População, Trabalho E Gênero Na Transição Do Sistema Escravista Vale Do Paraopeba/MG∗
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População, trabalho e gênero na transição do sistema escravista Vale do Paraopeba/MG∗ Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez∗∗ Resumo: Esta comunicação busca estudar aspectos relacionados à população e às atividades econômicas desenvolvidas no vale do Paraopeba, entre 1840 e 1914. A pesquisa realizada a partir das listas nominativas de 1831/32 e do Censo de 1872 mostrou que o fim do trabalho cativo alterou substancialmente a economia e a vida dos paraopebanos. Concomitantemente à agricultura de abastecimento é preciso ressaltar que a fiação de algodão e a tecelagem constituíram-se atividades essenciais e que marcaram fortemente o trabalho no campo e nos centros urbanos. Aos dados censitários somou-se, ainda, um banco de dados composto por 762 inventários post-mortem; sendo 452 para o período imperial e 310 para o republicano. O conjunto de dados reunidos demonstrou que, longe de ser uma exceção, o trabalho de fiar e tecer utilizou-se largamente do trabalho escravo. Tais constatações reforçam a historiografia recente que evidencia a importância do trabalho feminino (livre e escravo) e como esse foi fundamental para a dinamização da economia e das relações de gênero. Por fim, foi possível constatar também que mesmo diante do inevitável fim da escravidão, as regiões ligadas ao abastecimento interno, especialmente o vale do Paraopeba, não abriram mão de seus cativos. Os motivos que levaram os donos de fazendas e sítios a manter sua escravaria, até a década de 1880, foram vários como se poderá observar na apresentação e no desenvolvimento do artigo. Palavras-chave: Minas Gerais, século XIX, escravidão, gênero. ∗ Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008. ∗∗ Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina – Paraná/Brasil 1 População, trabalho e gênero na transição do sistema escravista Vale do Paraopeba/MG∗ Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez∗∗ 1- O vale do Paraopeba e a historiografia mineira O vale do Paraopeba/MG, margeado por rios e riachos, contornado por montanhas e serras que outrora forneceram ouro para a Coroa Portuguesa, constitui o cenário principal deste artigo1. Mas a realidade socioeconômica dessa circunscrição geográfica não foi permeada apenas pelo fausto ouro2. Plantações de milho, feijão, mandioca (o pão cotidiano) e outros alimentos cresceram nas terras férteis das fazendas e sítios. Da mesma maneira, o comércio, a circulação e a troca de mercadorias marcaram a tônica das vilas e cidades. Nos campos e pastos os animais - bois, cavalos, porcos e galináceos - forneciam alimento para as famílias e fomentavam o comércio entre as regiões mineiras, a capital Ouro Preto e a Corte do Rio de Janeiro. Da mesma forma, engenhos de cana, alambiques, tendas de ferreiro, moinhos e monjolos compuseram, juntamente com enxadas, foices e enxós, os equipamentos de trabalho, o meio mais prático de extrair da natureza o sustento diário da população e dos animais domésticos. Dos teares e rocas fabricaram-se tecidos produzidos com o algodão local e/ou exportado de outras localidades como, por exemplo, Minas Novas, situada no norte da província. A produção de queijo, doce e rapadura (açúcar dos pobres), permanentemente citada nas fontes cartorárias, era uma tarefa diária e lucrativa, pois grande parte do excedente era escoada, pelo lombo de burro, até o Rio de Janeiro e outras partes do sudeste brasileiro. O cenário descrito aqui constitui apenas uma das muitas facetas do vale, mais precisamente, aquela que se configurou no século XIX escravista. O perfil encontrado para o período posterior ao fim do trabalho cativo (1888), a mudança da capital (1897) e as novas relações sociais e culturais que se configuraram no começo do século XX, possui, no entanto, contornos diferenciados. ∗ Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008. ∗∗ Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina – Paraná/Brasil. 1 O Rio Paraopeba possui uma extensão de 400 km e na divisão de seus três cursos - superior, médio e inferior – constitui um dos principais afluentes que formam a bacia hidrográfica do São Francisco. Além do solo fértil que compõe a maior parte das terras, destaca-se, ainda, o rico manancial de águas do Vale do Alto-Médio Paraopeba, como o Rio das Águas Claras, o Rio Manso e o Rio das Macaúbas, além dos ribeirões Sant’Ana, São Mateus, Maré, Saúde, Serra, Porto Alegre, Contendas, São Caetano, Casa Branca, Feijão e Tejuco. 2 Uma série de atividades e ocupações ligadas ou não à atividade aurífera matizou a realidade mineira do século XVIII e XIX. Destaca-se também que a maioria da população era constituída de escravos, “homens livres e pobres”, artesãos, pequenos agricultores e comerciantes. Ver CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos Negociantes. Mercadores das Minas Setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999; FRANCO, Maria Silvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro - A pobreza mineira no século XVIII. 3ed. São Paulo: Graal, 1990. 2 Disparidades extrapolam as relações de trabalho estabelecidas no pós-1888 e que se concentraram, principalmente, na composição da riqueza, na acepção da fortuna, no sentido da pobreza, na qualidade e no valor das terras e propriedades. E dentro desse espectro de contradições pós-escravistas destacam-se também o valor real e simbólico de determinados objetos e artefatos. Ao longo das análises percebem-se padrões socioeconômicos distintos, traduzidos, por exemplo, na posse de determinados bens e da sua nova relação com os habitantes do vale do Paraopeba. A problemática que se configurou entre os dois períodos – pré e pós escravista – e que neste trabalho compõe a diretriz central das análises teve como ponto de partida a pesquisa concluída na dissertação de mestrado. O estudo desenvolvido naquela ocasião abordou as características econômicas, populacionais e materiais do município Bonfim, ao longo de praticamente todo o Segundo Reinado (1840/88)3. Os inventários post-mortem e as listas nominativas de habitantes constituíram as principais fontes primárias daquele trabalho. Dentre alguns resultados encontrados ressalta- se, por exemplo, o dinamismo da localidade de Bonfim, revelado nas altas taxas de escravos (especialmente africanos) e a constante circulação de mercadorias, dentro e fora do espaço provincial. Foi possível observar, também, a importância dos cativos na composição do patrimônio das famílias, analisando, entre outras questões, a riqueza e a hierarquia dos grupos sociais definidos a partir do tamanho do plantel: não escravistas; pequenos (1 a 3 escravos); médio (4 a 10 escravos); grandes (11 a 35 escravos) e extraordinários proprietários (acima de 36 escravos). Constatou-se, por outro lado, que mesmo após a promulgação das leis - proibição do tráfico (1850), Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários (1885) -, sinal flagrante do fim do sistema escravista, os grandes proprietários pouco fizeram para dinamizar a economia e diversificar a mão-de-obra na região estudada. Em 1888, grande parte da riqueza das famílias escravistas inventariadas estava ainda depositada na posse de cativos4. A necessidade de incorporar outras fontes e documentos históricos, associados à inviabilidade do tempo disponível no mestrado, permitiu apenas esboçar algumas problemáticas a respeito da realidade social, econômica e cultural que se configurou após o fim do trabalho escravo em Minas Gerais, mais especificadamente, em Bonfim, e nas demais localidades do vale do Paraopeba. Por isso, as indagações sugeridas no final daquela dissertação de mestrado ocupam, agora, espaço privilegiado, tratamento teórico e empírico acurado e, sobretudo, perspectiva comparada. Dentre as várias questões que orientaram a pesquisa documental – inventários post- mortem, listas nominativas, censos demográficos, relatórios de Presidentes de Províncias e relatos de jornais - e teórica, destacam-se, por exemplo, aquelas que se referem à aparente paralisia dos proprietários de cativos frente ao inevitável fim do trabalho compulsório no final do século XIX. Falta de empreendimento dos grandes escravistas? Apego à escravidão, como já foi salientado pela historiografia? Ou o aparente imobilismo da elite estaria relacionado ao tipo de mercado exercido naquela localidade? 3 MARTINEZ, Cláudia Eliane Parreiras Marques. Riqueza e escravidão. Vida material e população no século XIX. Bonfim do Paraopeba/Mg. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007. 4 A riqueza – também denominada de patrimônio ou fortuna - foi calculada tendo como base o valor do monte- mor, ou seja, a soma de todos os bens (móveis, imóveis e semoventes – escravos e animais) 3 Ampliar o recorte espacial - incorporando partes do vale do Paraopeba que tinham o mesmo perfil econômico – e temporal – estendendo a pesquisa cartorial até as décadas iniciais do período republicano - constituiu uma das alternativas viáveis para investigar detidamente as questões suscitadas em trabalhos anteriores. Para compreender e, portanto, avançar o debate concernente à flutuação da riqueza e à transformação da cultura material no vale do Paraopeba, tendo como referência o fim da escravidão no Brasil, recorreu-se aos inúmeros trabalhos já elaborados para a província mineira. Várias teses de doutorado e dissertações de mestrado - defendidas nos principais centros acadêmicos