43º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

ST40 SOCIEDADE E VIDA ECONÔMICA

MUITO ALÉM DA CARNE: as práticas alimentares dos restaurantes e consumidores veganos de Porto Alegre

Autores: Maycon Noremberg Schubert (UFRGS) Paulo André Niederle (UFRGS)

INTRODUÇÃO

As mudanças climáticas estão no centro dos debates mais tensos atualmente, tanto no âmbito dos Estados, com iniciativas de austeridade fiscal, intensificação na exploração de recursos naturais, soberania nacional e acordos internacionais, etc (SHUTTE, 2014; ALMEIDA, 2019), quanto no âmbito da sociedade civil, mudanças nos hábitos de consumo, engajamento político em movimento sociais e coletivos, etc (COLOMÉ, 2018; CARLSSON-KANYAMA e GONZÁLEZ, 2009), assim como nos mercados, startups, fusões e incorporações, inovação, e processos de industrialização mais intensos, etc (GERHARD, et all, 2019; SCHUBERT e TAVARES, 2019). Transversalmente a todo esse debate está presente o modo e a forma com que as sociedades se alimentam, produzem, beneficiam, transportam, comercializam, preparam e descartam os alimentos. Segundo relatório da FAO (2013), a produção alimentar é responsável por cerca de 19-29%, provocada pela indução humana, da emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE), 60% da perda de biodiversidade da terra, 70% do uso de água. A criação de animais é quem carrega esse maior ‘fardo’, sendo responsável por cerca de 14,4% dos GEE’s (FAO, 2013a). Porém, há distinção em relação aos diferentes tipos (Suínos, Frango, Bubalinos, Pequenos Ruminantes e Outras aves), sendo a produção de leite e carnes, de origem bovina, os maiores causadores desse impacto, representando 65% do total de emissão de GEE’s, referente à criação de animais (FAO, 2013a). Essa relação, entre as mudanças climáticas e a o padrão atual do sistema agroalimentar, é sinérgica, ou seja, uma ‘espiral’ autodestrutiva (FAO, 2015), cujos custos já representam um prejuízo no PIB mundial em torno de 5-10% (SWINBURN, et all., 2019). Uma das culturas mais afetadas, nesse cenário, seriam as commodities, especialmente a soja (EMABRAPA, 2008). Não obstante, o impacto na saúde da população se expressa no elevado índice de pessoas com excesso de peso, chegando a 2 bilhões no mundo todo, ou seja, 25% da população mundial, sendo que 650 milhões são consideradas obesas 8,4% da população mundial1. Esses dados contribuem com os altos índices de ‘Doenças não Comunicáveis’ (NCD em inglês) (HAWKES, et all., 2012), gerando um custo estimado em torno de 2,8% do PIB mundial (SWINBURN, et all., 2019). Por outro lado, a má nutrição e a fome são os principais desafios para os países africanos e asiáticos, que enfrentam um rápido e

1 https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight

intenso processo de urbanização (BATTERSBY, 2017), com custos girando em torno de 4-11% dos seus PIBs (SWINBURN, et all., 2019). Ademais, as mudanças climáticas afetam mais destrutivamente os países com baixa capacidade estrutural de resposta aos desastres naturais (FAO, 2015), vide o ciclone que atingiu Moçambique em 20192. Alguns proeminentes relatórios de pesquisa, recentemente lançados, apontam para um quadro de ‘Sindemia Global’, entre mudanças climáticas, obesidade e desnutrição, cuja omissão dos governos, o descaso das grandes indústrias e os maus hábitos alimentares da população, dentre outros fatores e contextos, se somatizam para o agravamento desse quadro de destruição global (SWINBURN, et all., 2019). Outros apontam para uma rápida entrada em uma nova era, o Antropoceno, cujas interferências humanas sobre o planeta seriam de tal monta a ponto de demarcar uma nova época (WILLET, et all., 2019). Para os primeiros, uma das alternativas possíveis seria o que chamam de ‘Ações de Trabalho Triplo’, ou seja, iniciativas de mudança que fossem transversais às epidemias elencadas, obesidade, desnutrição e mudanças climáticas. Para os segundos a alternativa seria nada menos que uma ‘Grande Transformação Alimentar’, especialmente nas dietas e nos modelos de produção de alimentos. Notadamente, ambos confluem para o que muitos autores têm buscado refletir e apontar saídas, que são as dietas sustentáveis e suas conexões entre a nutrição e os sistemas alimentares (BURLIGAME e DERNINI, 2018). Porém, uma questão chama a atenção entre todos estes estudos, relatórios e discussões, a necessidade de mudanças na dieta alimentar, destacadamente na redução do consumo de carnes, especialmente carnes vermelhas. Não obstante, grandes empresas estão adentrando esses mercados, com destaque aos ‘laboratórios de cultivo de carne’3, e a chamada ‘carne à base de plantas’4, já com fortes disputas pelo paladar, consciência e bolso dos consumidores5. O grande foco dessas empresas tem sido o consumidor que potencialmente está inclinado a consumir mais produtos veganos, não necessariamente que sejam veganos6. Tal fato corrobora com os dados que o IBGE (2018) divulgou recentemente, que 63% dos brasileiros, por exemplo,

2 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47622803 3 https://cellbasedtech.com/lab-grown-meat-companies 4 Esse mercado comporta uma diversidade grande de produtores/empresas. Desde grandes empresas, Beyond Meat (com investimentos da Cargil), até mesmo informais que vendem em feiras veganas (salsicha, almôndegas, etc). 5 https://forbes.uol.com.br/colunas/2019/07/novas-pesquisas-indicam-que-ninguem-quer-carnes-de- laboratorio/ 6 Ver o programa da Globo News Munda S/A – ‘Foodtech – a comida do futuro’, exibido em 1 de julho de 2019.

querem reduzir o consumo de carnes, porém apenas 14% se consideram vegetarianos, atualmente. Cabe notar que o número de pessoas que se declaravam veganas/vegetarianas em 2009, foi de 9% e 8% em 2012, segundo o IBGE. Ou seja, subiu 50%, 10 anos depois, demostrando o quão recente é esse movimento e ainda pouco clara as razões desse aumento. Diante desse quadro, as perguntas que se impõe são: é uma tendência em crescimento, que perdurará e mudará significativamente os hábitos alimentares de grande parte da população? Ou, uma moda, que em algumas poucas décadas se dissipará? Ou, ainda, seguirá outros rumos não conhecidos por nós? São perguntas ainda em aberto e que esse trabalho, inclusive, refletirá sobre. Essa ‘onda’ em torno de lutas contra as mudanças climáticas, a obesidade e a desnutrição, fomenta um ‘despertar’ político – como amplo processo social –, que gera expectativas em diferentes setores da sociedade, especialmente nos mercados e na sociedade civil. Este último apresenta uma grande diversidade e totipotência em termos de pautas éticas, estéticas e culturais. O anterior, está mais centrado nas ordens econômicas, ‘lendo’ as primeiras e canalizando-as aos processos de mercantilização. Exemplo de fenômenos que vem passando pelo processo de mercantilização são inúmeros: feminismo, com o femvertising (ABTIBOL e STERNADORI, 2016), agroecologia, pela apropriação dos selos de origem, qualidade e indicações geográficas (NIEDERLE, 2018), veganismo, com apoio do pragmatismo vegano e a entrada de grandes players industriais nesse setor (LEENAERT, 2017), o movimento LGBTQ+ e os mercados ‘Pink Money’ (MORESCHI, et all, 2011), dentre outros. Notem que, por detrás de cada um dos movimentos de mercantilização, há, na sua base social, um engajamento político diverso e complexo da sociedade civil, refletindo na demanda por produtos/mercadorias/bens. Porém, talvez o leitor se pergunte: e o Estado? Esse é um espaço em permanente disputa, diríamos, ora tendo suas agendas públicas ocupadas pelo lado da demanda (conselhos, comissões, mobilizações, petições, eleições, etc), ora pelo lado da oferta (lobby), oscilando entre proibir, fomentar, regular, liberar ou corromper-se. Como exemplos que ocorrem nas disputas dessa agenda, no caso brasileiro, poderíamos citar a inserção dos movimentos ambientalistas nas agendas e espaços da administração pública, especialmente ao longo da década de 1990, tendo como ícone a formação do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente); e, mais recentemente, a partir dos anos 2000, a entra de movimentos ligados à saúde coletiva nestes espaços e agendas, tendo como ícone

a retomada7 do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Outros estão apenas começando a adentrar esses espaços e essas agendas, como é o caso dos movimentos feministas, LGBTQ+ e veganos, para citar alguns que mais vem se destacando, ao nosso ver, atualmente. Conquanto, já é possível perceber alguns processos de interseccionalidade entre todos estes movimentos, como é o caso da presença de consumidores veganos em feiras agroecológicas (debates muito recentes, sem estudos sistematizados no momento), de movimentos feministas veganos (CAROL, 2012 [1990]), de movimentos agroecológicos feministas8, etc. Tais aspectos até aqui abordados nos mostram um quadro complexo de articulação e disputa, entre os diferentes setores da sociedade – mercados, estado e sociedade civil – e entre diferentes pautas políticas, feminismo, agroecologia, veganismo, LGBTQ+, ambientalismos, agricultores familiares, etc. Alguns vezes convergindo, outras divergindo, ou, ainda, algumas vezes, não dialogando. Tudo isso diante de desafios alarmantes, como já apontados, as mudanças climáticas, a obesidade e a desnutrição. Diante desse cenário, nosso objetivo é discutir um pouco mais sobre o veganismo, buscando compreender como tem se manifestado nas práticas sociais dos indivíduos e seus coletivos, as conexões que tem feito com outras práticas sociais, e como tem se ramificado pelos mercados alimentares. A proposta não é buscar explicações que sintetizem esse cenário acima descrito, apontando saídas ao final, pois cremos que isso ainda está longe de ser alcançado – talvez nem seja essa as aspirações atuais das ciências sociais –, pois muitos destes fenômenos ainda são pouco compreendidos do ponto de vista das teorias do conhecimento e das teorias sociais. Por isso, o presente artigo é uma contribuição sociológica, com dados empíricos, porém inconclusos, mas que já nos abrem algumas ‘janelas’ que nos permite ‘olhar’ para um complexo conjunto arranjo de práticas sociais que emergem, se modificam e se dissolvem, (SCHATZKI, 2001, 2002, 2019).

ALGUMAS PISTAS SOBRE AS PRÁTICAS VEGANAS

7 A retomada do CONSEA é assim referenciado, pois sua constituição ocorre em 1994, porém foi desativado em 1995 e somente em 2003 foi rearticulado. 8 ‘Sem Feminismo não há Agroecologia’ Lema do IV Encontro Nacional da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), em 2018. https://agroecologia.org.br/2018/09/05/sem-feminismo-nao-ha- agroecologia-2/

Muitos autores procuraram capturar a essência filosófica, moral e até religiosa do veganismo, para diferenciá-la do vegetarianismo (BRUERS, 2015). As distinções geralmente dizem respeito aos componentes éticos, na medida em que o vegetarianismo não implica necessariamente o reconhecimento dos direitos animais. No Brasil, a Sociedade Vegana nacional (criada em 2010) sustenta uma distinção entre o veganismo como um modo de vida e o vegetarianismo como uma dieta alimetar. No entanto, a confusão é generalizada, e os atores ainda gastam muito tempo tentando identificar as fronteiras entre dieta e a ética, dado que o “enquadramento semântico” (construção de significado) é essencial para o desenvolvimento e sobrevivência de um movimento social (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). O veganismo é comumente representado como um tipo de dieta (JANSSEN et al., 2016; ALEKSANDROWICZ et al., 2016; CRAIG, 2009; DAVIS, 2003). Como enfatizam Cole e Morgan (2011), “quando os veganos estão presentes como participantes da pesquisa, eles geralmente são tratados como um subgrupo de vegetarianos e seu veganismo tende a ser visto como uma forma de ascetismo alimentar envolvendo esforços excepcionais de autotransformação”. Neste caso, geralmente acentua-se a exclusão da carne como item da dieta vegana e deconsidera-se a importância de outras práticas e valores sociais (COLE, 2008). Há pelo menos duas grandes vertentes dos movimentos animalistas, que refletem nas dietas alimentares de diferente grupos sociais, os ‘bem-estaristas’ e os ‘abolicionistas’. Os bem-estaristas são aqueles que aceitam a exploração animal, porém, estão sempre em busca de melhorias nas condições de vida dos animais em criatórios (especialmente), sob o preceito das chamadas cinco liberdades: livres do medo e estresss, livres da dor e da doença, livres da fome e da sede, livres para expressar seu comportamente e livres de desconforto (BROOM e MOLENTO, 2004). Este grupo está muito ligado aos debates de zootecnistas, veterinários e agrônomos, que trabalham com questões relacionadas à produção animal. Para estes, o animais não são sujeitos dotados de direito, mas sim objetos/bens. Entre os abolicionistas, existe, porém, uma divisão. Entre os pragmáticos, mais afetos às abordagens de , a partir do seu livro ‘Libertação Animal (1975)’ que se baseia no conceito de senciência – capacidade dos seres vivos de sentir, dor e prazer – defendem que se faça tudo que se possa fazer para minimizar o sofirmento animal, e que esteja ao alcande do maior número de pessoas possíveis, com o objetivo final de atingir a

libertação total e plena dos animais não-humanos. Por isso essa vertente é reconhecida como pragmática e geralmente aceita, mesmo que de forma reticente, os principios de bem- estar-animal. Porém, a segunda corrente abolicionista, mais alinhada ao fundamentalismo ético e moral, sob a influência de , autor de ‘Jaulas Vazias (2004)’, argumenta que nossa sociedade carrega a exploração dos animais sob o signo especista, que se assemelha ao racismo e ao sexismo, e que deve ser combatido na sua essência, e não amenizada com medidas ‘palhiativas’. Para estes, o bem estarismo não é aceito, mas sim combatido, pois remete a uma forma de ‘aceitação’, ‘acomodação’, em relação ao especismo que os humanos impõe aos animais não-humanos (NACONECY, 2009; TIRGUEIRO, 2013). Outro debate ‘espinhoso’, no campo da ética animalista, é quanto às relações que guardam os direitos humanos e os mais recentes debates em torno dos direitos animais. Os primeiros, muitos vezes, são evocados para dar sustentação ao argunento de que mesmo sem a capacidade racional plena, como tal entendida pelos humanos, os animais seriam seres dotados de direitos, não podendo ser tratados como objetos/bens. Porém, é recorrente a reclamação, especialmente dentro do movimento abolicionista fundamentalista – para os quais não importa outras pautas humanitárias, pois contaminam as pautas animalistas –, de ‘enfraquecimento’ à ideologia animalista. Para esse grupo, tal fato não interferiria nos direitos animais. Tais sinais demonstram alguns indícios de contradição moral, a serem melhor investigados e estudados. Atualmente, é possível notar um debate ainda mais aberto e menos sectário em torno da ideologia vegana. Um dos principais influenciadores e escritores nesse sentido, Tobias Leenaert, em seu livro ‘Como criar um mundo vegano’ de (2017), apóia um conceito basante flexível para o veganismo, no qual práticas voltadas para a saúde humana, bem-estar animal e sustentabilidade podem ser incorporadas, no que ele define como 'práticas veganas'. No entanto ele não está só nessa empreitada pragmática, outra ativista e acadêmica, , sua colega de palestras, discute ‘a ideologia carnista’ em nossa sociedade, sob o ponto de vista cognitivista, behaviorista e histórica, expressos em seu livre ‘Por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas’, de (2013). Assim, essas posições ativistas apresentam um processo de enquadramento semântico de ‘práticas veganas’ ainda mais aberto, tornando ainda mais complexo identificar os limites entre o veganismo, o vegetarianismo, o flexarianismo, o ovo-lacto-vegetarianismo, o pescatarismo, o poloteísmo e assim por diante.

Alguns debates ainda mais amplos podem ser inicialmente tratados aqui, especialmente no que correspode às práticas alimentares, que manifestam parcialmente práticas veganas, algumas alinhadas ideologicamente aos aspectos morais, porém, muitas delas conectadas a outras questões, como as chamadas dietas crudívoras, ou mesmo a mais atual dieta climateriana9, apoiada pela ONU. Os crudívoros não são necessariamente veganos, porém, em nossos dados empíricos, como discutiremos mais adiante, notamos um ‘conversão’ ao veganismo, atribuída, por uma de nossas entrevistadas, como sendo uma ‘consequência’, não uma ideologia. Em geral os crudívoros buscam comer alimentos com baixo grau de cocção, procurando alinhamneto energético e equilíbrio do pH corporal, por meio dos alimentos, preferencialmente orgânicos10. A dieta climateriana surge, em 2009, com uma versão mais recente do debate sobre a ‘pegada ecológica’ – ‘footprint’ em inglê –, menos centrada no localismo, mas mais preocupada com o cáculo de GEEs, presentes no consumo diário de alimentos e no desperdício alimentar. Alguns especialistas chamam de ‘consumo consciente de carbono’, sendo que o principal alvo, nesse caso, é a necessidade de redução drástiva no consumo de carnes, especialmente carnes vermelhas, chegando a uma recomendação de 65g por semana, ou 300g por mês11. Tal dieta alimentar se aproxima dos chamados flexitarianos, que consomem drasticamente menos carne, porém sem eliminá-la por completo do cardápio. Porém, a dieta climateriana está calcada em uma forte ideologia ambientalista, sustentada pelos discursos científicos e movimentos sociais que atuam em defesa do meio ambiente. Ambas dietas, Crudívoras e Climateriana, parecem pouco relacionadas à ideologia animalista, debatido brevemente acima, porém não deixam de manisfestar práticas com fortes características veganas, relacionadas, especialmente, às dietas alimentares. Inclusive, expressam outras ideologias, ambientalista, na climateriana, e nutro- energética12, na crudívora.

9 https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/26/estilo/1566830849_215631.html 10 Os poucos estudos académicos sobre o tema estão centrados mais no campo na nutrição, e seu impacto na dieta alimentar do ponto de vista fisiológico, praticamente não há referência no campo das ciências sociais que debata esse assunto. 11 https://www.lessmeatlessheat.org/climatarian-diet/ 12 Termo aqui criado para associar aspetos nutricionais aos energéticos, que mais ou menos caracterizam a dieta Crudívora.

Nesse sentido, nos interessa discutir, sob aspectos mais amplos, as ‘práticas veganas’, tentando compreender como determinados arranjos materiais se conectam a estas práticas, bem como se manifestam a partir dos entendimentos que compartilham, das regras que seguem e das ‘motivações’ e ‘fins’ – teleoafetividade13 – pelas quais se orientam. Isso não quer dizer que a ideologia não importa, muito pelo contrário, ela é um dos fatores de maior relevânia, porém não se reduz a ética animalista, necessariamente, para se caracterizar efetivamente como uma ‘prática vegana’, podendo estar conecta a outras éticas (ambientalista, nutro-energética), ou mesmo, a outros valores, como saúde, sustentabilidade, gosto, etc. Ou seja, por exemplo, um vegano pode não ser um climateriano, pois caso a sua dieta, mesmo excluindo completamento o consumo de carnes, não esteja conectada ao cáculo/preoucpação quanto às emissões de CO2, o impacto que causa às mudanças climáticas pode ser igual o maior a uma dieta tradicional, a base de carne. Tal fato pode acontecer, por exemplo, caso um vegano consuma alimentos ultraprocessados, cujas matérias primas sejam oriundas de fontes altamente poluentes, não se tornando, desse modo, uma dieta climateriana. Em suma, o objetivo deste artigo é analisar as múltiplas práticas veganas em restaurantes de Porto Alegre, abarcando tanto os consumidores que frequentam esses espaços, quanto os próprios restaurantes. Inicialmente, o artigo demonstra que os restaurantes veganos ofertam diferentes “opções de veganismo” para os consumidores, mas que, de modo geral, todas estas opções abarcam um conjunto muito mais amplo de práticas do que a simples exclusão da carne. Em seguida, aponta que, apesar de um percentual limitado de consumidores que se considera vegano, estes restaurantes atraem e incentivam consumidores que desenvolvem inúmeras práticas alimentares, as quais são orientadas por valores associados ao bem-estar e aos direitos animais, mas também a um conjunto mais amplo de valores ecológicos, éticos e estéticos.

CONTEXTUALIZAÇÃO, METODOLOGIA E TEORIA

13 O conceito de Teloafetividade é proposto por Schatzki (2001) como um elemento que compõe as práticas sociais, buscando alinhar o conceito teleológico de Aristóteles, ou seja a busca por um ‘fim’ determinado, e a afetividade em Heidegger, ou seja, as ‘motivações’ que movem os indivíduos a realizarem determinadas ações que compõem uma prática.

Atualmente, há uma crescente tendência de aumento do veganismo, cujo índice alcança 14% da população brasileira autodeclarada, segundo o IBOPE opinião (2018). Essa tendência vem se expandindo em Porto Alegre. Inclusive, com organização de feiras específicas desde 2014. Nas duas últimas décadas, esses movimentos foram protagonistas de inovações sociais (mercados diretos, sistemas de certificação participativa, cooperativas de consumidores, estratégias de intercooperação de associações, entre outros) que fizeram de Porto Alegre uma referência na discussão sobre sistemas alimentares sustentáveis. Mais recentemente, a cidade também viu a profusão de novas práticas e movimentos cuja origem está ligada ao fenômeno global de valorização de alimentos locais, artesanais, sustentáveis e saudáveis. Em relação ao veganismo, em 2018, uma pesquisa de mercado realizada pelo Sindilojas (sindicato de lojistas) identificou que 10% da população de Porto Alegre gostaria de adotar um “estilo de vida vegano”, 16% não viu nenhuma dificuldade em se tornar vegano, 57,8 % reconheceu alimentos veganos como mais saudáveis e 55,6% consumiram produtos veganos pelo menos três vezes por semana. Os dados empíricos da pesquisa foram obtidos ao longo de trabalho de campo entre os meses de outubro de 2018 e abril de 2019. O universo empírico corresponde à 10 restaurantes veganos de Porto Alegre, onde foram realizadas entrevistas com os proprietários e foram aplicados questionários estruturados à 374 consumidores destes restaurantes. Ademais, houve várias incursões participantes em espaços coletivos do movimento vegano de Porto Alegre (capacitações, palestras, feiras, etc). As análises foram realizadas a partir de uma abordagem pragmática da Teoria das Práticas, a qual nos permitiu focar nas contingências e nas diferenciações envolvendo as performances e os arranjos organizados coexistentes. A principal categoria de análise é a formação dos conjuntos arranjados de práticas (CAPs), ou seja, o que Schatzki (2001, 2002, 2019) classifica como sendo as práticas sociais – como propriedade emergentes e composta pelas regras, entendimentos e estruturas teleoafetivas –, conectadas aos arranjos – pessoas, coisas, organismos e artefatos –, que ao fim e ao cabo formam esses conjuntos. A forma como se estabelecem essas conexões, entre as práticas e os arranjos, em diferentes conjuntos, é o que define as ordens sociais existentes na realidade social. Os fenômenos sociais, nesse sentido, são ‘fatias’ dos diferentes conjuntos arranjos de práticas sociais, que compõe o que Schatzki (2019) chama de um ‘Plenum das Práticas’. Em suma, analisar o fenômeno social do consumo e da oferta alimentar vegana, pelo olhar da Teoria das

Práticas, é investigar os conjuntos arranjados das práticas, através dos quais tal fenômeno emerge e se configura.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os dados que foram coletados nos 10 restaurantes veganos e entre os 374 consumidores que frequentam estes espaços, serão aqui analisados em dois momentos, a luz da Teoria das Práticas. Em um primeiro momento é debatido os conjuntos arranjados de práticas (CAPs) que caracterizam a oferta alimentar vegana. Em um segundo momento se discute os conjuntos arranjados de práticas (CAPs) que caracterizam o consumo alimentar vegano. Irá se observar os distanciamentos e aproximações entre os conjuntos arranjos de práticas veganas, dos restaurantes e dos consumidores. As observações contemplam ainda um diálogo com a segunda seção do artigo, no qual discutiu-se ‘pistas, sobre as práticas veganas.

Formulação das instâncias empíricas

Para se alcançar um nível de sistematização empírico, que permita apresentar uma interpretação dos fenômenos sociais a luz da Teoria proposta, é essencial que se construa instâncias empíricas, que são categorias analíticas que ‘enquadram’ os dados brutos, ‘contaminados’ pelo senso comum, em formulações sociológicas capazes de apresentarem uma versão científica da realidade social (BOURDIEU, et all, 2015; FERNANDES, 1980). Deste modo, procedeu-se da seguinte forma. Mapeamos diferentes práticas sociais levadas adiante pelos restaurantes, a partir das entrevistas e visitas. Em diferentes momentos observamos a disposição das comidas, a decoração dos ambientes, os símbolos e frases presentes, os preços praticados, a compra dos alimentos, a história dos restaurantes, a intencionalidade dos donos/as, os planos futuros, etc, ou seja, um apanhado de ‘dizeres’ e ‘fazeres’ presentes nas performances dos agentes e nos contextos. Desse modo, conectamos as práticas aos arranjos, e construímos algumas categorias analíticas que correspondessem a um conjunto arranjado de práticas. Basicamente, o resultado da formulação das instâncias empíricas pode ser sumarizado nos quadros 01 e 02, abaixo.

Quadro 01 – Instâncias empíricas que representam os CAPs analisados pela oferta de alimentos veganos.

Instâncias empíricas do Conjunto Arranjado de Práticas Plenum de Práticas Reconexão produção- (I) Utilização de alimentos de produção própria em relação ao consumo (RPC) total utilizado no restaurante (II) Utilização de alimentos adquiridos diretamente de agricultores em relação ao total utilizado (III) Adoção de práticas sustentáveis (redução desperdício, embalagens ecológicas, compostagem etc.) (IV) Proximidade, sociabilidade e interação não mercantil com os fornecedores do restaurante Segurança Alimentar e (V) Utilização de alimentos orgânicos em relação ao total Nutricional (SAN) utilizado no restaurante (VI) Acesso aos alimentos pela população (inversamente proporcional ao preço) (VII) Boicote de alimentos ultraprocessados, transgênicos e com alto teor de sódio, açúcar e gordura (VIII) Associação do alimento a dimensões socioculturais e espirituais Engajamento político (IX) Engajamento político em prol do veganismo (EP) (X) Engajamento político com outros movimentos alimentares (agroecológicos, agrários, etc.) (XI) Referência estética ao veganismo (XII) Referência estética de pautas de outros movimentos alimentares (agroecológicos, agrários, etc.) Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.

Quadro 01 – Instâncias empíricas que representam os CAPs analisados pela demanda de alimentos orgânicos.

Instâncias empíricas do Conjunto Arranjado de Práticas Plenum de Práticas Reconexão produção- (I) Cultivar os alimentos em casa consumo (RPC) (II) Cozinhar em casa (III) Comprar em feiras de agricultores familiares (IV) Comprar diretamente dos agricultores familiares

Segurança Alimentar e (V) Comer comida orgânica Nutricional (SAN) (VI) Realizar práticas regulares de exercício físico (VII) Não comer em restaurante fast-food Engajamento político (VIII) Participar de algum movimento social em torno da (EP) alimentação (IX) Participar das redes sociais relacionadas ao veganismo (X) Convencer as pessoas a se tornarem veganas (XI) Boicotar companhias que usam produtos animais Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.

Tanto para os restaurantes quanto para os consumidores, os três CAPs estabelecidos foram: Reconexão produção consumo (RPC), Segurança alimentar e nutricional (SAN) e Engajamento político (EP).

Conjunto arranjado de práticas que caracterizam a oferta alimentar vegana

Inicialmente cabe destacar algumas características mais gerais dos 10 restaurantes entrevistados. São restaurantes que foram abertos recentemente, o mais antigo data de 2006. Nem todos começaram veganos, 3 deles fizeram a conversão depois de algum tempo, por princípio ou por oportunidade de mercado. Os princípios que os orientam são diversificados, mapeamos 4 deles defendendo a ‘libertação animal’ – com diferenças em termos de fundamentalismo, pragmatismo e intersecção com outras pautas sociais, algo muito mesclado a partir da ótica do abolicionismo animal –, 4 outros estão mais inclinados à ‘saudabilidade’14 – sendo a principal preocupação o meio ambiente e a saúde, algo próximo ao que discutimos como sendo uma dieta Climateriana –, e os 2 outros mais orientados pelos princípios ‘dietéticos’ – fisiologia do corpo e absorção de nutrientes, algo mais centrado na dieta Crudívora. Do ponto de vista das filosofias que orientam suas práticas a diversidade é um pouco maior: a) 2 deles se consideram ‘anti-especistas’, lutam pela libertação dos animais e contra o sexismo e o racismo, um fundamentalismo abolicionista aberto a outras pautas sociais; b) 2 deles são animalistas, e lutam pela libertação dos animais, sem conectar isso

14 “A saudabilidade tem uma perspectiva mais holista da alimentação e, portanto, a rede semântica em que se encontra inserida é muito mais ampla. Questões relativas ao meio ambiente, à forma de produção dos alimentos, à criação dos animais, entre outras, estão dentro da sua atenção” (BARBOSA, 2009 pg.29).

as pautas de libertação humana, uma abolicionismo pragmático mais fechado; c) 2 deles consideramos Eco-Gourmet, cuja estética dos pratos sobressai às questões mais éticas/morais; d) 1 deles é extremamente focado nas pautas ambientalistas; e) 2 deles são voltada para a filosofia Crudívora, cujo foco são os nutrientes que a comida fornece e o melhor aproveitamento destas, pelo corpo; f) por fim, 1 deles consideramos como sendo Étno-saudável, pois o foco da saudabilidade é mais na saúde do que no meio ambiente, porém com um ‘toque’ exotérico de uma comida étnica. Em 5 dos restaurantes os donos são veganos, em 3 deles os donos não são veganos, e nos outros 2, como são geridos por um coletivo, um com 7 pessoas e outro com 6, alguns são veganos outros não, ou como dizem, estão em vias de ‘transição’15. Do ponto de vista da expansão de mercado, 3 deles estão sendo franqueados e ao mesmo tempo já possuem filiais em Porto Alegre, ou seja, mais de um restaurante da mesma dona. 2 outros estão abrindo filiais em Porto Alegre, mas não buscam consolidar uma franquia. 3 restaurantes não pretendem expandir os negócios. 1 dos restaurantes quer expandir a marca para outros produtos, porém sem abrir uma nova filial ou mesmo fraquear sua marca. 1 deles, está se organizando em uma cooperativa. Notem a diversidade que os restaurantes veganos guardam em termos de princípios, filosofia e relações que estabelecem com os mercados. As próximas seções e subseções mostrarão que estas iniciativas se diversificam e se complexificam ainda mais em conjuntos arranjados de práticas (CAPs), ao ponto de estabelecerem ordens sociais mais ou menos estáveis, em um Plenum de Práticas, que ‘atravessam’ o fenômeno do consumo alimentar vegano.

Engajamento político (EP)

No que corresponde aos restaurantes veganos analisados identificou-se um forte EP por parte de dois deles que se identificaram como anti-especistas, pois suas posições políticas ‘trasbordavam’ para outras pautas políticas, além do veganismo, estando estes, alinhados ao movimento anarquista de Porto Alegre. Como um deles comenta “[...] muitos coletivos veganos foram dominados pelo capitalismo (grandes indústrias vendendo produtos veganos, etc), nichos de mercado, como vem acontecendo com o feminismo e a

15 Geralmente atribuído pelos veganos aos que se consideram vegetarianos.

luta contra o racismo. O anti-especismo é uma forma de resistência à apropriação do capitalismo”. Porém, mesmo em termos de EP há mais um restaurante cujas as pautas se conectam às questões veganas, com intensa participação em campanhas em defesa dos animais, palestras, capacitações e militância/advocacy na causa animal, porém não se identificam como anti-especistas, mas sim como animalista (defensores dos animais). Tentam articular o debate sobre saúde, defesa ao meio ambiente e causa animal, mas a principal ‘porta’ de entrada com o consumidor é com relação à saúde. Segundo a dona do restaurante “[...] sempre tentamos abordar o tema animal por uma ótica positiva ... o consumidor ajudando os animais, sendo ‘fofinhos’, etc, e não acusatória”. Este último, do ponto de vista dos arranjos materiais (estética), é o que mais apresenta frases, cartazes, produtos, etc, fazendo referência à causa animal, em comparação aos outros, porém nada em relação aos outros movimentos sociais. Nota-se que este restaurante se associa mais a um abolicionismo pragmático, com fraca intersecção com as pautas humanas. De todo modo, os dois restaurantes anti-especistas também são bastante ‘temáticos’, porém não só à causa animal, na verdade é mais temático em relação às lutas sociais como reforma agrária, revolução, feminismo e anti-especismo, o que faz com que o CAP, com referência estética de pautas de outros movimentos alimentares, seja bem destacado. Estes dois restaurantes estariam mais próximos à filosofia conectada ao abolicionismo fundamentalista, porém com forte intersecção com as pautas humanas. Com relação ao CAP que corresponde ao engajamento político com outros movimentos alimentares, quatro deles apresentaram níveis medianos de engajamento, sendo dois deles os anti-especistas, um que costuma comprar todos os alimentos que utilizam em feiras da agricultura familiar, e um crudívoro que se articula, um pouco, com movimentos ambientalistas e ligados à nutrição. Em resumo, dos 10 restaurantes pesquisados 7 deles apresentam um ‘fraco’ EP. Os 3 que apresentam um maior EP, 2 deles são anti-especistas, e se conectam fortemente às lutas de outros movimentos sociais, e dizem ir além do veganismo. O terceiro com EP mais elevado, possui um forte engajamento às causas animais, porém não se interessa por outras pautas políticas humanas, como a luta pela reforma agrária, pelo feminismo, etc.

Reconexão Produção-Consumo (RPC)

Quanto aos CAPs que formam um Plenum de Práticas da RPC, apresentam um nível um pouco mais elevado quanto à capacidade de estabelecer novas ordens sociais, que os CAPs relativas ao EP. Porém, notou-se que a RPC possui alguns entraves em termos de arranjos materiais e organizacionais importantes, como a logística de compra direta dos agricultores, que é dificultada pela oferta de produtos (variedade e quantidade), e também pela capacidade de entrega e/ou recolhimento por parte dos restaurantes. 3 restaurantes têm forte vínculo com os agricultores, um deles é anti-especista, compra em torno 70% dos alimentos em feiras, os outros dois são Crudívoros, a qual possui um forte vínculo com um grupo em torno de 8 agricultores, com trocas intensas de conhecimento e visitas “As PANCs por exemplo, foi indicação minha [dona], que já havia introduzido na alimentação escolar (onde eu trabalhava como consultora, antes de abrir esse restaurante) ”. Estes dois restaurantes Crudívoros são os que possuem os CAPs mais consolidados quanto às ordens sociais que compõe à RPC. São veganos por ‘consequência’, seja pela demanda dos consumidores, ou mesmo pela dieta alimentar que defendem, que é muito próxima e facilmente adaptável ao universo vegano, algo que apontamos antes como sendo uma ideologia nutro-energética. Quanto aos CAPs sustentáveis, todos os restaurantes possuem alguma iniciativa, o que remete a um entendimento compartilhado de que o veganismo é sensível às questões ambientais, reduzindo o uso de sacolas plásticas, buscando tratar os resíduos orgânicos em um composteira, usar papel reciclável nas embalagens, como argumenta um deles “[...] O foco maior é no meio ambiente. As entregas dos hambúrgueres são feitas à noite, são entregues em uma caixa de papelão, com dados sobre o uso da embalagem – consumo de água, uso de grãos para produção animal, etc.” Em termos de produção própria, somente um dos restaurantes se destaca, utilizando mais ou menos 50% de toda a matéria prima oriunda de um sitio que possui, todos os outros não possuem espaço para produção (sitio, por exemplo). Notadamente é o restaurante com menor EP. 2 restaurantes em questão possuem um RPC muito baixo, sem conexão com a produção própria, compra da agricultura familiar, proximidade com fornecedores, etc. com um perfil bastante urbano e demonstrando pouco conhecimento sobre questões agrárias, agrícolas e ecológicas. Um deles se mostra muito preocupado com o faturamento do restaurante, mas apresenta um discurso pró-vegano “se estamos aqui pelo veganismo, não é possível não se falar em veganismo ... não temos só que falar, mas também ser ativista”,

sendo muito crítico aos outros restaurantes, porém, não relatou ações concentras que demonstra-se o seu EP mais elevado quanto ao veganismo. Nesse sentido, há uma certa desconexão entre as práticas e os arranjos materiais, estabelecendo ordens de valor pouco consolidadas quanto aos aspectos analisados. Um outro restaurante, com características étnico-saudáveis, ou seja, uma comida étnica com forte apelo à saudabilidade, também apresenta uma fraca RPC, com algumas poucas ações, quanto ao uso de embalagens recicláveis no delivery, e um discurso ambientalista que tenta transmitir aos seus clientes. Notem que estes dois casos em questão possuem arranjos materiais muito frágeis que consolidem os CAPs de forma a estabelecer novas ordens sociais que transbordem para outras práticas sociais, e assim contribua, inclusive para um aumento no EP, ou mesmo da SAN.

Segurança Alimentar e Nutricional (SAN)

Por fim, os CAPs que compõem um Plenum de Práticas em torno da SAN, apresentam as ordens sociais mais estáveis dentre as três. Os restaurantes, na sua maioria, buscam inserir alimentos orgânicos em seus cardápios, porém, muitos alegam dificuldade na logística e também os preços elevados, pois teriam que incorporar esses custos, o que poderia diminuir sua capacidade competitiva no mercado. Nenhum dos restaurantes entrevistados usa o termo literal ‘alimentos orgânicos’, como propagando de seus pratos, mesmo os que chegam a compor o seu cardápio com cerca de 90% dos alimentos orgânicos. 3 deles apresentavam um índice baixo, quando comparados aos outros, em torno de 20% do cardápio era composto por alimentos orgânicos. Porém, o que chama a atenção é que todos os restaurantes veganos entrevistados possuem uma forte tendência a incorporar cada vez mais alimentos orgânicos em seus menus, o que demostra um entendimento e um uma estrutura teleoafetiva muito focada nas questões relativas à saúde. Fato que se comprova quando se investiga o CAP ‘boicote aos alimentos ultraprocessados, transgênicos e com alto teor de sódio, açúcar, etc’, cujo alinhamento é o maior dentre todos os CAPs analisados na pesquisa. Ou seja, os restaurantes veganos parecem efetivamente compartilhar um entendimento mais geral sobre o debate da saudabilidade, sendo que os anti-especistas são os que demonstram menor preocupação quanto à saúde, como segue a argumentação de um deles “Não acho importante associar o veganismo à saúde, isso está encarecendo o veganismo, (produto

saudável, fit, etc) tornando o veganismo menos acessível à população”. Por exemplo, grande parte dos restaurantes não usam soja na composição de seus pratos, apenas 2, e ainda com ressalvas, o que é de se impressionar, tratando-se de uma dieta alimentar que até pouco tempo atrás era julgada por deixar de comer carne, e aumentar o consumo de soja, os quais, em alguma medida, se ‘potencializam’ no sistema alimentar contemporâneo, e são dois grandes ‘vilões’ do meio ambiente. Outro CAP importante para se discutir na SAN é o acesso, pois em geral tem-se a ideia de que comer uma dieta vegana é cara. Notamos que dos 10 restaurantes entrevistados 5 deles praticam preços acima ou muito próximos à R$ 30,00, os demais abaixo de R$ 25,00, sendo que em um deles o preço é livre, um anti-especistas, ou seja, paga-se o quanto quer e puder. Um outro custa R$ 18,90, o buffet livre. Ou seja, observa-se que o preço praticado pelos restaurantes está muito mais alicerçado na competição corrente do mercado em geral – inclusive, tendo em conta os restaurantes não veganos –, do que na tentativa de se consolidar em um nicho especifico de mercado elitizado. De todo modo, estes preços mais elevados também se baseiam no apelo à saúde e à estética, apresentação dos pratos, preparo, etc. Algo não muito diferente do que recorrente aparece no ambiente de restaurantes tradicionais. Isso implica dizer que os restaurantes veganos não são de difícil acesso, em razão dos preços, mas sim em razão da baixa oferta, e que o fato de não oferecer carne e/ou outros derivados de origem animal não é o que encarece os pratos, mas aspectos estéticos e os discursos médicos/nutricionais, especialmente dietas da moda ou alimentos ‘milagrosos’.

Síntese

Notou-se uma tendência de todos os restaurantes em uma busca pela saudabilidade, preocupados com a saúde, especialmente pela possibilidade de ofertar produtos orgânicos, mesmo com alguns entraves de logística, e também com questões ambientais, tentando minimizar o uso de sacolas, descartáveis, etc. De todo modo, o preço ainda parece parcialmente limitador quanto ao acesso, porém tais restaurantes apresentam preços competitivos com o mercado tradicional, diferenciando-se mais pelo estética e pela saúde do que pelo apelo moral e ético. Observou-se também que há uma sinergia entre os CAPs e as ordens sociais que ajudam a consolidar. Por exemplo, 4, dos 10 restaurantes, apresentam pouca estabilidade

em quase todos os CAPs, sendo estes os que apresentam as mais baixas solidez nas ordens sociais que se instituem a partir do EP, RPC e SAN. Os outros 6, pelo contrário, parecem potencializar esses CAPs, de tal forma que as ordens sociais em torno da EP, RPC e SAN parecem se fortalecer a se tornarem mais estáveis. Certamente há arranjos materiais e práticas específicas, que compartilham umas com as outras determinadas estruturas elementares que as constituem. Porém, são questões ainda em aberto para serem investigadas e exploradas em futuras agendas de pesquisa.

Conjunto arranjado de práticas que caracterizam a demanda alimentar vegana

Inicialmente cabe destacar algumas características mais gerais dos 374 consumidores entrevistados nos restaurantes veganos. Na média geral, de todos os entrevistados, 16,04%16 se consideraram veganos, sendo que 41,71% afirmaram não ter comido carne vermelha no último mês, e 38,77% no último ano. Notem que, possivelmente há um grande número de vegetarianos, ou seja, que consomem leite e ovos, mas que não comem carnes, especialmente vermelha. Isso pode ser comprovado ao considerarmos esse mesmo período, último mês e último ano, quando observamos os entrevistados que não consumiram ovos e leite, que foram de apenas 16,84% e 13,10%, respectivamente – muito próximo ao número que se considera vegano. Ademais, não conseguimos detalhar os entendimentos e as estruturas teleoafetivas que orientam essas práticas alimentares, devido aos limites do próprio survey. Outros métodos ainda serão aplicados para aprofundar essas questões, grupos focais e entrevistas individuais. O nível de instrução se mostrou bastante elevado entre o público que frequenta estes espaços, sendo que 39,57% possui pós-graduação e 28,34% graduação. Fato que se conecta a outros estudos que encontraram correlações fortes entre o consumo mais consciente (ex: produtos agroecológicos, e feiras da agricultura familiar) e o níveis educacionais mais elevados (SCHUBERT e SCHNEIDER, 2016; PORTILHO, 2009). No entanto, a renda, apesar de menos determinante que o nível de instrução, é um fator que se destaca nesse perfil. No geral, 28,34% possuem renda acima de 12 Salários Mínimos (S.M), 28,07% possuem de 4 a 8 S.M e 11,50% possuem de 2 a 4 S.M. Destaca-se que, em

16 Cabe destacar que um restaurante, animalista e que defende um abolicionismo pragmático, 35,56% dos frequentadores se identificaram como veganos.

um restaurante anti-especista 21,43% dos consumidores tem renda de 1 a 2 S.M. Ou seja, a renda é um fator importante, mas há espaços mais acessíveis que ofertam comida vegana, menos estetizada, mais eticizada, geralmente conectando outras pautas de contestação política à pauta de libertação animal. Em termos de escolha pelo restaurante vegano, em geral, as três opções mais escolhidas foram: 31,68% dos consumidores escolheram o restaurante em razão da qualidade da comida, 14,44% por aspectos morais e políticos e 10,43% pelo convite de outras pessoas. Observem que a qualidade da comida, na média geral, se sobressai como sendo o principal motivo de escolha dos consumidores pelos restaurantes, o que nos leva a hipótese de que a comida vegana, antes mesmo de assumir uma identidade política, deve ser uma comida de qualidade, ou seja, boa para comer, como argumenta Warde (2016, pg. 57), ao parafrasear Lévi-Strauss, “Lévi-Strauss is famous saying ‘food is good to think with’, but food may be equally good to eat”. Todavia, há diferenças entre os restaurantes. Nos 2 restaurantes anti-especistas os índices de escolhe sobre a qualidade da comida e os aspetos morais e políticos são bastante próximos, em um os valores são 30,95% para qualidade e 23,81% por aspetos morais e políticos, para o outro são 28,57% e 30%, respectivamente. Ou seja, nos restaurantes com pautas políticas mais amplas e contestatórios – os quais inclusive afirmam ir além do veganismo – tais questões são um fator relevante para a escolha dos consumidores, sem desconsiderar, como já destacado acima, o aspecto da qualidade. Para os 2 restaurantes Crudívoros os aspectos morais e políticos atingiram níveis baixíssimos, 2,38% para um restaurante e 9,52% para o outro, ou seja, os consumidores que optam por estes espaços o fazem com baixa referência às pautas políticas, tanto para animais não-humanos quanto para animais humanos. Por fim, de forma geral, aponta-se que os significados de ser vegano que mais se destacam, para os consumidores que frequentam esses espaços alimentares, são: 18,32% diz ser boicotar produtos de origem animal, 17,78% não maltratar animais, 16,58% afirmam ser não consumir carne e 12,70% estar engajado na defesa dos animais. As respostas se mesclam entre estar engajado politicamente de forma coletiva, defender os animais, mas mais marcada pelo engajamento político individual, boicotar, não consumir e não maltratar. Obviamente estas formas de engajamento se intercruzam entre ações individuais e coletivas, especialmente por meio das redes sociais. De todo modo, fica um questionamento com relação à ‘pressão’ política sobre o indivíduo em agir da forma mais politicamente correta possível, ao ingressar em uma dieta vegana. Não é incomum as

pessoas que possuem uma dieta carnista, por exemplo, julgarem as pessoas que possuem práticas veganas, apontando suas contradições e estabelecendo a elas parâmetros morais em diversas outras práticas sociais. ‘Como podes fazer isso, se és Vegano!’, são frases comuns. Do mesmo modo que procedemos ao analisar a oferta, dentro do fenômeno do consumo alimentar vegano, vamos agora examinar a demanda, por meio das mesmas instâncias empíricas, EP, RPC e SAN, porém com conjuntos arranjados de práticas (CAPs) mais direcionados aos consumidores.

Engajamento político (EP)

Essa dimensão de análise é que menos se destaca, quando comparada às outras duas, RPC e SAN. Porém, não deixa de ser elevada. Em geral os consumidores não estão engajados em movimentos sociais em torno da alimentação, pois esse CAP apresentou um índice de apenas 9,36%, sendo que o CAP de participação em grupos de alimentação em redes sociais o índice é de 44,12%. Isso demostra que as redes sociais é o principal espaço de envolvimento político, porém, ainda baixo, pois esse índice poderia ser bem maior, tendo em conta a quantidade de pessoas que acessam as redes socais17. Esse índice cai um pouco mais quando relacionada às questões veganas, em torno de 33,16% dos consumidores se envolvem com o CAP de participar das redes sociais relacionadas ao veganismo. Porém, esse dado não deixa de ser significativo, quando comparado à quantidade de consumidores que se identificaram como veganos, que foi de 16,04%, ou seja, há muita gente ‘curiosa’ pesquisando sobre o assunto, mas ainda não assumindo/praticando o veganismo. Quanto aos CAPs que envolvem um ativismo, um advocacy, mais direcionado às causas veganas, os índices tendem a baixar um pouco mais, porém, se mantém acima do índice das pessoas que se consideram veganas. O CAP de convencer as pessoas a se tornarem veganas apresentou um índice de 20,32%, no âmbito geral da pesquisa. Destaca- se que as pessoas que consomem em um dos restaurantes animalistas, e que defendem um abolicionismo mais pragmático, esse índice foi de 37,78%. Isso repercute no fato de que

17 https://exame.abril.com.br/negocios/dino/62-da-populacao-brasileira-esta-ativa-nas-redes-sociais/

35,56% dos frequentadores desse restaurante se consideram veganos, um índice bem acima da média de 16,04%, como destacamos anteriormente. Um último CAP pesquisado foi o de boicotar companhias que usam produtos de origem animal, ou testam seus produtos em animais. 13,64% dos entrevistados disseram sempre boicotar tais empresas, 35,56% o fazem de forma eventual, e 36,9% nunca fazem. A exceção ocorre no mesmo restaurante anteriormente destacado, animalista, cujo índice foi de 31,11% de pessoas afirmando sempre boicotar. Na média geral, observou-se um fraco engajamento político, especialmente relativo a um assunto bastante caro à literatura especializada no tema do ativismo alimentar (PORTILHO e MICHELETE, 2019; MICHELETE, 2003). Esse quadro mais geral resume que os consumidores destes restaurantes veganos pesquisados apresentam um baixo EP, porém, esses CAPs se manifestam de maneira um pouco distinta entre os espaços pesquisados, e, em geral, demonstram um potencial crescimento para os próximos anos, tendo em vista que, mesmo o índice de pessoas que se consideram veganas ser relativamente baixo, 16,04%, a frequência de pessoas engajadas politicamente, de diferentes formar e graus de intensidade, ainda é superior a esse índice, seja boicotando, praticando advocacy, ou mesmo participando de grupos e movimentos sociais, especialmente nas redes sociais.

Reconexão Produção-Consumo (RPC)

Essa dimensão de análise se destaca, quando comparada ao EP. Os CAPs que mais consolidam as ordens sociais em torno da RPC, em geral, é o cozinhar em casa e o comprar em feiras de agricultores, especialmente feiras orgânicas. 89,04% dos consumidores afirmam cozinhar em casa, porém somente 13,10% cozinham em casa diariamente, a maior frequência, 26,74%, cozinham 2-3 vezes por semana. Ou seja, o cozinhar ainda é uma prática, porém com baixa frequência diária. Tal fato se associa ao dado de que 30,48% dos entrevistados afirmam comer fora de casa todos os dias, ao menos uma refeição. Esse é um fenômeno, que se desprende de alguns CAPs que ainda devem ser melhor investigados em outras agendas de pesquisa. A outra prática que ajuda a consolidar as ordens sociais em torno da RPC é comprar em feiras de agricultores, especialmente orgânicos. 79,68% afirmam comprar em feiras de agricultores, sendo que 35,83% o fazem 1 a 2 vezes por semana. Essa informação se alinha ao hábito de comer alimentos orgânicos, que é um

destaque nas ordens morais que se consolidam em torno da SAN, como veremos em seguida. As CAPs que menos contribuem com a RPC, entre os consumidores, são: cultivar alimentos em casa, o qual 31,02% dos entrevistados afirmam praticar; e comprar diretamente de agricultores familiares, que 21,93% dos entrevistados afirmam fazer. Não são índices tão baixos, mas em comparação aos outros índices discutidos acima, são os que menos consolidados estão, no dia a dia dos consumidores pesquisados. Nesse quadro mais geral observa-se uma relativa estabilidade entre as ordens sociais que se manifestam a partir de um Plenum de Práticas que constitui a RPC. Os CAPs que se manifestam em cultivar o próprio alimento, cozinhar a própria comida, comprar de agricultores familiares e/ou diretamente deles, apresentam índices relativamente altos. Tendo em conta que as práticas do comer fora do ambiente doméstico tem aumentado muito nas últimas décadas (SCHUBERT, 2017), modificando as rotinas alimentares domésticas, e que a agricultura urbana ainda é um grande desafio para nossas cidades (SANTANDREU e LOVO, 2007), é de se considerar relevante que a RPC vem estabelecendo novas ordens sociais que se manifestam no fenômeno do consumo alimentar vegano.

Segurança Alimentar e Nutricional (SAN)

As ordens sociais que se instituem em torno da SAN, parecem ser as mais estáveis das três aqui analisadas. Há uma forte conexão entre o comer em restaurantes veganos e optar por consumir alimentos orgânicos. 89,57% dos entrevistados, na média geral, afirmaram consumir alimentos orgânicos, e 27,01% deles realizam esse consumo diariamente. Esse CAP se articula com o CAP destacado na RPC, comprar em feiras de agricultores familiares (79,86%), o que demostra uma certa potencialidade entre os dois CAPs. Tal fato não corrobora muito com o que os restaurantes até então vêm realizando, pois, os mesmos possuem grande dificuldades em comprar diretamente de agricultores, com exceção dos dois crudívoros que são abastecidos por 8 agricultores, além da dificuldade logística e de custos em aumentar sua oferta de produtos orgânicos. Caso haja um alinhamento melhor entre os CAPs dos restaurantes e os CAPs dos consumidores, nesse sentido, talvez a SAN e a RPC se potencializem sinérgica e positivamente, tanto pelo lado

da oferta quanto pelo lada da demanda, tornando o veganismo uma prática ainda mais alinhada e sensível às questões ambientais, de saúde e éticas. Outro CAP analisado foi a frequência com que os consumidores realizam atividades físicas. 85,22% afirmaram praticar exercícios físicos de forma regular, sendo que 44,12% realizam de 2 a 3 vezes por semana e 11,76% diariamente. Entre os que realizam apenas 1 vez por semana essa prática, o índice é bastante baixo, apenas 5,35%. Tais frequências demonstram que os consumidores de restaurantes veganos tendem a ter hábitos de vida mais saudáveis, sendo o exercício físico algo muito indicado pelos profissionais da área da saúde. Por fim, o último CAP analisado para a SAN foi a averiguar se os consumidores costumam comer fast-food, já que tal prática é considerado algo maléfico, na maioria das vezes, à saúde. 67,91% dos entrevistados, na média geral, afirmam não comer em fast- food, sendo que dos que dizem comer, 54% o faz a uma frequência inferior à duas vezes por mês. Ou seja, pode-se supor que, apesar de existente, o CAP de comer em restaurantes fast-food é algo pouco realizado por estes consumidores de restaurantes veganos, o que demonstra mais um hábito de vida saudável que contribui com as ordens sociais em torno da SAN.

Síntese

Há um potencial de EP quanto às CAPs dos consumidores que frequentam os restaurantes veganos. Pois, apesar de baixo os índices que compões os CAPs analisados para o EP, eles são mais elevados do que os índices de pessoas que se identificam como veganas, ou seja, há mais pessoas envolvidas politicamente com as causas em torno do veganismo, que ainda não se consideram veganas, mas com potencial para. Destaque aos consumidores que frequentam restaurantes considerados abolicionistas, seja o pragmático, se associando mais às causas animais somente, seja o fundamentalista, que amplia suas pautas a outras questões humanas (reforma agrária, anti-sexismo, anti-racismo). Os CAPs que compõem a RPC são bastante elevados, mesmo em um ambiente cada vez mais urbanizado, o que dificulta a prática agrícola de cultivar o próprio alimento, e frente a uma tendência cada vez maior de expansão das práticas de comer fora do ambiente doméstico. De todo modo, os consumidores mostram-se muito interessados e ativos em

comprar alimentos diretamente das feiras de agricultores familiares, especialmente produtos orgânicos. Quanto aos CAPs que compõem a SAN foram os que demostraram criar ordens sociais mais estáveis dentre os três, apontando para um alinhamento dos consumidores que frequentam restaurantes veganos a hábitos de vida mais saudáveis, tanto alimentares quanto de exercícios físicos, sendo que os frequentadores dos 2 restaurantes anti-especistas foram os que demostraram menos interesse, pois tendem a consumir menos alimentos orgânicos que os consumidores de outros restaurantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O veganismo se apresenta como um fenômeno social difuso culturalmente e com tendências de crescimento, influenciando a expansão comercial de restaurantes veganos, que, em parte, buscam alinhar suas práticas sociais a essas tendências, sob diferentes lógicas políticas, econômicas e culturais. Comparativamente aos restaurantes, os consumidores apresentaram um nível mais elevado de engajamento nos três conjuntos arranjados de práticas CAPs analisados (RPC, EP e SAN). Isto demonstra que eles buscam estabelecer novas ordens sociais em torno da alimentação a partir de suas práticas, e que os restaurantes veganos conseguem influenciar e dar sustentação às suas práticas. Os restaurantes anti-especistas não se preocupam muito com as questões de saúde, mas mais com as questões políticas, e se nota uma mesma tendência entre os seus consumidores que frequentam estes espaços. Os restaurantes Crudívoros, pouco se alinham às questões políticas, mas possuem uma grande preocupação com a saúde e a relação com os agricultores, sendo que os consumidores que frequentam esses espaços, em geral, se preocupam somente com a saúde. Um dos restaurantes que pratica o abolicionismo pragmático, possui um alto envolvimento com as causas animais, porém sem debater as causas humanas, isso reflete em um maior índice de veganos que frequentam esse espaço (35,65% se consideram veganos) e um alto índice de pessoas que praticam advocacy 37,78%), ou seja, tentam convencer outras pessoas a se tonarem veganas. Interessante comentar as diferenças entre os 3 restaurantes abolicionistas, 1 pragmático e 2 fundamentalistas. Ambos diferem quanto ao que se costuma ler na literatura corrente, em que os pragmáticos são mais ‘abertos’ a outras pautas sociais e os fundamentalistas mais ‘fechados’ a outras pautas sociais. O que notamos foi que o

pragmático, no caso investigado, dentro da lógica abolicionista, dá pouca atenção as pautas sociais humanas, o que gera, de certo modo, uma contradição entre aceitar o veganismo por todas as vias/modos e lutar por todas as vias/modos pelo veganismo. De todo modo, pela perspectiva dos animais não-humanos, é o que tem demonstrado maior EP dos consumidores. Os abolicionistas fundamentalistas estão muito mais abertos às outras pautas sociais, dizendo, inclusive, ir além do veganismo e se considerando anti-especistas, não aceitam o veganismo por todos as vias/modos, porém lutam pelo veganismo por todas as vias/modos. Estes, apresentam o maior EP entre os casos investigados, tanto entre os restaurantes quanto entre os consumidores. De forma geral as dietas que se apresentaram Climaterianas se concentraram em 4 restaurantes, sendo 2 com apelo estético bastante elevado, refletindo nos preços, e com baixo EP, tanto nas pautas dos animais humanos quanto dos animais não-humanos. Talvez, um dos limites da pesquisa não seja investigar um EP mais voltado ao ambientalismo, que contemple mais do que as pautas animais (humanas e não-humanas). Porém, ao que tudo indica, talvez não altere o EP, já que, pelo que notamos na pesquisa, os CAPs se potencializam, tanto que o RPC também é relativamente baixo nestes casos. Os aspectos da saúde se destacaram em quase todos os restaurantes, sendo menos pronunciados nos 2 restaurantes anti-especistas, o que demonstra uma alta SAN, tanto para os restaurantes quanto para os consumidores. Isso demonstra que os consumidores de restaurantes veganos, assim como os próprios restaurantes, conectam os CAPs da saudabilidade às práticas veganas, mesmo com aqueles com baixo EP e RPC. Por fim, nota-se que os restaurantes apresentam uma miríade de posições em torno do consumo alimentar vegano, uns mais focados em aspectos de saúde, outros no meio ambiente, outros na causa animalista e outros nas causas políticas mais amplas (animais humanos, ambientais, e animais não-humanas). Os consumidores tendem a seguir mais ou menos a lógica dos restaurantes, porém com uma diversidade ainda mais ampla de CAPs,, sendo que os aspectos de saúde mais se destacam (SAN) e os aspectos políticos, animalistas e humanos, tendem a crescer significativamente, já que há mais pessoas praticando advocacy, por exemplo, do que os que se consideram veganos. Ademais, os consumidores em geral tendem a priorizar a qualidade das comidas servidas, mais do que as putas políticas e de saúde. Tais informações e reflexões demostram que o debate sobre o veganismo vai muito além da carne, e que é ainda muito cedo para identificar pautas alimentares, no caso em questão veganas, que contribuiriam mais ou menos com as

mudanças climáticas. Porém é possível identificar que estão fortemente conectadas às questões de saúde, e relativamente – dependendo do restaurante – alinhas às causas éticas.

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