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carla alferes pinto* Encenações talássicas e a imagem de poder das dinastias de Avis e Sabóia nos portos de Lisboa e Villefranche-sur-Mer por ocasião do casamento da Infanta D. Beatriz (1521)**

No dia 5 de Agosto de 1521, a Infanta D. Beatriz (1504-1538) deixava o Paço da Ribeira para embarcar na nau Santa Catarina do Monte Sinai a caminho de Nice e do ducado de Sabóia, depois do casamento por procuração com o Duque Carlos III (1486-1553) reali- zado em Abril. O embarque assinalava o culminar de uma série de cerimónias cortesãs e eventos públicos realizados na cidade de Lisboa que se destinavam a comemorar o aus- picioso evento, que fora negociado e era interpretado de maneiras diversas pelas cortes portuguesa e saboiana. Se para D. Manuel (r. 1495-1521) era sobretudo uma maneira de procurar intervenção e afirmação dinástica na Europa mediterrânica, onde o seu campo de acção era diminuto, para o Duque, era a concretização de uma ousada estratégia polí- tico-financeira, que desviava o ducado dos matrimónios tradicionalmente ligados à Casa Real francesa, aproximando-se ao invés da dinastia imperial, e que recheava os depau- perados cofres saboianos com o rendimento do dote da Infanta, que em dinheiro, jóias, pedras preciosas, prata, tapeçarias e têxteis ascendia aos 150 000 cruzados (Buescu 2012; Merlin 2012; Pinto 2018a; Pinto 2018b). É certo que o Duque tentara negociar 300 000, mas D. Manuel ficara pela metade, comprometendo-se, contudo, a arcar com todas as despesas da comitiva e do transporte

* CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, . ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-9055-9630. E-mail: [email protected]. ** Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória – DL 57/2016/CP1453/CT0069. Este texto foi escrito no âmbito dos resultados do projecto CONCHA (H2020-MSCA-RISE-2017 / N.º 777998).

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que levaria D. Beatriz até ao porto de Villefranche-sur-Mer junto a Nice, vila portuária do ducado cisalpino de Sabóia. O monarca tinha um objectivo político a médio e longo prazo que acabou por não se consumar, uma vez que escassos quatro meses depois, no dia 13 de Dezembro, morre- ria inesperadamente. E apesar de o novo Rei continuar a corresponder-se com a irmã e com ela trocar informações privilegiadas, a mudança de cabeça da Coroa implicava sem- pre uma mudança de política, acentuada nesta situação pela personalidade e diferentes opções estratégicas de D. João III.

A imagem de D. Manuel e o casamento da Infanta D. Beatriz Para D. Manuel, as circunstâncias e exigências do contrato de casamento serviam tam- bém para o mais imediato propósito de propaganda da sua cuidadosamente construída imagem que, por associação, se prolongava na capacidade representacional da filha, nas- cida Infanta de Portugal e a caminho de se tornar soberana de um quase desconhecido ducado (Pinto 2018a). Quase desconhecido porque, se é verdade que as relações política e dinástica da família real portuguesa com a casa ducal saboiana não eram de proximi- dade, convém lembrar que a mulher de D. Afonso Henriques, D. Mafalda de Mouriana (1130/3-1558), era saboiana e que esta aproximação à memória da dinastia de Borgonha era entusiasticamente patrocinada pelo Rei (Araújo 2001), levando-o mesmo a requerer ao arcebispo D. Diogo de Sousa que arranjasse maneira de sepultar em jazigo condigno e com epitáfio o Conde D. Henrique, quando em 1509 se realizaram as obras da nova capela-mor da Sé de (Moreira 1991, 430). Também por isso, e pelas dúvidas que a proposta de casamento de Carlos III havia levantado junto de alguns membros da corte quanto às suas “qualidades” – entre os quais se destacava a Rainha D. Maria, mãe da Infanta –, Damião de Góis dedicou o 71.º capítulo da Crónica de D. Manuel a reconstruir a genealogia do Duque, que fazia remontar ao Imperador Oto da Alemanha e, sobretudo, à “ascendência e linhagem da Rainha D. Mafalda, filha do Conde Amadeu de Moriana em Sabóia, mulher que foi do rei D. Afonso Henriques”, continuando depois com um outro capítulo sobre a linhagem e ascendência do conde D. Henrique (Góis 1926, 167-176)1. Para além da rigorosa negociação do contrato de casamento e do dote, D. Manuel fez acompanhar a filha por um imenso e distinto séquito composto por cerca de cento e cinquenta homens e mulheres, dos quais cerca de cinquenta permaneceram com a Infanta na sua nova corte em Sabóia. Estes criados, oficiais e damas iriam fazer parte da “corte paralela” (Merlin 2012, 106) de D. Beatriz, na qual se emulavam aspectos cerimo- niais da corte manuelina (Barbero 2002, 236-256; Barbero e Brero 2008), estendendo assim além-Pirenéus a imagem de poder que o soberano fora montando com argúcia.

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Logo que o contrato fora assinado, D. Manuel tratara de casar a filha com o Duque. Com Carlos III ausente, o matrimónio foi feito por procuração, estando presente o embaixador, Cláudio de Balleyson, barão de Saint-Germain, o membro do conselho ducal e doutor em leis, Godofredo Pasero, e Claude Chatel, secretário do Duque. Como se sabe, Garcia de Resende dedicou um capítulo da Crónica de D. João II a descrever as circunstâncias do pedido e das negociações que levaram ao casamento, bem como os eventos festivos que se seguiram até à partida da Infanta no dia 10 de Agosto de 1521. A narrativa, pese embora algumas imprecisões e omissões explicativas, é muito pormenorizada, particularmente quando descreve as cerimónias e as caracteriza física e materialmente. Percebe-se que D. Manuel não deixou nada ao acaso, que as solenidades celebra- tivas foram pensadas para impressionar os saboianos (Pinto [s.d.a]) e que a cidade foi encenada para funcionar como um dispositivo de expressão do poder régio. D. Manuel patrocinou e usou a arquitectura, efémera ou não, com plena noção do seu impacto per- formativo e representacional. Quando em Abril de 1521 a sala grande do Paço da Ribeira recebeu as cerimónias de casamento da Infanta D. Beatriz (Pinto 2018b), já o programa arquitectónico e urba- nístico do soberano estava em fase de conclusão (Senos 2002). A intervenção manuelina na cidade de Lisboa reconfigurara os espaços e o seu significado de maneira expres- siva, designadamente no que se refere à deslocação do centro de poder real do Paço das Alcáçovas e da colina do Castelo para a zona ribeirinha, estreitando a ligação ao rio e ao mar, porta de entrada de todas as novidades e promessas trazidas pelos navios da Carreira da Índia.

Encenações talássicas e arquitectura efémera: o embarque da Infanta de Avis O enorme espaço deixado aberto pela construção, a sul, do Paço da Ribeira, e a norte, dos edifícios da Alfândega e da igreja da Misericórdia, recebeu o nome de Terreiro do Paço, tornando-se “o mais importante espaço de aparato da cidade” (Senos e Alberto 2015, 73). A poente, abria-se o grande espelho de água que servia de lugar de ancoragem dos navios de grande tonelagem, de estrada para as embarcações de comércio, transporte e lazer, e palco feérico para encenações festivas que replicavam no leito azul do rio a magnificência e poderio marítimo do senhor da navegação e comércio de várias partes do mundo. Foi no interior dos edifícios e nas imediações públicas deste quadrilátero irregular, com extensões à colina da Sé (onde estava instalada a embaixada saboiana) e a Xabregas (onde a Infanta foi despedir-se da Rainha-Velha D. Leonor), que tiveram lugar as exi- bições ostentatórias de trajos, jóias, metais preciosos e mesuras, e os acontecimentos narrados por Garcia de Resende. Como já foi notado, D. Manuel reivindicara a liderança no processo que o antecedia de apropriação da costa ribeirinha de Lisboa (Senos 2002, 213), convocando-a, a um

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tempo, para a cidade como parte da estrutura urbana da mesma e, a outro, promoven- do-a enquanto lugar de afirmação e demonstração da imagem do Rei. Fosse através da presença constante das naus da Carreira da Índia, da construção de uma fortaleza dentro de água, do prolongamento dos edifícios áulicos e religiosos até à beira-mar ou ainda do patrocínio de eventos festivos e espectaculares estruturas efémeras – que beneficiavam das potencialidades cénicas do elemento aquático –, D. Manuel ampliava no mar a corte, a dinastia, a casa que mandara construir em terra. Nos quatro meses que distaram entre o dia do casamento por procuração e a par- tida de D. Beatriz, D. Manuel não se poupou a esforços e despesas. Reuniu uma armada impressionante, composta por naus, galeões, galés, caravelas, fustas e navios de abasteci- mento (ainda que o número se mantenha impreciso, seriam no total cerca de 25 embar- cações), ordenou que a grandiosa e alegórica nau Santa Catarina do Monte Sinai (cons- truída nos estaleiros de Cochim e a serviço da Carreira da Índia entre os anos de 1512 e 1521) fosse aparelhada e sofresse as obras de reconfiguração do espaço necessárias à acomodação da Infanta e da sua comitiva, escolheu os membros do séquito permanente da filha e os seus representantes no cortejo que a iria acompanhar até Nice, e juntou os objectos e as verbas para pagamento do dote. Este considerável investimento financeiro parece ter sido custeado exclusivamente pelos cofres do reino, uma vez que o monarca isentou a cidade de Lisboa da contribui- ção para o dote e outras despesas do casamento de D. Beatriz com Carlos III, conforme documento que se crê ser inédito:

[…] Vereadores procurador e procuradores dos mesteres desta nossa cidade de Lixboa nos el rey vos emviamos muyto saudar porque aos tam bõos e leaees vasalos como em vos temos he muyta rezam que vos demos comta das cousas que forem de tamto noso serviço e comtemtamemto e asy polo muyto prazer que sabemos que em yso avees de receber vos quisemos fazer saber como louvores a noso senhor temos casada a ifante dona Breatriz minha muyto amada e preçada filha com o serenisimo duque de Saboya o quall casamemto follguamos de fazer polas muytas vertudes e meriçimemto de sua pesoa e asy pola gramdeza de seu estado e por outras calidades muy provei- tosas que neste casamento ha pera o bem destes reinos e posto que per direito e custume deles e de todolos outros os povos sejam obryguados como sabees aas paguas dos dotes das filhas de seus reys nos pollo muyto amoor que temos a nosos povos e por folguarmos de lhe fazer mercee nos prouve de vos escusar a todos da pagua deste que aa dita ifamte minha filha damos aimda que açaz gramde e castoso nos seja asy no dito dote como nas despesas que em sua yda e armada manda- mos fazer e neste casamemto nom queremos de vos outro serviço soomemte o muyto prazer que sabemos que com ele avees de receber. Stprita na dita cidade a XXIIIIº dias d´Abrill, Manuel de Moura a fez, de 1521 e [...] da Luz a fez estprever. [assinado:] Rey. (Livro I de Serviços)

O aparentemente generoso acto do monarca está longe de ser caridoso. Por um lado, e no contexto em que foi decidido, não se pode descartar que tal grandeza tivesse por intenção provocar o maior impacto possível junto dos aristocratas saboianos, que relatavam a Carlos III, a uma cadência por vezes quotidiana, os acontecimentos

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lisboetas. Paralelamente, cabia à cidade de Lisboa comportar despesas das muitas festi- vidades urbanas e, provavelmente, das estruturas efémeras que foi erguendo, de maneira a assegurar a dignidade e o conforto da Infanta enquanto o vento não se fazia às velas e a nau zarpava do porto de Lisboa. Em 4 de Abril, três dias antes do casamento realizado na sala grande do Paço da Ribeira, a cidade de Lisboa registava nos seus livros de contas a despesa para o paga- mento de bailarinas profissionais que iriam dançarpelas na festa do casamento: “item a iiij dias de abrill de bc xxj passou mandado / pera o thesoureiro que desse a Jsabel fernandes e margarida / aluarez tres mjll reais pera as pelas que / am de balhar no casa- mento da Jfamte – iij mil reais” (Receita e Despesa, f. 37). O município era proprietário dos chãos da ribeira e por isso é plausível que tam- bém tenha saído dos seus cofres o pagamento das despesas da ponte sobre barcaças que serviu de passadeira ao embarque da Infanta, aproveitando igualmente a disponibilidade das matérias-primas usadas para a construção de embarcações guardadas nos armazéns da Ribeira e da Casa da Índia, situados no andar térreo da ala dos aposentos do paço de D. Manuel que continuava em construção (Senos 2002, 98-106). Sigamos o que nos conta Garcia de Resende. Segundo o cronista, era dia de Nossa Senhora das Neves, segunda-feira, quando D. Beatriz, acompanhada pelo pai, D. Manuel, pela Rainha D. Leonor de Áustria, pelo príncipe D. João e pelos restantes irmãos, bem como por todos os membros da corte, da comitiva que com ela partiria para Sabóia e dos embaixadores de Carlos III, terá deixado os seus aposentos na ala das Infantas em direc- ção à sala grande, localizada junto à casa da Rainha (Senos 2002, xi, fig. 13). Aí reunidos, seguiram todos por “uma muito grande varanda” (que o autor não refere em qual dos três andares se situava) “armada de muito rica tapeçaria”, atrás do mordomo-mor do Rei e do da Rainha, e de “todos os porteiros, mestres-sala, reis de armas, porteiros de maça e outros oficiais, e muitas charamelas, sacabuxas, trombetas, tambores, e muitos outros instrumentos e ministres” (Resende 1752, 100v.)2. Dispositivos cénicos e simbólicos, as varandas como que corporizavam artificio- samente as potencialidades dramáticas de uma estrutura “ora palco, ora plateia, quase sempre os dois simultaneamente, lugar que o rei usa[va] para ver e ser visto” (Senos 2002, 214) e para exibir a sua imagem de senhor de um vasto mundo – sintetizado no edifício da casa do comércio, cujo nome se foi alterando consoante o Rei ia acrescen- tando ao seu título mais territórios – e de uma considerável riqueza, mostrada pelo uso de armações de dispendiosas e certamente significantes tapeçarias (pena é que a atenção de Resende não se tenha detido na iconografia das cenas representadas). Ao mesmo tempo, as varandas combinavam em torno do Rei a expressão do seu domínio sobre os elementos: a terra, onde se fixava oseu novo Paço (Senos 2002, 201-220), abandonado que fora o reduto bélico e medieval da Alcáçova; o ar, que o Rei desafiava, com as duas

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galerias sobrepostas em arcos abertos, de um ou dos dois lados; e, por fim, a água, sul- cada em diferentes oceanos com as naus da Carreira da Índia. As varandas desembocavam num cais construído à ilharga do pequeno forte, alcati- fado por ocasião do desfile de embarque da Infanta, “que estava dentro na água” (Resende 1752, 100v.), estreitando assim a relação entre a praia e os edificados, e o rio. Quando no dia 5 de Agosto de 1521 D. Beatriz deixou o conforto da sua casa na “ala feminina” (Senos 2002, 142-147) do Paço da Ribeira para embarcar na nau Santa Catarina do Monte Sinai, agiu como se de qualquer outra cerimónia cortesã se tratasse, sem diferença entre os passos que dava em terra ou na água. A partir deste ponto, o relato de Resende torna-se muito confuso, referindo a exis- tência, à vez, de um batel “todo de popa a proa, toldado de rico brocado de pêlo, e alca- tifado, com muitas almofadas de brocado, e muitas e ricas bandeiras e estandartes, de damasco carmesim e branco, pintados de ouros” (Resende 1752, 100v.)3, e de uma ponte que conduziram a Infanta até à nau. Este aspecto não deixa de ser relevante, uma vez que Garcia de Resende era um cortesão habituado a estas cerimónias e que terá inclusive assistido aos acontecimentos. Pelo contrário, Gaspar Correia, que escreveu um texto mais esclarecedor, vivia em Goa, e só poderá ter tido conhecimentos dos episódios que descreveu em segunda mão, através de relatos de viva voz ou documentos muito pormenorizados que lhe chegaram à Índia. Segundo este cronista:

E sendo assim todos prestes para a dita viagem, a nau da Infanta foi posta defronte do baluarte do Paço da Ribeira, o mais perto que a nau podia estar, e do cais de madeira até [à] nau, por cima de barcas bem amarradas e pregadas, [de] modo que nada bulia nem baixava por muita carga que lhe pusessem, / era feita uma ponte de madeira com varandas por cima, toldadas e cobertas de rica tapeçaria; e da mesma ponte, era feita uma grande escada que chegava e cerrava com a outra, da sala da nau. (Correia 1992, 147)4

Esta estrutura montada sobre a água, efemeramente erguida sobre barcas, mas sufi- cientemente forte para suportar o peso da comitiva e de uma sequência de arcos, conve- nientemente adornados por amplas e compactas tapeçarias, era uma obra de engenharia considerável. Para além destes aspectos, há que lembrar que Santa Catarina do Monte Sinai era uma nau de grandes dimensões, com o calado cheio na altura do embarque e que, por isso, se teria de manter a uma distância prudente dos baixios das margens do rio. Igualmente, o esqueleto da “grande escada” terá constituído um desafio, já que se destinava sobretudo a facilitar o acesso do Rei, da corte, das senhoras e dos membros do clero, com os seus pesados trajos e flexibilidade corporal reduzida, à amurada e tolda do navio, pelo que era necessário evitar as constrangedoras e perigosas flutuações e oscila- ções, assegurando uma ergonomia eficaz e o mais chã possível.

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Não deixa de ser surpreendente que esta engenhosa instalação não tenha deixado rasto em mais fontes escritas ou visuais. A caducidade parece-nos justificação insufi- ciente se atendermos a que o número de encenações festivas no rio era apreciável e colo- carmos a possibilidade de o aparato das mesmas ser progressivamente crescente. Este fascinante tema, largamente por estudar, merece um novo olhar e uma leitura atenta das fontes, designadamente porque, como se perceberá, a armação talássica reproduzia na água a cadência da arcaria, prolongando a função cerimonial e o efeito visual das varan- das que ligavam o Paço à torre e ao cais. Na realidade, não será preciso afastarmo-nos muito quer da fonte escrita que se está a seguir, quer da cronologia que vem sendo referida. Escassos sete meses antes, aquando da entrada de D. Leonor de Áustria, terceira mulher de D. Manuel, em Lisboa, recorreu- -se também ao rio como lugar de encenação representacional, a um tempo, do esplendor da imagem e da dignidade do Rei e, a outro, da intensa relação da urbe com o seu rio. Nas pormenorizadas páginas que Correia dedica ao acontecimento, conta como o Rei deixara o Lavradio (então uma freguesia do actual concelho do Barreiro) para se dirigir ao cais de Xabregas, onde o aguardava na praia “em seu andor” a irmã, D. Leonor. O Rei “chegou muito na borda da água, donde as rainhas se viram e falaram” (Correia 1992, 128)5, seguindo depois em batel ao longo da costa, pela ribeira. Desta feita, o autor é menos minucioso, mas é provável que o Rei e a Rainha tives- sem usado uma ponte (ou, perante a ausência de uma escada, uma espécie de passadeira) que os ligasse à praia, onde aguardava a Rainha-Velha, uma vez que é difícil imaginar uma primeira conversa entre as duas rainhas, com a mais velha deixada no palanquim ou cadeirinha na areia, e a mais nova dirigindo-se-lhe de uma embarcação que, apesar de tudo, teria de evitar ficar presa na margem arenosa. Mais adiante, omitindo exactamente de que maneira, descreve-se como, “com grande vagar, foi [D. Manuel] desembarcar no cais das casas [do Paço da Ribeira], que tudo estava toldado e armado de rica tapeçaria, [e] onde [n]aquela noite dormiu” (Correia 1992, 1286). Caberá perguntar, e atendendo às semelhanças com a descrição do embarque de D. Beatriz na nau, se o Rei não terá também recorrido a uma passagem ou ponte, cujo carácter efémero adquiriria simultaneamente outros contornos, passando a assemelhar- -se mais a uma espécie de armação em módulos de diferentes dimensões e calibres, que se montava e desmontava consoante as necessidades.

A viagem da armada e a recepção no porto de Villefranche-sur-Mer Avançando novamente para o mês de Agosto, tanto Resende quanto Correia mencio- nam como a ausência de vento nas velas forçou a permanência da armada ancorada,

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primeiro junto à Ribeira, e depois em Belém, até reunir as condições para zarpar rumo ao Mediterrâneo no dia 10. Neste ponto, convém esclarecer que um dos navios que largou na armada, o único que não era capitaneado por um dos almirantes, aristocratas ou capitães de D. Manuel, pertencia ao Duque Carlos III e levava a bordo a comitiva saboiana. Embora não se conheça qualquer missiva ou documento enviado para a corte em Chambéry entre os dias 5 de Agosto – data do embarque da Infanta na nau, da qual só voltaria a sair em Sabóia – e 29 de Setembro – quando a armada aportou ao cais de Villefranche-sur- Mer –, é possível que algum dos membros da comitiva tivesse enviado cartas por terra, relatando ao Duque o espectáculo do embarque do séquito da Infanta e a animação exi- bicionista e luxuosa que se manteve por cinco dias, nas ruas e no rio da cidade. Este dado é importante pelo que se vai relatar a seguir, e que descreve a maneira como o porto de Villefranche-sur-Mer se preparou para a recepção a D. Beatriz de Avis, Duquesa de Sabóia. À semelhança do que acontecera em Lisboa na preparação das festividades, tam- bém a travessia da armada foi delineada ao pormenor, pensando retirar-se da mesma os benefícios da eficaz projecção da imagem do monarca. Todavia, como a comitiva portuguesa rapidamente perceberia, o mar Mediterrâneo não era os oceanos Atlântico e Índico. A armada saiu da barra do Tejo e, bordejando a costa, dirigiu-se para o Cabo de São Vicente. Aí, um desvio deliberado e programado foi feito, para que os navios passassem por Tânger, Alcácer-Ceguer e Tarifa e fossem saudados pela artilharia das praças por- tuguesas, culminando em apoteose em Ceuta, quando Simão da Cunha saiu em quatro caravelas e bergantins ao encontro da armada, saudando-a, junto com a cidade, “formo- samente” (Correia 1992, 149)7. A partir daí, a viagem correria menos bem, sobretudo por falta de vento ou por causa das tempestades, mas também por falta de reconhecimento ou condições para acolher tão distinto séquito, como aconteceu em Alicante, entretanto destruída pelos exércitos do Imperador. Finalmente, no dia 29 de Setembro, domingo, os primeiros barcos da armada che- garam à beira-mar de Nice, cortejando a cidade “com muita artilharia e estrondo de tangeres”. Neste aspecto Gaspar Correia foi discreto, mas a verdade é que a recepção em Sabóia não começara bem. Segundo o cronista, por o porto “ser desabrigado”, a armada seguira em frente para Villefranche-sur-Mer (Correia 1992, 151). Sobre a reacção dos nicenses à artilharia e estrondos portugueses, nada. Apesar de a crónica utilizar a palavra porto, no início do século XVI, quando Santa Catarina do Monte Sinai ancorou em Nice, a cidade não tinha verdadeiramente um porto, mas antes uma faixa costeira para além do recinto da muralha, onde se prati- cavam a pesca de arrasto e outras actividades de comércio e lazer, utilizando pequenas

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embarcações que aportavam na areia. Villefranche-sur-Mer, que distava de Nice cerca de 2,5 km em linha recta, era o verdadeiro ancoradouro de Nice, “mais favorável como porto natural, mas [no qual] o relevo colocava obstáculos à urbanização. O centro urbano de Nice facilit[aria] a actividade e fomente[aria] um tráfego portuário, apesar do precário molhe” (Graff 2000, 41)8. É possível que o primeiro mal-entendido se tenha gerado aqui. Ou que, justificando a ausência de mais explicações na crónica, se tratasse antes de um erro de interpreta- ção (ou de navegação) por parte do comandante da nau capitânia. Afinal, as águas do Mediterrâneo não eram as mais familiares aos capitães das armadas de D. Manuel. Mas, chegados a Villefranche e depois de nova salva, para além da reacção da popu- lação com “muito espanto, por verem tal cousa, o que nunca [haviam] vi[sto], que era uma tão formosa armada” (Correia 1992, 151), nada acontecera. Não obstante estas obsequiosas, mas pouco elucidativas palavras do cronista, o séquito português considerava-se desrespeitado, e os acontecimentos seguintes não iriam melhorar as relações entre portugueses e saboianos, conforme nos dão conta as narrativas que relatam estes acontecimentos, inclusive a de Gaspar Correia. Pesem embora as diferenças nas cortesias, na linguagem e no trato, o cortejo por- tuguês não estava preparado para a ausência do Duque (ou dos seus representantes oficiais), nem de símbolos e de cerimónias protocolares e festivas. Numa palavra, da imagem de Carlos III, fosse em pessoa, fosse por delegação. Habituados aos hábitos cortesãos manuelinos e à constante presença do Rei, os portugueses não sabiam como lidar com aquela situação e agarravam-se às convenções e aos estatutos, diferentes dos saboianos, demonstrados pela modéstia do trajar, pelos modos mais rudes, pela pouca distância física e cerimonial entre o Duque e os membros da sua corte. Na realidade, não fora intenção do ducado de Sabóia, e certamente do marido de D. Beatriz, ofender ou desrespeitar os representantes do Rei de Portugal. Como já foi notado por Richard Barker (2002, s.p.), há pelo menos uma razão que explica o desen- contro à chegada e, por acção dessa, a ampliação das consequências. É possível que a Infanta tivesse chegado antes da data prevista (aliás, os navios não aportaram todos ao mesmo tempo, e pelo menos cinco deles, apenas no dia 5 de Outubro), provocando outro equívoco: apanhadas desprevenidas, Nice, que a considerar o que ficou exposto não seria o destino final da viagem, não reagira à estridência anunciada pela armada, e Villefranche-sur-Mer não estaria pronta. Pierre Gioffredo, historiador seiscentista nicense que teve acesso à documentação oficial disponível nos arquivos da cidade, refere, pelo contrário, que a chegada deSanta Catarina do Monte Sinai se atrasara por dois meses (2007, 599). Seja como for, parece confirmar-se que passageiros e tripulações da armada de D. Beatriz aportaram a Villefranche de maneira inesperada. Não estando prevista a

8 Tradução nossa do francês.

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necessidade de realização de uma cerimónia, é mais fácil perceber a frustre recepção saboiana (que adiante se retomará), que, qualquer que tivesse sido a formalidade pla- neada para conduzir a Infanta até Nice, perdera a eficácia. Mal o contrato de casamento fora assinado, o Duque tomara a decisão de preparar a cidade de Nice “para receber a esposa real com a magnificência necessária” (Gioffredo 2007, 598)9. A tarefa recaíra em Alexandre, barão de Sallenôves, acabado de ser nomeado governador da cidade e do condado (1521-1524), que, no dia 12 de Agosto, confiara a Alexandre de Freney, senhor de Chuez e capitão da guarda da fortificação de Nice, o inventário de todas as armas, máquinas de guerra e outros materiai nela existentes, com vista a “organizar toda[s] [as] coisa[s] para que se pudesse oferecer uma saudação e uma recepção solenes” (Gioffredo 2007, 599)10. De novo, e se devidamente enquadradas, as fontes vêm confirmar o desencontro. Nice era de facto a cidade escolhida para a recepção à Infanta e a realização das cerimónias protocolares necessárias. E Carlos III também não se poupara a esforços para assegurar que tudo funcionaria no respeito da dignidade da sua mulher, filha de rei. Mas, definitivamente, Nice não era Lisboa. E a água – mar e rio – que banhava ambas não tinha o mesmo significado para a construção das imagens de poder das duas dinastias, Avis e Sabóia. Os portugueses, desgostosos, foram recebidos em Villefranche por “uma ponte como varanda, por cima coberta de murta, e da banda do mar em uma folha de papel estavam as armas do Duque e, em outra, as armas da Infanta, e na ponte uma só alcatifa, e não muito boa” (Correia 1992, 151)11. A citação do aparato manuelino é evidente, mesmo que, aos olhos de quem descre- veu os acontecimentos que Correia reportava, a magnificência e o esplendor estivessem muito distantes dos hábitos lisboetas. A consternação com o Duque e o ducado cisalpino e o receio pelo futuro da Infanta de Portugal acentuavam-se. Escasseava a sumptuosidade, mas também a ubiquidade do soberano, expressa em triste folha de papel, quando D. Manuel firmava em pedra a esfera armilar e as suas armas pelo mundo fora. Segundo Gaspar Correia, a estupefacção impedia o desembarque, levando ao invés a que os “louçãos” fidalgos se deslocassem até à nau da Infanta em batéis, certamente para conferenciarem sobre o que fazer; dali viram finalmente “assomar de um outeiro muitos palafréns, em que vinham doze de brocado e doze de veludo preto / e, após eles, vieram até quarenta de cavalo, onde vinha o Duque” (Correia 1992, 151)12. Carlos III exprimira logo vontade de que a Infanta desembarcasse. O conde de Vila Nova de Portimão e alguns fidalgos portugueses desceram então os batéis para irem até

9 Tradução nossa do francês. 10 Tradução nossa do francês. 11 Grafia e sintaxe actualizadas. 12 Grafia e sintaxe actualizadas.

culturas e dinâmicas.indd 154 03/02/2020 11:26:18 encenaçõestalássicas e a imagem de poder encenaçõesdas dinastias de avistalássicas e sabóia nos portos e ade lisboa imageme villefranche-sur-mer de poder daspor ocasião dinastiasdo casamento de avisda infanta e sabóiad. beatriz (1521) ... 155

“ao cabo da ponte” (Correia 1992, 151)13 – que não tinha, portanto, escadaria que a ligasse aos navios – trocar cortesias com o Duque. Depois, entraram em nova embarcação, desta feita a ducal, que apresentava “só duas alcatifas, e não muito finas, // e na proa do batel puseram uma bandeira de tafetá carmesim, com uma cruz branca que a atravessava toda” (Correia 1992, 151-152)14, que os levou à nau Santa Catarina e à sala da Infanta. Aí, marido e mulher viram-se pela primeira vez, trocaram cumprimentos e mesu- ras, e Carlos III convenceu D. Beatriz a ir para terra, no que contradizia as ordens que D. Manuel dera aos seus representantes e, ao mesmo tempo, obedecia às Instruções que o pai lhe escrevera e lhe confiara no dia 17 de Março, nas quais reforçara os deveres da Infanta enquanto mulher casada (Carvalho 2009; Pinto 2018a). D. Beatriz e a sua comitiva desembarcaram por volta das dez horas, já a coberto da noite escura. A Infanta deixou a nau no batel de Afonso de Albuquerque e chegou à ponte “à luz de muito numerosas tochas, saudada por frequentes tiros de artilharia, escoltada por um grande séquito de barões e de cavaleiros, sob os aplausos e a indizível alegria de toda a população” (Gioffredo 2007, 599)15. Seguiu imediatamente para Nice, onde dormiu nos aposentos da mãe e irmã do Duque, e casou-se no dia seguinte, na igreja do convento de São Domingos (Pinto 2018b, 188-193). Correia dá-nos uma versão diferente dos acontecimentos. Não deixando de apontar que “as guarnições [dos saboianos] eram muito diferentes dos vestidos e muita riqueza que os portugueses levavam, e nestas, em cavalgaduras, entraram pela vila, sem mais ordem de recebimento que outro [?] do Duque” (Correia 1992, 152)16, esclarecia igual- mente que as salvas de artilharia vinham da frota portuguesa, uma vez que o caminho entre a vila e a cidade era feito junto ao mar.

Água, pontes e infortúnio: criatividade e engenho na imagem de D. Manuel Apesar dos equívocos e mal-entendidos relatados, a historiografia actual é consensual em considerar que as consequências negativas deste primeiro encontro entre as comi- tivas saboiana e portuguesa tiveram mais eco na apreciação dos que se sentiram direc- tamente afectados e na retórica da cronística oficial do que na realidade da gestão da convivência pessoal e representacional da Infanta e do Duque (Barbero 2002, 236-256; Merlin 2012; Pinto 2018a; Pinto 2018b). A ponte no porto de Villefranche-sur-Mer tinha constituído uma desilusão para o séquito de representantes de D. Manuel, mas alguma coisa dessa memória emulativa permanecera nas opções performativas no ducado de Sabóia. Ao contrário do que acontecia em Lisboa, em que o rio servia como principal porta de entrada na cidade e, particularmente, para os membros das famílias reais e dignitários

13 Grafia actualizada. 14 Grafia e sintaxe actualizadas. 15 Tradução nossa do francês. 16 Grafia e sintaxe actualizadas.

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estrangeiros que a visitavam, a circulação das gentes em Sabóia era sobretudo terrestre, ligando-as ao reino de França, aos ducados italianos e aos cantões suíços. O Mediterrâneo era assim, por um lado, a porta para o comércio e a circulação e, por outro, a frente descoberta e mal defendida que ameaçava a segurança do ducado, não poucas vezes alvo de cercos e ataques de potências inimigas. Ainda assim, alguns anos mais tarde, em 1538, cerca de três meses depois da morte de D. Beatriz em Nice, a cidade estava de novo em alvoroço, face à iminente chegada do Papa, de Carlos V e de Francisco I, que vinham negociar os termos da paz definitiva entre o Imperador e o Rei de França. Enquanto decorriam as difíceis negociações entre as comitivas, a complexa escolha do lugar onde estanciariam os diferentes séquitos e a definição do sítio onde decorreriam as conversações, Villefranche-sur-Mer assistia quo- tidianamente à chegada e à partida de navios. Em Nice, encontravam-se já Francisco I, o Papa Paulo III, e Carlos V, que a irmã, e Rainha de França, quis ir visitar. Antes de regressar à sua corte, passou por Villefranche, “onde tínhamos mandado fazer pontes, com cinquenta passos de comprimento, de maneira a que as galeras da Rainha pudessem mais facilmente aproximar-se do porto”. Como Leonor de Áustria se aproximasse, “o imperador foi até ao fim da ponte, seguido pelo Duque, vários príncipes e grandes senhores, e recebeu a rainha. Mas, ao mesmo tempo, a ponte rompeu-se, e o imperador, ela [a rainha], e o Duque, caíram ao mar” (Guichenon 1660, 648; Barker 2002, s.p.)17. De acordo com o cronista e genealogista saboiano, o acidente prestara-se ao riso, já que todos haviam sido imediatamente socorridos. Na realidade, é provável que as reacções tenham sido algo diferentes, uma vez que este infeliz episódio terá tido conse- quências. Desde logo, o desconforto provocado pela situação e a alteração dos planos das diferentes comitivas. Igualmente, não é razoável que o riso tenha substituído os gritos de medo dos que caíam à água e eram puxados para o fundo pelas pesadas vestes ou o pânico dos que em terra assistiam ao sucedido. O episódio da ponte mandada fazer por Carlos III em 1538 realça o papel da Infanta na construção da imagem do ducado de Sabóia. Os estudos mais recentes sobre D. Beatriz revelam uma personalidade resiliente e uma presença activa e interventiva na corte saboiana, para a qual contribui, também, a autoria de programas comemora- tivos e decorativos, como os que ficaram narrados em crónicas aquando das festas de baptizado dos filhos Adriano-João-Amadeu e Emanuel Felisberto (Pinto [s.d.a]; Pinto [s.d.b]; Pinto 2018a). Em reavaliação está, por isso, o verdadeiro impacto dos dezassete anos de ducado de D. Beatriz e a sua contribuição para a construção da imagem cortesã da dinastia saboiana, mais próximas dos dispositivos e práticas das monarquias ibéricas, antecipando em algumas décadas o papel atribuído ao seu filho e neto.

17 Tradução nossa do francês.

culturas e dinâmicas.indd 156 03/02/2020 11:26:18 encenaçõestalássicas e a imagem de poder encenaçõesdas dinastias de avistalássicas e sabóia nos portos e ade lisboa imageme villefranche-sur-mer de poder daspor ocasião dinastiasdo casamento de avisda infanta e sabóiad. beatriz (1521) ... 157

Quero deixar expresso o meu agradecimento ao Dr. Pedro Pinto, pela sempre generosa partilha de documentação inédita, e à Dr.ª Filomena Borja de Melo, pela transcrição de alguns dos documentos.

Referências

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