UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

IRIS NERY DO CARMO

O ROLÊ FEMINISTA: AUTONOMIA, HORIZONTALIDADE E PRODUÇÃO DE SUJEITO NO CAMPO FEMINISTA CONTEMPORÂNEO

CAMPINAS 2018

IRIS NERY DO CARMO

O ROLÊ FEMINISTA: AUTONOMIA, HORIZONTALIDADE E PRODUÇÃO DE SUJEITO NO CAMPO FEMINISTA CONTEMPORÂNEO

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Regina Facchini

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA ÍRIS NERY DO CARMO E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. REGINA FACCHINI.

CAMPINAS 2018

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 141042/2014-1; FAPESP, 2014/24947-0 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9736-0034

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Carmo, Íris Nery do, 1988- C213r CarO rolê feminista : autonomia, horizontalidade e produção de sujeito no campo feminista contemporâneo / Íris Nery do Carmo. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

CarOrientador: Regina Facchini. CarTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Car1. Feminismo. 2. Movimentos sociais. 3. Autonomia. I. Facchini, Regina, 1969-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The "rolê feminista" : autonomy, horizontality and the making of political subjects in the contemporary feminist field Palavras-chave em inglês: Feminism Social movements Autonomy Área de concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutora em Ciências Sociais Banca examinadora: Regina Facchini [Orientador] Sonia Elena Alvarez Bila Sorj Sérgio Luis Carrara Maria Filomena Gregori Data de defesa: 11-10-2018 Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelas Professoras Doutoras a seguir descritas, em sessão pública realizada em 11/10/2018, considerou a candidata Íris Nery do Carmo aprovada.

Profa. Dra. Regina Facchini

Profa. Dra. Bila Sorj

Profa. Dra. Maria Filomena Gregori

Profa. Dra. Sonia Elena Alvarez

Prof. Dr. Sérgio Luis Carrara

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

Dedicado a todas as minas, manas, monas e monstras que direta ou indiretamente contribuíram com esta pesquisa.

AGRADECIMENTOS

Há quatro anos e seis meses eu me deslocava de Salvador (BA) para São Paulo (SP), a fim de realizar o doutorado em Ciências Sociais na Unicamp. Além de excitação, a mudança de ares trouxe também seus percalços e inseguranças, de modo que sou muito grata a todas/os aqui citados, que fizeram o percurso valer a pena.

Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pelo financiamento a esta pesquisa no seu ano inicial (Processo Nº 141042/2014-1); ao Convê nio FAPESP/CAPES pelas bolsas de pesquisa concedidas – em âmbito nacional (Processo Nº 2014/24947-0, Fundaç ão de Amparo à Pesquisa do Estado de Saõ Paulo (FAPESP), bem como pela Bolsa de Estágio em Pesquisa no Exterior (Processo Nº 2017/10379-8, Fundaç ão de Amparo à Pesquisa do Estado de Saõ Paulo (FAPESP) – e sem as quais este trabalho não seria possível. Este apoio se mostra ainda mais fundamental no contexto atual em que o investimento na Educação e Ensino Superior público gratuito no Brasil tem sido cada vez mais escasseado, minando as possibilidades e oportunidades para pessoas que, assim como eu, são egressas de escolas públicas.

A minha orientadora, Regina Facchini, por apostar desde o começo na minha proposta de pesquisa com conversas e trocas estimulantes e generosas. Com ela aprendi a fazer pesquisa com rigor científico e engajamento. Sou extremamente grata por todos os encontros, risadas, afetos e aprendizados que só aumentaram a minha admiração ao longo desses anos.

A Isadora Lins França, por ser uma parceira de interlocução fundamental, sempre me incentivando a olhar por vários ângulos e complexificar a análise. Aprendi imensamente com todos as ponderações, críticas e observações cuidadosas.

A Maria Filomena Gregori e Carolina Ferreira que participaram do exame de qualificação e contribuíram imensamente com os rumos da pesquisa, sugerindo caminhos e abordagens valiosas.

A Sonia Alvarez que foi a minha supervisora durante o estágio no exterior na Universidade de Massachusetts (EUA), e me acolheu com muito carinho junto a Claudia de Lima Costa e Cristina Wolff, tornando a experiência do Sanduíche fundamental para o amadurecimento da pesquisa e da minha trajetória enquanto pesquisadora.

A Chris, Peter, Evelyn, Divya, Ana Carolina, Finja e Irene que foram as melhores housemates gringas que eu poderia ter no inverno infinito de Amherst. Thank you guys!

Muitas páginas seriam necessárias para agradecer apropriadamente ao grupo de pesquisa de orientandas/os das professoras Regina Facchini e Isadora Lins França, que me acolheu desde o começo e com quem compartilhei momentos prazerosos de estímulo intelectual e companheirismo: Andrea Lacombe, Guilherme Passamani, Vinícius Zanolli, Rubens Mascarenhas Neto, Sarah Rossetti, Bruna Mantese, Marcelo Perilo, Bruno Puccinelli, Roberto Efrem Filho, Thiago Falcão, Alexandre Oviedo, Bruno Ferreira, Roberto Marques, Natalia Negretti, Fernanda Martins, Marcella Betti, Mariana Azevedo, Lilyth Ester Grove, Stephanie Lima, Bruno Barbosa, Michele Escoura, Brume Doze, Gleicy Silva, Clara Coelho, Gabriela Nardy.

As colegas Isabela Venturoza, Michelle Camargo, Julian Simões, Juliane Ribeiro com quem compartilhei congressos, mesas de debate e de bar.

A minha companheira Ana Laura, por ser o meu lar. Por segurar as pontas durante o meu estágio na UMASS Amherst e por fazer de tudo para tornar a escrita desta tese menos árdua.

A Bila Sorj, Carolina Ferreira, Maria Filomena Gregori, Sonia Alvarez, Heloisa Buarque de Almeida, Sérgio Carrara e Júlio Simões que prontamente aceitaram compor a banca de defesa.

Ao Pagu - Núcleo de Estudos de Gênero, pelos debates, palestras e por fornecer um ambiente ímpar de estímulo intelectual.

As professoras Guita Debert e Maria Filomena Gregori pelas aulas brilhantes.

A Alinne Bonetti, por ter despertado em mim o interesse pela Antropologia quando foi minha orientadora de mestrado no PPGNEIM/UFBA, e por manter a interlocução no doutorado.

A Laura Luedy e Monalisa Gomyde, por me receberem em suas casas em Barão Geraldo e pelos almoços veganos compartilhados no “bandejão” da Unicamp.

A minha família, por sempre me apoiar e fornecer suporte quando precisei.

A Beatriz Suyama e demais funcionários do IFCH, pela ajuda com os processos burocráticos e infraestrutura.

RESUMO

A presente pesquisa tem como ponto de partida inquietações surgidas a partir do panorama complexo onde se inserem os feminismos hoje. Buscando alargar a compreensão dos movimentos sociais contemporâneos, a tese tem como objetivo investigar a produção de sujeitos políticos a partir do rolê feminista em grandes centros urbanos brasileiros. Assim, são analisadas formas recentes de politização do gênero e da sexualidade, tendo como objeto empírico uma rede informal de ativistas jovens auto-referenciada como rolê feminista, cujas relações são orientadas por ideário mais amplo associado à autonomia e horizontalidade. Em linhas gerais, busquei indagar a produção desse sujeito, considerando as (re)configurações do campo feminista, os processos de renovação geracional e a contestação a formatos de participação tidos como institucionalizados. Para tal, considera-se o contexto que se desenrola na virada do milênio, e especialmente no período pós-2010 no país. Se tratando de uma pesquisa de caráter etnográfico, o trabalho de campo consistiu principalmente em seguir as ativistas e, com elas, acompanhar a circulação de sujeitos, objetos, corporalidades e discursos. A maior parte da observação se voltou aos eventos que perfazem o rolê, como feiras de publicações feministas, ocupações de praças e espaços públicos, festivais feministas, lançamentos de livros e fanzines, mostra de vídeo, shows, além de alas ou blocos em manifestações de rua. Ao longo da tese, explorei os significados atribuídos à autonomia, a centralidade do corpo e da experiência em um ativismo de caráter prefigurativo, e as mudanças nos processos de hifenização do sujeito e seus regimes de visibilidade.

Palavras-chave: feminismos; autonomia; horizontalidade; agência; movimentos sociais.

ABSTRACT

This dissertation tries to answer some questions that have aroused from the complex scope of present days feminisms. Seeking to broaden the understanding of contemporary social movements, this thesis aims to study the production of political subjects from the feminist rolê in Brazilians big cities. Thus, recent forms of politicization of gender and sexuality are analyzed, using as empirical object the informal network of young activists self-referenced as feminist rolê, whose connections are guided by a broader ideology associated with autonomy and horizontality. Overall, I inquired about the production of this subject, considering the re-configuration of the feminist field, the processes of generational renewal and the debate on forms of political participation perceived as “institutionalized”. To do so, we consider the context that unfolds at the turn of the millennium, and especially in the post-2010 period in Brazil. Because of the ethnographic element, the fieldwork consisted mainly on following the activists and accompanying the movement of subjects, objects, corporalities and discourses. Most of the observation has come from events that compose the “rolê”, such as feminist publications fairs, public spaces occupations, feminist festivals, book and fanzines launches, film festivals, concerts, as well as identified blocs and groups in street demonstrations. Throughout the thesis, I explored the meanings attributed to autonomy, the centrality of a pre-figurative activism on body and experience, and the changes toward the hyphenation of political subjects and their regimes of visibility.

Key words: feminisms; autonomy; horizontality; agency; social movements.

Lista de siglas

BD Batalha Dominação BF Brejo das Flores FAF Festival Autônomo Feminista FLIFEA Feira do Livro Feminista e Autônoma FVLV Festival Vulva la Vida MPL Movimento Passe Livre MdV Marcha das Vadias NGNM No Gods No Masters Fest SQ Sapatoons Queedrinhos UM União de Mulheres VS Virada Sapatão

SUMÁRIO

Introdução ...... 14 Apontamentos metodológicos ...... 22 Organização da tese ...... 29

Capítulo 1: Dando um rolê: sujeitos, disputas e negociações...... 32 1.1 Temporalidades feministas ...... 34 1.1.1“Sou uma feminista jurássica” ...... 35 1.1.2 “Respeitem nossa história, nossa ancestralidade!” ...... 42 1.2 Disputando o Oito de Março ...... 46 1.2.1 Sapatonas autônomas ...... 52 1.2.2 “Sem partido e sem marido!” ...... 57 1.2.2.1 Civil society agenda: limites e transbordamentos ...... 61 1.2.2.2 Baderna e vandalismo...... 63 1.3 Que anarquismo é esse?...... 65 1.3.1 Faça você mesm@: sem deuses e sem mestres ...... 66

Capítulo 2: Autonomia, horizontalidade e políticas prefigurativas ...... 85 2.1 “Acabou o patriarcado! Bem vindas à Feira do Livro Feminista e Autônoma!” ...... 89 2.2 “Okupar é resistir” ...... 94 2.3 “Quem é bem-vinda?”: negociando fronteiras...... 102 2.4 As autônomas e as ONGs ...... 117 2.5 As minas negras e periféricas no rolê ...... 121

Capítulo 3: Processos de hifenização, corporalidade e produção de sujeito ...... 136 3.1 O perigo das dobras: iconografias e corporalidades ...... 139 3.1.1 Tecnologias de gênero ...... 148 3.1.2 Sobre dobras, dobraduras e dobradiças: regimes de (im)permeabilidade ...... 151 3.1.3 A centralidade do corpo ...... 162 3.2 Enquadramentos faça-você-mesma ...... 164 3.2.1 “Na batalha da vida, sempre rime como uma mulher” ...... 166 3.2.2 Batalha de conhecimento ...... 176

3.2.3 Rolês, trânsitos e apropriações ...... 184

Considerações finais...... 191 Referências...... 195

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Introdução

Enquanto movimento organizado em torno da contestação das assimetrias de gênero, o feminismo (res)surgiu timidamente no Brasil nos anos 1970, em meio à luta de oposição ao governo militar. As décadas seguintes assistiram à crescente ampliação do alcance do movimento e ao incremento de suas fileiras, consolidando aquilo que é considerado o seu maior patrimônio político, a categoria de representação “mulher” (CORRÊA, VIANNA, 2006; COSTA, 1998). Se com a transição democrática, o feminismo dos anos 1980 e 1990 se articulou, de forma inédita, com instituições políticas e organizações não governamentais, buscando assim influenciar políticas públicas ao fazer uso de ferramentas institucionais, no final da década de 1990 começa a tomar corpo o que diversas autoras chamam de “fuga de investimentos” dos organismos de cooperação internacional (ALVAREZ, 2014a; GONÇALVES, FREITAS, OLIVEIRA, 2013; GONÇALVEZ, 2016). Esse é um processo diretamente relacionado às mudanças recentes nos regimes de visibilidade dos feminismos (FACCHINI, FERREIRA, 2016) junto a outros fatores pertinentes às dinâmicas geracionais, constituindo assim transformações nas condições de possibilidade de formas ativistas institucionalizadas na virada do século XXI. Hoje o feminismo brasileiro se destaca pela extensa pervasividade de seus discursos nos diversos âmbitos da sociedade, assim como pela diversidade de formatos, estratégias e sujeitos ativistas. Ele permeia intensamente não só o Estado e as instituições políticas, mas o mercado, a universidade, as redes sociais, a mídia, as artes e produções culturais, além dos outros movimentos sociais, decorrendo uma crescente proliferação de discursos e narrativas em torno do gênero, dos feminismos e da diversidade sexual no país. A presente pesquisa de doutoramento tem como ponto de partida inquietações surgidas a partir desse panorama complexo onde se inserem os feminismos hoje, buscando alargar a compreensão dos movimentos sociais contemporâneos, ao investigar a produção de sujeitos políticos a partir do rolê feminista em grandes centros urbanos brasileiros. Esta tese trata das formas recentes de politização do gênero e da sexualidade, tendo como objeto empírico uma rede informal de ativistas jovens auto-referenciada como rolê feminista, cujas relações são orientadas por ideário mais amplo associado à autonomia e horizontalidade. Em linhas gerais, busquei indagar a produção desse sujeito, considerando as (re)configurações do

15 campo feminista, os processos de renovação geracional e a contestação a formatos de participação tidos como institucionalizados. Para tal, considera-se o contexto que se desenrola na virada do milênio, e especialmente no período pós-2010 no país.1 As ativistas que circulam através do rolê reivindicam a autonomia e a horizontalidade em contraposição a formatos organizativos e modos decisórios tidos como autoritários. Tal reivindicação por vezes produz conflitos com outras atoras2 do campo feminista, dadas as expectativas e experiências geracionais distintas com relação ao Estado, aos canais de participação socioestatais e atores institucionais ou partidários. Elas se apresentam a partir de uma série de adjetivações, conformando um objeto “escorregadio”, avesso a denominações estáveis. A orientação ideológica de cunho anarquista e autônomo – termos que no campo aparecem muitas vezes como sinônimos – parece organizar as categorias que são contingentes, intercambiáveis, e às vezes cumulativas: feministas veganas, feministas libertárias, anarkafeministas, feministas negras, feministas autônomas, transecofeminimo, lesbo-ecofeminismo, black-ecofeministas, feministas punks, feministas lésbicas autônomas, feminismo gordo, feminismo faça você mesma, feminismo interseccional são algumas dessas possibilidades de autonomeação acionadas no campo etnográfico. Em outras palavras, essas adjetivações são acionadas a depender do contexto, às vezes são elaboradas como sinônimos, e em

1 Seguindo o argumento de Regina Facchini e Julian Rodrigues (2017), o ano de 2010 marca inflexão importante no país no que tange as rearticulações do polo conservador e as disputas entre esses setores e os movimentos LGBT e feminista. Nesse contexto, vale notar o momento das eleições presidenciais de 2010, quando segmentos evangélicos – que se deslocaram nos anos anteriores para o apoio à Lula – mudaram de posição em 2010, somando-se a segmentos católicos que se engajaram na campanha contra a então candidata Dilma Rousseff, apoiada por Lula. Abordando a reação de Rousseff aos ataques à sua candidatura, os autores citam a sua visita à cidade de Aparecida e a divulgação de uma “Carta aberta ao povo de Deus” na qual assumia o compromisso de não alterar a legislação relativa ao aborto, absorvendo assim a agenda de grupos conservadores como tentativa de neutralizar a campanha sistemática de desqualificação que vinha sofrendo. Tal inflexão jogou um papel importante nas disputas que se seguiram durante o governo Dilma. Em 2011, por exemplo, a suspensão do projeto Escola Sem Homofobia (que ficou conhecido como “Kit Gay”) foi outro fator que influenciou as posições tomadas pelo governo desde então. Na ocasião, Dilma declarou que não seria permitido a nenhum órgão do governo fazer “propaganda de opções sexuais”. Em 2014, ano em que é reeleita, as bancadas identificadas com setores religiosos estabelecem alianças com outros setores conservadores, como ruralistas e setores ligados às polícias e ao tema da segurança pública. Esta plataforma conservadora tem cada vez mais se voltado à regulação de direitos sexuais e reprodutivos, gerando pânico moral em torno de demandas feministas e de LGBT (FACCHINI, RODRIGUES, 2017). Ainda pensando sobre esse recorte temporal (de finalidade heurística), cabe apontar também que no mesmo período, em 2011, acontece a primeira edição da Marcha das Vadias no país, favorecendo um novo estilo de protesto feminista na cena pública (GOMES, 2018). 2 Sigo aqui a utilização da flexão de gênero do termo tal qual o faz Sonia Alvarez (2014).

16 determinadas situações aparecem numa sequência cumulativa – como por exemplo, feministas lésbicas autônomas ou feminismo gordo, lésbico, anticapitalista e antiespecista.3 Essa profusão de termos, e as diversas formas de elencá-los, revela um investimento na produção de linguagens, grafias, corporalidades e discursos em uma relação de retroalimentação com certas produções acadêmicas e em conexão às experiências (SCOTT, 1998) desses sujeitos. Sendo assim, é parte dos objetivos desta pesquisa analisar esse fluxo de referências as quais se articulam a partir de diversas apropriações, negociações, contestações e ressignificações, conformando uma gramática política própria implicada nos sentidos associados ao rolê. As interlocutoras dessa pesquisa têm aproximadamente entre 20 e 30 anos de idade. Muitas delas estão em trajetórias universitárias ou em contato com produções acadêmicas, e residem em grandes centros urbanos e capitais do país. Elas são, em parte, caudatárias de redes ativistas de ação direta de inspiração faça você mesm@ formadas no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, em meio às influências do punk, do movimento antiglobalização, do feminismo das minas do rock (FACCHINI, 2008) e das anarcofeministas (MARQUES, 2016), entre outros. O rolê é parte de modalidades não institucionais de participação política, as quais têm sido objeto de atenção sobretudo a partir das mobilizações que tomaram as grandes capitais do país desde junho de 2013 e que suscitaram, na opinião pública, bem como na academia, inúmeras questões referentes à ausência de dirigentes e lideranças formais.4 Por outro lado, entre as/os ativistas, há debates acirrados sobre as “tiranias das organizações sem estrutura”, para parafrasear texto de Jo Freeman5 cuja tradução informal circula entre minhas interlocutoras, tematizando as ambivalências, exclusões e “armadilhas” da própria horizontalidade e dos coletivos.

3 A produção de identidades políticas hifenizadas tem se mostrado marcante nos feminismos contemporâneos no país, vide os termos putafeminismo, radfems, transfeminismo, TERFs (Trans-Exclusionary Radical Feminist) ou feministas interseccionais – para citar uma contenda particularmente atual que se expressa de forma conflituosa sobremaneira nas redes sociais e no ativismo online, em meios às disputas acerca do sujeito legítimo do feminismo. Como discutirei ao longo da tese, eles são parte dessa profusão de autonomeações. 4 Por exemplo, Carlos Vainer (2013) nota que as manifestações de ação direta que alteraram o cotidiano das cidades brasileiras em junho de 2013 tomaram “de surpresa” governantes, políticos de todos os partidos, imprensa, cronistas políticos e mesmo cientistas sociais. Também para Raquel Rolnik (2013, p. 12), esses movimentos, ao propor formas “horizontais” de decisão, sem personificação de lideranças e sem comando de partidos políticos e comitês centrais, geraram parte da “surpresa” encontrada nas ruas: “onde estão as bandeiras e os carros de som com os megafones? Quem são os líderes? Quem manda?”. 5 “A tirania das organizações sem estrutura” foi publicado originalmente no ano de 1970 sob o título “The Tyranny of Structurelessness", no contexto dos chamados grupos feministas de conscientização nos Estados Unidos, que então se organizavam “sem lideranças”. De autoria de Jo Freeman, é um texto provocativo que argumenta que as relações de poder e os grupos de influência são camuflados nesse tipo de agrupamento, dando lugar a elites não reconhecidas, que controlam informalmente as deliberações. O texto começou a ser difundido no Brasil nos anos 2000, por anarquistas, circulando em sites, blogs e no formato de brochura impressa.

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Portanto, a horizontalidade, uma noção cara ao feminismo, é constantemente negociada entre as diferentes vozes do campo. A fim de pensar tal dinâmica, busquei explorar a articulação dos marcadores de classe, raça e geração que compõe as diferentes alteridades no campo etnográfico. É preciso cautela, contudo, ao tomar 2013 como um marco temporal, pois manifestações igualmente significativas para a conformação desse repertório ativista, como a Marcha das Vadias, datam de período anterior. Além disso, a reivindicação de autonomia e a recusa a formas institucionalizadas de participação não constituem em si algo inédito, como evidenciam etnografias realizadas no país na década de 1980 – ver, por exemplo, Gregori (1993) e Macrae (1990). Sendo assim, o rolê feminista pode ser considerado como parte dos feminismos autônomos contemporâneos, ao lado, por exemplo, da Marcha das Vadias e seus núcleos locais, dos coletivos de garotas estudantes secundaristas que fizeram parte da ocupação de mais de 200 escolas estaduais no ano de 2015 (retratadas no documentário “Lute como uma Menina”6), das competições de rima e poesia que tomam praças e ruas protagonizadas pelas minas, monas, monstras e pessoas não binárias, entre outras expressões feministas que reivindicam a autonomia, o faça você mesma, e se organizam em coletivos informais. A rede ativista pesquisada nesta tese não é a única a se afastar da participação via diálogo socioestatal. Essa relação de descrença ou afastamento está presente (com significados distintos) também em outros contextos ativistas – como entre as digital influencers e youtubers, coletivos universitários, blogueiras, empreendedoras, entre outras atoras que, ao menos em primeiro plano, não têm os caminhos institucionais no horizonte de atuação. A pesquisa sinaliza também a existência em potencial de outros rolês, no campo feminista e além dele, mais ou menos entrecruzados. Assim, autoras como Carvalho (2018), Lima (2016) e Facchini (2018) têm apontado a existência de processos semelhantes no movimento LGBTI e suas reconfigurações recentes, visíveis nos coletivos universitários, nos ciberativismos, e nas

6 “Este documentário conta a história das meninas que participaram do movimento secundarista que ocupou escolas e foi as ruas para lutar contra um projeto de reorganização escolar imposto pelo governador de São Paulo [em 2015], que previa o fechamento de quase cem escolas. As meninas contam suas histórias enfrentando figuras de autoridade, desde a luta pela autogestão das escolas até a violência desenfreada da policia militar. Uma importante reflexão sobre o feminismo, o atual modelo educacional, e o poder popular.” Disponível em: . Acesso em 20 set. 2018.

18 estratégias de ação direta, por exemplo. Também Rios e Maciel (2017-8) identificam inflexões semelhantes no período pós-2010 no campo dos movimentos de mulheres negras no Brasil. Um desafio enfrentado no caminhar da pesquisa foi a questão de como nomear o objeto da investigação. Frente às muitas categorias de autonomeação, indicando pertencimentos multisituados, a sensação era de que o objeto “escapava” constantemente às minhas tentativas de enquadramento. Um momento do trabalho de campo foi particularmente relevante para a construção do objeto e problema de pesquisa, o qual descreverei abaixo. No ano de 2015, fui até a cidade de Volta Redonda, a terceira maior cidade do estado do Rio de Janeiro, para participar de um evento nomeado “Ah! Que isso! Elas estão empoderadas!” – um trocadilho com o refrão de um famoso funk carioca que diz “Ah! Que isso! Elas estão descontroladas!”. Naquele ano, eu dei início à pesquisa de campo de forma mais sistemática. Lá reencontrei ativistas que havia conhecido anos atrás, em festival feminista autônomo na cidade de Salvador (BA) durante a minha pesquisa de mestrado (CARMO, 2013), além de mulheres que residem em São Paulo e, assim como eu, haviam se deslocado até o evento. Parte significativa das organizadoras e participantes provinham da capital, Rio de Janeiro. Na porta de entrada do espaço (um centro cultural) foi fixado um cartaz confeccionado em cartolina roxa com letras cursivas, no qual se lia: “neste ambiente não será tolerado nenhum tipo de preconceito, violência ou forma de discriminação” – uma versão resumida da advertência presente na descrição do evento no Facebook, que informava: “não serão toleradas atitudes machistas, sexistas, transfóbicas, homofóbicas, racistas, abusivas, bem como qualquer outra atitude que cause desconforto, humilhação ou incômodo a qualquer pessoa dentro do evento.” Esse tipo de “informe”, que se mostrou muito frequente no trabalho de campo, sinaliza a compreensão desses eventos como uma espécie de enclave livre, que pretende pôr em suspensão valores, códigos e práticas da sociedade mais ampla, dando lugar a experimentações coletivas de novas convenções sociais. Dentro do espaço, mais cartazes coloridos. Um deles dizia “resistindo sapatão mística feminista zinista peluda”. Nos corredores havia mesas sobre as quais foram expostas dezenas de publicações confeccionadas manualmente, como fanzines, brochuras e livretos com traduções, poesias, textos autorais, manifestos, colagens, ilustrações, e títulos como “Grito mouco”, “Corpo em festa”, “Histérica”, “A potência do fracasso”, “Manual de gestão de espaços autônomos”, entre outros.

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A programação contava com uma oficina intitulada “Veganismo popular”7, apresentações musicais de bandas com nomes como Ratas Rabiosas, e uma roda de conversa na qual havia cerca de cem mulheres, que serviu como um momento de apresentação dos coletivos e indivíduos presentes. Em meio a temas como experiências de abuso sexual e racismo no meio libertário, uma das falas me chamou atenção ao tentar elaborar uma forma de designar o universo do qual elas faziam parte. Uma delas falou em uma “cena” de contracultura feminista, ao que foi replicada por outra participante para quem o termo “cena” carregava critérios de pertencimento demasiadamente rígidos e estreitos. No seu entendimento, a ideia de quem pertence ou não à “cena” seria lastreada por parâmetros baseados em identidades “verdadeiras”. Em troca, foi provisoriamente sugerida a categoria “rolê”, a qual seria mais inclusiva e flexível. No ano anterior, 2014, os chamados “rolezinhos”, iniciados no final de 2013, se popularizaram em muitas capitais brasileiras, como Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Consistiam em encontros de centenas de jovens periféricos, inicialmente em shopping centers e articulados através de redes sociais, com o objetivo de passear, paquerar e “curtir” (PEREIRA, 2014). Muitos desses encontros foram severamente reprimidos quando lojistas se sentiram ameaçados e acionaram a polícia, resultando em dezenas de jovens detidos e intervenções com bombas e balas de borracha. A mídia, por sua vez, noticiou o fenômeno como “arrastões” (PEREIRA, 2014). Na tentativa de apreender os rolezinhos em um contexto de multiplicação de manifestações de rua pelo país no ano de realização da Copa do Mundo, cientistas sociais foram convidados a “explicar” o fenômeno. Diante das controvérsias, houve quem associasse os encontros às Jornadas de Junho; outros, postulavam que se tratada de uma expressão do fetichismo do consumo; alguns defendiam seu caráter político de contestação à segregação urbana e social, etc. Considerada a conjuntura, é possível que a repressão violenta e a criminalização dos rolezinhos possa ter favorecido a sua popularização e as apropriações ativistas de um termo presente sobretudo na linguagem coloquial. Usualmente, “rolê” é um termo que carrega sentidos associados à circulação e transitoriedade, o que faz sentido se consideradas as imbricações acima mencionadas. Enquanto

7 Em termos descritivos, o veganismo diz respeito à interdição de alimentos de origem animal e do consumo de produtos em que tenha sido pressuposta a exploração desses corpos. No universo pesquisado, o veganismo é parte de processos de politização do corpo e do cotidiano e de experimentações de novas convenções sociais, de gênero e sexualidade, conforme discutirei ao longo da tese.

20 gíria, “dar um rolê” remete a dar uma volta sem maiores compromissos, e tem sido usado no universo da pesquisa como uma categoria englobante e articuladora de pertencimentos (e exclusões). O breve debate sobre “cena” versus “rolê” desvela a dificuldade de localizar um ativismo em que diversão, sociabilidade e política estão crucialmente imbricados. Ademais, ele me fez atentar para os sentidos atribuídos ao rolê no universo pesquisado, denotando uma forma mais ou menos deliberada de rejeição à categoria “movimento social”, como notado também por outras pesquisas em contextos ativistas contemporâneos (LIMA, 2018, 2017). Parte da bibliografia sobre os chamados feminismos jovens identifica um marco representado pelos anos 2000, quando no Brasil vemos surgir grupos e organizações formados por jovens não mais como indivíduos dentro do movimento feminista, mas como ator coletivo cujo pertencimento geracional é um elemento aglutinador. Além de plataformas políticas específicas já postas, como de negras, lésbicas e indígenas, nos anos 2000 outros sujeitos passam a adquirir visibilidade, como é o caso de mulheres trans, jovens e homens feministas (ADRIÃO & TONELI, 2008; ADRIÃO, TONELI & MALUF, 2011; KEMPSON, 2015), conformando um cenário crescentemente polifônico (e conflitivo) que reconfigura as disputas contemporâneas em torno do sujeito legítimo do feminismo. Não obstante, não existe homogeneidade no chamado feminismo jovem. Há clivagens significativas em termos da relação com partidos políticos, com o Estado, com o formal e o informal. É preciso sublinhar também que o pertencimento a determinado grupo etário nem sempre é acompanhado pela assunção da juventude em termos de identidade política, como era o caso da emergência de redes formais de ativistas que se apresentavam como “jovens feministas” no começo dos anos 2000. Destarte, em vez de classificar este momento pós-anos 2000 como uma “quarta onda”, como o fazem autoras como Santos (2016), Kempson (2015), Melo (2013) e Matos (2014), estou de acordo com Alvarez (2014b), que opta por traçar o que chama de “múltiplas genealogias e o desenvolvimento rizomático” dos feminismos latino-americanos. Nesse contexto emergem expressões feministas jovens engajadas em modalidades ativistas não institucionais, uma inflexão especialmente visível a partir da década de 2010 (ALVAREZ, 2014a; FACCHINI, RODRIGUES, 2017).

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Dito isso, apresento abaixo alguns objetivos específicos desta pesquisa, quais sejam: 1) traçar o mapeamento da rede na sua relação com as “outras”, identificando tensões, alianças, disputas e negociações; 2) compreender os sentidos atribuídos ao fazer político, tendo em vista que esses ativismos se constroem a partir da crítica a formas institucionalizadas de intervenção política; 3) pesquisar a circulação de categorias que compõem o ideário ativista a partir de processos de adjetivações e hifenizações; 4) investigar a produção iconográfica, de estilos e corporalidades como produtores de diferenças no que concerne a produção de enquadramentos (framings) e hifenizações. Em termos de orientação teórica e epistemológica, este trabalho toma como inspiração elaborações da Antropologia Feminista (ABU-LUGHOD, 1990), especialmente no que tange às noções de agência, corpo e interseccionalidade. É relevante a proposta de Sherry Ortner (1995, 2006) de que se abandone a visão dicotômica que opõe dominação e resistência. Segundo essa visão, dominação é entendida como uma forma relativamente fixa de poder, enquanto a resistência diria respeito à oposição organizada contra esse poder institucionalizado. Chamando atenção para formas mais pervasivas, cotidianas e menos institucionalizadas de poder, a autora sustenta que aquelas/es que resistem fazem mais do que se opor à dominação como em uma re-ação mecânica. Antes, elas/es têm seus próprios códigos e políticas atuando não só entre “senhores e plebeus”, ou “latinfundiários e camponeses”, mas no interior mesmo dessas categorias, constituindo o que a autora chama de “complexidades políticas internas” (internal political complexities). Ortner argumenta que “movimentos de resistência são frequentemente conflituosos, internamente contraditórios, e afetivamente ambivalentes, em grande parte devido a tais complexidades políticas internas” (p. 49, tradução minha).8 O que a autora nomeia de “ambivalências e ambiguidades da resistência” parece útil na medida em que contribui para afastar noções essencialistas sobre “feminismo” ou “feministas”, no sentido de entender as identidades políticas como “campos historicamente contingentes de contestação dentro de práticas discursivas e materiais”, tal qual a proposta valiosa de Avtar Brah (2006, p. 331) ao refletir sobre processos de diferenciação a partir das noções de feminismos branco e negro.

8 “[...] resistance movements, are often themselves conflicted, internally contradictory, and affectively ambivalente, in large part due to these internal political complexities” (ORTNER, 2006, p. 49).

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Tal proposição dialoga, ao meu ver, com a linguagem conceitual formulada por Sonia Alvarez (2014a, 2014b), entendendo os feminismos como “campos discursivos de ação” articulados em diversas “teias político-comunicativas”. Tensionando a noção de uma “sociedade civil” à parte de uma “sociedade política”, Alvarez (2014a, p. 19) sustenta que

esses espaços discursivos, em si mesmos, constituem formações nitidamente políticas nas quais a cidadania é construída e exercida, os direitos são imaginados, e não só demandados, as identidades e necessidades são forjadas e os poderes e os princípios são negociados e disputados. Quer dizer, não são espaços pré- políticos nem para-políticos, como fica implícito na distinção comumente feita entre movimentos “sociais” e partidos, instituições ou processos representados como (realmente) “políticos”.

Nesse sentido, é de valia mencionar brevemente as etnografias desenvolvidas por Alinne Bonetti (2007, 2012), Regina Facchini (2008, 2011) e Maria Filomena Gregori (1993), as quais, ao meu ver, podem ser inseridas em uma tradição antropológica que investe em uma análise de caráter relacional e processual, servindo de inspiração a esta tese ao refletir sobre agência, produção de sujeito e marcadores da diferença. Assim, a análise empreendida por Facchini (2008, 2011) se debruça sobre o feminismo das minas do rock na primeira década dos anos 2000 em São Paulo, indagando a produção de estilo na articulação de raça, classe, sexualidade e geração. Já a pesquisa desenvolvida por Bonetti (2007, 2012) sobre o “campo político feminista” da cidade de Recife (PE) analisou as relações de poder e a distribuição desigual de prestígio entre as distintas alteridades do campo. A pesquisa pioneira de autoria de Gregori (1993) analisou a entidade feminista SOS Corpo de São Paulo nos anos 1980, explorando as suas dinâmicas internas, a relação entre as militantes e as mulheres atendidas (que provinham majoritariamente de camadas populares), as tensões entre visões de mundo, a rejeição à institucionalização e à profissionalização, entre outros aspectos contenciosos.

Apontamentos metodológicos

“[...] nós, pesquisadoras, éramos também militantes e que, se nos desiludimos com algumas das crenças inscritas em nossas palavras de ordem, não foi porque nosso ‘compromisso maior era com o fazer ciência social’ [...], mas sim porque nosso compromisso maior era com a tentativa de compreender a sociedade brasileira, para mudá-la.” (CORRÊA, 2001, p. 25).

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Se tratando de uma pesquisa de caráter etnográfico, o trabalho de campo consistiu principalmente em seguir as ativistas e, com elas, acompanhar a circulação de sujeitos, objetos, corporalidades e discursos. A maior parte da observação se voltou aos eventos que perfazem o rolê, como feiras de publicações feministas, ocupações de praças e espaços públicos, festivais feministas, lançamentos de livros e fanzines, mostra de vídeo, shows, além de alas ou blocos em manifestações de rua. Esses eventos tinham títulos como “Desamélia”, “Rolê das Minas”, “Festival Autônomo Feminista”, “DeGeneradas”, etc. E aconteceram em locais públicos, como bibliotecas, universidades, espaços anarquistas e centros de cultura, assim como em estabelecimentos comerciais de entretenimento, como casas de show, ou garagens, sendo geralmente eventos gratuitos ou de contribuição voluntária. Como notei ao longo da pesquisa, eles consistem não só em momentos de formação política, como também de experimentação de novas condutas, de encontros e reatualização das relações entre ativistas. Considerando que se trata de pessoas que viajam e se visitam com frequência no interior de um circuito informal de eventos, isso implicou uma etnografia móvel, realizada em diversas regiões do país, acompanhando a circulação das ativistas. A opção por acompanhar os eventos, ao invés de um grupo ou coletivo circunscrito em particular, está relacionada à noção mesma de rolê, que remete à trânsito, fluxos e relações contingentes. Os eventos em que estive presente aconteceram principalmente em grandes cidades do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, entre outras – com preponderância do Sudeste. Me vali também de parte dos dados produzidos durante a minha pesquisa de mestrado com trabalho de campo em Salvador (BA). A divulgação dos eventos se dá principalmente por listas de e-mails e redes sociais – utilizando não só o site Facebook, mas também outras plataformas consideradas mais seguras e em consonância com a almejada autonomia. O público pode variar de 30 até 300 pessoas, a depender do evento e do tipo de atividade. Essas atividades são informais e organizadas por coletivos – uma categoria fundamental e organizativa. Em meio às ativistas da rede pesquisada, o termo diz respeito aos agrupamentos cujas integrantes mantêm relações de afinidade ou amizade entre si; são arranjos instáveis e temporários, de número cambiável de integrantes.

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Uma atividade que foi inserida no universo da observação mais tardiamente, nos últimos meses do doutorado, foi uma competição de rimas, que pode ser vista como outro nódulo perpassado pelo rolê feminista e habitado por minas que se apresentam como negras e/ou periféricas. Trata-se de um evento periódico semanal que acontece em uma praça na região central de São Paulo (SP) e que é muito valorizado por interlocutoras que o consideram uma inspiração em termos de ativismo. O evento se chama Batalha Dominação, e compareci a oito edições no ano de 2018. Outra parte da observação participante foi realizada em eventos tradicionais do calendário feminista brasileiro, como nos atos de rua do Dia Internacional das Mulheres (8 de Março), e no Dia Latinoamericano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto (28 de Setembro), em São Paulo, a fim de acompanhar o trânsito do rolê por esses espaços e a relação com as “outras”. Nesse sentido, estive presente também em debates e mesas de conversa que tratavam de temporalidades feministas ou traziam debatedoras com experiências geracionais distintas. Além disso, observei alguns eventos do campo anarquista, interessada em investigar outra parte das disputas nas quais o rolê está inserido. Além de conversas informais e observações online, foram realizadas cinco entrevistas semi-estruturadas com interlocutoras entre 18 e 30 anos de idade, com identidades raciais distintas, e que residem nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Tiveram duração de cerca de 1 hora cada, e usei nomes fictícios para nomeá-las na tese. A realização das entrevistas permitiu traçar trajetórias ativistas, entender os caminhos percorridos (rupturas, ingressos, alianças, afiliações), e acessar também eventos em que não foi possível participar diretamente, como em Belo Horizonte (MG). Adicionalmente, realizei análise de documentos etnográficos, principalmente produções iconográficas e textuais tais como cartazes, fanzines, livros e pôsteres que circulam através do rolê e além dele, forjando vínculos entre sujeitos, produzindo enquadramentos e hifenizações. Como estratégia para inserção no campo, me vali de contatos prévios que foram feitos durante a minha pesquisa de mestrado, quando residia em Salvador (BA), e expandidos nos últimos anos, com a minha mudança de endereço para a capital paulista. Desse modo, pude ampliar tal acesso, conhecendo novas pessoas e viajando a lugares que desconhecia até então, tecendo assim uma rede extensa de interlocutoras interligando os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Os espaços e locais que sediaram a pesquisa de campo nem sempre puderam ser previamente planejados, mas esperava-se que um levasse ao outro nessa

25 espécie de trilha conformando uma rede de extensão interestadual: em Porto Alegre encontrei mulheres de Belo Horizonte; no Rio de Janeiro, encontrei pessoas de São Paulo e Belo Horizonte, e vice-versa. Ao total, estive presente em 47 eventos entre os anos de 2014 e 2018. Em geral, as notas de campo foram feitas inicialmente em bloco de notas de aparelho celular smartphone e só ocasionalmente em papel, sendo posteriormente transcritas e servindo como base para a redação dos diários de campo. Em algumas ocasiões fui sozinha a campo, em outras, fui acompanhada por amigas. Em certas situações, quando observando os eventos internos ao rolê, me apresentei à organização como pesquisadora. Contudo, essa não foi a regra, visto que eu já conhecia previamente parte das minas, que são minhas amigas ou conhecidas dos meus círculos pessoais e políticos. Compartilho marcadores sociais em comum com elas, como gênero, sexualidade, escolaridade e sobretudo, geração, sendo vista como alguém “de dentro”. Desse modo, a minha identidade de ativista se sobrepôs muitas vezes à posição de pesquisadora. Escrevo esta tese a partir de uma série de lugares: como uma mulher branca, que ingressou na universidade após se formar na rede pública de ensino; como uma pesquisadora jovem, que tem trinta anos no momento de defesa deste trabalho. Que cursou graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia e mestrado em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo no PPGNEIM/UFBA, trajeto que contribuiu à minha formação como pesquisadora feminista. Escrevo como alguém também que, ainda adolescente, passou a frequentar espaços e agrupamentos anarcopunks no final da primeira década dos anos 2000 na cidade de Salvador (BA) – uma aproximação que certamente influenciou a minha formação e orientou meus interesses de estudo e pesquisa, além de me inserir em uma rede de ativismos autônomos diversos em torno de questões como o vegetarianismo, o direito à cidade, a autodefesa feminista, a democratização do acesso à informação e à tecnologia, os direitos animais, a diversidade sexual e de gênero, etc. Essa trajetória me deu “passe livre” para transitar pelo rolê, sem a exigência (explícita) de contrapartidas. Era esperado, contudo, a divulgação dos resultados da pesquisa e o compartilhamento da tese. Trago estas considerações pois estou de acordo com Donna Haraway (1995), para quem todo conhecimento é parcial e se produz a partir de uma perspectiva corporificada, redefinindo assim a noção de objetividade como uma visão multisituada. Como coloca Abu-Lughod (1990) ao fazer uma revisão da crítica feminista à objetividade, a visão não é um ato passivo. Os “fatos” que

26 adquirimos no campo são construídos por meio das nossas interações pessoais com certos sujeitos em contextos específicos. O debate acerca do duplo pertencimento (acadêmico e ativista) do pesquisador na antropologia brasileira data dos anos 1980, notadamente tematizado por Ruth Cardoso (1987) e Eunice Durham (1988). As autoras trataram das tensões entre “observação” e “participação” e dos riscos de reduzir a pesquisa à denúncia e transformar o pesquisador em porta-voz do grupo pesquisado:

A prática de pesquisa que procura este tipo de contato precisa valorizar a observação tanto quanto a participação. Se a Última é condição necessária para um contato onde afeto e razão se completam, a primeira fornece a medida das coisas. Observar é contar, descrever e situar os fatos únicos e os cotidianos, construindo cadeias de significação. Este modo de trabalhar supõe, como vimos, um investimento do observador na análise de seu próprio modo de olhar. Para conseguir esta façanha, sem se perder, entretanto pela psicanálise amadorística, é preciso ancorar as relações pessoais em seus contextos e estudar as condições sociais de produção dos discursos: o do observador e o do entrevistado. (CARDOSO, 1987)

Portanto, sendo intimamente envolvida com o universo da pesquisa, essa liminaridade entre as posições de pesquisadora e ativista se mostrou também condição sine qua non para a própria exequibilidade da pesquisa, possibilitando um “mergulho” intenso no campo. Tal ambiguidade, que já foi vivenciada por outras/os pesquisadoras/es de movimentos sociais, como Regina Facchini (2005), Maria Filomena Gregori (1993) e Edward MacRae (1990), por exemplo, foi acompanhada pelo esforço do estranhamento analítico e por precauções de cunho ético, especialmente com relação a publicização de dados provindos do trabalho de campo. Ciente do meu acesso facilitado ao campo, evitei expor informações relativas a atividades como oficinas, por exemplo, as quais geralmente acontecem em locais fechados, voltadas a um número restrito de pessoas. Além disso, nomes próprios foram omitidos ou substituídos por pseudônimos. É conveniente, por fim, apresentar as convenções textuais adotadas na tese. O recurso gráfico do itálico foi empregado para marcar termos êmicos relevantes à análise, com exceção de rolê, dada a sua grande recorrência ao longo do texto. Também utilizei o itálico para neologismos e palavras estrangeiras. Citações de trechos de textos acadêmicos ou de entrevistas e conversas com interlocutoras são marcadas com aspas duplas, quando não forem destacadas do texto com recuo à esquerda. Abaixo, são listados todos os eventos em que realizei o trabalho de campo no período entre os anos de 2014 e 2018.

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Tabela 1: Trabalho de campo 2014-2018 DATA LOCAL EVENTO 03/09/2014 sede da ONG União de Mulheres, lançamento do livro "No se puede São Paulo (SP) descolonizar, sin despatriarcalizar" do coletivo Mujeres Creando (Bolívia) 13/09/2014 Casa do povo, São Paulo (SP) Debate “feminismo e veganismo” no Bazar Vegano 28- Tendal da Lapa, São Paulo (SP) I Festival Autônomo Feminista 29/03/2014 24/05/2014 São Paulo (SP) Marcha das Vadias com o tema “Quem Cala Não Consente” 07/03/2015 SESC Santana, São Paulo (SP) Feira De|Generada 08/03/2015 São Paulo (SP) Ato do 08 de março (Dia Internacional das Mulheres) 15/03/2015 Centro cultural no bairro do Campo Rolê das Minas Limpo, São Paulo (SP) 26/03/2015 SESC Santana, São Paulo (SP) Ciclo de conversas “(des)construindo identidades’ no evento De|Generada 28/03/2015 São Paulo (SP) II Festival Autônomo Feminista 17/05/2015 Praça no centro de São Paulo (SP) Debate sobre veganismo popular no Hardcore nas ruas 30/05/2015 São Paulo (SP) Marcha das Vadias com o tema “Precisamos falar de aborto” 19/09/2015 Centro Cultural São Paulo, São Ugra Zine Fest Paulo (SP) 08/08/2015 Volta Redonda (RJ) #1 Bazar de garagem do Coletivo Tiamat 04- Universidade Federal da Bahia, Feira de zines e apresentação das 07/08/2015 Salvador (BA) Putinhas Aborteiras no Seminário Desfazendo Gênero

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28/09/2015 São Paulo (SP) Ato do Dia Latino-americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto 18/10/2015 São Paulo (SP) Festival Queers & Queens 30/10- Porto Alegre (RS) I Feira do Livro Feminista e Autônoma 02/11/2015 de Porto Alegre (FLIFEA) 06/11/2015 Rio de Janeiro (RJ) Salafrárias 08/11/2015 Volta Redonda (RJ) Ah! Que isso! Elas estão empoderadas 16/03/2016 Universidade de São Paulo, São Ciclo de Debates Feminismos com Paulo (SP) presença de Maria Amélia Teles 08/03/2016 São Paulo (SP) Ato do 08 de março (Dia Internacional das Mulheres) 02/04/2016 Galpão Mugunzá, São Paulo (SP) III Festival Autônomo Feminista 29/04/2016 Casa Judith, centro de São Paulo Lançamento do zine Sapatoons (SP) Quimer(d)a 10/03/2016 Centro de Cultura Social (CCS), Cine MIAU (Movimiento Insurrecto São Paulo (SP) por la Autonomia de Una misma – Chile) 23/07/2016 Associação Cultural Cecília, São Distúrbio Feminino Fest Paulo (SP) 24/06/2016 sede do Coletivo Feminista de Cine MIAU (Movimiento Insurrecto Sexualidade e Saúde, São Paulo por la Autonomia de Una misma – (SP) Chile) 17/07/2016 Bicicletaria Las Magrelas, São Desamélia Paulo (SP) 05/03/2016 Espaço anarquista Casa da Virada Feminista Lagartixa Preta, Santo André (SP) 06/08/2016 Casa Goiaba, São Paulo (SP) I Maria Bonita Fest com tema Visibilidade Lésbica 20/08/2016 Brejo das Flores, São Paulo (SP) Virada Sapatão

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17/12/2016 Brejo das Flores, São Paulo (SP) Punk das mina no brejo 21/01/2017 Motim, Rio de Janeiro (RJ) Lançamento do livro La Cerda Punk (A Porca Punk) 08/03/2017 São Paulo (SP) Ato do 08 de março (Dia Internacional das Mulheres) 08/03/2018 São Paulo (SP) Ato do 08 de março (Dia Internacional das Mulheres) 24/03/2018 Congolinária, São Paulo (SP) Debate sobre veganismo e racismo 30/03- Semente Negra, Peruíbe (SP) No gods no masters festival 01/04/2018 05/04/2018 SESC Vila Mariana, São Paulo 30 anos do Geledés (SP) 16/04/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação 23/04/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação 30/04/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação 17/04/2018 Livraria Tapera, São Paulo (SP) Vamos falar de anarquia 28/05/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação 04/05/2018 Al Janiah, São Paulo (SP) Encontro Transfeminista ou encontro BucÉtyko de Pornoklastya 06/08/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação 27/08/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação 03/10/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação 10/09/2018 Largo São Bento, São Paulo (SP) Batalha Dominação

Organização da tese

A tese está dividida em três capítulos, além de introdução e considerações finais.

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O primeiro capítulo se debruça inicialmente sobre o cenário multifacetado dos feminismos contemporâneos, se valendo do trabalho de campo realizado em datas consagradas na agenda feminista, como o Oito de Março, e em outros eventos em que uma diversidade de sujeitos feministas com experiências geracionais distintas em termos de militância se fez presente. Fazendo uso do quadro analítico desenvolvido por Sonia Alvarez, o objetivo consiste em explorar as relações travadas pelas minas do rolê feminista com outras atoras e atores com quem compartilham contingencialmente certos espaços de atuação. Em um primeiro momento, trato de situar o rolê no campo feminista mais amplo, em termos de suas relações intra e intergeracionais, de modo a identificar as categorias mais gerais que compõem o ideário dos coletivos, grupos e organizações, assim como categorias de autonomeação e de acusação, investigando a produção de diferença e de temporalidades feministas. Aqui, o esforço analítico reside em não conceber os agentes em termos polarizados (jovens versus velhas; partidárias versus apartidárias; autônomas versus institucionalizadas) mas em suas relações contingentes de disputa, aliança, ruptura, como proposto por Brah (2006) e Facchini (2005). Considerando que o campo feminista é dinâmico e está sempre em movimento, em um segundo momento exploro as relações de apropriação mútua, negociações e conflitos produzidos no entrecruzamento com o campo autônomo/anarquista. Serão exploradas situações do diário de campo ocorridas em um festival anarquista faça você mesmo, no qual o rolê estava presente de forma ativa, impulsionando debates e também críticas. Dado que as relações no rolê feminista são norteadas por um ideário mais amplo associado à autonomia e horizontalidade e que esses termos não encerram significados a priori, o segundo capítulo buscou explorar seus significados em ação no rolê, sem perder de vista a sua historicidade no contexto latinoamericano. Para tal, dialoguei criticamente com a categoria de “prefiguração” criada na década de 1970 e hoje acionada com certa frequência para tratar de expressões ativistas recentes não institucionalizadas. De modo sucinto, o termo diz respeito a busca por construir o mundo que se almeja a partir do espaço habitado no tempo presente. À luz do material etnográfico, busquei apontar os limites e potencialidades analíticas da terminologia. Nesse sentido, pontuei as controvérsias em torno da categoria entre diferentes atores no espectro da esquerda. Também procurei matizar as polarizações do discurso ativista, enfatizando a permeabilidade de fronteiras entre os chamados ativismos cívico e não cívico (ALVAREZ, et al.,

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2017) na qual a autonomia está imbricada. Por fim, investiguei os modos pelos quais a horizontalidade é negociada na articulação de gênero, raça, classe e territorialidade, e no uso do léxico que compreende o acionamento do lugar de fala e do privilégio. Por fim, o interesse analítico do terceiro capítulo recai sobre as mudanças nos processos de hifenização, compreendendo os fluxos de referências políticas, estilos e categorias os quais se articulam a partir de diversas apropriações, contestações e ressignificações, conformando uma gramática política própria, implicada nos sentidos associados ao rolê e influenciada pelo debate feminista acerca da chamada interseccionalidade. Tendo como fio condutor as publicações e produções iconográficas faça você mesma, a análise é dividida em duas partes principais. Na primeira parte, a análise de documento é utilizada para a investigação dos fanzines, cartazes e outras produções iconográficas e textuais, apontando para a centralidade do corpo na produção do sujeito. Esta seção indaga como processos de hifenização são encarnados e tomam forma no ativismo – processos entendidos em termos de discursos e práticas cujo efeito de materialização possui caráter performativo (BUTLER, 2010). Em diálogo com a questão das experimentações tratadas no capítulo 2, interessa investigar, a partir dessa iconografia, o que conta como corpo, onde ele começa e termina, quais são as suas funções, quais são os regimes de (im)permeabilidade de fluidos e trocas corporais que gerem limites e fronteiras particulares implicadas na reinvenção de convenções de gênero e sexualidade. As relações tecidas em meio à produção, veiculação e trânsitos dessa iconografia se mostram mais complexas se consideramos que, junto às publicações e produções textuais e imagéticas circulam também atoras, discursos e sujeitos influenciando-se mutuamente, produzindo (e disputando) enquadramentos (framings). A segunda metade do capítulo é voltada à reflexão sobre essa dinâmica pensada em relação à noção de feminismo faça você mesma. Acompanhando a circulação dos zines, ampliei o escopo do trabalho de campo de modo a observar outro ponto nodal do rolê: uma “batalha de improvisação” que acontece todas as segundas-feiras no centro da cidade de São Paulo, voltada para minas, manas e monas.

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Capítulo 1: Dando um rolê: sujeitos, disputas e negociações

Enquanto rede ativista, como o próprio nome diz, o rolê está sempre em movimento. Ele se retrai e se expande de modo a interpelar e ser interpelado por diversas/os atoras/es, se valendo para tal da informalidade e da ausência de lideranças formais, que possibilitam certa fluidez e circulação que passa por outros âmbitos do campo feminista e além dele. Este capítulo trata de parte das relações implicadas nessa circulação. No trabalho de campo eu busquei acompanhar as minhas interlocutoras não só nos eventos feitos pela e para a rede ativista em diversas cidades, mas também nos seus trânsitos por outros nódulos do movimento feminista. Na cidade de São Paulo, acompanhei eventos tradicionais do calendário feminista, como o 8 de Março (Dia Internacional das Mulheres), e o 28 de Setembro (Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto).9 Participei também de outros eventos como mesas-redondas que se mostravam estratégicos dada a composição intergeracional. Assim, em um primeiro momento, tratarei de situar o rolê no campo feminista mais amplo, em termos de suas relações intra e intergeracionais, de modo a identificar as categorias mais gerais que compõem o ideário dos coletivos, grupos e organizações, assim como categorias de autonomeação e acusação, a fim de investigar a produção de diferença, isto é, o jogo relacional entre as distintas alteridades construindo-se mutuamente. Aqui, o esforço analítico reside em não conceber os agentes em termos polarizados (jovens versus velhas; partidárias versus apartidárias; autônomas versus institucionalizadas) mas em suas relações contingentes de disputa, aliança, ruptura, como proposto por Brah (2006), Facchini (2005), entre outras. Através dessa abordagem, buscarei fugir do engessamento implicado no “novo”. Nesse sentido, é valiosa a dimensão relacional do quadro interpretativo proposto por Sonia Alvarez (2014a; 2014b), tendo como influência formulações antropológicas de autoras como Ana Maria Doimo (1995) a qual, por sua vez, faz parte de esforços compartilhados com Ruth Cardoso (1987)

9 O 28 de setembro, assim como o 25 de novembro (Dia Internacional pela Não Violência contra as Mulheres) foram estabelecidos no contexto latino-americano da geração que lutou contra os regimes ditatoriais na região. Como conta Lia Zanotta Machado (2016), a primeira data foi consolidada em 1983 no Rio de Janeiro, no Encontro sobre saúde, sexualidade, contracepção e aborto, que reuniu feministas, representantes de grupos de diversas regiões do país e parlamentares. A segunda foi instituída em 1981 no I Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe, em Bogotá, Colômbia.

33 em desenvolver uma análise processual do que se convencionou chamar de “movimentos sociais” (ALONSO, 2009). Ao invés de fixar o que constituiria “o” movimento feminista, as suas expressões organizativas, as atoras legítimas e seus lugares de atuação, Alvarez propõe entendê-lo como “campo(s) discursivo(s) de ação”. De acordo com o enquadramento sugerido pela autora, os setores e atoras mais visíveis nesses campos variam ao longo do tempo, ganhando, em contextos históricos distintos, “maior ou menor visibilidade política e cultural, e maior ou menor acesso ao microfone público e aos recursos materiais e culturais, às vezes conseguindo se estabelecer como hegemônicos” (p. 18).10 Os campos se articulam através de “redes político-comunicativas” por onde pessoas, práticas, ideias e discursos se cruzam de forma dinâmica. Essas teias, ou malhas reticuladas, também são tecidas por meio de “linguagens, sentidos, visões de mundo pelo menos parcialmente compartilhadas, mesmo que quase sempre disputadas”, constituindo “uma espécie de gramática política que vincula as atoras/es que com eles se identificam” (p. 19). Alvarez argumenta também que os campos em si mesmos

constituem formações nitidamente políticas nas quais a cidadania é construída e exercida, os direitos são imaginados, e não só demandados, as identidades e necessidades são forjadas e os poderes e os princípios são negociados e disputados. Quer dizer, não são espaços pré-políticos nem para-políticos, como fica implícito na distinção comumente feita entre movimentos “sociais” e partidos, instituições ou processos representados como (realmente) “políticos”. (p. 19).

Olhando para a trajetória dos feminismos latino-americanos, ela vê o momento atual como marcado pelo processo que chama de sidestreaming – o espraiamento horizontal de práticas e discursos feministas para os mais diversos setores paralelos da sociedade civil e da sociedade “não- cívica”, resultando na expansão das teias político-comunicativas e na multiplicação de campos feministas.11

10 “Os fluxos do campo feminista resultam das suas interações dinâmicas com os campos de poder nos quais ele se insere em uma determinada conjuntura histórica. E tais contextos mais amplos, por sua vez, permitem, facilitam, ou até incentivam certas expressões, discursos, e práticas feministas, ao mesmo tempo em que sempre limitam, disciplinam, circunscrevem, reprimem ou até criminalizam outras. Contudo, as (re)configurações do campo feminista também são produto de mudanças nas alianças e disputas internas e das transformações nas coligações bem como das transformações nas coligações e conflitos com outros campos movimentistas [...].” (ALVAREZ, 2014a, p. 20). 11 Os campos também se estendem verticalmente em direção ao Estado, partidos, governos, universidades, e mesmo a ONU, Banco Mundial e instituições políticas. Esse processo, nomeado por Alvarez de mainstreaming do gênero, teria seu ápice na década de 1990.

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Sendo assim, os campos não operam como “bolhas autocontidas”; suas fronteiras e limites são fluídos e objeto das disputas que os constituem. Essas considerações se mostram relevantes pois, além de circular por atividades como o Dia Internacional das Mulheres e debates com outras feministas dentro do calendário do mês de março, as minas do rolê circulam também por outros campos – notadamente, o campo anarquista/libertário, que informa muito do que se entende por autonomia no rolê feminista. A segunda metade deste capítulo explora as relações de apropriação mútua, negociações e conflitos produzidos no entrecruzamento desses campos e envolvendo diferentes atores/as. Serão exploradas situações do diário de campo ocorridas em um festival anarquista faça você mesmo, no qual o rolê estava presente de forma ativa, impulsionando debates e também críticas. Aqui também, como no resto do capítulo, eu baseio a minha observação sobretudo no estado de São Paulo, dada a minha localização geográfica na maior parte do doutorado.

1.1 Temporalidades feministas

Diversas autoras veem os anos 2000 como um marco para as mudanças nos regimes de visibilidade do feminismo no Brasil (FACCHINI; FERREIRA, 2016), quando vemos surgir grupos e organizações formadas por jovens, não só como indivíduos dentro do movimento, mas como um ator coletivo cujo pertencimento geracional é um elemento aglutinador. Para além de plataformas políticas específicas já postas, como de negras, lésbicas e indígenas, no começo da década passada, outros sujeitos passam a reivindicar visibilidade, como é o caso das mulheres trans, “jovens feministas” e homens feministas (ADRIÃO, TONELI, 2008; 2011; KEMPSON, 2015), conformando um cenário crescentemente polifônico que escapa a simples polarizações. Como buscarei mostrar, não existe homogeneidade no chamado “feminismo jovem”. Há clivagens significativas em termos de relação com partidos políticos, com o Estado, com o formal e o informal. Ao invés de classificar esse momento pós-anos 2000 como uma “quarta onda”, como fazem autoras como Santos (2016), Kempson (2015) e Matos (2014), estou de acordo com Alvarez que opta por traçar o que chama de “múltiplas genealogias e o desenvolvimento rizomático” dos feminismos latino-americanos (ALVAREZ, 2014b). Nesse contexto emergem expressões

35 feministas jovens engajadas em modalidades ativistas não institucionais, uma inflexão especialmente visível a partir da década de 2010 (ALVAREZ, 2014a; FACCHINI, RODRIGUES, 2017) Dito isso, considerando que esta seção trata de situar o rolê em relação ao campo feminista mais amplo, na primeira parte eu buscarei investigar as relações intergeracionais, indagando como noções de temporalidade, acúmulo, pioneirismo e herança são contingencialmente produzidas, reiteradas e contestadas. Para tal, lanço mão de parte da observação etnográfica realizada em eventos como mesas-redondas e palestras onde havia a presença de feministas mais velhas (em torno dos 60 anos de idade), ou onde estava posta a discussão sobre legados e trajetórias feministas. Nessas atividades, notei que, independentemente do tema da mesa, é esperado que as mais velhas abordem momentos vivenciados há 30 ou 40 anos atrás, como se fossem uma espécie de arauto desse passado recente. Por outro lado, eventos abertamente voltados ao tema dos legados e conquistas históricas feministas inevitavelmente levavam a balanços e comparações com o cenário atual. Abaixo, farei menção a alguns desses eventos, realizados na capital paulista. Incluí no trabalho de campo o evento de comemoração de 30 anos do Geledés, importante ONG no campo dos movimentos de mulheres negras, no qual as minhas interlocutoras não estavam presentes, mas que, a título de contraponto, se mostrou relevante à discussão sobre como diferentes atoras se relacionam com o tempo. Em seguida, serão expostos momentos do trabalho de campo realizado durante o ato do Dia Internacional da Mulher em São Paulo nos anos de 2015 e 2016, a fim de investigar as diferentes formas dos feminismos se apresentarem publicamente a partir de enquadramentos diversos. Argumento que, nessas ocasiões, o caráter não institucionalizado e informal do rolê pode produzir conflitos envolvendo o pertencimento partidário de outras atoras no campo e formatos organizativos considerados “autoritários”. Por seu turno, o rolê se expressa publicamente por meio de estratégias que são lidas por outras atoras como “baderna” ou “vandalismo”, sendo por vezes considerado apolítico ou politicamente ineficiente. Assim, são reatualizadas antigas disputas do campo, ao mesmo tempo em que são produzidas em novos termos.

1.1.1“Sou uma feminista jurássica”

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Jurássico

1 [com inicial maiúscula] Diz-se de ou o período da era mesozoica entre o Cretáceo e o Triássico. 2 Sistema de rochas formado nesse período compreendido entre 195 e 136 milhões de anos. 3 Que é muito antigo e ultrapassado.12

Com o lema “Se apenas da insubordinação pode vir a liberdade, degeneradas é o que todas desejamos ser”, o evento intitulado “De|Generadas” aconteceu na cidade de São Paulo entre os dias 5 e 28 de março de 2015, com uma extensa programação gratuita composta por ciclos de conversa, mostra de performances, apresentações de dança, cinema e uma feira de produtos onde era possível encontrar fanzines e publicações faça-você-mesma. De acordo com o site, a programação foi construída “a partir de reflexões sobre as pautas feministas e a luta pela garantia dos direitos da mulher ao longo da História”13 e incluía ciclos de conversas com temas como: a representação da mulher negra na mídia e nas artes, empoderamento, corpo e autonomia. Entre as convidadas havia pesquisadoras e professoras universitárias, blogueiras, escritoras e representantes de Organizações Não Governamentais de longa data. Me chamou atenção especialmente a mesa de debate nomeada “(Des)construindo identidades”, fechando a programação do evento que foi sediado no SESC Santana14, como parte da agenda do mês de março. Se tratava de mesa com a presença de feministas com grande diferença etária e trajetórias políticas distintas, sendo que uma das falas tratou de fanzine15 de grande circulação no rolê feminista, intitulado Sapatoons Queerdrinhos (SQ), o qual será objeto de atenção mais detida no último capítulo. Na plateia, havia principalmente mulheres jovens, entre elas reconheci estudantes universitárias, fanzineiras e integrantes de banda de rock feminista. Também

12Fonte: Dicionário Michaelis online. Disponível em: . Acesso em 14 maio de 2018. 13 Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2016. 14 SESC (Serviço Social do Comércio) é uma entidade sem fins lucrativos fundada pelo empresariado do comércio e serviços e que, segundo seu próprio site, investe em “novos modelos de ação cultural”. No Estado de São Paulo há 36 unidades do SESC, em sua maioria centros culturais e desportivos. Disponível em: . Acesso em 09 março 2016. 15 Zines ou fanzines são publicações em papel, geralmente compostas por colagens feitas à mão, de modo que textos ou desenhos são impressos, recortados e colados em folhas de papel que então são montadas numa determinada ordem e xerocadas. Uma vez que prescinde de editores, o conteúdo e formato dos zines gozam da prerrogativa do controle sobre todos os momentos da sua produção, formatação, escrita e distribuição.

37 me interessava investigar como se dava o trânsito de interlocutoras em espaços como aquele – um grande auditório, com palco e plateia fisicamente separados, microfones, ar condicionado – cuja configuração destoa dos ambientes que presenciei durante a maior parte do trabalho de campo. A conversa teve como mediadora Inês Castilho, que foi apresentada como jornalista, pesquisadora, co-fundadora do jornal “Nós Mulheres” (publicado entre 1976 e 1978), uma das editoras do jornal “Mulherio” e hoje colaboradora da revista digital “Outras Palavras”. Ela mediou as falas de três expositoras: Michele Escoura, Sylvia Cavasin e Lin Arruda. Michele Escoura é mestre em Antropologia e foi convidada para expor sua pesquisa sobre a influência de princesas da Disney em crianças; Sylvia Cavasin, foi apresentada como cientista social, fundadora da Organização Não Governamental “Ecos – Comunicação em Sexualidade” e coordenadora da Rede de Gênero e Educação em Sexualidade (REGES); e Lin Arruda foi apresentada como “ativista lésbica transgênero”, com mestrado em Teoria Crítica e História da Arte, e pesquisadora do que chama de “imaginário contra-artístico dissidente”, tendo o fanzine “Sapatoons Queerdrinhos” como um de seus projetos autorais. Antes de iniciar a mesa propriamente, a mediadora sublinhou que ela e Sylvia eram “da mesma geração”, isto é, da “segunda onda do feminismo”16 e que trabalharam juntas na Fundação Carlos Chagas, onde segundo ela nasceu o jornal “Mulherio” (publicado em São Paulo a partir do ano de 1982). O “Sapatoons Queerdrinhos”, que está em sua terceira edição e circula no rolê desde 2012 (CARMO, 2013), foi descrito por Lin como um projeto colaborativo, veiculado em listas de e-mail anarquistas, sendo composto por histórias fictícias e biográficas sobre amigas e voltado para essa própria rede, vista como uma comunidade afetivo-política, habitada por um “nós, as lésbicas, as trans”. Por meio dele seria possível registrar histórias e mesmo piadas que contam sobre experiências pessoais tornadas coletivas, as quais, ao serem compartilhadas, teriam a capacidade de forjar laços entre diferentes pessoas que lêem o zine.

16 A terminologia das Ondas feministas foi inicialmente elaborada no contexto estadounidense. De modo geral, seus usos são variados e se referem ora a gerações ora a construções teóricas/temáticas, e às vezes as duas coisas aparecem acopladas.

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Figura 1 Capa e contracapa do SQ #1

O termo “Sapatoons” faz alusão à categoria de autonomeação sapatão ou sapatona somada à “cartoons” (do inglês, desenho animado); já “queerdrinhos” remete à queer (categoria acusatória na língua inglesa) e “quadrinhos” (uma referência ao conteúdo do zine, formado por tirinhas ilustradas). Como será explorado adiante, a produção de neologismos e de novas grafias é parte da estratégia de expressão dos fanzines e está implicada no alargamento do léxico feminista. Ao apresentar Arruda, Castilho mostrou dificuldade em pronunciar o “queer” de “queerdrinhos”. Posteriormente, interpelou Lin ao perguntar o que era “homem cis”17 (termo proferido durante a sua fala), mostrando pouca familiaridade com um vocabulário mobilizado no rolê e que também circula em boa parte do ativismo online e em certas produções acadêmicas no campo dos estudos de gênero e sexualidade nos últimos anos.

17 Como discutirei adiante, no rolê feminista o termo homem cis designa pessoas que foram identificadas como homem ao nascer e seguem se percebendo e sendo percebidos como tal. Ele está inserido num debate mais amplo sobre o sujeito do feminismo.

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A última a falar foi Sylvia Cavasin, que abriu sua fala anunciando, de forma bem- humorada, “sou uma feminista jurássica” e dedicou os primeiros minutos a contar episódios da história do feminismo no Brasil com ênfase na década de 1980. Falou, assim, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM)18, da luta contra a carestia e da bandeira feminista pelo direito ao prazer e por direitos sexuais e reprodutivos, que levou à fundação da ONG da qual ela faz parte. O tema da sexualidade também apareceu durante a sua fala, sendo conformado por um repertório que se resumia às categorias de “direitos sexuais e reprodutivos”, “homofobia”, “aids”, “saúde reprodutiva e sexual”. Como será exposto ao longo do texto, referências como os jornais “Mulherio”, “Nós Mulheres” e “Brasil Mulher”, ao lado do Movimento Feminino pela Anistia, são frequentemente mobilizados como marcos temporais que indicariam o (re)surgimento do feminismo brasileiro na segunda metade do século XX. Eles são parte de um momento político impulsionado no país pelo reconhecimento que acompanhou a declaração da Organização das Nações Unidas do ano de 1975 como Ano Internacional da Mulher (SARTI, 2004), período ao qual Sylvia e Inês se referem ao utilizar a categoria segunda onda. No debate que sucedeu as apresentações, ao comentar pergunta da plateia sobre feminismo na internet, Sylvia pontuou que estava “com um pé atrás com a Quarta onda” e que precisava entender, pois ainda tinha dúvidas sobre o quanto essa tal “Quarta onda” caminhava em um sentido positivo, isto é, de acúmulo de saberes, ou se era algo “em experimentação”.19 A ansiedade com relação à transmissão intergeracional, já notada pela bibliografia (FACCHINI, RODRIGUES, 2017; GOMES, 2018; e outras) é aqui elaborada em termos de “ondas” sucessivas – uma taxonomia que é objeto de intensa disputa no campo feminista de modo geral. É interessante notar que, nesse contexto, o marcador geracional é mobilizado pelas mais velhas, o que sugere que o pertencimento a determinado grupo etário jovem nem sempre é acompanhado pela assunção da juventude em termos de identidade política – como é o caso daquelas que, no começo dos anos 2000, se apresentavam como “jovens feministas” a fim de disputar espaços de representação institucional (RIOS, MACIEL, 2017-8).

18 O PAISM foi implementado no ano de 1984 e não raro é citado na bibliografia como exemplo da mobilização feminista daquele momento. 19 No capítulo 2, argumento que é justamente a experimentação uma característica central do agenciamento no rolê.

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Segundo pesquisa desenvolvida por Oliveira e Gonçalves (2016), o conflito geracional se dá mais intensamente nas relações em âmbitos institucionais, onde se nota com mais ênfase a polarização entre jovens e feministas mais velhas ou feministas “históricas”. Na observação das autoras, esse conflito apareceu com mais ênfase para aquelas que atuam em grupos como a JFSP (Jovens Feministas de São Paulo) e as ONGs Sempre Viva Organização Feminista (SOF) e CFemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria). Nesses grupos, os sentidos atribuídos pelas ativistas à juventude se dão em termos de “vulnerabilidade” e protagonismo, que se traduzem em demandas como o enfrentamento de violências específicas contra meninas e adolescentes, e a luta contra a hierarquização geracional dento do feminismo (OLIVEIRA, GONÇALVEZ, 2016). Nesse caso, a juventude é construída como uma condição transitória que caracterizaria um segmento da população feminina. 20 Sendo assim, no rolê feminista não há uma primazia da juventude na produção do sujeito. Os conflitos parecem se exprimir mais fortemente em torno das militantes partidárias enquanto exterior constitutivo, como discutirei na próxima seção. O termo jurássica remete à noção de precedência distante, que é responsável por dar início a algo grandioso. Seu uso tal como mobilizado por Cavasin produz e reitera o que Alvarez (2014a) chamou de mito de origem do momento fundacional da “segunda onda” presente nas narrativas das veteranas ou históricas enquanto fundadoras aguerridas. No entanto, frente a tal esforço de diferenciação que busca produzir a polarização das experiências em dois lugares descontínuos – o “velho” e o “novo” –, considero esses lugares como práticas discursivas (BRAH, 2006), produzidos por relações contingentes e disputas no bojo das teias político-comunicativas.

20 Adicionalmente, Regina Novaes e Rosilene Alvim (2014) oferecem elementos para pensar a construção da juventude como sujeito de direitos no contexto das políticas públicas de juventude dos anos 2000, período também de emergência das redes formais de “jovens feministas”. As autoras contam que, nos anos 1990, a parcela da população juvenil considerada público-alvo nos programas federais era aquela que compreendia jovens pobres vistos como “em situação de risco”. Entretanto, como elas chamam atenção, “os efeitos sociais desses projetos foram múltiplos e nem sempre na direção prevista por seus formuladores e financiadores” (p. 273) – entre eles, importantes Organizações Não Governamentais, agências governamentais, igrejas e fundações empresariais. No período entre final dos anos 1990 e 2000, há uma crescente diversificação e visibilidade de atores juvenis que se articulam em áreas diversas como teatro, grafite, dança, saraus de literatura, com destaque para o movimento Hip Hop, e reivindicam a criação de espaços institucionais e governamentais para a juventude. Como resposta, surgem secretarias municipais e estaduais e centros de referência de juventude, e, não à toa, em 2005, é criada uma Política Nacional da Juventude. Esta se referia a jovens de 15 a 29 anos, e criou a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (o Projovem). Trago essas considerações a fim de complexificar o que se chama de “jovens feministas” e que tem por efeito apagar diferenças e conflitos internos – algo muito comum na literatura (vide Gonçalves, Freitas e Oliveira (2013) que falam das “jovens feministas brasileiras”).

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As ideias de juventude/velhice, novo/velho, portanto, não são determinadas pela faixa etária. O que está em jogo, então, quando se aciona a taxonomia das ondas ou qualificativos como jurássicas? No contexto em questão, o que faz de alguém “jovem” não é a sua idade mas a proximidade a ideais de horizontalidade, práticas de ação direta que caracterizam um dado fazer político. Há uma produção mútua de um certo feminismo e uma certa juventude, como será explorado na próxima seção. “Segunda” e “quarta” ondas, tal como enunciadas acima, dão ênfase a conquistas e rupturas, ao passo que deixam em segundo plano linhas de continuidade e permanência ao longo do tempo. Por exemplo, há similaridades na produção contemporânea dos fanzines e as publicações feministas na chamada “imprensa nanica” das décadas de 1970 e 1980 – tão citadas durante a mesa. Durante o governo militar, surgiu no país um tipo de imprensa denominada democrática ou alternativa por uns, e, por outros, de imprensa nanica. Ela era composta por jornais com formato tabloide, muitas vezes de tiragem irregular e circulação restrita, de caráter artesanal e comercializados mão a mão (LEITE, 2003). As feministas que ocupavam o conselho editorial dessas publicações eram oriundas de organizações de esquerda, e muitas delas havia passado pela experiência da militância clandestina, da tortura, da prisão e/ou do exílio. Em especial, boa parte das redatoras do “Nós Mulheres” procedia do grupo de mulheres exiladas intitulado Círculo de Mulheres de Paris (idem). Como aponta Leite (2003), a inovação representada pelo jornal estava principalmente na linguagem: a utilização da primeira pessoa do plural – o “Nós” do título – rompia com o tratamento dado às mulheres pela imprensa tradicional, na qual um editor impessoal se dirigia às mulheres fazendo uso da segunda pessoa (“você”). O jornal promovia uma linguagem pessoal, afetiva, que revelava intimidade. Era parte das novas estratégias de expressão, com ênfase nos assuntos ligados à subjetividade e ao indivíduo, carregadas de críticas às relações verticalizadas, hierarquizadas e burocratizadas que, de acordo com a autora, eram predominantes na prática da esquerda da época. Nesse sentido, a imprensa feminista representou um espaço de experimentação de uma forma então especial de fazer política (LEITE, 2003).21

21 O jornal O Mulherio surgiu posteriormente, em 1981, e destoando da situação financeira precária de jornais como o Nós Mulheres, ele surgiu institucionalizado, contando com o apoio financeiro da Fundação Ford e da Fundação Carlos Chagas – podendo assim ser considerado uma organização não-governamental (LEITE, 2003).

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Ao lado do “Nós Mulheres” e “Brasil Mulher”, estavam outras publicações como o jornal “Lampião da Esquina” (MACRAE, 1990). Este jornalismo de oposição das décadas de 1970 e 1980 era parte dos então chamados “novos movimentos sociais” (NOVAES, ALVIM, 2014) que promoveram contestação política e renovação estética e cultural (LEITE, 2003). Sendo assim, o “novo” não encerra um significado a priori; é sempre relacional. Como será discutido abaixo, essas narrativas fundacionais do feminismo são contestadas por mulheres cujas trajetórias políticas, tal como Inês Castilho e Sylvia Cavasin, também têm início nos anos 1970 e 1980, mas que, pautadas por outras cronologias, não se veem como parte de uma mesma geração.

1.1.2 “Respeitem nossa história, nossa ancestralidade!”

Em 2018, o Geledés Instituto da Mulher Negra completou 30 anos de existência, desde a sua fundação no final dos anos 1980. Em comemoração, a ONG promoveu um evento com a realização de palestras semanais durante o mês de abril em São Paulo, cujos ingressos esgotaram rapidamente. Compareci à mesa intitulada “Mulheres em luta, ontem e sempre”, que tinha como palestrantes Amelinha Teles, Guacira Oliveira, Jurema Werneck e Sueli Carneiro – todas elas atualmente ocupando cargos de diretoras, coordenadoras ou fundadoras de ONGs, mas sendo também pesquisadoras, autoras de livros e artigos. Além delas, na mesa havia também três debatedoras mais jovens. A descrição dizia: “Debate sobre a atuação do feminismo brasileiro nos anos de 1980, que o inseriu como uma expressão política relevante dentre os movimentos sociais do País, com contribuições para a construção de políticas de gênero e raça.”22 Amelinha Teles (União de Mulheres) e Guacira Oliveira (CFEMEA), ambas brancas, foram as primeiras a falar. O conteúdo das falas foi, de modo geral, similar. Citaram o que viam como conquistas do movimento no período, como a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina em São Paulo (1983), a construção das primeiras delegacias da mulher ainda durante a ditadura, e o lobby feminista na campanha da Constituinte que assegurou a inclusão de pontos

22 Disponível em: . Acesso em 17 de abril de 2018.

43 como saúde da mulher, o combate à violência doméstica, os direitos das trabalhadoras domésticas, as licenças maternidade e paternidade. “Tiramos leite de pedra”, afirmou Guacira ao tratar do período. Amelinha lembrou também da reação negativa das feministas brancas à ideia de espaços exclusivos para mulheres negras, e das alianças que foram tecidas naquele momento (como por exemplo entre a União de Mulheres e o Geledés). Em diversos momentos expressaram uma relação de reverência para com o Geledés, agradecendo pela sua existência. Já Sueli Carneiro anunciou que, frente às circunstâncias, não seguiria de forma estrita a pauta colocada para a mesa, e iria abordá-la de outro modo. Então fez uma fala em homenagem à Marielle Franco, vereadora do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) assassinada duas semanas antes do evento, na cidade do Rio de Janeiro, quando deixava uma atividade intitulada “Jovens Negras Movendo as Estruturas” na Casa das Pretas, no centro da cidade. Como enfatizado por Sueli, Marielle era mulher negra, favelada, socióloga e lésbica que desafiou o racismo institucional. Sua morte seria uma metáfora dramática das relações raciais e de gênero no Brasil, que exclui e marginaliza “essa gente considerada descartável”. Seria também uma expressão do incômodo gerado pela presença da parlamentar nos espaços de poder – apenas outras duas mulheres negras e vindas da favela haviam conseguido ocupar uma cadeira na Câmara da cidade ao longo dos últimos 35 anos. Na sequência, a fala de Jurema Werneck, fundadora da ONG Criola (RJ), representou uma mudança definitiva no tom e no rumo da conversa. Sua participação produziu dissonâncias, revelando, para além das relações de colaboração de longa data entre as quatro palestrantes, as disputas sobre narrativas e periodizações, e compreensões distintas sobre feminismo(s). Ela foi enfática ao defender que as mulheres negras não começaram a fazer movimento nos anos 1980, e iniciou questionando o tema da mesa: “Tenho que falar do feminismo dos anos 80? Porque eu não estava lá. Nunca estive. Falo desse lugar contraditório: de dentro e de fora.” Tratou com certa ironia da narrativa – que Alvarez (2014a) chama de mito de origem do momento fundacional do feminismo brasileiro – da chegada das mulheres que vêm do exílio na Europa afirmando “agora temos um movimento”. Esse seria um pensamento colonialista que carregaria o desprezo às formas organizativas das mulheres negras na diáspora. Para ela, a resistência dessas mulheres na experiência forçada de travessia transatlântica se tratou de um “empreendimento coletivo de sobrevivência organizada” e enquanto tal, é anterior ao século XX.

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Jurema foi ovacionada pela plateia do SESC Vila Mariana, composta majoritariamente por mulheres negras. Em consonância, ao abrir o debate ao público, outros comentários ecoavam a fala de Werneck: “respeitem nossa história, nossa ancestralidade!”; “viemos de um processo civilizatório que está lá atrás”; “as comunidades de terreiro lideradas por mulheres negras têm sido historicamente espaços de resistência”. As primeiras palestrantes fizeram comentários pontuais e reforçaram a importância da trajetória política do Instituto. Amélia Teles e Guacira Oliveira estavam ali como convidadas do Geledés – o que indica ao menos certos pressupostos compartilhados e uma relação de admiração mútua. O contexto, poucos dias após a execução de Marielle Franco, certamente influenciou no tom do debate colocado pelas mulheres negras lá presentes, que se viam diretamente tocadas pelo assassinato de uma importante liderança, um crime com grandes chances de ter sido executado por agentes relacionados a forças policias e do estado. Está implícito nesse debate a contestação da taxonomia das ondas feministas, que ao traçar recortes temporais como sucessões ao longo do tempo, exclui determinados sujeitos, como mulheres e feministas negras, cuja atuação não é reconhecida como legítima, e cuja temporalidade, para as palestrantes aqui citadas, se exprime de outro modo – através da noção de ancestralidade. A ancestralidade opera como uma matriz histórica, cultural, religiosa e política acionada no combate ao racismo e sexismo. Seu uso parece aquilo que Avtar Brah (2006, p. 362-363) chama de “diferença como relação social”:

Um grupo geralmente mobiliza o conceito de diferença neste sentido quando trata das genealogias históricas de sua experiência coletiva. De fato, diferença e comunalidade são signos relacionais, entretecendo narrativas de diferença com aquelas de um passado e destinos coletivos compartilhados. [...] O conceito se refere ao entretecido de narrativas coletivas compartilhadas dentro de sentimentos de comunidade, seja ou não essa “comunidade” constituída em encontros face a face ou imaginada, no sentido sugerido por Benedict Anderson.

Esse sentido de comunidade é evocado na fala que fechou o evento, feita por Sueli Carneiro, diretora executiva do Geledés, em resposta aos comentários do público. Ela defendeu que é possível “encontrar respostas nas nossas matrizes culturais”, de modo a prescindir “de qualquer Simone de Beauvoir”. Lembrou que o nome “geledés” foi escolhido há 30 anos atrás em referência a organizações femininas da tradição yorubá, as quais integravam também homens sob

45 sua liderança – algo que, segundo ela, assustava até as feministas brancas que não entendiam como uma organização feminista podia ter homens. E concluiu: “Queremos restaurar esse poder. Portanto, não me encha mais o saco dizendo que não somos feministas; somos antes.” A ideia de que “nós sempre fomos feministas” implica que quilombos, irmandades religiosas, comunidades de terreiro, entre outros “empreendimentos coletivos de sobrevivência organizada”, são percebidos como práticas feministas de resistência das mulheres negras que datam de séculos atrás, mas estão ao mesmo tempo inseridos em um tempo circular. São também práticas cujos significados estão intimamente relacionados com as religiões de matriz africana. Daí a importância política de reconstruir uma memória, fazendo com que a temporalidade seja marcada de outra forma, na qual as décadas de 70 ou 80 do século passado não são tão significativas. Tal como acionada aqui, a ancestralidade é uma noção cosmológica, que denota um todo englobante de quem veio antes, e já se foi, e quem está aqui. Sendo assim, o futuro é visto sob lentes otimistas. Essa confiança no que virá também se alimenta da crescente visibilidade que os movimentos de mulheres negras têm ganhado, especialmente a partir da organização em nível nacional da Marcha das Mulheres Negras23, no ano de 2015. A ancestralidade também informa a relação – de respeito, reverência – com as mais velhas. Não obstante, a ênfase nas noções de continuidade, restauração e herança, não significa ausência de marcações geracionais. Como dito, na mesa havia também a presença de três debatedoras notadamente mais jovens24, e que falaram em um bloco depois das palestrantes. Uma delas, Stephanie Ribeiro – que é arquiteta, blogueira e conhecida sobretudo nas redes sociais – se colocou como a “caçula”, uma posição reiterada por parte da mesa que, em mais de uma ocasião, chegou a apontar Stephanie como herdeira responsável por dar prosseguimento à luta. As três mais jovens pareciam se colocar em posição de aprendizes, referindo às outras como mulheres históricas. Por parte destas, não havia ansiedade, mas confiança na continuidade de uma luta que vem de longe. A descrição acima não pretende ser representativa do campo dos feminismos negros – hoje cada vez mais plurais (ALVAREZ, 2014a; 2012).25 Antes, trata-se de um contraponto trazido “de

23 Algumas palavras de ordem da Marcha: “Nossos Passos Vêm de Longe!”, “Uma sobe e puxa a outra!”. 24 Neon Cunha, que se colocou como uma mulher transgênera, publicitária e feminista interseccional, e Marina Ganzaroli que é advogada, atua na área de direitos das mulheres e se colocou como branca e lésbica. 25 Ver a entrevista a Luiza Bairros realizada por Sonia Alvarez (2012, p. 841), em que Bairros faz um balanço dos encontros e desencontros entre feminismos e a luta antirracista no Brasil, sublinhando também certa crise da “mulher

46 fora” a fim de iluminar aspectos do universo pesquisado. Enquanto tal, a mesa de 30 anos do Geledés se mostrou interessante à reflexão sobre as tensões relacionadas à passagem do tempo, revelando diferentes temporalidades e cronologias. Ela mostra que a marcação (nativa) de gerações nem sempre se dá a partir de critérios etários, isto é, há outras lógicas organizando os conflitos.

1.2 Disputando o Oito de Março

Tradicional na agenda feminista brasileira, o ato de rua do Oito de março, data que marca o Dia Internacional da Mulher, é uma dessas ocasiões singulares de articulação anual e pública de diversos campos feministas em que a “heteroglossia” (HARAWAY, 2009) é posta em ação. Mulheres sindicalistas, representantes de partidos políticos, Promotoras Legais Populares, mulheres da Central Única dos Trabalhadores (CUT), integrantes do Levante Popular da Juventude, trabalhadoras domésticas, a batucada da Marcha Mundial de Mulheres, grupos diversos de mulheres negras, coletivos universitários, grupos de luta pela moradia, de mulheres ciclistas e cicloativistas, entre outros, faziam parte do contingente que caminhava no 8 de março de 2015, em São Paulo. A presença de mulheres é majoritária, mas há também grupos mistos. Geralmente os grupos saem em blocos unidos às suas faixas, alguns intercalados por carros de som e pequenos “trios elétricos”, além da presença de pessoas avulsas, grupos de teatro e performance, jornalistas e fotógrafas. Entre os grupos organizados carregando faixas maiores e bandeiras, há expressões mais individualizadas, onde cada uma confecciona e carrega seu próprio cartaz. Assim, pode-se dizer que a observação participante do ato tem o potencial de fornecer uma espécie de mapa dos feminismos contemporâneos, através da qual é possível entrever as distintas relações desses indivíduos e agrupações entre si e com atores diversos, como o Estado, a mídia, o mercado, a universidade, etc.

negra” como categoria universal, na emergência do que ela chama de “múltiplas possibilidades de organização política da identidade negra”.

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Figura 2 Cartaz do ato do Oito de Março em São Paulo, 2015

Minutos antes do início do ato, o chão de asfalto da Avenida Paulista servia como espaço para a confecção de cartazes de última hora. As baterias improvisadas ensaiavam seus repertórios e abriam espaço para os diversos grupos se posicionarem no espaço da rua. Esse é o momento em que se colocam em prática diferentes estratégias de visibilização e produção de demandas e enquadramentos. Uma das primeiras manifestações amplificadas foi de Leci Brandão, que discursava do alto de um carro de som. Mulher negra, sambista e deputada estadual filiada ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil), Leci iniciou o ato pedindo a “benção de Deus” para todas as pessoas ali presentes, desejando assim uma boa caminhada. Nesse trio havia faixas de entidades como a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e UJS (União da Juventude Socialista). Leci também discursou em defesa da reforma política, pela paridade de gênero na política, e pelo fim do financiamento privado às campanhas eleitorais. Em meio a esse cenário, observei um grupo de moças e rapazes em clima descontraído passando batom vermelho na boca. O ato me remeteu à Marcha das Vadias, cuja performance corporal centrada no uso da nudez e de roupas “sensuais” e adereços como batom vermelho, busca expressar a afirmação da sexualidade a fim de produzir e comunicar mensagens de protesto contra o estupro (GOMES, 2017).26

26 Esse tipo de enquadramento se distancia de outras mobilizações feministas contra a violência, na medida em que ocorre a predileção ao humor e à provocação frente aos tradicionais repertórios de expressão pública de dor (GOMES, 2017). Essa é uma observação relevante pois aponta para os diferentes repertórios feministas em ação.

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Ao lado, havia também um casal, uma delas vestindo coturno, calça preta e os seios à mostra, com um “x” pintado de preto em cada um, como se estivessem censurados. Elas se beijavam e posavam para fotos. Também caminhavam ao meu lado duas garotas com um visual punk carregando uma bandeira relacionada ao anarcofeminismo, de cores roxa e negra, associando as cores do feminismo e do anarquismo. Não muito longe, do alto de um dos trios elétricos, foi a vez da secretária de mulheres da CUT discursar, a qual pronunciou uma frase que ouviria outras vezes ao longo do ato: “a Petrobrás é nossa!”. Em outro momento, fixada no mesmo carro, avistei uma faixa do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), com dizeres a favor da democracia e da “presidenta”. As mulheres em cima vestiam roxo e faziam fila para discursar no microfone, o que por vezes dificultava a audição das palavras de ordem entoadas pelos grupos organizados no chão. Entre as manifestações terrestres, era comum avistar performances e intervenções. Entre blocos, presenciei um grupo de mulheres com crianças de colo amarradas junto ao corpo, entre as quais havia também uma mulher grávida com frase escrita na barriga pelo direito ao aborto – revelando uma busca por reelaborar as representações correntes sobre maternidade e aborto. O direito ao aborto também foi tema de uma das performances mais notadas naquele ano, protagonizada por três garotas nuas, atadas entre si por longos tecidos manchados de tinta vermelha. À diferença das outras, esta performance causava bastante burburinho, acompanhada sempre de muitos transeuntes, fotógrafos e curiosos. Em certo momento, o som alto que saía das caixas de som do trio foi suficiente para identificar Sharylaine, que rimava no microfone. Integrante da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop, ela é conhecida como a primeira MC mulher de São Paulo. 27 Momentos depois, ouvi uma garota discursando no mesmo carro que se identificou como pertencente à Marcha das Vadias de São Paulo. Mais à frente, cerca de nove garotas do grupo periférico “Levante Mulher” faziam uma performance que durou todo o ato. Elas vestiam saia longa preta e camiseta branca. Cada uma exibia duas placas de papel penduradas no pescoço: quando de frente, líamos, em letras

27 Segundo Rebeca Freire (2011, p. 15), “A mulher ou homem que cantam rap em seus vários estilos compartilham o nome de rapper ou Mc (Mestre de cerimônia).” O rap, por sua vez, é um dos três elementos artísticos do hip hop, ao lado do break (a dança de rua) e do grafite que juntos, constituem o hip hop como um movimento de juventude (idem).

49 maiúsculas, “já fui violentada”; quando de costas, líamos “por isso luto”.28 Aqui o repertório emocional (GOMES, 2017) evoca não a carnavalização do batom vermelho das Vadias, mas os sentimentos de luto, dor e mutilação encarnados na figura da vítima sobrevivente. A dita polifonia dos feminismos, para além de metafórica, se materializava nos diferentes lugares e meios de enunciação, nos volumes e ondas sonoras, por vezes se aproximando de uma cacofonia. Em diversos momentos, os bordões que se ouvia no chão – como os gritos de “se cuida/ se cuida seu machista/ a América Latina vai ser toda feminista” e “direito ao nosso corpo/ legalizar o aborto” – eram interpelados pelos discursos vindos dos microfones amplificados dos carros de som, os quais não raramente pautavam questões diretamente relacionadas ao cenário político partidário em nível federal, agitado após Dilma Rousseff vencer as eleições presidenciais de 2014 e ser reeleita. Na bateria de latas customizadas das mulheres do grupo Levante Popular da Juventude29, por exemplo, dava para ouvir “beijo homem/ beijo mulher/ tenho direito de beijar quem eu quiser”. Como visto, a variedade de temas mobilizadores é acompanhada por diferentes estratégias de visibilização na esfera pública e a produção de distintos símbolos de reconhecimento. Como é de se esperar, tal diversidade – de corpos, bandeiras, vocabulários, pautas e demandas – modulava os usos do espaço público configurando uma disputa na ocupação da rua e do próprio Oito de Março. Embora qualquer pessoa possa se juntar ao ato e levantar seu cartaz, há reuniões que antecedem o evento, nas quais se decide, entre outras coisas, o tema e slogan do ato. O relato abaixo foi publicado semanas antes, em grupo na rede social Facebook composto principalmente por jovens, e ilumina alguns desses conflitos, não só na disputa por pautas mas por horizontalidade no processo decisório, contra o autoritarismo e o silenciamento entre mulheres:

28 Em entrevista para o site Fale sem Medo, uma das coordenadoras do Levante Mulher apresenta o coletivo da seguinte forma: “Somos mulheres que vêm da periferia e dedicamos as nossas ações a mulheres da periferia”. O grupo conta com recurso financeiro do Fundo Elas e do Instituto Avon. Disponível em: . Acesso em 18 fev. 2016. 29 De acordo com Novaes e Alvim (2014), o Levante Popular da Juventude nasceu no contexto do Fórum Social Mundial de 2005, tendo como referências o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), a Via Campesina e a Consulta Popular. A organização se dá por meio de “células” onde os grupos atuam. O Levante permite a presença de militantes que tenham vinculação partidária e as relações com organismos governamentais são tênues, marcadas por movimentos de aproximação e afastamento (idem).

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Gente, eu quero contar o que está acontecendo na organização do ato do 8 de março de São Paulo, que é um verdadeiro absurdo. Geralmente, na organização do 8 de março, diversas entidades se juntam, discutem, veem o que é consenso entre elas e só o que é consenso fica no texto do panfleto, quando uma organização não quer pautar só o que é consenso com as outras entidades normalmente essa organização que rompe com as outras e faz um ato separado. Mas não foi o que aconteceu nesse 8. As organizações que apoiam o governo Dilma estavam defendendo que nesse 8 deveria estar no eixo o apoio a democracia e a reforma política, só que nem todas as organizações lá concordavam com essas pautas. O que aconteceu então, não foi nem só que essas organizações não abriram mão de suas propostas que não eram consenso, mas que ao invés de admitirem que preferiam romper, resolveram tentar expulsar as outras organizações. A penúltima reunião acabou com a mesa (que era formada por essas organizações que apoiam o governo) falando que o eixo era o que elas queriam, que isso não seria rediscutido e quem não concordasse que não viesse para a próxima reunião. Na última reunião, como as organizações que não apoiavam as propostas de democracia e reforma política não tinham concordado com a mesa foram novamente na reunião e o que aconteceu foi ainda pior. Na última reunião mulheres de organizações que apoiam o PT interrompiam falas, vaiavam gritavam e silenciavam mulheres que não defendiam o que elas acreditavam. Uma mulher do PT chegou até a falar que o ato era delas e que era para as pessoas que não concordavam sair. Enfim, é muito triste ver mulheres agindo de forma autoritária, silenciando outras mulheres e defendendo que agora é prioridade do movimento feminista defender reforma política e democracia.

Após o resultado das eleições presidenciais realizadas em outubro de 2014 que elegeu Dilma Rousseff (PT) pela segunda vez consecutiva, teve lugar o que algumas autoras têm descrito como polarização política30 da sociedade brasileira, notável principalmente nas redes sociais e em manifestações de rua em cidades como São Paulo. Em especial, o mês de março de 2015 assistiu às primeiras manifestações massivas contra Rousseff em grandes capitais do país, nas quais ganhou destaque parte dos atores que, com sucesso, pressionariam pela sua saída do cargo em 2016.31 Rousseff foi a primeira mulher eleita presidenta na história do Brasil. Como lembra Beatriz Sanches (2016, p. 43), “antes mesmo do processo de impeachment da presidenta Dilma, diversos estereótipos de gênero já haviam sido mobilizados para justificar a sua saída”, tais como “a palavra

30 Para Pablo Ortellado (2017, p. 37), a polarização da sociedade civil brasileira começou a tomar forma ainda em 2014 quando teve início uma “construção discursiva de um movimento que graduamente fundiu o sentimento anticorrupção com o sentimento antipetista”, acompanhada, no outro lado do espectro politico, por uma movimentação “que buscou resgatar a hegemonia do PT sobre as organizações progressistas da sociedade civil brasileira” – que o autor chama de um “anti-antipetismo”. Contudo, Ortellado reconhece a presença de um terceiro circuito de mobilização, autônomo e majoritariamente jovem, “desvinculado das forças da grande política” e orientado a demandas como “o fim das mortes nas periferias, a redução das tarifas, a legalização da maconha e a defesa das escolas públicas”. 31 Acerca das mobilizações de massa em rua e praças de grandes capitais nos anos de 2014 e 2015, Bringel e Pleyers argumentam que: “Embora boa parte destas ações não se dirigisse ao campo político-institucional e político-eleitoral, que possui lógicas e temporalidade distintas do campo da mobilização social, o cenário pré-eleitoral de meados de 2014 rumo à contenda presidencial acabou abrindo um novo movimento de acirramento das polarizações que absorveu boa parte dos atores sociais e políticos ao longo de 2015.” (2015, p. 9).

51 de ordem ‘Tchau, querida’ utilizada pela oposição ao governo e as capas de revistas que apresentam Dilma como uma pessoa descontrolada e incapaz de governar”. Ademais, em fevereiro de 2015, o deputado evangélico Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi eleito presidente da Câmara dos Deputados em primeiro turno, derrotando seu principal oponente, o candidato do PT (Partido dos Trabalhadores) Arlindo Chinaglia. Desde então o deputado se colocou abertamente contrário à votação no plenário de temas como a legalização do aborto, a união civil de pessoas do mesmo sexo e a regulação da mídia. Em discussão sobre reforma política, defendeu o financiamento privado a campanhas eleitorais. Nessa conjuntura de recrudescimento da oposição ao governo Dilma – no dia 08 de março aconteceu o primeiro “Panelaço” –, e de defesa de pautas conservadoras, como a redução da maioridade penal no país, veio a público, no dia 19 de fevereiro de 2015, a prisão de jovem de 19 anos que passou a noite algemada em hospital na cidade de São Bernardo (SP) após buscar auxílio por ter provocado um aborto32, acontecimento que inflou a pauta pelo direito à interrupção da gravidez em alguns setores do movimento presentes no ato do Dia Internacional da Mulher. Conforme observei, nas palavras de ordem saídas dos megafones, batucadas, frases inscritas em cartazes e nos corpos no Oito de março de 2015 figuravam com força os temas do aborto e da violência. Durante todo o evento, que saiu da Avenida Paulista e encerrou na Praça Roosevelt, garotas faziam intervenção nas paredes e postes com tinta spray, utilizando molde vazado com slogans e imagens pelo direito ao aborto e pelo fim da violência contra as mulheres. Frases livres foram inscritas nos muros, como “Fora Cunha”. Também passei por performances que tematizavam o aborto e a violência sexual, igualmente protagonizadas por garotas, como a do coletivo Levante Mulher, citada acima. Contudo, o que se ouvia vindo dos microfones nos carros de som da marcha – com exceção do jogral realizado ao final – dizia respeito sobretudo à defesa da reforma política, entendida principalmente como paridade de gênero e fim do financiamento privado em campanhas eleitorais, e da “democracia”. Também houve discursos de defesa da Petrobrás, de crítica à crise hídrica e ao “desgoverno tucano”, proferidos por representantes de setoriais de mulheres de partidos políticos.

32 Disponível em: . Acesso em 18 de março de 2015.

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Enquanto isso, no chão, um grupo de jovens que vestiam camiseta da ANEL/Conlutas/PSTU, com tambores, entoavam palavras de ordem entre as falas finais das representantes: “ô Dilma/ que papelão/ essa menina favorece o patrão”. Em parte, o cenário parece corroborar com a análise de Aguião, Vianna e Gutierres (2014, p. 232) acerca da relação recente do movimento feminista com a esfera governamental no país. Para as autoras, se o tema dos direitos sexuais e reprodutivos permanece sendo protelado no âmbito das políticas públicas – nas palavras de uma militante por elas entrevistada, essas questões estariam sendo “rifadas” em prol da governabilidade –, ele tem encontrado canais importantes de elaboração e veiculação por meio de coletivos feministas jovens e de feministas autônomas, que retomam “estratégias caras ao movimento feminista de ocupação das ruas e de ‘choque moral”.33

1.2.1 Sapatonas autônomas

Posicionadas no fundo do ato e autonomeadas lésbicas radicais autônomas, estavam interlocutoras que conheci durante o trabalho de campo realizado entre os anos de 2012 e 2013, ainda no mestrado. Em conversa informal prévia, fui informada de que elas então constituíam um coletivo e que estariam vendendo lanche vegano ao longo do trajeto daquele Oito de Março. Elas estavam presentes vestidas de preto, com máscara e chapéu de bruxa confeccionados em papel. Seguravam uma faixa de tecido preto com letras brancas grafadas manualmente onde se lia “lésbicas radicais contra o capital e o Estado racista e patriarcal”. Em bloco com cerca de vinte, entre elas algumas que se identificam como negras, entoavam gritos como "Vem, caminhão! Vem para a revolução!", “Sapatonas contra o capital! Sapatonas contra o racismo, contra o terrorismo neoliberal!”, "Se toda mulher virasse sapatão, seria a revolução, seria a revolução!", "Basta já de repressão! Pela santa inquisição! Botar fogo nas igrejas, libertar as sapatão!". Nesse momento eu soube que não deu tempo de preparar o lanche, como planejavam. Se apropriando de categorias

33 As autoras realizaram a pesquisa junto a interlocutoras que integram entidades que historicamente participam do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), o qual está inserido entre os trinta e quatro Conselhos Nacionais que atuam na formulação e avaliação das políticas públicas no país (GUTIERRES, VIANNA, AGUIÃO, 2014).

53 acusatórias como a bruxa, o bloco constituía uma das poucas menções ao termo lésbica que observei no ato.34 Após algumas horas desde o início da caminhada, uma das participantes do bloco lésbico me relatou que um homem pertencente a grupo de luta pela moradia se dirigiu até elas com a intenção de retirar a faixa de suas mãos, argumentando que, por usarem máscara e “esconderem” o rosto, elas estariam prejudicando o ato. Em relato publicado online, elas asseveram que foram ameaçadas de ser entregues à polícia por motivos de “vandalismo” e que mesmo as demais mulheres e feministas ao redor foram omissas frente à agressão da qual foram vítimas. A acusação de vandalismo reverbera um léxico polarizado que ganhou força com os protestos de 2013 – e posteriormente, com as manifestações contra os megaeventos em 2014 – baseado na divisão entre categorias como “vândalos” e “pacíficos”, “fascistas” e “progressistas”, a partir das quais colocava-se em questão a legitimidade e inteligibilidade de determinadas práticas enquanto estratégia política (GOMES, 2018). Segundo o relato, a omissão das mulheres ao redor coadunaria ao fato de que as pautas proferidas nos microfones dos carros de som traduziriam o “desprezo do feminismo hegemônico à feministas autônomas, separatistas sapatões”. A frase é parte de texto publicado na rede social Facebook, sob o título de “relato de violência lesbofóbica e criminalização dos movimentos sociais35 dentro do ato do 8 de março de SP”. A nota tem tom dramático e formato de denúncia, expondo uma série de categorias acusatórias que buscam traçar fronteiras e eixos de diferenciação e de disputa em termos de nós versus outras. No texto escrito pelas sapatões autônomas, os microfones são descritos como “objetos que eram exclusividade das pelegas participadoras das reuniões [de organização do ato] onde quem discordasse era expulsa”.36 A crítica a respeito do desenrolar do ato é articulada em termos de

34 Durante o restante do mês de março, acompanhando eventos e ativistas, encontrei algumas de suas integrantes em dois outros momentos do trabalho de campo: no evento “Rolê das Minas”, realizado no bairro paulistano periférico de Campo Limpo e no qual estavam vendendo lanche vegano, e no II Festival Feminista Autônomo, em que facilitaram uma oficina sobre lesbianidade feminista, também na cidade de São Paulo. Essas são algumas referências que compõem o circuito de eventos embutido na própria noção de rolê. Como discutirei mais adiante, essa circulação passa tanto por datas consagradas na agenda feminista como um todo, como o Oito de Março, como pelos eventos internos à rede. 35 O uso do termo “criminalização dos movimentos sociais” ganhou mais peso após 2013, com o instrumento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e a Lei 12.850/2013 (Organizações Criminosas). 36 Disponível em: . Acesso em 18 de março 2015.

54 autonomia, segurança e questionamento da sororidade, voltando a denúncia de violência também às mulheres:

[...] Logo atrás das sapatões autônomas estavam os militantes da FLM [Frente de Luta por Moradia], homens e mulheres. Logo de início no ato, assim que as sapatonas entraram na via com a faixa sobre lesbianidade, um casal de namoradas do grupo de lésbicas autônomas que estavam de mãos dadas foram agredidas sem nenhum motivo por um homem que compunha o FLM. Ele empurrou brutalmente as duas companheiras para trás, socando contra o peito delas, mandando-as sair do ato, num ato nitidamente lesbofóbico pela tentativa de interromper a expressão de afeto das duas. O esquerdomacho foi repreendido pelo seu colega de militância, nisso o agressor disse que não se importava que fossem mulheres, "ia descer a porrada de qualquer jeito". Quando o agressor notou que as pessoas começaram a repreendê-lo mais, ele usou a intervenção artística - que consistia em estarem apresentadas com máscaras e chapéus de bruxa - como desculpa para bater no casal de ativistas lésbicas, tentando mobilizar @s demais militantes contra nós. A intervenção em questão consistia na vestimenta que trazíamos de máscaras e chapéus de bruxa desenhadas com papel, remetendo à história das mulheres resistentes e da autonomia e rebeldia feminista. Também consistia em uma ação política legítima de auto-defesa feminista, pois há um motivo muito razoável para cobrirmos nossos rostos: a lesbofobia e o estado de guerra contra as mulheres e lésbicas no Patriarcado. Optamos pelas máscaras como uma tática de segurança, seja pela violência, seja porque entre nós haviam lésbicas em várias profissões e ambientes de trabalho lesbofóbicos, sendo que o panfleto que levávamos se tratava justamente de como a sobrevivência de lésbicas se encontra ameaçada pela lesbofobia e discriminação. [...] Além disso, gostaríamos de lembrar da perseguição e hostilidade contra idéias radicais que existe na nossa sociedade que se encontra num processo de fascistização cada vez maior, e por outro lado, dentro do próprio movimento feminista que vem se mostrando extremamente hostil às lésbicas [...] Assim, as lésbicas tem que se defender de violências vindas de dentro e fora do movimento igualmente. [...] As agressões e perseguição pararam somente com ação (eficaz) da comissão de segurança da marcha do 8 de março, composta por coincidência por algumas sapatonas conhecidas, que buscamos quando esgotadas as tentativas nossas de diálogo e resistência ao assédio lesbofóbico e coxinha. Elas falaram para que mantivéssemos nossa intervenção e levaram o agressor até o metrô o expulsando da marcha para ter certeza de não comprometer a segurança. [...] Porém queremos deixar a reflexão de que em nenhum momento qualquer mulher à nossa volta, além da comissão de segurança, teve a decência de se sororizar e não se mostrar indiferente à agressão que estávamos sofrendo, e de ajudar a compor resistência, nós tivemos que nos proteger sozinhas como sempre. Os homens estavam fisicamente nos ameaçando e entrando no meio da gente. Pedimos ajuda às mulheres em volta, as agredidas gritaram que haviam sofrido agressão, nenhuma se comoveu e não houve o princípio feminista "Se agridem a uma - respondamos todas", mesmo que as militantes à nossa volta segurassem faixas sobre combate à violência contra mulher” (grifos das autoras). 37

37 Disponível em: . Acesso em 18 março 2015.

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De um lado ativistas, de outro militantes. De um lado autônomas, de outro pelegas e hegemônicas. Produto de negociações constantes e fronteiras permeáveis38, tais polarizações são necessárias à forma-relato do discurso que busca “denunciar”, e que ao mesmo tempo que atualizam debates antigos do campo feminista (institucionais versus autônomas) em outros termos, produzem também novas oposições. Também compõem o léxico do texto: agressor, sororidade, esquerdo-macho, auto-defesa feminista, lesbofobia, patriarcado, bruxa e as variantes sapatão, sapatonas, lésbicas, lesbianidade, caminhão, bastante recorrentes no rolê feminista. Há cerca de dez anos atrás, o termo dyke, que na língua inglesa remete a algo como sapatão, era notadamente utilizado na cena de rock feminista paulistana. Nesse período, Regina Facchini (2008) investigou os usos e sentidos atribuídos à categoria naquela rede jovem estruturada em torno da música e do feminismo, na qual as autonomeadas dykes buscavam inverter “o sentido de uma das mais poderosas categorias de acusação contra mulheres que se relacionam afetivo- sexualmente com outras mulheres” (p. 153). À época, a autora notou que o uso do termo parecia “não pressupor uma correlação necessária entre práticas afetivo-sexuais e identidades” (p. 158), ou seja: “ter experiências sexuais com mulheres não faz de alguém uma dyke, nem faz com que quem experimenta ou mesmo tem relações casuais com outra mulher deixe de ser considerada hétero” (p. 159). Assim como parece acontecer com o uso de sapatão como identidade política, entre as minas do rock, o uso de dyke estava “associado a comportamentos e/ou aparências tidas convencionalmente como ‘masculinas” (p. 161), e a “manter uma postura de enfrentamento com os homens, quando se acredita que estes estejam invadindo seu espaço ou cerceando, de alguma forma, a sua expressão” (p. 161). O uso do termo era parte de um processo de construção da subjetividade por meio do estilo. Naquele contexto, o termo sapatão começava a ser utilizado por algumas garotas para fazer menção a si mesmas e às outras. Há hoje uma ampliação do uso de termos como sapa, sapatão, sapatonas, caminhão, caminhoneiras pelas interlocutoras da minha pesquisa que é, de certa forma, tributário da postura de visibilidade e contestação das minas do rock tal como apontado por Facchini (2008) em etnografia realizada entre 2004 e 2007 na cidade de São Paulo.

38 Voltarei a esse argumento no próximo capítulo, ao tratar da presença da deputada Maria do Rosário (PT) e de militantes do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) na Feira do Livro Feminista e Anarquista de Porto Alegre – o que evidencia as gradações dentro de um contínuo cívico/não-cívico (ALVAREZ, et al, 2018).

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Ademais, o relato acima evoca situação descrita por Facchini, que observou o estranhamento que a utilização da palavra “sapatão” gerava em situações nas quais havia a presença de grupo mais diversificado de mulheres. A autora conta que na ocasião da VI Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, a verbalização do termo atraía “olhares entre desconfiados e assustados das mulheres mais velhas que compareciam à Caminhada” (FACCHINI, 2008, p. 159). O diálogo com a pesquisa de Facchini favorece não só investigar a relação complexa entre práticas e identidades, como também pensar o que significa se apresentar como sapatão, sem tomar analiticamente a categoria como em oposição ao feminismo heterossexual ou a feministas heterossexuais, mas, antes, buscar compreender as formas de agenciamento engendrada pelos termos.39 O uso positivado de categorias acusatórias – que modifica as posições de enunciação – está presente com força também em outras mobilizações feministas autônomas, como é o caso da Marcha das Vadias (MdV), cuja primeira edição no país aconteceu no ano de 2011. Em pesquisa sobre a versão carioca da Marcha, Gomes (2018, p. 66) traz parte das críticas das vadias a um modo organizativo visto como autoritário, e que informa também sobre os pressupostos do conflito acima exposto entre as sapatonas autônomas e as ditas pelegas: As passeatas anuais do 8 de março, em comemoração ao dia Internacional da Mulher, são sempre citadas pelas vadias como o “outro” da Marcha, um modelo de tudo o que elas não gostariam de ser, fazer ou participar: a “invasão” das bandeiras dos partidos, que “sequestram” as pautas feministas; os grandes carros de som, que, comandados por sindicalistas, hierarquizam e centralizam a passeata; a eterna “briga pelo microfone” entre participantes; as “falas” repetitivas e previsíveis, que em vez de atrair, afastariam o público; a “falta de criatividade” dos repertórios de ação, sempre muito controlados; os mesmos trajetos pelo centro da cidade; a insistência, enfim, num formato de expressão e organização política que as vadias consideram pouco criativo, ineficaz e autoritário.

Esse formato de expressão e organização política pejorativamente associado às feministas pelegas seria também aquele que reserva certo espaço de atuação (ou de aliança) aos homens cis, e que sustentaria uma visão estreita acerca da “violência contra a mulher”. O tipo de crítica exposto acima faz parte de reconfigurações não só do campo feminista. No movimento LGBT, especificamente a partir do “ciberativismo trans”, Mário Carvalho discute a emergência de coletivos avessos ao diálogo com o Estado, com práticas horizontais, e repertórios

39 Como apontarei posteriormente, cabe notar que sapatão como identidade política traz também implícito o entendimento da heterossexualidade como regime de poder desvantajoso às mulheres.

57 gerados na esfera discursiva da internet, frequentemente envolvidos em conflitos geracionais cujas acusações giram em torno de velhas caretas e jovens irresponsáveis (CARVALHO, 2016; CARVALHO, CARRARA, 2015); já o trabalho de Stephanie Lima (2017, 2018) acerca do ENUDS (Encontro Universitário de Diversidade Sexual e de Gênero) mostra a valorização da formação política pela experiência e vivência dos encontros, cujos coletivos buscam se diferenciar do movimento estudantil e do movimento LGBT, vistos, no primeiro caso, como institucionalizado e dominado por disputas partidárias, e, no segundo, como cooptado pelo diálogo com o Estado. No âmbito do movimento de estudantes secundaristas, Paula Alegria (2018) aponta um fazer politico influenciado pelas Jornadas de Junho, que reivindica a autonomia e horizontalidade e reserva lugar de destaque às experimentações de gênero e sexualidade.

1.2.2 “Sem partido e sem marido!”

Já no ano seguinte, 2016, o ato de rua do Oito de Março em São Paulo não fugiu à regra em relação ao seu caráter conflitivo. Materializando ainda mais crucialmente a crise político- institucional do país, o ato rachou. Isto é, ao sair do local da concentração (mais uma vez na Avenida Paulista), o ato foi dividido em dois, que seguiram então por trajetos opostos. Cheguei com atraso e fui surpreendida pelo racha que já se configurava. Segundo informantes – estupefatas com o acontecimento – a contenda teve seu estopim quando uma integrante do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) subiu ao caminhão de som e bradou pela derrubada de todos os políticos (“fora todos”), incluindo o governo do PT (“fora Dilma”), declaração que foi seguida por empurra-empurra, vaias e safanões. Ela teria criticado o governo Dilma, que ao seu ver, não representaria as “mulheres trabalhadoras”. Assim, setores dos partidos PSOL, PSTU, PCB e aliadas/os seguiram no sentido oposto da Avenida Paulista. A seção do ato que acompanhei desceu a Rua Augusta, e levava à frente uma grande faixa onde se lia “somos todas Dilma”, aos gritos de “não vai ter golpe!”. A maior parte dos cartazes fazia menção à defesa da democracia, vista como ameaçada frente a iminência de abertura do processo de impeachment de Dilma no congresso nacional, a qual viria a se concretizar em abril de 2016. Estavam presentes integrantes do Levante Popular da Juventude, Marcha Mundial das Mulheres, Mulheres do PT (Partido dos Trabalhadores), CUT (Central Única dos Trabalhadores),

58 diversos sindicatos, grupos universitários, mulheres de organizações sem-teto como a já citada FLM, entre outros coletivos e indivíduos avulsos/as.

Figura 1 Faixa que abria o ato, ao lado da qual pode-se ver a bandeira da FLM. Fonte: Mídia Ninja, .

Mais uma vez no fundo do ato, avistei algumas das minhas interlocutoras em um grupo segurando faixa em tecido preto onde se lia, escrito à mão, “mulheres LBT por autonomia e visibilidade”. O acrônimo “LBT” fazia referência a lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis40 – sendo que a presença de mulheres trans é usualmente minoritária nessa rede. Atrás da faixa havia aproximadamente quarenta mulheres, que pareciam em sua maioria ter cerca de vinte anos de idade. Algumas usavam lenços que cobriam parte do rosto e lembravam a apresentação corporal dos praticantes da tática Black Bloc. Permaneceram todo o trajeto na retaguarda do ato – o que, nas palavras de uma delas, era um meio de assegurar a autonomia do bloco. É interessante notar que a faixa fala em visibilidade, ao passo que a localização no fundo

40 Retirado da descrição do evento do bloco no site Facebook. Disponível em: . Acesso em 10 de março 2016.

59 da passeata é sinônimo de autonomia, o que provavelmente está relacionado às bandeiras de partidos politicos e a faixa carregadas na frente do ato – um espaço costumeiramente lócus de muita disputa – em apoio à Dilma Rousseff. “Ei, sapatão!” era um modo como se dirigiam umas às outras. Um dos gritos mais entoados dizia “êta! êta, êta, êta! O Eduardo Cunha quer mandar em minha boceta!”. Durante o trajeto que desceu a rua Augusta, algumas faziam topless, se beijavam, e exibiam o dedo médio para fotógrafos da imprensa. Gritavam “não acabou/ tem que acabar/ eu quero o fim da polícia militar”. Elas pulavam, enunciavam palavras de ordem, pareciam se divertir. Uma delas vestia a camiseta da Marcha das Mulheres Negras.41 Várias tinham o cabelo colorido ou curto, com corte assimétrico nas laterais. Na descida da Rua Augusta, ao passar em frente a uma boate na qual, segundo denúncia nas redes sociais, teria acontecido um estupro perpetrado por um funcionário, o bloco parou, e algumas das integrantes picharam a fachada do estabelecimento em sinal de repúdio e denúncia – 42 prática ritual conhecida como escracho, não raramente acompanhada de intervenção policial. Já no final do percurso, uma das palavras de ordem mais repetida era “sem partido e sem marido!”, entoada de modo cantado em looping, isto é, em contínua repetição ritmada. Enquanto isso acontecia, presenciei algumas mulheres mais velhas gritarem repetidamente, em um misto de resposta e deboche, a frase “com partido e com marido!”, a poucos metros de distância do bloco LBT. Mais numerosas do que as minhas interlocutoras, elas aparentavam ter entre quarenta e cinquenta anos de idade. Presentes em todo Oito de Março exibindo as mesmas insígnias, vestiam

41 Com o slogan “Contra o racismo, a violência e pelo bem viver” a Marcha das Mulheres Negras aconteceu em 18 de novembro de 2015, levando, de acordo com a Articulação das Mulheres Negras Brasileiras, 50 mil mulheres negras às ruas de Brasília (DF), provindas de diversas regiões e estados do país. Disponível em: . Acesso em 30 out. 2017. 42 Por exemplo, na Marcha das Vadias de São Paulo no ano de 2014, um transeunte agrediu uma das manifestantes enquanto o ato descia a Rua Augusta. Então formou-se uma comissão que, sendo responsável pelo escracho, tentou entrar no estabelecimento em que o homem havia se “escondido”. Encontrando resistência por parte do segurança do local, teve início uma série de ações como pichações, entulhos foram lançados na fachada e palavras de ordem entoadas. A resposta da polícia veio na forma de bombas de gás lacrimogênio e intimidação física (Diário de Campo, 2014). Como discutirei no próximo capítulo, esse tipo de ação prefigurativa – que busca antecipar a sociedade vindoura – carrega efeitos excludentes, especialmente em termos raciais, considerando o racismo estrutural que recai sobre o sistema brasileiro judicial e de segurança pública. Essa questão é discutida também por outros autores, como Francis Dupuis-Déri (2014) em sua pesquisa sobre a tática Black Bloc.

60 todas a mesma camiseta de cor lilás e carregavam bandeiras padronizadas em tecido igualmente lilás onde se lia “Mulheres do PT” junto à frase “Agora sou estrela”. Completados dois terços do percurso estipulado para o ato, o bloco LBT se desvinculou do restante da caminhada e finalizou seu trajeto na Praça Roosevelt, onde sentaram em círculo no chão e fizeram uma breve assembleia. Foi sugerido construir um documento, uma espécie de carta de repúdio ao que aconteceu na concentração na Avenida Paulista; também criticaram a estratégia política de partidos e sindicatos levarem grande número de pessoas ao ato com o intuito de “fazer volume”, e foram recolhidos e-mails para compor uma lista de contatos. Por seu turno, as demais manifestantes do Oito de Março seguiram para a Praça da República, se dirigindo para concluir a passeata em frente ao prédio da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (então governado por Geraldo Alckmin, do PSDB). Fornecendo uma pista relevante para entender a autonomia, a frase “Sem partido e sem marido” merece atenção. Por um lado, ela revela um feminismo que reserva pouco ou nenhum espaço de atuação para homens; por outro, expressa uma valoração diferenciada de certos formatos participativos frente às demais atrizes do Oito de Março, especialmente aquelas que carregavam signos de pertencimento partidário num contexto de crise político-institucional e de crescente descrença social em relação aos partidos políticos. Colaborou para esse cenário o fato de que, entre o segundo semestre de 2013 e o ano de 2014, Dilma Rousseff deu aval ao emprego das Forças Armadas para reprimir manifestações durante a Copa das Confederações, jogos da Copa do Mundo e Olimpíadas. E em 2016, a Lei anti- terrorismo, que começou a tramitar no senado em 2015, foi sancionada pela ex-presidenta – a qual, na avaliação de diversos movimentos sociais, como o MST, dá brecha para a criminalização de manifestantes. Não obstante, como lembrado por Alvarez (2014, p. 27-28), o Partido dos Trabalhadores (PT) foi um ator fundamental no campo feminista nas décadas de 1980 e 1990, embora raramente reconhecido como tal, junto aos movimentos populares que então constituíam a sua base: Nas minhas entrevistas e observações de campo ficou nítido que as trajetórias políticas de muitas ativistas que se identificavam com o feminismo tinham sido profundamente marcadas pela sua passagem por ou sua continuada participação em diversas tendências desse partido, da CUT e outros espaços sindicais; no MST e outros movimentos rurais; em diversos movimentos populares ligados à Igreja, a exemplo das minhas entrevistadas declaradamente feministas que faziam parte das Promotoras Legais Populares e diversos setores dos movimentos estudantis e de mulheres rurais e urbanos em várias regiões do Brasil [...]. Algumas Comissões da Mulher, Assessorias, Coordenadorias, e outras agrupações feministas dentro das administrações do próprio partido, as suas

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administrações municipais e estaduais, e suas tendências (como no caso das mulheres da Democracia Socialista) formaram importantes nós articuladores e produtores e disseminadores de conhecimentos e discursos que impulsionaram a ampliação e pluralização do campo feminista. Assim estimularam, mesmo que as vezes inadvertidamente, a proliferação de feminismos “no plural” entre mulheres populares, sindicalistas, e militantes do movimento estudantil, por exemplo.

Os significados da interação estabelecida pelo Bloco LBT e as Mulheres do PT pedem dois tipos de considerações a serem desenvolvidas abaixo: 1) os limites da chamada Civil Society Agenda (ALVAREZ et al, 2017) e a descrença nas vias institucionais de participação; 2) a mobilização de termos como baderna e vandalismo por parte de atoras/es externas para enquadrar estratégias ativistas consideradas apolíticas ou politicamente ineficientes.

1.2.2.1 Civil society agenda: limites e transbordamentos

Após o fim dos regimes ditatoriais na América Latina, entre as décadas de 1990 e 2000 a sociedade civil passou a ser entendida como um agente privilegiado na promoção do desenvolvimento. Contribuiu para esse panorama o papel exercido por agências de financiamento, instituições internacionais e organizações intragovernamentais. A linguagem da participação cívica foi frequentemente promovida por meio de intermediação de ONGs e organizações da sociedade civil (ALVAREZ et al, 2017). Autoras como Thayer (2017) sublinham os ganhos políticos desse processo de incorporação social e governamental de pautas feministas, mas também chamam atenção para a incursão de discursos de mercado dentro de um ideal desenvolvimentista, que reestruturou as relações do campo feminista, favorecendo relações de competição, a valorização de resultados quantitativos às expensas da dimensão qualitativa, terminando por reforçar divisões de classe e a profissionalização de militantes. A partir da virada deste século, os ativismos na região têm transbordado cada vez mais os limites da agenda da chamada sociedade civil (THAYER, RUBIN, 2017; ALVAREZ, 2017, 2014a). No campo feminista, a contestação aos canais institucionais prescritos de participação – em direção à “sociedade não-cívica” – está também relacionada à retirada de investimentos na América Latina por parte de agências europeias e estadunidenses da cooperação internacional, que, dado o crescimento econômico da região, tem se deslocado para o chamado Sul Global. Isso tem

62 por efeito a redução significativa no orçamento de ONGs e organizações mais estruturadas, configurando o que pode ser entendido como um “desincentivo material aos formatos mais ‘institucionalizados’ típicos do momento anterior” (ALVAREZ, 2014a, p. 36). Ademais, com a emergência da “Maré Rosa”43 na região, o período também assistiu à incorporação de atoras/es de movimentos sociais e ONGs em um amplo leque de instâncias governamentais, como secretarias e ministérios, o que reatualizou velhas questões em torno da autonomia versus institucionalização ou cooptação (THAYER, 2017; ALVAREZ, 2014a). Essas reconfigurações recentes do campo feminista não estão à parte de mudanças mais amplas e em outros campos. Uma das suas faces reside no maior descentramento dos sujeitos e das organizações: isto é, além das mobilizações coletivas passarem a ser menos controladas por organizações sociais e políticas, os principais atores que até recentemente detinham quase com exclusividade o papel de formação e socialização política no Brasil, como sindicatos e partidos e determinados movimentos sociais, como o estudantil, estão sendo deslocados como instâncias que gozam de centralidade na socialização militante (BRINGEL, PLEYERS, 2015).44 Há de se considerar também as possibilidades de engajamento viabilizadas pelas interações mediadas por computadores e aparelhos móveis, em que as informações circulam com muita rapidez. Nesse sentido, é compreensível a apreensão com que certas feministas mais velhas veem o futuro, como pontuei em relação ao uso do termo jurássica e como é formulado, por exemplo, por Lia Zanotta Machado (2016, s/p): Estarão as novas feministas tão distantes do rumo forte que as feministas vieram a incidir buscando não só a revolução das subjetividades, mas a reforma/revolução política de legitimar os direitos e as oportunidades iguais a partir das políticas públicas? Distantes ou próximas, mas sabedoras dos caminhos construídos e dos caminhos a construir?

Bringel e Pleyers (2015) pontuam também que as mobilizações de 2013 deram visibilidade a uma nova geração de militantes. Geração essa que nasceu e/ou cresceu durante período pós- democratização e que, portanto, não possui as mesmas experiências, visões de mundo e relações com o campo popular-democrático das décadas de 1970 e 1980. Entretanto, a reconfiguração não significa a substituição dos sujeitos prévios, nem das matrizes sócio-políticas e ideológicas orientadas pelas organizações tradicionais e pelo Estado. O que há é a coexistência (ao invés de

43 O termo se refere à ascensão de governos de centro-esquerda em países da América Latina, convencionalmente tomando como marco a eleição de Hugo Chaves na Venezuela em 1999 (THAYER, 2017; THAYER, RUBIN, 2017). 44 Para o caso do movimento estudantil, ver Alonso e Mische (2015).

63 substituição), a qual é acompanhada de possibilidades diversas de cooperação e de conflito – como busquei apontar nas descrições do ato do Oito de Março e demais eventos. É oportuno mencionar também que o longo período de gestões petistas assistiu a uma ênfase crescente das oposições na corrupção, a fim de minar a confiança no governo.45 Como resultado, além da crise política que desembocou no impeachment de Dilma Rousseff, fomentou- se certa desilusão e descrédito em relação à política institucional. Essa desconfiança diz respeito tanto às eleições quanto aos chamados espaços de controle social (FACCHINI, RODRIGUES, 2017). Sendo assim, o apartidarismo e certa descrença no sistema político institucional figuram também – embora com sentidos distintos – entre atores cujo ideário tem caráter conservador e antidemocrático (BRINGEL, PLEYERS, 2015).46 Essa discussão permite apreender os sentidos imbuídos na atitude daquelas mulheres mais velhas em proclamar que estão “com partido” (e “com marido”).

1.2.2.2 Baderna e vandalismo

Nesta seção, trato da mobilização de termos como vandalismo e baderna por parte de atores/as externas para classificar práticas do rolê feminista assim consideradas apolíticas ou politicamente ineficientes. Carla Gomes (2017) traz contribuições para esse debate ao tratar das controvérsias no campo feminista em torno da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, enquanto coletivo não institucionalizado que também se ancora nos ideais de autonomia e horizontalidade. Ela conta que o fato de o corpo ser elemento chave da performance provocadora do coletivo angaria tanto reações apaixonadas quanto de rejeição – seja por parte da mídia, ou por parte de setores dos movimentos sociais e feminista, os quais apresentam objeções em relação ao nome do protesto, ao uso da nudez e duvidam da sua capacidade de representação política.

45 Como tem colocado Esther Solano, essa ênfase de setores conservadores vê a corrupção como um problema moral e de caráter. 46 Vide, por exemplo, as agressões físicas a militantes que portavam bandeiras de partidos políticos de esquerda durante manifestações de rua nas chamadas Jornadas de Junho, e a predileção pelas cores da bandeira do Brasil em manifestações anti-Dilma nos últimos anos.

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Dado o de uso de repertórios emocionais caracterizados pela jocosidade, na relação intergeracional é recorrente a acusação por parte de pesquisadoras e ativistas mais velhas de que as vadias são apolíticas, ineficientes ou antifeministas (GOMES, 2017). De um lado, as ativistas pesquisadas por Gomes (2017) rejeitam uma militância vista como hierárquica e institucionalizada atribuída, de forma mais ou menos generalizada, às feministas da geração anterior, pertencentes a organizações, partidos e sindicatos. Por sua vez, muitas dessas feministas criticam grupos como a MdV em função do que consideram como uma incapacidade de incidência nas políticas públicas e um uso “contraprodutivo” do corpo e da sexualidade. Como mencionado acima, a estratégia das interlocutoras dessa pesquisa está baseada no uso da provocação, deboche e ironia. A inversão do lugar de enunciação de categorias acusatórias, como sapatão e bruxa, é parte desse repertório, o qual diversas vezes é lido por atoras/es externos como bagunça, arruaça ou vandalismo47 - como visto na cena do bloco das sapatonas autônomas e que pode estar também entre as motivações da resposta das Mulheres do PT. Por fim, a frase proferida pelo bloco LBT no Oito de Março consiste em uma provável referência e reelaboração do lema do feminismo anarquista do final do século XIX, “nem Deus, nem patrão, nem marido”. Na historiografia, a frase é atribuída ao jornal “La Voz de la Mujer”, publicado na entre os anos de 1896 e 1897, tendo como redatoras mulheres imigrantes de origem europeia (MOLYNEUX, 1986).48 Na Argentina, as flutuações do anarquismo seguiam um modelo similar ao internacional: na década de 1890 o anarquismo se encontrava sob influência do Comunismo Anarquista propagado por Peter Kropotkin e Elisee Reclus (na Europa), e Emma Goldman e Alexander

47 MacRae (1982) aborda as relações de conflito entre o que chama de “os respeitáveis militantes” da esquerda e as “bichas loucas” no contexto da imprensa alternativa brasileira da década de 1980. A atuação do tipo “fechativa” dos últimos, baseada no poder de ridicularização, no humor iconoclasta, no uso da palavra “bixa” e na adoção de atitudes de autoafirmação era objeto de críticas por parte de “militantes mais sérios”, para os quais tais estratégias somente confirmariam preconceitos, reforçando estereótipos do homossexual como “palhaço” e “ridículo”. Por outro lado, o ator discute como a desmunhecação e o escândalo colocavam em questão a própria ideia do “normal”, assim como a noção de que haveria um substrato de naturalidade subjacente a padrões de masculinidade e feminilidade – dois pilares da militância homossexual de período anterior. 48 A edição, impressão e distribuição de panfletos, jornais e folhetos eram algumas das formas principais de atividade anarquista nas décadas 1880 e 1890 naquele país. “La Voz de la Mujer” era um desses jornais pequenos, semiclandestinos e de distribuição irregular. Durou um ano e foram impressas entre mil e duas mil cópias de cada edição – segundo Molyneux (1986), um número respeitável para uma publicação anarquista daquele momento. Ele surgiu entre mulheres trabalhadoras dos centros urbanos, especialmente entre as comunidades de imigrantes italiana e espanhola que se identificavam como pertencentes à classe trabalhadora. De acordo com o censo de 1898, as mulheres imigrantes ocupavam cerca da metade do contingente de mulheres registradas empregadas na capital Buenos Aires, se concentrando no serviço doméstico, na indústria de costura e têxtil e na cozinha (MOLYNEUX, 1986).

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Berkmann (nos Estados Unidos). Era a essa tendência que se afiliava La Voz de la Mujer. O Comunismo Anarquista estava orientado à “eliminação violenta da sociedade existente” e a criação de uma nova ordem social (MOLYNEUX, 1986, p.123).49 Em função da sua afiliação à vertente anarquista que defendia atos de violência, o jornal era publicado de modo semiclandestino, sem edições regulares. Suas redatoras se opunham à autoridade da religião e do Estado, e eram hostis em relação à polícia e outros representantes do direito. Dados os preceitos centrais do anarquismo em direção à luta contra a autoridade, na visão de Molyneux, o feminismo anarquista da época direcionava suas energias ao poder exercido sobre as mulheres no matrimônio e na família, buscando a liberdade de ter relações fora dessas instituições. Como expresso na edição quatro de La Voz de la Mujer, “nós odiamos a autoridade porque aspiramos a ser seres humanos e não máquinas dirigidas pela vontade de um ‘outro’, seja a autoridade, a religião, ou qualquer outro nome” (p. 129).50 Essa ideia apareceu resumida na assinatura de uma das apoiadoras do jornal como “Ni Dios, Ni Patrón, Ni Marido” (MOLYNEUX, 1986).51 A reelaboração do slogan sinaliza também as relações com determinados setores do campo anarquista, como discutirei na próxima seção.

1.3 Que anarquismo é esse?

Acima, explorei as relações – de tensão, disputa, aliança – tecidas a partir da circulação de interlocutoras da pesquisa através do campo feminista nos encontros com as “outras”. Busquei investigar os significados implicados não só na presença delas (como nos eventos do calendário

49 “It was dedicated to the violent overthrow of the existing society and the creation of a new, just, and egalitarian social order” (MOLYNEUX, 1986, p.123). 50 "We hate authority because we aspire to be human beings and not machines directed by the will of 'another,' be this authority, religion, or any other name." (MOLYNEUX, 1986, p. 129) 51 De acordo com a autora, a partir do fim do século XIX emerge outra variante feminista na Argentina: a vertente feminista do Partido Socialista, cujo programa foi responsável por lançar campanhas pela igualdade de direitos, por melhores oportunidades educacionais e pela reforma do código civil. Porém, segundo Molyneux, dada a sua tendência em derivar primeiramente a opressão das mulheres do capitalismo, os/as socialistas não desenvolveram uma crítica radical da família, do machismo e da autoridade - tal como feito então pelo anarquismo correntes. Tampouco a sexualidade ocupou um lugar importante no discurso feminista socialista. Os slogans por amor livre do anarquismo foram substituídos por noções mais tradicionais acerca da superioridade moral “natural” da mulher, com todas conotações relativas ao lar e às virtudes da maternidade.

66 de Março) mas também na sua ausência (como na cena descrita no evento de comemoração aos 30 anos do Geledés). Com isso, apontei para os graus de institucionalização, as relações raciais e a geração como principais eixos de diferenciação e de produção de temporalidades que complexificam a ideia de um sujeito feminista jovem singular e homogêneo. Além de circular por atividades como o Dia Internacional das Mulheres e debates com outras feministas dentro do calendário do mês de março, as minas do rolê circulam também por outros campos, como o campo anarquista/libertário. Nesta seção, serão exploradas situações do diário de campo ocorridas em um festival anarquista faça você mesmo, no qual o rolê estava presente de forma ativa, impulsionando debates e também críticas. Aqui também, como no resto do capítulo, eu baseio a minha observação sobretudo no estado de São Paulo, dada a minha localização geográfica na maior parte do doutorado.

1.3.1 Faça você mesm@: sem deuses e sem mestres

“Aqui não há autoridades mas você mesma”. Essa era a frase escrita na maior bandeira fixada no coreto do sítio Semente Negra. O portão de entrada estava coberto com tecidos rubro- negros, chamando atenção de quem passava pela estrada de terra. Rodeado pela mata atlântica e cortado por rios e quedas d’água, o terreno foi coberto por barracas de camping que se aglutinavam nas áreas mais planas e com menos acúmulo de lama. Dentro delas, descansavam pessoas que haviam viajado por horas até chegar na cidade de Peruíbe, litoral Sul do estado de São Paulo, saindo de Goiás, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, São Paulo, e de países como Estados Unidos, Argentina e Reino Unido. Alguns homens e mulheres viajaram da cidade de São Paulo de bicicleta até o evento, perfazendo mais de 100km de estrada. As barracas compartilhavam o espaço com banheiros secos52 – onde se lia, nas portas, “fuck your gender” e “não faça xixi em pé” – e outras pequenas construções, como uma composteira53 e fontes de água potável provindas do rio. Uma das poucas construções de alvenaria

52 Banheiro seco, como o nome diz, é um banheiro em que não se usa água para dar descarga, de modo a evitar a poluição e desperdício da água e a contaminação do solo, além de promover a produção de adubo a partir dos dejetos sólidos humanos que são misturados à serragem após cada utilização. 53 Composteira é um ecossistema que transforma o lixo orgânico em húmus, impedindo que esses resíduos sejam transportados para aterros e lixões. Geralmente tem o formato de uma caixa com terra e microrganismos responsáveis pela decomposição onde são depositados rejeitos alimentares, cascas de frutas e verduras, pó de café, etc.

67 dava lugar à cozinha, em sua maioria sob cuidado de homens. Em um dos panelões usados para o preparo das refeições que serviriam as centenas de participantes, lia-se “esta panela combate o fascismo!”. Os pratos, pelo valor de dez reais, carregavam receitas elaboradas a partir de ingredientes como casca de banana. No balcão da cozinha, um aviso informava: “queremos destruir as relações de consumidores estabelecidas numa sociedade capitalista. Portanto, não há diferenças entre quem está de um lado ou do outro do balcão.”

Figura 2 Fonte: Página do evento no Facebook

Os pontos de energia elétrica eram escassos, de modo que tarefas como carregar aparelhos celulares ficavam em segundo plano. Um grupo de mulheres se revezava para fazer a eletricidade chegar em locais como o palco de shows. No comando do aparato técnico, elas carregavam ferramentas, fios e instrumentos para lá e para cá, soldando cabos, montando a bateria e controlando a mesa de som (equipamento responsável pela mixagem). Dado o clima chuvoso e os cabos constantemente sobre a lama, durante a noite era comum a ocorrência de quedas de energia – curtos “apagões” que deixavam o sítio totalmente às escuras por alguns instantes e tornava a tarefa dessas mulheres mais árdua.

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Além das manas e sapas do rolê feminista, havia uma confluência de pessoas e grupos engajados em torno de temas como tecnologia e cybersegurança, veganismo, yoga, música, cinema comunitário, permacultura, bioconstrução54, anarquismo, capoeira angola, violência obstétrica, ginecologia feminista, punk, saúde pós-capitalista e antirracismo. Esses foram alguns dos tópicos abordados nas dezenas de debates e oficinas que aconteciam simultaneamente durante todo o dia sob as tendas improvisadas com lonas e tubos de PVC espalhadas pelo espaço. Bandas politicamente engajadas se apresentavam no coreto do sítio durante o intervalo do almoço e à noite, fechando a programação que acabava por volta das 22h.55

Figura 3 Festival No Gods No Masters 2018 Fonte: página do evento no Facebook

54 Considerando que os recursos da terra são finitos e têm sido utilizados de forma predatória em uma “cultura temporária” (temporary culture), a Permacultura, ou “cultura permanente”, trata da criação e planejamento de ambientes sustentáveis através de práticas como a captação de água da chuva, as ecovilas, o uso de energia limpa e renovável, o reaproveitamento e a reciclagem, partindo de saberes tradicionais e modernos. Já a Bioconstrução é um elemento da Permacultura e diz respeito a técnicas simples de arquitetura, que visam a construção de ambientes com custo reduzido e a integração das unidades construídas com o seu ambiente; para tal, utiliza técnicas de pouco impacto e matérias primas naturais – como por exemplo: pau-a-pique, adobe, terra, fibras vegetais, terra. Um dos projetos recentes do coletivo organizador do NGNM Fest se chama “Vivência na aldeia” e busca articular permacultura e tradições indígenas, tendo como objetivo principal a construção e a reconstrução de aldeias no litoral de São Paulo. Para mais informações: . Acesso em 22 de jun. 2018. 55 17 bandas se apresentaram em 3 dias, de gêneros musicais predominantemente associados ao rock e ao punk, mas passando também pelo samba e o folk.

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Debates e oficinas à parte, a experiência do Festival também acontecia no cotidiano no sítio, nas relações tecidas na partilha coletiva daquele espaço: fazer a manutenção dos banheiros secos, cuidar da vegetação e dos animais, lavar os pratos e talheres utilizados e observar o uso da composteira, manter as barracas secas e de pé, apoiar as produções – como zines e ilustrações – sendo vendidas ou trocadas para custear o deslocamento de participantes, ou entrar numa roda de capoeira. O Festival No Gods No Masters (do inglês, “Sem deuses, sem mestres”) aconteceu durante os três dias de feriado de Páscoa de 2018.56 De acordo com a organização, cerca de 350 pessoas passaram pelo evento.57 Comparando com a primeira edição, que aconteceu em 2016, notei que a quantidade de mulheres multiplicou, sendo marcante na programação. Já a quantidade de pessoas negras parecia algo como 30%, também se fazendo notar nas atividades propostas: a primeira atividade do Festival foi um debate intitulado “O negro e o Punk/Hardcore”, e posteriormente aconteceu também uma conversa sobre os “efeitos psicossociais do racismo”, entre outros.58

56 Também chamado por participantes, em tom jocoso, de “festival da fila punk” ou “festival da lama punk”, dadas as condições no sítio. 57 Informação disponível em: . Acesso em 7 de jun. 2018. 58 Foi produzido um breve documentário sobre o festival, intitulado “Uma grande Floresta” (2018), no qual as relações raciais, de gênero e sexualidade estão no centro do debate. Disponível em: . Acesso em 19 de jun. 2018.

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Figura 4 Festival No Gods No Masters 2018. Arquivo pessoal Seguindo o trânsito de interlocutoras pelo evento, realizei entrevistas com duas manas durante o Fest. Uma delas é parte do coletivo Chega de Assédio59, também chamado de coletiva (no feminino), que promoveu debate de mesmo nome no festival. O debate aconteceu dividido em dois momentos, em dois dias diferentes: o primeiro, com participantes mistos, e o segundo somente

59 Da página do evento: “A Chega de Assédio é uma coletiva que combate o assédio nos transportes públicos. Desde 2015 a Coletiva vem numa luta incessante contra o assédio nos transportes coletivos, assim como o suporte à luta de outros movimentos autônomos. Fizemos 6 grandes atos em estações de metrô, integramos a movimentação da luta contra Eduardo Cunha na chamada “Primavera Feminista”, arrecadamos aproximadamente R$12000 para Rosenilda (vítima de tentativa de feminicídio e estupro, que teve suas mãos amputadas), incontáveis rodas de conversas em postos de saúde, ocupações, escolas e espaços autônomos.” Disponível em: . Acesso em 06 de jun. 2018

71 para mulheres, acontecendo em seguida uma oficina de autodefesa, onde foi abordada a questão do assédio nos espaços públicos e métodos de revide.60 O primeiro debate tratou principalmente de relações de violência e assédio sexual entre ativistas e pessoas do mesmo círculo político de afinidade. Algumas das questões mais debatidas foram: o que fazer com os homens acusados de assédio e violência? O escracho61 seria realmente uma forma de punitivismo, como alega parte de seus opositores?62 Colocou-se em debate o chamado “linchamento virtual”, a reputação dos envolvidos e as assimetrias de poder entre denunciante e denunciado. Uma das participantes contou sobre uma experiência com um homem de uma “comunidade”, que poderia ser classificada como assédio, frente a qual ela hesitou em fazer uma denúncia pública visto que é uma mulher branca, de classe média, com acesso a ensino universitário, o que já a colocaria numa relação com consequências desiguais. Quando houve o questionamento sobre como promover transformações na subjetividade e comportamentos do agressor, foi reiterado mais de uma vez que a questão primeira é o acolhimento da vítima, pois geralmente eles já contam com uma rede de amigos e conhecidos que continuariam a fornecer apoio, ao passo que a experiência da mulher é constantemente objeto de descrença e questionamentos. Portanto, para elas, a denúncia e o escracho não resultariam no isolamento social do agressor, conforme algumas críticas defendem. Esse é um debate que, muitas vezes, está embutido no uso nativo do termo acusatório anarcomacho – embora ele não tenha sido utilizado nessa ocasião.

60 Discussão impulsionada pelos diversos casos que vieram a público nos últimos anos na cidade de São Paulo. Por exemplo, em abril de 2015, uma jovem de 19 anos, operadora de uma cabine de recarga de Bilhete Único da Estação República do Metrô, no Centro de São Paulo, foi estuprada durante uma tentativa de assalto a seu posto de trabalho. Nesse mesmo ano, em outubro, um outro caso: segundo a denúncia da vítima, um homem teria se postado atrás dela no vagão do metrô e retirado o pênis da calça, esfregando-se nela. A vítima teve seu pedido de indenização contra o Metrô de São Paulo negado; de acordo com a sentença da juíza, o pedido de indenização era improcedente, pois durante o abuso a mulher teria ficado “impassível e nada fez enquanto era tocada por terceiro”. Disponível em: . Acesso em 22 de jun. 2018. 61 Será tratado no capítulo 2. 62 Aqui há um diálogo implícito com anarquistas e outros militantes alinhados a certo abolicionismo penal.

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Figura 5 Fonte: página do evento no Facebook

O tom da conversa foi marcado por frustração e críticas calorosas. Como colocado acima, essa era uma atividade aberta a todo público do evento, mas apenas três homens compareceram. O coletivo questionou onde estavam os demais que se isentavam de uma discussão que foi planejada pensando na presença deles. De modo enfático, foi pontuada a responsabilidade masculina de se engajar no debate sobre as questões de violência e assédio em suas diversas formas. À noite, durante um dos shows, uma das facilitadoras do debate pegou o microfone e falou com indignação o sobre seu desapontamento frente ao ocorrido na atividade da tarde, reiterando a presença de apenas três homens. Como iniciativa de parte dos poucos que participaram, foi organizado de modo paralelo à programação uma roda de conversa sobre masculinidade voltada aos homens. No festival, a grosso modo, notei a presença de pelo menos dois grupos etários. A maioria de participantes parecia ter de 25 a 35 anos; mas era notável também a presença, quantitativamente menor, de ativistas com idades entre 35 e 45 anos, cujo engajamento político teve início no começo

73 dos anos 2000, há cerca de 15 anos atrás. Como pontuado em entrevista feita pelo site anarcopunk.org à organização do evento: O No Gods No Masters Fest surgiu efetivamente em 2016 mas, na verdade, ele é fruto do que vivemos com eventos que estivemos envolvidxs nos anos 2000, como o Dias de Criar, Carnaval Revolução e outros encontros libertários. Acreditamos que esses eventos, com múltiplas linguagens e que tem como proposta uma convivência coletiva é muito importante para construirmos uma comunidade mais forte e coesa, colocando todas as pessoas que estão participando do Fest como parte da construção dessa comunidade. São discussões importantíssimas, produções, bandas que se somam e formam um conteúdo muito inspirador para que possamos levar para nossas comunidades locais e nossa vida cotidiana. Essa vontade de continuar com esses eventos está dentro da gente há tanto tempo e estávamos sentindo falta dessa união de tantas produções incríveis juntas.63

O Festival é parte de uma rede anticapitalista mais ampla que passa a ter visibilidade na virada desse século e para a qual eventos como o Levante Zapatista em Chiapas (1994), as manifestações antiglobalização/antineoliberalismo (como Seattle, 1999) e contra a ALCA, o Fórum Social Mundial (2001), entre outros, serviram de inspiração e combustível. Na primeira década dos anos 2000, iniciativas como rádios livres e comunitárias, Bicicletadas, hortas urbanas, “lojas grátis”, espaços e casas okupadas, Verduradas64, e o engajamento em torno do copyleft e softwares livres movimentavam essa rede em cidades como Curitiba, Vitória, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Goiânia, Belo Horizonte; eventos como Carnaval Revolução (2002-2008) e Corpus Crisis (Brasília), e espaços como Mansão Libertina (Belo Horizonte), Impróprio (São Paulo) e Casa MUV (Salvador) funcionavam como pontos de convergência.65 Há de se notar também a importância, à época, do CMI Brasil (Centro

63 Disponível em: . Acesso em 7 de jun. 2018. 64 A primeira Verdurada aconteceu em 1996, na cidade de São Paulo, se expandindo posteriormente para outras capitais. Consistia em um evento periódico com apresentação de bandas punks combinadas à palestras e debates de cunho politico. Ao final, era servido um jantar vegano ao público. 65 O documentário “Todo fim é um começo” foi filmado em meio ao encerramento das atividades do Espaço Impróprio, que funcionou no centro da cidade de São Paulo no período de 2003 a 2011. Traz registros visuais e depoimentos acerca da experiência em casas ocupadas e outros centros culturais pelo Brasil. Explora as tensões e frustrações do cotidiano nesses espaços – colocados como “espaços de convergência”. Vale notar o desejo de romper com o fracionamento do tempo e do cotidiano dividido entre “escola/trabalho/lazer” para estar 24 horas por dia “vivendo o que se acredita”. Também é abordada a circulação de pessoas por esses espaços, de modo a agregar novos debates ao aglutinar diferentes identidades e experiências. Disponível em: . Acesso em 16 de jun. 2018.

74 de Mídia Independente)66 e da emergência do Movimento Passe Livre e seus coletivos em nível nacional.67 Nesse universo, o lema anarquista clássico “sem deuses e sem mestres” é encarado em termos do faça você mesmo, dando lugar ao que se pode chamar de um anarquismo faça você mesmo, baseado em uma política que se faz com as próprias mãos. Como discutido por Gabriela Marques (2016), ou faça você mesmo é um lema que vem do punk68, que possibilitou que pessoas que “não sabiam tocar instrumentos” passassem a montar suas próprias bandas, criando gravadoras em garagens, selos de distribuição fonográfica e meios de produção e de distribuição autônomos, fora do grande mercado. Com o tempo, o lema adquiriu caráter político, sendo extrapolado além da música, perpassando outras dimensões da experiência coletiva, como por exemplo a mídia e impulsionando a produção dos fanzines. Caudatário direto dessas iniciativas, o NGNM Festival aconteceu no sítio que abriga o espaço Semente Negra, apresentado como um laboratório: Para além de um espaço físico, a Semente Negra germina e cresce como um projeto de projetos, um laboratório de práticas, vivências e experiências, um terreno fértil para o cultivo de nossa resistência, nossos anseios e perspectivas. Criado e gestionado por todas as pessoas que ali se conectam, entrando no ritmo das estações e desafiando o mundo do dinheiro, dos ruídos, da fumaça e da velocidade. Nossa resposta a este mundo destruidor de sonhos é uma proposta de criação coletiva permanente, de cooperação social, pautado em uma proposta de vida autônoma e coletiva para a nossa transformação e da sociedade em que vivemos.

66 “O CMI Brasil quer dar voz à quem não têm voz constituindo uma alternativa consistente à mídia empresarial que frequentemente distorce fatos e apresenta interpretações de acordo com os interesses das elites econômicas, sociais e culturais. A ênfase da cobertura é sobre os movimentos sociais e sobre as políticas às quais se opõem. Odeia a mídia? Seja a mídia!”. Disponível em: . Acesso em 20 set. 2018. 67 Em termos de pesquisas mais sistemáticas, a maior parte do produzido sobre esse universo consiste em artigos, trabalhos de conclusão de curso (TCC) ou dissertações de mestrado, revelando uma escassez de pesquisas mais densas. 68 De acordo com Marques (2016), a palavra “punk” surge no início do século XX em contexto anglofônico como um adjetivo pejorativo, que não possui uma tradução literal, podendo ser associado a “lixo” ou “que vem do lixo”. Por essa razão o termo teria sido usado para designar, no final da década de 1970, uma geração de jovens sem perspectivas, desamparados pelo Estado e pela sociedade – os punks. Inicialmente, a cena punk tem suas raízes diretamente ligadas à música, na Inglaterra e Estados Unidos: “Nas letras apareciam propostas de caráter hostil; através dessas músicas curtas, com vocais que mais pareciam gritos, falavam de um ‘não futuro’, ou seja, da impossibilidade da existência de sonhos para uma juventude marginalizada e empobrecida” (p. 22). Há muitas narrativas sobre o início da cena punk no Brasil no final dos anos 1970, disputadas por pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Salvador. No final dos anos 1980, o anarcopunk começa a se propagar e fortalecer no país, em diversas regiões. A junção de anarquismo e punk dá lugar a diversas expressões dentro da cena. Marques trata do anarcofeminismo que, na década de 1990, dentro da cena punk, tinha uma composição de mulheres de camadas populares de grandes cidades do Brasil, com expressividade em regiões como o Nordeste. Para uma etnografia pioneira sobre o então nascente “movimento punk” no Rio de Janeiro, ver Caiafa (1985).

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[...] Aqui é um espaço para praticarmos e aprenderemos com as experiências. Um laboratório e ao mesmo tempo um fortalecimento do conhecimento, de amizades e de nossa autonomia. (grifos da autora).69

Voltarei a esse ponto adiante.

***

Como argumenta Gabriela Marques (2016), o anarquismo como movimento social e corrente de pensamento exerceu forte influência em diversos lugares no final do século XIX e início do século XX, incluindo o Brasil e países da América do Sul. Contudo, com o cenário posterior de grandes greves sufocadas, vitória do comunismo soviético na Revolução Russa e o Stalinismo, o anarquismo acabou como ideologia dita “utópica”, circunscrita a círculos menores de movimentos sociais e organizações sindicais (MARQUES, 2016). Entretanto, como a autora chama atenção, a partir da segunda metade dos anos 1990, ideais como autonomia, autogestão, horizontalidade e ação direta passaram a ganhar força no Brasil e outras partes do mundo. Recentemente, diversos movimentos que prescindem de hierarquias formais têm práticas anarquistas de organização, podendo se afirmar ou não enquanto tal. Para Marques, esse panorama indica uma “reinvenção do anarquismo” que toma forma de diferentes maneiras, como em coletivos diversos e grupos políticos organizados mediante relações de afinidade.70 Não se trata, contudo, de todo e qualquer anarquismo. Como busquei mostrar ao longo dessa seção, há hoje diversas gerações com inspirações anarquistas e atuações, valores, temporalidades e perspectivas distintas – entre elas, nem todas reconhecidas univocamente enquanto anarquistas pelos seus pares. No universo pesquisado, a reinvenção da qual fala Marques parece se dar na direção de apropriações fluidas de noções anarquistas que são objeto de experimentação coletiva via faça

69 Disponível em: . Acesso em 10 de jun. 2018. 70 É sintomático que no ano de 2014, em meio aos protestos contra a Copa do Mundo e megaeventos sediados no país, Mikhail Bakunin, morto em 1876, foi mencionado como um “potencial suspeito” em inquérito produzido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro que investigava manifestantes e ativistas acusados de organizar ações violentas em manifestações de rua. Disponível em: . Acesso em 05 jun. 2018

76 você mesm@ - expressa na ideia de um laboratório – e por isso escapam ao enquadramento disputado de uma “tradição anarquista”. Busquei explorar também essas questões nas entrevistas. Ao todo, realizei cinco entrevistas com interlocutoras do/no rolê, com idades entre 18 e 30 anos. Dentre as cinco, quatro foram realizadas ou agendadas durante o NGNM Fest (as quatro estavam presentes lá no Semente Negra). Parte das questões presentes no roteiro semi-estruturado dizia respeito à trajetória política das ativistas. Isto é, indaguei como elas chegaram no rolê, o que influenciou nos trajetos e direções seguidas até o momento presente. É possível entrever, nas narrativas, o entrecruzamento de campos e referências políticas, isto é, os fluxos discursivos que atravessam o rolê, a aproximação com certos anarquismos e a produção de sujeito na relação de apropriação e contestação dessas referências. Abaixo, serão expostos trechos que se mostraram relevantes para o argumento do capítulo, de modo a introduzir as entrevistadas cujas práticas políticas serão melhor esmiuçadas nos capítulos seguintes. O Brejo das Flores (BF) é um espaço localizado na Zona Norte da cidade de São Paulo, onde realizei parte da observação participante, e que existe desde 2016. No mês de maio de 2018, entrevistei, na cozinha do Brejo, duas das mulheres responsáveis pelo espaço, que prontamente se dispuseram a participar da pesquisa: Bruna (29 anos) e Carla (26 anos). Mantenho contato com uma delas, Bruna, desde o ano de 2012, quando nos conhecemos durante trabalho de campo em Salvador (BA). O BF se apresenta como “uma casa de lésbicas, feministas, autônomas, que busca construir espaços de troca, coletividade e sororidade.” Nele, são realizados saraus, debates, oficinas, shows. Além disso, como pontuado por Bruna, o espaço é aberto também a propostas colocadas por mulheres de outras cidades que desejem trazer atividades e passar um tempo vivendo (n)a casa:

Aqui no Brejo a gente já organiza faz uns dois anos as atividades, desde sarau, shows, debates, oficinas, muita coisa... e a gente é aberto também à proposta de outras mulheres pra trazer atividades pra cá. Agora, por exemplo, estão vindo duas meninas de Recife e do Rio de Janeiro. [...] Então a proposta da casa é isso também, tanto da gente fazer coisas quanto receber gente e ter esse fluxo de movimento. Então nossa casa, que é a nossa residência, vira nosso espaço político pra fazer coisas.

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Residem no Brejo cinco mulheres lésbicas, um menino de 6 anos, filho de uma delas, além de gatos e um cachorro. Segundo Bruna, “todas as mulheres que moram aqui são pobres”. Quando indagada sobre as dificuldades em manter a casa, ela responde:

tem todas essas questões de comunicação interna, [de discutir] o que a gente preza, o que a gente pensa da casa, o que a gente quer que a casa seja pra nós: que seja um espaço diferente do mundo lá fora, que seja um espaço que a gente converse diferente, que a gente tente comer diferente, que apoie uma às outras, busque ajudar as outras no que a gente consegue, evitar algumas hostilidades do mundo capitalista, e tentar que aqui seja um outro espaço. E é difícil muitas vezes.

Bruna tem 29 anos, trabalha com música, e morava no interior do estado até se mudar para São Paulo. Carla tem 26 anos e trabalha como educadora social. Ambas se identificam como brancas, e fazem parte do Brejo com outra mulher branca e duas negras. Perguntadas sobre como se inseriram no rolê, Carla respondeu:

Eu conheci o Punk e o Anarquismo com 15 anos mais ou menos, [...]. E daí o punk me mostrou o que era anarquismo e, com uns 18 ou 17 anos, comecei a participar de um coletivo que fazia propaganda na rua, exibição de filme, panfletagem anti-voto, bem punk juvenil, que era super divertido, na quebrada, porque eu morava na quebrada. [...]. Daí eu comecei a entrar em contato com o movimento de fazer coisa na rua, de organizar exibição de filme, de falar principalmente de voto, anti-voto e movimentação contra as tarifas dos ônibus. Eu tinha uns 17, hoje eu tenho 26, tem uns 10 anos mais ou menos. [...] Eu saí desses rolês e comecei a trabalhar em Centro Cultural, comecei a me aproximar de outros anarquistas e outros punks que já não eram da minha quebrada, eram do lugar que eu trabalhava, e comecei a participar de outros tipos de movimentação. [...] Entrei num coletivo que era sobre luta com o povo de rua. A gente trabalhava de baixo de um viaduto com o povo de rua, e era um coletivo autônomo dos trabalhadores sociais, que fazia movimentação dos trabalhadores sociais como um todo mas necessariamente com o povo de rua. E daí eu comecei a movimentar várias outras coisas. Eu acho que ganhei corpo na militância porque era um coletivo majoritariamente anarquista, que tinha uma pauta popular que eu achava muito importante, que era a resistência de pessoas pobres no centro, então a gente tinha muito a questão do direito à cidade, pra quem era feita a cidade, pra quem não era feita, a perseguição política e escrotizante da polícia, e tal, e daí eu comecei a movimentar várias outras coisas na cabeça, inclusive de somar com o MPL [Movimento Passe Livre] nas atividades, enquanto coletivo a gente somava nos atos [...]. Então eu acho que eu ganhei corpo político nessa

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época, que foi 2014 até final de 2016. [...] No meio disso eu comecei a morar nessa casa, que então não era uma casa de lésbicas, não era o Brejo, mas que era exclusiva de mulheres. A gente alugou a casa juntas como amigas que queriam morar juntas, e daí a gente começou a fazer algumas movimentações mistas de levantar dinheiro pra coletivos, de fazer cervejadas, de fazer saraus mistos. (grifo meu).

O engajamento de Carla aparece inicialmente relacionado à sua condição de moradora de bairro periférico, daí o ativismo como forma de transitar e reivindicar a cidade, seja atuando junto ao “povo de rua”, ou contra o aumento da tarifa do transporte público. Anos depois ela se muda para a casa que viria a ser o Brejo das Flores, consistindo em uma estratégia também de assegurar uma moradia (coletiva) relativamente próxima ao centro geográfico da cidade (a 10km). Seu envolvimento com o Brejo e o feminismo coincide com um momento em que ela passa a se entender como lésbica, juntamente com outras mulheres que reconfiguram a casa, a qual então passa a se chamar Brejo das Flores:

Daí a gente mudou [o nome] pra Brejo quando a gente percebeu que eram todas lésbicas, e que as minas que se relacionavam com caras saíram, e algumas foram se descobrindo, como eu, e virou uma casa sapatão. E a gente quis trocar o nome pra demarcar isso também, que era uma casa diferente. Nesse meio tempo eu saí do coletivo que fazia o “corre” com a população de rua e comecei a fazer movimentação anti-carcerária, que é o que eu faço agora [além do BF]. [...] De coletivo feminista, eu nunca participei de nenhum exceto minha casa; eu sempre estive aproximada e tentava somar autonomamente [...]. Durante muito tempo eu quis estar em espaços feministas e colei em vários espaços, e somei em 8 de Março e atividades grandes, mas nunca como parte de um coletivo ou parte de uma organização que era a longo prazo, a minha organização. Eu estive por muito tempo em organizações mistas, de movimento social, de pautas mais, né, “abrangentes,” sei lá, e só com o Brejo que eu me vejo com o coletivo de mulheres que fazem coisas juntas.

Na trajetória de Bruna, o punk, o anarquismo e o feminismo figuram como antídotos para a sensação de deslocamento e solidão:

Eu sou de São José dos Campos, interior de São Paulo. Eu cresci lá, vim pra cá faz só uns 3 anos, mas sempre vim pra cá. Morei lá em bairro de classe média, e eu comecei a pensar

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politicamente a partir da minha lesbianidade quando conheci o punk pela internet, as bandas feministas punk. [...] E mudou muito a minha vida, porque eu sempre fui muito esquisita, sapatona desde sempre e muito deslocada, e aí quando eu ouvia aquelas meninas tocando, eu via vídeos, enfim, e era muito incrível. [...] Eu conversava sobre feminismo com as meninas da faculdade, eu fiz serviço social lá em Taubaté, e a gente pensava alguma coisa sobre feminismo, mas por muito tempo foi muito solitário as coisas que eu pensava, ouvia e tal. [...] Aí eu tinha um amigo que começou a morar no Espaço Impróprio, perto da [Rua] Augusta [em São Paulo], e eu já conhecia o punk, ia em show e etc., mas quando eu entrei nesse espaço, vi o que a galera fazia, muitos eventos, para mim aquilo foi muito impactante. O pessoal estava pensando muitas coisas, estava fazendo muitas coisas, o veganismo era muito forte, eu era vegetariana já, e a coisa do veganismo entrou muito forte pra mim. [...] Então teve essa questão do Impróprio, eu morei mais ou menos um mês lá. E aí eu via todas as movimentações lá, bem no fim do espaço. Depois demoliram tudo ali [...]. Mas já foi super inspirador ver o que a galera fazia, foi lá que eu comecei a entrar em contato com o Faça Você Mesmo, eles construiram o estúdio deles lá, com os bagulhos reciclado, uns bagulhos muito “monstros”. Então isso me deu mais vontade de me aproximar do punk e do anarquismo, li muita zine nessa época, li muita coisa. Depois eu comecei a me organizar com umas meninas lá de São José dos Campos, a gente fez o primeiro Vale Histeria, que foi um evento que juntou tanto as minas do rap quanto as coisas experimentais que a gente fazia, que era faça você mesma super inspirada nas experiências que eu tive lá no Impróprio, e foi muito massa. [...] Anos depois eu vim pra cá, pro Brejo.

O faça você mesm@ do Espaço Impróprio – expresso nos zines, na composição do espaço e na feitura de um estúdio de música a partir de elementos reciclados – foi um elemento de encantamento para Bruna a cerca de dez anos atrás. A experiência de morar temporariamente no local é descrita como transformadora. Perguntada sobre experiências que serviram de inspiração para o Brejo das Flores, ela respondeu:

[Falando] de espaço coletivo foda, eu fui muito na Casa da Lagartixa Preta [espaço anarquista em Santo André], as pessoas não moram lá, mas sempre organizaram bastante coisa lá, várias coisas eu aprendi lá. Eu participei mais dessas duas casas, da Lagartixa e do Impróprio, e bastante coisa eu absorvi, da comunicação não violenta, que rolava muito essa ideia por lá, e aqui [no Brejo] eu penso muito isso entre a gente também... Eram espaços mistos, e eu ia adaptando aqui, que é um espaço só de mulheres e lésbicas e tal, e como a gente pensa isso aqui, o que que muda, e o que não muda...

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O Espaço Impróprio era um espaço anarquista e punk ativo de 2003 a 2011 em um sobrado no centro da cidade de São Paulo. Funcionava como uma espécie de centro cultural e também era local de moradia das pessoas que promoviam as atividades e geriam o espaço (que também contava com uma biblioteca de fanzines, bar e lanchonete vegana) – parte dessas pessoas atualmente estão engajadas na organização do Festival No Gods No Masters. De modo similar, a Casa da Lagartixa Preta foi iniciada no ano de 2004, na cidade de Santo André (no chamado ABC Paulista) e segue até o presente momento em funcionamento. É autogerida pelo coletivo Ativismo ABC, formado a partir da Ação Global dos Povos (AGP) em 2002.71 A Casa se apresenta como “um laboratório de apoio mútuo, educação libertária, autogestão, solidariedade e valorização das diferenças. Possui uma biblioteca comunitária, estante de dádivas e horta onde seguimos princípios da permacultura e agrofloresta. (grifo meu).”72

Gabriela é cerca de 10 anos mais jovem do que Bruna. Ela tem 18 anos, quer cursar Ciências Sociais e é a mais jovem entre as entrevistadas. Faz parte da coletiva Chega de Assédio, ao lado de outras mulheres com idades distintas (aparentemente em sua maioria mais velhas). Se identifica racialmente como branca e estava desempregada no momento da entrevista. É integrante também da Marcha da Maconha da zona sudoeste/SP. A entrevista foi realizada em um dos intervalos do No Gods No Masters Fest, após entrar em contato com o coletivo no debate sobre assédio anteriormente descrito. Ela era certamente uma das pessoas mais jovens participando do festival. A gente não se conhecia até então, mas eu já tinha conhecimento da coletiva em função dos diversos atos realizados em estações de metrô em São Paulo durante os anos de 2015 e 2016, algumas vezes em aliança com os protestos contra o aumento da tarifa do transporte público municipal.

71 A ação global dos povos foi uma rede de ativistas, coletivos e organizações atuante no bojo do movimento antiglobalização no começo dos anos 2000 com o objetivo de promover os “Dias de Ação Global” em oposição às reuniões e encontros de organismos internacionais como o FMI, o Banco Mundial e o G7. Felipe Corrêa (2011), em artigo publicado no site Passa Palavra, relaciona o contexto da AGP no Brasil com iniciativas como as primeiras edições do Carnaval Revolução e da Bicicletada em 2002, os protestos de rua contra a ALCA (Área Livre de Comércio das Américas), o Fórum Social Mundial, as ações dos Confeiteiros Sem Fronteira e a Revolta do Busu (em Salvador, 2003). Disponível em: . Acesso em 30 jul. 2018. 72 Disponível em: < https://www.facebook.com/pg/casadalagartixapreta/about/?ref=page_internal>. Acesso em 29 jul. 2018.

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Perguntada sobre como chegou no rolê feminista, ela contou como entrou pro coletivo Chega de Assédio há três anos atrás, quando tinha cerca de 15 anos de idade:

Em 2015, aqui em São Paulo, na linha vermelha do metrô, uma menina estava dentro do vagão e um cara encoxou ela. Ela reagiu, tipo "meu, que isso!" e reclamou. Os caras em volta ficaram putos, falando que não tava encoxando, e dentro do vagão começou um grito de "estupra, estupra!". Diante disso, as meninas da Chega [de Assédio] já se conheciam, mas não tinham nada formado. Elas fizeram um ato em repúdio disso, pra começar uma mobilização. Partiu de um evento no Facebook, não tinha data, não tinha nada certo, era só um evento querendo expressar o repúdio com o que aconteceu. E daí, diante disso, eu entrei em contato com uma das organizadoras do evento, ou alguém que tinha postado alguma coisa no evento, e aí eu descobri que ia ter uma reunião [...] e foi ali que tudo começou. E aí a gente se conheceu, algumas já se conheciam, e nos reunimos para pensar ''o que que a gente vai fazer com essa questão na mão?''. Logo antes teve o caso da moça que era terceirizada e trabalhava na estação república do metrô, e ela foi estuprada, por um cara que entrou pra roubar [...]. E aí esse outro caso só reforçou a ideia de que algo precisava ser feito em relação ao assédio, e a partir dessa reunião a gente foi tirando várias questões e a gente fez o primeiro ato, que foi no metrô República e teve bastante adesão.

A violência contra a mulher e o assédio são temas mobilizadores no percurso de Gabriela, tendo a internet como forte articulador político e coletivo. O surgimento do coletivo, inicialmente como Frente Contra o Assédio coincide com um período de efervecência de protestos de rua em grandes capitais do país, organizados contra os megaeventos encabeçados pela FIFA (Federação Internacional de Futebol) e contra os aumentos anuais nas tarifas de transporte. Uma vez em contato com outras mulheres, a pauta do assédio ganha conotação mais ampla, sendo associada à luta pelo passe livre e à formação política das/os estudantes secundaristas que em 2015 ocuparam mais de 200 escolas públicas estaduais de São Paulo contra a chamada “reorganização” que o governo estadual pretendia implementar73 – o que ficou conhecido como “Primavera Secundarista” (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016).

73 O plano previa o fechamento de 94 escolas inteiras e centenas de turmas, realocando os estudantes e, de acordo com seus críticos, superlotando salas de aula. De acordo com Campos, Medeiros e Ribeiro (2016), nas semanas que antecederam as ocupações as/os estudantes haviam feito abaixo-assinados, passeatas e comparecido às Diretorias Regionais de Ensino e à Secretaria de Educação. Sem sucesso, e inspirados no exemplo dos estudantes chilenos, começaram a pensar na possibilidade das ocupações.

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A formação de um Bonde das Catraqueiras – uma referência ao ato de catracar, isto é, pular a catraca do ônibus, alçado à condição de desobediência coletiva – materializava essa articulação de pautas:

Esse primeiro ato foi muito grande, reuniu várias minas, colou até mina partidária, sendo que tinha muita mina autônoma, e explodiu uma questão que tava há muito tempo engasgada. Depois a gente foi fazendo muitos atos: no Jabaquara, Itaquera, Barra Funda... E a gente sempre conciliou com a luta contra o aumento do transporte. No início a gente também conciliou o Bonde das Catraqueiras junto. Tinha até algumas meninas do MPL [Movimento Passe Livre] na Chega. [...] Em 2015 a gente começou como Frente Contra o Assédio, e daí tinha muita mina, muita mina, até essas partidárias, mas aí depois acho que elas não curtiram muito as ideias, umas minas do PSOL, do PSTU, nessa linha. Depois a Frente virou o coletivo autônomo Chega de Assédio. E na época [o assédio sexual] não era muito falado mesmo, tanto que quando você colocava uma hashtag tinha pouca coisa e se você coloca hoje, você vai ver uma caralhada – uma bucetada – de coisas sobre assédio, então foi aí que iniciou. E além da luta contra o aumento, a gente atuava também nas ocupações [das escolas], em 2015 também, quando a gente se juntou, e a gente atuou muito nas ocupações. A gente levava rodas de conversa sobre assédio. Eram rodas mistas, onde muita coisa era colocada ali em jogo, do que acontecia na escola, alguns esclarecimentos rolavam nessas rodas sobre o que é o assédio, e tudo isso em meio a uma ocupação.

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Figura 2 Imagem divulgada pela página da coletiva no Facebook em 2016

Gabriela colocou que o Chega de Assédio foi o primeiro coletivo em que atuou de forma “mais presente”, a partir do ano de 2015. Perguntada sobre o período anterior, Gabriela trouxe Junho de 2013 como um acontecimento que “ascendeu” algo nela e apresentou a possibilidade de ocupar as ruas:

Como eu era muito novinha, eu não tive muito contato nas ruas, mas logo em 2014 eu já tava nos atos contra a Copa, que foi em janeiro mais ou menos, então foi algo muito próximo [às Jornadas de Junho]. Eu via aquilo na TV, nas redes sociais, e eu via sempre uma confusão, porque começou com o R$3,20 e partiu para mil e outras coisas, tanto que se tornaram as Jornadas de Junho. Foi algo que eu vi, que todo mundo viu, que é possível ir pra rua e se manifestar. Eu sabia que não era só aquilo, tanto que em 2014 eu fui pros atos contra a Copa e foi aí que eu comecei a participar ativamente nas ruas, e aí eu não parei. Foi ato atrás de ato [...].

Portanto, as entrevistas mostram como se deu o contato com o ativismo e com a rede articulada em torno do faça você mesm@, especialmente na primeira década dos anos 2000 para

84 aquelas que hoje tem idade próxima aos 30 anos; sinalizam também um maior peso de acontecimentos como as Jornadas de Junho na trajetória das mais jovens, marcando o contato inicial com formas autônomas de participação. O rolê se movimenta através dos campos feminista e anarquista, tecendo interlocuções e apropriações importantes à noção reivindicada de autonomia. Olhando para essa movimentação, notei que os anos 2000 constituem um momento importante, quando essas articulações ganham mais visibilidade. Esses trânsitos são contenciosos e oportunizados pela mobilidade e fluidez presentes nos significados associados ao rolê. Neste capítulo, tratei também de apontar que essas minas buscam se distanciar de atoras, práticas e discursos classificados como pelegos, autoritários, hegemônicos ou institucionalizados, termos que são mobilizados principalmente para fazer alusão a mulheres de geração anterior, com atuação próxima a partidos políticos, instituições e sindicatos. Enquanto categorias acusatórias, essas classificações são contextuais, ensejando diferentes formas de aparição pública. Por outro lado, o uso do humor no formato do deboche e práticas como o escracho são lidos pelas “outras” como baderna e vandalismo, colocando em xeque o caráter político do rolê feminista autônomo a partir de critérios distintos de inteligibilidade. Sendo assim, os próprios sentidos atribuídos ao fazer político são relativamente distintos, informados por experiências geracionais historicamente situadas. Nesse jogo de alteridades, linhas de continuidade ao longo do tempo são apagadas na construção da retórica pública. Os dados do campo sugerem que, para as mulheres de geração anterior, que se apresentam como parte de uma segunda onda, o período aberto pela redemocratização do país se mostra importante para sua formação enquanto sujeito político. O momento é tido como uma época de conquistas e êxitos traduzidos nas possibilidades colocadas pela Constituinte, envolvendo a incidência no Estado e a organização partidária, por exemplo. Naquele momento, à diferença de hoje, o debate sobre as diferenças não ocupava espaço de destaque nos discursos do campo feminista. Assim, embora não haja uma correspondência direta entre geração e determinada modalidade de participação política, os conflitos em torno dos significantes autonomia, horizontalidade e autoritarismo parecem assumir muitas vezes contornos intergeracionais, informados pelas reconfigurações do campo feminista brasileiro, dando lugar a diferentes temporalidades sobrepostas.

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Capítulo 2: Autonomia, horizontalidade e políticas prefigurativas

Termos como autonomia e horizontalidade têm se mostrado recorrentes quando abordadas as mobilizações recentes protagonizadas por jovens no Brasil. Me refiro especialmente ao período pós-2010,74 que assistiu a eventos como as Marchas das Vadias (com início em 2011), as Jornadas de Junho (2013), as ocupações promovidas por estudantes secundaristas (entre os anos de 2015- 2016), os atos de rua aglutinados sob o termo Primavera Feminista (2015), as exibições públicas da tática Black Bloc desde 2013, entre outras movimentações que têm ganhado visibilidade especialmente em grandes capitais do país.75 Em especial, nos feminismos latino-americanos o termo autonomia é cíclico e carrega uma trajetória polissêmica. Ele foi evocado outrora por feministas no Brasil durante o regime militar, a fim de demarcar uma posição exterior a partidos políticos e organizações revolucionárias de esquerda (ALVAREZ, 2014a; MATOS, 2014; CORRÊA, 2001). Junto a outros movimentos, o feminismo então se articulava “contra o Estado”, percebido como sinônimo de autoritarismo (MACHADO, 2016; CARDOSO, 1987). Seus usos remetem também aos anos 1990, quando o campo se reconfigura e a autonomia emerge mais uma vez, sendo polarizada à categoria acusatória “feministas institucionais” (ALVAREZ, 2014a; THAYER, 2017; FALQUET, 2014). É quando se estreita as relações entre certos setores feministas e a cooperação internacional, o sistema Nações Unidas, o Estado e suas instituições, no interior de políticas neoliberais desenvolvimentistas. Essa dinâmica foi objeto de críticas ferrenhas por parte das atoras que se apresentavam como “antônomas” (idem).

74 Embora as chamadas Jornadas de Junho de 2013 sejam com frequência evocadas enquanto responsável por inaugurar certa política das ruas, as mobilizações aqui mencionadas datam de anos anteriores, sinalizando um momento de maior visibilidade pós-2010. Ainda, é de valia pontuar que marchas, festivais, protestos e caminhadas cujo formato organizativo e modos de dar-se a ver em público rejeitam a política de massa representada por carros de som, bandeiras de partidos, camisas uniformizadas e palanques se fazem presentes pelo menos desde o final da década de 1990 e começo dos anos 2000 no país, dada as mobilizações no contexto dos movimentos antiglobalização e do Fórum Social Mundial, assim como com a presença das anarcofeministas (Marques, 2016), as minas do rock (Facchini, 2008), o engajamento de coletivos autônomos em torno do Centro de Mídia Independente (CMI), entre outros, que naquele momento tinham o movimento Zapatista e o levante de Seattle como algumas das suas influências e inspirações. 75 Para mais informações sobre a Marcha das Vadias, ver Gomes (2018); para a ocupação das escolas e o movimento de secundaristas, ver o livro “Escolas de luta” (Campos, Medeiros, Ribeiro, 2016); para as Jornadas de Junho, ver “Vinte centavos: a luta contra o aumento” (Judensnaider, et al, 2013) e “Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil” (Maricato, et al, 2013); para o Black Bloc, ver Dupuis-Déri (2014).

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A partir dos anos 2000, nota-se transformações nas condições que modulam formatos participativos institucionalizados consolidados nas décadas anteriores após o processo Constituinte. Se, com a transição democrática, o feminismo dos anos 1980 e 1990 teve uma forte articulação com instituições políticas e Organizações Não Governamentais, buscando assim influenciar políticas públicas ao fazer uso de canais socioestatais, no fim da década de noventa começa a tomar corpo o que autoras chamam de “fuga de investimentos” das instituições de cooperação internacional (ALVAREZ, 2014; GONÇALVES, FREITAS, OLIVEIRA, 2013; THAYER, 2017). Nessa conjuntura, a crítica à centralidade da atuação institucional, entre outros fatores, tem impulsionado alterações nos regimes de visibilidade dos feminismos no país (FACCHINI, FERREIRA, 2016) e afetado a produção de sentidos acerca do fazer político. Nessa seara, a autonomia é reivindicada por setores que, organizados em coletivos, rejeitam lideranças formais e se apresentam como horizontais. O presente capítulo parte dessas questões e tem como objeto empírico uma rede informal de ativistas jovens autonomeada como rolê feminista, ou abreviadamente rolê. Elas têm idades entre vinte e trinta anos, muitas estão em trajetórias universitárias, são em grande parte provindas de camadas médias urbanas, e se articulam interligando diversos estados do Brasil, com certa preponderância do Sudeste. Mobilizadas pela politização do cotidiano, elas se apropriam, contestam e ressignificam referências como o anarquismo, o vegetarianismo e o veganismo, o punk, o direito à cidade, os fanzines, o anticapitalismo, tecendo interlocuções e articulações com outros movimentos e atores sociais – daí a sua presença em menor ou maior escala nas mobilizações contemporâneas mencionadas no primeiro parágrafo. A circulação das ativistas entre essas diversas agendas e bandeiras políticas forja um sujeito de pertencimentos múltiplos, contribuindo para a ampliação do léxico feminista. Usualmente, “rolê” é um termo que carrega sentidos associados à circulação e transitoriedade, o que faz sentido se consideradas as imbricações acima mencionadas. Enquanto gíria, “dar um rolê” remete a dar uma volta sem maiores compromissos, e tem sido usado no universo da pesquisa como uma categoria englobante e articuladora de pertencimento (e exclusões). Embora a expressão seja associada a atividades lúdicas, em termos de sociabilidade e lazer, pesquisas e acontecimentos mais recentes chamam atenção para o caráter político da contestação

87 em termos de raça, classe e gênero presente nos chamados “rolezinhos” (CALDEIRA, 2014).76 Nesse sentido, o termo alude também à experimentação, ao nomadismo e à intervenção no espaço público – características marcantes do circuito de eventos que perfazem o rolê feminista, nos quais sociabilidade e ativismo estão entrelaçados. Dito isso, o termo pode oferecer uma contribuição relevante, sinalizando tanto um deslocamento frente a categorias como “cena”, quanto em relação à noção mesma de movimento social. Algumas autoras, como Facchini (2008) e Marques (2016) fazem uso da noção de “cena” a fim de estabelecer ligações entre dados gostos e estilos musicais e determinados territórios – como no caso da cena das minas do rock ou das anarcofeministas. O uso do termo assinalava uma alternativa analítica a formulações como “subcultura” (ver MAGNANI, 2005; PEREIRA, 2007; ABRAMO, 1994), sendo utilizado para situar territorialmente determinadas redes (FACCHINI, 2008; NICOLAS, 2005). A década que nos separa do uso feito por Facchini evidenciou tanto o caráter ativista da cena e a imbricação entre sociabilidade e ativismo em redes predominantemente constituídas por jovens (DANILIAUSKAS, 2016; LIMA, 2016; FALCÃO, 2017) quanto a rejeição desta e de outras iniciativas ativistas de se autoclassificarem como movimento social (LIMA, 2016; GOMES, 2018). Rolê, portanto, ilumina a contingência que caracteriza a relação da rede ativista com o espaço, a efemeridade dos coletivos, a aperiodicidade dos eventos, e o agenciamento por meio da experimentação – aspectos que denotam tal imbricação entre sociabilidade e fazer político e a rejeição a formas institucionalizadas de participação. Tendo em vista as formas contemporâneas de politização do gênero e da sexualidade e considerando que a autonomia não encerra um significado a priori, este capítulo buscará explorar seus significados em ação no rolê, sem perder de vista a sua historicidade. Olhando para os discursos e práticas ativistas, discutirei a materialização da autonomia em práticas como a okupação e seus desdobramentos – como o escracho – no espaço público.

76 Recentemente, os chamados “rolezinhos” tomaram projeção nacional. Trata-se de encontros de grande número de jovens da periferia em shopping centers os quais, como discute Teresa Caldeira (2014), são parte de uma lógica de circulação que articula produção cultural, crítica social e trânsito pela cidade. Eles expressam também transformações recentes nas dinâmicas de classe, raça e gênero. A autora chama também atenção para o uso da expressão “fazer rolê” por parte de grupos de pichadores na cidade de São Paulo, entre outros.

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Mais especificamente, dialogarei criticamente com a noção de “prefiguração” criada na década de 1970 e hoje utilizada por alguns autores para analisar expressões ativistas recentes, como o MPL (Movimento Passe Livre) (ORTELLADO, 2013; BRINGEL, PLEYERS, 2015, MARQUES, 2016). De modo sucinto, ela diz respeito a busca por construir o mundo que se almeja a partir do espaço habitado no tempo presente. À luz dos dados etnográficos, discutirei potencialidade e limites do termo, sem ignorar os conflitos e disputas deflagrados na relação contingente das ativistas com outros atores sociais. Buscarei também matizar as polarizações do discurso ativista, enfatizando a permeabilidade de fronteiras entre os chamados ativismos cívicos e não cívicos – para usar a nomenclatura proposta por Alvarez et al. (2017). Com isso espera-se contribuir para a compreensão dos entendimentos nativos em disputa acerca do fazer político no/do rolê, de modo a ampliar a discussão sobre movimentos sociais contemporâneos e modalidades ativistas não institucionais. Na sequência, a partir da presença das minas negras e periféricas no rolê, o capítulo se volta aos limites da prefiguração, indagando os mecanismos que engendram exclusões (e pertencimentos) de forma mais ou menos tácita, o que leva à disputa sobre a noção de horizontalidade. Para tal, serão discutidos alguns excertos do diário de campo relativos a momentos de circulação no/do rolê entre os anos de 2015 e 2018. Como já foi dito, a observação participante se deu principalmente em eventos que são pontos nodais no rolê, através dos quais ativistas transitam provindas de diferentes estados do país. Considerando que se trata de pessoas que viajam e se visitam com frequência no interior de um circuito de eventos, isso implicou em uma etnografia móvel, acompanhando a circulação das ativistas. Além da observação de eventos e atividades internas à rede, foram coletados documentos etnográficos, como panfletos e fanzines. Também foi realizada observação online em redes sociais como o Facebook e entrevistas semi-estruturadas. Farei menção principalmente a três eventos: a I Feira do Livro Feminista e Autônoma, realizada na cidade de Porto Alegre em 2015, a Virada Sapatão, realizada em São Paulo no ano de 2016 e o Antifest Suspirin Feminista, realizado em Belo Horizonte nos anos de 2014 e 2016. Em geral, eventos como esses acontecem em locais públicos, como bibliotecas, universidades e centros de cultura, assim como em estabelecimentos comerciais de entretenimento, como casas de show.

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Eles começam durante o dia, com rodas de conversa, debates e oficinas, e terminam à noite, com performances ou shows de rock, punk, funk ou rap. As atividades são organizadas por coletivos – uma categoria fundamental e organizativa desse campo. Na rede pesquisada, é um termo que diz respeito aos agrupamentos cujas integrantes mantém relações de afinidade e/ou amizade entre si; são arranjos instáveis e contingentes, de número cambiável de integrantes. Como discuti anteriormente (CARMO, 2013), os coletivos operam como um valor – vide aqueles compostos por duas ou até mesmo uma só pessoa.

2.1 “Acabou o patriarcado! Bem vindas à Feira do Livro Feminista e Autônoma!”

A I Feira do Livro Feminista e Autônoma (FLIFEA) aconteceu na cidade de Porto Alegre (RS), entre os dias 30 de outubro e 2 de novembro de 2015. Entre o público havia mulheres jovens de Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e de outros estados do Sul e Sudeste brasileiro. A ideia surgiu a partir de experiência de participação na Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre e em grupos como o coletivo local da Marcha das Vadias. O texto de apresentação definia o evento como

Um espaço que se proponha a ser coletivo e plural na escuta e nas expressões das nossas diferentes vivências feministas, onde possamos nos encontrar para a troca de publicações, materiais, ideias e saberes. Esta é uma iniciativa feminista para afirmar a nossa presença no tempo e na história, problematizando o que é dito, como é dito e por quem é dito. Por isso a feira se posiciona de maneira autônoma em relação ao mercado editorial, ao estado, ao capital e a todos os lugares onde o patriarcado se reproduz. Arranquemos os tentáculos das esferas institucionais que produzem mentes e corpos!77

A atividade de abertura da FLIFEA aconteceu em uma sexta-feira, em praça pública localizada em região de atividades culturais de Porto Alegre que abriga cinemas, praças e bares. A praça era extensa e coberta por grama e algumas árvores. Uma faixa de tecido preto foi amarrada entre dois troncos. Em letras roxas, ela anunciava “I Feira do Livro Feminista e Autônoma”, com a primeira letra “a” grafada como “(A)” – símbolo associado ao anarquismo, chamado de “anabola” (MARQUES, 2016). Como em outros eventos, autônomo e anarquista pareciam operar de forma intercambiável como sinônimos.

77 Disponível em: . Acesso em 16 ago. 2017.

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Os preparativos começaram no entardecer: serrote, corda, vassoura e lenha compunham aquele pedaço da praça. A ideia era realizar um sarau com fogueira, onde cada uma era chamada a trazer “sua arte e sua bruxaria”. Ao longo da noite, o número de participantes crescia cada vez mais, e quem chegava prontamente se juntava aos esforços de construção do espaço. A lenha foi organizada de modo a formar uma fogueira, velas foram acesas em pequenos sacos de papel marrom que protegiam as chamas do vento, cordas eram usadas para amarrar a faixa e uma refeição era improvisada com pães e tomates. Havia garotas com camisetas de bandas punks, como Bikini Kill e Green Day. Uma delas sustentava um moicano na cabeça, vestindo calça, bota e camiseta inteiramente pretos. Também havia algumas com uma estética mais colorida, isto é, usando tecidos mais leves e estampados. Porém, em sua maioria, usavam bermuda ou calça e poucas exibiam saia ou vestido. Em termos de apresentação de gênero, algumas se mostravam de forma mais ambígua, com cabelo curto, tênis e camiseta mais solta, sem marcar as curvas do busto; ainda, outras tinham cabelo dreadlock ou tingido de cores como azul. Assim como nos demais dias do evento, a presença de negras era minoritária em termos quantitativos. Afora o nosso grupo, havia algumas pessoas passeando, mas definitivamente chamamos bastante atenção com uma fogueira acesa em plena praça pública, sem qualquer permissão ou licença formal. Além da fogueira, velas foram acesas ao seu redor, onde cerca de setenta pessoas se aglutinaram, sentadas em cangas e lenços. Com o anoitecer, as chamas da fogueira e as luzes alaranjadas dos arranjos de velas ganhavam contorno, e foi iniciada a abertura da Feira. De pé próximas ao fogo, duas participantes pertencentes à organização do evento deram as boas-vindas. Nas palavras delas, a I FLIFEA foi mobilizada tendo por objetivo contribuir para construir nossas vidas com autonomia. Essa seria a tônica tanto do conteúdo disponível nas produções a serem expostas, quanto das atividades planejadas para acontecer simultaneamente à feira em si. O simbolismo da fogueira foi usado para justificar o formato da abertura do evento: ao longo da história, a fogueira seria um “lugar de encontros” que naquele momento se insurgiria no espaço da cidade. Feitas as falas de abertura, alguém do meio da roda gritou uma saudação, de forma efusiva: “Acabou o patriarcado! Bem-vindas à Feira do livro feminista e autônoma!”, sendo acompanhada por gritos e palmas de reciprocidade.

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No dia seguinte, um sábado, teve início propriamente a Feira do Livro Feminista e Autônoma, em outro logradouro público: dessa vez uma praça localizada em região residencial de Porto Alegre, em bairro próximo ao centro da cidade. Embora o maior fluxo de pessoas na praça ocorresse em função da feira, havia alguns transeuntes passeando e moradores com seus cachorros se exercitando. Como forma de coletivizar o cuidado e a responsabilidade, em uma extremidade da parte cimentada da praça foi improvisado um espaço para crianças levadas à Feira, dispondo de lápis

92 coloridos e papel. Na outra extremidade foi montado um toldo com cadeiras plásticas que às vezes servia de local para oficinas. Em uma das laterais, foi pendurado um tecido translúcido no qual foi fixada uma vassoura de palha, dando a impressão de que a mesma estava flutuando, solta no ar, como uma referência ao imaginário socialmente associado à figura da bruxa. Diversos cartazes foram colados nas pilastras da praça. Os dois maiores foram confeccionados em tecido, com letras em branco e roxo: um deles dizia “I Feira feminista autônoma”, sendo que a primeira letra “a” na palavra “autônoma” foi cunhado também como “(A)”; na outra faixa, em tecido roxo, líamos “A nossa força de golpe é da mesma intensidade daquilo que vivemos. BRUXAS RESISTEM!”. Alguns cartazes de papel espalhados pela praça pediam: “respeita as minas”. Além da feira de publicações como brochuras, panfletos, zines e livros de pequenas editoras realizada em uma praça pública, a Feira do Livro Feminista e Autônoma (FLIFEA) de Porto Alegre também contava com uma extensa programação paralela (gratuita), sediada tanto na praça, como em uma escola no mesmo quarteirão, cedida no final de semana ao evento. Entre elas, figuravam, por exemplo, oficinas de fanzines, de livros e encadernação manual, de defesa pessoal para mulheres, ao lado de rodas de conversa intituladas “feminismo e arte”, “feminismos localizados e pós-colonialidade”, “autonomia e saúde das mulheres”, “combatendo a heterossexualidade compulsória: a importância do ativismo lésbico no rolê”, além de temas como bioconstrução, direito à cidade e aborto, entre outras atividades previstas para os três dias de evento. As minas eram o público alvo do evento. Mas o termo não possui sentido unívoco: como dito no blog78, a maior parte das atividades da FLIFEA eram “exclusivas para todas as mulheres, pessoas trans (binárias e não binárias)” e excludentes para “homens cis (pessoas que foram identificadas como homem ao nascer e seguem se percebendo e sendo percebidos como homens na vida)”.79 Aqui há um diálogo implícito com o debate acerca do sujeito legítimo do movimento feminista, que vem de longa data e é constantemente reelaborado como parte das disputas do

78 Disponível em: . Acesso em 18 nov. 2015. 79 Embora a maior parte dos eventos que observei no rolê fossem interditos para homens cisgênero, alguns deles – como o Festival Autônomo Feminista ocorrido em São Paulo anualmente entre 2014 e 2016 – permitiam sua presença em certos momentos. Nesses eventos relativamente mistos, era comum ver a presença masculina alocada na cozinha, preparando a refeição, ou na área reservada às crianças, cuidando e entretendo-as.

93 campo. O excerto do diário de campo aponta para a sua atualização em novos termos, reservando ao homem cisgênero a posição de exterior constitutivo. O cartaz maior fixado a uma das pilastras trazia o título de “ética da convivência autogestionada”. Em consonância com a pretendida suspensão de valores e códigos da sociedade mais ampla, ele explicitava os preceitos éticos de uma visão de mundo compartilhada. No cartaz, bastante comum nesses eventos, líamos: - a segurança é feita por todas, procure a grupa de acolhimento em caso de dúvida de demanda específica - bituca não é semente. Procure a bituqueira mais próxima - vamos manter o espaço limpo e organizado - se você ver uma tarefa por fazer, ela é sua - aqui não queremos servir nem consumir, mas compartilhar e trocar - não serão toleradas atitudes machistas, racistas, transfóbicas

Algumas chegavam de bicicleta na feira, estacionando-as nos bancos da praça e pilastras, e outras a pé. O espaço era dividido em banquinhas, termo nativo para locais ocupados por mesas ou balcões onde certos artefatos são expostos, vendidos ou trocados por quem produz. Entre as banquinhas foi posicionado um fogão portátil com uma grande panela na qual era preparada a refeição coletiva gratuita, servida de forma improvisada em potes plásticos de embalagens descartáveis reutilizadas e compartilhados. Em todos os dias da FLIFEA os alimentos servidos eram estritamente vegetarianos, isto é, veganos. Em troca, pedia-se “contribuição voluntária”. A partir da construção de relações sociais de oposição à organização hierárquica e centralizada (rejeitando, por exemplo, a divisão entre base e liderança e a delegação de funções), o evento emergia como um espaço de experimentação coletiva de novos arranjos e condutas. Ele dá lugar a locais temporários de autogestão, os quais seriam, ao menos inicialmente, livres de machismo, racismo e transfobia. Igualmente, é parte da antecipação da sociedade almejada o caráter anticapitalista, que estimula a predileção pelas “trocas” e partilhas ao invés das relações de “consumo”. A noção de que o início da FLIFEA marcava o término do patriarcado, assim como os cartazes espalhados pela praça, refletem alguns dos códigos e regras de convivência que regiam aquele espaço no qual deveria prevalecer a suspensão de certos valores e práticas da sociedade mais ampla, evocando a discussão sobre políticas prefigurativas.

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Em geral, a noção se refere a cenários nos quais ativistas expressam os “fins” políticos das suas ações através dos “meios”, ao invés dos “fins” justificarem os “meios” (YATES, 2015). Na bibliografia, “políticas prefigurativas” ou “prefiguração” são termos intercambiáveis, e estão associados a outras terminações como “micropolíticas” e “ação direta”. A grosso modo, o conceito diz respeito a tentativas de construir relações sociais utópicas ou alternativas no presente, de modo a “antecipar” a sociedade almejada. De acordo com Yates (2015), o termo foi cunhado por Carl Boggs (1977) a fim de denotar uma lógica política em pretendida oposição ao “marxismo estatal”, sendo desde então utilizado no debate acerca das tensões entre “comunidade” e “organização” dentro da New Left estadounidense na década de 1970. Em muitos trabalhos daquele contexto, “políticas prefigurativas” foi usado para se referir a uma dinâmica que distinguiria projetos políticos de esquerda ou estilo de protesto de esquerda à parte do trotskysmo e do leninismo, nos quais uma organização ou vanguarda são considerados necessários para trazer a revolução. Em crítica ao autoritarismo das tentativas passadas de socialismo de Estado, a prefiguração é dita para criar ou prefigurar alternativas utópicas, embora numa escala limitada, no presente (idem). Atualmente, a terminologia tem jogado papel significativo nas discussões dos movimentos contemporâneos, incluindo os movimentos anti-globalização, de ação direta ambiental, a ocupação de espaços públicos em 2011 no Egito, Grécia, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra, modos alternativos de consumo e abastecimento, entre outros. O termo aparece associado ao que tem sido chamado de “novos movimentos sociais” e está implicado nos debates mais amplos nos estudos sobre política e cultura (idem).

2.2 “Okupar é resistir”

Apesar da sua importância nesses debates, as discussões sobre políticas prefigurativas estão baseadas em alegações difusas, que geram dificuldades teóricas e questões empíricas. Nem sempre está claro se a prefiguração é uma tática, uma orientação ou um jeito de fazer protesto, um tipo alternativo de movimento ou uma combinação disso, como problematiza Yates (2015). De fato, a categoria evoca muitas interpretações. É impreciso ao que se refere a prefiguração da sociedade vindoura: ela estaria relacionada à ação direta como forma de

95 intervenção no social por meio de determinada performance, como a prática do “catracaço”80, por exemplo? Ou, antes, ela estaria embutida nos formatos organizativos que prescindem de lideranças formais e nas tomadas de decisão por meio de assembleias horizontais? Yates identifica duas formas como o termo tem sido utilizado na literatura: 1) Em certos enquadramentos conceituais o termo é usado para fazer menção a um modo de conduzir protestos e tomadas de decisão coletivas de forma não hierárquica. O exemplo típico seria o consenso, a “democracia direta” e mecanismos usados para promover tomadas de decisão igualitárias – como nos protestos antiglobalização em Seattle (1999), quando manifestantes em assembleia gritavam a palavra de ordem “This is what democracy looks like!”. Segundo Yates, seriam proponentes dessa corrente autores como Boggs e Graeber. 2) Para a segunda corrente, prefiguração diz respeito à construção de comunidades ou instituições “alternativas” enquanto sociabilidade e formatos organizativos de movimentos sociais. Epstein e Breines seriam alguns dos teóricos dessa perspectiva. É comum às duas visões a noção de prolepse, de acordo com a qual “prefigurar” consiste em antecipar ou mobilizar no presente algumas características de um mundo aspirado. De acordo com o autor, pesquisadores e estudiosos da área continuam a tratar as políticas prefigurativas principalmente como uma das duas dinâmicas, embora exista uma série de justaposições entre elas. A simples noção de equivalência entre meios e fins não ajuda na compreensão das ações políticas nomeadas como prefigurativas. Não está claro a quais processos e objetivos se faz referência. Esse tipo de elaboração, argumenta Yates, é impreciso na medida em que movimentos têm múltiplos objetivos e se engajam em grande variedade de práticas, processos e “meios”. Propõe-se que a prefiguração é melhor compreendida como uma configuração plural de práticas, compreendendo as duas dinâmicas e suas justaposições. A fim de complexificar a relação entre práticas e as finalidades ou objetivos da luta, Yates propõe que a equivalência meios-fins significa: a) que há uma ênfase nas “micropolíticas” de como práticas coletivas são performatizadas através de certa homologia com um ou mais objetivos do movimento; b) essa relação é sempre parcial e o tipo de homologia entre práticas e objetivos varia a depender do grupo em questão.

80 “[...] o catracaço é a implementação prática da Tarifa Zero. Pode ser feito com a abertura das portas traseiras do ônibus ou pulando as catracas” (MPL, 2013, p. 13). Nessa categoria poderiam ser incluídos também os escrachos.

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Ademais, frente ao material etnográfico sobre o rolê, acredito que há uma lacuna nesse debate no que tange o lugar do corpo. Nessa seção, argumentarei que, no rolê feminista, a prefiguração denota experimentação – entendida como algo que se tem a intenção de testar, sem ter certeza ou estar segura sobre os resultados, orientada à produção de novos códigos e tendo como objetos de intervenção o corpo, o tempo e o espaço. Adiante, apontarei que à experimentação somam-se constrangimentos sociais como dimensão igualmente constitutiva. Sendo assim, o que também está em questão nesse debate é a próprio noção temporal de futuro, que muitas vezes parece estar ausente do horizonte de ação das feministas autônomas/libertárias/anarquistas, dada a sua ênfase no presente imediato acessado pelos eventos. A relação tempo-espaço que subjaz a essas atividades pode ser entrevista em uma ilustração que estava exposta em banquinha de evento realizado na cidade de São Paulo em agosto de 2016, nomeado Virada Sapatão (VS). Nele, uma personagem desenhada à mão aparece mastigando um relógio que apresenta fissuras:

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Figura 6 Disponível em: . Acesso em 12 dez. 2016.

A Virada Sapatão (VS)81 aconteceu no mês de agosto, considerado na agenda ativista como o Mês da Visibilidade Lésbica. Entre as atividades, aconteceu uma roda de conversa sobre violência entre lésbicas, oficina de escrita, oficina de rádio, roda de conversa sobre lesbianidade negra, roda de conversa sobre branquitude, exibição de filmes, para nomear algumas. O evento contou com aproximadamente 24 horas de atividades na programação, ao longo da qual chegou a ter cerca de 100 participantes em um espaço chamado Brejo das Flores, situado em um bairro na Zona Norte da cidade de São Paulo, que se localiza a cerca de 10 quilômetros do

81 O nome é uma provável referência ao evento Virada Cultural que acontece anualmente na cidade de São Paulo, organizado pela prefeitura.

98 centro geográfico da cidade. O lugar se define como uma “uma casa de lésbicas, feministas, autônomas, que busca construir espaços de troca, coletividade e sororidade.” Assim como a figura da bruxa, o uso de sapatão é parte de estratégia de positivação de categorias acusatórias. O termo expressa a assunção de uma identidade lésbica que, como coloca Facchini (2008:161) sobre as dykes, está “associado a comportamentos e/ou aparências tidas convencionalmente como ‘masculinas”, e a “manter uma postura de enfrentamento com os homens, quando se acredita que estes estejam invadindo seu espaço ou cerceando, de alguma forma, a sua expressão”.82 A própria noção de “virada” carrega sentidos associados ao manejo do tempo. O tempo como objeto de intervenção é o tema da ilustração, na qual as rachaduras no relógio materializam a busca por uma maneira não rotinizada de vivenciar o corpo, o tempo e o espaço, de modo a tomar de volta uma vida percebida como roubada. Tal experimentação é por vezes traduzida por meio do termo êmico ocupação ou okupação83, remetido tanto ao espaço e à rua, quanto ao corpo, enquanto dois polos de um contínuo a ser ocupado. Como afirmou uma interlocutora em outra ocasião, “temos que ocupar também os nossos corpos!”. Diferentemente da FLIFEA, a Virada Sapatão aconteceu em uma casa dentro de vila residencial, que funciona tanto como espaço de moradia quanto como centro cultural. O fluxo de pessoas e o som emitido pelos shows e conversas informais dentro e nos arredores do imóvel foram objeto de preocupação da organização, pois a presença repentina da polícia não era incomum em eventos como esse no local. A programação contava também com uma saída às ruas para fazer intervenções em muros e postes por meio de lambe-lambes, e inscrição com spray utilizando moldes vazados (estêncil). Sendo assim, nota-se certa permeabilidade entre público/privado, casa/rua – atravessada por muitas tensões, como discutirei ao longo deste capítulo.

82 À época, a autora notou que o uso do termo parecia “não pressupor uma correlação necessária entre práticas afetivo- sexuais e identidades” (Facchini, 2008:158), ou seja: “ter experiências sexuais com mulheres não faz de alguém uma dyke, nem faz com que quem experimenta ou mesmo tem relações casuais com outra mulher deixe de ser considerada hétero” (p. 159). Como já posto no capítulo 1, considero que a expansão do uso de categorias de autonomeação como sapatão, sapa e caminhão é, de certo modo, caudatária da cena das minas do rock investigada pela autora entre 2004 e 2007. 83 Ainda dentro do campo de experimentações com a linguagem, o uso da letra “k” no lugar do “c” parece ser parte da grafia punk. Como aponta Gabriela Marques (2016, p. 95), “[É] Interessante perceber como a grafia punk, em todo o mundo ocidental, se utiliza de grafismos específicos não só no tocante ao gênero, mas a todas as palavras, a substituição da letra c pela letra k, por exemplo, é comum em diversos países como Chile, Brasil, Espanha e França, e nos mostra como a grafia também é um campo de batalha e como ela circula.”

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Como já mencionado, a Feira em Porto Alegre também tomou corpo na ocupação de praças públicas, alterando a paisagem e a rotina do entorno dos logradouros durante aqueles quatro dias. Conforme sugere Raquel Rolnik (2013), coletivos que reivindicam o direito à cidade, como o MPL (Movimento Passe Livre), fazem de grandes cidades brasileiras não só palco de suas ações, como objeto de intervenções desses próprios coletivos. A autora pondera que, se na linguagem da polícia a ocupação das ruas significa baderna, para diversos movimentos sociais a retomada do espaço urbano constitui não só um objetivo como um método. De acordo com sua visão, a ocupação da rua não seria em si algo novo na política, mas é recente o seu “sentido de controle do espaço, mesmo que por um certo período, e, a partir daí, a ação direta na gestão de seus fluxos” (Rolnik, 2013: 10). Desse modo, ocupar as ruas equivaleria a reorganizar os espaços fazendo uso do próprio corpo como “ação direta”. Em seu livro de 2015, “Notes toward a performative theory of assembly”, Judith Butler (2015) chama atenção para o corpo nos protestos e demonstrações em espaços públicos84, ao repensar e alargar a noção de performatividade – inicialmente desenvolvida para analisar o exercício performático do gênero e a sua materialização (BUTLER, 2003, 2010). Informada pela crítica feminista, ela traz uma contribuição relevante ao apontar para a importância não só das demandas vocalizadas nos discursos em praças e ruas, mas nos atos corporais coletivos que buscam reconstruir formas de agência e práticas de resistência. Para a autora, quando corpos se reúnem na rua, na praça ou em outras formas de espaço público, incluindo espaços virtuais, eles estão exercendo o “direito performativo de aparecer” (performative right to appear) – um direito que afirma e instala o corpo no meio do campo político e que, na sua dimensão expressiva e simbólica, produz demandas corporificadas por uma vida mais “vivível”. A assembleia exprime uma forma provisória de coexistência onde os corpos reunidos “falam”, mesmo que se mantenham em silêncio – assim, a performatividade diz respeito não só ao discurso e atitudes heroicas, mas às demandas colocadas nas ações dos corpos, como gestuais, movimentos, congregações, persistência e exposição dos corpos à possível violência e repressão.

84 Quando fala em demonstrações públicas, Judith Butler está pensando nos protestos na Praça Tahrir no Egito em 2011, no movimento Occupy nos EUA, nas lutas por educação pública no Chile, e mobilizações para fazer das ruas espaços seguros para minorias sexuais e de gênero, incluindo pessoas trans, cuja aparição é frequentemente punida por meios legais ou ilegais. Para ela, há em comum a essas mobilizações a luta contra a condição social e econômica de precariedade – por sua vez, vista como a rubrica que reúne mulheres, queers, pessoas trans, pobres, pessoas com deficiência, imigrantes sem documento, e minorias raciais e religiosas.

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Para a autora, essas demonstrações podem pôr em questão certas dimensões das noções vigentes acerca do político e da divisão público-privado. Embora motivadas por razões políticas distintas, as demonstrações coletivas que tomam ruas e praças possuem algo em comum: corpos se congregam, movem-se, falam entre si e reivindicam aquele espaço como público. Butler discorda das análises que caracterizam esses movimentos apenas como corpos que se encontram para elaborar demandas no espaço público. Para ela, formulações desse tipo tem como pressuposto um espaço público que está dado, que já é público e reconhecido enquanto tal, falhando em reconhecer que o próprio caráter público está sendo disputado. Praças e ruas não são meros suportes materiais para a ação.85 São em si mesmos parte da ação pública corporificada. A assembleia pública reconfigura a materialidade do espaço público, cujos equipamentos são ao mesmo tempo parte e agentes da ação (BUTLER, 2015). Além de trazer o corpo para o centro da análise – algo ausente na literatura citada sobre políticas prefigurativas –, as considerações da autora são relevantes para a noção de okupação aqui discutida e o(s) tipo(s) de prefiguração por ela mobilizado. Há debates intensos dentro do espectro da esquerda envolvendo as questões acima tratadas tanto no campo político quanto acadêmico. Por exemplo, Farber (2014), coloca os teóricos da política pré-figurativa em oposição aos “esquerdistas estratégicos” os quais defenderiam que não é possível “pré-figurar” a sociedade futura pois os movimentos estão inexoravelmente sujeitos às pressões do capitalismo e do Estado. Para o autor, a política pré-figurativa nega a centralidade do Estado e isso leva a ignorar a necessidade de demandar e formular exigências políticas ao governo. Na leitura de Farber, os proponentes da pré-figuração defendem uma concepção muito estreita de democracia. Isto é, uma vez que eles estariam em oposição à delegação de funções, “isso tende a gerar longos debates sobre temas triviais que substituem discussões politicamente mais relevantes. Nesse sentido, às vezes, a prática democrática se reduz a decidir democraticamente quem fará a limpeza ou quem trará a pizza.” (FARBER, 2014, p. 82). Isso excluiria a maior parte das pessoas que estão ocupadas com obrigações familiares e profissionais e portanto não têm “tempo ilimitado para militar”.86

85 As considerações de Butler sobre espaço e equipamentos públicos têm influência dos estudos sobre deficiência e o entendimento da agência de atores não-humanos, como a autora dá a entender na página 72. 86 Faber segue a sua crítica defendendo a concepção de Lênin de “tribuno popular” e acrescenta: “Infelizmente, essa estratégia política ampla não se vê favorecida pela tendência comum entre parte da esquerda pós-Occupy de reforçar as situações de privilégio e de se acusar mutuamente de racismo, sexismo, homofobia, transfobia, susceptibilidades sobre a imagem corporal, entre outros aspectos, sem nenhuma consciência sobre como construir um movimento que

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Uma crítica similar é formulada por Ortelado (2013), na sua análise sobre as Jornadas de Junho. Na visão do autor, movimentos como os protestos de junho de 2013 são constituídos por uma tensão entre a dimensão processual e os resultados práticos da ação política. Haveria uma sobrevalorização do processo a despeito dos resultados, de modo que a ênfase recairia sobre o meio pelo qual atuam: eles veriam a democracia radical e a ideia de uma sociedade livre e igualitária não como uma meta, mas como algo a ser antecipado no próprio processo de luta, de forma prefigurativa. Assim, as opções táticas não seriam julgadas com respeito aos resultados práticos da luta, mas à “integridade do idealismo”. As assembleias seriam exemplo flagrante dessa tensão, onde “tudo o que já foi dito precisa ser dito outra vez por quem ainda não falou”, pois a questão não consistiria em tomar uma decisão que contemple a pluralidade de perspectivas constitutivas da coletividade, mas também se trata de dar lugar à autoexpressão e à participação em uma experiência comunitária. Todavia, a análise em termos de processo versus resultados obscurece o lugar da experiência, sociabilidade e do lúdico como aspectos inseparáveis do próprio fazer político alicerçado na politização do cotidiano. Como colocam Facchini e Rodrigues (2017) a respeito de inflexões recentes no movimento LGBT e que se fazem presentes também no rolê feminista, “a interlocução parece se deslocar de um foco predominante na figura do Estado como administrador de demandas, com agendas a serem disputadas, na direção da disputa da opinião pública e da intervenção visando ‘descontruir preconceitos” – o que requer um olhar aberto aos significados nativos atribuídos a “meios” e “finalidades”, ou “processos” e “resultados”, assim como à relação entre os termos. Além disso, como será explorado na próxima seção, a ocupação enquanto estratégia pré- figurativa só pode ser entendida enquanto localizada em um contínuo de gradações entre o cívico e o não cívico, seja em relação de conflito como de tensão produtiva (Alvarez, et al., 2017).87 Essa

defenda uma política de solidariedade com os oprimidos (a opressão é uma opressão a todos). É a política de uma ‘seita’ pura (para empregar o termo do teórico político de esquerda Sheldon Wolin), em contraposição àquelas que reivindicam uma política de solidariedade.” (Farber, 2014:84). 87 Como Alvarez et al. (2017) chamam atenção, os âmbitos cívico e não-cívico da participação são constantemente tratados de forma dualista. O debate contemporâneo muitas vezes se divide em duas vertentes cujas pressuposições são questionadas pelos autores: 1) As ciências sociais de tendência liberal tendem a afirmar que ações políticas protagonizadas pela sociedade “não-cívica” ameaça a democracia, ao passo que a participação da sociedade civil nas instituições governamentais e intergovernamentais tenderia a aperfeiçoar ou expandi-la; 2) Já para a outra vertente, ações como protestos de rua e de ação direta seriam os responsáveis por avançar a democracia – os autores lembram que esse repertório tem sido apropriado por atores conservadores, como grupos que pressionaram pelo impeachment de Dilma Rousseff. Como será explorado adiante, os autores propõem um quadro interpretativo que considere as

102 dimensão está ausente nos autores acima, os quais como Farber, tomam o Estado como uma instituição monolítica.

2.3 “Quem é bem-vinda?”: negociando fronteiras

Tomei conhecimento da realização da Feira do Livro Feminista e Autônoma no mês de julho de 2015, por meio do site Facebook, quando uma amiga compartilhou na rede social o endereço do blog do evento, junto a um dos cartazes de divulgação. Sendo direcionada ao endereço eletrônico “flifeapoa.noblogs.org”, passei a visitá-lo com frequência. Em agosto, foi divulgada uma chamada para confecção de cartazes, de acordo com a qual todas aquelas que se sentissem “chamadas a somar” poderiam enviar a sua arte a fim de colaborar na divulgação. Posteriormente, onze cartazes foram adicionados à galeria do blog. Em agosto também foi iniciada uma chamada para a construção coletiva da programação da Feira: as interessadas em propor bate-papo, oficina, filme, debate ou outro tipo de atividade poderiam enviar a proposta por e-mail. Convocações a reuniões presenciais abertas às colaboradoras também foram veiculadas no blog, assim como havia referências ao e-mail e fórum da FLIFEA no servidor RiseUp. O RiseUp é um servidor criado e gerido por coletivo de mesmo nome, que oferece ferramentas de comunicação online, como conta e lista de e-mail, fórum e outros recursos. O coletivo tem sede na cidade de Seattle (Estados Unidos) e membros em diversas partes do mundo. Segundo o próprio site, o projeto tem em vista a criação “de alternativas democráticas para a prática da autonomia, por meio do controle dos nossos próprios meios de comunicação segura”, sendo voltado para “pessoas e grupos trabalhando em mudanças sociais libertárias”.88 A “comunicação segura” é construída em contraponto ao “monitoramento das redes” por parte de governos e a falta de confidencialidade dos “provedores de emails corporativos”: Não existe email gratuito. Serviços como gmail, hotmail, e yahoo fazem dinheiro a partir da vigilância: eles constroem um perfil sobre seu comportamento e bombardeiam anúncios direcionados a você.

contaminações e tensões que ocorrem entre os diversos âmbitos da participação e a diversidade de atores na última década. 88 Disponível em: . Acesso em 26 nov. 2015.

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Riseup.net é diferente. Esse serviço é um trabalho de amor por ativistas como você, comprometidas com a construção de ações e infraestruturas de segurança alternativas.89

De acordo com o coletivo RiseUp, o e-mail do provedor homônimo não registra o endereço IP do usuário, de modo que não é possível identificar o seu local, como acontece na maioria dos serviços. Além disso, as informações trocadas, assim como os dados pessoais de usuários armazenados são criptografados. Com intuito semelhante, o blog da Feira foi hospedado na plataforma Noblogs.org, cujo lema é “Connecting radical people. Non commercial, antifascist, antisexist, privacy-oriented blog platform.” 90 Em setembro, à revelia da postura da organização da FLIFEA, uma página intitulada “Porto Alegre Cultura” criou e manteve online um evento público no site Facebook com o nome de “1ª Feira do Livro Feminista e Autônoma”. Em resposta, foi publicada uma “Nota de repúdio” no blog, segundo a qual a criação do evento pela página citada, que não tem relação com a organização da Feira, se mostrava uma tentativa “desonesta” e “oportunista” de “captura, sequestro, assimilação e controle”. Enquanto iniciativa autônoma, a “segurança na internet” passa pela resistência ao Facebook91: Sabemos que essa rede social é atrativa aos olhos e aos egos, e que parece grande coisa ter milhares de curtidas ou confirmações de presença, mas pra nós é muito mais significativo garantir nossa segurança pessoal e coletiva e não nos expormos à vigilância que essa ferramenta permite sobre as nossas vidas.92

Ao ver da FLIFEA, a criação do evento cumularia numa exposição descuidada. A fim de garantir a segurança das pessoas presentes no evento, a estratégia adotada consistia em utilizar apenas o e-mail e o blog como canais de divulgação e diálogo. Ademais, os endereços dos locais físicos onde a feira seria realizada foram divulgados apenas poucos dias antes do início do evento.93 Esses dados são relevantes pois apontam para um conjunto de precauções que associam certo

89 Disponível em: . Acesso em 26 nov. 2015. 90 Disponível em: . Acesso em 26 nov. 2015. 91 Para uma análise crítica de como se dá o uso e a coleta de dados de usuários na rede social Facebook visando a produção de estatísticas, a construção de perfis comportamentais e a venda de publicidade dirigida, ver Ortiz e Silveira (2013). 92 Disponível em: . Acesso em 26 nov. 2015. 93 “Muitas pessoas nos perguntam sobre onde acontecerá a FLIFEA-PoA, e essa inquietação aumenta com a proximidade da data. Queremos, portanto, avisar que, por diversos motivos, o local de realização da Feira será divulgado apenas nos dias próximos ao seu acontecimento. Temos nos ocupado em garantir que estejamos num lugar que nos permita a autonomia que precisamos para poder compartilhar nossos saberes de maneira tranquila e confortável num lugar acessível, em breve avisaremos como chegar até lá.” Disponível em: . Acesso em 26 nov. 2015.

104 hermetismo à segurança, a fim de salvaguardar a realização do evento, como será discutido nessa seção. Com o título de “Quem é bem-vinda?”, uma publicação feita no mês de agosto no blog da FLIFEA afirmava: A circulação na Feira é aberta para todas as pessoas. Para expor banca e propor atividades são bem-vindas todas que se considerem feministas e não sejam pessoas que foram designadas homens ao nascer e continuem vivendo e se identificando dessa forma. Consideramos que diferentes concepções de feminismos são bem-vindas e necessárias para contemplar nossas diferentes vivências. Cada atividade terá seu nível de exclusividade definida por quem a propõe, portanto podem haver atividades exclusivas por gênero, sexualidade e raça, e estes espaços devem ser respeitados. Convidamos todas as presentes a que coletivamente acolham e dêem apoio em situações em que alguém se sinta ameaçada, coagida, em risco ou oprimida.94

A noção de okupar um espaço público não anula por completo as disputas que surgem com o uso compartilhado desses locais com outros atores – especialmente se tratando das praças em finais de semana, cuja circulação de pessoas pode se dar por diversos meios e finalidades. Assim, a organização da Feira lançou mão de diversas estratégias de regulação do acesso ao evento, em consonância com as precauções no âmbito online. Abaixo, em face dessa discussão sobre segurança e autonomia, buscarei indicar os limites e negociações de fronteiras em eventos como esse, cuja lógica pressupõe ameaças externas, apresentando alguns dos seus momentos contenciosos em descrições do diário de campo.

Cena 1

No sarau de abertura da FLIFEA, um homem branco, desconhecido, que passava pelo local, insistiu em se manter próximo à fogueira, olhando fixamente para o grupo. Logo algumas se dirigiram a ele, de forma intimidadora. “O espaço é delas agora!”, esbravejou. “Vou abrir um B.O. contra vocês!” – e gerava reações de riso. “Vaza, vaza!” gritavam as meninas. Uma delas chegou a pegar um graveto de madeira e ameaçar jogar sobre o homem, que então se retirou após momentos de tensão quase física. “Ele chamou a gente de sapatão!”, “Que coisa ruim, né?” – comentavam em volta da fogueira, em chacota. Durante alguns minutos toda a atividade foi

94 Disponível em: . Acesso em 26 nov. 2015.

105 interrompida em função da sua presença. Ao longo do evento a situação se mostrou relativamente recorrente.

Cena 2

Estava distraída entre as banquinhas de zines, quando notei uma movimentação estranha. Uma garota da organização tentava comunicar que algo inesperado estava acontecendo. Foi quando avistei, na parte da praça que havia sido coberta com as lonas, um homem branco alto, robusto, de bigode, cerveja Polar na mão, calça jeans e camiseta branca, onde, em explícita provocação, se lia “machista” em caixa alta na cor vermelha, e logo abaixo a frase “Porque não é errado ser homem”. Imediatamente, garotas passaram a se dirigir a ele, que permanecia imóvel e calado, braços cruzados com a cerveja na mão, em posição altiva. Enquanto algumas observavam e pediam para “Não dar ibope”, outras partiram para a intimidação com o objetivo de que ele fosse embora.95 Mas o mesmo ligou a câmera do celular e filmou a situação, irritando-as ainda mais. Por instantes, tomaram o aparelho dele com o objetivo de apagar o que havia sido filmado, e o mesmo foi logo devolvido. Formou-se um círculo em torno do homem, aos gritos de “sai fora, machista” e algumas começaram a empurrá-lo quando outro homem apareceu tentando defendê-lo. Ao meu lado, algumas comentavam que não devíamos dar a atenção a ele. Ao mesmo tempo, cerca de vinte garotas o cercaram – “Pega seu celular e vai embora!” – enquanto outras gritavam “e a missão vai ser cumprida!”96 – e corporalmente o pressionaram a entrar no carro e deixar o local, à sua revelia. De acordo com uma informante, trata-se de um youtuber já conhecido por ativistas de Porto Alegre, cuja prática consiste em “invadir” eventos desse tipo e deliberadamente se envolver em conflitos e discussões, sempre munido de aparelho de celular com câmera. Posteriormente tive a informação de que “o machista” publicou um vídeo no site Youtube como testemunho da

95 “Ibope” é a sigla para Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. O termo é usado no senso comum como sinônimo de audiência. 96 Referência à música “A missão vai ser cumprida”, conhecida como “proibidão feminista” de autoria do grupo PaguFunk da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro. O refrão é composto por frases como “a missão vai ser cumprida” e “vou cortar sua pica”. Segundo reportagem do El País, a canção foi inspirada “nas Justiceiras de Capivari, um grupo de mulheres que, na ausência de policiamento e de uma resposta do Governo do Estado, se armou de facões para defender seus filhos de agressões sexuais, após uma série de estupros e assassinatos de meninas na comunidade da Baixada Fluminense, entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Em 2005, a fundadora do movimento, Ildacilde do Padro, ou Dona Ilda, foi assassinada a tiros na porta de sua casa”. Disponível em: . Acesso em 08 dez. 2015.

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“agressão” que teria sofrido por parte das feministas.97 O episódio indica não só reações implicadas na ocupação da praça e disputa do espaço público, como também reações à ocupação também da internet. Machista parece figurar aqui como uma espécie de identidade política, fenômeno conhecido como masculinismo que alude a “ativistas pelos direitos dos homens” sobre o qual Lola Aranovich tem escrito extensamente em seu blog.98 Eles fazem parte do cotidiano das interlocutoras desta pesquisa. Ademais, o youtuber que invadiu o evento tem vínculos com atores que foram responsáveis, em 2017, por promover o cancelamento da exposição Queermuseu no Santander Cultural em Porto Alegre, como o MBL (Movimento Brasil Livre).99

Cena 3

Na segunda-feira, dia 02 de novembro e último dia de FLIFEA, fui surpreendida quando, em Porto Alegre, acordei e, ao ligar o computador e acessar o Facebook, me deparei com uma foto desfocada de uma garota com o rosto bastante ensanguentado. Era o rosto da Lia, que então tinha cerca de vinte e dois anos, e cursa Jornalismo. Com sua pele branca, cabelos claros, lisos e curto, o sangue espesso escorria do início da testa até a boca, de modo a tomar metade do seu rosto. A postagem havia sido veiculada através da página “Putinhas Aborteiras – Anarkafunk e Anarkarap” e tinha por título, em caixa alta, “Chamado urgente de solidariedade! Agressão policial na 1ª Feira do Livro Feminista e Autônoma de Porto Alegre”. Abaixo, lia-se o seguinte texto:

Desde o início da FLIFEA sofremos perseguições e agressões machistas e fascistas, com ameaças, provocações e presenças hostis, que foram constatadas e enfrentadas em cada momento. Mas o que aconteceu nesta noite de domingo (01/11/15) merece uma denúncia

97 Por questões éticas, o endereço eletrônico para acesso ao vídeo foi suprimido deste texto, a fim de salvaguardar a identidade das ativistas expostas no mesmo. 98 Mais informações estão disponíveis em: . Acesso em 19 fev. 2016. 99 Ele aparece ao lado dos youtubers de direita Rafinha BK e Felipe Diehl em vídeo que viralizou e serviu de estopim para o cancelamento da mostra “Queermuseu – cartografias da diferença” promovida em Porto Alegre no Santander cultural no ano de 2017. Publicado no site Facebook, o vídeo obteve mais de 1 milhão de visualizações. No vídeo ele veste a mesma camiseta onde se lê “Machista, porque não é errado ser homem”. O método é o mesmo utilizado na FLIFEA: adentram a exposição portando câmera filmadora, à revelia das normas internas do museu e da intervenção dos seguranças, expondo rostos de visitantes, funcionários e demais que lá estavam, o vídeo acaba no momento em que são expulsos do local. De acordo com reportagens, são atores próximos ao MBL. O ataque à mostra é parte de um cenário de recrudescimento conservador que tem como alvo a chamada “ideologia de gênero”, a defesa do projeto de lei “escola sem partido”, entre outros.

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específica para apontar a violência estatal que expressa a misoginia institucional que violenta mulheres sistematicamente. Na noite de domingo estava acontecendo um ensaio artístico, com a presença de em torno de 20 mulheres, e uma viatura chegou com dois policiais que vieram supostamente devido ao barulho. Eles filmaram e intimidaram as mulheres presentes que estavam falando com eles, o que gerou reações de proteção entre as mulheres, como se organizar para ir embora e filmar a situação. Em seguida chegaram outras viaturas com mais policiais que foram extremamente agressivos e marcadamente racista desde o início e tentaram deter uma de nós de maneira violenta, o que desencadeou uma série de agressões físicas por parte da polícia das quais nove mulheres ficaram feridas, sendo que quatro gravemente e precisaram de atendimento médico. Muitas agressões aconteceram de maneira simultânea, havendo inclusive policiais que sacaram armas de fogo - um deles sacou uma arma e ameaçou várias de nós dizendo “eu vou queimar você”. Entre as ameaçadas nessa situação, uma das mulheres inclusive avisou que estava grávida, o que não foi relevante para os policiais. Dois moradores que estavam na praça no momento do ocorrido também foram agredidos com cassetetes pela polícia. As mulheres que estavam com celulares foram alvo específico de agressões, e dois celulares foram roubados pelos policiais. Algumas das mulheres que tentavam fugir eram perseguidas e derrubadas e não conseguiam sair das agressões dos policiais, caídas no chão apanhavam com cassetetes e chutes, enquanto outras voltavam pra colocar seus corpos como escudos para tentar protegê-las e tirá-las dali. Essa cena se repetiu sucessivamente, e em meio a espancamentos com cassetetes as mulheres conseguiram chegar até as proximidades do Hospital de Clínicas, quando os policiais finalmente dispersaram. *********** Em nenhum momento companheiras ficaram para trás, conseguimos nos reunir em segurança para escrever este relato e para chamar a solidariedade de todas as pessoas que possam nos apoiar neste momento. A feira está programada para continuar suas atividades na segunda feira (02/11/15), a partir das 10 horas, no mesmo local onde ocorreram essas agressões. Precisamos de apoio nesta manhã! ********** Considerando que mulheres chegarão desavisadas do ocorrido, temos que nos fazer presentes e precisaremos de todo o apoio possível. Começaremos o dia com uma roda de conversa sobre essa situação. Precisamos da presença da maior quantidade de pessoas possível para garantir a continuidade da feira nesse último dia. É assim que a gente revida, não nos calando e resistindo juntas não apenas na disputa pela rua e o espaço público mas também contra um sistema que não admite a auto-organização de mulheres e que se sente ameaçado pela nossa existência insubmissa. Foi escancarado o acréscimo de ódio que a misoginia teve nesse episódio e sentimos que isso precisa ser enfrentado pela nossa sobrevivência, por todas nós que vivemos na guerra desse mundo contra as mulheres.100

A página no Facebook que divulgou a nota acima diz respeito a um grupo de Porto Alegre cujas músicas foram trilha sonora em diversos momentos da FLIFEA, sendo uma referência recorrente no evento. O grupo Putinhas Aborteiras tomou corpo após julho de 2013, quando integrantes participaram da chamada Jornadas de junho e da ocupação da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Na ocasião, foi feita uma denúncia de abuso sexual, tematizada em uma das letras

100Fonte: . Acesso em 05 nov. 2015.

108 do grupo: "Eu tava bem de boa na ocupação/ Até que no meu peito senti foi uma mão/ Um toque de tarado inconsequente/ Da boca do fulano não sobrou nem só um dente".101 O nome Putinhas Aborteiras ganhou certa repercussão nacional no ano de 2014, quando a banda, que se auto intitula coletivo, fez uma apresentação em programa da TV Educativa do estado do Rio Grande do Sul (TVE-RS). Esta se deu no contexto de divulgação da Marcha das Vadias de Porto Alegre e foi precedida por uma entrevista, que foi ao ar às 18h30 do dia 24 de abril. Por conta do conteúdo julgado inapropriado, a apresentação na íntegra só foi veiculada na madrugada do dia seguinte, por volta das 02h30 da manhã. Com cerca de doze garotas com microfones e instrumentos produzindo músicas no estilo funk carioca, elas foram colocadas, nos termos do apresentador, como uma banda de “anarkofunk, anarkorap ou anarkafeministas”. 102 A performance iniciou com os versos “Se o Papa fosse mulher, o aborto seria legal” e "Ei, Papa, levanta o teu vestido / Quem sabe aí embaixo não está o Amarildo".103 O vídeo do programa também foi disponibilizado no site Youtube, onde alcançou mais de 500 mil visualizações104. Ele virou assunto na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, onde integrantes do Partido Progressista protocolaram um requerimento de moção de repúdio à TVE- RS por ter apresentado o grupo, argumentando que se trata de um vídeo “atentatório à moral e aos bons costumes e ofensivo à figura do Papa Francisco”, com “linguajar chulo, de baixo nível” e enviaram uma notificação à banda-coletivo.105 Dias depois a emissora demitiu dois funcionários responsáveis por publicar no Youtube o vídeo da apresentação. Em nota no Facebook sobre o ocorrido, a banda contou que integrantes do coletivo foram expostas, e tiveram sua integridade física e mesmo suas famílias ameaçadas.106

101 Fonte: . Acesso em 16 jan. 2016. 102 Disponível em: . Acesso em 27 nov. 2015. 103 Amarildo Dias de Souza se tornou símbolo do abuso de autoridade e violência policial por conta do seu “desaparecimento” no ano de 2013, quando foi detido por policiais militares na porta da sua casa, na Favela da Rocinha (Rio de Janeiro), sendo levado em direção a sede da Unidade de Polícia Pacificadora do bairro. Os próprios policiais são os principais suspeitos do seu desaparecimento. No mesmo ano o Papa visitou a cidade do Rio de Janeiro durante a XXVIII Jornada Mundial da Juventude. 104De acordo com matéria do ZH Notícias. Disponível em: . Acesso em 27 nov. 2015. 105 Disponível em: . Acesso em 27 nov. 2015. 106Disponível em: . Acesso em 27 nov. 2015.

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O grupo virou alvo de diversos ataques. O vídeo da apresentação na TVE teve seu áudio modificado e então publicado também no Youtube, no qual frases da letra da música “Feminista” foram trocadas por trechos de incentivo ao estupro, como “Venha me enrabar, que eu tô sem opção” e “Toque no meu corpo, vem e mete até o fim”. Chamado de “versão sincera”, o vídeo com o áudio alterado possui mais de cinquenta mil visualizações.107 Assim, se à primeira vista as reações desencadeadas nas cenas descritas acima podem parecer desproporcionais, bem como as precauções condizentes ao uso da internet e de redes sociais, elas ganham sentido quando consideramos as disputas contemporâneas que se dão, seja nas interações mediadas por computadores, seja nas ameaças que tomam corpo ao extrapolar esse âmbito, uma vez que online e off-line não estão em relação de oposição, mas são dimensões igualmente constitutivas da vida social. Os episódios narrados acima são interessantes para pensar as disputas que surgem com o uso do espaço público compartilhado com outros atores, sejam agentes institucionais, ou moradores e transeuntes. No caso da FLIFEA, assim como em outras ocasiões do trabalho de campo, persiste a pressuposição de ameaças externas, constantemente materializadas na figura de homens (cisgênero) enquanto intrusos e que corporificam o inimigo a ser combatido para assim garantir a coerência interna do evento – a lógica do chamado escracho. Nos eventos, essas ameaças em geral se corporificam na figura de atores individuais, sejam transeuntes, militantes de direita, ou policiais. Quando falo também sobre essa lógica que pressupõe ameaças externas, penso na violência como algo que é, em um sentido foucaultiano, produtivo e constitutivo: seja no tipo de ataque sofrido, seja também nos meios e estratégias ativistas que, por sua vez, são lidos como baderna, desordem e mesmo como violência. Feita a digressão sobre as Putinhas Aborteiras, após ler a nota sobre a agressão policial me dirigi até a praça onde a Feira acontecia. Nesse momento, notei a presença de pessoas e atores/as políticos discrepantes, tais como homens e mulheres mais velhas e militantes partidários. Estavam sentados no chão da praça, em uma roda de conversa com cerca de sessenta pessoas – quantidade

107 Por questões éticas, o endereço eletrônico para acesso ao vídeo foi suprimido deste texto. Para a letra da música “Feminista”, ver: . Acesso em 12 março 2018.

110 que cresceu ao longo do dia, o qual terminou com a realização de uma caminhada pelo centro da cidade em protesto contra a agressão policial, contando com mais de 300 participantes.108 Na roda de conversa, pessoas diversas pediam a fala. Entre elas, um homem que se apresentou como docente da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), e parecia alguém mais ou menos conhecido no meio político da esquerda local. Entre outras coisas, ele defendeu que aquele não era o momento para polarizações entre psolistas e anarcos e que a tarefa então posta consistia em “disputar o fato” da agressão com outros atores, como a mídia. Me surpreendeu a presença da parlamentar Maria do Rosário, deputada federal pelo PT-RS (Partido dos Trabalhadores). Ela estava acompanhada por outras mulheres também mais velhas, e aguardava em pé numa posição recuada a sua vez de falar. Se colocou à disposição e em solidariedade – em suas palavras, não só como parlamentar mas como pessoa física, e deixou o seu contato. Disse ter recebido uma ligação da ex-ministra Eleonora Menicucci a qual prestava também solidariedade e via a agressão como parte do contexto de recrudescimento do conservadorismo no país. Maria do Rosário em seguida deixou o local, alegando que aquele era um movimento autônomo e não cabia a ela continuar ali. Ao sair, foi aplaudida por uma minoria. Também estavam presentes advogadas de organizações feministas, que se colocaram a disposição para ajudar. A diretora do Conselho Municipal de Direitos da Mulher, uma mulher negra aparentando cerca de 60 anos, fez uma fala que emocionou a muitas então presentes. Enquanto acontecia a assembleia, se aproximou uma repórter da filial da TV Globo do Rio Grande do Sul. Logo, algumas garotas levantaram, se colocaram rapidamente na sua direção e a abordaram de forma ríspida, para que se retirasse do local – sinalizando os limites das possibilidades de interlocução então abertas. Entre as mulheres que chamaram a assembleia – isto é, agora se formava um novo coletivo, não só com a organização da Feira, mas com aquelas que testemunharam o fato da noite anterior – chegou-se ao consenso de que se tratava de: a) violação aos Direitos Humanos por violência policial; b) censura e criminalização de movimentos sociais; c) violência contra a mulher; d) racismo, pois a abordagem da polícia teve como alvo principal uma das poucas mulheres negras presentes naquele momento do evento, quando se realizava um ensaio de performance que

108 No dia seguinte, 03 de novembro, em Porto Alegre, foi realizado um outro ato, dessa vez impulsionado espontaneamente por outras organizações feministas em solidariedade à FLIFEA.

111 ocorreria no dia seguinte. Também se decidiu pela não realização de ações legais individuais por parte das agredidas. Uma moradora da região fez o seguinte relato em comentário na postagem da nota no Facebook, no qual chama atenção as categorias acionadas pelos policiais: Meus parabéns à Brigada Militar, que mais uma vez demonstrou quem e quais valores representa. Da sacada de casa vi as gurias que confraternizavam na Feira do Livro Feminista serem brutalmente agredidas, a feira foi totalmente "dissolvida". Quando gritei "muito bonito, batendo em mulher" um deles me respondeu "vai à merda, vadia maconheira". É assim que eles reagem ao questionamento, quando quem questiona é uma mulher. Eu estou em casa, vejo da janela três homens agredindo um monte de gurias, grito com eles e ainda sou tenho que ouvir um sonoro "vadia maconheira", e vem me dizer que os agressores são os mesmos responsáveis pela minha segurança? Juras.109

Já no dia 06 de novembro foi publicada mais uma nota acerca do episódio no blog do evento. O excerto da nota reproduzido abaixo justifica o posicionamento do coletivo: [...] queremos frisar questões importantes que contribuíram para a comoção que este fato gerou. Percebemos que isto se deu principalmente pela agressão ter ocorrido em um bairro central da cidade, com mulheres majoritariamente brancas, militantes feministas, muitas delas universitárias. Esses marcadores da nossa posição social foram o que tornou possível que uma agressão policial tenha se tornado um fato político desta dimensão e reflete o privilégio que temos em relação a tantos outros casos invisibilizados pela mídia, como a luta daquelas que se mobilizam contra a violência policial no país (pessoas negras, trans, periféricas, camponesas, indígenas, em situação de rua, em situacão de prostituicão.) [...] A repercussão da violência policial que sofremos nos afetou de diversas formas. Temos nos sentido coagidas a proceder de uma maneira específica dentro do sistema legal para comprovar a legitimidade de nosso relato publicamente. Vemos alguns procedimentos legais dentro disso como violentos para nós, mas também entendemos a necessidade de fazer o uso desses canais de denúncia, mesmo sabendo das suas limitações. Reivindicamos, outra vez, que sejam respeitadas nossa temporalidade e nossa liberdade de decidir como conduziremos a situação. Queremos pontuar, no entanto, que o que torna um fato publicamente legítimo não precisam ser apenas os procederes da lei que o Estado proporciona (e que muitas vezes vulnerabiliza e expõe as vítimas mais do que as protege) mas também a força do nosso relato, das marcas que reconhecemos nos corpos umas das outras e na nossa capacidade de articulação com uma extensa rede de solidariedade que nos tem prestado tanto apoio. Aquelas que vivem essas violências no seu cotidiano sabem da veracidade dos fatos, sabem o quanto fotos de machucados não ilustram suficientemente o que significa sofrer essas violências em todos os espaços, que é, afinal o assunto do qual queríamos tratar na intervenção teatral no dia de finadas, que estava sendo ensaiada naquela praça, quando os policiais chegaram. [...] No entanto, negamos a instituição do Estado e suas leis como a única fonte legitimadora dos fatos. Acreditamos que a construção da legitimidade pode se dar a partir de outros consensos éticos baseados na identificação mútua e em vivências compartilhadas por pessoas. [...] Seguiremos nas ruas fazendo arte, okupando os espaços, comunicando nossas posições e dando continuidade à luta, porque a nossa força de golpe é da mesma intensidade daquilo que vivemos. Bruxas resistem!110

109 Disponível em: . Acesso em 26 nov. 2015. 110 Disponível em: . Acesso em 18 nov. 2015.

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O modo dramático em que a primeira edição da FLIFEA teve fim merece algumas considerações. A presença de grupo de acolhimento e comissão de segurança internos não é um fato isolado, mas lugar comum em outros eventos do campo etnográfico. Tal como exposto nas regras de convivência fixadas nas pilastras da praça que sediou a Feira, são comissões que devem ser acionadas por participantes, a fim de intervir em alguma situação percebida como violenta. Como uma modalidade de política prefigurativa, a lógica da okupação pressupõe a existência de ameaças externas, quase sempre personificadas em corpos tidos como intrusos e hostis, cuja presença interrompe o andamento do evento e requer reação imediata (o escracho). Por seu turno, essa reação encena uma batalha contra “o machismo” personificado no “inimigo” que deve ser expulso para salvaguardar a pretendida suspensão de valores e práticas da sociedade mais ampla. Esses duelos transferem estruturas sociais – como o sexismo – para indivíduos (agressor), e quando transpostos para o âmbito online, são amplificados com o rastreio, acesso, exposição de dados pessoais e assédio às ativistas.111 Por outro lado, as estratégias ativistas provocativas também merecem consideração, ao serem lidas por outros atores sociais como desordem e bagunça, como evidenciado na categoria acusatória utilizada pelo policial (vadia maconheira) – que busca localizar as interlocutoras desta pesquisa fora do campo do político. Já a inversão do lugar de enunciação de termos pejorativos como puta, vadia, sapatão e bruxa, que passam do âmbito da acusação à autonomeação, é parte

111 Nos últimos anos, a prática do escracho, tal como ressignificada por setores feministas autônomos, tem provocado reações diversas, seja por parte de setores do movimento feminista ou fora dele. Carla Gomes e Bila Sorj (2014) trazem uma importante contribuição ao abordar tensões raciais em torno do escracho na Marcha das Vadias de Brasília no ano de 2013. O ocorrido foi filmado e divulgado em redes sociais, gerando grande repercussão e controvérsias. Como descrevem as autoras, “o vídeo mostrava um homem negro, portando muletas, levantando a camisa, tocando seu abdome e seu pênis por cima da bermuda, simulando prazer sexual. Em volta dele, militantes da marcha, mulheres brancas em sua maioria, usavam apitos e buzinas para denunciar a presença de um ‘agressor’ ou ‘machista’, como tem sido de praxe em diversas marchas pelo país em situações análogas, e forçar sua saída daquele espaço, o que é chamado de ‘escracho’. Ao que a edição do vídeo e os comentários indicam, foram vários minutos de barulho ensurdecedor e de assédio fotográfico de jornalistas e participantes sobre o homem. Algumas organizadoras, então, tentam demover as pessoas do escracho e levá-las de volta ao protesto. Enfim, abre-se uma brecha na multidão e o homem se afasta, deixando visível ao espectador sua perna amputada. Irritado, ele atira sua muleta contra um carro.” (p. 442). Setores feministas negros, como o portal Blogueiras Feministas, criticaram o episódio com veemência, apontando, no limite, os perigos da ação política baseada em categorias como “agressor”. Um texto no site questionava: “[...] Alguém explica isso: como mulheres em grande parte brancas e universitárias, hostilizando e perseguindo um homem negro, pobre, deficiente e com problemas mentais pode ser igual a luta contra o machismo?” (GOMES, SORJ, p. 442).

113 do uso do humor no formato do deboche e da chacota que rejeitam repertórios no registro da respeitabilidade.112 Igualmente chama atenção a presença de agentes como a Deputada Maria do Rosário, militantes partidários e a diretora do Conselho Municipal de Direitos da Mulher, o que revela não só a capacidade do rolê em mobilizar, em curto espaço de tempo, uma rede mais ampla de apoio, como também sinaliza o que Alvarez et al (2017) chamam de “Civic-uncivic continuum”. Isto é, embora parte da literatura assuma que o atual cenário de mobilizações constitui o “outro” da sociedade civil – a antítese do cívico, das ONGs profissionalizadas e associações de bairro que “escolheram” por entrar nos âmbitos e espaços oficiais de participação criados entre o final dos anos 1980 e a década de 1990 –, um olhar mais detido mostra que as fronteiras entre sociedade civil e seus presumidos “outros” não são precisas, mas objeto de constante negociação. Ao contrário da repórter da rede Globo, Rosário e demais representantes institucionais tiveram espaço e direito à fala na assembleia, mesmo não compartilhando a mesma visão de mundo prevalecente no rolê. As situações descritas ocorridas na FLIFEA remetem aos embates nos Encontros Nacionais de Mulheres (ENM) da Argentina advindos da presença de grupos associados à Igreja Católica que advogam uma agenda anti-aborto, lesbofóbica e anti-direitos sexuais e reprodutivos. Além dos conflitos dentro do próprio encontro relacionados à participação deliberada de mulheres organizadas por paróquias locais nos workshops do ENM, atritos usualmente acontecem durante a marcha ao final do Encontro, cujo percurso passa por igrejas, que se encontram circundadas por homens fazendo um cordão de isolamento e vocalizando palavras de ordem (Tarducci, 2017). Segundo Tarducci (2017), nos últimos encontros tem acontecido algo novo. Geralmente, ao passar pelo cordão, as mulheres gritam palavras de ordem anticlericais, denunciando a complacência da Igreja Católica com os crimes da ditadura argentina e a sua posição contra os direitos das mulheres, e então seguem o trajeto da marcha. Recentemente, contudo, uma parte das participantes se mantêm manifestando-se em frente à igreja, enquanto a grande maioria segue caminhando em direção ao ponto de chegada.

112 Em diálogo com diversas questões aqui discutidas, Carvalho (2018) aponta dinâmicas semelhantes no ativismo trans no que concerne à manipulação e contaminação de estigmas entre sujeitos políticos do movimento LGBT. O autor coloca como emblemática a palavra de ordem “as bi, as gay, as trava, as sapatão, tá tudo organizada pra fazer revolução!” na qual, à diferença das disputas mais comuns em organizações mais tradicionais do movimento, estigmas são manipulados de modo a produzir alianças.

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Nos escrachos113 na frente das igrejas, essas jovens, de rostos cobertos, exibem seus seios despidos (muitas vezes pintados com símbolos lésbicos e anticlericais), se beijam, simulam atos sexuais, e tocam seus genitais com rosários. Essas ações são filmadas tanto pelos grupos anti- direitos quando por mulheres que participam da marcha, sendo que os registros são disponibilizados para acesso em redes sociais como Youtube. Há registros de violência contra manifestantes durante esse momento das marchas. Considerando que a maioria das manifestantes não se mantém tanto tempo nesse ritual em frente à igreja e seguem para o destino final, isso faz com que aquelas que aí permanecem fiquem isoladas e passíveis de serem reprimidas – tal como ocorreu nos dois últimos Encontros. Em 2015, em Mar del Plata, a polícia atirou bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha em direção às manifestantes, com a argumento de que estas haviam derrubado as barreiras de proteção. O ENM de 2016, na cidade de Rosário, também presenciou repressão policial, e deixou mulheres feridas. Os escrachos, ao lado de ações como a pichação de frases em paredes de edifícios públicos e privados e de casas particulares e automóveis durante os ENM têm gerado muita discussão entre as feministas da Argentina. Embora todas condenem a violência policial, parte delas argumentam que essas ações são usadas contra os próprios Encontros e provocam rechaço da população e da mídia, que chamam essas práticas de “vandalismo”, “violência” e “vulgaridade”. Explorando, assim, as mudanças que têm se dado nas formas de participação nos Encontros Nacionais de Mulheres da Argentina ao longo dos seus 30 anos de história, a autora coloca que “En ellas, lo que aparece es la importancia dada al cuerpo y la sexualidad, una crítica a la heteronormatividad, una reivindicación del lesbianismo y una posición política claramente anticapitalista que podríamos denominar cercana al anarquismo” (Tarducci, 2017). Assim como o rolê, a atuação dessas ativistas é parte do que Tarducci nomeia como novas formas de aparição pública dos feminismos. Nesse processo, o corpo é dotado de centralidade – não só como causa ou objeto de reivindicação, mas também como um veículo do protesto (TARDUCCI, 2017; CARMO, 2016, 2018; GOMES, 2017). Como as situações etnográficas aqui

113 Como conta Tarducci (2017), originalmente “Escrache’es el nombre con que los hijos de detenidos-desaparecidos durante la dictadura, denominan a las denuncias que, a falta de justicia, realizaban en frente de las casas que habitaban militares comprometidos en la violación a los Derechos Humanos.” Em geral, o objetivo é o constrangimento e a exposição pública, imbuído do sentido de denúncia e desmascaramento. Neste capítulo, busquei mostrar como ele tem sido apropriado e ressignificado por setores feministas jovens.

115 discutidas mostram, é também ao corpo que se voltam as reações violentas (muitas vezes de forma racializada).114 A reivindicação por autonomia e a recusa a formas institucionalizadas de participação em si mesmas não constituem algo inédito, como evidenciam etnografias realizadas no país na década de 1980, como em Gregori (1993) e MacRae (1990). Recentemente, contudo, o termo tem sido manejado de modo a acionar políticas prefigurativas na rede ativista pesquisada, denotando críticas a formas institucionalizadas de participação política. Como busquei mostrar, a autonomia carrega sentidos prefigurativos que se traduzem na experimentação coletiva de novos códigos e condutas percebida enquanto ato político. Ou seja, entende-se por autonomia não só a rejeição à interferência de instituições, como o Estado, e de organizações, como partidos políticos e sindicatos, mas também a suspensão de valores e convenções da sociedade mais ampla, de modo a ocupar não só a rua, como o corpo e o tempo/espaço, por vezes culminando na prática do escracho – a qual deve ser entendida tendo em vista também os constrangimentos sociais que somam-se à experimentação. Se as experimentações coletivas pré-figurativas tal como ensejadas no rolê são mobilizadas pela noção de autonomia, elas também estão indissociavelmente ligadas à condição de existência de corpos vulneráveis que circulam através do rolê. Entendendo a vulnerabilidade não como uma disposição subjetiva mas como uma condição socialmente induzida, informada por uma exposição diferencial ao sofrimento e à violência (Butler, 2016, 2017)115, é possível compreender essa sociabilidade que produz relações de afinidade e afeto compartilhadas e baseadas em sentimentos de segurança, proteção e aceitação, tão presentes nos discursos das interlocutoras desta pesquisa. A ênfase no presente imediato acessado pelos eventos, somada à efemeridade dos coletivos e a escassez de recursos logísticos, revela um distanciamento das noções de permanência e de acúmulo. O circuito informal de eventos que perfaz o rolê só ocasionalmente passa pelas datas

114 O racismo institucional também modula a participação e formas de aparição pública de outros ativismos recentes. Em texto intitulado “Por trás das máscaras”, Francis Dupuis-Déri (2014, p. 55) busca traçar perfil sociológico das pessoas que participam de Black Blocs em países europeus e norteamericanos. Suas observações de campo sugerem que se trata sobretudo de jovens, sendo em sua maioria homens. Ele acrescenta que, mesmo nos Black Blocs inseridos em redes antirracistas e antifascistas, quase não há pessoas negras ou hispânicas. Isto ocorreria porque as ações diretas que frequentemente compõem a tática desses grupos “são mais arriscadas para imigrantes e negros, porque, no caso deles, a repressão pode ser bem maior.” 115 A exposição diferencial à violência se desdobra a partir de uma distribuição desigual da dignidade do luto, isto é, normas que governam a inteligibilidade do corpo, e definem quais vidas contam como válidas de proteção e quais não; estabelecem as "vidas vivíveis", ao regular, classificar, criminalizar e patologizar certos modos de existência corporal (Butler, 2017).

116 consagradas na agenda feminista, como o 8 de Março (Dia internacional das Mulheres), o 25 de novembro (Dia Internacional pela Não Violência contra as Mulheres) ou o 28 de setembro (Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto). 116 Frequentemente representadas como “não cívicas”, tais modalidades de atuação têm ganhado cada vez mais visibilidade no período que sucede os anos 2000 (ALVAREZ et al., 2017). Elas coexistem em tensão com a consolidação, nas últimas duas décadas, da “participação cívica” através do chamado terceiro setor e dos espaços de interlocução socioestatais, nos quais está ancorada a noção de sociedade civil117. Essas duas dimensões dos movimentos sociais contemporâneos têm sido constantemente tratadas de forma polarizada. Como Alvarez et al. (2017) discutem, as fronteiras entre sociedade civil e seus presumidos “outros” não são fixas e estáveis; os movimentos cruzam a divisão cívico- não cívico, transbordam a agenda da sociedade civil e atuam em gray zones. Frente a essas reconfigurações ativistas e mudanças nos processos de engajamento, parte da literatura sublinha os limites do termo movimento social, em função da rigidez dos pressupostos analíticos que carrega em termos de sujeito, formatos organizativos, modos e lugares de atuação.118 Nesse sentido, rolê pode oferecer uma contribuição relevante: carregando sentidos associados à experimentação, trânsito e provisoriedade, ele atravessa os limites semânticos entre sociabilidade e fazer político. Dando continuidade à discussão sobre o “contínuo cívico-não cívico” (ALVAREZ, et al., 2017) em que as práticas autônomas estão imbricadas, na próxima seção abordarei como alianças pontuais com instituições como ONGs não são vivenciadas pelas minas necessariamente como uma contradição, posto que a institucionalidade não opera como um significante isolado.

116 Tanto o 25 de novembro quanto o 28 de setembro foram estabelecidos no contexto latinoamericano da geração que lutou contra os regimes ditatoriais na região. Como conta Lia Zanotta Machado (2016), a primeira data foi consolidada em 1981 no I Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe, em Bogotá, Colômbia. A segunda foi instituída em 1983 no Rio de Janeiro, no Encontro sobre saúde, sexualidade, contracepção e aborto, que reuniu feministas, representantes de grupos de diversas regiões do país e parlamentares. 117 Thayer (2017) e Alvares et al. (2017) discorrem sobre a promoção da linguagem da sociedade civil e da participação cívica na América Latina por parte de atores como governos neoliberais e agência internacionais, frequentemente por intermédio de Organizações Não Governamentais e organizações da sociedade civil. Mais especificamente, Guterres, Vianna e Aguião (2014) apresentam as vicissitudes da participação civil no âmbito da Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), explorando as experiências das conselheiras. 118 Aqui tenho em mente as críticas tecidas por autores como Alvarez (2014), Thayer e Rubin (2017) e Bringel e Pleyers (2015), entre outras.

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2.4 As autônomas e as ONGs

Além de acompanhar interlocutoras da pesquisa no encontro com outras atoras do campo feminista, como no Oito de Março, frequentei, de forma mais intensa, eventos como feiras e festivais, feitos por e para o rolê, tais como a FLIFEA e a Virada Sapatão. Como foi discutido, em muitos deles as organizadoras expressavam preocupação ao divulgar o endereço físico – algumas vezes anunciados apenas na véspera do evento. Na maior parte das vezes, esses eventos aconteceram em espaços físicos como praças, espaços geridos por coletivos no/do rolê e centros culturais anarquistas. No entanto, espaços em sedes de Organizações Não Governamentais (ONGs) feministas foram eventualmente cedidos para as atividades, revelando relações de apoio e alianças relevantes para a discussão desenvolvida neste capítulo. Dentre essas alianças, desde o trabalho de campo do mestrado, realizado nos anos de 2012 e 2013, tenho notado a aproximação de setores do feminismo autônomo com a ONG União de Mulheres. Em fato, essa relação parece datar dos anos 1990, com a realização de Encontros Anarcofeministas na sua sede, como conta Gabriela Marques (2016) em pesquisa de doutorado.119 A União de Mulheres é uma Organização Não Governamental fundada em 1981, na cidade de São Paulo. Entre as suas principais iniciativas/projetos hoje, estão as Promotoras Legais Populares (PLP’s) e o bloco da Dona Yayá. Em um dia no ano de 2014 encontrei a sede da União lotada. Amigas, conhecidas, amigas de amigas, e um público majoritariamente composto por mulheres jovem se aglutinavam na sala principal para assistir Maria Galindo, integrante do grupo boliviano Mujeres Creando, que goza de certo prestígio entre minhas interlocutoras. Este se apresenta publicamente como anarquista e teve, na década de 1990, papel importante para o que então se convencionou chamar de feminismo autônomo dentro de uma série de rupturas que se deram a partir daí no âmbito dos feminismos latino-americanos (FALQUET, 2014). Na ocasião, havia também a presença, minoritária, de mulheres mais velhas, envolvidas na fundação da União de Mulheres nos anos oitenta.

119 Em 1998 aconteceu o I Encontro Anarco Feminista, tendo como local a sede da União de Mulheres. Marques (2016) conta também que o ultimo encontro de mulheres anarcafeministas que teve notícia foi realizado no ano de 2013, também na sede da ONG. Ela propõe que a relação de proximidade entre a UM e aquelas anarcofeministas pode ser entendida a partir de estratégias em comum de autofinanciamento, como aconteceu com a realização de bingos e rifas em campanha para a compra da casa que sedia a organização, que só terminou de ser paga em 2005.

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Naquele momento havia certo burburinho em volta do Mujeres Creando e Maria Galindo em função da sua participação com uma instalação na Bienal de Arte de São Paulo, intitulada “Espaço para abortar”. Localizada na entrada da Bienal, ocupando 100 metros quadrados, foram instaladas seis cabines de metal simbolizando úteros, e, ao centro do círculo formado pelos úteros, duas pernas abertas em uma estrutura de arame. Dentro das cabines-útero era possível ouvir relatos em primeira pessoa de mulheres que fizeram aborto no Brasil, e havia também duas televisões exibindo uma marcha de mulheres na Bolívia. Cerca de um mês depois, a Bienal resolveu restringir o acesso do público à obra, o que foi visto como censura pelo coletivo.120 Galindo, que se identifica como “agitadora das ruas” e “primeira lesbiana pública da Bolívia”, usava forte maquiagem preta ao redor dos olhos, vestia roupa colorida, com uma espécie de túnica superposta com franjas e bordados, e botas de couro. Iniciou a atividade de lançamento de um de seus livros, intitulado “No se puede descolonizar, sin despatriarcalizar", fazendo uma pichação em tecido, que dizia: “No puedo ser la mujer de tu vida porque soy la mujer de la mía.” Como em uma performance, duas pessoas seguravam o tecido na frente da plateia, Galindo chacoalha a lata da tinta spray, e faz a inscrição em letras cursivas características do grupo, enquanto mulheres na plateia se levantam para fazer fotos, sendo por fim aplaudida. A descrição do evento coloca uma das questões propulsoras do livro que estava sendo lançado naquela ocasião: “Como enfrentar a domesticação do feminismo e ir além das ‘políticas de gênero?”121 E continua com a crítica ao que chama de “setorização dos sujeitos políticos” reiterada na fala de Galindo na União de Mulheres:

Somemos a tudo isso a setorização dos sujeitos políticos. Os sujeitos políticos se converteram em setores, a sua capacidade de construir interpretações complexas e múltiplas do sistema de opressões foi inibida, e assim foram funcionalizados completamente. Como construir esse sujeito político complexo que desejamos, que dá conta das intersecções das opressões e, portanto, das formas de liberação? A aposta de María Galindo é a de um feminismo fundado

120 “Por pressões e razões que desconhecemos de onde vieram, há alguns dias uma Comissão de Avaliação [da Bienal] tem exigido colocar na frente da obra um pedestal que indica que se trata de uma obra para maiores de 18 anos. Esta censura está disfarçada de um suposto argumento pedagógico que não existe, pois isso se trata de uma obra que foi criada justamente pensando num público massivo infantil e juvenil que visita a Bienal. Isso é um ato de censura, que impede que durante as visitas as escolas utilizem a obra.” Disponível em: < https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2014/10/17/mujeres-creando-estao-sendo-censuradas-na-bienal-de-arte- de-sao-paulo/>. Acesso em 29 de jun. 2018. 121 Disponível em: . Acesso em 10 de dez. 2014.

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na combinação e na rara aliança, impossível e proibida, inesperada, entre diferentes: índias, putas e lésbicas, juntas, revoltadas e irmanadas.122

Encerrando o evento, Galindo colocou que entende o feminismo como uma luta transnacional, mas que Mujeres Creando já não participa dos encontros feministas latino americanos, pois estes acontecem em “hotéis cinco estrelas”. Enquanto me dirigia para deixar o local ao fim da atividade, ouvi, de “orelhada” um curto diálogo informal entre uma das fundadoras da União e uma das minhas amigas, que indagou o que ela achou da atividade, ao que foi respondido que foi “chocante”. Essa não foi a única situação de campo em que fundadoras da União de Mulheres estavam presentes. Entre os eventos, tais como mesas-redondas, que observei com temas voltados às trajetórias do feminismo no país, ou mesmo debates com presença de feministas de gerações distintas, estava um debate na USP (Universidade de São Paulo) intitulado “Discussões sobre as últimas décadas do movimento das mulheres: rupturas e continuidades”. Assim como diversas cenas descritas no capítulo 1, o debate aconteceu dentro das atividades que movimentam o campo feminista no mês de março (em 2016), em São Paulo. Maria Amélia Teles, também conhecida por Amelinha, diretora da União de Mulheres, foi uma das convidadas. A fim de trazer alguns elementos que podem ajudar a entender a proximidade da ONG com expressões do feminismo autônomo e o rolê, irei me debruçar brevemente sobre parte da fala dela, para um público jovem e universitário, nas dependências do prédio de Ciências Sociais e Filosofia da USP. O objetivo da sua apresentação consistia em traçar um panorama dos “quarenta anos do feminismo público no Brasil” tomando como marco o ano de 1975, os jornais “Brasil Mulher” e “Nós mulheres”, e a geração de mulheres que então provinha do campo marxista da esquerda, a qual vivenciou os conflitos envolvendo a dita “luta geral” versus a “luta específica”. Depois de passar pelas décadas de setenta e oitenta, foi abordada a chamada “década perdida”. Os anos 1990 foram retratados de forma mais pessimista, marcados pelo “avanço do neoliberalismo” e pela “onguização’ do feminismo”. Foi quando, segundo Amelinha, algumas feministas que tinham mais escolaridade passaram a fundar suas ONGs, o que acirrou as

122 Disponível em: . Acesso em 10 de dez. 2014.

120 desigualdades entre militantes: “de 1990 a 2000, coitada da feminista que não falasse inglês! Ela nem tinha vez aqui”. Ao seu ver, o grande feito do período foram as Promotoras Legais Populares (PLPs): “o movimento estava esvaziado e as PLPs ocuparam os lugares das feministas que estavam dispersas, que foram cooptadas pelo Estado, ou que só vão para as Conferências [da ONU].” Inspirado em experiências na América Latina de “educação jurídica de mulheres populares” por meio de cursos de capacitação, o projeto Promotoras Legais Populares foi criado em 1992 a partir da iniciativa da União de Mulheres e impulsionado pela necessidade de divulgar as conquistas obtidas no processo constituinte de 1987-1988.123 Buscando ampliar o acesso à justiça e à cidadania, as promotoras formadas nesses cursos “podem prestar orientação, aconselhar e promover a função instrumental do direito no dia a dia das mulheres, com intervenções individuais ou coletivas” (idem). A fala de Amélia Teles estabelece uma diferenciação entre a União de Mulheres e outras ONGs feministas definidas sobretudo a partir da prática do advocacy. Como colocado no capítulo 1, as minas do rolê buscam se distanciar de práticas e discursos classificados como pelegos, institucionalizados ou hegemônicos – os quais parecem ser mobilizados principalmente para fazer alusão a mulheres de partidos políticos, sindicatos e organizações feministas. Não obstante, essas classificações são dinâmicas. Não são categorias descritivas, mas sim categorias acusatórias, em geral recusadas por aquelas assim nomeadas. Nesse sentido, Carla Gomes (2018) chama atenção para os “graus de institucionalização” – ao invés de ver essas oposições de forma absoluta:

Os critérios para a classificação de pessoas ou grupos como institucionalizados não são uniformes, mas dependem das sujeitas em questão, das relações idiossincráticas estabelecidas entre elas e das situações específicas em que essas relações se dão. Assim, nem toda integrante de ONG feminista, por exemplo, será vista como institucionalizada ou, ainda, tão institucionalizada como as demais. Algumas institucionalizadas são tidas como mais ou menos institucionalizadas do que outras, como veremos. (grifos da autora)

Entre as razões pelas quais a UM pode ser vista como “menos institucionalizada” estão iniciativas de caráter popular – como as PLPs – o que possivelmente permite que se reitere a

123 Disponível em: . Acesso em 01 jul. 2018.

121 diferenciação traçada por Amelinha em relação às ONGs voltadas para atividades de advocacy, por exemplo. Além disso, a crescente pluralização dos campos feministas (ALVAREZ, 2014) tende a borrar distinções entre autônomas e institucionalizadas de modo mais intenso do que parece ter sido décadas atrás (GOMES, 2018). Se, por um lado, as feministas que se aproximam das práticas associadas à autonomia

se organizam de formas muito diversas – dos incontáveis coletivos de mulheres negras aos grupos de lésbicas e bissexuais; das mulheres “periféricas” e “faveladas” aos coletivos de mães e de estudantes universitárias e secundaristas; dos grupos de jovens grafiteiras, MC’s, funkeiras e skatistas às mulheres do teatro popular ligados aos movimentos de esquerda; das poetisas, blogueiras e atrizes às cooperativas de mulheres e pequenas empresárias, e até blocos de carnaval feministas – as chamadas institucionalizadas e mais velhas também estão longe de constituírem um grupo homogêneo. Esses setores contam com diferentes graus e tipos de institucionalização, e incluem, além das ONGs e da burocracia estatal, as organizações sindicais rurais e urbanas, os setoriais de mulheres de partidos de esquerda e os movimentos de “juventude”, como o Movimento Rua e o movimento estudantil, para nomear apenas alguns atores relevantes na cidade. (GOMES, 2018).

Portanto, se existe conflito entre as ditas autônomas e institucionalizadas, é certo também que elas estão imbricadas em redes de colaboração, configurando uma dinâmica que Alvarez et al (2017) nomeiam de contínuo cívico-não cívico (civic-uncivic continuum). Isto é, as fronteiras entre sociedade civil e seus presumidos “outros” não são precisas; cada vez mais, o cívico/não-cívico coexistem – frequentemente em conflito, mas também em tensão produtiva – em grande parte do ativismo na américa Latina (ALVAREZ et al, 2017).

2.5 As minas negras e periféricas no rolê

Ao longo deste capítulo, sublinhei a produção de novos códigos de conduta, convenções de gênero e sexualidade, e a politização de aspectos variados da vida a fim de chamar atenção para a experimentação e o faça você mesma como formas de agenciamento prefigurativas. Pontuei também os constrangimentos sociais que acompanham a ocupação, de modo a compreender que a experimentação é uma experiência situada. Como visto, a discussão teórica sobre prefiguração coloca questões importantes sobre a relação entre práticas, métodos e objetivos da luta mas não vai além, no sentido de pensar, de

122 forma interseccional, como diferentes atoras e atores se engajam em diferentes modalidades de políticas prefigurativas, levando em consideração suas posicionalidades no campo ativista - feminista, nesse caso – e na sociedade de forma mais ampla. Nessa direção, considero importante tratar da relação entre prefiguração e a produção do sujeito e identidades coletivas. A (pretendida) suspensão de valores ensejada nos eventos tem seus limites. Há mecanismos de exclusão explícitos operando no rolê – como em relação aos homens cis – e também mecanismos mais tácitos no que diz respeito a presença de mulheres não universitárias, mais velhas e não brancas. Durante o trabalho de campo, notei que havia quase sempre uma minoria quantitativa de manas negras e periféricas cuja presença no rolê era extremamente valorizada – pois, no limite, ela atesta a horizontalidade dos eventos e ideais não hierárquicos reivindicados no rolê. Como será discutido abaixo, esse descompasso era objeto de angústia, preocupação e culpa. Destarte, nesta seção, pretendo discorrer a respeito das relações de raça e classe, fazendo uso de parte das entrevistas e trechos do diário de campo. Como já colocado, o Brejo das Flores (BF) – local onde aconteceu a Virada Sapatão – é uma casa coletiva de lésbicas autônomas que tem dois anos de existência. Ele funciona desde 2016 como uma espécie de centro cultural, sendo também local de moradia de cinco mulheres e uma criança (um garoto de seis anos de idade, filho de uma delas). Dentre elas, três se identificam racialmente como brancas, e duas como negras.124 A maioria das atividades sediadas no Brejo são organizadas pelas residentes, mas o espaço recebe também mulheres de fora da cidade, que tenham propostas a serem desenvolvidas no espaço e interesse em residir temporariamente no mesmo. No momento da entrevista, duas mulheres da cidade de Recife (PE) eram esperadas. “Pizzada vegana e debate anticárcere”, “Estudos no Brejo”, “Construindo um ayurveda popular e feminista”, “Virada Sapatão”, “Negritude e branquitude nas relações lésbicas”, “Punk das mina” e “Lesbofolia” são alguns dos títulos de eventos ocorridos no BF nos últimos anos. Como posto no final do primeiro capítulo, no mês de maio de 2018 entrevistei duas delas, em uma quarta-feira à noite na cozinha do Brejo: Bruna, então com 29 anos e Carla, com 26 anos.

124 A composição das atividades promovidas pelo Brejo se dá também através dos temas que mobilizam a cada uma das moradoras. Como posto na entrevista, a Marcela, que é mãe, tem planejado eventos como encontros de pais e crianças, voltados à reflexão sobre “formas diferentes” de criar e educar crianças – como aconteceu com a “roda de conversa sobre maternidade lésbica” na Virada Sapatão em 2016; já Tati está mais envolvida nos eventos de cunho musical com mulheres negras, como os saraus de música.

123

Ambas se identificam como brancas e caracterizaram a casa em termos de classe social colocando que todas são “mulheres pobres”. Na ocasião, conversamos sobre os embates, tensões, dificuldades, inseguranças e acertos na gestão coletiva do BF. Perguntadas sobre o engajamento das moradoras com os eventos públicos realizados no espaço, Bruna contou que a frequência dos eventos está diretamente ligada ao bom entrosamento, sintonia e disposição delas para se reunirem periodicamente, o que requer certo jogo de cintura dadas as diferentes rotinas, aspirações e projetos individuais. Carla completou:

E tem o lance do político-privado, privado-político, que influencia bastante também, porque se a gente tá com ‘treta’, se a gente tá com questões entre nós, a gente não organiza, não abre a casa. E a gente sente também que não é o momento de abrir a casa se a gente não tá em consonância. Então a gente passou bastante tempo agora sem organizar [eventos], porque a casa aberta implica um coletivo privado firme. [...] Mas a gente já chegou a organizar duas atividades por mês, daí ficava uma loucura... Porque morar na casa que a gente organiza as coisas é muito difícil, né?

Quando explorei essa questão – por que é tão difícil articular essas duas dimensões – a casa apareceu como um laboratório de novas experiências não rotinizadas, que se distanciaria do “mundo lá fora” (ideal prefigurativo). Nas palavras de Bruna:

Enfim, daí tem todas essas questões de comunicação interna, [de discutir] o que a gente preza, o que a gente pensa da casa, o que a gente quer que a casa seja pra nós: que seja um espaço diferente do mundo lá fora, que seja um espaço que a gente converse diferente, que a gente tente comer diferente, que se apoie, busque ajudar umas às outras no que a gente consegue, evitar algumas hostilidades do mundo capitalista e tentar que aqui seja um outro espaço, e é difícil muitas vezes.

Ou seja, os eventos não são entendidos como atividades políticas pontuais que acontecem ocasionalmente aos finais de semana, mas como parte de um processo mais amplo de politização do cotidiano da casa – em seus diversos aspectos que são investidos de sentido político, desde a disposição material do espaço, passando por códigos de conduta coletivos horizontais e a valorização da tomada de decisão por consenso, até a politização do corpo, do que se come, dos

124 desejos e relacionamentos afetivo-sexuais. A política é como algo que se vive 24h por dia, o cotidiano é saturado politicamente; “o pessoal é político” é um jargão ouvido com frequência.125 Ao mesmo tempo, esse ideal é também objeto de muita tensão. Dois tópicos apareceram como fonte de apreensão com mais força nas falas de Bruna e Carla, enquanto vetores presumidos de reprodução de padrões do “mundo lá fora”: as festas com consumo intenso de bebidas alcoólicas – visto como problemático e não condizente com as propostas políticas do Brejo –, e questões de raça, classe e territorialidade que atravessam o público e as narrativas dos eventos. O álcool é considerado prejudicial à construção do Brejo enquanto um espaço seguro. Essa percepção fez com que festas que começavam à noite e acabavam na manhã do dia seguinte – quando o metrô volta a operar – fossem desencorajadas pela organização do BF, em busca por fomentar um espaço em que o consumo de álcool não fosse estimulado:

Antes a gente fazia festas que viravam a noite e que eram de livre consumo [de bebidas alcoólicas]. E daí teve essa festa específica [...] e a ideia de fazer festas era de ter um espaço seguro, acolhedor, um espaço que as meninas possam se beijar e dançar a vontade, e nessa festa a gente viu muitas minas mal, de cair no chão, de quebrar nosso box [do banheiro], de se trancar no banheiro sem querer. [...] E a gente sempre afirma também a questão dos animais, de tomar cuidado com os animais em dia de festa, e derrubaram vinho na gata, sabe? Foi foda. E daí a gente entrou no acordo de que não faríamos mais festas que viram [a noite], porque era um consumo de álcool grande por muitas horas. (Carla)

Outro complicador no quesito festa é a presença da polícia, frequentemente acionada pelos vizinhos, em um bairro visto como conservador.

Um bairro de classe média, cheio de milico, com um histórico escroto. Tanto que na virada do ano, a gente voltou da praia e encontramos várias suásticas pintadas aqui na rua. E tem muita polícia, muita família de polícia que mora na região. Às vezes a gente fica até preocupada com o rolê que a gente vai fazer aqui, porque é um monte de esquisita, sapatão, colorida, que faz o mesmo caminho [do metrô] pra cá, e a gente não confia no que pode rolar aqui. Na primeira

125 Em 1970, no calor do chamado “Women’s Liberation Movement” estadounidense, Carol Hanisch publicou o artigo cujo título – “The personal is political” – virou um slogan do movimento. O texto foi escrito como resposta às críticas que taxavam a metodologia dos grupos de autoconscientização (consciousness-raising) como “terapia”, os quais portanto estariam de fora da esfera do político. Segundo detratores, esses grupos, que então se multiplicavam no país, tratariam de “problemas pessoais” ao discutir questões relacionadas ao corpo, como sexo, aborto e maternidade (HANISCH, s/a). Disponível em: . Acesso em 08 nov. 2016.

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semana que eu vim morar aqui eu trombei skinhead, então é um pouco isso, o bairro é conservador nesse nível, de direita mesmo. Daí é natural que a gente tenha conflitos com eles. (Carla).

Ainda sobre a reação da vizinhança, Bruna conta que “Em dia de evento já rolou de tacarem tomates, jogarem coisa aqui no quintal. As pessoas dos prédios, talvez pelo som [porque] eram várias minas gritando ‘ai, boceta, bateu uma onda forte/ tô vendo sapatão da Zona Sul à Zona Norte” – me contou rindo. Depois dessas experiências, a veiculação do endereço do Brejo se tornou também alvo de preocupação. Elas passaram a divulgar a localização nas redes sociais apenas poucos dias antes do evento, apagando-o logo em seguida. Como relatado, a reação de atores externos à casa envolve também a polícia – supostamente acionada por vizinhos –, o que modula a experiência do rolê, produzindo diferentes graus de engajamento nas experimentações. Frente ao racismo institucional que se traduz nas práticas seletivas de repressão e violência policial, como visto anteriormente no caso da FLIFEA, as manas do BF lançam mão de determinadas estratégias, como ocorrido em uma das atividades sediadas no espaço que foi interpelada pela presença de uma viatura:

E na hora quando rolou dos policiais chegarem [no portão da casa], a gente pensou que as mulheres brancas da casa deviam ir lá trocar ideia [com os agentes], porque várias minas negras estavam aqui dentro, e ia ferrar muito mais pra elas. (Bruna).

Atividades como essa, com grande presença de mulheres negras, foram mencionadas mais uma vez, quando pedi que escolhessem um momento marcante, no sentido positivo, dentro de suas trajetórias ativistas para compartilhar comigo. As duas falaram da mesma situação: um evento sediado no Brejo, com a participação do Slam das Minas SP, descrito como:

Um rolê que aconteceu faz pouco tempo aqui e que foi muito foda, muito daora [...] foi o lançamento do videoclip “Teta”, da Ingrid Martins, poeta, sabe? Foi um evento que veio tanta mulher foda pra esse lugar, e foi o Slam das Minas, que colou aqui pra fazer o Slam, e aí depois teve o vídeo, a roda de conversa com a Nene Surreal, a grafiteira. [...] Por conta do Slam e o lançamento, veio muita mina trazendo poesia, muita mina de muitos lugares, mina que a gente admirava pra caramba [...]. E foi um evento assim, lindo do começo ao fim, todas num clima muito de se ajudar, elas com a gente e a gente com elas,

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porque foi essa a proposta: elas precisavam de um espaço pra acolher o evento, e a gente "venha, por favor, fazer isso..." E pra mim foi um momento muito bom da casa. (Bruna)

Slam das Minas ou Slam das minas, monas e monstras, como diz o grito de guerra, é uma competição de poesia de mulheres onde cada participante tem cerca de três minutos para apresentar uma poesia autoral. Um júri é definido na hora a partir da plateia, e o prêmio para a vencedora geralmente são livros. Relacionado ao universo do Hip Hop, e sendo parte de diversas iniciativas que tem popularizado a poesia, como saraus e os diferentes tipos de Batalhas (de “sangue” e de “conhecimento”, por exemplo), no Slam muitas mulheres se colocam como periféricas.126 No capítulo 3, tratarei de uma batalha de improvisação (a Batalha Dominação), também mencionada nesse momento pelas mulheres do BF. Durante a entrevista, quando indaguei os motivos pelos quais eventos como esses foram escolhidos como mais significativo, Bruna sublinhou

Acho que as questões [trazidas], o fato de ter sido um rolê majoritariamente de mulheres negras, periféricas, trazendo nas palavras, nos poemas, uma política. Pra mim, eu vi um sentido muito “daora” da casa existir, das mensagens estarem sendo passadas, elas estarem colocando pra fora. E a gente estar podendo ouvir, tudo isso. [...] Pra mim, é o que falta em muitos espaços. [...] É foda quando a gente vê o Brejo, e as atividades que a gente toca, majoritariamente com mulheres brancas, classe média, […] [porque] é o que tá aí desde sempre, é o hegemônico, é a fala hegemônica, e a gente quer outras coisas. A gente quer outras falas...

A presença dessas mulheres, ao representar o não hegemônico, deu sentido à existência do Brejo. Entretanto, essa valorização é, às vezes, acompanhada por uma relação instrumental. Carla aproveitou a deixa e, em tom irritado, quase como um desabafo, contou sobre o seu incômodo com certos discursos que classificou como assistencialistas, pois se referem às mulheres

126 O documentário intitulado “Slam das Minas - Seja Heroína, Seja Marginal”, mostra a percepção de algumas das slammers sobre a competição. Uma dela, Jade Fanny, conta o que sentiu ao ir pela primeira vez ao Slam das Minas. Ela diz: “Quando elas recitavam as poesias, era como se fosse um outro mundo – um mundo à parte, onde as mulheres poderiam falar. Como se houvesse um mundo onde as mulheres não falam e um mundo onde as mulheres falam, e o Slam das Minas é esse mundo onde as mulheres falam”. Uma das fundadoras do Slam das Minas de São Paulo – há hoje núcleos em diversos estados do país – Luz Ribeiro define o Slam das Minas como “um lugar de acolhimento, resistência e afeto”. Disponível em: . Acesso em 10 jul. 2018.

127 negras e da periferia em terceira pessoa, de forma distanciada e quase utilitarista. Embora tenha presenciado esse comportamento poucas vezes no BF, ela também sublinhou que

Das poucas vezes que aconteceu esse tipo de discurso dessas bocas demarcadamente brancas e de classe média eu fiquei muito, muito irritada e não a fim de estar naquele lugar. É um incômodo. Acho que é desrespeito com a minha vivência, com a vivência de várias outras mulheres, e fica parecendo que a gente não passou uma mensagem correta, porque todas as mulheres que moram aqui são pobres, e fazem o “corre” delas, daí de repente vem um monte de minas de classe média ostentando não sei o quê e falando das “pobrinhas”. Eu fico bastante irritada. É [um discurso] em terceira pessoa, mas é [a partir de] um lugar que eu localizo como assistencial, de "eu gostaria muito de estar fazendo algo com as mulheres da periferia" ou "onde estão as mulheres da periferia?”. É isso que eu tô falando, que me deixa aflita. De você não ter coletividade com as mulheres da periferia e falar delas, e ainda querem que elas estejam no seu evento! (grifo meu).

Esse tipo de discussão foi bastante recorrente durante a observação dos eventos, acontecendo de forma mais ou menos explícita, seja em momentos de debate especificamente voltados a temáticas raciais, de classe e territorialidade, ou mesmo nos comentários de bastidores e textos presentes nos fanzines. Como em outros contextos ativistas contemporâneos (CARVALHO, 2016; FACCHINI, RODRIGUES, 2017; FALCÃO, 2017; GOMES, 2018), termos como privilégio e lugar de fala foram costumeiramente acionados nesse tipo de ocasião. Dando prosseguimento à análise, serão discutidos excertos do diário de campo referentes à FLIFEA (Porto Alegre, 2015) e de entrevista realizada no Festival No Gods No Masters em São Paulo no ano de 2018 (evento mencionado no capítulo 1) com Aline, uma das organizadoras do “Suspirinho Antifest Feminista” em Belo Horizonte. Além da feira de publicações como brochuras, panfletos, pôsters, zines, livretos e livros de pequenas editoras e usados realizada em uma praça pública, a Feira do Livro Feminista e Autônoma (FLIFEA) de Porto Alegre também contou com uma extensa programação paralela (gratuita), sediada tanto na praça, como em uma escola no mesmo quarteirão, cedida no final de semana ao evento. Eu estava no pátio do CMET Paulo Freire (Centro Municipal de Educação dos Trabalhadores Paulo Freire) – um dos lugares que abrigou parte da programação de debates e

128 oficinas da FLIFEA – participando de uma roda de conversa nomeada “Responsabilização coletiva das crias e das mulheres” quando pessoas começaram a se reunir para a atividade intitulada “A realidade da mulher periférica”, em uma sala de aula no andar de cima. Essa foi a atividade mais lotada da FLIFEA que presenciei: havia pessoas aglutinadas sentadas no chão e encostadas nas paredes, e mesmo em pé na porta. Joana, uma das debatedoras, abriu a conversa. Ela tem 25 anos e se apresentou como filha de vendedores ambulantes e a primeira da família a ingressar no ensino superior - cursa Serviço Social na PUC (Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre), onde é bolsista ProUni integral.127 A vi em outros momentos do evento, nos quais parecia ter uma relação de proximidade com outras mulheres envolvidas mais diretamente na Feira. Tem piercing no septo e vestia preto. Fez uma fala emocionada enquanto era ouvida com atenção pelo público. Segundo ela, havia um objetivo urgente por trás daquela conversa, que era fazer com que “a periferia fale pela periferia, e não o centro fale pela periferia”. Deu prosseguimento à leitura de um texto de sua autoria, escrito especialmente para a Feira. Ao final, distribuiu algumas cópias em troca de “colaboração voluntária”, e adquiri uma. Evocando a categoria lugar de fala – compreendida em termos nativos como um dispositivo capaz de descentralizar as narrativas dominantes e romper com o silenciamento de grupos oprimidos –, ela afirmou falar enquanto “mulher periférica, branca, trabalhadora e universitária”. Descreveu um cotidiano caracterizado como exaustivo, onde não resta muitas horas no final do dia, absorvido por trabalho, estudo, violência urbana e longas distâncias percorridas de transporte público. Relacionou espaços como a universidade e a FLIFEA como similares, na medida em que, para as mulheres periféricas, seriam difíceis de adentrar e também de permanecer: “e mesmo eu que consigo chegar a esses espaços me deparo com tantas dificuldades de permanência e de realidades diferentes, nosso cotidiano é tão corrido, ele nos cobra a sobrevivência em primeiro

127 O Programa Universidade para Todos (ProUni) foi criado pelo Ministério da Educação em 2004, durante o governo Lula, como parte das políticas de ampliação do acesso ao ensino universitário no país, junto a iniciativas como REUNI e FIES. O programa concede bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação em instituições privadas de educação superior dirigidas aos estudantes vindos do ensino médio da rede pública ou da rede particular na condição de bolsistas integrais, com renda familiar per capita de no máximo três salários mínimos. A seleção dos candidatos se dá por meio das notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Disponível em: . Acesso em 12 jul. 2018.

129 lugar”, afirmou, lendo o papel. Expôs assim uma relação de ambiguidade com o evento: por um lado o desejo de participar, por outro lado, o sentimento de não pertencimento, inadequação. Um trecho do texto, em especial, me chamou atenção: “a ideia de horizontalidade no feminismo só vai ser atingida quando a periferia do feminismo for ouvida” – o que elucida a valorização da presença das manas negras e periféricas, quando a horizontalidade (uma noção cara aos feminismos) está em disputa. Outras garotas – brancas e negras – começaram então a também falar de si, e contar onde moravam, e que meios costumavam lançar mão para estar no centro – seja para militar, estudar ou para participar das festas e atividades culturais. Várias delas também eram universitárias. Falavam das dificuldades em compartilhar esses espaços no qual são minoria: Luanda, uma das poucas garotas negras que vi presente nas outras atividades desde o início da Feira, contou que estava surpresa com os relatos, pois havia assumido que todas ali moravam no “centro”. Também houve falas sobre o sentimento de “vergonha” de ser “pobre” quando se está nesses meios de maioria branca. Desvelavam, assim, códigos e práticas racializadas do rolê, responsáveis por produzir exclusões e pertencimentos. Foi enfaticamente questionada a razão pela qual escolheu-se o centro da cidade como local para realização da Feira do Livro Feminista e Autônoma. Segundo as mulheres da organização, foi cogitada a possibilidade de realizar o evento em um certo bairro da periferia de Porto Alegre, mas a ideia foi declinada pois, para quem mora em determinado bairro periférico, se deslocar até outra comunidade também seria difícil em termos de acesso e transporte, considerando as distâncias grandes entre alguns bairros mais distantes do centro. A resposta vinda da organização de certa forma escapa à polarização centro-periferia. Além disso, no desenrolar da roda de conversa, foi elaborada uma autocrítica no sentido de admitir que apenas fazer atividades gratuitas, onde “é só colar pois é de graça”, não é o suficiente: há questões mais profundas que regulam o acesso e a permanência nesses espaços. Uma das questões colocadas era como voltar pra casa depois dos eventos – quando o transporte público é escasso, o que obriga a passar a madrugada em algum lugar e aguardar o amanhecer para voltar pra casa. Luana, uma garota negra, estudante da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), fez brincadeiras com o fato de que, segundo a sua percepção, quando as jovens “abastadas” se rebelam, elas se enchem de tatuagens e cortes de cabelo assimétricos, ao passo que, para as

130 mulheres pobres, isso não seria possível pois os poucos empregos que existem para elas não aceitam esse tipo de apresentação estética. Brincou também com a bagunça das casas das anarkas, versus a organização que é preciso ter na periferia. Embora não houvesse um clima de antagonismo no ar, a fala brincava com o tipo de experimentação ensejada no rolê. Há de se considerar, para a finalidade desta discussão, que muitas interlocutoras têm formação universitária ou estão na universidade – o que parece corroborar com a análise de Gonçalves (2016) apontando a centralidade da universidade para a geração que chegou ao feminismo nos anos 2000. A afirmação não quer dizer que necessariamente a formação política seja oferecida pela ou na universidade, mas chama atenção para: 1) uma certa linguagem acadêmica que tem ganhado força e se faz notar nas referências e citações a autoras consagradas do campo de estudos de gênero e feminista, assim como 2) a frequente vinculação de ativistas jovens a cursos de graduação e pós-graduação, em um contexto de expansão dos núcleos acadêmicos e das publicações do campo, assim como da Internet. Isso indica uma ampliação da difusão do saber acadêmico em relação de retroalimentação com o movimento feminista. Além disso, outro aspecto a ser considerado é o impacto das políticas de ampliação do acesso ao ensino universitário, como é o caso do ProUni, o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) e das cotas raciais e sociais, implementados durante o governo Lula, como notado também por Facchini (no prelo). O impacto desses fatores pode ser visto também na trajetória de Aline, uma das entrevistadas durante o No Gods No Masters Festival em São Paulo. Aline tem 29 anos, é formada em design gráfico e se apresenta como preta, gorda e sapatão. Reside em Belo Horizonte (MG), onde é vocalista de uma banda punk e uma das organizadoras de festival chamado Antifest Suspirin Feminista (a primeira edição aconteceu em 2014 e a segunda em 2016), cujo lema é: “Um suspirin feminista em meio a esse mundo tão hostil”. A gente se conheceu também em Salvador, no ano de 2012 – momento em que fiz parte da organização de um festival feminista na cidade, que me levou a fazer contato com várias ativistas de fora do estado. A banda, formada em 2006, foi sua porta de entrada no rolê feminista, e passou por um hiato em meados de 2013. Nesse período, Aline entrou em contato com “uma outra galera”, que trouxe novo fôlego à sua trajetória: outras mulheres que estavam “pensando feminismo na academia”, especificamente dentro das Ciências Sociais. Apesar de até então estar entre pessoas

131 com formação universitária, ela contou que “a nossa politização era muito mais no do it yourself, na vivência, do que necessariamente do tipo teórica”. Se aproximar dessas pessoas, que estavam envolvidas com os estudos de gênero, lhe forneceu uma “nova perspectiva” ao acessar “novas linguagens” sobre temas como dissidência de gênero e transfeminismo.

Contudo, ela se apressou a ressaltar que seu ativismo “não virou um rolê acadêmico” mas uma junção desses diferentes olhares, culminando em novo coletivo que teve a ideia de fazer um festival feminista autônomo em BH, começando a se reunir em dezembro de 2013 até abril de 2014, quando a primeira edição foi realizada. Segundo Aline, naquele momento a segurança das pessoas envolvidas no antifest era uma grande preocupação, pois no contexto dos protestos anti Copa do Mundo na cidade, muita gente foi detida e “perseguida”, o que gerou “uma neura coletiva” no grupo, o qual buscou construir uma rede de relações de confiança. Por isso, criaram um formulário que deveria ser preenchido por todas as pessoas interessadas em participar do Suspirin. Nesse período, as organizadoras se dedicaram a escrever coletivamente uma lista de princípios políticos do festival, chamados de princípias, como por exemplo: anti-estado, anti-

132 agronegócio, anti-transfobia, antirracismo, anticistema, antiprisional, horizontalidade, anticlassismo, anticopa, antietarismo, entre outras.128 Em retrospectiva, ela avaliou que a exaustiva lista de princípias da primeira edição do evento era algo “muito pretencioso”, pois se distanciava “da prática do dia a dia”, ficando mais no plano “de coisas que a gente acredita do que de coisas que são, assim, numa prática mais efetiva, real”. Essa percepção levou o grupo a repensar as princípias na segunda edição do Suspirinho:

É bonito a gente colocar lá “antirracista”, “anti-homofobia”, “anti-polícia”, “anti- agronegócio”.... Beleza, a gente é anti isso. Mas como isso se liga às nossas práticas do dia a dia, pra não ser também só um “anti alguma coisa” no nome do festival? (Aline)

Em suas duas edições, o evento contou com atividades como oficina de sex toys faça você mesma, roda de conversa sobre gordofobia, oficina de transmasculinidades, oficina de jardinagem e permacultura, oficina de práticas antiespecistas, lançamento do livro “La Cerda Punk: ensayos desde un feminismo gordo, lésbiko, anticapitalista y antiespecista”, entre outros.129 No coletivo organizador havia pessoas trans e pessoas negras, como sublinhado por Aline, e aglutinava pessoas que, como ela e suas companheiras de banda, vinham do punk, juntamente com as novas amizades tecidas com as ativistas inseridas mais diretamente na produção de conhecimento acadêmico. Quando pedi que ela apontasse uma experiência vivida na sua trajetória ativista considerada marcante do ponto de vista negativo, sua resposta tratou sobretudo de comportamentos que classificou como racismo e transfobia, ancorados em privilégios não examinados:

A pior coisa que eu acho é […] em termos de coletividade, quando você tá em rolês coletivos, tipo festival, show, etc., é quando a pessoa não consegue pensar no coletivo. Ela consegue só agir no individual, pensando nela mesma, necessidades dela e nos próprios privilégios. Não consegue transpassar essa barreira do privilégio. Vamos supor, se fosse aqui [no festival No Gods No Masters], um cara branco por exemplo, se ele tá num espaço como esse, que tem uma diversidade considerável, tem as minas, tem pessoas negras; se um cara desse não consegue

128 No site do festival é possível encontrar a descrição de cada uma das princípias, tal como elaboradas pelo coletivo. Diponível em: . Acesso em 16 jul. 2018. 129 A autora chilena Constanza Castilho viajou por diversas capitais brasileiras entre os anos de 2016 e 2017 promovendo o lançamento do livro através das redes do rolê feminista. Versões do livro têm circulado também em meios digitais e como fanzine.

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olhar com uma crítica muito forte a questão que a raça dele, ele ser um homem branco nesse espaço, garante a ele no resto da sociedade várias coisas e que aqui é um espaço de desconstrução disso, a proposta é essa, e a pessoa não tem essa consciência, ele vai chegar aqui agindo como homem branco, saca? Igual. E acho que isso [opera] com todas as outras coisas, tipo, pessoas cisgêneras num espaço que tiver pessoas trans, e pessoas brancas num espaço de pessoas negras, homens em espaços com mulheres. Espaços mistos coletivos como aqui, se você não tem sempre muito atento o quê que é o seu privilégio, o que te faz deslizar por esse mundo sem nada te impedir, você passa por cima da outra pessoa mesmo sem querer. Então acho que isso é um desafio de estar sempre atento em espaços coletivos. (grifos meus).

Assim, Aline também traça uma delimitação entre esses espaços e o “mundo lá fora” (como nomeado pelas mulheres do Brejo das Flores). Para ela, a diferença reside na desconstrução, que representa um grande desafio para o rolê em termos de mudanças subjetivas. É nesse sentido que o tipo de formação ativista propiciada pelos eventos aqui analisados tem um caráter pedagógico, como notei durante a pesquisa de mestrado (CARMO, 2013). As oficinas são iniciativas emblemáticas do que poderia ser nomeado como uma pedagogia faça você mesma que tem a desconstrução no seu cerne, passando, assim como em outros contextos ativistas (LIMA, 2018), pela experimentação. No entanto, esse é um processo sempre inacabado e situado, o que gera frustração entre as ativistas que buscam construir espaços seguros – um suspirinho. Essa tensão é elaborada na fala de Aline da seguinte forma: O espaço autônomo não está suspenso dentro da sociedade, né. O espaço autônomo é construído por outras pessoas. Por exemplo, usando o exemplo mesmo do Suspirinho: a organização era composta majoritariamente por pessoas cis. Tinha travesti e pessoas trans na organização, mas é isso. É importante que elas dêem o tom do que pra elas era importante ali na discussão das princípias. Mas mesmo tendo nas princípias "anti-transfobia", a gente não tira nossa cisgeneridade, no caso, pra poder viver. E acho que no espaço autônomo é a mesma coisa. Ninguém que está aqui hoje deixou a raça em casa ali do lado de fora do portão, ou deixou o seu privilégio hétero, branco, etc., ali de fora. Não. Essas coisas estão aqui. E o que tem na estrutura do resto da sociedade tem aqui também. Só que a diferença é que eu acho que aqui estamos pensando ativamente - pelo menos a maioria - como construir um mundo menos bosta. Mas da cerca pra cá nada mudou. Tudo que a sociedade lá te dá de espaço melhor por você ter certas coisas [certos atributos], se a gente não ficar atento, aqui também vai ser. Então transfobia é isso, é uma dessas coisas. [...] Quantas pessoas trans tem aqui? Será que é porque não existe pessoa trans anarco, punk ou que gosta dessas coisas?

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Não acredito que seja. E aí parte também disso pensar porquê que essas pessoas não estão aqui. Uma questão de acesso, uma questão de não ver nenhuma pauta, [de] não achar que é um espaço inclusivo, sabe. [...] Acho que é o mesmo ponto de pensar o racismo. Quantas pessoas negras tem? Por quê elas estão aqui, por quê elas não estão aqui? A programação [por exemplo], o que tem na programação que está falando de uma forma ativa sobre isso? Tipo assim, vamos falar de raça, mas vamos falar de raça sem ser como se a gente estivesse contando estorinha de fantasia. Vamos falar de raça sem ser com aquele ar condescendente, bonzinho, fazer aquela “mea culpa” sofrida, "ai, nossa, poxa, nossos amigos negros", saca? E a mesma coisa com transfobia. A gente tem que pensar que tanto a população trans quanto a população negra é a que tá morrendo nesse Brasil. E se essas pessoas não estão aqui, onde elas estão? Se não tá todo mundo aqui, e as pessoas não estão falando sobre isso de uma forma ativa, alguma coisa tá errada, né?

Nas palavras dela, ao invés da postura condescendente – ou assistencialista, como nomeado acima pelas moradoras do Brejo – o racismo e a transfobia devem ser discutidos de uma perspectiva do privilegiado. Embora muito possa ser dito acerca do debate epistemológico feminista que, nas últimas décadas, tem enfatizado a posicionalidade do sujeito como uma crítica ao suposto da neutralidade e da universalidade – o que extrapolaria os objetivos deste trabalho –, cabe apontar aqui os usos nativos de uma terminologia que tem circulado entre o domínio formal da produção de conhecimento e diversas instâncias do ativismo feminista jovem. Assim, lugar de fala e privilégio fazem parte de um mesmo léxico, frequentemente acionado nos debates sobre gênero, raça e classe. Entende-se o privilégio como um conjunto de vantagens que alguns indivíduos usufruem no seu dia-a-dia e que é negado a outros; os lugares de fala refletem esse sistema desigual de distribuição de oportunidades e de vantagens (em termo de gênero, raça, classe, etc.). Por um lado, ver as relações assimétricas de poder pela chave explicativa do privilégio e lugar de fala tem permitido a produção de categorias como cisgeneridade130, branquitude/branquidade, que nomeiam atributos não marcados socialmente, ao passo que tem

130 Como discutido por Carvalho e Carrara (2015), termos como cisgeneridade, cissexismo, cis-tema, entre outros, são parte do léxico transfeminista recente mobilizado sobretudo no âmbito da internet e com objetivo de promover mudança de mentalidades. Os autores vêm como plausível a criação de “uma categoria de classificação das experiências de sexo e gênero opostas às experiências trans” (p. 395), relacionando o formato ao processo que deu lugar à categoria “heterossexual” – após a criação da categoria “homossexual” e em sua oposição. Mas eles apontam também que o uso de “cis” não é consensual, especialmente entre ativistas mais antigas no movimento trans.

135 dado visibilidade a uma multiplicidade de sujeitos, identidades e opressões. Por outro lado, incorre-se na reificação das diferenças e experiências (SCOTT, 1998) que dotam certos sujeitos de autoridade moral (BRAH, 2006), tendo por efeito a polarização das narrativas, desestimulando a busca por traçar conexões entre diferentes experiências (PHIPPS, 2016) – o que, por sua vez, certamente favorece a dita relação assistencialista, uma vez que os lugares de fala são entendidos como fixos e coerentes. Os ideais prefigurativos examinados neste capítulo a partir do pressuposto do “fim do patriarcado” se traduzem nas experimentações coletivas ensejadas nos eventos, que buscam se distanciar do “mundo lá fora” e se aproximar de um laboratório. Tais experimentações manejam os limites do corpo, da relação tempo/espaço e público/privado através da politização de diversos âmbitos da vida. Assim, argumentei que, no rolê feminista, a prefiguração denota experimentação – entendida como algo que se tem a intenção de testar, sem ter certeza ou estar segura sobre os resultados, orientada à produção de novos códigos e tendo como objeto de intervenção o corpo, o tempo e o espaço (o que pode ser lido dentro do que Butler chamou de “direito performativo de aparecer”). Decorre que se entende por autonomia não só a rejeição à interferência de instituições e atores, como o Estado, e de organizações, como partidos políticos e sindicatos, mas também a suspensão de valores e convenções da sociedade mais ampla, de modo a ocupar não só a rua, mas também o corpo, e jogar com os limites do público e privado. Busquei também discutir os limites da prefiguração, chamando atenção para constrangimentos sociais que lhe são igualmente constitutivos. Entendendo as experimentações como experiências situadas, apontei para negociações em torno da horizontalidade na articulação das relações de gênero, raça, classe e territorialidade, que se exprime pelo acionamento do léxico que compreende lugares de fala e privilégios.

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Capítulo 3: Processos de hifenização, corporalidade e produção de sujeito

As frequentes idas a campo constantemente me faziam voltar para casa com a bolsa cheia de papéis – panfletos, fanzines, livretos, brochuras, pôsters. Prescindindo de editoras e impressão gráfica de larga escala, muitas vezes esses materiais exibiam desenhos e grafias feitos à mão, quase sempre reproduzidos em preto e branco, nem sempre legíveis. Algumas imagens se repetiam, indicando apropriações e influências mútuas. Referências imagéticas e teóricas por vezes se cruzavam, sem preocupação com o reconhecimento formal da fonte e em oposição mais ou menos explícita à noção de direitos autorais e copyright. Decorre daí o uso do termo copyleft impresso nas páginas iniciais de alguns zines131, o que pode ser entendido como parte de esforços na direção da democratização do acesso à informação e contra a hierarquização de determinados saberes. Já o anonimato de parte dos fanzines compreende também uma estratégia de segurança para possibilitar a circulação de certos conteúdos acerca de práticas criminalizadas no Brasil, como é o caso do aborto, por exemplo. Desse modo, os zines podem constituir também um espaço seguro, adquirindo às vezes o formato de manual faça você mesma, e outras vezes um formato autobiográfico e quase sempre redigido em primeira pessoa. Juntos, esses aspectos se mostram relevantes para a compreensão da circulação de referências e relações entre atoras no campo feminista, conforme discutirei adiante. Como visto nos capítulos precedentes, as relações no rolê feminista são norteadas por um ideário mais amplo associado à autonomia e horizontalidade. A orientação ideológica de cunho anarquista e autônomo – termos que, no campo, aparecem como sinônimos – parece organizar as adjetivações que são contingentes, intercambiáveis, e às vezes cumulativas: feministas veganas, feministas libertárias, anarkafeministas, feministas negras, feministas autônomas, transecofeminimo, lés-ecofeminismo, black-ecofeministas, feministas punks, feministas lésbicas autônomas, feminismo gordo, feminismo faça você mesma, são algumas dessas possibilidades de

131 No contexto pesquisado, zines ou fanzines são publicações em papel, geralmente compostas por colagens feitas à mão, de modo que textos ou desenhos são impressos, recortados e colados em folhas de papel que então são montadas em determinada ordem e fotocopiadas. Esse tipo de elaboração manual inspirada pelo faça você mesma é uma das características-chave dos zines, que gozam de liberdade editorial e de formato (KEMPSON, 2015). O baixo custo e a facilidade de confeccionar um zine fizeram com que ele se tornasse um dos principais meios de expressão do punk (MARQUES, 2016; NICOLAS, 2005) – uma referência musical, política e estética constante nesse circuito.

137 autonomeação acionadas no campo etnográfico.132 Em outras palavras, essas adjetivações são acionadas a depender do contexto, às vezes são elaboradas como sinônimos, e em determinadas situações aparecem numa sequência cumulativa (como por exemplo, feministas lésbicas autônomas ou feminismo gordo, lésbico, anticapitalista e antiespecista). A iconografia a ser analisada nas próximas páginas enfrenta os desafios de representação desses sujeitos. Como parte dos processos investigados nesta tese, os termos acima parecem indicar uma inflexão frente àqueles sujeitos que se constroem a partir da noção de “grupos” e “populações” delimitadas – como feministas lésbicas, feministas negras, feministas jovens, etc. – em direção a adjetivações que refletem também posições ideológicas e programas políticos. É um processo que parece indissociável da consolidação dos grupos de pesquisa de gênero, feminismo e sexualidade, e expansão do acesso ao ensino superior no Brasil nos últimos anos (FACCHINI, DANILIAUSKAS, PILON, 2013; FACCHINI, no prelo). Indica também uma forma de se apresentar publicamente que parece se distanciar de certa linguagem implicada no diálogo com instâncias estatais o qual demanda a demarcação de “segmentos” e “populações” bem delineados, como discute Facchini (no prelo) abordando a produção de sujeitos no movimento LGBTI.133 Sendo assim, o interesse analítico do presente capítulo recai sobre esse fluxo de referências políticas, estilos e categorias os quais se articulam a partir de diversas apropriações, contestações e ressignificações, conformando uma gramática política própria, implicada nos sentidos associados ao rolê e influenciada pelo debate feminista acerca da chamada interseccionalidade. A circulação do discurso ativista entre diversas agendas e bandeiras políticas produz certos enquadramentos (framings), dando lugar a um sujeito político cujo repertório pode ser caracterizado como prefigurativo, conforme a discussão do capítulo anterior. O presente capítulo

132 Como parte dos processos investigados nesta tese, os termos parecem indicar uma inflexão frente àqueles sujeitos que se constroem a partir da noção de grupos e populações delimitadas – como “feministas lésbicas”, “feministas negras”, feministas jovens, etc. – em direção a adjetivações que refletem também posições ideológicas e programas políticos. É um processo que parece indissociável da consolidação dos grupos de pesquisa de gênero, feminismo e sexualidade, e expansão do acesso ao ensino superior no Brasil nos últimos anos. 133 Abordando a estratégia de incidência política (advocacy) no movimento LGBTI, direcionada principalmente ao Legislativo e ao Executivo, e a participação em espaços como conselhos e conferências, Regina Facchini (no prelo) aponta que o diálogo socioestatal demandava uma clara demarcação de sujeitos e demandas. Uma das respostas dada pelo movimento consistiu em uma ênfase na clara delimitação de identidades em reação à pergunta “quem são vocês?”, forjada no contexto de participação socioestatal. Decorre daí a multiplicação das letras do acrônimo que dá nome ao movimento (LGBT) – uma formulação que não à toa se consolidou na I Conferência Nacional de Políticas para LGBT em 2008. Há de se considerar, ademais, os desdobramentos ainda em andamento do desmonte de canais de participação e órgãos como a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com escassez orçamentária cada vez mais instensa na conjuntura da crise política e econômica do país nos últimos anos.

138 se debruça sobre esses enquadramentos, tendo como fio condutor as publicações e produções iconográficas faça você mesma. Visando a compreensão das mudanças recentes nos processos de hifenização do feminismo, a análise será dividida em duas partes principais. Como dito, as atividades etnografadas se mostraram lócus primordial para aquisição de produções como fanzines, pafletos, livros, cartazes e livretos que circulam nessa rede. Na primeira parte deste capítulo, a análise de documento será utilizada para a investigação dos fanzines − elemento que se mantém fortemente no campo, apesar da disponibilidade e do uso recorrente das tecnologias de comunicação mediadas por computadores−, assim como de cartazes e outras produções iconográficas e textuais, apontando para a centralidade do corpo na produção do sujeito. Tendo como ponto de partida questões relativas a corporalidade e estilos na produção de sujeitos, este capítulo indaga como processos de hifenização são encarnados e tomam forma no ativismo – processos entendidos em termos de discursos e práticas cujo efeito de materialização possui caráter performativo (Butler, 2010).134 Destarte, interessa investigar, a partir dessa iconografia, o que conta como corpo, onde ele começa e termina, quais são as suas funções, quais são os regimes de (im)permeabilidade de fluidos e trocas corporais que gerem limites e fronteiras particulares implicadas na reinvenção de convenções de gênero e sexualidade. Partindo da crítica de autoras como Judith Butler (2003) e Donna Haraway (2009) às noções de identidades coerentes e corpos estáveis, e da assertiva de Fausto-Sterling (2001) de que incorporamos a experiência à nossa carne, o intento, portanto, consiste em desenvolver análise documental etnográfica para entender a maneira particular com que o corpo se apresenta na iconografia que circula no rolê. Mais do que expressar ou manifestar uma dada identidade preexistente, argumentarei que os corpos, enquanto artefatos políticos que ocupam as ruas ou as

134 Para Butler (2010), a materialização do corpo sexuado se produz através da reiteração de determinadas práticas altamente reguladas. A reiteração é necessária pois a materialização nunca é totalmente completa, uma vez que os corpos nunca se conformam completamente às normas. Isto é, atenta ao agenciamento desses corpos, a autora sublinha as instabilidades e possibilidades de rearticulação dos termos da legitimidade e inteligibilidade. A essa prática reiterativa e citacional Butler dá o nome de performatividade. Essa abordagem é crítica às concepções construcionistas que vêem o gênero como um constructo social que se impõe sobre a superfície da matéria, as quais supõem o corpo como uma superfície passiva, uma página em branco. No lugar dessas concepções, a autora propõe “um retorno à noção de matéria, não como local ou superfície, mas como um processo de materialização que se estabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito de fronteira, de fixidez e de superfície – daquilo que nós chamamos matéria.” (BUTLER, 2010, p. 163).

139 páginas dos zines, “constroem as diferenças sobre as quais e em nome das quais falam” (COELHO;VICTORA, 2017, p. 162). As produções gráficas que encontramos nesse material de campo mostram corporalidades híbridas, que exploram as fronteiras não só de gênero, como de sexualidade e espécie, pois se utilizam de referenciais animais para construir sua representação gráfica. Sugiro, por fim, que elas corporificam e encarnam esse pertencimento múltiplo hifenizado, e iluminam a interpretação ativista acerca do debate das interseccionalidades. As relações tecidas em meio à produção, veiculação e trânsitos dessa iconografia se mostram mais complexas se consideramos que, junto às publicações e produções textuais e imagéticas circulam também atoras, discursos e sujeitos influenciando-se mutuamente, produzindo (e disputando) enquadramentos (framings). A segunda metade do capítulo é voltado à reflexão sobre essa dinâmica pensada em relação à noção de feminismo faça você mesma. Assim, explorarei o modo pelo qual os fluxos que perfazem o rolê conformam uma série de adjetivações hifenizadas, indicando interpretações e apropriações a respeito da discussão sobre as chamadas interseccionalidades. Acompanhando a circulação dos zines, ampliei o escopo do trabalho de campo de modo a observar outro ponto nodal do rolê: uma “batalha de improvisação” que acontece todas as segundas-feiras no centro da cidade de São Paulo, voltada para minas, manas e monas. Aqui a produção de discurso dá ênfase não tanto à iconografia, mas à palavra falada, a experimentação com a palavra que ganha vida nas apresentações improvisadas de freestyle, voltadas à uma profusão de temáticas atravessadas pelas experiências das participantes.

3.1 O perigo das dobras: iconografias e corporalidades

Como mencionado no capítulo inicial, o Sapatoons Queerdrinhos (SQ)135 é um fanzine recheado de desenhos e histórias em quadrinhos, que existe desde o ano de 2012, contando hoje com três edições. Em um evento realizado em 2015 na cidade de São Paulo136, o SQ foi descrito

135 Mais informações estão disponíveis em . Acesso em 31 out. 2017. 136 Já mencionado no capítulo 1, esse evento foi o “DeGeneradas”, ocorrido em 2015 no Sesc-Santana na cidade de São Paulo (Diário de Campo, 2015).

140 como um projeto colaborativo, que circula em listas de e-mail anarquistas, composto por histórias fictícias e biográficas sobre amigas e voltado para essa própria rede, vista como uma comunidade afetivo-política habitada por um “nós, as lésbicas, as trans”. É, ademais, um dos zines de maior circulação no rolê. A produção de neologismos e de novas grafias é parte da estratégia de expressão dos fanzines e está implicada no alargamento do léxico feminista. A palavra “Sapatoons” faz alusão ao termo acusatório, aqui empregado como categoria de autonomeação, sapatão somado a “cartoons” (do inglês, desenho animado). Já “queerdrinhos” remete a “queer” (categoria acusatória na língua inglesa) e “quadrinhos” (uma referência ao conteúdo do zine, que é composto por tirinhas). A criatividade dos neologismos se relaciona também com o uso do humor – especialmente no formato do deboche e da chacota – o que evidencia uma relação crítica com a respeitabilidade e o âmbito do que se entende como institucional. Numa perspectiva autolocalizada como trans, sapatão, queer, os quadrinhos narram experiências na família, no círculo de ativismo, em relações afetivas e situações cotidianas vivenciadas por personagens que se veem frente a relações de poder reguladas por normas acerca do que seria uma conduta “natural” ou “normal” em sua sexualidade ou apresentação de gênero.

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Zine Sapatoons Queerdrinhos #2. Fonte: acervo pessoal

Após quinze histórias como a exposta acima, ilustradas nos quadrinhos e ocorridas no interior de cenários diversos – como banheiros públicos, festas, ônibus, quartos, entre outros –, encontramos o desfecho do Sapatoons Queerdrinhos numa cozinha. O “episódio” intitula-se “uma

142 historinha feliz”, e a personagem principal, vestindo avental estampado com patos, no qual podemos ler a palavra vegan, anuncia: “Olá, esse quadrinho é dedicado a todxs que acham que não passo de uma lésbica amargurada, sem amigues, que só faz desenhos derrotistas! Então, anotem aí, sapas!”.

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Zine Sapatoons Queerdrinhos #1 (2012). Fonte: Arquivo pessoal

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Zine Sapatoons Queerdrinhos #1 (2012). Fonte: Arquivo pessoal

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Zine Sapatoons Queerdrinhos #1 (2012). Fonte: Arquivo pessoal

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O termo amigues é usado como forma de fugir do universal masculino (“amigos”), mas também reflete um feminismo que não tem a “mulher” como seu sujeito estável e a priori – sendo recorrente a utilização, na linguagem escrita (muito comum nos zines), das letras “i” ou “x” ou ainda “@” no lugar das vogais que demarcam o gênero gramatical, denotando certa instabilidade nas posições de sujeito –, mas que tem, contudo, o homem cis-gênero como seu exterior constitutivo.137 Subsequentemente há uma explicação de como fazer um bolo vegano de chocolate, cujas instruções são informadas e protagonizadas com a ajuda de uma medusa, uma personagem identificada como a autora feminista francesa Monique Wittig com um labrys138 estampado no braço, uma vaca, um pássaro, um gato e um besouro. A receita é vegana, como sinalizado no avental vestido pela personagem principal. Isto é, um bolo que prescinde de ingredientes de origem animal, como ovos e leite de vaca. Como lembra Juliana Abonizio (2016, p. 119), “há vários tipos de consumo que compõem o vegetarianismo, e as motivações que levaram à adoção e levam à manutenção da dieta (que podem ser variáveis, sucedâneas ou concomitantes) implicam diferentes atitudes em relação à carne”, bem como diferentes atribuições de sentido. Dito isso, o significado de dizer-se vegetariano/a não poder ser tomado aprioristicamente uma vez que há vários vegetarianismos. Em termos descritivos, a pessoa vegana é definida como aquele sujeito que se abstém não apenas da ingestão da carne de animais (em geral define-se assim o vegetariano), mas de quaisquer produtos oriundos de seus corpos, como leite, ovos e mel. Também é evitado o consumo de produtos em que tenha sido pressuposta a exploração desses corpos de outros modos, como o caso de cosméticos testados em animais, produtos de limpeza doméstica, além de corantes presentes em biscoitos e outros aditivos químicos usados em alimentos industrializados. O veganismo frequentemente também abarca outros aspectos: no vestuário, há a interdição do couro e da lã; no

137 Em uma relação de oposição à trans, cis gênero é uma categoria êmica empregada para designar pessoas cuja identidade de gênero é entendida como em coerência com o sexo o qual lhe foi designado ao nascer.

138 Reivindicado como símbolo lésbico e representado por um machado de lâmina dupla, o labrys é associado a “várias divindades femininas da mitologia greco-romana, como Gaia, Réa, Ártemis, Diana e aparece também em outros lugares do mundo, como na Índia e no Egito.” Disponível em: . Acesso em: 2 jul. 2013.

147 entretenimento, o boicote a zoológicos, touradas, e circos com animais, e, por fim, há ainda o engajamento na luta pelo fim da vivisseção (CARMO, 2013). Na página conseguinte às instruções do bolo, está o que pode ser considerado o fechamento do zine. O “final feliz” do quadrinho é materializado por um imponente bolo confeitado e desenhado em primeiro plano, vendo-se ao fundo as silhuetas de quem o fabricou, e sobre o qual se lê, escrito em confetes, “feliz ruína da heteronorma” – uma referência à normatização da heterossexualidade enquanto condição supostamente natural assentada no binarismo de gênero.

Zine Sapatoons Queerdrinhos #1 (2012). Fonte: Arquivo pessoal

A filósofa Carol Adams (2012) argumenta que, para que a carne exista, animais – antes possuidores de um nome e um corpo – se tornam “referentes ausentes” e, numa operação simbólica, são transformados em comida. Para ela, em nossa linguagem, o uso de “carne” não evoca morte ou animais retalhados, contribuindo para a ausência da agência dos animais: vacas,

148 depois de mortas, são fragmentadas e se tornam “bifes”, “rosbifes”, “hambúrgueres” – referenciais, para Adams, menos inquietantes. Seguindo o seu pensamento, o referente ausente permite que esqueçamos o animal como uma entidade independente. É possível então dizer que a “historinha feliz” – e talvez sua qualidade assumidamente “feliz” seja devedora dessa operação – restaura o referente animal ausente ao imputar uma agência àqueles animais cujos corpos são pensados em algum tipo de relação de consubstancialidade e interdependência com os corpos humanos que protagonizam as histórias ilustradas no SQ. A disposição desses agentes no quadrinho sugere, assim, algum tipo de qualidade compartilhada entre esses corpos, o que desemboca na discussão sobre superfícies, fronteiras e (im)permeabilidades a ser realizada nas próximas seções.

3.1.1 Tecnologias de gênero

Ocorrido na cidade de Salvador (BA) entre 2011 e 2013, o Festival Vulva la Vida (FVLV) foi o evento no qual iniciei minha pesquisa de campo ainda no mestrado, e de cuja organização eu também fazia parte. Foi o principal meio pelo qual pude estabelecer contatos que me levariam aos demais eventos que posteriormente conformaram o universo empírico da pesquisa. Ademais, o FVLV é mencionado em diversos trabalhos recentes sobre “feminismos jovens” (CARMO, 2013, 2016A, 2016B; ALVAREZ, 2014a; GONÇALVES, FREITAS; OLIVEIRA, 2013; RIBEIRO, COSTA; SANTIAGO, 2012). Oliveira e Gonçalves (2016, p. 248), por exemplo, consideram o evento como “local privilegiado de confluência” de jovens que não se vinculam a nenhuma organização formal, atuando principalmente em coletivos e grupos diversos – às vezes simultaneamente, como pontuam (p. 248). Outras autoras, como Alvarez (2014ª, p. 37), citam o festival para tematizar a emergência de novos campos discursivos no feminismo brasileiro e latino-americano. Ela conta que realizou entrevista com fundadoras e participantes, dentro de um grupo de “outras jovens militantes de várias identificações raciais e setores políticos como o veganismo, transfeminismos, hip hop, reggae e capoeira”. Já Rebeca Freire (2017, p.14), em sua tese de doutorado sobre “artevismos feministas” na cidade de Salvador, localiza o FVLV como parte de um feminismo “transnacional decolonial, diaspórico, queer, latino-caribenho, jovem, radical e autobiográfico” por onde transitam “hip hoppers, anarco-punks, transfeministas, vadias, angoleiras, ciclistas, etc”.

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Como nos demais eventos que perfazem o rolê, no FVLV não havia divisão de trabalho especializada, isto é, não havia distinção preestabelecida entre quem organizava, quem agendava show, quem limpava o espaço ou quem promovia os debates e oficinas. As funções eram rotativas e livremente assumidas. Assim, por exemplo, o cartaz da divulgação não foi feito por um profissional do design ou das artes. A mesma lógica – o faça você mesma – opera nos fanzines, bandas, coletivos: ao menos a princípio, qualquer uma pode se engajar nessas atividades, as quais não requerem técnica profissional, determinado “talento” ou diploma. Essa fluidez permite que os eventos, assim como zines, sejam espaços e artefatos de experimentação sexual e de gênero – em que arranjos são testados, novas linguagens são forjadas e formas de marcar (e produzir) diferenças são ensejadas. Como venho discutindo, esse argumento, contudo, só faz sentido se considerados os pertencimentos de classe, escolaridade e raça das interlocutoras, assim como a sua localização em espaços urbanos.139 Nos dados do trabalho de campo realizado desde 2012 em eventos ativistas – entre eles a terceira edição do FVLV – observei que a comida vegana e os rituais de comensalidade ocupam lugar notório, que foge à posição de suporte ou acessório. A comensalidade é entendida como parte da práxis e enquanto tal é constituinte da programação dos eventos, tendo tanto peso ou, na prática, quase tanto peso quanto as demais atividades. Como argumentei outrora, os códigos alimentares e as prescrições que regem a “performance culinária” (TOBIN, 1999) vegana feminista ressignificam a cozinha, construindo-a como espaço de agenciamento interespécie e de contestação das convenções de gênero dominantes (CARMO, 2013; CARMO, 2016a).140 Dito isso, ganha sentido a presença da receita de bolo figurando nas páginas do fanzine exposto acima. Um dos cartazes de divulgação da segunda edição do FVLV realizado em Salvador (BA) expressa essa cosmologia política povoada por referências ao não humano, as quais, articuladas

139 Questões como a alimentação têm sido tematizada no Brasil por outros setores do movimento feminista e de mulheres, tal como organizações de mulheres trabalhadoras do campo, as quais colocam em questão o próprio modelo de produção agrícola. A pauta por reforma agrária, por exemplo, não figura com força entre as interlocutoras desta pesquisa – o que sinaliza para 1) a produção de convenções e ideários ligados à vida urbana e centrados em grandes capitais do país; 2) o indivíduo como ponto de partida de um ativismo voltado à politização do cotidiano por meio de experimentações coletivas. 140 Durante o mestrado, a partir da categoria analítica gastropolítica (APPADURAI, 1981), me propus a pensar o veganismo para além de uma interdição alimentar (no caso, uma interdição de alimentos de origem animal) e busquei pensá-lo em seus aspectos produtivos, isto é, quais são os valores a ele atribuídos? Que tipo de corporalidade e estilos ele constrói? Que gastropolítica o engendra? Em suma, como o veganismo é encarnado nos discursos e práticas ativistas?

150 em “acoplamentos ciborguianos” (Haraway, 2009), jogam com os limites da representação coerente entre o “eu” humano e o “outro” animal. Como será discutido a seguir, podemos entrever no cartaz a politização de orifícios corporais e a rearticulação de regimes de (im)permeabilidade através da desnaturalização da relação entre espécies.

Cartaz de divulgação do FVLV (2012). Fonte: Arquivo pessoal

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No campo etnográfico, a interdição vegana está profundamente articulada com a crítica ao chamado especismo, termo que denota uma relação de opressão e exploração aos animais enquanto espécie. Sustento que, nesse circuito ativista, a eficácia do termo especismo está atrelada a uma profusão discursiva de muitas categorias e neologismos criados nesse contexto, em uma cadeia de significados, como gordofobia, lesbo-homo-transfobia, etarismo e adultismo, capacitismo, etc. Há intensa relação de circulação e retroalimentação com o âmbito acadêmico, cujas categorias são reapropriadas, contestadas, tensionadas em seus sentidos, a partir das estratégias ativistas (Carmo, 2016b). Teresa de Lauretis (1994, p. 208), preocupada em traçar um conceito de gênero que não fosse considerado uma derivação da diferença sexual nem um mero efeito ideológico da linguagem, propôs a categoria “tecnologia de gênero”, segundo a qual gênero não diz respeito a uma propriedade de corpos, mas, parafraseando Foucault, “ao conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais, por meio do desdobramento de ‘uma complexa tecnologia política”. O cinema é um exemplo de tecnologia de gênero sobre o qual a autora se debruça. Aqui proponho que o manejo, significado e sentido atribuídos à comida vegana fazem dela uma tecnologia de gênero dentro de uma gastropolítica particular, a partir da qual podemos compreender o investimento político nos estilos corporais, na gordura e na hibridez interespécie. Nesse sentido, o veganismo, tal como manejado e performativizado por essa rede, constitui uma tecnologia política cujo efeito discursivo recai na produção de corpos que reivindicam espaços intersticiais. Ele faz parte de um universo de críticas a concepções que relacionam o corpo a uma “condição normal” – como o corpo supostamente acima do peso.

3.1.2 Sobre dobras, dobraduras e dobradiças: regimes de (im)permeabilidade

Inspirada nos trabalhos de Mary Douglas e Julia Kristeva, Judith Butler (2003) sugere que a fronteira e a superfície dos corpos são politicamente construídas mediante os tabus da matriz heterossexual. Para desenvolver este argumento, a autora faz uma leitura da obra Pureza e perigo,

152 propondo uma apropriação pós-estruturalista de suas ideias a fim de compreender o corpo em sua materialização. Butler defende que discursos estabelecem as fronteiras da pele, instaurando e naturalizando “certos tabus concernentes aos limites, posturas e formas de troca apropriadas, que definem o que constitui o corpo”. Aqui, proponho que o veganismo é uma dessas modalidades de trocas, ao lado de discursos sobre (homo)sexualidades, redefinindo o que conta como o corpo saudável, desejável, bem como o que conta como corpo comestível, edível. Se, como coloca Douglas, a poluição de fronteiras – a junção daquilo que deve estar separado e a ruptura simbólica daquilo que deveria estar junto – representa perigo em uma variedade de culturas, para Butler (2003, p. 190) também a permeabilidade corporal é regulada de forma normativa:

As práticas sexuais que abrem ou fecham superfícies ou orifícios à significação erótica em ambos os contextos, homossexual e heterossexual, reinscrevem efetivamente as fronteiras do corpo em conformidade com novas linhas culturais. [...] Além disso, os ritos de passagem que governam os vários orifícios corporais pressupõem uma construção heterossexual da troca das posições e das possibilidades eróticas marcadas pelo gênero. A desregulação dessas trocas rompe, consequentemente, as próprias fronteiras que determinam o que deve ser um corpo.

Dito isso, interessa-me nesta seção alargar a reflexão proposta pelas autoras, de modo a pensar os processos de produção de sujeito político que têm sua centralidade no corpo – um corpo cujas trocas e permeabilidades forjam dobras e dobradiças em contestação à violência dos estigmas e representações dominantes sobre gênero, sexualidade e gordura. Assim, como será desenvolvido abaixo, além da hibridez interespécie, a gordura é outro elemento que também está presente nas produções iconográficas, como parte de discursos que reinscrevem fronteiras, superfícies e texturas corporais. A décima edição do Seminário Internacional Fazendo Gênero ocorreu na cidade de Florianópolis (SC), em 2013, e tinha como um de seus objetivos “criar espaços de troca de experiências e diálogo entre investigadoras/es acadêmicas/os e aquelas/es ligadas/os a outras entidades e aos movimentos sociais”.141 Nela encontrei algumas das interlocutoras dessa pesquisa,

141 Disponível em: . Acesso em 14 fev. 2017.

153 mais especificamente na exposição de Arte e Gênero, em que aconteceu uma oficina sobre violência entre lésbicas, o lançamento de um fanzine e show com bandas feministas de funk e de música eletrônica no qual, à diferença do restante do seminário, a única comida à venda era expressamente vegana, sendo organizado em parceria com o coletivo Vadias Desterro, também responsável pela versão local da Marcha das Vadias.142 Assim como acontece com o termo vadia, algumas das bandas que se apresentaram – intituladas Sapatânicas e Putinhas Aborteiras – se apropriam e positivam categorias de acusação, como “sapatão”. Essa operação também se volta à palavra gorda. O fanzine lançado na ocasião tem por título “Gorda, Eu?!?” e como subtítulo “Um zine sobre dobras, dobraduras y dobradiças”. É um zine pequeno, menor do que os usuais, e cabe na palma da mão. O conteúdo alterna autorretratos e frases escritas à mão por um “eu, gorda”. Ambos os recursos imprimem no papel o lugar de fala reivindicado pela autora, que se identifica como uma lésbica gorda negra (sem vírgulas). Tais recursos discursivos como a letra cursiva, a expressão de experiências pessoais, o autorretrato e a exposição do corpo remetem ao que Stuart Hall (2000, p. 109) chama de “narrativização do eu”, a qual envolve o manejo e negociação “da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos”. Em diálogo com os estudos étnicos-raciais e a teoria feminista, e preocupado com questões envolvendo agência, corpo e poder, Hall argumenta que a produção do sujeito através da narrativização do eu é um processo contingente que tem a ver

não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios. (Hall, 2000, p. 109).

Nesse processo de formação discursiva do sujeito, o corpo não funciona como um referente estável, mas como uma espécie de significante que condensa as subjetividades nos indivíduos, os

142 Para uma análise sobre a Marcha das Vadias, ver Gomes (2017) e Gomes e Sorj (2014).

154 quais são não só convocados a determinadas “posições de sujeito”, mas também moldam, estilizam, produzem, tensionam e exercem essas posições (Hall, 2000).

Páginas do zine “Gorda, Eu?!” (2012). Fonte: Arquivo pessoal

Conforme o trecho acima, no zine é criada uma complexa cadeia de significados que permeia a sexualidade, a gordura e a identidade racial, dando lugar a uma lesbiandade que se erige em oposição à feminilidade associada ao “ser mulher”. Outro trecho, subsequente, afirma: “nesses dias fiquei menos gorda, o assédio aumentou; ainda acho estranho, ‘por que eles me veem como mulher?’. muitas vezes experimento minha gordura como alguma estratégia que me leva longe do que é ‘feminino’, ‘ser mulher”. Assim como no Sapatoons Queerdrinhos, o “Gorda, eu?” parece também ser informado, em certa medida, pelas ideias da autora Monique Wittig que figura na receita do bolo vegano. Em um dos seus ensaios mais conhecidos, intitulado “One is not born a woman”, Wittig (1993) questiona as explicações que recorrem à anatomia ou biologia para justificar a divisão sexual, se contrapondo especialmente a concepções segundo as quais a capacidade reprodutiva seria o que define as mulheres. Ela argumenta que “homem” e “mulher” são categorias políticas, ao invés de dados naturais, forjados pela heterossexualidade enquanto uma matriz de opressão estruturalmente desvantajosa às mulheres.143 Portanto, toda explicação naturalizante reforçaria este sistema.

143 O argumento é construído fazendo uso de uma analogia entre as categorias de sexo e raça: o conceito de raça não existiria antes da realidade da escravidão Africana (pelo menos não em seu sentido moderno). Assim como sexo, atualmente a noção de raça é entendida como um dado imediato que designaria características físicas dentro de uma suposta ordem natural.

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Para a autora, a mulher é produto dessa relação específica com o homem, que implicaria uma série de obrigações pessoais, físicas e econômicas. Nesse sentido, as lésbicas não seriam mulheres; elas seriam desertoras da sua própria classe sexual, conforme posto no trecho talvez mais famoso do ensaio: Lesbian is the only concept I know of which is beyond the categories of sex (woman and man), because the designated subject (lesbian) is not a woman, either economically, or politically, or ideologically. For what makes a woman is a specific social relation to a man, a relation that we have previously called servitude, a relation which implies personal and physical obligation as well as economic obligation (“forced residence”, domestic corvée, conjugal duties, unlimited production of children, etc.), a relation which lesbians escape by refusing to become or stay heterosexual. We are escapees from our class in the same way as the American runaway slaves were when escaping slavery and becoming free. For us this is an absolute necessity; our survival demands that we contribute all our strenght to the destruction of the class of women within which men apropriate women. (p. 108).144

Embora o ensaio, publicado pela primeira vez em 1981, possa ser abordado em diversos aspectos, é a potencialidade política de (des)identificação aberta pela desnaturalização da heterossexualidade que serve de inspiração às ativistas na assunção da lesbiandade. No zine, a “indisponibilidade pra homens” é sinalizada, entre outros aspectos, mediante a gordura – “nesses dias fiquei menos gorda, o assédio [masculino] aumentou”. A gordura mobiliza e condensa um lugar de contestação à inteligibilidade de gênero, encarnando uma identidade para longe do “feminino” e em direção à assunção das bordas, dobras e dobradiças, como evocado no título. As dobras representam um jogo deliberado com os códigos de regulação dos contornos corporais, manejando signos que visam à ampliação das possibilidades corporais.145

144 “Lésbica é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lésbico) não é uma mulher, nem economicamente, politicamente ou ideologicamente. Pois o que faz uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que temos chamado de servidão, uma relação que implica uma obrigação pessoal e física e também econômica (“residência obrigatória”, trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação a qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornar-se ou seguir sendo heterossexuais. Somos desertoras de nossa classe, da mesma maneira que os escravos americanos fugitivos o eram quando escapavam da escravidão e se libertavam. Para nós, essa é uma necessidade absoluta; nossa sobrevivência requer que a gente contribua com toda nossa força para a destruição da classe das mulheres dentro da qual os homens se apropriam das mulheres.” (tradução nossa). 145 A politização e erotização da gordura têm sido acionadas também em outros contextos. Investigando espaços de sociabilidade e consumo frequentados por homens que se relacionam afetivo-sexualmente com outros homens na cidade de São Paulo, Isadora Lins França (2010) tratou daqueles que se nomeiam “ursos”. Entre eles, a autora identificou a valorização da gordura e características relacionadas a uma aparência corpulenta como um dos atributos que compõem corpos desejáveis e acompanham a definição mesma de “urso”. As convenções de gênero e sexualidade dos ursos associam masculinidade e corpulência através da erotização de homens gordos, peludos e com uma postura mais masculina, buscando se distanciar dos “afeminados”, e criticando certos padrões de beleza.

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Na publicação em questão, a estabilidade da distinção interno/externo é contestada também mediante a alimentação, levando a um agenciamento interespécie. A página reproduzida abaixo comunica: “pra mim, ser vegana (antes vegetariana) tem tudo a ver com ser gorda, porque não é uma dieta sobre emagrecer, mas sim sobre outras pessoas (principalmente as não-humanas), o foco não é só eu mesma, (m)eu corpo...”.

Páginas do zine “Gorda, Eu?!” (2012). Fonte: Arquivo pessoal

Esse corpo é favorecido mediante o veganismo, e, pelo fato de ele não ser uma matéria inerte, mas, antes, um artefato político de enunciação de um “eu, gorda”, o veganismo diz respeito a mais do que “corpos”, diz respeito a pessoas, ao estatuto do humano e do animal. Se muitas vezes os vegetarianismos são evocados para instrumentalizar o corpo magro pela perda de peso, em direção ao que seria um padrão excludente e a serviço da matriz heterossexual, aqui, o veganismo concerne ao corpo que escapa aos ideais regulatórios de gênero, sexualidade e espécie. Parece que a busca por reinscrever as fronteiras do corpo em novas linhas culturais, como coloca Butler, se vale da comida como tecnologia de subjetivação humana e animal. A performance de (anti)gênero146 tal como nomeada no zine sinaliza a centralidade que o corpo possui para os feminismos contemporâneos e seus ativismos estilizados, com a

146 É interessante também notar que o “gênero” é aqui entendido em seu sentido binário – o masculino e o feminino como dois polos autoexcludentes – contra o qual seria necessário lutar. Daí o uso de termos como “(anti)gênero)” e “DeGenerada”.

157 ressignificação ou aprofundamento do lema “o pessoal é político”. Nesse contexto, a estratégia feminista de “politização do privado” permanece, portanto, como referencial, mas pode ter como alvo novas áreas da vida ou, ao menos, sua politização pode se dar de forma qualitativamente distinta. Aqui, o corpo é, em si e desde já, bandeira política (CARMO, 2016b; GOMES, SORJ, 2014; GOMES, 2018). Cabe notar que, dado o ângulo bastante aproximado, nas imagens do zine não é possível ver o tamanho do corpo, mas sim sua textura, contorno e dobras sobrepostas. Aqui há um diálogo relevante com trabalhos sobre corpos gordos, como o livro Unbearable weight, de Susan Bordo (1993). Segundo a autora, até os anos 1980, o excesso de peso era o foco da maioria dos anúncios de produtos de dieta; a partir de então, o alvo passa a ser representado por termos como gordura, saliência, flacidez – que não estão estritamente associados ao excesso de peso. A ênfase não se volta tanto para a perda de peso, mas sim tem a ver com a busca de margens corporais firmes – daí a popularização de técnicas como a lipoaspiração e de combate à celulite, por exemplo. O corpo firme e contido comunicaria mensagens de autocuidado, energia, controle sobre impulsos e habilidade em moldar a própria vida. Bordo argumenta que esses são sentidos mediados por qualidades morais, uma vez que a gordura é percebida como indicativo de preguiça, falta de disciplina, etc. Tendo como uma de suas inspirações o fanzine supracitado “Gorda, Eu?!”, o livro La cerda punk: ensayos desde un feminismo gordo, lésbiko, antikapitalista y antiespecista (“A porca punk: ensaios desde um feminismo gordo, lésbiko, anticapitalista e antiespecista”), de autoria de Constanza Alvarez Castillo, foi lançado no Chile em 2014.147 O livro foi publicado por uma editora independente a qual disponibilizou sua versão em formato digital para download gratuito na internet. Desde então ele tem circulado no Brasil em meio digital, assim como recentemente têm acontecido lançamentos itinerantes pelo país em cidades como Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ), contando com a presença da autora. Também tem sido veiculada uma tradução do livro para o português no formato de fanzine.

147 A autora conta que teve conhecimento do zine brasileiro “Gorda, eu?!” durante sua ida ao Encuentro Lesbiintertransfeminista “Venir al sur”, realizado no Paraguai em 2012, o que indica a extensão latino-americana do rolê, bem como o descentramento do sujeito e dos tradicionais Encontros Feministas Latinoamericanos e do Caribe (EFLAC).

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Estive presente no evento de lançamento na cidade do Rio de Janeiro, em 2016, que contou com cerca de 50 pessoas e aconteceu em um local no centro da cidade, o Motim, que se define como “um espaço livre para shows, atividades artísticas, insubmissas, rebeldes e independentes”. Atualmente o Motim está mudando de endereço e para tal tem promovido uma campanha de arrecadação de fundos. Na página da vaquinha, as organizadoras contam a história do espaço:

Em agosto de 2016, as amigas Amanda Flores e Leticia Lopes alugaram uma sala no Centro da Cidade do Rio de Janeiro para hospedar projetos independentes e construir um espaço seguro, uma vez que o Rio borbulhava com denúncias de violência e assédio partindo dos administradores de pontos culturais, bares e casas de show locais. Assim nasceu a MOTIM, que por um ano abrigou uma programação constante de oficinas, cursos livres, rodas de conversa, trabalhos manuais e festivais de música, e onde se construiu respeito, visibilidade, igualdade de direitos e oportunidades, troca de experiências e ideias, produção cultural crítica. Sempre abordando debate de gênero e práticas de empoderamento das mulheres na sociedade e nas artes. Reunindo um público predominantemente jovem de muitas partes da capital e do Estado do RJ, em 1 ano o espaço se tornou um ponto de encontro de movimentos feministas e da música independente, confirmando assim a importância de haver lugares físicos que abriguem propostas sócio-culturais alternativas numa cidade que pede por articulação, por circuito.148

A atividade de lançamento do La Cerda Punk no Motim contou com uma roda de conversa com a autora, além de exibição de vídeo pós-pornô, performance com um ativista trans sobre gordura, e show de bandas femininas de rock. O livro tem 243 páginas, está em sua terceira edição e foi vendido na ocasião pelo valor de R$ 35,00 (trinta e cinco reais). Além dele, a autora, de 24 anos, também vendia fatias de bolo vegano de cenoura com chocolate e amendoim a fim de custear sua própria viagem e estadia na cidade. A apresentação foi feita em “portunhol”, para uma roda de pessoas sentadas em círculo no chão do Motim. Castillo contou que vive na cidade de Valparaíso, no Chile, onde o livro foi escrito enquanto vivia de forma precária em uma okupa.149 La Cerda Punk teve seu primeiro lançamento

148 Disponível em: < https://www.vakinha.com.br/vaquinha/vakinha-da-motim>. Acesso em 12 ago. 2018. 149 Okupa: termo êmico que alude a ocupações de casas ou edifícios, podendo se dar de forma clandestina ou não.

159 na Feira do Livro Anarquista de Valparaíso em 2014, e foi descrito como um projeto autogestionário, uma vez que funções como edição, diagramação, publicação e reprodução foram feitas de forma colaborativa por amigas e pessoas que acreditavam no livro. Assim, ele seria um exemplo de que qualquer pessoa pode escrever um livro, produzindo conhecimento fora da universidade. Na capa, uma ilustração assinada por Lino Arruda: um corpo de coxas grossas, virilha peluda, barriga protuberante, mãos que seguram seios fartos e uma cabeça furiosa, meio-lobo, meio-cachorro.150

150 Para mais informação sobre o trabalho de Lino Arruda, ver Arruda (2015).

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Capa do livro La cerda punk (2014)

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O prólogo, assinado pela ativista Valeria Flores (2014, p. 11), elenca uma série de qualificações multissituadas para localizar a autora: “aquí no se habla de cualquier cuerpo, es un cuerpo gordo, lesbiano, anarquista, feminista, antiespecista, practicante de BDSM, sudaca, posporno, glam trash”. Ela faz uso de um jogo de palavras com o termo straight, que na língua inglesa possui ao menos dois sentidos: 1) é um adjetivo sinônimo de “reto”, sem curvas; 2) é utilizado também com o sentido de “heterossexual”. O trocadilho permite que Flores defenda a assunção desse corpo gordo como aquele que não aspira a ser straight, mas que, antes, se assenta em “curvas hiberbólicas” e “zigzagueantes” – o que remete mais uma vez à valorização das “dobras, dobradiças e dobraduras”. O referencial animal é mobilizado a fim de politizar a gordura: após o prólogo, a autora começa o livro enunciando “escribo desde la cerda punk que me habita y su gruñido es um grito de guerra” (CASTILLO, 2014, p. 25). Adiante ela relata que termos como cerda (porca), vaca (vaca), ballena (baleia), foram os insultos que desde muito pequena passaram a fazer parte de seu imaginário. A escrita autobiográfica se impõe a fim de enfrentar a pressuposição de que os hábitos alimentares de mulheres gordas não são válidos, pois estas se alimentariam compulsivamente, sem consciência e distinção do que põem na boca. Vista como um órgão exposto e vigiado socialmente de modo intenso, a boca é alvo de investimento político a partir do veganismo, em uma sociedade em que vegetarianismo e gordura são tidos como oximoros. Tendo que conviver com comentários como “por que és gorda se és vegana?” – os quais subentendem que qualquer tomada de ação por uma pessoa gorda visa ao emagrecimento, e que pessoas veganas só comem saladas –, Constanza Castillo questiona a suposta irracionalidade que guiaria a relação das mulheres gordas com a alimentação. Em oposição deliberada ao “orgulho gordo” e ao plus size (vistos como inseridos em certa normatividade), o livro traz a proposta de ver a gordura não sob o prisma da vitimização, mas através de um olhar feminista lésbico voltado para “cómo las distintas mujeres utilizan distintas estratégias con su propio cuerpo para alerjase de la heterosexualidad y del deseo del varón” (CASTILLO, 2014, p. 77-78), isto é, “ser gorda para no ser un objeto de deseo del varón”. Assim, o corpo lésbico gordo seria aquele que (r)existe mediante a desprogramação do desejo heterossexual, estratégia traduzida como “sabotaje sexual” e “hackeo del cuerpo”.

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Embora com base em uma interpretação dualista em termos de poder/corpo, Bordo (1993) fornece um contraponto interessante sobre essa questão. Ao se debruçar sobre a chamada anorexia nervosa, no contexto da década de 1980 nos Estados Unidos, a autora argumenta que, tal qual expresso nos relatos de adolescentes anoréxicas, a magreza é vivenciada em oposição ao “corpo feminino”, entendido como um corpo arredondado (a round body), e associado ao papel tradicional voltado para a vida doméstica. Essa imagem era responsável por moldar a experiência dessas jovens frente a sua própria fome de comida. Tal “temor” pela feminilidade (a fear of womanhood) desenvolvido na puberdade carrega, segundo a autora, uma dimensão de protesto contra as expectativas de gênero vigentes nas décadas de 1960 e 1970, período em que as mães dessas garotas davam início a família e casamento. Em uma das falas destacadas por Bordo, manter-se delgada é tido como um modo de evitar a sexualidade, de se tornar “andrógina”; outra entrevistada associa seu pavor em ganhar peso com o desejo de não querer ser “uma tentação para homens”. Por fim, La cerda punk expõe também tensões no interior do campo feminista, as quais refletem disputas em torno de noções como “o pessoal é político”. Na visão da autora, o feminismo que defende a autonomia sobre o corpo seria falho se não diz respeito também ao que colocamos para dentro por meio da ingestão. Dessa maneira, seria inconcebível que, “nos círculos feministas mais tradicionais”, “utilicemos frases clássicas del feminismo como ‘lo personal es político’ o ‘biologia no es destino’ y se ofrezca pan con ave en um seminário de despenalización del aborto” (CASTILLO, 2014, p. 111).

3.1.3 A centralidade do corpo

A politização do corpo não é exclusividade do movimento feminista. Se, numa escala variada, inúmeros movimentos sociais politizam o corpo e “incorporam” a política, o corpo é, contudo, um articulador central dos discursos e práticas feministas, tanto no passado quanto no presente (GOMES, 2018). Reivindicações demandando o direito ao aborto, o exercício da sexualidade e serviços de atenção à saúde da mulher têm sido historicamente enquadradas como parte da luta pela “autonomia das mulheres sobre seus corpos” (GOMES, 2018). Tendo em mente o fato de que o corpo tenha historicamente se apresentado como um articulador usual no

163 movimento feminista de protesto, é relevante considerar suas particularidades quando se apresenta nas expressões feministas contemporâneas. Como também notado por Gomes (2018) em pesquisa sobre a Marcha das Vadias, o corpo tem sido politizado nos discursos e protestos feministas contemporâneos para além do campo dos ditos direitos sexuais e reprodutivos. Enquanto um artefato político central nos protestos feministas recentes, o corpo opera não só como um veículo na transmissão de mensagens, mas como a própria mensagem; meio e fim se confundem conformando o que Gomes nomeou de “corpo-bandeira”. O corpo é, em si e desde já, bandeira política. Isto é, ele não é apenas um locus de protesto; ele é o protesto. O corpo não é manejado simplesmente para atrair atenção para uma determinada causa; ele encarna a causa, como discuti outrora a partir de letra de música que diz “fiz do meu corpo a minha revolução” (CARMO, 2016b).151 Até o momento, desenvolvi uma reflexão sobre convenções ligadas a corporalidades no campo feminista jovem, apontando para a estilização de identidades e produção de diferenciações que se dão a partir de uma leitura particular sobre articulação de marcadores da diferença (gênero, sexualidade, espécie, geração, gordura, raça, etc.) e seus efeitos discursivos. Na produção iconográfica, o corpo é dotado de centralidade; entretanto, não se trata do corpo feminino que é capaz de gestar, entre outras características que tradicionalmente marcariam a “experiência feminina” no mundo. Trata-se de corpos híbridos, que manejam contingencialmente o masculino e o feminino, o animal e o humano, mas também jogam com a gordura, os desejos, a lesbianidade política, etc. Orientadas pela politização do que é convencionalmente considerado privado, as situações etnográficas apresentadas põem em ação certa desregulação de fronteiras corporais por meio de um regime de (im)permeabilidade modulado pela interdição vegana, resultando em um reenquadramento dos termos da inteligibilidade de gênero, espécie e sexualidade. Nesta seção articulei as noções de “tecnologia de gênero”, de autoria de Teresa de Lauretis, e as considerações de Judith Butler, entre outras autoras, sobre inscrições corporais e subversões performativas, tendo em mente o que venho sinalizando como pertencimentos ativistas múltiplos (sociais e ideológicos) e processos de hifenização.

151 Jonathan Dean e Kristin Aune (2015) tratam das formas de aparecimento público dos grupos FEMEN, Pussy Riot e Slutwalk, e trazem as controvérsias no campo feminista em âmbito europeu acerca da nudez e usos do corpo por essas agrupações.

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As produções imagéticas discutidas colocam questões acerca do manejo das fronteiras corporais frente aos poderosos efeitos de naturalização das normas de gênero e sexualidade, assim como as possibilidades de agenciamento político intersticiais. Nesse sentido, a politização do privado parece jogar com as “ficções somáticas da feminilidade” (PRECIADO, 2008) por meio da comida vegana, das produções iconográficas nos fanzines, das performances musicais, das ocupações urbanas, entre outras estratégias de produção, elaboração e publicização de diferenças. Por fim, trata-se de uma discussão que dialoga com produções teóricas recentes que abordam o feminismo e as agências animais por parte de autoras contemporâneas, como o artigo de Beatriz Preciado intitulado “El feminismo no es um humanismo” (2014)152 e declarações da teórica e ativista Angela Davis durante a 27th Empowering Women of Color Conference (2014).153 Além de trazer contribuições ao debate sobre interseccionalidades, essa discussão aponta também para os limites do estatuto do humano, pondo em questão concepções frequentemente entendidas dentro da chave da racionalidade e da autonomia, como as ideias de sujeito, pessoa e ator social.

3.2 Enquadramentos faça-você-mesma

Embora haja um esforço no sentido de afirmar politicamente a produção de conhecimento fora da academia – tida como uma instância que hierarquiza os saberes –, as corporalidades acima são informadas por certas perspectivas teóricas entrecruzadas, que são constantemente (re)apropriadas em traduções contínuas – uma lógica faça você mesma que prescinde das figuras de autoridade em determinados assuntos (no gods no masters, dizia o nome do festival descrito no primeiro capítulo). O contato com esses conteúdos não se dá necessariamente pela via universitária, mas também através da leitura de zines, blogs, redes sociais, publicações de editoras independentes ou fabricadas manualmente e que também circulam em versões digitais. Esta seção trata dessa

152 Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2015. 153 Disponível em: . Acesso em 23 mar. 2015.

165 circulação, entendendo os campos feministas como “teias político-comunicativas” por onde transitam pessoas, práticas, ideias e discursos (ALVAREZ, 2014). Seguindo a reflexão de Carla Gomes, uma das principais atividades dos movimentos sociais é a produção de enquadramentos – uma forma de elaborar e apresentar eventos e experiências como problemas que pedem solução (SNOW, BENFORD, 1992 apud GOMES, 2018). Como uma espécie de moldura, “os enquadramentos necessariamente selecionam certos elementos e excluem outros na definição de um problema social, de modo a produzir narrativas simplificadas e coerentes.” (GOMES, 2018, p. 105). Essa é uma tarefa contínua, dado que os frames dos movimentos são constantemente reelaborados. A autora, contudo, reconhece o enfoque cognitivista que muitas vezes está presente nessa definição, e alarga o conceito para além de suas dimensões cognitivas que reduzem os frames a “ideias” e esquemas interpretativos, incluindo seus aspectos corporais e emocionais. Sendo assim, os frames são também “encorpados” e imbuídos de emoção (GOMES, 2018). O subtítulo do livro “La Cerda Punk” (em português, “A Porca Punk”) – “ensayos desde un feminismo gordo, lésbiko, antikapitalista y antiespecista” – é emblemático para essa discussão. O enquadramento que subjaz esse tipo de formulação segue a lógica faça você mesma, um amálgama de adjetivações e referências que refletem influências teóricas diversas, produzindo marcadores que se mostram relevantes às ativistas na elaboração de suas experiências. Nas páginas dedicadas à lista de referências ao final do livro, são citadas autoras como Angela Davis, bell hooks, Judith Butler, Gloria Anzaldua, Anibal Quijano, Deleuze e Guattari, Monique Wittig, Maria Lugones, Julieta Paredes, Karen Warren, além de páginas de sites, zines e blogs. Juntos, esses nomes indicam influências teóricas entrecruzadas, de escolas de pensamento diversas, tais como a filosofia francesa pós-estruturalista, teoria decolonial, feminismo negro estadounidense, teoria queer, filosofia ecofeminista, elaborações de cunho marxista da chamada New Left, etc. Como discutirei abaixo, essa dinâmica de ressignificações e (re)apropriações, de primeira, segunda ou terceira mão, é do tipo rizomática (MARQUES, 2016). As produções iconográficas e textuais sobre as quais venho falando neste capítulo são constantemente trocadas nos eventos, seja em interações face a face, enviadas por correio, vendidas a preço de custo, ou disponibilizadas na internet em versões digitais, circulando rapidamente. Quem recebe um zine, por exemplo, passa a fazer cópias e realizar novas trocas. Essas cópias podem reproduzir a publicação na íntegra ou parcialmente (como no caso de imagens,

166 que, sendo replicadas, podem ser encontradas em diversos meios). A partir das permutas pode-se também gerar um novo zine, em oposição ou apoio ao zine trocado em primeira instância, e assim sucessivamente. Um zine, portanto, desaparece facilmente se não é multiplicado; e gera novas conexões e vínculos quando replicado (MARQUES, 2016). Essa lógica de circulação e apropriações está condensada no elencamento de termos que compõem o subtítulo do livro supracitado (“feminismo gordo, lésbiko, anticapitalista e antiespecista”). Portanto, os enquadramentos desse feminismo faça você mesma são produzidos nessa circulação, dando lugar às hifenizações assumidas no rolê. Essas relações se tornam mais complexas se consideramos que, junto às publicações e produções textuais e imagéticas circulam também atoras, discursos e sujeitos influenciando-se mutuamente. Tal dinâmica foi caracterizada como rizomática na análise empreendida por Gabriela Marques (2016) ao pesquisar a (re)invenção do anarcofeminismo no Brasil através dos zines publicados no período de 1990 a 2012 no país. A autora toma de empréstimo o conceito de rizoma desenvolvido por Deleuze e Guattari a partir do seu uso na botânica, o qual designa o caule da planta que se desenvolve de forma horizontal, espraiando-se em muitas linhas, podendo ou não emergir à superfície. Na leitura de Marques (2016, p. 19), “o rizoma filosófico de Deleuze e Guattari é, sobretudo, multiplicidade e heterogeneidade, não é o fim nem o início, mas o entremeio, um encontro ou desencontro, emergência ou ruptura”. Proponho, então, que os trânsitos nessa teia político-comunicativa têm caráter rizomático, conformando linhas e fluxos das quais não é possível traçar fontes ou origens, mas “dobras” e “dobradiças”, com implicações para os enquadramentos produzidos. Acompanhando os trânsitos das minhas interlocutoras, encontrei parte dos fanzines aqui apresentados em uma “batalha de conhecimento” - a Batalha Dominação - evento periódico que passei a frequentar com o objetivo de adensar a reflexão sobre esses trânsitos e hifenizações.154

3.2.1 “Na batalha da vida, sempre rime como uma mulher”

154 A cena da Batalha Dominação (BD) a ser apresentada na próxima seção foi composta a partir das 8 edições em que estive presente, entre os meses de maio e setembro de 2018, quando fiz registros de vídeo e áudio dos duelos para servir de apoio ao diário de campo. Além disso, me vali de observações online no canal da BD no site Youtube e de entrevista realizada com uma das suas frequentadoras mais constantes.

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“For women, then, poetry is not a luxury. It is a vital necessity of our existence. It forms the quality of the light whithin which we predicate our hopes and dreams toward survival and change, first made into language, then into idea, then into more tangible action. Poetry is the way we help give name to the nameless so it can be thought. The farthest horizons of our hopes and fears are cobbled by our poems, carved from the rock experiences of our daily lifes.”155 Audre Lorde, Poetry is not a luxury.

No capítulo 2, pontuei alguns conflitos relacionados à articulação dos marcadores de raça e classe na rede pesquisada, considerando suas implicações frente à noção mesma de prefiguração. Como colocado, na maior parte dos eventos observados havia uma presença quantitativamente minoritária de manas negras e/ou periféricas, cuja presença no rolê era, contudo, bastante valorizada. Esse descompasso era constantemente objeto de longos debates, gerando sentimentos de frustração e culpa. Ao entrevistar interlocutoras acerca de suas trajetórias ativistas, inclui no roteiro uma pergunta em que eu pedia que compartilhassem comigo um momento considerado marcante, no sentido positivo, dentro da experiência de cada entrevistada. Vou retomar essa parte da entrevista com duas mulheres que vivem (n)o Brejo das Flores – espaço em São Paulo que sediou a Virada Sapatão, e que se apresenta como uma casa coletiva de lésbicas autônomas. Provocadas pela minha questão, um dos eventos citados com muita empolgação por elas foi a ida à Batalha Dominação (BD), que figurava nas respostas como uma grande fonte de inspiração e uma referência de feminismo, valorizado por trazer questões instigantes a partir de “vozes não hegemônicas”, nas palavras de minhas interlocutoras. Tomando a informação como uma espécie de pista etnográfica, passei a frequentar a Batalha. Lá, encontrei as minhas entrevistadas – as quais, por sua vez, também já receberam, no Brejo, parte das organizadoras da Batalha. Encontrei também parte dos zines apresentados acima,

155 “Para mulheres, então, poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro da qual nós afirmamos nossas esperanças e sonhos em direção a sobrevivência e mudança, transformadas em linguagem, e então em ideias, e então em ações mais tangíveis. Poesia é o modo pelo qual ajudamos a dar nome ao inominado, que então pode ser pensado. Os horizontes mais distantes das nossas esperanças e medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos a partir das rochas que são as nossas experiências cotidianas.” (LORDE, 2007, p. 37, tradução minha).

168 além de outras interlocutoras. Doravante, apresentarei a Batalha Dominação, entendendo-a como outro ponto nodal da rede ativista que perfaz o rolê feminista. Por volta das 19h de toda segunda-feira, dezenas de mulheres se reúnem em praça na região central da cidade de São Paulo. Elas provêm de diversas localidades, incluindo bairros periféricos e cidades do ABC e da Grande São Paulo, como Grajaú, Diadema e São José dos Campos. Não à toa, o evento acontece a poucos metros da saída de uma estação de metrô (São Bento) com acesso fácil a outra estação (Luz) a qual é servida com linhas de trem que levam a localidades mais afastadas do centro geográfico paulistano. É possível avistá-las à distância, se aglutinando para o que chamam de “batalha de conhecimento”, uma competição de rimas improvisadas também nomeadas de freestyle. Como me falou uma das organizadoras, a Batalha Dominação (BD) é uma “construção coletiva”, onde todo mundo participa e que “não tem dono”. Ao longo da noite o número de frequentadoras vai aumentando, chegando a cerca de 70 a 100 participantes, entre elas muitas mulheres que se identificam como negras e/ou periféricas, além de pessoas que se apresentam como trans e/ou não-binárias e alguns poucos homens cis. A Batalha divide o espaço com transeuntes e pessoas em situação de rua que costumam passar a noite no logradouro, referido como “solo sagrado da São Bento”. Não é incomum a presença de algumas dessas pessoas observando a competição, e, às vezes, fazendo alguma intervenção. A praça é circundada por prédios comerciais e fica aos pés do Mosteiro São Bento, o qual é objeto de ironia e busca por distanciamento por parte das minas. As organizadoras são quase sempre as primeiras a chegar. São as responsáveis por fixar a bandeira da BD na estrutura metálica de uma banca de revista, que se encontra então fechada, e que serve de referência para encontrar o evento. Não é incomum que elas também batalhem. Cabe a elas conduzir o evento, marcando tempo das apresentações, “soltando” o beat, fazendo registros audiovisuais e dando incentivo para que, a cada edição, novas mulheres participem. Como de praxe, há um vendedor ambulante propositalmente posicionado a poucos metros da roda da Batalha, chamando atenção com seu isopor decorado com a bandeira colorida do arco- íris, onde é possível comprar água e bebidas alcóolicas como cerveja e catuaba.

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Nas margens da batalha são expostos artigos para venda ou troca trazidos pelo público e participantes. Uma mulher mais velha, talvez a única com mais de quarenta anos ali156, vende brincos vistosos, estilizados e estampados com frases como “black lives matter” (em português, “vidas negras importam”). Outro modelo exibia uma cabeça de plástico “decapitada” que remetia à boneca Barbie. Ao lado dos brincos, sobre uma lona no chão, uma série de fanzines – entre eles, diversas cópias do Sapatoons Queerdrinhos (SQ). No público, minas com turbantes, outras exibindo tranças dos mais variados tipos e cores, bonés, dreadlocks, e aquelas com expressão de gênero mais ambígua com cabelos curtos e laterais ou nuca raspadas, com linhas formando desenhos geométricos. Tatuagens, pochetes, tênis também compunham o visual. Vejo alguns rostos conhecidos de outros eventos sediados em espaços como o Brejo das Flores e o II Festival Autônomo Feminista (FAF); encontro também a Ciça, uma velha conhecida de espaços anarquistas, além de zineiras e membras de bandas de rock feminista. Para as minhas interlocutoras, a BD é um valorizado espaço de formação política, como colocado por parte das entrevistadas (ver capítulo 2). Uma das organizadoras, Gabi Nyarai157, dá início ao evento com sorriso no rosto. Ela tem cerca de 24 anos, cabelo black power, veste camisa social de botões e calça jeans. Uma vez que não há palco ou microfone, ela projeta a voz no meio da roda e anuncia com orgulho que essa é a batalha de número 98, e que em duas semanas será celebrada a edição de número 100. A felicidade era ainda motivada por outro anúncio: com as rifas e arrecadações durante todas as segundas- feiras, elas finalmente conseguiram comprar uma caixa de som portátil. “Valeu, família! Gratidão!”. Ao lado de Gabi, Ariel – integrante da organização, que se apresenta como trans não binária158 – anunciou que, a partir de setembro, também no Largo São Bento, terá início o primeiro Slam Trans – notícia que foi recebida de forma efusiva.

156 Na edição comemorativa de número cem, ocorreu uma situação interessante em que duas mulheres consideralvemente mais velhas do que a média das participantes batalharam em uma mesma rodada, embaralhando os critérios definidores da boa rima, ao fazer uso, por exemplo, da prosa e de outra velocidade de dicção. Disponível em: . Acesso em 9 set. 2018. 157 Dado que os nomes são de pessoas públicas que se apresentam com pseudônimos, os nomes das MCs serão mantidos nesta seção. 158 Também referido no campo etnográfico como NB ou não-binárie, o uso do termo é parte das recentes transformações nas construções de identidades políticas no movimento de travestis, mulheres transexuais e homens trans (CARVALHO, 2018b). Segundo o autor, essas mudanças têm girado em torno da polarização entre uma “fixidez” e uma “fluidez” de gênero, mobilizadas na articulação dos marcadores de classe, geração e escolaridade de ativistas. A partir de observação do I Encontro Nacional de Homens Trans (2015), o autor identificou intensa disputa

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Antes de começar de fato o evento, Gabi se dirigiu ao público e perguntou quem estava lá pela primeira vez. Cerca de cinco mulheres levantaram as mãos, sendo recebidas com um “bem vindas!”. Então deu-se início ao “microfone aberto”, não sem antes explicar as regras: enquanto o “open mic” é livre para todo mundo, só as minas podem se inscrever para batalhar. Esse momento inicial precede a batalha de improvisação e consiste em um recital livre, no qual qualquer pessoa pode participar. O evento finalmente começa com organização e plateia – uma distinção um tanto instável – entoando em uníssono o grito de guerra da Batalha Dominação, a ser repetido diversas vezes ao longo da noite: “as mina na ativa/ as mina na ação/ dominação, dominação!”. Apesar do nome “microfone aberto”, não havia “microfone” de fato. Quem desejava se apresentar, seja recitando uma poesia ou uma rima, dançando, cantando uma música ou lendo um texto (autorais ou não), se colocava no meio da roda e projetava a voz. O momento é também usado para anúncios diversos e dura aproximadamente quarenta minutos. As minas que batalham ou se apresentam no recital aberto se colocam como escritoras, ativistas, poetas/poetisas, slammers, MCs159 ou simplesmente como alguém que “faz rimas”. Elas se apresentam publicamente com pseudônimos, os quais serão aqui mantidos. Uma série de apresentações se sucederam. Uma garota pede a fala para divulgar o coletivo de manas do qual faz parte, que tem um espaço autônomo “na ZL” (Zona Leste) e aproveita para anunciar que trouxe lanche vegano, à venda para viabilizar o coletivo e o espaço “na quebrada”. Uma outra aproveitou o momento para divulgar a produtora audiovisual só de mulheres da qual ela faz parte, e que recentemente produziu o videoclipe de uma MC frequentadora da BD. Pediu que déssemos “like” no perfil da produtora nas redes sociais. Houve também uma chamada para uma manifestação pela liberdade religiosa, a ser realizada naquela semana, na Avenida Paulista. As participantes mais experientes recitam seus versos já memorizados. Outras, usam o celular como “cola”. Algumas trazem seus zines do qual leem trechos previamente selecionados.

entre duas categorias: “homens trans” e “não binários” – introduzida inicialmente por um grupo de jovens que afirmavam não se reconhecer sob a categoria homem. Para eles, “não binário” diz respeito a estar em qualquer ponto entre os polos “homem” e “mulher”. Carvalho pontua o estranhamento causado na grande maioria dos ativistas presentes frente a esse termo que é caudatário de noções anglofônicas, como non binary person. Nota também que “essa autoidentificação [como “não binário”] implicava a categorização de todos os outros como “binários”, o que era fonte de tensão entre os ativistas. 159 MCs é acrônimo de Mestre de Cerimônias (Master of Ceremony, em inglês) que se refere em geral aos artistas do rap que falam ou cantam suas músicas enquanto são acompanhados pelos DJs (Disco-Jóqueis) (NEVES, 2015). Na BD, chama-se de MC as minas que batalham rimando.

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Uma garota foi muito aplaudida quando apresentou suas rimas sobre um projeto de lei que busca criminalizar o aborto em todas as situações, incluindo os casos de gravidez resultante de estupro, baseado na defesa de que a vida começaria na concepção. Uma participante tomou a fala para fazer um pedido: “tragam as mães de vocês aqui”. E defendeu que aquele era um espaço de desconstrução. Transitando pelo público, duas garotas se revezavam segurando uma placa improvisada onde se lia “amendoim por R$2 para ajudar o Cursinho da Sé” – uma referência ao Cursinho Livre da Sé.160 Uma das poesias declamadas no recital livre tinha como tema a própria Batalha Dominação, revelando os significados atribuídos ao Largo São Bento161, à palavra falada, às experiências compartilhadas (“vivências”) e às minas que “dominam” a BD. Reproduzo abaixo a sua transcrição:162

A vida por vezes me faz tímida Retraída Reprimida De-Pri-mida

Mas as palavras As palavras me trouxeram a vida E é por essas vias que hoje a poesia é sobre essa Batalha que tanto me inspira

Aqui toda segunda eu me apaixono Travada com cada mina que eu trombo Com cada rima que é um estrondo

Minh’alma desagua Desaba E eu fico como Per-di-da

Aprendo aqui sobre vivências que não são minhas

160 “O Cursinho Livre da Sé é gratuito e tem como objetivos a democratização do acesso às universidades públicas e, sobretudo, a promoção da formação política e pedagógica dos estudantes, educadoras e educadores.” Disponível em: . Acesso em 7 ago. 2018. 161 Referido como “berço do hip hop no Brasil” por muitos veteranos do rap, o Largo São Bento foi, na década de 1980, importante ponto de encontro para dançarinos de break, DJs, grafiteiros e rappers. Como exposto no documentário “Break dance Brasil Metrô São Bento” (1993), multidões se aglutinavam na saída do metrô homônimo para assistir os chamados “rachas” (competições entre b-boys). Ainda durante o regime militar, a aglomeração de pessoas – no documentário apenas homens são retratados – era alvo de repressão policial, culminando na detenção de alguns deles. Esses encontros chegaram a atrair pessoas de outras regiões do país. Com a popularização do hip hop, eles declinaram a partir do ano de 1998, quando ocorre uma descentralização das apresentações e eventos. 162 A poesia foi transcrita a partir do áudio do registro em video, disponível em: . Acesso em 26 ago. 2018.

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Ao mesmo tempo que ouço a minha dor sair da boca de outra mina

Rainhas desse solo sagrado Todas vocês pisam no meu peito e eu não nego Aceito Adoro Delícia Quero

A energia é transcendental As rima é espiritual A cura é pela fala O ensinamento é via oral Fazendo jus ao nosso ancestral

Dizem que esse solo é sagrado Mas o sagrado já foi e é motivo pra atrocidade O nosso sagrado usurpado de nós à força O sagrado que nunca foi santo Que matou o preto, o índio, a bando O sagrado que era a mãe chorando a morte dos seus filhos

Na casa do São Bento que nunca nos benzeu Rezamos nossas curas Mandingueiras das ruas Carregamos o axé que nos fez puras

A gente unida ressignifica o solo dessa cidade Sagrada pra uns Sangrando pra outras

Sob a luz da lua quase cheia Rimamos nossas dores, Amores, Aprendemos, Ensinamos, Coisas que não vimos em outro lugar

Do-mina-ação Dominação Domina a ação O ato A palavra A rima A poesia A força O improviso A arte A revolta A rua O rap O beat A alegria E a emoção

As mina domina

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Domina tudo as mina Juntas Fundidas Fodidas de ódio Fervendo de garra Somos putas, travas, mães, sapas, arteiras, poetas, cantoras, autoras

Minas que lutam porque é o que nos resta Minas que surtam porque a vida enlouquece Minas que gritam porque o silêncio mata Minas que cantam porque a melodia vibra a dor e a esperança Minas que dançam porque o corpo pede Minas que rimam porque é no rap que elas crescem Minas que criam porque nada nos impede Minas que não se calam Minas ativas

As “zicas” fazem da segunda dia de aprendizado É fato É revolucionário A Batalha Dominação tem mudado Tem transformado A vida das mina que tem colado

A poesia foi lida no celular. Ao final, a autora foi ovacionada com gritos e longos aplausos da plateia e ganhou abraços amistosos. Nos versos, a Batalha é espaço de aprendizagem e “ensinamento”, pois permite que novos discursos sejam elaborados a partir da experiência (SCOTT, 1998) de quem os enuncia. É, portanto, “revolucionária” porque vai de encontro ao “silêncio que mata”, e assim ressignifica a rua, o Largo São Bento e a cidade. Assim como expresso na poesia, são frequentes as falas sobre como ir à BD toda segunda-feira “recarrega as energias” após a segunda, tido como dia difícil, ajudando a encarar o resto da semana. Enquanto acontece o recital livre, aquelas que desejam participar da competição que se aproxima se dirigem às organizadoras, que anotam os nomes a serem sorteados de modo a compor os duelos (as “chaves” da competição). Depois das diversas apresentações e anúncios do open mic, tem início propriamente a batalha. Mais uma vez todas cantam o bordão: “as mina na ativa, as mina na ação/ dominação, dominação”. Em geral, são quatro ou cinco duelos iniciais, desembocando nas semifinais, e finalmente, na grande final. Ou seja, de 8 a 10 mulheres se inscrevem semanalmente para batalhar. Cada duelo consiste em pelo menos duas rodadas, resultando em cerca de 16 temas por edição do evento. Em cara rodada são classificadas aquelas que arrancarem mais aplausos e gritos da plateia. As

174 participantes usam pseudônimos que são anunciados antes de cada duelo (“Fulana na vez e na voz!”). As rimas improvisadas giram em torno de determinados temas, que são livremente sugeridos por qualquer pessoa da plateia. Cada uma tem cerca de 30 segundos para rimar. Após as improvisações, o público decide quem sai vencedora de cada etapa batendo palma e gritando quando o nome de cada uma é evocado (“grita para aquela que arrepiou a sua nuca!”). Há um incentivo especial para as manas que estão batalhando pela primeira vez e que, geralmente, não possuem tanta agilidade de dicção como as mais experientes, que estão habituadas e batalham também em outras batalhas pela cidade (em geral, batalhas de composição mista em termos de gênero). Os duelos são o ponto alto da noite. É quando o amplificador portátil é ligado, tocando um beat - um trecho de música geralmente instrumental mecanicamente amplificado por uma caixa de som, funcionando como uma trilha sonora que serve de base pro ritmo e compasso das rimas, ao mesmo tempo limitando o tempo de cada competidora.

Gráfico com exemplo das "chaves" da competição de improvisação

Não há critérios explícitos para a escolha do tema, que pode vir em uma palavra ou frase. Quando a frase é longa ou há alguma palavra cujo significado é alvo de dúvidas, pede-se que a

175 pessoa explique o tema para a Batalha. Por exemplo, na batalha de número 97, após a questão “Quem tem algum tema aí?”, uma garota na plateia falou o tema da seguinte forma: “tirar crianças indígenas de suas aldeias para adoção dos brancos é etnocídio cultural”. Então pediu-se que ela explicasse melhor, ao que ela respondeu: “O Estado tá pegando crianças indígenas das aldeias, especialmente das aldeias guaranis. Falam que as mães indígenas não têm condição de criar na aldeia e tá levando pra adoção pra gente branca. E o tema é: fazer isso é etnocídio cultural.”163 Em outra ocasião, sugeriu-se o tema “estado laico”. As organizadoras-apresentadoras da Batalha pediram que a participante explicasse rapidamente o termo, ao que ela respondeu abordando o ensino religioso nas escolas. O tema pode ser questionado. Por exemplo, um garoto sugeriu que o tema fosse “pessoas intersexo” e uma das garotas a competir disse que aquele não era o seu “lugar de fala”. Em contrapartida, uma das organizadoras argumentou que ela podia rimar a partir do seu ponto de visa, como ela via a questão. O fato de qualquer pessoa poder sugerir temas permite que as questões mais pungentes no momento para aquelas mulheres sejam discutidas, compartilhadas, expostas, fazendo daquele espaço uma espécie de fórum no qual certos enquadramentos são coletivamente produzidos. Enquanto duas MC’s batalhavam, uma das organizadoras passou por mim e perguntou, enquanto segurava uma sacola plástica de supermercado, “quer contribuir com a batalha?”. A “sacolinha”, como é chamada, serve de premiação à vencedora da noite, após receber contribuições diversas do público. Quando coloquei uma nota de 5 reais dentro, notei que no seu interior havia zines, lanches e pequenas quantias de dinheiro. Nem todo mundo presta atenção durante todo o tempo na batalha; há quem se mantenha a certa distância, fumando cigarro, flertando ou conversando e observando de longe. Quando há muito burburinho, alguém da organização pede a fala e lembra que aquela é uma batalha de freestyle e que as MCs precisam de silêncio para se concentrar. Após as improvisações, é comum que pessoas batam palmas para as duas da mesma “chave”, o que faz com que a organização peça mais uma vez: “faz barulho pra uma só [competidora], família!”. Ao final de cada duelo, as competidoras se abraçam afetuosamente. Nesse dia, o duelo final foi transmitido ao vivo na página da BD na rede social Instagram e essa é uma prática que tem sido recorrente. A vencedora então faz uma apresentação livre, rimando sobre

163 Disponível em: . Acesso em 12 ago. 2018.

176 o(s) tema(s) que desejar. Geralmente, no meio da improvisação, ela convida aquela que perdeu para rimar também. É o chamado “freestyle da vencedora da noite”.

Foto da Batalha Dominação (Fonte: página da BD no Facebook)

Ao fim, todas se reúnem lado a lado para fazer uma foto com a vencedora e com quem permaneceu no evento, que é encerrado por volta das 23h. As finalistas se abraçam entusiasticamente. Normalmente a vencedora também posa, orgulhosa, para uma foto segurando a folhinha, a folha de caderno onde são anotadas as chaves, com os nomes das competidoras, as ordens e rodadas da competição da noite. A folhinha tem muito valor simbólico.

3.2.2 Batalha de conhecimento

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Certamente, habilidades como boa dicção, vocabulário amplo, criatividade, rapidez no raciocínio, domínio sobre as métricas dos versos (que imprimem às rimas o ritmo desejado e a melodia pretendida) influenciam para um bom duelo. Mas a BD é também uma batalha de conhecimento. As rimas são muitas vezes enunciadas em primeira pessoa; a BD representa um espaço privilegiado de fala e de escuta e, sobretudo, de reelaboração de experiências pela palavra performatizada – a “narrativização do eu” (HALL, 2000) na articulação de gênero, raça, sexualidade, geração, classe e territorialidade. Enquanto batalha de conhecimento, as participantes se colocam implicitamente como produtoras e propagadoras de saberes e discursos. Voltarei a esse ponto adiante. Durante a ida à campo, que consistiu em oito edições da Batalha, tomei nota de alguns temas abordados seja livremente no open mic ou sugeridos na hora das batalhas: relacionamento abusivo; pais que abortam; demarcação de terras; prostituição; violência policial; alimentação (“veganismo é extensão da luta progressista”; “desperdício de alimentos”; “veneno na comida”); privilégio branco; poliamor; descolonização; lesbofobia; responsabilidade afetiva; incêndio criminoso nas favelas; feminicídio; monogamia; abuso sexual; genocídio da população negra; mídia manipuladora; transfobia; solidão da mina preta; cotidiano na periferia; vida de diarista; ativismo de internet; estado laico; gordofobia; eugenia. Temas podem ser expressos também através de frases ou perguntas, tais como: “defender a alegria e organizar a raiva”; “vestibular é catraca”; “reaja à violência racial: beije sua preta em praça pública”; “o que você faria se o Temer estivesse na sua frente?”; “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”; “até quando precisaremos de políticos para fazer política?”; “Até quando vão silenciar a vítima com discurso de que abusador tá em desconstrução?”; “se os animais acreditassem em Deus, seríamos nós os demônios?”; “Não encosta no meu baseado, a não ser que eu te convide”; “saúde mental é responsabilidade coletiva”; “e se o mundo inteiro pudesse me ouvir?”; e “nem na Biologia só tem homem ou mulher”. Às vezes os temas são mais despretensiosos e descontraídos. Por exemplo, em uma das edições em que estive presente, alguém no público sugeriu o seguinte tema: “se você estivesse em uma ilha deserta e só pudesse escolher uma coisa, o que seria?”. Imediatamente, ouvi uma garota ao meu lado gritar, em tom bem-humorado: “xoxota!”. Vendo registros de outras edições do evento disponibilizados na internet, notei também tópicos como: feminismo preto; alternativas ao sistema carcerário; reforma da previdência; aborto

178 e morte materna; mulher no mercado de trabalho; etarismo; especulação imobiliária; “a não- violência protege o Estado”, entre outros. Durante as batalhas em que estive presente, foi recorrente o compartilhamento de experiências de dor e de abuso, como a violência doméstica e a lesbofobia, e, nas relações raciais, especialmente a violência policial e o genocídio da população negra e periférica. Por outro lado, os temas e rimas recebidos com mais excitação pelo público geralmente são aqueles que trazem certa celebração do ser sapatão, “o amor entre as pretas” e o esculacho ao opressor, o revide. Como expresso em um dos temas listados acima, trata-se de “organizar a raiva e defender a alegria” – um slogan que ouvi inicialmente em festivais feministas autônomos, em espanhol (“defender la alegria, organizar la rabia”). Os temas podem também ser negociados. Em certa ocasião, após a pergunta “quem aí tem tema?”, uma garota gritou “feminicídio!”. Antes que a batalha prosseguisse, uma das organizadoras interferiu, lembrou que é um tema que se repete toda segunda-feira, sugerindo outro assunto, a “resistência das mulheres”: “Feminicídio acontece todo dia, mas e a resistência das mulheres?”, argumentou. Na BD de número 81, um dos temas sugeridos foi “meu corpo nu não é convite”.164 Transcrevo abaixo as rimas elaboradas acerca dessa frase, dentro do limite de 30 segundos de improvisação. A primeira a rimar foi Majda165:

Meu corpo nu não é um convite, toda vez que eu saio de casa Eu sei, dependendo da roupa é aquela furada Vou receber “fiu-fiu”, vai ser um tédio Vai ser um terror, e pra chegar em casa à noite, sacrilégio Então eu penso “vamos pensar melhor” Se eu quero hoje desbravar ou ficar na melhor, Me distraindo Porque quando até eu danço nas festas Os caras acham que eu “quico-quico-quico” e é pra eles Não é pra você não Esse corpo é meu e a minha sexualidade tá na minha mão Não vem com essa, Jão Mas até dançar na festinha da família a gente sabe que é opressão

Na sequência, foi a vez de Gabi Nyarai improvisar:

164 Disponível em: . Acesso em 26 ago. 2018. 165 Nesta seção, mantenho os nomes das MCs, dado que são pessoas públicas.

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Meu corpo nu não é um convite Sai daqui, seu vacilão Preciso de espaço É que eu sou “caminhão” [muitos gritos do público] Licença pra chegar Não é você não Que vai poder me tocar

Eu e a minha gata Corpo nu nem é convite A porta tá aberta, entra aí nem se irrite

Então fica ligeiro Eu “dou” pra quem eu quero Não quero que ‘cê me olhe Quero ‘cê no cemitério [muitos gritos do público]

Então vai Eu quero mais é ver você ir se foder ‘Cê nunca viu um corpo? Qual que é, mano? Parou nos seus 10 anos? Na época da punheta? Nunca viu um corpo?

‘Cê é louco!

Considerando que cada duelo consiste em pelo menos duas rodadas,166 na sequência do duelo acima, o tema sugerido para a segunda rodada entre Majda e Gabi foi “amar mulheres”. Abaixo, reproduzo as rimas de apenas uma delas, Gabi Nyarai, que foi a mais ovacionada:

Amar outra mulher Ato de revolução Ser olhada torta Por você dar a mão

Amar outra mulher Desejar, poder tocar Sentir todo o seu cheiro, Sentir todo o seu ar

Amar outra mulher Ter a compreensão Cê não precisa dar um beijo Pra cê dar a mão

Entender que às vezes Ela só quer conversar Cê não sabe o que falar, Mas já ajuda se escutar

166 Se houver empate, um terceiro tema é sugerido pra ser batalhado.

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Amar outra mulher Aquela do espelho Lembrar que cê esquece, Sempre deixa ela pro meio

Amar outra mulher Amar seu coração

Amar outra mulher É ato de revolução

Fazendo eco a jargões como “meu corpo, minhas regras” e “nosso corpo nos pertence” (popularizados nas Marchas das Vadias), as rimas propõem uma afirmação da própria sexualidade em resposta ao assédio e abuso que assume muitas formas (do “fiu-fiu” na rua à festa da família). Como reação, o corpo e o desejo são celebrados na assunção política da lesbianidade como sinônimo de revolução, a partir da ressignificação e positivação de estigmas (caminhão, sapatona, etc). Já na edição de número 98, uma garota sugeriu o seguinte tema “o veganismo é uma extensão lógica da luta progressista”. E foi convidada a “dar uma explicada”, ao que ela respondeu: “a luta progressista tem que se estender também para os outros animais, para os outros seres. Não dá pra você pedir paz se você não tem justiça para com os outros seres também.” O tema então foi mais uma vez anunciado da seguinte forma por uma das organizadoras: “O veganismo é uma extensão lógica da luta progressista onde no mundo todos os seres estão no mesmo patamar”. E teve início o duelo, que considero elucidativo do tipo de diálogo que se estabelece nas batalhas.167 A primeira a rimar foi Toddy, uma das competidoras com dicção mais rápida da BD:

Destruição existe, é claro Só que ninguém te conta uma verdade Que o gado polui bem mais que o carro Mas, isso não é variedade Então Por que não cortar pela metade O seu Consumo de carne exagerado? Cê Vai ver que a humanidade logo muda Cê Vai ver que não preciso de carne para ser sangrento perante o Estado

167 Disponível em: . Acesso em 26 ago. 2018.

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Até porque isso não é só o bife que você compra no mercado Ou algo que te dão para comer É aquilo que cê faz e também o que cê faz pode crer que diz muito sobre você Então O veganismo é como uma ação De fato Para mudar toda a natureza Até Porque sem ela não vivemos E sem o que vivemos não teremos a destreza De saber [que] o que acontece é só um fato Só Que o fato já está acontecendo Aquecimento global tá chegando E o que vocês comem também tá fazendo

Na sequência, foi dado 30 segundos para a outra competidora, Gabrielê, cujas rimas seguiam um ritmo mais lento:

Quando eu falo de uma má educação Também falo da que nos deram na infância Desde pequena não nos ensinaram Não era importante saber como se alimentava uma criança Então Crescemos achando normal Comer qualquer porcaria e se encher de álcool e tal Mas olha só, eu falo é que é difícil falar dessa questão Quando na periferia ainda morre tanta gente de tiro e de oitão Então Eu respeito quem é vegetariano mas também pra quem não é [eu] também tô respeitando

Nesse mesmo dia, os temas das rodadas seguintes foram: “fetichização dos corpos trans”, “eu sou minha, mas às vezes posso ser sua” e “veneno na comida”. O veganismo tem sido abordado de forma relativamente frequente. Na BD de número 66 ele veio à tona nas rimas de uma das competidoras quando o tema sugerido foi “desperdício de alimento”:

Então tá bom Desperdício de alimento E também nesse momento Eu vou falar dos animais E todo o sofrimento

Eu vou falando assim, também adiante Natal aí, é por favor menos sangue e sofrimento

Nos abates que vem sofrendo todo dia

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Vocês não sabem mas é as indústrias que faz Sofrimento chegar ao seu prato Consciência despertar Por favor aí, doutor Eu vou falar, você não vai me comprar

O sofrimento Isso aí tem que acabar Vai acabar e eu vou falando assim Essa é a verdade Se não acabar nós todas aqui vamos pro abate (Apsara)168

A elaboração do tema nas improvisações acima mostra que a alimentação é, também no contexto da Batalha, uma questão importante. Ela é politizada em diversas dimensões que dialogam entre si, tendo o corpo como mediador. Nas rimas de Toddy, o veganismo surge como uma tecnologia de subjetivação, pois “o que você come diz muito sobre você”); a segunda abordagem remete aos debates sobre nutricídio, pautando a falta de acesso à informação e a falta de saúde como uma face biopolítica da exclusão social de populações habitantes das periferias. Por fim, as rimas de Apsara traz a agência animal e a percepção de um sofrimento compartilhado e uma desumanização em comum a que estão sujeitos corpos animalizados e racializados (“se não acabar nós todas aqui vamos pro abate”). Assistimos hoje a tensionamentos e reivindicações diversas do veganismo e vegetarianismo, que assume conotações populares, periféricas, gordas, negras, em busca por distanciamento de um veganismo entendido como elitista, industrializado, “gourmetizado”, emagrecedor, pouco acessível e desconectado de questões sociais (CARMO, 2013). A recorrência do tema na BD também reflete essas inflexões. Uma vez que a BD é autonomeada como uma “batalha de conhecimento”, suas participantes se colocam implicitamente como produtoras e propagadoras de conhecimento que toma forma nas improvisações. Mais do que isso, a Dominação pode ser entendida como um espaço de formação política contra o epistemicídio. Esse foi o tema de um dos duelos da edição de número 86, sobre o qual também foi pedida uma “explicação”, qual seja: epistemicídio significaria “o apagamento da nossa memória e aprendizado”. Dessa vez, três mulheres batalharam sobre o mesmo tópico, visto que se tratava de uma semifinal.169

168 Disponível em: . Acesso em 14 ago. 2018. 169 Disponível em: . Acesso em 26 ago. 2018.

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A primeira foi Issa Paz, que faz parte do grupo Rap Plus Size.170 Segue a transcrição:

Então é, epistemicídio Essa é só a epístola do genocídio Que eles promovem todo dia na periferia E não é só sangue frio essa covardia Tiram a sua memória, sua ideologia Tiram as suas raízes, tudo que ‘cê queria

Conexão com outro continente Roubando desde sempre Desde antigamente Porque Querem de fato é colonizar É exportar pra lá Pra eles rico ficar É só pra controlar Pra ser um operário dessa obra Que nunca vai acabar

Então Olha a visão Essa é a concentração Não deixe o colonizador tirar a sua visão Tenha munição E a concentração Para poder tirar conhecimento da Dominação

As rimas de Issa Paz foram recebidas com muitos aplausos, pulos e gritos que diziam repetidamente: “eu amo essa batalha!”. A próxima a se apresentar foi Rude Pam, que só começou a batalhar recentemente:

Essa palavra eu nem vou conseguir falar Mas pega a visão, “pode pá” O homem vê na mulher e na terra um terreno para ele colonizar A gente não pode aceitar Nossas raízes a gente tem sempre que lembrar Povos nativos não esqueceremos Eles foram assassinados E a gente segue rimando Pega a visão Eles querem apagar nossa história Mas a nossa rota nós mesmas têm que trilhar A gente não pode deixar eles apagarem O que a gente escreveu

170 A página do grupo no Facebook informa que: “Em suas músicas de linguagem periférica e através de contextos bem definidos, [elas] abordam questões como gordofobia, feminismo, racismo, Rap e empoderamento da mulher periférica fora dos padrões, afirmando e valorizando a autonomia da mulher que luta.” Disponível em: . Acesso em 03 ago. 2018.

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A gente tem que lembrar Das mulheres que foram apagadas da história “Pode pá” O nosso corpo é sagrado Não vem, nem tenta me tirar

Ela também foi acohida com muita animação – embora eu nunca tenha presenciado vaias na BD. A terceira a improvisar foi Bia Ferreira, que atua profissionalmente como cantora e compositora:

Pesquise sobre você E se renove Existe aquela lei 10.639 (dez mil seiscentos e trinta e nove) Que obriga a educação da África na escola Mas essa galera não cola e não ajuda A galera não ensina pra nossas criancinhas Que a gente era lá na África reis e rainhas Então a gente não pode deixar apagar A nossa história, a gente mesmo que tem que contar E olha só A gente tá aqui na Dominação Passando informação Pras mana e pros irmão Não seja mais uma pessoa que não tenha informação Corra atrás Busque a sua história, irmão

Ao longo dessa rodada, comentários bem-humorados como “Dominação também é faculdade” ou “Faculdade Dominação” foram feitos pelas participantes, arrancando risos de quem ouvia. Essas expressões atribuem um caráter pedagógico ao evento, que se erige politicamente (também) contra dimensões menos palpáveis do racismo (“não é só sangue frio essa covardia”) por meio do uso da palavra que nomeia e rearticula histórias, subjetividades e memórias decoloniais.

3.2.3 Rolês, trânsitos e apropriações

A partir do trabalho de campo na BD, pude apreender que há pelo menos dois tipos de batalhas de improvisação, realizadas em diversas praças pela cidade: as “batalhas de

185 conhecimento” e as “batalhas de sangue”, nas quais não existe tema, o conteúdo é livre e o objetivo é atacar o outro/a competidor/a. A BD busca se distanciar do segundo tipo. Elas alegam que nas batalhas de sangue é comum o uso de termos ofensivos (classificados como gordofóbicos, sexistas e homo/lesbofóbicos) na elaboração das rimas, geralmente dominadas por homens, criando um ambiente hostil às mulheres. O suposto de que esse tipo de comportamento não tem espaço na Batalha Dominação remete mais uma vez à noção de espaço seguro e à busca pela suspensão dos valores e práticas da sociedade mais ampla, como pontuei no capítulo 2 em diálogo com a noção de política prefigurativa. Em uma das ocasiões em que fui à BD, comprei o livro do Slam das Minas SP171, uma antologia de poesias, entre elas, algumas de autoria de participantes da Batalha Dominação. Como posto no segundo capítulo, o slam é um campeonato de poesia falada, em geral realizado em espaços públicos. Para algumas autoras, trata-se de um “fenômeno contemporâneo de poesia oral e performática”, surgido inicialmente na cidade de Chicago (Estados Unidos), no ano de 1984 (NEVES, 2017) e que tem proliferado recentemente em grandes cidades brasileiras, sobretudo na segunda década dos anos 2000. Ao lado dos saraus de poesia, os slams – e eu acrescentaria as batalhas de improvisação – são parte de um cenário mais amplo que tem reorientado a própria visão do que é periferia e marginalidade, promovendo a democratização da literatura e da narrativa (STELLA, 2015; NASCIMENTO, 2010a, 2010b). Tal como na “literatura marginal” pesquisada por Érica Nascimento (2010a), as rimas transcritas ao longo desta seção trazem regras de concordância verbal e do uso do plural que destoam das normas cultas da língua portuguesa, o que pode ser entendido tanto como uma estratégia pra marcar posição frente a outras produções discursivas de modo a valorizar convenções de escrita e fala associadas à periferia, como também consiste em uma forma de promover experimentações com as palavras e signos linguísticos (como é comum também nos zines).

171 O documentário intitulado “Slam das Minas - Seja Heroína, Seja Marginal”, mostra a percepção de algumas das slammers sobre a competição. Uma dela, Jade Fanny, conta o que sentiu ao ir pela primeira vez ao Slam das Minas. Ela diz: “Quando elas recitavam as poesias, era como se fosse um outro mundo – um mundo à parte, onde as mulheres poderiam falar. Como se houvesse um mundo onde as mulheres não falam e um mundo onde as mulheres falam, e o Slam das Minas é esse mundo onde as mulheres falam”. Uma das fundadoras do Slam das Minas de São Paulo – há hoje núcleos em diversos estados do país – Luz Ribeiro define o Slam das Minas como “um lugar de acolhimento, resistência e afeto”. Disponível em: . Acesso em 10 jul. 2018.

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O Slam das Minas SP se coloca como uma competição de poesia para minas, manas e monstras. Esse é um slogan que já notei também na BD, e cujos termos parecem articular referências entrecruzadas de elaborações teórico-políticas do feminismo (minas), transfeminismo (monas) e teoria queer (monstras), indicando os fluxos discursivos do rizoma, que se fazem presentes na miríade de temas sobre os quais as rimas são desenvolvidas. Nas minhas idas às segundas-feiras ao Largo São Bento, reencontrei Ciça, frequentadora assídua da BD. Algumas edições da BD contam com atividades extras, como pocket shows (curtas apresentações de grupos musicais femininos), pocket poesia (quando é convidada uma escritora ou poeta para se apresentar brevemente) ou até mesmo lançamento de fanzines. Estive presente quando Ciça lançou seu zine na BD, declamando alguns trechos e vendendo cópias da publicação em troca de “contribuições voluntárias” ou escambos. Ela também levou consigo outros zines, como o Sapatoons Queedrinhos. Desde a edição da BD que contou com o lançamento do seu zine, presenciei a apropriação crescente do formato por outras participantes da Batalha, que passaram então a confeccionar e lançar seus próprios zines de poesias. Eu e Ciça nos aproximamos durante a minha pesquisa de mestrado, quando frequentávamos espaços em comum, como festivais anarquistas e shows punks. Naquele momento, entre os anos de 2011 e 2013, ela costumava escrever fanzines e panfletos de cunho libertário sobre temas como queer, ecologia radical, veganismo e libertação animal. Também costumava fazer muitas traduções, veiculadas em brochuras ou através da internet. Participava ainda do movimento de ocupações urbanas na cidade do Rio de Janeiro. Por conta desses trânsitos e reencontros em contextos relativamente distintos, considerei como estratégico entrevistá-la. Na entrevista, Ciça, que se identifica como travesti, contou como, nos últimos anos, se afastou desses ativismos:

Eu já me identificava enquanto gay, depois eu comecei a me identificar enquanto bicha, deslocando não só essa questão sexual, mas também de gênero, que eu já me entendia afeminada. E aí esses espaços começaram a ficar muito complicados pra mim, e eu ainda não entendia que era por causa disso. Eu só comecei a me sentir muito mal, porque não consegui ficar muito perto. Aí fui me afastando, e depois de um ano que me afastei mesmo que eu fui entender que era por causa disso e senti a necessidade de me afastar desses

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espaços mais heterocentrados, que eram mais especificamente o anarquismo, o punk, mas também o veganismo.

Ciça atualmente tem 30 anos, se identifica racialmente como mestiça, é doutoranda em Filosofia e trabalha com educação ambiental. Recentemente, ela diz que começou a se aproximar de coletivos qualificados como pretos e trans, e de uma “movimentação de minas e gente LGBT” – como a Batalha Dominação, o TRANSarau172 e slams de poesia. Influenciada por essas iniciativas, ela passou a se engajar mais diretamente nesses eventos, recitando poesias e escrevendo seus próprios versos (divulgados em fanzines). Durante a nossa entrevista, realizada em uma atividade chamada Encontro Transfeminista sediada em espaço cultural palestino na cidade de São Paulo, ela relatou que foi atraída por esses rolês quando se viu “afetada” por uma certa forma de fazer política presente na linguagem poética, positivamente vista por ela como distante da “racionalidade logocêntrica ocidental”. Destarte, o que parece ter atraído Ciça para a BD está na possibilidade de ser reconhecida e respeitada em sua identidade de gênero e sexualidade, possibilidade essa aberta por um fazer político localizado no âmbito da experiência: eu achava que a gente só conseguia fazer política, não só do ponto de vista prático, mas também epistêmico, através dessa linguagem racional, do manifesto, de escrever sério [...]. E aí quando eu vi a Tatiana, e muita gente recitando umas poesias, aquilo bateu em mim assim e virou a chave, eu falei "claro que não, né, tem outras formas de fazer política por fora dessa racionalidade logocêntrica, ocidental, e isso é importante pra caralho...”

Ciça relatou que a porta de entrada para esse novo mundo que então se descortinava foi a sua participação, a convite de uma amiga, no Sarau Queerlombismo – um neologismo (assim como queerdrinhos) criado na fusão das palavras queer e quilombismo. Ao pesquisar sobre o evento na internet, encontrei, em um blog, um texto de autoria de uma das organizadoras do referido sarau, no qual ela propõe o uso do termo queerlombismo ou cuíerlombismo. O texto é assinado por Tatiana Nascimento, quem eu conheci na primeira década dos anos 2000, por meio do Corpus Crisis, um encontro feminista faça você mesma realizado entre

172 Uma iniciativa do Cursinho Popular Transformação, “o TRANSarau é uma estratégia política […] para apropriação da fala, da escrita e performance de pessoas trans, travestis e NB [não-binárias].” Disponível em: . Acesso em 6 set. 2018.

188 os anos de 2006 e 2011, geralmente em Brasília (DF). O nome é uma paródia com o feriado de Corpus Christi, e tinha como mote as “crises dos corpos”.173 Na sua elaboração do termo queerlombismo, Nascimento (2018) conta que as ideias que levaram ao neologismo foram formuladas inicialmente pela coletiva de lésbicas negras da qual ela fazia parte junto com outras sapatonas em 2015. Na luta contra os apagamentos e desumanizações coloniais e racistas, elas propunham a “recontação/invenção” de “histórias negras ancestrais” como estratégia política, o que envolve a rearticulação e narração de cosmologias complexas. A autora conta ainda que, naquele momento, estava “muito interessada nas histórias lesbianas de Oxum e Iansã174, na transexualidade de Otim, e na metaforização do falo de Exu como dildo”. Assim, ela questiona um viés heteronormativo permeando a transmissão oral dessas cosmologias (itans), o que explicaria, por exemplo, que as histórias conjugais de Oxum e Iansã – uma relação que já foi tema de poesia recitada na BD – sejam menos difundidas, se comparadas a outras versões de histórias sobre as duas entidades e a relação com seus domínios simbólicos. Portanto, um empreendimento por trás do queerlombismo seria o reconhecimento da dissidência sexual como parte integrante da diáspora negra. Nessa proposição, a articulação dos termos queer e quilombo seria orientada também pelo combate a estereótipos que vêem a dissidência sexual como uma “praga branca” a contaminar “viris povos negros” através da colonização. Ou seja, o queerlombismo é erigido como uma reação necessária ao uso desses estereótipos dentro de “comunidades negras” a fim de deslegitimar expressões dissidentes de sexualidade vistas como sinônimo de embranquecimento e colonização.

173A última edição do evento aconteceu no ano de 2011, no feriado de 7 de Setembro (Independência do Brasil), renomeado como “feriado latino-americano e caribenho da interdependência das mulheres”. A grosso modo, os conteúdos tratados no Corpus Crisis podem ser divididos em dois eixos, corpo e tecnologia. No primeiro estão as atividades sobre anti-especismo, pornografia, consentimento e abuso, gordofobia, violência racial, etc. No segundo eixo residem as diversas experimentações mobilizadas pelo slogan “retome a tecnologia”, incluindo transmissões experimentais de rádio livre, instalação e aprendizado envolvendo softwares livres e sistemas operacionais como Linux, produção de wikis e blogs, servidoras feministas, traduções, apropriação da cultura hacker e coypleft, entre outros aspectos inseridos na luta por desestabilizar a divisão sexual do trabalho e democratizer o acesso à informação. Portanto, os “acoplamentos ciborguianos” compreendem também a relação estreita e interdependente não só com a figura do animal, mas também com as apropriações cyberfeministas, com implicações críticas ao humanismo presumido nas noções de sujeito e agência. 174 “dos itans cuíer/queerizados que acho estratégicos pra se pensar a ancestralidade da dissidência sexual na/da diáspora, gosto muito daquele em que Oxum seduz Iansã e do da acolhida de Otim por Oxóssi. o primeiro conta que, depois de Oxum e Iansã terem um caso, Oxum some e parte pra outras conquistas. Iansã fica indignada com o desprezo e vai atrás dela pra castigá-la; Oxum se esconde num rio, e de lá não sai. acho indispensável ressaltar que, nesse itan, chamado “Oxum seduz Iansã”, o cerne da relação entre Oxum e o rio é a consequência de sua relação sexual com Iansã, ou seja, um de deus domínios simbólicos mais reconhecidos na diáspora, a partencença à água doce, se deve a ter tido sexo lésbico com Iansã.” (NASCIMENTO, 2018, s/p.)

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Nesse sentido, Nascimento defende que uma das bases do racismo está nas expectativas sexuais dirigidas aos corpos negros – ao seu ver, expectativas não só “hiperssexualizantes”, mas hiperheterocissexualizantes. A transformação de quilombismo em queerlombismo gerou, segundo a autora, reações diversas. Ela conta que algumas pessoas se dirigiram a ela um tanto desconfiadas e curiosas, questionando se a referência era mesmo ao projeto político e conceitual fundado por Abdias Nascimento. Por outro lado, houve também quem considerasse a fusão dos termos algo urgente e digno de celebração. Na composição do termo, quilombo é entendido como um modelo de resistência e organização social que diz respeito às “primeiras sociedades livres e bastante horizontais” instauradas no Brasil colonial. Chama atenção aqui a horizontalidade como um aspecto enfatizado pela autora em sua ressignificação do quilombismo enquanto projeto político. O queerlombo, tal como elaborado por Nascimento (2018), é terreno fértil para o que chama de literatura negra LGBTQI, entendida como um lugar de experimentação e criatividade (afro)futurista, daí o investimento no Sarau Queerlombismo, a partir do qual Ciça tomou conhecimento da Batalha Dominação. O neologismo também é interessante na medida em que materializa uma série de apropriações teóricas de referências que não são hegemônicas no campo científico, em meio ao entrecruzamento entre ativismo feminista autônomo, movimento de literatura periférica, movimento negro, transfeminismo, queer, etc. Como notei acima ao tratar do enquadramento de tipo faça você mesma, são referências de origens muito diversas. Passei a frequentar o Largo São Bento às segundas-feiras, quando me dei conta da presença de algumas interlocutoras participando do evento. Logo passei a notar certa familiariedade com relação aos demais eventos que eu vinha acompanhando: a noção de que não existe “dono” e que a BD é “de todo mundo”; a circulação dos zines, fomentando novos zines; uma ênfase significativa na elaboração do vivido e na produção de corporalidades (que na Batalha se aproxima da ideia de descolonizar o corpo e combater o epistemicídio); a imbricação de ativismo e sociabilidade, entre outros. Contudo, embora as aproximações sugiram um repertório faça você mesma compartilhado, a BD é habitada por outros sujeitos, majoritariamente negras e periféricas, que se deslocam

190 periodicamente até o centro da cidade, o que possibilita o contato não só entre periferias como também entre atoras de diferentes estratos sociais. Essa configuração me pareceu relevante para a reflexão sobre os próprios sentidos do rolê, e, principalmente, sobre como se dão as dinâmicas no interior das “teias político-comunicativas” (ALVAREZ, 2014a) na contemporaneidade. Uma questão que surgiu na análise dos dados etnográficos acerca da BD dizia respeito a como enquadrá-la: seria um outro rolê? Seria outra rede? Ao longo da pesquisa, percebi que seria mais produtivo direcionar as questões para as relações de influência e traduções mútuas dentro de um repertório compartilhado, habitado por sujeitos com diferentes posicionalidades produzindo enquadramentos rizomaticamente (aqui, a dinâmica de como os temas são sugeridos, como se estabelecem diálogos através das sequências de improvisações, e como as rimas viram zines e vice-versa, é elucidativa). O anarkarap ou anarkafunk das Putinhas Aborteiras está implicado nessa dinâmica. Esses fluxos discursivos, por seu turno, só são possíveis se considerada a popularização do feminismo (ALVAREZ, 2014a) que tem multiplicado os nódulos da teia a partir de espraiamentos extensos dos discursos e práticas feministas na sociedade brasileira. Esse processo tem oportunizado relações, trânsitos e apropriações cada vez mais intensos – particularmente entre atoras mais jovens. Eles evidenciam que os campos estão permanentemente em movimento, produzindo e reelaborando hifenizações.

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Considerações finais

Ao longo desta pesquisa, a estratégia metodológica baseada em seguir os trânsitos das minhas interlocutoras através do rolê me levou a muitos itinerários, nem sempre conhecidos de antemão. Com eles pude acompanhar a circulação de sujeitos, objetos, corporalidades e discursos. Comecei esta tese dando um rolê com as minas pelo Oito de Março e por eventos em que havia a presença de feministas com diferentes pertencimentos geracionais. Olhando para a relação do rolê feministas com as “outras”, percebi que elas negociam diversas temporalidades e disputam os sentidos atribuídos ao próprio fazer político, a partir de critérios distintos (ora circunscrevendo o âmbito do político dentro de certas linhas de inteligibilidade, ora distendendo-as). Ao discutir os processos de renovação geracional, argumentei que as ideias de juventude/velhice, novo/velho não são determinadas pela faixa etária. O que está em jogo, então, quando se aciona a taxonomia das ondas feministas ou qualificativos como jurássicas? No contexto em questão, o que faz de alguém “jovem” não é a sua idade mas a proximidade a ideais de horizontalidade, e práticas de ação direta que caracterizam um dado fazer político. Busquei mostrar que há uma produção mútua de um certo feminismo e uma certa juventude. Na sequência, voltei a minha atenção para as relações entre as minas – sapatonas, bruxas, veganas, caminhoneiras, putas, gordas, trans – investigando os sentidos atribuídos à autonomia a partir de um diálogo crítico com a categoria analítica de prefiguração. Frequentando eventos que perfazem o rolê, argumentei que a autonomia adquire sentidos prefigurativos, na medida em que as práticas assim nomeadas buscam traçar fronteiras entre o “mundo lá fora” e os eventos, entendidos como enclaves onde predominaria a suspensão de códigos e valores da sociedade mais ampla, proporcionando um suspirinho oportunizado por experimentações coletivas que (re)manejam fronteiras do corpo, da relação público/privado e tempo/espaço. Entendendo as experimentações como experiências situadas, tratei também de discutir os limites da prefiguração, chamando atenção para constrangimentos sociais que lhes são igualmente constitutivos. Assim, apontei para as negociações em torno da horizontalidade, uma noção cara aos feminismos, na articulação dos marcadores de gênero, raça, classe e territorialidade, as quais se exprimem pelo acionamento do léxico que compreende lugares de fala e privilégios.

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Compreendendo produções textuais e iconográficas como agentes do campo, observei então a sua circulação, a fim de refletir sobre produção de sujeitos, corporalidades e enquadramentos e as interpretações ao debate sobre interseccionalidades. Assim, discuto o lugar de centralidade do corpo enquanto um artefato político que materializa e é materializado por uma circulação de discursos do tipo rizomática. Dito isto, decorrem quatro pontos a serem destacados em termos de contribuições oferecidas pela tese no que concerne o alargamento da compreensão dos movimentos sociais contemporâneos. O primeiro ponto diz respeito ao que chamei de rolê, isto é, uma teia que se retrai, se movimenta e se expande constantemente e ao mesmo tempo. Essa dinâmica de circulação se dá tanto espacialmente, uma vez que as minas viajam e se visitam com alguma frequência, quanto no tipo de vínculo de afinidade forjado entre as ativistas, o que produz relações de influências mútuas, traduções, apropriações, e produção de nódulos temporários. O investimento analítico voltado a esse nomadismo é relevante ao entendimento do feminismo como campo discursivo de ação (ALVAREZ, 2014a) no contexto contemporâneo, e especialmente no que diz respeito aos ativismos mais jovens e menos institucionalizados no pós-2010. Rolê é uma categoria êmica, que, ao ser objeto de maior exame, ilumina os limites das teorias dos movimentos sociais, sinalizando a rigidez dos pressupostos analíticos que muitas vezes carrega em termos de sujeitos, formatos organizativos, modos e lugares de atuação175 – engessamentos aos quais escapam diversas expressões ativistas que são hoje crescentes. Decorre daí o potencial analítico da categoria rolê para o estudo de formas de ação coletiva contemporâneas. A segunda contribuição informa sobre a autonomia tal como manejada hoje, considerando a sua trajetória contenciosa entre os feminismos latino-americanos. Nesse sentido, busquei apontar que ela tem adquirido sentidos prefigurativos, ensejando experimentações coletivas a partir da politização de diversos aspectos da vida. Tal experimentação pode ser entendida como algo que se tem a intenção de testar, sem ter certeza ou estar segura sobre os resultados, orientada à produção de novos códigos e tendo como objeto de intervenção o corpo, o tempo e o espaço (o que pode ser lido dentro do que Butler (2015) chamou de “direito performativo de aparecer”). Transcorre que a

175 Aqui tenho em mente as críticas tecidas por autoras como Alvarez (2014), Thayer e Rubin (2017), Bringel e Pleyers (2015), Alonso (2009), entre outras.

193 autonomia hoje denota não só a rejeição à interferência de instituições e atores, como o Estado, e de organizações, como partidos políticos e sindicatos, mas também a suspensão de valores e convenções da sociedade mais ampla, de modo a ocupar não só a rua, mas também o corpo, e jogar com os limites do público e privado. Ela também opera como um elemento articulador com outras expressões e práticas ativistas autônomas, entendidas dentro dessa chave (veganismo, permacultura, democratização do acesso à informação, etc.). Se as experimentações coletivas pré-figurativas tal como ensejadas no rolê são mobilizadas pela noção de autonomia, elas também estão indissociavelmente ligadas à condição de existência de corpos vulneráveis que circulam através do rolê. Entendendo a vulnerabilidade não como uma disposição subjetiva mas como uma condição socialmente induzida, informada por uma exposição diferencial ao sofrimento e à violência (BUTLER, 2016, 2017)176, é possível compreender essa sociabilidade que produz relações de afinidade e afeto compartilhadas e baseadas em sentimentos de segurança, proteção e aceitação, tão presentes nos discursos das interlocutoras desta pesquisa. Nesse sentido, é digno de nota a conjuntura atual de recrudescimento do conservadorismo e ataque crescente sobre os direitos sociais. Outra contribuição versa sobre como se dá a circulação de discursos e enquadramentos no campo feminista compondo as suas teias político-comunicativas (ALVAREZ, 2014a). Nesse sentido, explorei a relação de retroalimentação com a produção acadêmica, que está ligada à consolidação dos núcleos de estudos de gênero e sexualidade e também à expansão do acesso ao ensino superior nas últimas décadas no Brasil, como mostram outras pesquisas (FACCHINI, 2018; FACCHINI; DANILIAUSKAS; PILON, 2013). Também está ligado ao ativismo pela democratização do acesso à informação, como discuti a partir dos fanzines e da Batalha de improvisação que também é “faculdade”. Ademais, o lugar de centralidade da experiência e do corpo na produção do sujeito político nos ativismos contemporâneos está relacionado à produção de hifenizações que, como dobradiças, articulam uma profusão de diferenças em termos de “marcas” sociais e “marcas” ideológicas elencadas de formas diversas, constituindo a quarta contribuição deste trabalho.

176 A exposição diferencial à violência se desdobra a partir de uma distribuição desigual da dignidade do luto, isto é, normas que governam a inteligibilidade do corpo, e definem quais vidas contam como válidas de proteção e quais não; estabelecem as "vidas vivíveis", ao regular, classificar, criminalizar e patologizar certos modos de existência corporal (BUTLER, 2017).

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Por fim, considerando certo nomadismo que é próprio ao rolê, e os caminhos da tese, é possível que, se houvesse continuidade da pesquisa, os trânsitos me transportassem a uma infinidade de nódulos, desdobramentos sequenciais e simultâneos do rolê no tempo e espaço, de modo a produzir mais e mais objetos da pesquisa, rolês que se desdobram em rolês e assim sucessivamente.

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Referências

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