein é que todos os seres inclusive no Brasil. Atualmente, mais –, o psicopedagogo tinha vários humanos – independentemente de duas mil pesquisas estão sendo netos, dois dos quais falaram em de sua idade, limitação ou realizadas inspiradas e baseadas em seu funeral. Um deles é portador da condição socioeconômica – têm a seus trabalhos, com indivíduos das Síndrome de Down. capacidade de melhorar de forma mais variadas faixas etárias – de significativa seu aprendizado e, crianças a idosos, com diferentes O Instituto Feuerstein está presente consequentemente, seu nível de perfis, em diversos países. em mais de 26 países, através

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prof. reuven feuerstein

de 70 Centros de Treinamentos não conseguia aprender a ler e eu lhe como esqueletos. Eram totalmente Autorizados (Authorized Training ensinei a ler em hebraico. Como? analfabetas aos oito, nove anos de Centers – ATC), que atuam sob a Ensinei-lhe a ler uma prece. E não idade. Eu não podia aceitar a ideia de supervisão do Instituto em Israel parei mais”. que fossem mentalmente limitadas. e são gerenciados por especialistas Passei mais de sete anos trabalhando treinados e certificados em Israel. Quando jovem estudou na Escola com essas crianças. Não conseguiam de Professores de Bucareste. Na organizar o pensamento, nem suas Sua vida época em que a Alemanha invadiu ações. Uma noite, em Jerusalém, um o país, frequentava o curso de dos meninos, de oito anos, deitou-se Reuven Feuerstein nasceu em 1921, Psicologia no Onesco College, ao meu lado e então começamos a ler em Botosani, na Romênia, no seio tendo que interromper sua formação Filosofia juntos”. Este foi o começo de uma família chassídica, sendo o educacional. Durante a 2ª Guerra de uma longa carreira centrada quinto de nove irmãos. Desde cedo Mundial, o jovem Reuven foi no atendimento das necessidades já dava sinais de ser dotado de uma prisioneiro um ano em campo de psicológicas e educacionais dos personalidade especial. Começou concentração e depois em prisões imigrantes, refugiados e outros a ler aos três anos, em três línguas: nazistas. Ao término do conflito, em segmentos especiais da população iídiche, o idioma materno; hebraico, 1945, emigrou para a então Palestina israelense. o paterno; e em romeno, o de sua sob Mandato Britânico, onde terra natal. Sua habilidade era tanta começou a lecionar para crianças Feuerstein retornou à Europa para que ensinava outras crianças, até mais sobreviventes do Holocausto. completar seus estudos em Psicologia velhas, a lerem. Certa vez, Clínica e Geral na Universidade em uma das milhares de palestras “Elas foram para Israel depois de Genebra, onde foi aluno de que proferiu ao longo de sua vida de passar três a quatro anos nos acadêmicos como Andre Rey e – contou o seguinte episódio: campos de concentração. Seus pais , assistindo seminários e “Quando eu tinha oito anos, haviam morrido nas câmaras de palestras proferidos por intelectuais mandaram-me um garoto de 15 que gás. Algumas chegaram a Israel como e Karl Jaspers.

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Em 1970 obteve o doutorado em como tal. Concentra-se na pessoa e Psicologia do Desenvolvimento na no que é capaz de realizar, ao invés Universidade Sorbonne, na França. de centrar-se em suas limitações. Ao longo das décadas de 1950 e Para isso, utiliza ferramentas que 1960, o professor Feuerstein ocupou estimulam os alunos a superar seus o cargo de diretor de Serviços limites preestabelecidos e conseguir Psicológicos do Departamento mais do que poderiam esperar. P ara Feuerstein o da Aliat Hanoar (a Aliá Juvenil) Com base em tais conceitos, criou homem tem capacidade na Europa. Nesta função, era o as Teorias da Modificabilidade responsável pelo encaminhamento Cognitiva Estrutural (MCE) e de reversão e de dos jovens imigrantes aos vários da Experiência da Aprendizagem superar as limitações, programas educacionais de Israel. Mediada (MLE), que o consagraram desde que abordado como um dos maiores educadores No decorrer das entrevistas, ele das últimas cinco décadas. É, da maneira correta e percebeu que quando os testes de também, o autor do Programa com os instrumentos coeficientes de inteligência eram de Enriquecimento Instrumental adequados. O aplicados às crianças marroquinas, (PEI) criado a partir da demanda seu resultado era baixo. Porém, pôde de professores por métodos que método Feuerstein notar, também, que quando o formato pudessem solidificar seu trabalho no procura identificar do teste era adaptado ao padrão formato curricular. Ele desenvolveu os pontos fortes dos de pergunta-resposta e aplicado 14 “instrumentos” com séries de por um mediador, o resultado era exercicios usados por mediadores e indivíduos e não suas muito superior. A experiência na estudantes para enriquecer funções vulnerabilidades. Aliat Hanoar levou-o a questionar cognitivas e construir o hábito de se os rígidos conceitos sobre o fato da ter um pensamento eficiente. inteligência ser estática e a considerar que as diferenças culturais nos Dentro da perspectiva do psicólogo, modelos de aprendizagem eram o educador é a peça-chave. Sobre aspectos importantes a considerar no isso, dizia: “Ele transmitirá os processo de avaliação da inteligência. valores, as motivações, as estratégias. Ajudará a interpretar a vida. Nós, Foi nessa mesma época que ele educadores, estamos mais em jogo do começou a desenvolver estudos sobre que a criança e jovens. Se não formos crianças com baixo desempenho e capazes de ensinar, será impossível seu potencial de mudança. Através aprender”. Iniciado com crianças de pesquisas ele descobriu que sobreviventes do Holocausto, seu o ponto central para a educação método se concentra na figura do especial era o relacionamento mediador, aquele que enriquece mediado. Inicialmente utilizava as a realidade imediata com novas ferramentas que havia desenvolvido informações e significados. Para ele, para avaliar e ensinar cognição para o ser humano tem capacidade de crianças com Síndrome de Down reversão e de superar as limitações, e, eventualmente, com vítimas de desde que abordado da maneira enfartes, demências e paralisia correta e com os instrumentos cerebral e autismo. adequados. O método Feuerstein procura identificar os pontos Suas ideias e ideais fortes dos indivíduos e não suas vulnerabilidades. O método desenvolvido por Feuerstein é único e Os resultados do programa já internacionalmente reconhecido foram documentados em mais de

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1.500 pesquisas científicas, que atestam resultados extremamente positivos junto aos mais diversos públicos. Diferente de programas que objetivam apenas o conteúdo do curso, o PEI (Programa de Enriquecimento Instrumental) proporciona aos estudantes conceitos, habilidades, estratégias e técnicas necessárias ao funcionamento do pensamento. Corrige as deficiências de estudantes, dando-lhes a capacidade de pensarem de forma a ter habilidades essenciais como análise, interpretação e conclusão. Mostra como usar estas habilidades para melhorar o aprendizado e seu currículo, ao mesmo tempo em que desenvolve a motivação intrínseca e enriquecidas com experiências Aprendizagem Mediada e o uso dos alunos. culturais e que até mesmo os e a intervenção cognitivas com indivíduos que eram mentalmente o Programa de Enriquecimento O trabalho realizado com as crianças limitados podiam estender sua Instrumental (PEI). Em 1999, o sobreviventes do Holocausto foi capacidade intelectual de forma SENAC São Paulo se tornou um fundamental para o desenvolvimento drástica”. Podemos contrariar o Centro de Treinamento Autorizado do método Feuerstein, porque determinismo genético”, repetia do Programa de Enriquecimento mostrou que os testes de coeficiente constantemente. Instrumental e, desde então, de inteligência então realizados são ministrados cursos que têm não levavam em consideração a A partir da década de 1980, o como fundamento o programa experiência horrorosa que tinham professor e psicólogo desenvolveu desenvolvido pelo professor vivido. Sobre esse período, o o Método Feuerstein para israelense. professor costumava dizer: “Quando aplicação em indústrias comerciais, avaliamos as crianças diferentemente, governamentais e militares, visando Feuerstein jamais desistia de um através de uma rotina para medir o aprimoramento das ferramentas indivíduo, lembrou, em seu funeral, a capacidade de aprendizagem ao cognitivas dos funcionários. Este o Rabino Rafael Feuerstein, seu invés de seu desempenho presente, método é utilizado em inúmeras filho e continuador de sua obra, não descobrimos que todas elas tinham indústrias na China, Índia, América se rendendo diante dos obstáculos. um potencial que tinha sido do Sul, África e Canadá. Costumava dizer que a inteligência é completamente camuflado nos testes imprevisível e pode ser modificada. de QI padronizados”. Feuerstein Os resultados desse método são percebeu que os pais dessas crianças conhecidos também no Brasil, há O ser humano não é um objeto não tinham podido dar ordem e anos. Em janeiro último, o SENAC imutável. Não interessa se o jovem significado às experiências dos filhos, São Paulo, em parceria com o ou criança tem dificuldades, tem como é geralmente o caso. Instituto Feuerstein, realizou um síndrome de Down, é autista ou seminário internacional com cursos cego. “Nós procuramos transformar Sua intervenção chamada de inéditos na América Latina. Foi o a inteligência na sua estrutura mais “Experiência de Aprendizagem primeiro evento sul-americano da significativa. Com nosso Programa Mediada” ajuda a corrigir organização israelense realizado de Enriquecimento Instrumental, deficiências cognitivas e mostra que em São Paulo e apresentou aos ensinamos os alunos a organizar e a inteligência é modificável, não fixa. participantes a teoria e a prática usar a informação. Mais importante Feuerstein costumava dizer que as da Modificabilidade Cognitiva do que saber, é aprender como usar habilidades cognitivas são ensinadas Estrutural, a Experiência de este saber”.

59 julho 2014 história

Médicos cristãos novos abandonam portugal em 1614 POR REUVEN FAINGOLD

Médicos e cirurgiões exerceram a medicina em Portugal na Idade Média e início dos tempos modernos. Seus sobrenomes são citados nos “Livros de Chancelaria Real dos Reis de Portugal” ou em obras dedicadas à medicina lusitana. Na “Lista de 1614”, encontrada em Lisboa no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, achei dados curiosos sobre esses profissionais da saúde. por Zevi Ghivelder

á quatro décadas, do Mediterrâneo entre 1580 e específicas vinculadas à arte aproximadamente, a 1640, época em que Espanha e da medicina. Primeiramente, pesquisa dos cristãos Portugal constituíam um único encontramos o physicus ou medicus, Hnovos ibéricos vem Reino. Muitos deles são lembrados responsável por detectar diversos fazendo avanços rapidamente nas fontes inquisitoriais. tipos de lesões e doenças (sejam consideráveis. Valiosos trabalhos No Arquivo Nacional da Torre do estas físicas ou psicológicas). Mas, já foram publicados sobre a Tombo conserva-se uma lista de a partir do século 13, começou-se dinâmica dos tribunais do Santo médicos cristãos novos que fugiram a exigir do physicus o diploma de Ofício, o modo de vida judaico e o de Portugal em 1614, no auge da cirurgicus, um especialista formado cumprimento de preceitos por parte união hispano-lusitana. Esta lista nas universidades europeias, dos cristãos novos, a difusão de uma nominal (ANTT, maço 7, Mss. profissional capacitado para operar literatura antijudaica em Portugal 2578-2644) inclui minibiografias de fraturas, realizar cirurgias de órgãos durante os 300 anos em que atuou quase 70 médicos cripto-judeus que vitais e efetuar qualquer tipo de a Inquisição e a inserção desses abandonaram o país rumo a “nações procedimento médico. Em Portugal, conversos em suas novas comunidades livres”, como Marrocos, França, contrariamente aos países da da Europa e do Novo Mundo. Holanda, Inglaterra, o Império Turco- Bacia do Mediterrâneo, tais como otomano e, também, em direção ao Grécia, Itália, Creta, Espanha e No entanto, é bastante escasso “Novo Mundo”, esquivando-se às sul da França, o médico clínico e o material histórico acerca dos constantes perseguições organizadas o cirurgião portavam o título de itinerários e rotas de fuga escolhidos pelo Santo Ofício. magister ou mestre. O farmacêutico pelos cristãos novos, principalmente era o boticarius, mas a manipulação aqueles que exerciam profissões Physicus, cirurgicus e dos medicamentos era feita pelo necessárias para a sociedade ou a boticarius apothecarius. Uma profissão menos corte real. Médicos de origem cristã valorizada em Portugal era a de nova trabalhavam diariamente É comum fontes medievais barbeiro, o responsável pela extração na Península Ibérica e na Bacia portuguesas elencarem profissões de dentes, infusões de sangue e

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Boticario Judeu nas Cântigas de Santa Maria de Alfonso X, o Sábio. Miniatura do Manuscrito del Escorial. séc. 13 raspagem do paciente antes das certas vezes, encontramos exceções, judeus, atingindo 63% da população cirurgias. como os médicos cristãos novos médica do país. Este dado estatístico Gaspar Lopes, que abriu uma loja derruba o preconceituoso mito Em Portugal regiam as mesmas de fios de seda, ou Manuel de Mello, de que os médicos judeus tinham normas que vigoravam em outros que atuou como cônego na cidade repulsa pelas cirurgias, autópsias ou países da Europa. Neles havia uma francesa de Nantes. por procedimentos cirúrgicos mais rígida fiscalização das atividades delicados nos quais era necessário médicas e os profissionais que Como especialistas da saúde, os abrir o corpo do paciente. atuavam nessas áreas recebiam suas médicos deviam comunicar aos licenças dos próprios governos, governos os nomes dos pacientes QUEM ERAM OS MÉDICOS? entrando automaticamente nas doentes ou feridos sob seus guildas (associações de profissionais) cuidados, o tipo de tratamento A “Lista de 1614” fornece valiosa destinadas aos médicos. Tanto por eles recomendados e as etapas informação acerca da origem, lugar médicos como cirurgiões constituíam sugeridas para sua recuperação. de nascimento, moradia e idade dos “comissões especializadas”, cujo Também deviam informar todos os médicos cristãos novos. Seus nomes objetivo era testar as aptidões casos de óbito. Quando as brigas de e sobrenomes aparecem sob a grafia daqueles que desejavam ingressar rua causavam a morte de um dos hispano-portuguesa, sendo possível nas especialidades médicas. A envolvidos, as partes sobreviventes desvendar os motivos que levaram maioria dos judeus fazia parte dessas eram punidas. Este tipo de legislação seus ancestrais nos séculos 12-13 a se comissões, que outorgavam aos era bastante comum em países assentarem em terras lusitanas. candidatos a tão almejada “licentia mediterrâneos, tais como Espanha, practicandi” ou “licentia curandi”. Itália, Grécia, Sicília e Creta e sul da O estabelecimento do Santo Ofício França. da Inquisição em Portugal, em Segundo a tradição europeia, era 1536, após longa negociação entre proibido aos médicos lusitanos Na Idade Média, os médicos o Estado e o Papado, gerou uma mudar de área de trabalho. Porém, portugueses eram na sua maioria violenta onda de perseguições com

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frequentes ataques endereçados aos da Cunha, mulher do médico novos convertidos. Este fato originou Gaspar Lopes, é retratada como uma uma fuga de médicos, a maioria deles “mulher de 40 anos, rosto pálido descendentes dos judeus “batizados e doente, boca torta desdentada e em pé”, à força, em 1497. Como fala defeituosa”. Leonor Rodrigues, veremos a seguir, vários foram os mãe do médico Antônio Lopes, era itinerários ou rotas de fuga dos uma “mulher de mais de 60 anos, exilados. obesa, alta, nariz grande, boca torta desdentada, muito doente, com Na lista aparece um número manchas no rosto, fruto de erupção considerável de médicos nascidos cutânea”. em aldeias e vilarejos densamente povoados por judeus, enquanto As mulheres dos médicos possuem apenas uma pequena minoria nasceu atributos e qualidades especiais. em grandes centros urbanos de A mulher de Pero Francês se chama Portugal. Assim, em Lisboa, capital Catharina Alves. Viajou para a da metrópole, quase não achamos França, onde ficou famosa por antónio luís, cristão novo, lente de médicos cristãos novos, à exceção medicina na universidade coimbra, na ensinar “a Lei Hebraica”, ou seja, do “Physico-mór do Rei” e de um época de d. joão iii ritos e preceitos judaicos. Há, ainda, número reduzido de boticários a na lista descrições específicas dos serviço da nobreza. O principal porto No que tange aos salários dos médicos lusos: Francisco Mourão do império ultramarino foi uma médicos judeus, a “Lista de 1614” possui “corpo ereto, estatura baixa, “parada obrigatória” para aqueles nos fornece poucas informações, rosto delicado, barba ruiva, bons aventureiros que emigravam rumo ao registrando uma faixa salarial dentes e, acima de sua orelha direita, Oriente. razoável: um cirurgião recebia vestígios de uma cicatriz”. O filho 1.600 réis e um médico-mór, 2.000 do cristão novo João Rodrigues é Dentre as regiões geográficas mais réis mensais. Consultando uma um “médico de 50 anos, baixo e procuradas pelos médicos cripto- obra sobre as profissões e a vida magro, barba longa escura, olhos judeus, podemos mencionar a região econômica na sociedade portuguesa, grandes pretos e é tido como um montanhosa das Beiras, com seis encontramos que, naquela mesma homem experiente, sábio e astuto”. localidades: Lamego, Covilhã, Viseu, época, um barbeiro da corte ganhava Já o médico Vasco Gomes aparece Trancoso, Fundão e Belmonte, entre 600-650 réis mensais, um retratado como “um homem de 33 Alentejo, as vilas próximas ao Porto alfaiate entre 700-750 réis e um anos, alto, louro, com pequenas sardas e o cinturão de Lisboa. A “Lista de ferreiro poderia receber até 1.200 no rosto, nariz largo, olhos grandes, 1614” revela, também, que boa parte réis/mês. Sendo assim, tudo indica gosta de falar, tem mãos delicadas dos médicos morava na Espanha, e que a saída de Portugal não estaria e longas, com manchas, notando-se atravessava a fronteira para trabalhar relacionada com reivindicações uma lesão no dedo mindinho”. em Portugal. salariais, pois todos se sustentavam O doutor Lopo Mendes, de 70 anos, condignamente. “tem barba e cabelos brancos, corpo Há, também, informação relevante grande, com sinais de curvatura”. PERFIL FÍSICO DOS MÉDICOS sobre as idades desses profissionais. De um total de quase 70 médicos, Poucas são as descrições psicológicas 23 abandonaram Portugal na faixa A lista dos médicos judeu- desses médicos se comparadas com dos 40-50 anos. Os médicos jovens portugueses descreve com detalhes as físicas. Menciona-se o médico (cinco entre 21-30 anos) raramente os traços físicos e as características Lopo Gil, que trabalhava em Vila deixavam o país, enquanto três psicológicas desses profissionais, Viçosa, de vez em quando, “se faz médicos mais idosos (entre 70-80 encontrando-se, também, ligações doudo” (doido), enquanto seu colega, anos), tampouco abandonaram tão entre os próprios familiares. Fruto o médico Gaspar Lopes e sua esposa facilmente seu território natal. Há de relações endogâmicas, eles se Leonarda da Cunha, “caíram em outros 33 médicos listados sem casavam com “Mulheres da Nação”, prantos” por terem que abandonar registro de idade. ou seja, com cristãs novas. Leonora Portugal.

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MOO TIV S PARA DEIXAR ITINERÁRIOS DOS O PAÍS OMÉDIC S

Quatro seriam os principais motivos A unificação das Coroas de Espanha para os cristãos novos “judaizantes” e Portugal, que duraria 60 anos abandonarem a pátria portuguesa (1580-1640), não alterou a política por volta de 1614. Em primeiro lugar, persecutória imposta pelo Santo as perseguições inquisitoriais. Ofício aos conversos. Em ambos O clima de extrema violência, os países, os olhos da Igreja e a medo e terror instaurado pelo Inquisição continuariam a vigiar Santo Ofício, originou uma fuga aqueles conversos que pretendiam coletiva rumo a países do norte da deixar a Península Ibérica. África, Europa e regiões distantes Especificamente em Portugal o do vasto Império Turco-otomano. batismo forçado de 1497, o pogrom A interferência imposta por de 1506 em Lisboa (ver Morashá 53) esta instituição na vida pessoal e o estabelecimento da Inquisição dos médicos e suas famílias teve zacuti lusitani, medici, & philosophi em 1536, pelo rei D. João III, foram praestantissimi, praxis medica motivações variadas: há os que foram admiranda. lugduni, 1637 responsáveis por uma rígida política descobertos ainda antes de deixar o de marginalização dos cristãos novos território, como o licenciado Lopo da sociedade lusitana, perseguindo- Nunes e sua esposa Antônia; há os A maioria dos médicos vivia os ainda antes de abandonar o que escaparam sem serem pegos, dignamente com seus recursos, Reino rumo às novas comunidades como o doutor André Vaz; e há, porém, como acontece em toda florescentes da Europa. A fuga era também, aqueles, como Rui Mendes, sociedade, há, também, aqueles que a única opção para salvar suas vidas. sua mulher e seu filho Antônio, cujos encontram dificuldades para obter o Neste contexto, fica evidente que os familiares ou amigos foram tomados sustento. A “Lista de 1614” relaciona cristãos novos com profissões liberais, prisioneiros, mas eles conseguiram dois médicos de nome Manoel dentre elas a medicina, conseguiriam fugir. Outro grupo estava composto Nunes e Lucas Fernandes, cuja saída com maior facilidade sair e se por médicos que não conseguiram do país foi motivada por dificuldades integrar às novas comunidades. escapar do Reino, pois respondiam a econômicas. Ambos saíram de processos inquisitoriais. Portugal em “situação de extrema Dentre os médicos que fugiram de pobreza, passando a viver no Brasil”. Portugal é importante distinguir Em segundo lugar, havia médicos aqueles foragidos após ser e cirurgiões perseguidos por E, por último, as pestes e epidemias concedido o “perdão geral” de 1605 participarem em atentados e que atingiram boa parte da e aqueles que não usufruíram desta assassinatos. Eram tentativas população da Europa no século autorização por parte do Estado. frustradas de atirar com armas de 17 foram a gota que faltava para Diferente da política imposta na fogo, que às vezes causavam lesões terminar com esse capítulo dos Espanha, Portugal decidiu abrir e físicas em cristãos. Na “Lista de médicos cristãos novos em Portugal. fechar suas fronteiras por curtos 1614” há dois médicos cristãos A sociedade lusitana precisou espaços de tempo. Cada cristão novos, Mestre Jorge e Joseph combater estes males em diferentes novo disposto a deixar o país Camelo, ambos indiciados por épocas de sua história: 1348, 1356, devia encaminhar uma petição às causar danos físicos a cristãos, 1384, 1415, 1432-1435, 1437-1438, autoridades e pagar altas quantias acontecimentos que, certamente, 1464, 1477 e entre os anos 1480- pela saída do Reino. Em 1605, por devem ter acelerado sua saída do 1497. Nos anos 1599 e 1600, uma exemplo, os foragidos pagaram país. Joseph Camelo chegou a ser devastadora epidemia dizimou 1.700.000 ducados à coroa. Nessa procurado pelas autoridades locais milhares de portugueses, o que levou política de enriquecimento dos cofres “por atirar com um pistolete e ferir médicos como Luiz Gomes, de 50 públicos, encontramos aportes de um certo Marcos D´Abreu”, mas anos, morador de Porto, a fugir com um grande número de cristãos novos conseguiu fugir a tempo para o toda sua família de sua cidade natal espanhóis (a maioria castelhanos) Reino de Castela, na Espanha. para a França. bem como de portugueses.

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CONCLUSÕES FINAIS

As informações recolhidas pela “Lista de 1614” e “Livros de Chancelaria Real dos Reis de Portugal” nos permitem reconstruir o perfil de uma verdadeira elite cristã nova composta por rabinos, cortesãos, administradores, fiscais de impostos e, naturalmente, médicos e cirurgiões.

Mesmo estudada parcialmente, essa relação de nomes revela dados biográficos bastante significativos sobre os médicos que atendiam à população lusa no início do século 17. O documento histórico nos coloca diante de profissionais da saúde pouco estudados, um grupo seleto de enorme importância na pesquisa da medicina judaica portuguesa.

Cenas no interior de uma farmácia. ilustração nO “Cânone da medicina” de Avicena, Florença.

BIBLIOGRAFIA A “Lista de 1614” não fornece nunca uma empreitada coletiva. Azevedo, Pedro, Médicos cristãos novos que se ausentaram de Portugal no princípio informações sobre os perigos Segundo a “Lista de 1614”, na hora do século Xvii. Arquivo Histórico da eminentes encontrados pelos da partida é possível detectar cinco Medicina Portuguesa, N.S, Vol. 5 (1914), foragidos rumo às novas itinerários ou rotas de fuga: das págs. 153-172. comunidades. Tampouco cidades de Portugal rumo às regiões da Galícia e Madri (norte e centro da Gonçalves, I., Físicos e cirurgiões menciona os falsos “salvo-condutos” quatrocentistas: As cartas de exame. Do tempo obtidos pelos médicos conversos Espanha); via Espanha rumo a Nantes, e da história I (1965), págs. 69-112. ou faz qualquer referência aos no sul da França; rumo à Itália (por terra ou via marítima); até os Países Lemos, M., História da Medicina em familiares que fugiam junto Portugal. 2 vols. Lisboa 1889. com eles. Os médicos levavam Baixos: Flandres e Antuérpia; ou ainda Pines, J., Essai sur l’Histoire des Medicins consigo bens materiais, como do porto de Lisboa rumo ao “Novo Mundo”: Brasil, Peru e Nova Espanha au Portugal. Imprensa Médica XVII (1953), ouro e prata, no entanto, isto não págs. 265-274. é mencionado na documentação (região do México). Roth, C., The Qualifications of Jewish pesquisada. Physicians in the Middle Ages. Speculum 28 Driblando a presença permanente (1953), págs. 834-843. Tudo indica que as condições para dos corregedores (policiais que Shatzmiller, J., On Becoming a Jewish Doctor abandonar o território luso rumo vigiavam portos e fronteiras), os in the High Middle Ages. Sefarad XLIII 2 à Europa eram difíceis e nem médicos conversos conseguiam (1983), págs. 239-250. todos os médicos cristãos novos ingressar nas pequenas cidades e estavam dispostos a se aventurar por fugir das perseguições inquisitoriais. Prof. Reuven Faingold é historiador e educador, PHD em História Judaica pela itinerários geralmente desconhecidos. Os pequenos vilarejos eram “postos Universidade Hebraica de Jerusalém. A saída destes, com ou sem bens intermediários” nessa longa jornada É sócio fundador da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil e membro materiais, foi sempre um projeto rumo às grandes metrópoles da do Congresso Mundial de Ciências pessoal de cada profissional, mas Europa. Judaicas de Jerusalém.

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A vida dos judeus na Ucrânia até início do século 20

Os judeus viviam no território da atual Ucrânia centenas de anos antes do estabelecimento da nação ucraniana, no século 9. Sua história foi marcada por sofrimento e muito sangue judeu derramado em solo ucraniano. Mas foi, também, o lugar dos shtetls, onde nasceu o Chassidismo e viveram grandes Rebes, onde floresceu o sionismo e onde nasceram e viveram personalidades da História e da Literatura judaica.

difícil traçar a história o comércio marítimo, e nas terras da E.C., a dinastia real, as classes dos judeus que viveram férteis da Península de Taurica ou dominantes e, em seguida, parte nesse território, pois Tauris (atual Crimeia). Desde o da população se converteram ao é esta se entrelaça com início dessa colonização havia judeus judaísmo. a da região. Ao longo vivendo nas cidades-estados gregas. dos séculos, a Ucrânia foi cobiçada, Inscrições datadas do ano 80 da O século seguinte foi marcado conquistada e dividida entre inúmeras E.C., descobertas no Bósforo, uma pela prosperidade. Uma das mais nações. Khazares, varegues, mongóis, das principais cidades-estados gregas, importantes rotas de comércio da lituanos, poloneses, russos, austro- testemunham a existência de uma época, que conectava as três partes húngaros e soviéticos dominaram, em comunidade judaica estruturada, já do mundo até então conhecido, algum momento de sua história, parte possuidora de uma casa de orações. atravessava os domínios khazares. do território ucraniano. Assim como Atraídos pela prosperidade e pela o território, seus habitantes passavam No século 7 da E.C., os khazares, possibilidade de viver numa nação de uma soberania à outra. No caso da um novo poder militar vindo do onde o judaísmo era a religião dos população judaica, isso significava que Cáucaso e da região Cáspia, subjuga governantes, um grande número de esta teria que se sujeitar à postura e às as tribos eslavas e conquista a região. judeus se estabeleceu no Império discriminações e restrições do novo O Império Khazar (ca. 650 – ca. Khazar. Muitos vinham dos poder dominante relativas aos judeus. 965/968), que chegou ao seu apogeu domínios bizantinos para escapar no século 8, durante o reinado às constantes discriminações, Gregos e Khazares de Būlān, estendia-se das estepes perseguições e conversão forçadas ucranianas às terras que se avizinham ao cristianismo grego-ortodoxo. A partir do século 7 antes da ao Rio Ural, e da região do Meio No século 9, havia judeus em todas Era Comum (a.E.C.), os gregos Volga ao Cáucaso do Norte, na cidade as regiões que hoje constituem o instalaram colônias na parte norte de Astrakhan, no Mar Cáspio. território ucraniano, principalmente da costa do Mar Negro (sul da atual Acredita-se que durante o reinado às margens do rio Dnieper e no leste Ucrânia), uma área estratégica para de Būlān, por volta do ano de 740 e sul da Ucrânia.

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A existência de um reino judaico no para o Rus’ Kievana (Kyivan Rus’), particular: o de Kiev e o da Galícia- Cáucaso desperta, em meados do o primeiro estado eslavo oriental. Volínia. Em 1187, a palavra Ucrânia século 10, o interesse de Rabi Hasdai A criação desse estado é de suprema (Ukrayina) é usada pela primeira vez ibn Shaprut, médico pessoal dos importância para a região, pois, para descrever o principado de Kyiv califas de Córdoba, Abd-al-Rahman do ponto de vista historiográfico, (Kiev) e o da Galícia. III, e seu filho, Hakam II. Rabi estabeleceu as bases da identidade Ibn Shaprut era, também, ministro nacional dessas três nações. O Principado de Kiev da corte e diplomata encarregado, entre outros, das negociações Em 877, os rus’ conquistam Kyiv O Principado de Kyiv, que ocupava com delegações estrangeiras que (Kiev) e fazem dela a capital de seu a área da Ucrânia da margem direita chegavam ao Califado. estado – Kyivan Rus’. Essa localização do rio Dnieper, foi o mais importante estratégica da nova capital, situada principado de Kyivan Rus’. Desde a Por volta do ano de 950, Ibn na confluência de dois rios, Dnieper fundação de Kiev, mercadores judeus Shaprut envia uma missiva ao rei dos e Pripyat, e no cruzamento das haviam sido atraídos à cidade, que khazares indagando sobre a história principais rotas comerciais Norte-Sul era um próspero centro comercial de seu povo. A carta chega às mãos e Leste-Oeste, vai ser fundamental situado nos cruzamentos das rotas de Joseph, o rei khazar, através dos para a rápida ascensão de seu império. de comércio, que uniam, de um lado, bons ofícios de dois judeus que Kyivan Rus’ atingiu seu apogeu nos a Europa Ocidental, e, de outro, as haviam acompanhado uma delegação séculos 10 e 11, com um território de províncias do Mar Negro, a Europa a Córdoba. Em sua resposta, o rei 800 mil km2, que se estendia desde Oriental e o continente asiático. Joseph relata o início da história as montanhas dos Cárpatos até o rio dos khazares e sua conversão ao Volga, e do Mar Negro até o Mar Uma carta escrita por judeus de Kiev, judaísmo. A troca de correspondência Báltico. encontrada na Guenizá do Cairo, entre Rabi Ibn Shaprut e o rei revela que havia judeus vivendo na Joseph, que ficou conhecida como Um dos grandes pontos de inflexão cidade e em outras partes na Ucrânia a “Correspondência Khazar”, é um da história ucraniana foi a conversão, central já no século 10. Sob o governo dos poucos documentos conhecidos no século 10, do povo ao cristianismo do príncipe Svyatopolk II (1093- de autoria khazar e uma das poucas greco-ortodoxo. Essa conversão 1113), os judeus eram protegidos fontes primárias da história desse vai ser crucial, também, para a e usufruíam de total liberdade em império. história dos judeus da Ucrânia, por termos comerciais, tendo mesmo ser marcada por um profundo e confiado a alguns deles a cobrança de Por volta de 966, tribos eslavas endêmico antijudaismo. Logo após a impostos do principado. lideradas por príncipes russos conversão, o clero ortodoxo passou a invadem o Império. Os khazares incitar o povo contra os judeus. Em Já era marcante a dicotomia entre retiram-se para seus domínios na Kiev, por exemplo, Theodosius (1057- os interesses dos governantes e Península da Crimeia, a Khazaria, 1074), abade do Mosteiro Pechersk o antijudaismo do povo, funesta como era chamado seu estado, e Lavra, pregava a necessidade de “viver herança do cristianismo greco- mantêm sua independência até em paz com os amigos e inimigos, ortodoxo. Em 1113, logo após meados do século 11, quando são mas com seus próprios inimigos, não a morte de Svyatopolk, os conquistados pelos russos e pelos os inimigos de D’us: os judeus e os judeus de Kiev foram vítimas do bizantinos. hereges”. Em Chernigov, uma das primeiro pogrom. Mas, apesar das mais antigas comunidades judaicas, dificuldades, continuaram a viver lá Estado Rus’ Kievana e a também os judeus passaram a ser alvo e em outros locais do principado, identidade ucraniana da hostilidade da população. tendo sido fundamentais para seu desenvolvimento comercial, ajudando Varegues da Escandinávia – A partir de 1054, as lutas entre a conectar a região com os centros chamados de Rus’ – conquistam, príncipes de Rus’ levaram à mais desenvolvidos da época. no século 9, o território que hoje fragmentação do Kyivan Rus’ em engloba três nações eslavas orientais 13 principados. Dois deles são de Com o crescimento econômico da modernas: a Ucrânia, a Bielorrússia e grande importância na história da região, aumenta o influxo de judeus a Rússia Ocidental, lançando as bases região, em geral, e na judaica, em oriundos da Khazaria, do Império

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Shtetl em Tzostianetz, fotografia, Ucrânia, 1888

Bizantino e da Europa Ocidental, de dois principados distintos, Kiev, foi caindo em mãos da particularmente da Renânia (em Volínia (região oeste da Ucrânia) e Lituânia. alemão, Rheinland), uma região no Galícia (hoje, Ucrânia Ocidental). oeste da Alemanha. Em crônicas da Durou 150 anos e foi um dos três A expansão do Grão-Ducado da metade do século 12, há frequentes estados mais importantes que Lituânia atingiu o seu auge em citações do “Portão Judaico” de Kiev. emergiram da desintegração de meados do século 14, quando E os rabinos alemães do período Kyivan Rus’. este incluía o território da atual referem-se, em seus escritos, a judeus Bielorrússia e da maioria dos que viajam com suas mercadorias territórios ucranianos, além de parte para a “Russ”. Há referência a Kiev, A Galícia-Volínia atingiu o apogeu da Polônia e Rússia. também, nos relatos de viajantes nos séculos 12 e 13. Um grande judeus da época, entre os quais, número de judeus alemães se Os grão-duques concederam Benjamin de Tudela e do Rabi estabeleceu na Galícia e em outras privilégios a todos os judeus em seus Petachiah de Ratisbon (Regensburg, cidades na parte oeste da Ucrânia, domínios. Em Kiev, o número de 1 na Bavária). a partir do século 12. Em Lviv judeus aumentou consideravelmente estabeleceram-se logo após a e eles desfrutavam de muita No início do século 13, os mongóis cidade ter sido fundada, em meados prosperidade. invadem a região semeando terror, do século 13. Por causa de sua morte e destruição, e os judeus localização mais no oeste da atual Em 1386, o casamento entre Jogaila, sofrem amargamente, assim como Ucrânia, a Galícia-Volínia não foi grão-duque da Lituânia, e Edviges o restante dos habitantes. Em 1240, invadida por hordas nômades vindas I, rainha da Polônia, vai ser de liderados por Batu, neto de Genghis do Leste mantendo um considerável extrema importância na história Khan, os mongóis tomaram Kiev grau de independência até 1340. Mas, da região. Além de o casamento pondo fim à independência do acabou sendo presa de seus vizinhos ter sido condicionado à conversão principado, que passa a fazer parte do católicos: a Polônia ficou com a de Jogaila e outros nobres lituanos Império Mongol. Galícia e a Lituânia, com a Volínia. ao catolicismo, criou-se uma união dinástica entre a Polônia e a A Comunidade Polaco- Principado de Galícia- Lituânia. Volínia Lituana No decorrer do século seguinte, em O Principado de Galícia-Volínia Enfraquecidos por conflitos internos todo território sob a união dinástica surgiu em 1199, resultante da união e invasão dos mongóis e dos tártaros, da Polônia e a Lituânia aprofunda- os principados ucranianos ofereceram se o processo de “polonização”. pouca resistência à hegemonia Quando passa a ser necessário ser 1 Lviv – Quando a cidade foi tomada pela lituana. Progressivamente, a maioria católico para fazer parte da cúpula Polônia, seu nome mudou para Lvov. das terras de Rus’ Kievana, inclusive governamental e militar, a maior

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parte da elite ucraniana e lituana se Vida judaica tolerandis Judaeis. Em Kiev, em 1619, converte ao catolicismo. conseguiram, pela primeira vez, No final da Idade Média, milhares expulsá-los. Durante longo tempo, os judeus de judeus de várias partes da Europa sob o domínio dos grão-duques Ocidental se haviam estabelecido na Em meados do século 17, estavam na lituanos gozavam de direitos sociais Polônia. As Cruzadas, as expulsões, Ucrânia 45 mil dos 150 mil judeus e econômicos mais favoráveis do os pogroms, a Peste Negra os haviam que viviam nas terras sob o domínio que os vigentes na Polônia. Por isso, forçado a buscar refúgio no leste da polonês na margem direita do Rio em 1389, com a união da Polônia e Europa. A grande maioria instalou- Dnieper, nas províncias de Volínia, Lituânia, para assegurar aos súditos se nos domínios da Coroa Polonesa, Podólia, Bratislaw, Ruś Czerwona judeus os seus direitos, outorgou- que, a partir do final do século 13, e Kiev. A população judaica era se lhes uma carta-privilégio. O concedera condições favoráveis organizada em kehilot (congregações) documento não só lhes garantia ao seu assentamento, com amplas dirigidas por um conselho participação em pé de igualdade garantias jurídicas. comunitário composto de rabinos com os comerciantes cristãos como, e personalidades da comunidade. também, assegurava-lhes a compra e Os direitos concedidos pela Coroa Na Polônia, um nível adicional foi o uso de terras. Polonesa lhes haviam aberto novas acrescentado: um conselho nacional, oportunidades econômicas tanto da o Conselho das Quatro Terras (Vaad Cem anos mais tarde, em 1495, os zona rural como nas cidades onde Arba’ah Aratzot), composto pela judeus são expulsos da Lituânia, lhes era permitido viver. Na medida maioria dos rabinos proeminentes e causando a emigração de muitos para que prosperavam, a população líderes leigos da época. a Crimeia, mas serão readmitidos cristã se ressentia da competição. em 1503. Em fins do século 15 Repetidamente, em inúmeras O ídiche era o idioma utilizado havia judeus ocupando importantes cidades, durante os séculos 17 e por todos os judeus. A vidas girava posições financeiras em Lvov e 18, acumulavam-se os pedidos à em volta de suas sinagogas. Sua Kiev, sendo que na corte circulavam Coroa para que esta determinasse profunda religiosidade lhes era médicos, banqueiros, grandes que, naquela cidade, não podiam fonte de consolo e determinava comerciantes e arrendatários judeus. viver judeus. Era o famoso non todos os aspectos de seu cotidiano. O estudo judaico era de primordial O processo de “polonização” foi importância. A fama de uma cidade concluído em 1569 com a União de não residia em sua importância Lublin, que transformou o Reino econômica, mas no número de da Polônia e o Grão-Ducado da suas ieshivot e na reputação de seus Lituânia em um único estado, rabinos. Em meio à população a Primeira República da Polônia, polonesa, na qual só o clero e uma conhecida, também, como a minoria da alta nobreza eram Comunidade Polaco-Lituana ou educados, e 90% do povo não das Duas Nações. Oficialmente, a sabiam nem ler nem escrever, era Polônia era uma república governada praticamente nulo o analfabetismo por um rei eleito pela nobreza entre os judeus. polonesa, a szlachta. O Sistema Arenda Nos séculos seguintes, o estado polonês continuou a se expandir para A partir de1569, quando foi criada o Leste, tornando-se um dos maiores a Primeira República da Polônia, e mais populosos países da Europa. A foram disponibilizados aos judeus República abrangia os territórios do amplos lotes de terra, na Ucrânia, que são hoje a Polônia e a Lituânia, a pertencentes à alta nobreza Bielorrússia e a Letônia, grande parte polonesa. Judeus vindos de toda a da Ucrânia e Estônia, além da região Coroa em prata para enfeitar a Torá, Europa foram para essa região. Os ocidental da atual Rússia. Ucrânia, primeira metade do século 19 nobres poloneses lhes arrendavam

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suas propriedades e os judeus as administravam através do chamado sistema arenda.

O nobre polonês, dono de enormes propriedades de terra, era o governante absoluto dos camponeses, servos semi-escravizados, que viviam em suas propriedades. O fato de os senhores das terras serem católicos, os servos ucranianos greco-ortodoxos e os administradores judeus era fonte de grande tensão.

Pelo sistema arenda, a nobreza polonesa arrendava não apenas a terra, mas todos os ativos fixos de sua propriedade, tais como moinhos, destilarias, hospedarias e outros. O contrato incluía, também, o direito exclusivo de destilar e vender bebidas alcoólicas. Cabia ao arrendatário coletar impostos, pagamentos e Interior da Sinagoga de Gvozdec, Ucrânia, século 17 produtos agrícolas dos servos. O judeu que fechava o contrato levava consigo, além de sua família, face a tais compromissos, os judeus Os massacres de todos os que quisessem acompanhá- pressionavam os camponeses. Líderes Chmielnicki em 1648-1649 lo como subarrendatários. Acabou-se judeus sensíveis aos males que criando uma classe média judaica sofriam estes últimos tentaram aliviar Em meados do século 17 a Polônia na zona rural ucraniana e a receita seu fardo. Em 1602, por exemplo, foi sacudida por duas décadas de advinda da arenda e da venda de rabinos e o conselho comunitário de lutas internas e externas (1648- bebidas alcoólicas constituía, em Volínia pediram aos arrendatários 1667), chamadas na história polonesa grande parte, o esteio da economia judeus que os camponeses não de “Dilúvio” (em polonês, Potop). judaica. trabalhassem aos sábados e nas festas. O ressentimento contra o poder polonês veio à tona em várias revoltas Cresce o número de judeus de tal Para a grande maioria dos servos rapidamente reprimidas. Mas, em forma que foi sancionada uma ucranianos ortodoxos não importava maio de 1648, a situação saiu do lei transferindo o status jurídico muito quem era o responsável por controle do governo. e fiscal dos judeus da Coroa aos sua miserável situação. Os judeus, nobres. Esses passaram a construir “infames infiéis e estrangeiros”, Uma rebelião de cossacos e cidadezinhas, os shtetls, onde eram representantes dos nobres poloneses camponeses ucranianos, liderada pelo judeus a maioria dos habitantes. católicos, eram vistos como os chefe cossaco Bohdan Chmielnicki, culpados por impor sobre eles um alastrou-se por todo o território O sistema de arenda era um pesado ônus econômico. O ódio da atual Ucrânia. Chmielnicki, à verdadeiro barril de pólvora religioso e o profundo ressentimento frente de um exército de cossacos do pronto a explodir. Para aumentar acabaram se concretizando em Dnieper e de tártaros da Crimeia, suas receitas, os latifundiários perseguições violentas e massacres transformou a insurreição numa exigiam pagamentos cada vez mais terríveis. Para piorar a situação, não luta política para acabar com o elevados dos arrendatários judeus, sendo os judeus aliados formais da domínio polonês na região, que teve e o não pagamento tinha seríssimas nobreza polonesa, eles não estavam, repercussões internacionais. Suas consequências. Para conseguir fazer automaticamente, sob sua proteção. forças semearam morte e terror

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Reprodução do teto da Sinagoga de Chodorow, Ucrânia. Pintado por Israel Lisnicki em 1714 . Museu da Diáspora Tel Aviv por onde passavam. Ao capturar porque os poloneses não permitiram mães (...). Atrocidades semelhantes as cidades e os vilarejos poloneses, que se refugiassem na fortaleza. foram perpetradas em todos os judeus e padres católicos eram Segundo a tradição, os túmulos lugares por onde passavam...”. cruelmente assassinados, sendo estavam localizados próximos ao poucos os que se salvaram. Apesar de muro oriental da Grande Sinagoga, É muito difícil determinar o número serem os poloneses o principal alvo, onde era costume orar pelos mortos total de vítimas judias dos massacres foi sobre os judeus que se abateu durante o jejum de Tishá B’Av. de 1648 e 1649, conhecidos entre toda a sua fúria. Estima-se que havia os judeus como Gzeyres takh vetat 150 mil judeus vivendo no território O pesadelo chegou praticamente ao (Malignos decretos). As crônicas da atual Ucrânia. fim em agosto de 1649, quando um judaicas dizem que foram 100 mil, tratado assinado entre Chmielnicki mas há relatos de que foram 300 Judeus das áreas rurais dirigiram- e a Coroa Polonesa restabeleceu o mil e que mais de 300 comunidades se às cidades procurando proteção. domínio do governo polonês nas foram destruídas. Foi decretado um Milhares deles batalharam ao partes da Ucrânia onde vivia a maior dia de jejum (20 de Sivan) e preces lado dos poloneses nas cidades população judaica. especiais foram compostas em fortificadas, que se transformaram memória das vítimas. para eles em armadilhas mortais. Na Uma das crônicas judaicas da época hora do perigo, os poloneses sempre descreve a devastação e a obscena No entanto, apesar da magnitude do abandonavam os judeus sozinhos. brutalidade: “Muitas comunidades desastre, muitos judeus retornaram além do Dnieper, como Pereyaslaw, à Ucrânia após ter sido restaurada a A literatura martirológica judaica Baryszowka, Piratyn e Boryspolê, calma, mas décadas se passaram até da época recorda o massacre de Lubin, Lachowce (...) tiveram novamente se tornarem importantes comunidades como Nemirov, Ostrog morte cruel e amarga. Alguns de no contexto do judaísmo polonês. e Narol. Em Tulchin, soldados seus integrantes foram esfolados A história da Ucrânia daria mais poloneses entregaram os judeus vivos e sua carne atirada aos cães; uma guinada quando Chmielnicki em troca de suas próprias vidas; outros tiveram as mãos e membros procurou a ajuda dos russos, que em Tarnopol impediram os judeus decepados e seus corpos atirados na invadiram o nordeste da Polônia de entrar, apenas para dar alguns estrada só para serem destroçados e a Ucrânia. Em 1655, os suecos exemplos da barbárie. Em Dubno, pelos carros e esmagados pelos invadiram a Polônia Ocidental. dois mil judeus que viviam na cidade cavalos (...). O inimigo massacrou Ao final daquele ano, quase toda e redondezas foram massacrados mulheres crianças no colo de suas a Polônia estava ocupada por

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cossacos, russos e suecos. No ano sentimentos, aglutinada por uma único vilarejo judaico na Ucrânia e seguinte, todavia, o exército polonês debilitante pobreza, serviu de pano no resto da Europa Oriental que não foi reorganizado e fez recuar de fundo para o surgimento dos estivesse sob a influência do Baal os invasores. Mas a Polônia se movimentos chassídicos. Shem Tov e de seus ensinamentos. encontrava em estado caótico e era grande a deterioração econômica. O fundador Rabi Israel Ben Eliezer, Com sua morte, a liderança do o Baal Shem Tov (o Besht), nasceu movimento passa para o discípulo No século 18, o ódio acumulado na Podólia, em 1700. Na época, que lhe era mais próximo – o pelas massas ucranianas volta à tona. as comunidades judaicas estavam Maguid, Rabi Dov Baer (1710- A desordem geral e a agitação dos afundadas em desespero, com a 1772), que se estabeleceu na cidade padres greco-ortodoxos levaram à intensificação dos pogroms e das de Mezeritch, na Volínia. Rabi Dov formação de bandos conhecidos acusações de assassinato ritual Baer enviou discípulos para espalhar como Haidamacks, compostos por contra os judeus. Ademais, a Polônia os ensinamentos do Baal Shem Tov. cossacos da Rússia, Ucrânia e servos enfrentava graves dificuldades fugitivos. econômicas e tensões sociais que A cidade de Berditchev, localizada na afetavam o dia-a-dia e sustento das atual Ucrânia, está inexoravelmente Os Haidamacks atacaram a Ucrânia populações judaicas. Esses fatores, ligado ao nome de Rabi Levi Yitzhak em 1734, roubando e destruindo aliados à desilusão decorrente do – “o advogado do Povo Judeu muitas cidades e vilarejos, episódio de Shabetai Zvi – um perante o Trono Celestial”. Rabi assassinando grande número de pseudo-cabalista que alegara ser o Levi Yitzhak foi dos mais famosos nobres poloneses e milhares de Mashiach –, reforçaram a procura de alunos de Rabi Dov Baer. Este foi judeus. O comandante das forças sinais da redenção messiânica. Haidamacks, Wasski Washchilo, proclamara que o objetivo da revolta Os líderes religiosos, à época era “destruir o Povo Judeu para traumatizados pelo episódio de proteger o cristianismo”. De acordo Shabetai Zvi, baniram o ensino do com o censo oficial de 1764 viviam misticismo judaico, ficando o estudo no território da atual Ucrânia da Torá restrito à elite. Deve-se 258 mil judeus, mas acredita-se que lembrar que, naquele então, somente eram mais de 300 mil. Bandos de a erudição da Torá era considerada Haidamacks acabaram destruindo o caminho do judaísmo, mas eram comunidades em Fastov, Granov, poucos os que podiam dar-se ao luxo Zhivotov, Tulchin e Dashev. Em de estudar. Os livros sagrados eram 1768, os judeus de Uman foram alvo raros e caros e a maioria trabalhava de um terrível massacre. Segundo dia e noite para sobreviver. Barreiras, relatos de testemunhas, entre 50 mil incluindo diferentes sinagogas, e 60 mil judeus foram cruelmente separavam os cultos dos incultos, assassinados. os ricos dos pobres, os líderes dos homens do povo. Os massacres não interromperam a imigração judaica para a Ucrânia Grande parte da vida do Baal Shem apesar das tensões entre os judeus e Tov foi dedicada a aliviar a sensação as populações ucranianas ao longo do de desespero – tranquilizar os judeus, século 19. animar seu espírito deprimido e eliminar temores e ansiedades. Chassidismo Para os judeus da Europa Central e Oriental, especialmente aqueles O Chassidismo apareceu que viviam na miséria e sofrimento, primeiramente nos povoados da ele passou a ser a materialização Ucrânia no início do século 18. da esperança. Quando deixou esse Judeus ucranianos na sinagoga, Uma mistura de sofrimentos e mundo, em 1760, não houve um na visão do pintor Robert Guttman

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o Rebe dos Rebes foi o mestre dos russo, o antissemitismo era uma a queda do regime czarista, em 1917. pilares espirituais do Chassidismo: política oficialmente sancionada Nos território da atual Ucrânia os Rabi Shneur Zalman de Liadi – o pelo governo, algo que não acontecia judeus ainda viviam em cidades fundador do movimento Chabad- em outros países europeus. Dentre em shtetls, onde eram a maioria da Lubavitch –, o Vidente de Lublin todas as minorias que viviam sob o população. De acordo com o censo e os dois “irmãos sagrados”, Rabi jugo czarista, a mais hostilizada era a oficial de 1847 por volta de 600 mil Elimelech de Lizensk e Rabi Zusia judaica; os maus-tratos, a hostilidade judeus viviam no território da atual de Anipoli. e o desprezo eram uma constante. A Ucrânia, mas acredita-se que eram política czarista era uma mistura de mais de 900 mil. Suas vidas não O domínio russo desprezo e medidas discriminatórias, haviam mudado, continuavam a falar e de esforços para “regenerá-los”, o iídiche e seus filhos estudavam Os 20 anos de guerra que colocaram “russificando-os” e os obrigando a se nos cheders2. A vida ainda girava a Polônia contra invasores suecos “amalgamar” com a população cristã. em volta das sinagogas, dos Rebes, e russos resultaram em uma das leis judaicas e das festas do deterioração econômica e em tensões Por breve tempo, depois de 1772, calendário judaico. No decorrer sociais, e no final do século 18, a a czarina Catarina II, a Grande, do século 19, progressivamente, os Polônia deixa de existir como país expressou certa benevolência em judeus dos vilarejos migraram para soberano, sendo dividida entre seus relação aos novos súditos judeus, povoados e cidades maiores, onde, poderosos vizinhos em 1772, 1793 concedendo-lhes o direito de em muitos casos, se tornaram um e 1795. A Prússia ficou com a parte residência. No entanto, pressionada amplo segmento das classes pobres ocidental até o Mar Báltico, a Áustria por negociantes cristãos de Moscou, trabalhadoras. com um pedaço central que incluía que queriam impedir a atuação a Galícia, mas coube à Rússia ficar de comerciantes judeus, em 1791 Súditos dos czares, os judeus com a maior parte do território- a a Czarina proíbe os judeus de se dos territórios ucranianos (com Ucrânia, Lituânia e Polésia. estabelecerem na Rússia Central, exceção dos judeus da Galícia que no “solo da Mãe Rússia”. Uma estavam sob o domínio austro- Centenas de milhares de judeus exceção foi feita no antigo território húngaro) estavam sujeitos a todas se tornam súditos indesejáveis dos do sul da Ucrânia. Esta região, a as leis e imposições promulgadas czares, antes disso não lhes era “Nova Rússia”, foi aberta aos judeus pelo governo imperial. Em 1804, permitido se estabelecerem nos e outras minorias com o intuito Alexandre I promulga o “Estatuto domínios dos czares. Sua história foi de povoar a área e desenvolver dos Judeus”. Grande parte das bem diferente, mais sofrida do que sua economia. A cidade principal, medidas visava sua “russificação”. a daqueles que ficaram sob domínio Odessa, tornou-se rapidamente Outro estatutos atacava as bases austro-húngaro, bem como das importante centro de vida judaica. econômicas da população judaica, populações judaicas que viviam na proibindo-a de arrendar terras, Europa Ocidental e Central. Em 1775, a Czarina promulgou comercializar bebidas alcoólicas, O regime czarista foi um dos um decreto determinando o inclusive dirigir tabernas. Milhares exemplos mais persistentes de confinamento dos judeus – dessa de judeus ficaram de um dia para autocracia da História. Os soberanos vez não em guetos, mas numa parte outro sem meios de sustento. O exerciam poder absoluto e, no século de seu Império, a chamada “Zona governo czarista queria convencer 19, ainda existia uma ordem pré- de Residência” ou “Território do os servos de que sua vida miserável moderna de classes sociais: de um Acordo” – em russo, Cherta Osedlosti. e sofrida era “consequência” das lado, privilégios aristocráticos, e, atividades econômicas dos judeus, de outro, um sistema legalizado de Na área que incluía a antiga Polônia, e não de sua exploração por nobres servidão. No final do séc. 19 e início Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia latifundiários. do séc. 20, em todo o território passaram a viver mais de 90% dos judeus do Império. Eles só podiam É difícil dizer qual dos czares russos se aventurar fora da área delimitada foi pior para os judeus. Mas, não há 2 Cheder - Quarto, em hebraico. Pequena com permissão especial, de curta dúvida de que Nicolau I foi um dos escola onde se ensinava aos meninos os fundamentos do judaísmo, da língua validade, de difícil obtenção. Esse piores. Odiava todas as minorias mas, hebraica e das orações. confinamento forçado prevaleceu até em particular, os judeus. Entre outras

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medidas que atingiram a população judaica Nicolau I reduziu ainda mais drasticamente a área de residência permitida aos judeus, proibiu o uso de vestuário tradicional judaico e do uso da língua iídiche. Ele foi o responsável pelos famigerados “Decretos Cantonais” publicados em 1827. Era obrigatório para todos os homens do Império se alistar a partir de 18 anos, com a duração de 25 anos, o decreto determinava, porém, que os judeus se alistassem aos 12 anos e, até completarem 18 anos, vivessem em escolas “cantonais”. O objetivo era convertê-los; se resistiam às pressões psicológicas, Sinagoga em Kiev, inicio séc.20 eram submetidos a cruéis castigos. Em 1844, o czar aboliu as kehilot e colocou os judeus diretamente Comunidades judaicas formadas por russas, e muitos adotaram as ideias sob a supervisão da polícia e das grandes comerciantes, financistas, da Haskalá. autoridades municipais. industriais, artistas e acadêmicos surgiram em várias cidades, Nas duas últimas décadas do governo A situação dos judeus apresentou principalmente em Odessa. de Alexandre II, a Rússia vivenciou alguma melhora com a subida ao Esses judeus vestiam-se seguindo um impressionante desenvolvimento trono do Czar Alexandre II (que os padrões ocidentais, falavam russo econômico. Empresários judeus reinou de 1855 até 1881), que e seus filhos frequentavam escolas destacavam-se no comércio e no iniciou de imediato reformas para sistema bancário. Graças a seu acesso implantar um sistema de produção ao capital e às relações internacionais, capitalista incentivando a indústria, eles estabeleceram as bases do o comércio e a construção de uma moderno sistema financeiro da rede de estradas de ferro. Em 1861, Rússia e foram responsáveis pela emancipou os 47 milhões de servos construção e financiamento de 75 % russos. do sistema ferroviário do país.

Ninguém tinha mais esperanças no Mas, nuvens pretas se avizinhavam novo Czar do que os 3 milhões de da população judaica. Na década judeus que viviam na Cherta. Durante de 1870, Alexandre II deu uma seu reinado: o odiado alistamento guinada reacionária adotando compulsório foi reduzido para seis ideias do nacionalismo eslavo, que anos, e foi abolido o “acantonamento” pregava uma volta aos valores russos dos jovens judeus. Em 1865, e desprezava qualquer ideia liberal. permitiu que os chamados judeus Como era de se esperar, os judeus “úteis” – comerciantes, banqueiros, foram os grandes alvos da nova artistas e artesãos qualificados e política. Até início do século 20, os que tinham curso superior – se foi-se gradualmente acumulando estabelecessem na própria Rússia, contra eles uma enorme massa de pois o Czar queria que o capital e o legislação discriminatória. talento judaicos fossem usados para o desenvolvimento da economia de seu Placa para enfeitar a Torá, Ucrânia, A fase relativamente liberalizada império. século 19 terminou abruptamente em 1881,

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Ocidente. Calcula-se que, entre 1881 e 1918, cerca de 1 milhão e 300 mil judeus deixaram o Império Russo. Com a subida ao trono do novo czar, Alexandre III, o ódio aos judeus assumiu inúmeras formas, desde a organização de pogroms até a falsificação e a publicação dos famigerados “Protocolos dos Sábios de Sião”. Sob a proteção de “eslavófilos” – cujo credo centrava-se no conceito da “Santa Madre Rússia” e da “Rússia para os russos”, da Igreja Ortodoxa – que deu sua aprovação religiosa – e do governo – agindo nos bastidores – o antissemitismo se tornou um movimento bem organizado, “respeitável” mesmo.

A violência era abertamente Judeus religiosos em frente à Sinagoga de Przemysl, na Galícia, em 1905 instigada pelo governo, que passou a manipular abertamente o sentimento antijudaico das massas russas, com quando Alexandre II foi assassinado de raiva dos camponeses contra a dois objetivos. O primeiro era tentar por revolucionários. Seis semanas população judaica”. reduzir a população judaica da forma após a sua morte, por ocasião da a mais rápida e drástica possível. Páscoa, inicia-se, no sul da Ucrânia, Em 1882, o governo czarista deu O segundo, canalizar a insatisfação uma onda de violência. Os pogroms mais um passo contra a população popular, especialmente entre os duraram dois anos, espalhando terror judaica. O novo conjunto de leis, camponeses, alimentando o seu ódio e derramamento de sangue por cerca intitulado as “Leis de Maio”, era contra os judeus. 150 localidades. Enquanto matavam extremamente discriminatório os judeus e suas propriedades eram e cruel, restringindo ainda mais O intuito do governo czarista era saqueadas e destruídas, a polícia e o sua liberdade de movimento e de controlar uma onda revolucionária exército eram mantidos afastados, residência. Tornava extremamente muito mais abrangente que acabaria por vários dias, antes de intervir. difícil, senão impossível, seu acesso eclodindo no início do século 20 e à educação e à atividade econômica. poria fim ao odiado regime czarista. Segundo vários historiadores, os Os judeus russos não podiam Para muitos judeus, parecia o fim de pogroms foram iniciados, acobertados comprar terras, ter cargos públicos, seu sofrimento. Mal sabiam que era o ou organizados pelo ministro do ser professores universitários. início de outro pesadelo... Interior. Na época, o governo russo Segundo o censo de 1897 viviam nos negou qualquer responsabilidade, territórios ucranianos sob domínio mas não há dúvida de que se não russo 1.927.268 judeus. Pressionados Bibliografia: há “provas” de uma participação de todos os lados, a grande maioria Dubnow, Simon, History of the Jews in direta do governo, há certeza, no deles viviam em condições críticas. Russia and Poland: From the Earliest Times Until the Present Day, Ed. Nabu Press, 2010 mínimo, de sua conivência, haja vista o alastramento rápido e simultâneo O choque emocional provocado Dubnow, Simon, Works of Simon Dubnow. dos pogroms por toda a Rússia. Os pelos pogroms de 1881-82 e Kindle edition oficiais do governo cinicamente as Leis de Maio tiveram várias Meir ,Natan M. Kiev, Jewish Metropolis: justificavam-nos, afirmando que consequências. Entre outras, acelerou A History, 1859-1914 (The Modern Jewish eram “culpa” dos próprios judeus, já a formação do Movimento Sionista Experience), Ed. Indiana University Press , que não passavam de “uma explosão e a fuga de judeus russos para o 2010

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Gostaria de agradecer por terem me enviado a Morashá na hora exata! Fiquei emocionada quando abri a revista lindíssima, com mensagens fantásticas um pouco antes de iniciar o Seder. É realmente um tesouro a ser colecionado.

Bruna Dayan Por e-mail

Felicito toda a equipe da Morashá, Muito obrigado pelo envio da Frequentei por muito tempo o uma revista que honra a tradição Morashá. Gostei muito da Carta Shil Da Vila, (Adat Yschurum) no de bem educar do judaísmo. ao Leitor e que belo o suplemento Bom Retiro, depois me mudei para O número de abril com o anexo para o Seder. Vale destacar, entre Joinville e passei a frequentar o dedicado ao Seder de Pessach está outros, Os fundamentos do Judaísmo, SIP Curitiba. Fiz aliá, fiquei dois realmente irretocável. O capricho As 20 Crianças de Hamburgo e o anos e meio em Beer Sheva, e não é só nos aspectos primordiais artigo sobre Moacyr Scliar. frequentava a Beit Knessset Ohel da divulgação religiosa associada à Marcio Shmuel Gomes Rachel e a Yeshivah Orot Ysrael, na qualidade cultural. A impressão é Rio de Janeiro - RJ mesma cidade. Regressei ao Brasil há belíssima, a arte visual de alto nível dois meses e provavelmente retorne e a impressão em excelente papel. Parabéns à Morashá. Quero agradecer ao Shil da Vila mais para festas e Fazendo parte da pequena kehilá de à equipe da revista pela felicidade alguns shabatot por mês. Não vi Vitória, Espírito Santo, gostaria de de poder receber esta relíquia, um até hoje uma revista tão bem editada saber da possibilidade de me tornar tesouro de ensinamentos que como a Morashá, feita com amor assinante, pois os números a que enriquecem a nossa identidade judaica. e carinho, nos exemplares que ocasionalmente tenho acesso são do Inês Rosenthal sempre recebia de amigos pode-se meu filho. Rio de Janeiro - RJ notar o nível de empenho em sua Renato Guéron produção. Ela traz sempre temas de Vila Velha - ES A Morashá é uma revista muita importância para nós. E sem maravilhosa e impressionante a cada dúvida para meus filhos será mais Quero agradecer por esses anos edição. uma fonte constante de informação todos de rica instrução que a equipe Fernando Boldrin. e ligação com nossas tradições e de Redação da Morashá tem-nos Ribeirão Preto - SP interesses. proporcionado. Nossa gratidão não Vangelis Maciel Lopes pode ser expressa em palavras, nem Gostaria muito de agradecer o Votuporanga - SP mesmo um gadol assir tová, nem um recebimento da Morashá de Pessach. TODÁ RABÁ em letras maiúsculas Parabéns pela excelente publicação Nós, da Biblioteca “Olíria de Campos podem descrever como é bom receber que muito honra ao povo judeu. Barros”, agradecemos a doação da tantas informações sobre nosso povo Choil Plosk revista e suplemento da Morashá, e sua herança milenar. Em especial Rio de Janeiro - RJ edição 83, abril 2014. Será um agora, com a chegada do meu neto prazer incluí-los em nosso acervo Isaac, terei motivos adicionais para Desejamos parabenizar, mais uma e disponibilizá-los à população de continuar amando a publicação e, junto vez, pela excelência dos artigos da Diadema. com a Hagadá, estudar cada mitzvá e publicação e agradecer pelos envios Fabio Orsi Meschini, Bibliotecário Prefeitura do Município de Diadema nossa Torá com meu pequenino. que recebemos faz muitos anos. Secretaria de Cultura, Serviço de Ivan Liñares David Gerzvolf Gubin Biblioteca e Documentação Por e-mail Manaus - AM Diadema, SP

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