NEW CHRISTIAN DISCOURSE AND EARLY MODERN PORTUGUESE OCEANIC EXPANSION: THE CASES OF GARCIA D’ORTA, FERNÃO MENDES PINTO, AMBRÓSIO FERNANDES BRANDÃO AND PEDRO DE LEÓN PORTOCARRERO

Dissertation

Presented in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree of Doctor of Philosophy in the Graduate School of The Ohio State University

By

Gabriel Mordoch, B.A., M.A.

Graduate Program in Spanish and Portuguese

The Ohio State University

2017

Dissertation Committee:

Lúcia Helena Costigan, Advisor

Lisa Beth Voigt

Matt Goldish

Copyrighted by

Gabriel Mordoch

2017

Abstract

Despite the vast participation of New Christians (converts from Judaism or of

Jewish ancestry) in the process of early modern Iberian imperial expansion overseas, the research on this topic has been limited to a few studies, which are usually based on

Inquisitorial records, follow mainly historical approaches, and tend to depict stereotypical and sometimes romantic and essentialist images of New Christian travelers. With the goal of filling this gap, this dissertation studies literary texts written by Iberian New Christians in the context of the early modern Portuguese and Spanish oceanic expansion. The dissertation analyses Portuguese and Spanish texts written during the sixteenth and seventeenth centuries in (or about) different areas of the Iberian colonies like Portuguese

Asia, Northeastern Brazil and the Spanish Viceregal Peru. Besides minimizing (or problematizing) the Catholic dimension of Spanish and Portuguese imperial activity overseas, the works studied in the dissertation are unique because they show signs of a subjectivity that was uncommon in the landscape of the textual representations of the early modern Iberian empire expansion, such as the use of humor and possible allusions to Jewish and New Christian culture.

Chapter one focuses on the Colóquios dos simples e drogas da Índia (Goa, 1563), by the Portuguese New Christian physician Garcia d’Orta (c.1501-1568). This chapter

ii shows how the late discovery of inquisitorial records related to Garcia d’Orta’s family impacted the ways we currently read the once-marginalized but now-canonized

Colóquios. Chapter two deals with one of the most enigmatic and complex texts of the

Portuguese early modern expansion literature: Peregrinação (, 1614) by Fernão

Mendes Pinto (c.1510-1583). Since Mendes Pinto’s Jewish roots have yet to be proven, the chapter examines how the scholarship around Mendes Pinto’s text and persona has fostered or rejected the hypothesis of his New Christian status, and shows how the themes of justice, honor, and lineage in Peregrinação suggest a New Christian discourse.

Chapter three moves from the Indic to the Atlantic Ocean and studies the Diálogos das grandezas do Brasil (Paraíba?, c.1618), an anonymous text attributed to the Portuguese

New Christian sugar mill owner Ambrósio Fernandes Brandão (c. 1555-c.1618). The chapter highlights some passages from the Diálogos that bear witness to the religious instability that characterized part of ’s New Christian population, and suggests that Brandão sought to present Brazil in a positive light to New Christians by appealing to their fluid religious identity. Chapter four shifts to Viceregal Peru and investigates another anonymous work: the Descripción del Virreinato del Perú (? - c.1620) attributed to Pedro de León Portocarrero (c.1576-c.1620), a Spanish New Christian merchant of probable Portuguese origin. The chapter shows how Portocarrero opposes Spanish colonial rule not just by providing secret commercial and military information to Dutch authorities, but also by criticizing Spain's commercial, political and religious monopoly on subtle symbolic levels. I argue that all of these texts were written by authors whose probable lack of political and religious commitment to the official approaches and

iii discourses of Iberian overseas expansion allowed them to represent the colonization process in an alternative, non-triumphalist fashion.

iv

Dedicatória

Esse projeto é dedicado a Giselle, Daniela e Ariela

v

Agradecimentos

Agradeço à professora Lúcia Helena Costigan pela orientação entusiasmada e por confiar no meu potencial e me apoiar ao longo desta peregrinação acadêmica. Aos professores

Lisa Voigt e Matt Goldish por colaborarem para definir meu projeto de pesquisa e participarem no comitê de avaliação da tese. Aos professores Jonathan Burgoyne e Pedro

Schacht Pereira que, ao lado de Lúcia Helena Costigan e Lisa Voigt, serviram no comitê dos meus exames de qualificação. A todos os professores e professoras com quem tive a felicidade de interagir em sala de aula na Ohio State University: Joel Bloch, Jonathan

Burgoyne, Vicente Cantarino, Kathi Cennamo, Lúcia Helena Costigan, Elizabeth Davis,

Daniel Frank, Rebecca Haidt, Pedro Schacht Pereira, Laura Podalsky, Robert Robison,

Ana Del Sarto, Jane Smirniotopoulos, Maurice Stevens, Aurelie Vialette, Lisa Voigt. Aos bibliotecários José Díaz, Pamela Espinosa de los Monteros e Joseph (Yossi) Galron pela aquisição e disponibilização de material, e por me ensinarem muito sobre sua profissão.

Aos meus colegas de pós-graduação no Departamento de Espanhol e Português da Ohio

State University pelo intercâmbio de ideias e por me ajudarem a sentir-me em casa em pleno centro do estado de Ohio. Ao Melton Center for Jewish Studies at The Ohio State

University pelo generoso apoio financeiro. Finalmente, mas não menos importante,

vi agradeço a minha família por me acompanhar pacientemente ao longo desse trajeto por mares nunca dantes nevegados.

vii

Vita

2006 ...... B.A. Hebrew, Universidade de São Paulo

2011...... M.A. Jewish Languages and Literatures,

The Hebrew University of Jerusalem

2012 to present...... Graduate Teaching Associate, Department of

Spanish and Portuguese, The Ohio State

University

Publications

“Em busca de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo: limitações e implicações de uma

hipótese,” Romance Notes 57/2 (2017), 305-16.

“Um cristão-novo nos trópicos: expansão imperial e identidade religiosa nos Diálogos

das grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandão,” Colonial Latin

American Review, 25/2 (2016), 200-219.

“Uriel da Costa, o anjo torto lusitano,” Devarim, Revista da Associação Religiosa

Israelita do Rio de Janeiro, 13 (2010), 47-53.

viii

“A singularidade das línguas judaicas,” Devarim, Revista da Associação Religiosa

Israelita do Rio de Janeiro, 10 (2009), 33-37.

Fields of Study

Major Field: Spanish and Portuguese

Concentration: Studies of the Portuguese-Speaking World

ix

Índice

Abstract ...... ii

Dedicatória ...... v

Agradecimentos ...... vi

Vita ...... viii

Lista de Figuras ...... xii

Introdução: De propaganda fide e seus descontentes ...... 1

Capítulo 1: Um médico cristão-novo na Ásia Portuguesa: Garcia d’Orta e os Colóquios

dos Simples da Índia (Goa, 1563) ...... 17

Capítulo 2: Em busca de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo: implicações e limitações

de uma hipótese sobre o autor da Peregrinação (Lisboa, 1614) ...... 42

Capítulo 3: Um cristão-novo nos trópicos: Expansão imperial e identidade religiosa nos

Diálogos das grandezas do Brasil (Paraíba?, c.1618) atribuídos a Ambrósio Fernandes

Brandão ...... 77

Capítulo 4: Um cristão-novo entre Espanha e Holanda: Pedro de León Portocarrero e a

Descripción del Virreinato del Peru (?, c.1620) ...... 113 x

Conclusão ...... 145

Bibliografia ...... 150

Apêndice: figuras ...... 175

Figura 1. Mapa da cidade de Goa ...... 175

Figura 2. Frontispício dos Colóquios dos simples e drogas da Índia ...... 176

Figura 3. Tentativa de reconstituição das viagens de Fernão Mendes Pinto ...... 177

Figura 4. Frontispício da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ...... 178

Figura 5. Mapa do Brasil em 1618 ...... 179

Figura 6. Depoimento de Ambrósio Fernandes Brandão no processo inqusitorial contra

Bento Teixeira ...... 180

Figura 7. Fólio inicial dos Diálogos das grandezas do Brasil ...... 181

Figura 8. Capa da primeira edição completa dos Diálogos das grandezas do Brasil 181

Figura 9. Mapa da cidade de Lima em meados do século XVII ...... 182

Figura 10. Fólio inicial da Discricion general del Reyno del piru, em particular de Lima ... 183

xi

INTRODUÇÃO:

DE PROPAGANDA FIDE E SEUS DESCONTENTES

[...] enbiarme a mí, Cristoval Colón, a las dichas partidas de India para ver los dichos prínçipes y los pueblos y las tierras y la disposiçión d’ellas y de todo, y la manera que se pudiera tener para la conversión d’ellas a nuestra sancta fe [...] -Diario del Primer Viaje, Ed. Consuelo Varela, 15-16 [1492]

Mas o melhor fruto que nela [Brasil] se pode fazer, me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar. -Carta de Pero Vaz de Caminha, Ed. José Augusto Vaz Valente, f.13.v. [1500]

E vós, ó bem nascida segurança Da Lusitana antiga liberdade E não menos certíssima esperança De aumento da pequena Cristandade -Os Lusíadas, I-6 [1572]

As incursões marítimas lusitanas nas costas da África ocidental patrocinadas pelo infante

Dom Henrique (1394 – 1460), o príncipe navegador, culminaram com a abertura da rota

1 marítima para o Oriente, façanha realizada em 1488 pelo navegador português

Bartolomeu Dias (1451-1500). Por outro lado, em 1492 o almirante genovês Cristovão

Colombo (1451-1506) navegava em direção ao sol poente com a intenção de chegar ao

Oriente e, sem nunca vir a saber, “descobria” o continente americano. Passados alguns anos, em 1497, a expedição de Vasco da Gama (1460-1524) desembarcava na Índia. Em

1500 Pedro Álvares Cabral (1468-1520) chegaria acidentalmente às costas do Brasil, chamada naquele então de “Terra de Vera Cruz”. Uma vez que a produção de textos e documentos é uma das características fundamentais da prática expansionista (Blackmore xix), a ampliação radical dos horizontes europeus ocorrida no fim do século XV – chamada de “era dos descobrimentos” – não implicou somente em uma nova cartografia do mundo conhecido, mas também em uma profusão de novos relatos, crônicas, roteiros, descrições e outros tipos de modalidades textuais para informar e, sobretudo, dar significados à experiência da expansão. Esta intensa atividade textual esteve intimamente vinculada a uma prática discursiva chamada “De propaganda fide”, conforme nos ensina

Sonia Siqueira (26-37). Trata-se do conjunto de ideias que buscava dar um significado religioso às novas descobertas, de modo a entrelaçar a expansão ultramarina ibérica à propagação da fé católica e à atividade de evangelização nos novos territórios

“descobertos” e conquistados pelos espanhóis e portugueses.

Algumas bulas papais, como a Romanus Pontifex, emitida por Nicolau V em

1454, já ratificavam o discurso de dilatação da fé e do império antes mesma da abertura da rota marítima para o Oriente e da chegada de europeus à América. Essa tendência discursiva vai acompanhar toda a história da expansão marítima ibérica. Tal discurso –

2 que já aparece com as primeiras explorações da costa africana no século XV, narradas nos textos do cronista oficial Gomes Eanes de Zurara (c. 1410–1474) – ficou simbolizado na Cruz de Malta bordada nas velas das embarcações do tempo do infante Dom

Henrique. De certa maneira, o discurso da de propaganda fide projetava no contexto do além-mar uma continuação da narrativa da Reconquista, isto é, a cristianização de toda a

Península Ibérica. Esta nova conquista obviamente não dizia mais respeito ao combate contra mouros na própria Península, mas à evangelização de povos pagãos – alguns deles sem fé, lei e rei, segundo a retórica ibero-cristã – na Ásia e no Novo Mundo. No século

XVII o jesuita António Vieira (1608-1697) talvez seja o melhor exemplo de uma voz que afirmou o fundamento religioso da expansão lusitana e o papel e destinação divina de

Portugal enquanto “nação universalizadora da cristandade” (Hansen, Introdução 68).1

Apesar de ser um discurso dominante, a ideia da de propaganda fide católica exemplificada nos escritos de António Vieira, no diário de Cristovão Colombo, na carta de Pero Vaz de Caminha, e mesmo em Os Lusíadas de Luís de Camões (1524-1580) – citados na epígrafe desta introdução – certamente não se alastrou de modo uniforme, ou com a coerência cartesiana do nosso tempo. Colombo por exemplo enfatiza diversas vezes a suposta missão evangelizadora de sua viagem mas, por outro lado, praticamente nunca alude à literatura neotestamentária.2 Não obstante, o almirante genovês alude à

1 Naturalmente, a propaganda fide não se limitou a textos, mas também ganhou expressão através de festividades e espetáculos públicos (ver Lisa Voigt Spectacular Wealth). 2 O caráter evangelizador do diário de Colombo aparece por exemplo no seguinte trecho: “‘Tengo por dicho, Sereníssimos Prínçipes’, dize aquí el Almirante, ‘que sabiendo la lengua dispuesta suya personas devotas religiosas, que luego todos se tornarían cristianos, y así espero en Nuestro Señor que Vuestras Altezas se determinarán a ello con mucha diligençia para tornar a la Iglesia tan grandes pueblos” (martes, 6 de noviembre [de 1492], página 54, Ed. Consuelo Varela). As palavras “dize aqui el Almirante”, são do padre dominicano Bartolomé de Las Casas (1484-1566), responsável pela compilação do diário. 3 bíblia hebraica – de modo deveras ambíguo – quando, em 23 de setembro de 1492, a frota colombina enfrenta um assombro vendaval: “Así que muy neçessario me fue la mar alta, que no pareçió salvo el tiempo de los judíos cuando salieron de Egipto contra Moisén, que los sacava del captiverio” (24). Lembrando que a frota de Colombo zarpou das costas da Andaluzia em 3 de agosto de 1492 – ou seja, aproximadamente no mesmo dia em que passava a vigorar o Édito de expulsão dos judeus e muçulmanos da Espanha – e que parte dos marinheiros da frota de Colombo era de origem judaica, Consuelo Varela se perguntou: “¿Se identifica aquí Colón con Moisés? (24, nota 22). Em outras palavras, é possível supor que Colombo aludia de forma sutil a uma dimensão alternativa da expansão imperial, isto é, a abertura de novos espaços para as vítimas das políticas de homogeneização religiosa praticadas pelos monarcas espanhóis.3 Será difícil estabelecer com precisão se Colombo buscava de fato estabelecer esta sutil alusão. De todo modo, conforme observado pelo célebre historiador britânico Cecil Roth (1899-1970), “The connection between Jews and the discovery of America was not, however, merely a question of fortuitos coinceidence. The epoch-making expedition of 1492 was as a matter of fact very largely a Jewish, or rather a Marrano enterprise. There are grounds for believeing that Columbus was himself a member of a New Christian family” (271).4

3 Para um contextualização histórica dos eventos que culminaram com a expulsão/conversão dos judeus da Espanha (1492) e Portugal (1497) ver David Raphael (1992). Alguns dos relatos contemporâneos mais famosos de autores que pertenceram às primeiras gerações de judeus e cristãos-novos exilados de Portugal e Espanha na esteira do édito de expulsão e das conversões forçadas são La Vara de Judah (1550), de Solomon Ibn Verga, e a Consolação às tribulações de Israel (1553), de Samuel Usque. Para uma leitura pós-colonial da obra de Ibn Verga ver David A.Wacks (2015). 4 O termo “marrano” tem uma origem obscura e servia como insulto contra cristãos-novos acusados de praticar judaísmo clandestinamente, ou como forma derrogatória para se referir a cristãos-novos de modo geral. Ver Arturo Farinelli (1925) e Yakov Malkiel (1948). Nos tempos modernos o termo é às vezes usado de forma neutra, como o fazem Cecil Roth e outros. Além de terem sido chamados de “marranos”, os judeus ibéricos convertidos ao catolicismo e seus descendentes também ficaram conhecidos como 4

Deixando Colombo de lado por um momento, e pensando agora em Vasco da Gama, também é curioso notar que a expedição desse insigne navegante tenha zarpado de Lisboa em 1497, ou seja, no mesmo ano em que os judeus portugueses foram convertidos em massa ao catolicismo devido ao decreto de expulsão promulgado pelo rei Manuel I em

1496. Desse modo, é possível dizer que se uma porta se fechava, outras se abriam.

Independentemente de propósitos oficiais evangelizadores e mercantis, ou das raízes religiosas dos navegadores, é possível dizer que após as viagens de Colombo e Vasco da

Gama, o além-mar passou a ser um espaço relativamente atrativo para os judeus ibéricos convertidos ao catolicismo, e seus descendentes, pois representava um local relativamente afastado dos centros de poder e dos mecanismos de exclusão estabelecidos pelas monarquias ibero-católicas.5

A fortuna crítica sobre os cristãos-novos ibéricos é vastíssima e jamais poderia ser revisada de forma extensiva no curto espaço desta introdução. Yosef Kaplan argumentou que a pesquisa histórica acerca dos cristãos-novos e conversos realizada entre as décadas de 1950 e 1980 pode ser dividida em dois grandes ramos: historiografia judaica e

“cristãos-novos” (ou “conversos”). Cito a definição de Nathan Wachtel para “cristãos-novos”: “Neophytes, originally Jewish and for the most part having undergone forced conversion. The term also applies to their descendants. This is in contradistinction to Old Christians, who did not number converts (conversos) or descendants of converts in their ancestry” (286). Adicionalmente, os cristãos-novos ibéricos também foram chamados de “homens da nação” (ou, alternativamente, de “homens-de-negócios”). Neste caso, o termo “nação” desempenhou um papel ambíguo, pois conotava tanto “nação portuguesa” quanto “nação hebraica”. Ver Yosef Hayim Yerushalmi (From Spanish Court 12-21), Daviken Studnicki-Gizbert (9-13) e Miriam Bodian (“Men of the Nation”). Sobre o estatuto cristão-novo de Cristovão Colombo ver nota número 5 a seguir. 5 No romance histórico El Arpa y la sombra (1979), Alejo Carpentier dá um tratamento literário magistral à hipótese da origem judaica de Cristovão Colombo. Sobre a suposta origem judaica de Colombo ver também Meyer Kayserling (1893), Manuel Serrano y Sanz (1918), Simon Wiesenthal (1973), Djelal Kadir (1992, 156) e o panfleto Jews and the Encounter with the New World 1492/1992 (sem autor, [1992]). Sobre a participação de conversos da frota de Pedro Álvares Cabral ver Elias Lipiner (Gaspar da Gama, um converso na frota de Cabral). 5 historiografia ibérica (Be’ayat ha-anusim [1987]). Além do já mencionado Cecil Roth,

Kaplan incluiu no ramo da historiografia judaica os historiadores Yitzhak Baer (1888-

1980), Haim Beinart (1917-2010), Israël Salvator Révah (1917-1973), Gérard Nahon

(1931-), Marcel Bataillon (1895-1977), Samuel Schwarz (1880-1953), Albert A. Sicroff

(1918-2013), Benzion Netanyahu (1910-2012), Yosef Hayim Yerushalmi (1932-2009),

Richard H. Popkin (1923-2005), Jonathan Israel (1946-), Daniel M. Swetschinski, Henry

Méchoulan, Herman Prins Salomon (1935-), Elias Lipiner (1916-1998), Anita Novinsky

(1922-) e Arnold Wiznitzer (devemos acrescentar Stephen Gilman [1917-1986], que não

é mencionado por Kaplan). O campo da historiografia ibérica por sua vez ficou marcado pelos estudos de Américo Castro (1885-1972), Amílcar Paulo (aliás Levi Ben-Har, 1929-

1983), António José Saraiva (1917-1993), António Domínguez Ortiz (1909-2003), Julio

Caro Baroja (1914-1995), Claudio Sánchez-Albornoz (1893-1984) e Francisco Cantera

Burgos (1901-1978), entre outros nomes menos expressivos.6 Em um estudo bibliográfico mais recente, o pesquisador português José Alberto Rodrigues da Silva

Tavim (2014) ofereceu um panorama da pesquisa sobre os cristãos-novos e a cultura

6 Yosef Kaplan argumentou que a historiografia judaica preferiu estudar os cristãos-novos que praticaram judaísmo clandestinamente, enquanto a historiografia ibérica priorizou os cristãos-novos que se assimilaram às sociedades ibéro-católicas (140). Kaplan também observou que a preocupação da historiografia ibérica com a história e literatura judaicas tendeu a limitar-se ao período pré- expulsão/conversão (anterior a 1492/1497), e priorizar sobretudo a chamada “época de ouro” da poesia hebraico-espanhola. Ainda segundo Kaplan, apesar do divórcio entre as duas escolas historiográficas, a historiografia judaica geralmente esteve mais familiarizada com o horizonte histórico ibérico do que a historiografia ibérica esteve familiarizada com o horizonte histórico judaico (141). Kaplan também afirmou que a historiografia judaica, muito mais do que a historiografia ibérica, se ocupou em estudar as populações cristã-novas que habitaram fora dos limites físicos da Península Ibérica, cujos membros eventualmente passaram a praticar o judaísmo abertamente em espaços onde havia relativa tolerância religiosa (o melhor exemplo é a comunidade judaica hispano-portuguesa de Amsterdã). Naturalmente, Kaplan conclui que a combinação do conhecimento veiculado pelas duas vertentes historiográficas é fundamental para o desenvolvimento de uma noção mais ampla e completa da história, cultura e criação literária dos cristãos- novos/conversos. 6 luso-judaica em Portugal. Assim como Kaplan, Tavim não visou somente enumerar as principais pesquisas sobre o judaísmo luso-ibérico, mas refletir criticamente sobre a natureza dos estudos judaicos realizados em sua terra natal. Apesar de limitado geograficamente às fronteiras de Portugal, o estudo de Tavim é mais extenso no eixo cronológico, e também mais detalhado. Além de analisar a pesquisa de alguns historiadores supracitados, seu ensaio também teceu considerações sobre os trabalhos de

Alexandre Herculano (1810-1877) – especialista na história da Inquisição em Portugal,

João Lúcio de Azevedo (1855-1933) – autor de uma História dos Cristãos-Novos

Portugueses (1921), Joaquim Mendes dos Remédios (1867-1932) – autor de Os Judeus

Portugueses em Amesterdão (1911), Samuel Schwarz (1880-1953) – famoso por seu estudo Os cristãos-novos em Portugal no seculo XX (1925), Artur Carlos de Barros Basto

(1887-1961, fundador da moderna comunidade judaica do Porto) e o prolífico Moisés

Bensabat Amzalak (1892-1978). Tavim também mencionou alguns dos representantes da mais recente geração de investigadores portugueses, como António Borges Coelho,

Elvira Cunha de Azevedo Mea, Inácio Steinhardt e Maria José Ferro Tavares.7 É provável que os estudos sobre cristãos-novos conduzidos a partir da década de 1990 nas Américas,

Europa e Israel tenham diminuído a distância entre as escolas historiográficas judaica e

7 Tavim argumentou que um dos aspectos mais interessantes das pesquisas de Azevedo Mea sobre os cristão-novos “is her resolve to prove that these [New Christians] were not mere “victims”, having instead developed concerted strategies to render unfeasible some of the Tribunal’s policies” (89). Devemos notar que o poder de agência de cristãos-novos também se exemplificou – entre outras instâncias – na negociação do perdão geral de 1605 (ver Claude B. Stuczynski 2007). Tavim também argumentou que a estagnação dos estudos judaicos em Portugal resulta, entre outros motivos, do “divorce of those who inserted themselves in the erudite culture, such as History teachers in University, from the so-called popular culture” (86). Por esse e outros motivos, como a reduzida demografia judaica em Portugal, Tavim concluiu que os Estudos Judaicos em Portugal resultaram majoritariamente de iniciativas individuais, sem nunca chegarem a constituir “an institutionalized scientific area, in contrast with what happened in other countries” (90). 7 ibérica. Ao mesmo tempo, esses estudos aumentaram o escopo de perspectivas sobre o fenômeno cristão-novo, incluindo-se abordagens econômicas, migratórias, religiosas, nacionais e literárias. Também é preciso notar que os estudos mais recentes sobre os cristãos-novos vem se afastando das tendências romantizantes e dogmáticas das gerações anteriores, segundo as quais a maioria dos cristãos-novos, independente da época e contexto e circunstâncias particulares, eram judaizantes.8 Além dos já mencionados

Yosef Kaplan e José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, outros pesquisadores da temática cristã-nova no primórdios da era moderna destacados atualmente são: Miriam Bodian,

Harm den Boer, Lúcia Helena Costigan, Nachman Falbel, Bruno Feitler, David Gitlitz,

Matt Goldish, José António Gonsalves de Mello, David Graizbord, Colbert I.

Nepaulsingh, David Nirenberg, Ronnie Perelis, Jonathan Schorsch, Stuart B. Schwartz,

Daviken Studnicki-Gizbert, Claude B. Stuczynski, Eva Alexandra Uchmany, Ronaldo

Vainfas, Nathan Wachtel, David Wacks, Carsten Lorenz Wilke e Yirmiyahu Yovel, entre muitos outros. Esta tese dialoga com parte dos pesquisadores e pesquisadoras supramencionados, e busca contribuir para o campo de estudo dos cristãos-novos precisamente através da sua inserção no contexto da representação literária da expansão ultramarina ibérica.

8 Nas palavras de Elias Lipiner, “judaizantes” eram aqueles cristãos-novos “cuja conversão era fingida e que às ocultas conservavam a lei de Moisés para distinguí-los dos outros que sincera e conscientemente adotaram para sempre o cristianismo” (Santa Inquisição: Terror e linguagem, 93). O termo não inclui somente os judeus que vivenciaram a conversão forçada ao cristianismo em Portugal em 1496-7 (ou na Espanha durante os séculos XIV e XV), mas também os seus descendentes. Convém lembrar que o judaísmo praticado pelos judaizantes, por questões óbvias como a falta de estrutura logística e o caráter clandestino de sua religiosidade, diferiam muito do judaísmo normativo. Para um compêndio detalhado dos costumes religiosos criptojudaicos(/judaizantes) ver David Gitlitz (97-586). 8

É preciso observar que a pesquisa historiografica sobre a intersecção entre a cultura sefaradita (isto é, judaico-ibérica) e a expansão marítima luso-espanhola priorizou textos escritos desde uma perspectiva explicitamente judaica. Os estudos sobre Yoseph

HaKohen (1496-1575) – autor da versão hebraica da Historia General de las

Indias (1552) de Francisco López de Gómara – ou sobre o clássico Esperança de Israel

(1650), de Menasseh Ben Israel (1604-1657), exemplificam o interesse da crítica sobre a visão judaica do Novo Mundo.9 Não obstante, a perspectiva sobre a expansão imperial ibérica através da ótica de sujeitos cristãos-novos que, diferentemente de Yoseph

HaKohen ou Menasseh ben Israel, não faziam parte do judaísmo normativo, permanece sendo – salvo exceções – um tópico aparentemente pouco estudado.10 Os poucos estudos que se dedicaram a investigar a visão dos cristãos-novos em relação à expansão imperial ibérica geralmente se concentraram em apenas uma região geográfica e se basearam sobretudo em documentação inquisitorial, isto é, documentação produzida em um contexto institucional extremamente arbitrário.11

O presente projeto de pesquisa nasceu precisamente da minha curiosidade e interesse sobre a expressão literária de cristãos-novos ibéricos no que diz respeito ao

9 Sobre Yosef HaKohen ver Assaf Ashkenazi (2011) e Limor Mintz-Manor (110-160). Em Esperança de Israel, Menasseh Ben Israel apresenta o relato do encontro entre o cristão-novo Antônio de Montezinos (aliás Aaron Levi) e índios andinos supostamente descendentes da tribo perdida de Reuben (ver Ronnie Perelis, ‘These Indians Are Jews’). Com exceção deste artigo de Ronnie Perelis e de algumas passagens do livro de José Gonçalves Salvador (1976), não conheço outros estudos que hajam investigado as possíveis conexões retóricas e discursivas entre a teoria da origem israelita dos índios e a presença de cristãos-novos nas Américas. 10 Ver por exemplo a pesquisa de Lúcia Costigan (2010) sobre a Prosopopéia (c.1601) de Bento Teixeira, discutida no capítulo 3 desta tese, bem como seu estudo sobre Ambrósio Fernandes Brandão, discutido também no terceiro capítulo da tese. 11 Sobre a questão da fidelidade histórica dos documentos produzidos pelo Santo Ofício da Inquisição, ver o debate entre António José Saraiva e Israël Salvator Révah resumido na nota n. 79 desta tese. 9 processo de expansão ultramarina de Portugal e Espanha ocorrido nos século XVI e

XVII. Intrigava-me saber em que medida e de que maneira descendentes de judeus ibéricos que escreveram no contexto da expansão ultramarina ibérica se desviaram do (ou se adaptaram ao) discurso oficial da dilatação da fé e do império. Os textos estudados ao longo desta tese representam exemplos de obras escritas durante os séculos XVI e XVII por sujeitos portugueses de origem judaica que participaram de forma significativa na expansão ultramarina ibérica.12 A tese busca mostrar que – de diferentes formas e em diferentes contextos de criação – os textos escritos por Garcia d’Orta (c.1501-1568),

Fernão Mendes Pinto (c.1510-1583), Ambrósio Fernandes Brandão (c. 1555-c.1618) e

Pedro de León Portocarrero (c.1576-c.1620) se desviam da ideia de dilatação da fé e do império que caracterizou o discurso oficial luso-espanhol da expansão ultramarina. Meu argumento central sugere que a aparente falta de compromisso formal com os aparatos religiosos, políticos e/ou econômicos oficiais do império possibilitou que os autores estudados ao longo desta tese criassem obras que representavam a atividade imperial de um modo alternativo e singular. Além de minimizar (ou problematizar) a dimensão católica da empresa imperial, esses textos se diferenciam no panorama discursivo da expansão ibérica por trazerem à tona uma subjetividade incomum para os textos criados no contexto imperial ultramarino ibérico. Essa subjetividade incomum eventualmente dá espaço para que os autores façam uso de humor e irreverência e, às vezes, permite mesmo que os autores em questão aludam à cultura judaica e/ou cristã-nova (uma cultura

12 A origem judaica de Fernão Mendes Pinto é todavia uma hipótese, conforme demonstrado no capítulo 2 desta tese. 10 marginalizada no contexto da política de homogeneização religiosa promovida pelos monarcas luso-espanhóis). Ao contrário da hipótese central de Yirmiyahu Yovel em The

Other Within: The Marranos: Split Identity and Emerging Modernity (2009), não afirmo que a subjetividade que emerge nos textos analisados ao longo deste tese seja resultado direto ou exclusivo da identidade religiosa flutuante dos cristãos-novos (também chamados, como vimos, de “marranos”). É verdade que os cristãos-novos, conforme observou Studnicki-Gizbert, “confronted the internal tensions occasioned by the mixing of Jewish and Christian cultures, as well as the external tension of living Jewish or mixed

Jewish-Catholic lives in societies whose religious and political institutions defended orthodox Catholicism” (10-11). Meu argumento entretanto se desvia da tese de

Yirmiyahu Yovel, pois leva em consideração não somente fatores religiosos, mas também institucionais, econômicos e políticos. Minha tese sugere que o posicionamento social marginal e simultaneamente central dos cristãos-novos foi tão significativo para a formação de uma representação alternativa do processo de expansão ultramarina ibérica quanto as famosas tensões religiosas ocasionadas pela mescla das culturas judaica e cristã experimentadas pelos descendentes de conversos.13

Esta tese se concentra em textos literários sobre a Ásia Portuguesa, o nordeste do

Brasil e o vice-reinado do Peru escritos entre a segunda metade do século XVI e as primeiras décadas do século XVII. A tese não inclui, portanto, textos produzidos por cristãos-novos no contexto das viagens de Cristovão Colombo, Vasco da Gama e Pedro

13 Sobre os problemas da tese de Yirmiyahu Yovel ver a resenha de The Other Within por David Nirenberg (2009). 11

Álvares Cabral, ou outros textos escritos no contexto do primeiro “ciclo de descobrimentos”. Desse modo, os textos analisados ao longo desta tese não se situam diretamente no contexto das conversões e expulsões ocorridas em Portugal e Espanha no fim do século XV – mas no contexto da instalação do Santo Ofício da Inquisição em terras lusitanas na década de 1530, bem como no contexto da anexação de Portugal pela

Espanha em 1580. Como veremos ao longo da tese, esses dois eventos motivaram muitos cristãos-novos a buscarem espaços afastados da atmosfera de vigilância, perseguição, discriminação e angústia vivenciadas na Península.

O primeiro capítulo da tese investiga a vida e a obra de Garcia d’Orta (c.1501-

1568), médico português formado nas universidades de Salamanca e Alcalá de Henares.

Sabemos que centenas de médicos de origem judaica foram julgados e condenados pelas

Inquisições ibéricas, e que muitos deles escaparam da Península por medo de serem investigados pela temida instituição (Ruderman 290). Conforme sugerido nesse capítulo,

é possível inferir que a instalação de tribunais da Inquisição em Portugal – ocorrida na década de 1530 durante o reinado de João III (1502-1557, reinou entre 1521-1557) – influenciou a partida de Garcia d’Orta para o Oriente em 1534. D’Orta é o autor dos

Colóquios dos simples e drogas da Índia (Goa, 1563), obra escrita em forma de diálogo entre dois personagens semi-ficcionais. Os Colóquios de D’Orta se concentram na discussão das ervas medicinais e frutas da Índia mas, como veremos, não se limitam a esses tópicos. O objetivo do capítulo é mostrar de que maneira a identidade cristã-nova de D’Orta – revelada tão somente na década de 1930 através da descoberta de documentos inquisitorias sobre sua família – se expressa ao longo de seu texto.

12

O segundo capítulo da tese permanece na Ásia Portuguesa, mas se dedica a analisar um texto completamente diferente dos Colóquios de D’Orta. O objeto de estudo deste capítulo é a famosa Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1510-1583), obra publicada postumamente em Lisboa em 1614 e considerada a “outra face” de Os

Lusíadas (1572) de Luís de Camões devido a seu caráter patético e anti-triunfalista.

Mendes Pinto misturou fato, ficção, fantasia, sátira e outros elementos para contar com riqueza de detalhes e exageração barroca sua “peregrinação” de duas décadas (1537-

1558) pela Índia, China, Japão e outras áreas do Oriente. Devido à falta de informação biográfica concreta sobre Fernão Mendes Pinto, seu estatuto de cristão-novo não foi todavia confirmado (ou refutado) documentalmente. A primeira parte do capítulo discute precisamente a formação de um discurso acadêmico que apoiou a hipótese da origem judaica do autor da Peregrinação. A segunda parte do capítulo analisa passagens da

Peregrinação que sugerem um discurso alternativo em relação aos temas de honra, linhagem e justiça, demonstrando que tal caracaterística do texto de Mendes Pinto o aproxima de um discurso veiculado em textos escritos por cristãos-novos.

O terceiro capítulo se insere no contexto da anexação do trono português por

Felipe II de Espanha em 1580, e acompanha a mudança de direção, do Oriente para a

América, dos esforços ultramarinos lusitanos.14 A anexação do trono de Portugal pelo monarca espanhol desestabilizou ainda mais a situação de alguns cristãos-novos portugueses, pois veio acompanhada do incremento das atividades do Santo Ofício da

14 Sobre a mudança do foco da atividade ultramarina lusitana – do Oceano Índico para o Atlântico – no contexto da União Ibérica, ver a pesquisa de Andréa Doré (2014). 13

Inquisição em Portugal (Israel, Buenos Aires, Tucumán 315). Provocou-se assim um novo

“êxodo” de cristãos-novos portugueses, tanto para a própria Espanha, onde a atividade inquisitorial havia declinado (Yerushalmi, From Spanish Court 8-9), como para outros territórios.15 Não obstante, o impacto da União Ibérica (1580-1640, período em que o trono português foi ocupado pelos Felipes da Espanha) sobre a situação dos cristãos- novos portugueses não foi todavia devidamente investigado.16 Este capítulo se dedica ao estudo dos Diálogos das grandezas do Brasil (c.1618), atribuídos ao cristão-novo português Ambrósio Fernandes Brandão (c. 1555-c.1618). O capítulo situa a obra atribuída a Brandão no contexto do advento da União Ibérica (1580-1640), da migração de cristãos-novos para o nordeste do Brasil e das visitas do Santo Ofício da Inquisição

àquela região. Além de tecer considerações sobre o impacto dos Colóquios de D’Orta nos

Diálogos de Brandão, o capítulo analisa em detalhe algumas passagens do texto de

Brandão que sugerem uma instabilidade religiosa característica de parte da população cristã-nova ibérica.

O quarto capítulo da tese se inscreve no contexto do trânsito de portugueses – muitos deles cristãos-novos – rumo aos domínios ultramarinos espanhóis deflagrado com o advento da União Ibérica em 1580. O objeto de estudo do capítulo é um texto sobre o vice-reinado do Peru intitulado Descripción del Virreinato del Perú. Escrito

15 Ao assumir o trono português em 1580, Felipe II também passou a ser conhecido como Felipe I de Portugal, pois foi o primeiro rei português com este nome. Do mesmo modo, Felipe III da Espanha ficou conhecido como Felipe II de Portugal, assim como Felipe IV da Espanha ficou conhecido como Felipe III de Portugal. Ao longo da minha pesquisa designarei os Felipes de acordo com a numeração espanhola. 16 Geoffrey Parker (2014) destacou a identidade católica de Felipe II na mais recente bibliografia sobre este famoso monarca espanhol. Contudo, Parker não revela praticamente nada sobre a política de Felipe II em relação aos seus súditos cristãos-novos portugueses. 14 anonimamente ao redor de 1620, este texto é atribuído ao cristão-novo de provavel origem portuguesa Pedro de León Portocarrero (c.1576-1620?). Diferentemente de

Brandão (e de D’Orta), Portocarrero não escreveu em forma de diálogo, mas elegeu uma modalidade de relato (supostamente) objetiva e impessoal. Não obstante, há muito em comum entre os textos de Brandão e Portocarrero, ambos escritos anonimamente na segunda década do século XVII por homens-de-negócios cristão-novos portugueses que habitaram nas Américas. A ausência de motivos católicos é somente um dos denominadores comuns entre os Diálogos e a Descripción. A crítica à administração e corrupção na colônia, assim como a admiração pela exuberância da natureza americana, também são elementos em comum. Ambos os textos insinuam a identidade religiosa de seus autores por meio de alusões ambivalentes à cultura judaica e hebraica. Este capítulo busca mostrar que a Descripción de Portocarrero representa uma voz radicalmente dissidente da narrativa oficial ibérica; tanto o texto quanto seu contexto de criação permitem sugerir que esta dissidência se expressa – entre outros modos – através de uma perspectiva pró-holandesa para abordar o Peru colonial.

Esta tese acompanha portanto os portugueses em suas navegações e errâncias por três diferentes oceanos, Índico, Atlântico e Pacífico. Ao mesmo tempo, reúnem-se aqui fontes primárias cujos pontos de contato entre si, sutis porém sólidos, permitem que agrupemos textos nunca antes pensados como parte de um mesmo conjunto. Apesar de não se tratarem de textos propriamente autobiográficos, nem de autores cuja identidade judaica é cristalina, o estudo dos textos de Garcia d’Orta, Fernão Mendes Pinto,

Ambrósio Fernandes Brandão e Pedro de León Portocarrero de certa forma contribui para

15 preencher um espaço vazio resultante da falta de textos autobiográficos escritos por judeus sefaraditas durante os séculos XVI e XVII.17 Este projeto também cria a oportunidade de cruzar informações entre documentos inquisitoriais e textos literários, de modo a contribuir de forma original para a inesgotável discussão acerca da identidade religiosa flutuante dos cristãos-novos portugueses. Por fim, esta tese contribui para preencher a lacuna da presença de autores cristãos-novos na composição do cânone literário colonial ibero-indo-americano.

17 Matt Goldish notou que a autobiografia do cristão-novo portuense Uriel da Costa (1584-1640) – Exemplar humanae vitae (1687), traduzido ao português como Exemplo da Vida Humana – “is one of the very few pre-modern Jewish autobiographies we possess” (1). Trabalhos como o recente estudo de Ronnie Perelis (Narratives from the Sephardic Atlantic, 2016), buscam melhorar nossa compreensão sobre as poucas autobiografias escritas por cristãos-novos ibéricos durante os primórdios da modernidade. 16

CAPÍTULO 1

UM MÉDICO CRISTÃO-NOVO NA ÁSIA PORTUGUESA:

GARCIA D’ORTA E OS COLÓQUIOS DOS SIMPLES E DROGAS DA ÍNDIA (GOA,

1563)

[...] não tendes vós nem eu mestres ou preceitores a quem eu possa mostrar vossos trabalhos nem em Salamanca nem em Alcalá, porque todos são já mortos e desterrados longe de Espanha - Colóquios dos simples e drogas da Índia, 2418

Considerada uma das obras culminantes do humanismo português do século XVI, os Colóquios dos simples e drogas da Índia (Goa, 1563), do médico cristão-novo português Garcia d’Orta (c.1500-1568), são provavelmente um dos textos ideais para começar nossa incursão pela intersecção entre discurso cristão-novo e expansão imperial ibérica no princípio da era moderna. O motivo é simples: ao situarmos os Colóquios no contexto cristão-novo de sua criação, novas camadas de significação textual – antes impensadas – se abrem ante o leitor.19

18 Todas a citações foram retiradas da edição do Conde de Ficalho (2 volumes, 1891/1895). 19 O nome de Garcia d’Orta aparece soletrado de diferentes maneiras em documentos e literatura a seu respeito: Garcia da Orta, Garcia de Orta, Garcia Dorta, Garcia Horta e outras variações. 17

Em um primeiro momento a fortuna crítica em torno dos Colóquios tendeu a situá-los sobretudo no contexto da disseminação de conhecimento médico, botânico e farmacológico criado no ambiente da Índia portuguesa, sem no entanto buscar investigar de forma ampla o transfundo histórico e social de produção do texto. Não obstante, a descoberta realizada por Augusto da Silva Carvalho (1934) de documentação relativa a

Garcia d’Orta nos arquivos da Inquisição portuguesa, e os subsequentes estudos genealógicos de Israel Salvator Révah (La Famille de Garcia de Orta) sobre a família do autor dos Colóquios, alteraram significativamente os rumos da tendência crítica em torno do famoso doutor português e sua obra. Atualmente, a crítica concorda que é impossível analisar o texto de D’Orta sem levar em consideração sua condição de cristão-novo e a longa sombra da Inquisição sob a qual seu texto foi produzido (Županov, Garcia de

Orta’s Colóquios 50). No entanto, o reconhecimento do impacto da identidade cristã- nova de D’Orta em sua vida e obra não ocorrem imediatamente após às surpreendentes descobertas documentais realizadas por Augusto da Silva Carvalho na década de 1930.

Foi somente a partir da década de 1960 que a historiografia portuguesa começou a aceitar o fato de que o estatuto cristão-novo de Garcia d’Orta influenciou significativamente sua vida e seu texto (Arrizabalaga 11). Desde então pesquisadores como Walter J. Fischel

(1974), Anita Novinsky (2000), Ines G. Županov (2009, 2010, 2015), Jon Arrizabalaga

(2015) e outros passaram a reexaminar os Colóquios à luz da condição de cristão-novo de seu autor. Este capítulo segue a linha de investigação destes pesquisadores, e busca mostrar não somente os ecos da cultura cristã-nova ao longo dos Colóquios, mas também argumentar que a originalidade dos Colóquios é uma consequência, entre outros fatores,

18 do posicionamento relativamente independente de D’Orta em relação às instituições de seu entorno social. Esse posicionamento relativamente independente permite que D’Orta menosprese a dimensão católica da empresa colonial e veicule um discurso subjetivo, irreverente e alternativo sobre a expansão ultramarina lusitana no Oriente.

A biografia mais completa sobre Garcia d’Orta ainda é aquela publicada em 1886 pelo erudito Francisco Manuel de Melo Breyner, mais conhecido como Conde de

Ficalho. Concebida inicialmente como introdução à edição crítica dos Colóquios preparada pelo próprio Conde de Ficalho, o texto tomou proporções inesperadas e acabou se tornando um livro à parte. Naturalmente, o Conde não estava ciente do estatuto cristão- novo de Garcia d’Orta, uma vez que os documentos inquisitoriais sobre o doutor português só foram revelados na década de 1930. Curiosamente, apesar de notar a presença judaica em Goa, em nenhum momento o Conde de Ficalho cogitou o estatuto cristão-novo ou a origem judaica do autor dos Colóquios.20 Sob o impacto do espírito positivista do seu tempo, Conde de Ficalho apresentou Garcia d’Orta como o protótipo de um elegante cientista vitoriano, dono de uma vida tranquila, desprovida de percalços e atribulações (Županov, Garcia de Orta’s Colóquios 50). Não obstante, conforme o breve panorama que delinearemos a seguir, os documentos inquisitoriais relativos a D’Orta e sua família colaboraram para a formação de uma imagem mais complexa e menos serena do autor dos Colóquios.21 Posteriormente, prosseguiremos à análise de algumas

20 “Não eram raros os judeus [em Goa], essa raça eternamente nomada e perseguida, eternamente activa e poderosa” (Ficalho 172). 21 O resumo biográfico a seguir está baseado principalmente no estudo de Augusto da Silva Carvalho (1934) e nos artigos de Walter J. Fischel (1974) e Ines G. Županov (Botanizing in Portuguese India) . 19 passagens dos Colóquios que atestam sua singularidade no panorama da literatura da expansão ibérica e sugerem ecos da identidade religiosa de seu autor.

Os pais de Garcia d’Orta, Fernão d’Orta e Leonor Gomez, eram judeus espanhóis que se estabeleceram na cidade portuguesa de Castelo de Vide em 1492 devido ao edito de expulsão promulgado na Espanha naquele ano. Assim como vários correligionários que se mudaram da Espanha para Portugal em 1492, em 1497 os pais de D’Orta viram-se forçados a converter-se ao catolicismo em Portugal devido ao edito de expulsão promulgado pelo rei Manuel I. O casal teve 3 filhas e um filho, Garcia d’Orta, nascido em Castelo de Vide ao redor de 1500. Garcia d’Orta estudou medicina nas universidades de Salamanca e Alcalá de Henares e voltou a sua cidade natal, Castelo de Vide, onde praticou medicina por algum tempo. D’Orta mudou-se então a Lisboa, onde ensinou

Lógica e Filosofia Natural na universidade local por aproximadamente oito anos. Em 12 de março de 1534 Garcia d’Orta embarcou para a Índia, de onde nunca mais voltou, na condição de médico pessoal do fidalgo português e capitão-mor do Mar das Índias

Martim Afonso de Sousa (1500-1564). Dadas as circunstâncias, é possível inferir que o embarque de D’Orta não tenha sido motivado somente pela curiosidade e fascinação fervorosas, que cativaram muitos portugueses naquela época, em relação aos mistérios do

Oriente, ou por sua inclinação intelectual para estudar a natureza, as plantas e as doenças de terras longínquas, mas também devido aos preparativos para a instalação da Inquisição em Portugal, iniciados em 1531 e concluídos em 1536 (Fischel 425).22 Apesar de já na

22 Naquele tempo a América Portuguesa ainda era um espaço pouco explorado pelo império lusitano, de modo que outras partes da Europa, a bacia do Mar Mediterrâneo e a Índia Portuguesa eram as principais alternativas para sujeitos que optavam por se afastar da Península Ibérica.

20 década de 1540 ter havido atividade inquisitorial portuguesa na Índia, a Inquisição só viria a instalar um tribunal em Goa (capital da Índia portuguesa) em 1560. Desse modo, a

Índia portuguesa representava um território suficientemente afastado do centro das atividades inquisitoriais lusitanas. A frota de Martim Afonso de Sousa chegou em Goa em setembro de 1534. D’Orta acompanhou o capitão durante quatro anos em expedições por diferentes localidades do Oceano Índico. Em 1538 Martim Afonso de Sousa foi chamado de volta a Lisboa. Não obstante, seu médico particular decidiu ficar na Índia, estabelecendo residência em Goa (onde permaneceria por trinta anos, até falecer, em

1568).23 Em 1542 D’Orta casou-se com a cristã-nova Brianda de Solis, com quem teve duas filhas. Em torno de 1548 D’Orta recebeu em Goa sua mãe, Leonor Gomez, duas de suas três irmãs, Isabel e Catarina, e seus respectivos maridos. Todos vinham de Lisboa – onde haviam sido denunciados à Inquisição e temporariamente encarcerados – e estabeleceram residência em Goa. Durante as três décadas que residiu em Goa, D’Orta praticou medicina e também se dedicou à pesquisa das ervas, plantas e doenças locais.

Apesar de não haver ocupado um cargo oficial, D’Orta serviu como médico de vice-reis e de outras autoridades locais, tanto eclesiásticas como seculares. Sua reputação como médico extrapolou as fronteiras da Goa portuguesa, já que foi diversas vezes convidado para atuar como médico em cortes de governadores muçulmanos das imediações. Em reconhecimento pelos serviços prestados como médico de autoridades lusitanas, o cosmógrafo e vice-rei da Índia portuguesa João de Castro (1500-1548, governou entre

23 Conforme Ivan A D'Cruz, a decisão de D’Orta de permanecer na Índia “may have been due to political or religious exigencies, but also perhaps to the fact that the lush verdant beauty of Goa had him in its spell” (1594). 21

1545-1548) presenteou D’Orta com a ilha de Bombay, então uma pequeno vilarejo pesqueiro. D’orta visitou a ilha com frequência, lá construindo uma casa com um jardim repleto de ervas medicinais. A investigação das ervas dos seus jardins em Bombay e em

Goa, as informações coletadas por viajantes espalhados pelas mais diversas partes da

Ásia e o conhecimento de autores antigos, medievais e modernos que discorreram sobre matéria médica assentaram as bases sobre as quais Garcia d’Orta redigiu os Colóquios.

Escrita em português, a obra foi publicada no dia 10 de abril de 1563 na imprensa de

Ioannes de Endem. D’Orta faleceu em Goa cinco anos depois, em 1568, com cerca de 69 anos de idade. Seu corpo foi enterrado perto da Catedral da Sé. Contudo, D’Orta não descansou em paz. Catarina, irmã de Garcia d’Orta, foi convocada – junto com seu marido Lionel Perez – pela Inquisição de Goa logo após a morte do irmão (Carvalho 202-

215). Catalina foi considerada judaizante e, consequentemente, condenada à fogueira em outubro de 1569.24 Seu testemunho também incriminou outros membros da família, incluindo o falecido irmão. Cogita-se que as autoridades portuguesas de Goa eram conscientes da “vida marrana” de Garcia d’Orta e haviam coletado ampla evidência a esse respeito, mas foram relutantes em processá-lo devido à reputação e prestígio que gozava em todos os círculos portugueses (Fischel 424). Considera-se também que a publicação dos Colóquios evitou que a Inquisição agisse contra D’Orta.25 Não obstante, doze anos após sua morte a Inquisição decidiu tomar providências. Em dezembro de 1580 seus restos mortais foram exumados e queimados em um auto de fé em Goa, e sua cinzas

24Sobre o termo “judaizante” ver nota n. 9 desta tese. 25 “With his book, approved by the Inquisitor Aleixo Dias Falcão, Orta secured another five years of relatively peaceful existence before he died in 1568” (Županov, Botanizing in Portuguese India 28). 22 foram atiradas ao mar como forma de punição por judaizante. É provável que as cópias dos Colóquios existentes em Goa hajam sido queimadas no mesmo auto de fé (Županov,

Botanizing in Portuguese India 28). De fato, o livro se tornou raro e quase desconhecido.

Se o naturalista flamengo Carolus Clusius (1526-1609) não houvesse descoberto uma cópia dos Colóquios enquanto viajava por Lisboa, talvez a obra jamais tivesse ficado conhecida. Clusius adaptou o original português ao Latim. Graças à versão latina dos

Colóquios escrita por Clusius – publicada na famosa Imprensa Palatina em Antuérpia em

1567 (e republicada em diversas ocasiões) – a obra de D’Orta, ora em adaptação latina, ganhou ampla divulgação. De fato, a versão de Clusius foi traduzida ao espanhol, francês, italiano e outros idiomas. Cabe notar que a versão de Clusius apareceu revestida em moldes mais “científicos” do que o original português, isto é, desprovida do formato dialogado e sem o sabor dos comentários, curiosidades e tom pessoal que fazem parte do texto original português. Não obstante, apesar do sucesso da versão latina de Clusius, o original português ficou completamente esquecido, voltando a ser publicado somente na metade do século XIX (Costa 2015).26

É sumamente interessante notar que os Colóquios são uma das pouquíssimas obras de conteúdo não-religioso impressas por prelos europeus na Ásia (Županov,

26 A adaptação de Clusius publicada em 1567 apareceu com o título de Aromatum, et simplicium aliquot medicamentorum apud Indos nascentium historia. O exemplar dos Colóquios adquirido por Clusius durante sua viagem pela Península Ibérica (ocorrida entre maio de 1564 e maio de 1565) se encontra atualmente na biblioteca da Cambridge University (Boxer, Two pioneers of tropical medicine 25). Para um lista bibliográfica das edições e traduções da adaptação de Clusius, bem como de outras traduções, adaptações e extensões dos Colóquios de D’Orta ver A. J. Andrade de Gouveia (79-83). É curioso notar que, na dedicatória a Martim Afonso de Sousa, D’Orta declarou haver composto os Colóquíos originalmente em Latim, muitos anos atrás, mas finalmente decidiu traduzí-los ao português: “Bem pudera eu compor este tratado em latim, como o timha muytos annos antes composto, e fora a vossa senhoria mais aprasivel; pois o entendeis milhor que a materna linguoa, mas traladeo em portugues por ser mais geral, e porque sei que todos os que nestas indianas regiões habitam, sabendo a quem vai entitulado, folgaram de o leer” (5). 23

Botanizing in Portuguese India 21). Aprovada pelo Santo Ofício da Inquisição de Goa

(representado na pessoa de Alexos Diaz Falcam), os Colóquios são uma exceção no panorama do programa de promoção de uma renascença da disciplina e espírito católicos associado aos prelos de Goa ao longo dos séculos XVI e XVII (Županov, Garcia de

Orta’s Colóquios 53). Conforme destacado no título da obra, os Colóquios focalizam os

“simples, [hervas] e drogas e cousas mediçinais da India, assi dalgũas frutas achadas nella onde se tratam algúas cousas tocante amediçina, pratica, e outras cousas boas, pera saber” (título). O livro de D’Orta destoa completamente de obras mais paradigmáticas da atividade editorial portuguesa em Goa. Por exemplo, o livro Desengano de perdidos

(Goa, 1573), de Dom Gaspar de Leão Pereira, arcebispo da cidade entre 1560 e 1567, para quem a fragilidade e transitoriedade da condição humana nada tinham que ver com a natureza, senão com os pecados da alma que transita na terra travando batalhas de agonia e tentação com a carne (Županov, The wheel of torments 28-9)

Contendo um total de 263 fólios, os Colóquios consistem de 59 capítulos escritos em forma de um diálogo entre dois personagens: Orta, um médico português vivendo há décadas na Índia (e portanto um alter-ego do autor Garcia d’Orta), e Ruano, médico imaginário recém chegado à Índia, “tendo toda a sciencia dos livros, e tão desejoso de a completar pelo resultado das observações feitas no Oriente” (Ficalho, nota n. 1 ao colóquio primeiro, página 21). É possível inferir que Ruano representa Garcia d’Orta como este chegou a Índia em 1534, munido de toda a erudição clássica e universitária, conhecedor de Dioscórides, Plínio e outros autores antigos, medievais e modernos. e um tanto respeitoso ainda em frente de alguns dos seus erros desses autores; o Orta

24 dos Colóquios por sua vez representa a transformação operada por cerca de trinta anos de observações diretas e vivências in-loco (Ficalho, idem). Alguns personagens esporádicos, como o médico Dimas Bosque, o médico hindu Malupa e a jovem servente Antónia, entram e saem de cena em algumas ocasiões. Organizados em ordem alfabética, de acordo com a matéria em questão, cada capítulo gira em torno de uma erva, planta ou droga específica. É preciso notar que os Colóquios não são um diálogo puramente científico. Estruturados como um diálogo documental e ciceroniano, os Colóquios apresentam discussões importantes sobre tópicos médicos, assuntos botânicos e temas comerciais, históricos e linguísticos, mas também fornecem, por outro lado, vários episódios cômicos, piadas, provocações e singelas expressões de cortesia e intimidade entre os interlocutores (Županov, Garcia de Orta’s Colóquios 54). Trata-se portanto de uma abordagem singular para um assunto que supostamente deveria ser tratado com solenidade.27

Além das 59 conversas entre os dois protagonistas-interlocutores, o paratexto dos

Colóquios inclui: 1) um alvará de privilégio escrito por Francisco Coutinho (1517-1564), terceiro Conde de Redondo e Vice-Rei da Índia portuguesa entre 1561 e 1564; 2) uma dedicatória “ao muyto ilustre senhor Martin Afonso de Sousa”; 3) um soneto “do autor falando cõ ho seu libro e mandao ao senhor Martin Afonso de Sousa”, 4) um poema ao

Conde do Redondo, assinado por ninguém menos que Luís de Camões; 5) uma sessão

“ao leitor” assinada pelo “licenciado Dimas Bosque, médico valenciano”; 6) uma epistola em latim, de Dimas Bosque, dirigida a Tomás Rodrigues de Veiga (1513-1579) – “judeu

27 Sobre o aspecto teatral dos Colóquios ver Eleazar Gutwirth (2013). 25 sefaradim e grande vulto da medicina portuguesa”, conforme aponta Rogério Miguel

Puga (128); 7) um epigrama, também em latim, do doutor Tomás Dias Caiado; 8) uma errata que, totalizando 9 fólios (ff. 229-238), indica a grande quantidade de erros de impressão, “por faltar o principal empresor e ficar a obra em mãos de um homem seu companheiro, que não era ainda mui destro na arte de emprimir, e pouco corrente no negocio da empresam” (conforme Dimas Bosque na seção ao leitor [11]); 9) uma

“taboada do conteúdo neste livro pello ABC das cousas de notar”, isto é, um índice remissivo.28

É possível inferir que Garcia d’Orta era consciente que sua completa indiferença em relação à dilatação da fé e do império na Ásia portuguesa – mesmo em texto de caráter científico – poderia gerar consequências desastrosas. Esta percepção do autor se expressa por exemplo na dedicatória a Martin Alfonso de Sousa, onde D’Orta busca a proteção do capitão contra

o ocioso povo e mordaces linguoas, por onde o tratado tinha neçesidade de

hir arrimado a quem o defendese delias, assi como fazem os

esprementados agricultores que, querendo plantar algumas dellicadas

plantas as arrimam a alguns fortes arvores pêra que as defendam dos

tempestuosos ventos e fortes chuivas e ásperas geadas, assi quis eu plantar

esta fraca planta debaixo do emparo de vossa senhoria, com o qual será

defendida de toda a mór parte do mundo, pois a vossa fortaleza he tam

conhecida, não tam somente por todas as três partes do mundo, mas polia

28 Sobre os elementos paratextuais dos Colóquios ver Rogério Miguel Puga (2008). 26

outra quarta parte, que aguora os cosmógrafos acreçentam, e não tam

somente sois por vossa fortaleza temido nestas partes, mas, por vossa

beninidade, e outras graças, que o Senhor Deos vos dotou, sois amado (4-

5).

Além de indicar a necessidade de proteção, esse trecho repleto de metáforas agrícolas também exemplifica a falta de reverência pela dimensão religiosa da expansão lusitana.

Ao referir-se por exemplo a “quarta parte que, aguora os cosmógrafos acreçentam”,

D’Orta alude à presença de Martim Afonso de Sousa na capitania de São Vicente, Brasil

(Afonso de Sousa foi o primeiro donatário desta capitania). Não obstante, D’Orta não atribui nenhuma importância às implicações religiosas que a presença portuguesa na região poderia acarretar. A alusão a Deus não aparece em um contexto religioso, senão como forma de enfatizar as caracteristicas positivas do capitão dos mares e protetor do autor dos Colóquios. De fato, a ausência quase total de referências a elementos da cultura católica ao longo dos Colóquios, como Jesus Cristo ou a Trindade, pode ser interpretada como um gesto de manifestação da identidade cristã-nova, e talvez cripto-judaica, de

Garcia D’Orta.

Logo em seguida à dedicatória dirigida a Martim Afonso de Sousa encontramos o soneto intitulado “do autor falando cõ ho seu libro e mandao ao senhor Martim Afonso de

Sousa”, cujos primeiros quatro versos dizem assim: “Seguro livro meu, d’aqui te parte / que com uma causa iusta me consolo / de verte ofereçer ho inculto colo, / ao cutello mordaz, em toda parte”. É verdade que os versos podem ser lidos sob a ótica da falsa modéstia ou captatio benevolentiae. Não obstante, tanto a dedicatória inicial a Martim

27

Afonso de Sousa quanto a própria história dos Colóquios e seu autor nos ensinam – de um modo bastante surpreendente – que D’Orta aparentemente buscava proteção. No fim das contas, seu livro foi condenado “ao cutello mordaz” ([iv]) – neste caso a inclemente fogueira de um auto-de-fé realizado em Goa em 1580.29

Dúvida e ceticismo são um dos eixos centrais dos Colóquios. Após apresentarem- se no colóquio primeiro, os personagens Orta e Ruano entabulam um diálogo sobre o

Aloes (herva-babosa). Antes de falar da erva propriamente dita os personagens questionam se a ordem alfabética é apropriada ou não para organizar os tópicos que vão discutir:

Ruano: Já me parece tempo pera responderdes ás minhas perguntas, e

porque a ordem aproveita muito á memoria será bem começar pello a b c,

e alguns nomes que falecerão alembrarmoeis.

Orta: Isso que dizeis da ordem do alphabeto acho não ser bom, e a causa

he porque pòde acontecer as cousas ditas ao principio seram pouquo

proveitosas ou muito notas, ou sem gosto pera serem lidas; quanto mais

que sempre ouvi dizer que os peccados mais graves se havião primeiro de

confessar aos confessores, e as milhores rezões se havião de dizer primeiro

quanto leião algumas lições, e que quando se havião de pedir algumas

cousas, as mais necessarias havião de ser as primeiras.

29 Teófilo Braga (9-10) argumentou que o soneto assinado por D’Orta foi na realidade redigido por Luís de Camões: “entendemos que este soneto é escripto pelo proprio Camões, em nome de Garcia d’Orta, porque o celebre lente da Universidade desconhecia pela sua avançada edade as formas da poetica italiana, e se tivesse de escrever qualquer composição seria no estylo de cancioneiro ou em redondilhas. Os versos do Soneto tem a melodia camoniana, e alludem á antithese sempre empregada pelo poeta entre a penna e a espada, entre Apollo e Marte, a palma e a oliveira, o arnez e a toga”. 28

Ruano: Antes senhor (salvo milhor juizo) me parece o contrario em muitas

cousas, porque nos principios das orações nam se hão de mover os

affectos e vontades tanto como nas outras partes da oraçam, e mais porque

o fim fica mais na memoria que as cousas, que primeiro se dixerão, nem

os que lêem hão de dizer a doctrina muy sotil no principio, senam

prometer de a dizer, pêra fazer os ouvintes atentos.

Orta: Ainda me nam satisfizestes ao que vos dixe, e he que se este livrinho

quizerem alguns imprimir, ou por zombar de mim, ou por descobrir meus

erros e minhas mal compostas razões, e lendoo alguma pessoa e nam

achando no principio cousa de que goste, sem mais esperar razão, dará

este livro ao quarto elemento, e dirá em mim mil pragas e vitupérios, e, o

que pior he, farão contra mim invectivas; e outros, por me não terem por

digno de tanto, farão trovas e outras cousas mais baixas. (23-4)

Apesar de Orta discordar da ordem alfabética, argumentado que as coisas mais importantes devem vir em primeiro lugar, o critério adotado no livro é finalmente o da ordem alfabética, conforme a sugestão de Ruano. É interessante notar que ao invés de simplesmente adotar um critério sem refletir a respeito do mesmo, o autor dos Colóquios prefere expor a dúvida. O formato dialogado causa o efeito (ou ilusão) de que a dúvida do autor sobre qual é o melhor critério para organizar a obra é, na verdade, uma dúvida dos personagens. De fato, esta técnica permite que autor fale em diversas vozes e manipule a

29 conversa conforme suas preferências e, ao mesmo tempo, esconda sua própria opinião

(Županov, Garcia de Orta’s Colóquios 54). O mais interessante para nós no trecho supracitado são os argumentos de comparação apresentados por Orta. Por exemplo, ao dizer que “os peccados mais graves se havião primeiro de confessar aos confessores”,

D’Orta alude à prática da confissão e a uma dimensão punitiva do catolicismo. Também vemos despontar mais uma vez a ideia da fragilidade do livro e o “medo” de que se alguém o ler e “nam achando no principio cousa de que goste, sem mais esperar razão, dará este livro ao quarto elemento”, isto é, às chamas. Ironicamente, conforme já mencionado, isso aparentemente aconteceu com os Colóquios em 1580. Antes de finalmente passarem a discutir as propriedades do Aloes, Ruano arremata a seguinte fala nada protocolar:

Ruano: As vossas cousas nam tem outro mal pêra os mordaces leitores que

serem verdadeiras e muitas nunqua sabidas dos físicos, quê de qua forão a

Espanha, quanto mais aos físicos da Europa, porque já perguntey em

Espanha a físicos que qua [Índia] andarão, e não me deram mais razam

que a que lá [Espanha] sabíamos todos, e destes homens alguns erão

doctos, senão o tempo que andarão qua trazião mais os pensamentos em

enriquecer, que em fílosofar; porque, como diz o filosofo, que ainda que

filosofar he milhor em si que enriquecer, porém que ao necessitado milhor

he enriquecer; e porque estes o serião, quizerão primeiro enriquecer que

filosofar; e porque vos tire deste arreceo, digo que este trabalho vosso

quero eu pêra mim só, e pêra muito poucas pessoas outras a quem o direy

30

em Espanha (levandome Deus a salvamento), e serão alguns condiscípulos

nossos, que vos não pesará de o saberem, e alguns discípulos vossos, tam

doctos,que assi vós, como eu, poderemos aprender delles, porque elles se

derão pouquo á pratica e muito ás escholas, e vós e eu fizemos o contrairo,

e o que me doy mais d'isto he que não tendes vós nem eu mestres ou

preceitores a quem eu possa mostrar vossos trabalhos nem em Salamanca

nem em Alcalá, porque todos são já mortos e desterrados longe de

Espanha: e tornando ás nossas perguntas me diga do aloés os nomes em

todas as linguas que sabe e como se faz, e qual é o milhor, porque o desta

terra louva muito Plinio e Dioscorides. (24)

A fala de Ruano não somente aponta a cobiça de alguns de seus compatriotas – mais preocupados em enriquecer do que em filosofar – mas também indica um dos tons principais do livro, isto é: o confronto da sabedoria livresca, universitária (às vezes defasada e antiquada) sobre as ervas medicinais da Índia, por um lado, e as observações in-loco produzidas pelo autor do livro durante suas quase três décadas na região, por outro lado. Nas palavras de Ruano, o confronto entre a “pratica” e as “escholas” – algo que de fato faz lembrar um pouco o “saber só de experiências feito” proferido pelo Velho do Restelo (Os Lusíadas, Canto IV, 94). As observações de D’Orta realizadas in-loco eram complementadas pela informação obtida por redes internacionais de mercadores que circulavam pela Ásia e comercializavam os produtos discutidos nos Colóquios.

Naturalmente, a cidade portuária de Goa era então um dos centros do comércio na Ásia, e um elo de ligação entre o continente asiático, o Oriente Médio e a Europa. Deste modo,

31 ao longo dos Colóquios a informação fornecida por comerciantes (donos de experiência prática e direta com os produtos) chega mesmo a ser mais confiável do que aquela produzida nos textos de autores gregos clássicos, cuja experiência com os produtos em questão muitas vezes vinha de segunda mão ou exclusivamente de leituras (Županov,

Botanizing in Portuguese India 24). Assim, D’Orta relativiza o centro da produção de conhecimento, deslocando-o da metrópole para a colônia, de modo a problematizar uma hierarquia tradicional do discurso imperial. Este seria outro motivo pelo qual D’Orta temia pela sua segurança e pelo destino de seu livro. Não obstante, tal postura avançada

às vezes gera comentários cômicos, por exemplo quando Orta diz a Ruano, no colóquio nono, sobre o benjuy, “não me ponhais medo com Dioscorides, nem Galeno” (105). Ao mesmo tempo, Orta reconhece o perigo de sua postura alternativa em relação à sabedoria dos antigos. No colóquio trigésimo segundo (sobre a maçã e a noz), por exemplo, Orta explica um erro de Serapion, o jovem (século XII ou XIII) nestes termos: “Fez isso

[Serápio] porque avia medo de dizer cousa contra os Gregos; e não vos maravilheis disto, porque eu, estando em Espanha, não ousaria dizer cousa alguma contra Galeno e contra os Gregos” (83-4). Essa frase, considerada pelo Conde de Ficalho “a mais notável de todo o livro; é como sua synthese” (Garcia da Orta e o seu tempo 303), mostra que a questão da distância, tanto física quanto institucional, em relação ao centro do poder (Península

Ibérica), é determinante para a formação do discurso dos Colóquios.30

30 Lisa Voigt identificou traços do discurso de exaltação do conhecimento prático em detrimento do conhecimento teórico no Tratado da esfera do vice-rei da Índia portuguesa João de Castro: “João de Castro (1500-1548) expresses a common Portuguese claim about the superiority of experimental knowledge when he asserts, in his Tratado da esfera (ca.1538), that the erroneous opinions of the ‘ancients’ can be corrected through ‘[a] muita experiencia dos moderns, e principalmente a muita navegação de Portugal’” (Writing captivity 2). Outro motivo para inferir que a obra de João de Castro influenciou D’Orta é o simples fato de 32

Voltando brevemente à supracitada fala de Ruano: é provável que haja aí um sutil sinal de discurso cristão-novo nos Colóquios. Ruano assinala que seus mestres de

Salamanca e Alcalá “já são mortos e desterrados longe de Espanha”. É possível inferir que a ideia de “desterro” dos mestres alude à expulsão de judeus e ao exílio de conversos do território ibérico (Županov, Botanizing in Portuguese India 27).31

Através da voz do personagem Orta, aprendemos que alguns dos comerciantes e informantes com os quais Garcia d’Orta travou contato eram judeus. Não obstante,

D’Orta geralmente não menciona seus nomes. Por exemplo, em uma passagem no fim do colóquio segundo, sobre o aloés, quando Ruano indaga sobre a presença de aloés metálico ao redor de Jerusalém, Orta oferece a seguinte resposta: “Já perguntey isto a alguns judeus que a esta terra [Índia] vieram, e diziam serem moradores em lerusalem, e alguns erao filhos de fisicos, e outros erão boticairos, e todos me disseram ser isto cousa falsa e nunqua achada em toda Palestina, e por aqui faço fim ao aloés, se disto sois servido” (34). No colóquio vigésimo terceiro, do cardamomo e das carandas, Orta conta que estava em Cochim quando encontrou “hum judeo, mercador da Turquia, e dixeme que trazia em huma lembrança de mézinhas que havia de comprar” (181).32 Essas e outras referências ao longo dos Colóquios indicam não somente a familiaridade de

D’Orta com judeus, mas também sugerem que, nestes casos, ao não mencionar seus

que o Tratado da esfera também está composto em forma de diálogo. A passagem do Tratado da esfera citada por Voigt aparece em Obras completas de D. João de Castro, volume I, página 50. Como vimos anteriormente, foi João de Castro quem presenteou D’Orta com a ilha de Bombay. 31 O uso do termo “desterro” em um contexto judaico se exemplifica na capa da Declaração das 613 encomendanças (Amsterdam, 1627), do cristão-novo Abraham Pharar (?-1663). Pharar se apresenta como “judeu do desterro de Portugal”. 32 Sobre os judeus e cristãos-novos de Cochim ver as Notícias dos Judeus de Cochim (Amsterdã, 1687) de Mosseh Pereira de Paiva. 33 nomes, D’Orta se esforça em camuflar, esconder e protegêr esses judeus (Fischel 431).

Dois exemplos adicionais tornam essa hipótese ainda mais contundente. Durante suas visitas à corte do sultão muçulmano Nizamoxa, na região de Ahmadnagar, D’Orta ficou amigo de Sancho Pires (alias Franguecham Português), sujeito português convertido ao islã que trabalhava a serviço do sultão. No colóquio quinquagésimo primeiro, sobre o espodio, Orta conta que foi convocado para curar um tal Sancho Pires quando este caiu doente (306). Sabendo da apostasia de Pires, Ruano pergunta se este era “mouro ou cristam?” Orta responde que “ao que me dizia em secreto era christam, e comia comigo as cousas vedadas ao Mouros, e rezava, e dizia mal deles” (307). Como sabemos, Sancho

Pires era cristão-novo (e talvez cripto-judeu). Conforme o Conde de Ficalho, Sancho

Pires pensava em voltar para o serviço de Portugal e, com a ajuda de Garcia D’Orta, havia obtido um perdão secreto (310, nota 2). Aparentemente, D’Orta apresenta Sancho

Pires como bom cristão não somente para minimizar sua conversão ao islã, mas também com a finalidade de proteger a identidade judaica do amigo (Fischel 431). Outro exemplo

é o de Isaac do Cairo, mencionado diversas vezes ao longo dos Colóquios. Os documentos inquisitoriais estudados por Augusto da Silva Carvalho (35-6; 153-4) indicam que Isaac do Cairo era na verdade Jorge Pinto, cristão-novo português oriundo de Castelo de Vide, a mesma cidade natal de Garcia D’Orta. Jorge Pinto escapou de

Portugal via Flanders na companhia de sua mãe, Clara Dias – Clara era irmã de Lionel

Peres, que por sua vez era o marido de Catarina d’Orta (irmã de Garcia d’Orta). Portanto,

Jorge Pinto era sobrinho de Garcia d’Orta. Uma vez em Flanders, Jorge Pinto assumiu uma identidade judaica, mudando-se então para Goa (provavelmente em 1538). D’Orta

34 certamente conhecia a verdadeira identidade de Jorge Pinto, mas por uma questão de cautela o transformou em um sujeito oriundo do Cairo, eliminando assim suspeitas das autoridades eclesiásticas portugueses em Goa. A tentativa de camuflar a identidade religiosa de cristãos-novos portugueses como Sancho Pires e Isaac do Cairo, por um lado, e o afã de proteger os mercadores judeus “anônimos” com quem travou contato, por outro lado, sugerem a “mentalidade marrana” de Garcia D’Orta e, de fato, apoiam a imagem

“judaizante” que emerge dos documentos inquisitoriais contra sua família (Fischel 432).33

D’Orta no entanto não camufla somente a identidade de familiares, amigos e conhecidos, mas também sua própria. Além de criar engenhosamente uma confusão entre

D’Orta autor e Orta o personagem, é preciso notar o completo silêncio ao longo dos

Colóquios em relação a suas origens e sua família. Como sabemos, sua mulher, filhas, irmãs, cunhados e mãe também residiam em Goa. Esse silêncio fica ainda mais evidente se considerarmos que Orta não deixa de convidar o leitor a visualizar e caminhar ao longo de sua casa, sentar na sua mesa e olhar através da varanda, conhecer sua servente

Antónia, provar deliciosas mangas do seu jardim em Bombaim, e mesmo montar a cavalo numa zona rural de Goa (Županov, Garcia da Orta’s Colóquios 49-50). Como veremos ao longo desta tese, todos os autores aqui estudados de um modo ou de outro tratam de obscurecer suas origens.

Assim como em Os Lusíadas de Luís de Camões, a emulação do império romano pelos portugueses também é um tema que está presente nos Colóquios de D’Orta: “Digo

33 Sobre Jorge Pinto, aliás Isaac do Cairo, ver também Julio Caro Baroja (Los judíos en la España moderna, I: 224). 35 que se sabe mais em hum dia agora pellos Portuguezes, do que se sabia em 100 annos pellos Romanos” (210), arremata Orta no colóquio décimo-quinto, sobre a canela. No poema dedicado ao Conde do Redondo, vice-rei da Índia, Luís de Camões destaca uma das utilidades dos Colóquios para a empresa imperial lusitana. No verso “ajuday, quem ajuda contra a morte” (9), Camões enfatiza o conhecimento médico veiculado nos

Colóquios, ou seja, a capacidade de curar os lusitanos das doenças que encontram no além-mar. Os colóquios que lidam com ervas supostamente capazes de incrementar o desempenho sexual (por exemplo o bangue/haxixe, assunto do colóquio oitavo, ou o

ópio, assunto do colóquio quadragésimo primeiro), também prestam o serviço de colaborar para a “fertilidade” do império (ver Guerra 1972). Os Colóquios portanto não contrariam o discurso imperial português – mas o apresentam definitivamente despido de uma dimensão religiosa. De qualquer modo, apesar de em nenhum momento aderir ao discurso da dilatação da fé e do império, algumas raras passagens dos Colóquios apresentam elementos de um discurso aparentemente católico – conforme veremos a seguir.

No colóquio quinquagésimo oitavo (sobre vários produtos), em uma passagem dedicada à discussão sobre o marfim, Ruano indaga Orta sobre o fato de o médico e botanista alemão Leonardo Fuchsio (Leonhartd Fuchs, 1501-1566) haver escrito que não há marfim verdadeiro no mundo (379). Orta explica que Fuchsio estava sumamente enganado, e termina sua resposta dizendo que “ainda que a medicina não é ciencia de religiam cristan, comtudo me avorreceo o autor [Fuchsio], e foi muyto desenvergonhado em dizer que não havia marfim verdadeiro, avendo tantos alifantes em todas as bandas da

36

India, e da Etiopia, e serem levados a Portugal. Parece que os Luteros devem ter no inferno algum marfim, que seja guardado para eles” (380). Sabemos que após obter uma educação humanística guiada por mestres católicos, Fuchsio aderiu ao protestantismo. Ao representar os cristãos reformistas (“os Luteros”), D’Orta aparentemente estaria se alinhando ao um discurso contra-reformista católico. Com efeito, esta famosa passagem dos Colóquios foi aproveitada por A. da Silva Rego (674) para exaltar a identidade católica de D’Orta. De fato, este tipo de comentário deve ter agradado aos inquisidores que aprovaram a obra. No entanto, é preciso notar que em uma obra despida de conteúdo religioso, uma alusão a Fuchsio merecer arder no inferno (devido tanto ao seu desconhecimento do marfim quanto a sua identidade religiosa protestante) talvez não deva ser interpretada literalmente, mas em uma chave humorística. Adicionalmente, é preciso notar que ao dizer que “ainda que a medicina não é ciencia de religiam cristan”

(380), Orta mantem uma postura secular ao relativizar o monopólio da ciência, atribuindo-lhe um carater universal.34

Há ainda duas passagens adicionais destacadas por A. da Silva Rego (674-5) para atestar uma suposta identidade católica de Garcia d’Orta. No colóquio vigésimo quinto, que trata do cravo, Orta diz haver escutado que os portugueses ganharam de Deus o monopólio desse produto nas ilhas Molucas (arquipélago que faz parte da atual

Indonésia): “E hum rey de huma ilha chamada Tarnate, vindo os Castelhanos a elle que os ajudasse, lhes dixe que o cravo era dado por Deos aos Portuguezes, pois cada cravo

34 Conforme observado por Ines Županov, “Orta’s virulence regarding Fuchs’ religious choices barely covers his partisan admiration for his intellectual choices” (Botanizing in Portuguese India 26). 37 tinha cinquo quinas de elrey de Portugal; póde ser que este dixe isto por premisam e vontade de Deos, ainda que era infiel : asi profetisou Balam e a sua asna, sendo animal irracional, falo isto debaxo da correiçam da Santa Madre Igreja” (362). A referência a

“Santa Madre Igreja” de fato denota a aproximação de D’Orta a um discurso católico.

Contudo, além de se tratar de uma exceção ao longo dos Colóquios, essa referência não deve ser interpretada literalmente, senão examinada em contexto (assim como a passagem relativa a Leonardo Fuchsio analisada anteriormente). Aparentemente, trata-se mais de uma forma de expressar respeito por um tópico controverso ou, conforme sugerido por Ana I. Cannas da Cunha (396), um gesto de “prudência”. Sendo assim, a referência a Santa Madre Igreja não deve ser necessariamente interpretada como um sinal de devoção cristã.35 Ademais, ao ratificar a fala de um “infiel”, D’Orta decide estabelecer uma comparação com um tópico da bíblia hebraica. De fato, as alusões à bíblia nos

Colóquios, bem como nos outros trabalhos que estudamos ao longo desta tese, se limitam quase absolutamente à bíblia hebraica (Velho Testamento).

A segunda ocasião em que Orta menciona a “Santa Madre Igreja” também parece denotar um gesto retórico protocolar – cuja finalidade talvez seja agradar a inquisidores.

Esta passagem aparece no colóquio quinquagésimo quinto, sobre o incenso e a mirra, em um momento no qual se discute os três reis magos:

Ruano: E pois falaste na mirra, e me disestes tam poucas cousas novas no

encenço, será cousa justa que me digaes donde ha a mirra e como he feita.

35 “É falível afirmar o judaísmo ou o catolicismo de Garcia de Orta. Nos Colóquios, ele declara a sua adesão à Santa Madre Igreja e a sua prática diária de missa. Seria prudente não o fazer?” (Cunha 396). 38

Orta: Muita vem à Índia da Arábia e da terra do Abexim, que he a Etiópia;

mas nunqua pude saber desta guoma ou resina a verdade, e como a arvore

he feita; somente hum mercador que tratava de Melinde pera Moçambique

me disse, que os Bedoins a traziam a Brava e a Magadaxo por terra, e que

vinham, segundo elles diziam, da Caldéa, assi chamada por estes Bedoins.

E sam estes homens gente montez, e falam o arábio puro, que dizem ser

mais chegado a lingoa Caidéa ou da Suria antigua. E isto me dixe hum

sacerdote abexim e hum bispo armenio. E porque Pico Mirandolano diz na

sua Apologia, que mago em lingoa caldéa quer dizer sabedor, rogunteilhe,

pois que elle dizia que a escritura sagrada estava escrita acerqua delles em

lingoa caidéa, que me disesse que queria dizer mago; elle me disse que

magoxi queria dizer naquella linguoa caidéa letrado e sabedor, e que

destes eram os magos, que vieram adorar a Nosso Senhor. E asi me dixe

que nam eram reys estes homens, senão letrados grandes, assi nas strellas,

como nas outras cousas naturaes. E mais me dixe este bispo que a estreita

que guiava a estes magos não era de natura celestial, senão elemental; asi

como dizemos cometa: dizeime o que vos nisto pareça, porque eu nam

tenho nenhuma cousa destas por boa, até que o digam os que regem a

Santa Madre Igreja de Roma (353).

O que mais nos interessa neste trecho longo e confuso é, em primeiro lugar, o fato de a discussão acerca dos três reis magos deflagrar-se a propósito de uma alusão ao humanista

39 italiano e cabalista cristão Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494). Segundo o Conde de Ficalho, Orta refere-se a obra de Pico della Mirandola intitulada De Magia naturalis et cabala (1532). Uma vez que a referência irreverente ao três magos aparentemente rompe com os dogmas da igreja, ao aludir a Santa Madre Igreja de Roma o personagem Orta busca não tanto expressar uma convicção católica, como gostaria A. da Silva Rego (674-

5), senão demonstrar respeito pela autoridade eclesiástica, de modo a eximir-se de responsabilidades pelo teor transgressivo do trecho.36 Apesar de não negar a origem cristã-nova de Garcia D’Orta, A. da Silva Rego e vários outros pesquisadores, entre eles

Abílio Martins (1963), insistiram que o autor dos Colóquios foi um católico sincero.37

Considerações finais

Não sabemos ao certo se Garcia d’Orta foi um católico sincero, vítima de falsas acusações, conforme a opinião de Silva Rego e outros, ou um “marrano militante”, conforme a imagem sugerida pela documentação inquisitorial revelada por Silva

Carvalho e estudada por Walter Fischel e outros. Em todo caso, é possível afirmar que o

único texto que D’Orta escreveu não se alinha àquilo que Ângela Barreto Xavier e Ines

G. Ž upanov chamaram de “Catholic Orientalism”, isto é, “a set of knowledge practices geared to perpetuate political and cultural fantasies of the early modern Catholic protagonists and their communities” (Catholic Orientalism xxi). Há passagens dos

36 Para A. da Silva Rego, Garcia d’Orta foi “verdadeiro e sincero católico, vítima de falsas acusações” (664). 37 Para uma síntese dos debates acadêmicos em torno da religiosidade de Garcia d’Orta ver Jon Arrizabalaga (especialmente páginas 27-8). 40

Colóquios – algumas delas analisadas ao longo deste capítulo – que certamente podem ser interpretadas à luz do contexto cristão-novo de seu autor. Ao mesmo tempo, o texto de D’Orta mostra uma irreverência e subjetividade incomuns tanto para a época quanto para a matéria tratada.

É difícil estabelecer com precisão em que medida a provável instabilidade religiosa vivenciada por D’Orta influenciou sua maneira irreverente de tratar das drogas, plantas medicinais e outros assuntos relativos à Índia. Para Ana I. Cannas da Cunha, por exemplo, a ascendência judaica de Garcia d’Orta e sua proximidade da cultura e da religiosidade judaicas “terão sustentado comportamentos distintos dos de outros portugueses e uma atitude de abertura ao contacto com as coisas e ao concreto, que se refletiu na sua obra” (396). Além da hipótese de “excepcionalidade judaica” indicada por

Cunha, também é possível supor que a relativa independência de Garcia d’Orta em relação às instituições que o cercavam colaboraram na formação de um discurso alternativo, despido de um caráter católico, sobre a expansão imperial lusitana no

Oriente.

Ao redor de 1568, ano em que D’Orta faleceu, um outro português se lançava à aventura da escrita. Esse homem de origem obscura, profissão indefinida (e, ao contrário de D’Orta, carente de formação universitária), havia estado cerca de vinte anos perambulando pela Ásia, e começava a preparar um dos textos mais irreverentes (senão o mais de todos) sobre a experiência portuguesa no Oriente. Refiro-me obviamente a

Fernão Mendes Pinto e sua Peregrinação – nosso objeto de estudo no capítulo a seguir.

41

CAPÍTULO 2

EM BUSCA DE UM FERNÃO MENDES PINTO CRISTÃO-NOVO: IMPLICAÇÕES

E LIMITAÇÕES DE UMA HIPÓTESE38

Era [Fernão Mendes Pinto] judeu marrano? Não se sabe, nunca se virá, porventura, a averiguar -Aquilino Ribeiro (212)

A Peregrinação (Lisboa, 1614) de Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) é um dos textos mais curiosos, fascinantes e polêmicos da literatura portuguesa de todos os tempos.39 Essa obra monumental de cunho autobiográfico se inscreve no contexto da expansão imperial portuguesa no Oriente durante o século XVI, pois narra as duas décadas (1537-1558) em que seu autor-narrador-protagonista (ou “persona literária”) perambulou pelo Oceano Índico, alcançando lugares nunca antes navegados por tripulações portuguesas. Ao contrário de Garcia d’Orta, Mendes Pinto aparentemente não

38 Uma versão preliminar e resumida da primeira parte deste capítulo foi publicada em Romance Notes, 57/2 (2017), 305-16. 39 O título completo da obra é: Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouuio no reyno da China, no da Tartaria, no do Sornau, que vulgarmente se chama Sião, no do Calaminhan, no de Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhu[m]a noticia. E tambem da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata breuemente de alguas cousas, & e da morte do santo Padre mestre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & e Reytor nellas universal da Companhia de Iesus. Para este ensaio utilizei a edição lançada em 2010 pela Fundação Oriente. 42 redigiu seu texto durante sua estadia no Oriente; considera-se que a Peregrinação foi redigida entre 1569 e 1578, quando Mendes Pinto já havia voltado a sua terra natal (Catz,

A sátira social 65). Porém, a obra só foi publicada em 1614, em Lisboa, na casa editorial do impressor flamengo Pedro Crasbeeck, numa edição de trezentos e três fólios divididos em duzentos e vinte e seis capítulos.40 Até hoje a crítica em torno da Peregrinação não foi capaz de explicar definitivamente porque a obra tardou aproximadamente trinta anos para ser publicada. Cogita-se que Mendes Pinto teve medo de ver sua obra publicada em vida devido a possíveis censuras e punições dos aparatos de imposição da ortodoxia católica (Catz, A sátira social 70; Lima 17). Não obstante, a edição lançada em 1614 apareceu com as devidas licenças do Santo Ofício, Ordinário e Paço. Uma vez que o manuscrito original se perdeu, não sabemos em que medida ele foi alterado durante os anos que antecederam a obtenção das licenças e a publicação oficial.41 De qualquer

40 A narrativa de Mendes Pinto pode ser dividida, a grosso modo e de forma bastante esquemática, aproximada e muito resumida, em dez partes, conforme a sugestão de Saraiva (Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca 368-373). Na primeira parte, que compreende os capítulos 1-38, Mendes Pinto narra sua trajetória pessoal desde Portugal até a Índia, seu embarque a Malaca e a chegada a Patene, no golfo de Sião. A segunda parte abrange os capítulos 39-79 e se concentra na história do pirata António de Faria e seu bando (do qual Mendes Pinto faz parte). A terceira parte, correspondente aos capítulos 80-136, narra a longa peregrinação pelo interior da China, Tartária e Sião do grupo de Mendes Pinto, constituído por onze portugueses, e culmina com uma viagem ao Japão. A quarta parte inclui os capítulos 137-143 e gira em torno do naufrágio na ilha dos Léquios. A quinta parte (capítulos 144-171) consiste numa crônica de diversos reis e povos orientais, e tem como pano de fundo a viagem ao reino do Calaminhão (atual Tibete). A sexta parte (capítulos 172-180) remete à viagem a Sunda (na Península Malásia) e a campanha do rei de Java contra o rei de Passarvão. A sétima parte (capítulos 180-199) conta a volta de Mendes Pinto desde Malaca ao Sião, rumo aos portos da China, e a decisão de, no caminho, alistar-se com outros portugueses no exército do rei de Odiá. Além de discorrer sobre a crônica das guerras locais, o autor retoma também a crônica do rei dos Brahmas, e inclui um episódio parentético sobre o galego Diogo Soares. A oitava parte (capítulos 200-216) gira em torno do Japão e tem como figura central o Padre Francisco Xavier (1506- 1552), co-fundador da Companhia de Jesus. A nona parte (capítulos 217-225) contém a história da missão jesuítica do Japão liderada pelo Padre Belchior, na qual Mendes Pinto teve um papel destacado. A décima e última parte consiste no último capítulo, onde Mendes Pinto narra sua volta a Portugal e se queixa da falta de recompensa e reconhecimento pelos serviços prestados no Oriente. 41 Curiosamente, as licenças foram expedidas em 1603, muito embora a obra só tenha sido publicada em 1614. 43 forma, o enorme sucesso da Peregrinação se verifica não somente através de suas várias reedições e republicações, mas também em suas traduções e adaptações às mais diversas línguas.42 Além disso, o sucesso da obra também fica patente através do caloroso debate crítico desenvolvido em torno de uma narrativa que, apesar de seu caráter supostamente autobiográfico, muitas vezes beira o fantástico e aponta para a ficção.43 Ainda hoje, passados mais de quatro séculos de sua publicação oficial, a Peregrinação permanece intrigando e confundindo leitores, desafiando críticos, gerando polêmicas apaixonadas e repelindo interpretações essencialistas.

Em um primeiro momento a fortuna crítica da Peregrinação preocupou-se principalmente com questões relativas à veracidade, rigor e fidelidade histórica e biográfica.44 No entanto, a crítica mais recente vem se afastado da abordagem documental e histórica, tendendo a se preocupar menos com a busca da verdade/veracidade na obra de Mendes Pinto do que com sua complexidade narrativa, sofisticação artística e seu caráter multifacetado. Ao mesmo tempo, a crítica atual tende a concordar que a Peregrinação é um texto que não permite abordagens globais ou

42 Sobre as edições e traduções da Peregrinação ver Rebecca Catz (A sátira social 313-319) e Francisco Leite de Faria (1992). 43 A crítica concorda de forma unânime que Mendes Pinto nasceu em Montemor-o-Velho entre 1509 e 1511, e que se mudou para Lisboa em torno de 1523, conforme sugerido no primeiro capítulo da Peregrinação. No entanto, o estatuto autobiográfico da obra é complicado e nem sempre pode ser levado ao pé da letra. De fato, Mendes Pinto aparentemente forjou uma persona ficcional (Rose 68), talvez nos moldes do conceito de “renaissance self-fashioning” elaborado por Stephen Greenblatt (1980). De modo que seria precipitado traçar uma correspondência inequívoca entre autor, por uma lado, e narrador- protagonista, por outro. As cartas que Mendes Pinto escreveu durante o breve período em que aderiu a Companhia de Jesus (1554-1556), bem como as cartas de outros membros da Companhia nas quais é mencionado, são uma fonte adicional de informação biográfica. Christovam Ayres (1904; 1906) cotejou vários trechos da Peregrinação com as cartas jesuíticas, concluindo que parte significativa da informação pessoal narrada por Mendes Pinto ao longo da Peregrinação pode ser considerada verídica. 44 O estigma de mentiroso atribuído a Fernão Mendes Pinto, resultado do caráter hiperbólico de várias passagens da Peregrinação, gerou a famosa galhofa-paronomásia “Fernão, Mentes? Minto!”. 44 interpretações totalizantes (Loureiro, ‘Peregrinação’ de Fernão Mendes Pinto 245; Sousa

17; Lima 187). Nesse sentido, a crítica atual da Peregrinação muitas vezes tende a se concentrar em pequenas porções do texto e analisá-las em profundidade ao invés de tentar entender a obra como um todo.45 Ademais, o reconhecimento da confluência de uma multiplicidade de géneros e estilos literários e da larga gama de unidades de sentido autónomas que atravessam o texto de Mendes Pinto (Loureiro, ‘Peregrinação’ de Fernão

Mendes Pinto 245) leva a crítica atual a concordar que a Peregrinação é uma obra

“polifônica” (Fouto 76), onde seu narrador-protagonista é capaz de se apropriar de variadas vozes e papéis (às vezes aparentemente contraditórios na ótica do leitor moderno) como, entre outras, as do navegador, soldado, geógrafo, cartógrafo, historiador, estrategista militar, náufrago, prisioneiro, mendigo, escravo, médico, mercador, pirata, espião, diplomata, canibal, etc. (Sousa 28).46

Desde a publicação dos estudos do militar, político e acadêmico Christóvam

Ayres de Magalhaes̃ Sepúlveda (1857-1930), lançados em 1904 e 1906, a fortuna crítica em torno da Peregrinação vem debatendo uma questão adicional: a possibilidade de

Fernão Mendes Pinto haver sido cristão-novo, isto é, descendente de judeus convertidos em massa ao catolicismo devido ao decreto de expulsão promulgado pelo rei Manuel I em dezembro de 1496. Muito embora parte dos críticos concorde que a origem judaica do autor da Peregrinação não é tão relevante quanto os significados e a magnitude da obra em si e por si (Margarido, La multiplicité des sens 161; Castro x; xxxvi), outros sugerem

45 Isso se exemplifica no estudo de Vincent Barletta (2009), focado em dois curtos episódios de assassinato ritual descritos nos capítulos 3 e 191-192 da Peregrinação. 46 Para uma síntese das principais linhas de interpretação da Peregrinação ver Rui Loureiro (‘Peregrinação’ de Fernão Mendes Pinto). 45 que a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo “pode ajudar a compreender melhor o espírito do autor e o conteúdo da obra, a clarificar até certos pontos da sua vida”

(Vale 13-14). Apesar de os críticos permanecerem divididos quanto à questão, inclusive porque não existe documentação que comprove (ou refute) a origem judaica de Mendes

Pinto, a crítica “opta, na generalidade, por um Fernão Mendes Pinto cristão-novo, muito embora sem avançar provas concludentes” (Loureiro, ‘Peregrinação’ de Fernão Mendes

Pinto 235). O objetivo deste capítulo não é avançar provas concludentes em favor (ou contra) a hipótese de “um Fernão Mendes Pinto cristão-novo”, senão rastrear a genealogia desta hipótese, e demonstrar que se trata de uma sugestão plausível, porém problemática. De todo modo, mais do que simplesmente acompanhar de forma acrítica, a discussão em torno da hipótese de “um Fernão Mendes Pinto cristão-novo”, este capítulo visa avaliar os contextos desse debate, e de que maneira ele se relaciona com as tentativas de representação da identidade cristã-nova, por um lado, e da identidade nacional portuguesa de modo geral, por outro. A segunda parte do capítulo analisa passagens da

Peregrinação que sugerem um discurso alternativo em relação aos temas de honra, linhagem e justiça, demonstrando que tal caracaterística do texto de Mendes Pinto o aproxima de um discurso veiculado por cristãos-novos. Assim como na primeira parte do capítulo, minha análise dessas passagens não tem o objetivo de resolver a questão em torno da origem judaica de Mendes Pinto, senão abordá-la sob ângulos todavia pouco explorados.

46

Em busca de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo: a gênese de uma polémica

A controvertida passagem de Mendes Pinto pela Companhia de Jesus, ocorrida entre 1554 e 1556, quando ainda se encontrava na Ásia (1537-1558), foi o foco inicial do debate crítico em torno de sua origem judaica.47 A polêmica foi lançada pelo bibliotecário e pesquisador francês do judaísmo lusitano J. L. Cardozo de Bethencourt (1861-1938).

Em carta dirigida a Christovam Ayres publicada em 1904, Bethencourt afirmou que a repentina saída de Mendes Pinto da Companhia de Jesus ocorreu devido a sua origem judaica, e que um dos parentes próximos de Mendes Pinto foi perseguido pela Inquisição

47 A passagem de Mendes Pinto pela Companhia de Jesus não é mencionada na supostamente autobiográfica Peregrinação, mas está atestada nas cartas que Mendes Pinto escreveu a serviço da Companhia, bem como em cartas onde é mencionado. Por exemplo, a carta enviada pelo Mestre Belchior a Inácio de Loyola em 1554 (reproduzida por António José Saraiva em Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca 352-3). Há na Peregrinação, no entanto, alguns capítulos dedicados ao encontro de Mendes Pinto com Francisco Xavier, cofundador da Companhia e missionário no Oriente. Também é preciso notar, conforme enfatizado por Eduardo Lourenço (1989: 1058), que Francisco Xavier aparece no subtítulo da primeira edição de Peregrinação. Luís Filipe Barreto (2010), autor do mais recente estudo sobre a passagem de Mendes Pinto pela instituição jesuítica, não abordou a possível origem judaica de Mendes Pinto nem ofereceu qualquer hipótese sobre os motivos que o levaram a deixar a Companhia. Barreto se concentrou nos motivos que levaram Mendes Pinto a aderir à Companhia de Jesus, argumentando que a adesão de um súdito português com o perfil de Mendes Pinto (isto é, o perfil de comerciante) à instituição inaciana não indicou um evento isolado, senão um padrão recorrente nas estruturas lusitanas no além-mar, segundo o qual mercadores e missionários uniam forças de forma mutuamente benéfica: “Thanks to this partnership, the missionaries obtained the financial capital and information they needed for their evangelical activities. They were afforded opportunities of action and thought that would otherwise have been inaccessible to them. Royal revenue and alms, official powers and royal voyages did not afford prospects of inter-cultural success. The difference between the results achieved by the Jesuits, as compared to other Christian religious orders was due, in large measure, to this essential partnership between merchants and missionaries. These private, Asianised merchants, most of whom were adventurers enjoying growing autonomy with regard to the official structures of the Portuguese Estado da Índia, found an educated elite in the Jesuits providing them with religious and institutional support. They both reaped benefits from the thoughts and actions of the missionaries in power center and with official and political decision-makers and found the spirituality and intellectual culture which they aspired to as most lacked any such dimension” (Barreto 86). Sobre a participação de cristãos-novos na Companhia de Jesus ver The Jesuit Order as a Synagogue of Jews: Jesuits of Jewish Ancestry and Purity-of-Blood Laws in the Early Society of Jesus, de Robert A. Maryks (2010). 47 ao redor do ano de 1558 (Ayres, Fernão Mendes Pinto: Subsídios para a sua biographia

1904 52-52a).48 Em nova carta a Christovam Ayres, publicada em 1906, Bethencourt repentinamente muda de opinião sobre os motivos que levaram Mendes Pinto a sair da

Companhia em 1556, afirmando que o autor da Peregrinação não deixou a Companhia devido a sua origem judaica.49 Contudo, Bethencourt continuou afirmando a origem judaica de Mendes Pinto, advertindo também que tinha em seu poder documentos inquisitoriais que provavam que parentes de Mendes Pinto foram processados pela

Inquisição (Ayres, Fernão Mendes Pinto e o Japão 45-6).50 Esses documentos, no entanto, nunca foram localizados ou publicados, mas a hipótese de sua existência e, consequentemente, de “um Fernão Mendes Pinto cristão-novo”, não deixaram de reverberar em estudos posteriores.

Em artigo escrito em 1943, o historiador português Armando Zuzarte Cortesão

(1891-1977) – irmão de outro historiador português, o famoso Jaime Cortesão (1884-

1960) – afirmou que se os documentos referidos por J.L. Cardozo de Bethencourt realmente existissem, especialistas na obra de Mendes Pinto, no estudo da Inquisição ou da Companhia de Jesus, tais como Jordão de Freitas e Georg Schurhammer por exemplo,

48 Carta escrita em francês em Londres no dia 2 de outubro de 1903; reproduzida por Christovam Ayres (Fernão Mendes Pinto: Subsídios para a sua biographia 52a) e parcialmente traduzida ao português em Rebecca Catz (A sátira social 297, nota 88). 49 De fato, conforme argumentou Sanjay Subrahmanyam, a ascendência judaica não costumava ser um empecilho para aderir a Companhia de Jesus: “Only for a brief period from 1593 to 1608 did the Jesuits agree to deny converts from Judaism access to their Order, and that too under intense external pressure” (84). 50 Carta em francês, escrita em Lisboa no dia 14 de abril de 1905; reproduzida por Christovam Ayres (Fernão Mendes Pinto e o Japão 45-6) e parcialmente traduzida ao português em Catz (A sátira social 297, nota 88). 48 já os haveriam localizado e publicado.51 Armando Cortesão ofereceu uma série de argumentos plausíveis para mostrar que a saída de Mendes Pinto da Companhia de Jesus não ocorreu devido a sua origem judaica. Para Cortesão isso foi suficiente para concluir que Fernão Mendes Pinto “não era de origem judaica” (357). A possibilidade de que

Mendes Pinto tenha sido descendente de judeus, mas que esta não tenha sido a razão de sua saída da Companhia, é completamente ignorada por Armando Cortesão. Ainda segundo Cortesão, Cardozo de Bethencourt deve ter interpretado os documentos que supostamente encontrou de forma equivocada (358), e que “é natural que o Dr.

Bethencourt gostasse de incluir entre os do seu sangue mais um nome ilustre” (362). À primeira vista, é possível notar que para Cortesão o tema da origem judaica de Mendes

Pinto não constituía uma questão de relevância literária, mas restrita somente ao âmbito

étnico ou religioso. No entanto, a questão aparentemente vai além disso, uma vez que

Cortesão considera a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo quase como uma ofensa ou acusação, classificando-a de “falsidade” e “necedade” que deve ser “liquidada”

(357). Cortesão demonstra-se particularmente preocupado com o artigo sobre Fernão

Mendes Pinto na Encyclopaedia Britannica no qual a hipótese da origem judaica do autor da Peregrinação é levantada, conferindo-a assim “disseminação universal” (idem).52 Para

51 Apesar de não haver encontrado os documentos referidos por Bethencourt, Jordão de Freitas (216-217) aproveitou o ensejo para sugerir que a volta de Mendes Pinto a Portugal em 1558 esteve relacionada a sua suposta origem judaica e às perseguições contra cristãos-novos deflagradas em Goa naquele ano. 52 “Um inglês amigo meu, distinto e erudito lusófilo, escreveu-me há dias dizendo, em continuação de uma conversa que pouco antes tivéramos sobre Fernão Mendes Pinto, que este era de origem judaica. Respondi que isto não era verdade e expliquei, em breves palavras, como fora inventado, lastimando o acesso que tal necedade teve ao artigo sobre Fernão Mendes Pinto na Encyclopaedia Britannica, o que lhe garante disseminação universal. Aí se lê: ‘During his stay of a twelve-month there (in Japan), Pinto left the company (of Jesus), being dispensed from his vows for want of vocation at his own request, though a modern authority states that he was expelled because he was a marrano, i. e., had Jewish blood.’ Quem é a misteriosa ‘modern authority’? Já é mais que tempo de liquidar esta falsidade - uma das muitas de que F. 49

Cortesão o tema da origem judaica de Mendes Pinto aparentemente não era somente uma questão étnica ou religiosa, mas um tema que diz respeito à própria projeção da identidade nacional lusitana – emblematizada na figura do insigne aventureiro português.

Assim, é possível que a ansiedade em refutar a hipótese da origem judaica de Mendes

Pinto talvez indique o esforço de Cortesão em não somente diminuir a relevância dos descendentes de judeus nas atividades da expansão ultramarina lusitana, mas também aponte sua intenção de livrar Portugal do estigma de “nação judaica” - conforme a percepção desenvolvida por nações estrangeiras já a partir do século XVI.53 Além disso, se a figura de Mendes Pinto funciona como emblema da identidade lusitana, o refutar de sua origem judaica levado a cabo por Cortesão pode estar de uma forma ou outra relacionado ao avanço do antissemitismo na Europa na década de 1940.54

M. P. tem sido vítima através dos séculos. Claro está que o facto de ser judeu, ou ter sangue judaico, em nada deminuiria o insigne aventureiro português; desde Cristo a Einstein são inúmeros os nomes na galeria de Judeus ilustres, mesmo em Portugal. Ainda que fosse marrano ou cristão-novo, embora isso significasse ter ele ou seus ascendentes renegado o judaísmo, não haveria desprimor – pois todos sabem as condições em que, no tempo da Inquisição, os Judeus se viam obrigados a ‘renegar’ as suas crenças. Contudo não falta quem continue a usar o termo marrano no sentido pejorativo que sempre teve, e verdade é que F. M. P. não era de origem Judaica” (Cortesão 357). Não pude identificar quem é o amigo inglês referido por Cortesão. No entanto, consultei o verbete “Fernão Mendes Pinto” nas edições mais recentes da Encyclopaedia Britannica, não encontrando nelas nenhuma alusão à possível origem judaica do autor da Peregrinação. 53 De acordo com a Encyclopaedia Judaica, “by the 16th century the term ‘Portuguese’ was already synonymous with the word ‘Jew’ in much of Europe, Asia, and Latin America” (Vol. 11, 1020). Essa afirmação corrobora a asserção do célebre jesuita português António Vieira (1608-1697): “portuguezes e judeus já são synônimos” (citado em Yerushalmi, From Spanish Court to Italian Guetto 10). Jakub Sobieski nos fornece outro exemplo. Ao passar por Portugal em 1611, o viajante polonês afirmou que nesta pátria “hay muchísimos judíos, y tan numerosos que varias casas tienen sua origem de ellos. Apesar de haberlos quemado y expulsado, viven muchos ocultos entre los portugueses” (em Viajes de extranjeros por España y Portugal en los siglos XV, XVI y XVII [s.d.], 248). O estigma de Portugal enquanto nação judaica persiste no século XVIII e se atesta nas palavras do médico e intelectual português António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783): “Somente aquelles que sahiram fóra de Portugal e que viajáram pela França, Allemanha, e Itália, sabem a opinião que tem estas Nasções dos Portuguezes; he commua vóz naquelles Reynos que todos são Judeos” (75). 54 Sobre ideologia e nacionalismo na obra de Armando Cortesão ver a tese de mestrado de Rui Silvestre Andrade (Universidade de Lisboa, 2014). Infelizmente não pude obter acesso a este trabalho. 50

O historiador da literatura e cultura portuguesas António José Saraiva (1917-

1993) dedicou muitos esforços ao estudo da Peregrinação, chegando inclusive a publicar uma edição da obra, lançada em quatro volumes entre as décadas de 1960 e 1980, e propondo uma leitura da Peregrinação enquanto “sátira picaresca da ideologia senhorial”

(1962 [1958]). Apesar de haver reconhecido que a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo “está muito longe todavia de poder considerar-se fundamentada” (359),

Saraiva não desprezou a possibilidade da origem judaica do autor da Peregrinação. Em realidade, e diferentemente de seu compatriota Armando Cortesão, Saraiva demonstrou entusiasmo pela possibilidade de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo ao afirmar que tratava-se de uma “hipótese convidativa que se harmoniza com o espírito do nosso autor, com a sua impressionante ausência de preconceitos nacionais, com a abundância caudalosa do seu estilo, o seu gosto da decoração oriental, as lágrimas (como Samuel

Usque), e até com seu acesso de misticismo que o assaltou nas vésperas do seu regresso à

Pátria” (359). Nesse sentido, Saraiva transcende o plano biográfico da discussão em torno da origem judaica de Mendes Pinto, vindo a buscar no próprio texto da Peregrinação marcas de um possível discurso cristão-novo. Do mesmo modo, Saraiva pôs em xeque a tese categórica de Armando Cortesão, chegando inclusive a sugerir a necessidade de

“uma investigação na Torre do Tombo, em busca dos processos alegados por

Bettencourt” (359). De todas formas, as características supostamente alinhadas com a identidade cristã-nova sugeridas por Saraiva no trecho supracitado são abstratas e pouco convincentes, e quiçá apontam mais que tudo para os preconceitos ou idealizações de um autor que viria a lançar o influente porém problemático estudo Inquisição e cristãos-

51 novos (1969). As lágrimas de Fernão Mendes Pinto, por exemplo, de fato o aproximam de Samuel Usque (um dos cristãos-novos exilados por excelência). Não obstante, as lágrimas também foram amplamente empregadas na literatura epistolar jesuítica enquanto recurso retórico para “performatizar emoções” (Borowitz 2016) – de modo a pôr em evidência a devoção dos missionários católicos no que diz respeito à evangelização de povos gentios. De qualquer maneira, incluir Fernão Mendes Pinto na galeria de cristãos- novos lusitanos certamente afirmaria a agenda de pesquisa de Saraiva, bem como promoveria a ideia de um Portugal tolerante, humanista e supostamente desprovido de

“preconceitos nacionais”. Curiosamente, Saraiva perdeu a oportunidade de aproveitar os aspectos picarescos da Peregrinação para apoiar a hipótese da origem judaica de Mendes

Pinto. Conforme argumentado por Yirmiyahu Yovel, “a particularly distinct echo of the

Converso [New Christian] experience resounds from the picaresque novel” (263).55

Por outro lado, Saraiva também observou que as expressões utilizadas por

Mendes Pinto para aludir à grandeza divina denotam uma evidente reminiscência do

Velho Testamento, algo que “seria favorável à hipótese da origem hebraica de F. M. P.”

(1962, 489-490). Com efeito, a preferência pelo Velho Testamento entre sujeitos cristãos-

55 Em The Other Within: The Marranos: Split Identity and Emerging Modernity (2009), Yovel argumentou que tanto o pícaro quanto o cristão-novo carregaram o estigma de “anti-fidalgo”, ou “anti-honrado”, pois careciam de “honra” e “pureza” uma vez que não eram oriundos de famílias nobres católicas. Yovel chamou a atenção para o uso especial da linguagem na literatura picaresca: “The picaresque literature manifested a special use of language, typical of esoteric (and oppressed) minorities, which can also be called “the language of the Marranos.” Not much was explicitly said. Messages were passed by hint and allusion (sometimes crude, sometimes subtle and complicated), using dual meaning, jokes, quips, side stories and fables, or attributing to people features and events that draw their significance from a covert layer of meaning” (264). Sobre o transfundo converso da literatura picaresca espanhola ver também Deborah Skolnik Rosenberg (2012). Apesar de haver alguns elementos em comum entre a Peregrinação e a picaresca espanhola, muitos pesquisadores combateram a abordagem da Peregrinação enquanto obra pícara. Ulla M. Trullemans por exemplo argumentou que, apesar do caráter satírico da narrativa de Mendes Pinto, a Peregrinação “no tiene parentesco con la picaresca española [...]” (101). 52 novos muitas vezes funcionou como mecanismo de negação indireta da identidade católica e, simultaneamente, de afirmação da fé ancestral (Gitlitz 137). Seria este o caso de Mendes Pinto? De fato, com exceção do motivo de Cristo na Cruz e das alusões à

Nossa Senhora, predominam na Peregrinação motivos do Velho Testamento e sentenças e expressões que fazem lembrar a bíblia hebraica. Por exemplo “alto senhor” (capítulo

76), “senhor Deus misericordioso (capítulo 79), “Deus, por quem eram, nos não desampararia da sua mão poderosa” (capítulo 82), “soberano Iuiz que reynaua no Ceo”

(capítulo 85), etc. Apesar de mencionar os “Evangelhos” em algumas ocasiões, Mendes

Pinto raramente discorre sobre o conteúdo do Novo Testamento ou o parafraseia. Isso no entanto não significa que o autor-narrador-protagonista da Peregrinação não afirme em diversas ocasiões sua identidade católica – de modo a afastar a hipótese de uma religiosidade que tende ao judaísmo através da negação do componente católico da cultura textual judaico-cristã. De qualquer maneira, estudiosos como Rui Loureiro ponderaram que a despeito da presença de motivos católicos ao longo da Peregrinação, o fundo e fundamento de religiosidade no discurso da obra “é de tal modo ambíguo, que permite sustentar a hipótese do cripto-judaísmo de Mendes Pinto” (‘Peregrinação’ de

Fernão Mendes Pinto 238). Apesar de apontar na direção correta, a interpretação da ambiguidade do discurso religioso da Peregrinação enquanto possível sinal de cripto- judaísmo oferecida por Loureiro denota uma concepção dicotômica da identidade cristã- nova, segundo a qual não há lugar para nuances, sutilezas, hibridismos e bricolagens. A ambiguidade notada por Loureiro quiçá não indique tanto a hipótese de cripto-judaísmo quanto a confusão (ou sincretismo) que caracterizou a existência religiosa de parte da

53 população judaica convertida em massa ao catolicismo em Portugal, e seus descendentes.

Ou, de outro modo, conforme devo argumentar na segunda parte desta seção, talvez essa ambiguidade indique o empenho da voz narrativa da Peregrinação em se integrar ao universo discursivo cristão normativo – principalmente se levarmos em consideração o contexto histórico da crise político-religiosa em Portugal que culminaria com a anexação do trono lusitano por Felipe II de Espanha em 1580 (monarca católico conhecido por suas políticas de oposição aos cristãos-novos).

Assim como António José Saraiva, a pesquisadora americana Rebecca Catz (1920

- 2001) também dedicou muitos esforços ao estudo da Peregrinação, publicando inclusive uma tradução e edição crítica da obra em inglês (1989). Em sua tese de doutorado sobre a Peregrinação, finalizada em 1972 na Universidade da Califórnia em

Los Angeles e publicada em português em 1978, Rebecca Catz seguiu a linha de interpretação da Peregrinação enquanto texto satírico inaugurada por António José

Saraiva, sugerindo que uma leitura atenta e cuidadosa desta obra revelaria

uma sátira corrosiva pela qual Fernão Mendes Pinto denuncia as

instituições políticas e religiosas de Portugal, no século dezasseis. E

condena vigorosamente a ideologia das cruzadas – a charneira vital,

mitificada, do império ultramarino português. Trata-se, pois, de uma obra

de perigosa concretização numa época em que os mais íntimos

pensamentos e intenções de qualquer autor eram objecto específico duma

feroz censura político-religiosa (A sátira social 15).

54

Ao contrário de Saraiva, para quem a possível origem judaica de Mendes Pinto é plausível porém não consiste em um componente significativo do discurso da

Peregrinação, Catz sugere em diversas passagens de seu estudo que o provável estatuto cristão-novo de Mendes Pinto influenciou sua forma de representar (e condenar) a atividade imperial lusitana no Oriente.56 Assim, a verve crítica de Mendes Pinto em relação à dilatação da fé e do império estaria relacionada a seu estatuto cristão-novo, e portanto, de vítima da Inquisição e portador de uma “inata incapacidade de se identificar com a ideologia da Cruzada” (57). Catz também sugeriu ser “concebível que a velada mensagem do autor da Peregrinação fosse bem acolhida pelos cripto-judeus de Portugal e da Espanha, a quem o cristão-novo exilado Samuel Usque, contemporâneo de Fernão

Mendes Pinto, dirigiu uma mensagem semelhante, contida na sua estranha Consolaçam

às tribulações de Israel” (71).57

56 Segundo Rebecca Catz, Fernão Mendes Pinto provavelmente foi parente distante dos Mendes de Lisboa e Antuérpia, “the powerful New Christians who early in the [sixteenth] century had been awarded the monopoly of the spice trade by the Portuguese crown” (Introduction xxxvii). Isso explicaria, pelo menos parcialmente, a opção de Mendes Pinto em buscar a sorte no Oriente, onde poderia participar do comércio da pimenta, fugindo assim da situação de pobreza que o empurrou para o além-mar. António José Saraiva (The Marrano Factory 24) discorre sobre o consórcio comercial de pimenta e especiarias liderado pelos cristãos-novos Francisco Mendes Benveniste, radicado em Lisboa, e Diogo Mendes Benveniste, radicado em Antuérpia. Diogo foi aprisionado em Antuérpia em 1532 acusado de judaizar, entre outros crimes. Não sabemos no entanto se se tratam de parentes de Fernão Mendes Pinto, pois Saraiva nada menciona a respeito da possível relação de parentesco. H. P. Salomon & A. de L. Leoni (1998) dedicaram um artigo a Diogo e outros membros do clã Mendes Benveniste (inclusive a famosa dona Gracia Nasi), mas em nenhum momento mencionaram o possível parentesco dos comerciantes Francisco e Diogo com Fernão Mendes Pinto. Há documentação que comprova a existência de dois irmãos de Fernão Mendes Pinto, Álvaro Mendes e António Mendes – ambos participaram de expedições militares portuguesas no Oriente, segundo atestado em cartas de Francisco Xavier e Belchior Nunes Barreto (Castro VIII). Rebecca Catz formulou a hipótese, sem base documental sólida, de que Fernão Mendes Pinto foi irmão de um Álvaro Mendes, aliás Solomon Ibn Yaish, cristão-novo nascido ao redor de 1520 e aderido ao judaísmo em Constantinopla na década de 1580 (A sátira social 88). 57 Rebecca Catz também sugeriu que há na Peregrinação passagens que representam um “ponto de vista de todo concordante com o de um cristão-novo que desafiando a Inquisição presta culto ao Deus dos seus antepassados, em segredo, como faziam inúmeros marranos tanto em Espanha como em Portugal” (256, itálicos no original). 55

A tese de Catz é problemática porque essencializa a identidade cristã-nova, atribuindo-lhe de forma determinista características anti-imperialistas inatas e, ademais, incorre em uma leitura monolítica da Peregrinação, oferecendo uma interpretação unívoca para uma obra que permite múltiplas abordagens. Escrita antes da revolução cartesiana, a Peregrinação não é uma narrativa moderna. Por esse motivo, é problemático concebê-la como portadora de um discurso uniforme e contínuo, onde o autor Mendes

Pinto narra sua autobiografia desde um ponto de vista completamente lógico e consistente em termos modernos (Sousa 16).

O interesse por Fernão Mendes Pinto nos Estados Unidos não se limitou aos estudos de Rebecca Catz. Constance Hubbard Rose, ex-aluna do eminente professor

Stephen Gilman (1917-1986), dedicou-se à investigação da adaptação da Peregrinação ao teatro – atribuída num primeiro momento a Lope de Vega, mas em realidade composta por ninguém menos que António Enríquez Gómez (1600?-1663), um dos cristãos-novos exilados mais emblemáticos do século XVII. Além de afirmar corretamente que os sobrenomes Mendes e Pinto sugerem origem judaica (67), Rose notou o paralelismo entre a experiência de errância vivenciada tanto por Mendes Pinto quanto por Enríquez Gómez, argumentando que

what impelled Enríquez Gómez to dramatize the exploits of the

Portuguese adventurer, Mendes Pinto, was seemingly the

peripatetic pattern of his own existence; what appealed to the

playwright was not the subject of the Far East per se but the story

of a wandering man, a Peninsular exile who overcome adverse

56

Fortune and rose to a position of power in a foreign land. The idea

of either fleeing or combatting fortune is thematic to the work of

many sixteenth- and seventeenth-century New-Christians authors

who expressed their own uncertain social situation in terms of the

travails endured by fictional characters constantly subject to the

arbitrary acts of the fickle goddess (65).

Rose apontou um elemento importante da identidade cristã-nova, isto é, a experiência exílica de muitos dos descendentes de judeus ibéricos que pelos mais diversos motivos se viram impelidos a deixar a Península.58 Ademais, Rose notou que o fato de Mendes Pinto

(ou sua persona literária) haver embarcado para o Oriente em 1537, precisamente um ano após o estabelecimento da Inquisição em Portugal – também é digno de nota no sentido de apoiar a hipótese de sua origem judaica (68). Além de ser desenvolvido por Enríquez

Gómez ao longo de sua vasta obra, o motivo do exílio também aparece na Consolação as tribulações de Israel (Ferrara, 1553), do cristão-novo português Samuel Usque (1500-

1555). Considerada um clássico da literatura judaica em língua portuguesa (Yerushalmi,

A Jewish Classic), a Consolação de Samuel Usque é uma obra com a qual a

Peregrinação foi diversas vezes comparada.59

58 Yosef Hayim Yerushalmi nos faz recordar que “from the Cain of Augustine as figure or symbol of the Jewish people, to Ahasueros the Wandering Jew of the Middle Ages, to Leopold Bloom of Joyce’s Dublin, the Jews have been and remain the archetype of exile in the Western imagination” (Exile and expulsion 3). 59 Apesar de ser muito diferentes em termos de forma e conteúdo, a Peregrinação e a Consolação coincidem em alguns aspectos. Por exemplo, Mendes Pinto e Samuel Usque alegam motivações similares para escrever suas obras. No prólogo da Consolaçam, Usque explica que a trágica história judaica pós- bíblica, apresentada no seu livro em forma de um diálogo pastoril entre Zicareo, Ycabo e Numeo, serve como critério de comparação para medir o sofrimento enfrentado pela geração do próprio autor: “[...] nã ha trabalho por grande que seja cuja força agora nos atormenta, que ja nã ajam os passados visto & padecido mayores; & se em algũa gente ysto se entende & pode vereficar he na nossa trabalhada & corrida naçaõ, aqual ynda que nestes nossos tempos padeça graues tribulaçoẽs, toda uia muito moores foram aquellas que 57

É sugestivo que Mendes Pinto tenha definido sua jornada pelo Oriente enquanto

“peregrinação” se levarmos em conta que o termo “peregrino” foi considerado “a

Marrano word par excellence to describe the intense insecurity of the crypto-Jew in

Iberia, used by sixteenth-century writer Nuñez de Reinoso and Antonio Enríquez Gómez inter alia” (Oelman 127, nota 48).60 Na Consolação de Usque por exemplo Ycabo, personagem que personifica o povo judeu em suas errâncias e deslocamentos por diferentes continentes, afirma sua condição de peregrino: “O atrebulado corpo se toda a terra he chea de minhas miserias e trabalhos; nas riquesas e deleites da feliçe Asia, ali me acho pobre e afanado pelegrino, na abundancia do ouro e grossura da terra da abrasada

África, lazrado famindo, e sequioso desterrado” (i). A ideia de “peregrinação” ou

“peregrino” com conotações de fuga e/ou exílio dentro do universo discursivo cristão- novo também aparece num poema de João Pinto Delgado (1580-1653), cristão-novo português emblemático que assumiu publicamente sua identidade judaica em Amsterdam após passar uma temporada em Ruão, no noroeste da França. No poema autobiográfico A la despedida de un amigo, Pinto Delgado qualifica o cripto-judeu que deixa Portugal rumo a Amsterdam como “peregrino” (versos 47-48, em Oelman 127). Cristãos-novos ibéricos que se deslocaram para o Novo Mundo e foram eventualmente condenados pela

Inquisição, como Bento Teixeira (1561-1600) e Luís de Carvajal, el Mozo (1567-1596),

ja pellos nossos antigamẽte passarom, pello que estas se podẽ reputar por piquenas” (iii-iv)”. De modo similar, Mendes Pinto adverte que escreveu sua obra para que seus filhos vissem nela “estes meus trabalhos, & perigos da vida q passei no discurso de vinte & hũ anos em q fuy treze vezes catiuo, & dezasete vendido, nas partes da India, Etiopia, Arabia feliz, China, Tartaria, Macassar, Samatra, & outras muitas prouincias daquelle oriental arcipelago, dos confins da Asia, [...], & daqui por hũa parte tomem os homẽs motiuo de se não desanimarem cos trabalhos da vida para deixarem fazer o q deuem, porque não ha nenhũs, por grandes que sejão, com q não possa a natureza humana, ajudada do fauor diuino [...]” (1, 29). 60 A palavra “peregrinação” figura no título da obra e é reiterada em várias passagens do texto. 58 também fizeram uso do termo “peregrino” em conexão com suas identidades judaicas

(Costigan 47). A simbologia do peregrino também foi aproveitada por ninguém menos que Menasseh Ben Israel (1604-1657) – autor que dispensa apresentações.61 Contudo, não é possível estabelecer uma conexão cabal entre o “peregrino” e o cristão-novo exilado de sua terra natal, uma vez que se trata de um termo imbuído de várias possibilidades semânticas. O termo certamente também foi empregado em contextos desvinculados dos exílios e viagens de cristãos-novos ibéricos. Lope de Vega (1562-

1635) por exemplo emprega o termo em El peregrino en su patria (1604) – apresentando uma noção de peregrinação que “has more to do with exile and adventure as the best teachers of experience, wisdom and virtue” (Samson 235). De qualquer forma, a ideia de peregrinação em Mendes Pinto não aparece vinculada a nenhuma motivação religiosa definida. O Mendes Pinto “peregrino” é sobretudo um desterrado, um “exilado” que perambula sem destino. De fato, o que empurra Mendes Pinto para os perigos, incertezas e (des)aventuras do mar e de um horizonte desconhecido não é propriamente o desejo de chegar a um destino final, claro e definido. Sua viagem é justificada, no primeiro capítulo da obra, pela necessidade de fugir da miséria, pobreza e perigos que a vida lhe apresenta no Reino. Trata-se portanto, assim como em Samuel Usque, de uma viagem impulsionada pelo signo da fuga e exílio. Ao longo dos duzentos e vinte seis capítulos da

61 Me refiro naturalmente ao selo de impressão que representa um peregrino (“apercebido com um romeiro”) utilizado por Menasseh Ben Israel em De la fragilidad humana, y inclinacion del hombre al peccado (1642) e outros livros. Ver A.K. Offenberg (198). 59

Peregrinação o narrador nunca chega a assinalar com precisão um destino final específico para sua perambulação pelo Oriente.62

Não é implausível que o estabelecimento de tribunais do Santo Ofício da

Inquisição em 1536 tenha motivado o embarque de Mendes Pinto para o Oriente – região que se encontrava então relativamente afastada dos aparatos de vigilância inquisitorial.63

Não obstante, no caso de Mendes Pinto a hipótese de um embarque motivado pela instalação do aparato inquisitorial no território lusitano fica circunscrita ao âmbito da conjectura. Porém, também é importante notar que o embarque do narrador-protagonista da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto não se atrela a motivações evangélico- proselitistas – um dos principais recursos retóricos para apoiar a expansão marítima lusitana, conforme visto na introdução desta tese. A motivação evangelizadora se verifica, por exemplo, no Tratado das coisas da China (Évora, 1569-1570), do dominicano Gaspar da Cruz (c.1520-1570).64 Como sabemos, o embarque de Mendes

Pinto em 1537 é justificado por causas econômicas: “E porque a moradia que então era custume darse nas casas dos Principes, me não bastaua para minha sustentação, determiney embarcarme para a India, inda que com pouco remedio, já offerecido a toda

62 Arnaldo Saraiva não abordou o tema da identidade judaica de Mendes Pinto, mas notou precisamente a “falta de linearidade espacial, de um percurso contínuo, ou de um itinerário ou rota definida” (136) da viagem de Mendes Pinto pelo Oriente, salientando que a Peregrinação se destaca sobretudo por seu carater de errância ou vagabundagem. O mesmo pesquisador também afirmou que a narrativa “não supõe uma viagem organizada e com um objectivo científico, militar ou outro, como ‘expedição’, mas uma viagem solta, à solta” (idem). 63 Como sabemos, o Santo Ofício de Goa só viria a ser estabelecido em 1560. 64 Gaspar da Cruz inicia seu tratado da seguinte maneira: “Para que as gentes fossem acabadas de chamar ao Evangelho, como convinha antes do acabamento do mundo, segundo São Paulo e segundo Cristo por São Mateus, ordenou Deus os descobrimentos que fizeram os castelhanos das Terras Novas e o que fizeram os portugueses da navegação da Índia, por meio dos quais Deus por seus servos tem convertidas novamente muitas gentes à fé, e vai convertendo e converterá” (59). 60 ventura ou má ou boa, que me soccedesse” (1, 31).65 Com efeito, a motivação econômica do narrador na Peregrinação de certa forma coincide com a dimensão mercantil da identidade dos cristãos-novos, também conhecidos como “homens-de-negócios”. Além disso, a pobreza foi uma das causas que empurrou vários cristãos-novos para o além-mar, conforme afirma o próprio Samuel Usque na Consolaçam.66 Entretanto, diferentemente do grande embarque de Mendes Pinto para o Oriente ocorrido em 1537, é necessário notar que o autor-narrador-protagonista da Peregrinação não especifica as causas de sua apressada fuga da casa de uma senhora de Lisboa, a quem então servia. Trata-se de um

“causo”, ocorrido ao redor de 1523, narrado também no primeiro capítulo da

Peregrinação, que “me pos a vida em tanto risco, que para poder saluar me foy forçado sairme naquella mesma ora de casa, fugindo com a mayor pressa que pude, & indo eu assi tão desatinado co grande medo que leuaua, que não sabia por onde hia, como quem vira a morte diante dos olhos, & a cada passo cuidaua que a tinha comigo [...]” (1, 30).

Quais teriam sido os motivos que impulsionaram tão apressada fuga, e por que eles não são mencionados? Acaso esse silêncio denota simplesmente o desleixo do autor, ou trata- se de um artifício literário deliberado? De um modo ou de outro, o leitor é deixado em uma situação de dúvida, perplexidade e inquietação. A possibilidade da fuga apressada haver sido impulsionada devido a perseguição religiosa (ou social) fica em aberto pois, muito embora a Inquisição só tenha chegado em Portugal na década posterior (1530), os

65 O primeiro número entre parêntesis indica o capítulo e o segundo número indica a página (edição da Fundação Oriente, 2010). 66 “Pello que eu comouido, & vendo esta nossa naçaõ seguida & afugentada agora dos reinos de Portugal vltimamente hũs por pobreza, outros por temor, & os mais delles pella pouca costancia q a nosso pouo socederõ cõ as causas por que cada mal se moueo […]” (Usque, Prólogo). 61 cristãos-novos lusitanos já naquele então constituiam uma categoria social relativamente segregada da população majoritária portuguesa.67

As conjecturas sobre a possível origem judaica de Mendes Pinto levantadas por

Rebecca Catz e Constance Hubbard Rose na década de 1970 não convenceram o investigador português Aníbal Pinto de Castro (1938 - 2010). Em seu longo prefácio à publicação da Peregrinação lançada em 1984, Castro argumentou que a hipótese da origem judaica de Mendes Pinto é um problema que “em si nada teria de relevante, se não fosse manipulado como fundamento da interpretação que faz da Peregrinação um manifesto das posições anti-católicas do Autor, sempre virado contra a legitimidade, os processos e os resultados da acção evangelizadora de Portugal no Oriente” (ix). Para

Castro, o suposto significado crítico-satírico da Peregrinação “não põe em causa a evangelização, nem pretende condenar a conquista; e muito menos nasce de uma preocupação depreciadora da fé”. (xlvi). Castro enfatizou de forma pertinente a dimensão católica do texto de Mendes Pinto, quiçá no mesmo afã demonstrado por Armando

Cortesão quarenta anos antes em projetar um Portugal homogêneo do ponto de vista religioso. No entanto, certos argumentos de Castro para refutar um possível discurso cristão-novo ao longo da Peregrinação parecem problemáticos. Ao comentar o uso do termo “Nosso Senhor” – termo preferido por Mendes Pinto para referir-se à esfera divina

67 Baseando-se em diferentes artigos de Fernando António Almeida sobre a biografia de Mendes Pinto (publicados na revista portuguesa História em 1987 e 1988), Zoltán Biedermann e Andreia Martins de Carvalho (2010) reiteraram a hipótese que a senhora a quem Mendes Pinto servia era Dona Joana da Silva e Castro. Isso explicaria a fuga apressada do jovem Fernão Mendes Pinto, pois: “Dona Joana da Silva had an affair with one Manuel de Melo Freire, a noble whom she had not been allowed to marry in early years. When her husband Francisco de Faria found out about this in mid-1523, he had the lovers killed in a dramatic and much-commented ambush. The young Pinto, scared as he was for having served Dona Joana rather than her husband, saw no other solution than to run off” (39). 62

– Castro afirmou que o “Nosso Senhor” de Mendes Pinto necessariamente alude a Cristo:

“Note-se que Deus é invocado sempre na pessoa de Cristo (Nosso Senhor, diz invariavelmente Fernão Mendes), invocação que muito dificilmente se compreenderia se a sua crença religiosa radicasse na Lei Antiga ou por ela se pautasse” (Castro XXXVIII).

Não obstante, a correspondência absoluta entre “nosso senhor” e “Jesus Cristo” proposta por Castro é contestável porque desconsidera a duplicidade semântica do termo “Nosso

Senhor” – amplamente empregado por Samuel Usque na Consolaçam para referir-se exclusivamente ao Deus da bíblia hebraica.68 Uma leitura atenta de várias passagens onde

Mendes Pinto emprega o termo “Nosso Senhor” sugere que o autor-narrador não está aludindo necessariamente a Cristo, mas provavelmente ao Deus abstrato judaico-cristão.

Nesse sentido, a Peregrinação se aproxima de um discurso cristão-novo porque se afasta do universo de referências católicas. Por outro lado, o posicionamento de Castro é pertinente pois contesta a conclusão simplista que a identidade cristã-nova esteve necessariamente em contradição com o ímpeto imperial português.69 Nesse sentido, como vemos a seguir, Castro coincide com a abordagem de Eduardo Lourenço.

68 Amparado no estudo de Paul Teyssier (1990) sobre a Consolação, H.P. Salomon observou que o termo mais frequente para referir-se a Deus na obra de Samuel Usque é “Señor”. Tal termo, como observa Salomon, aparece “em várias combinações, tais como ‘nosso Senhor’, ‘o altíssimo Senhor’, ‘o Senhor dos exércitos’, etc.” (207). Mendes Pinto raramente usa o termo “nosso senhor” no formato “nosso senhor Jesus Cristo”, ou “Jesus Cristo nosso senhor”, conforme o uso dos Evangelhos. Além disso, às vezes a Peregrinação apresenta o termo “Deos nosso Senhor” (capítulo 96, página 314). A bíblia hebraica usa o aparece (וַאֲדֹנֵינּו) ”e não “nosso senhor”. Contudo, o termo “nosso senhor (אֲדֹנָי ou אֱֹלהִ ים) ”termo “o Senhor duas vezes nos Salmos (135:5; 147:5). 69 A crítica de Aníbal Pinto de Castro aparentemente não abalou as convicções de Rebecca Catz. Em entrevista publicada no Chicago Tribune em 8 de julho de 1990, Catz seguiu afirmando sua tese: “I detected in this book [Peregrinação] something that none of the other critics had detected: that it was a satire, that his [Mendes Pinto] intent was to attack the religious and political institutions of 16th-century Portugal” (3). 63

Apesar de reconhecer a dimensão de crítica indireta à ação portuguesa no Oriente veiculada através da Peregrinação, Eduardo Lourenço não considerou a obra de Mendes

Pinto como portadora de intenções satíricas veladas. Lourenço afirmou que a

Peregrinação, “assim como Montaigne o disse dos seus famosos Ensaios, é não apenas uma obra de ‘boa-fé’, como de uma grande candura e inocência” (62). Para Lourenço, os subentendidos satíricos e críticos de conteúdo eminentemente subversivo encontrados na obra de Mendes Pinto “provêm de gente que além de não ler na Peregrinação o que lá está escrito quer ajustar contas contra uma cultura que seria, por excelência, a da intolerância, da Inquisição, do Index, da vontade de poderio, da atroz ganância e contra a qual o ‘cristão-novo’ Mendes Pinto teria imaginado a mais subtil e irônica resposta […]”

(62-63). A abordagem de Lourenço é similar a do compatriota Aníbal Pinto de Castro porque contesta a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo enquanto argumento para favorecer a tese da Peregrinação enquanto sátira. No entanto, Lourenço não se ocupa em examinar a hipótese da origem judaica de Mendes Pinto sob outros ângulos.

No século XXI os pesquisadores que estudaram a Peregrinação não se preocuparam em avançar a discussão em torno da origem judaica de Mendes Pinto e os possíveis reflexos dessa origem no discurso da Peregrinação. A maioria dos pesquisadores do século XXI se limitou a resumir o desenrolar da questão na década de

1980, afirmando por exemplo que o tema “has at times taken on the unfortunate shape of a debate between ‘pro-Catholic’ and ‘pro-Jewish’” (Biedermann & Carvalho 31, nota 15)

– onde Aníbal Pinto de Castro seria o expoente máximo do primeiro grupo, enquanto

Rebecca Catz representaria o segundo. Biedermann e Carvalho demonstraram

64 desconforto com a questão ao afirmar: “We would not dare adding anything to further this discussion unless new evidence comes to light” (idem), sugerindo assim que se trata de uma questão extra-textual (“new evidence” sugere a aparição de documentação até agora desconhecida). Portanto, Biedermann e Carvalho devolvem a questão a um estágio embrionário e puramente documental – similar àquele iniciado por Christóvam Ayres e

Cardozo de Bethencourt há mais de um século. Além disso, é curioso notar que um texto que se propõe a investigar o entorno social de Mendes Pinto (“Home Sweet Home: the

Social networks of Mendes Pinto in Portugal”) praticamente ignora a questão em torno da possível identidade judaica do autor da Peregrinação.

Honra, linhagem e justiça na Peregrinação

A revisão da literatura crítica sobre o possível estatuto cristão-novo de Mendes

Pinto nos leva a pelo menos três conclusões preliminares. Primeiro, a dimensão anti- imperial da Peregrinação, se é que de fato existe, não deve estar necessariamente ligada à suposta identidade judaica do autor Fernão Mendes Pinto (conforme sugerido por

Rebecca Katz). Segundo: o componente católico da Peregrinação não exclui de antemão a possibilidade da origem judaica de Mendes Pinto (conforme sugerido por Aníbal Pinto de Castro). Terceiro: não devemos buscar na Peregrinação um discurso coerente em termos cartesianos/modernos. O discurso da Peregrinação pressupõe uma lógica de outra ordem, pré-moderna, estranha para o leitor situado no século XXI. Um dos maiores

65 desafios para o crítico moderno é, portanto, não incorrer em classificações apriorísticas e anacronismos ao abordar o texto de Mendes Pinto.

Nas páginas a seguir proponho aplicar os três postulados delineados no parágrafo anterior com o objetivo de explorar outras maneiras de contribuir para a discussão em torno da identificação de aspectos de um discurso cristão-novo ao longo da obra de

Mendes Pinto. De toda forma, é necessário enfatizar que os aspectos destacados a seguir não tornam a Peregrinação um “texto cristão-novo” e tampouco buscam avançar conclusões sobre as origens étnicas e religiosas de Mendes Pinto, o homem de carne-e- osso. Gostaria de propor que certos aspectos da dimensão católica do discurso da

Peregrinação poderiam – ao contrário tanto da tese de Rebecca Catz quanto da tese de

Aníbal Pinto de Castro – denotar justamente o afã de adaptação ao discurso hegemônico católico performatizado por um mercador (ou soldado da fortuna) cuja identidade religiosa católica vai se cristalizando ao mesmo tempo em que o texto da Peregrinação se desenvolve. Essa proposta se aproveita do aparato teórico do estudo realizado por

Gregory B. Kaplan (1996) sobre a literatura e poesia de cristãos-novos espanhóis ligados ao círculo humanista de Alfonso Carrillo (1446-82), arcebispo de Toledo. Gregory

Kaplan propôs uma inversão da teoria pós-colonial de Homi Bhabha (The Location of

Culture) sobre a voz do “subalterno” para argumentar que cristãos-novos espanhóis tais como Alonso de Cartagena (1385-1456), Mosén Diego de Valera (1412-1488), Juan

Poeta (1420-?) e outros representaram a voz de uma minoria étnico-religioso que, ao invés de buscar reter sua identidade particularista, esforçou-se precisamente em se assimilar à sociedade majoritária (neste caso católica, cristã-velha e aristocrática).

66

Conforme Gregory Kaplan, a sociedade majoritária espanhola buscava então manter diferenças culturais na finalidade de evitar a absorção do grupo minoritário e, assim, preservar disparidades sociais (53).70 Portanto, Gregory Kaplan sugere que a tendência de autores conversos em expressar ideias humanísticas que enfatizam harmonia social e religiosa se relaciona à difícil tarefa “of integrating themselves into an Old Christian society that gradually came to resent their conversion to Christianity” (54).

Guiados pela articulação teórica proposta por Gregory Kaplan, voltemos nossa atenção para o trecho da Peregrinação a seguir, retirado do capítulo 115. O tempo da narrativa é o dia treze de janeiro de 1544. Mendes Pinto narrador-protagonista e outros oito prisioneiros portugueses são levados de Pequim para a cidade de Quansy, onde deverão cumprir uma das várias sentenças de degredo que Mendes Pinto e outros portugueses recebem ao longo da história. Passado um mês no cativeiro, o grupo se encontrava relativamente contente por haver recebido melhor tratamento do que o esperado para a circunstância. Porém:

vendo o demonio quão conformes viuiamos todos noue, porque tudo o

nosso era comum de todos, & todos irmammente repartiamos entre nòs

essa miseria que cada um tinha, ordenou semear entre dous de nòs huma

contenda assaz perjudicial para todos, nacida de huma certa vaidade que a

nossa nação Portuguesa tem comsigo, a que não sey dar outra razão senão

ter por natureza ser mal sofrida nas cousas da honra, & a differença foy

70 Nas palavras de Gregory Kaplan “[...] the relationship between the conversos and the fifteenth-century Castilian humanism epitomizes the struggle faced by a minority that wished to merge seamlessly with a majority which sought to maintain cultural differences in order to prevent that assimilation and preserve those social disparities.” (53). 67

esta. Vierão a caso dous dos noue que eramos a trauarse em palauras sobre

qual geração tinham milhor moradia na casa del Rey nosso Senhor, se os

Madureyras se os Fonsecas, & de palaura em palaura veyo o negocio a

chegar a tanto que vierão a vsar dos baixos termos das regateyras, dizendo

hum para o outro quem sois vos? mas quem sois vos? com por ventura

cada hum delles ter pouco mais de nada. E com isto se meterão em tanta

colera, que hum delles deu ao outro huma grande bofetada, a qual ouue

por reposta huma grande cutilada pelo rosto do que a deu, dada com huma

faca, que lhe derrubou meya face em baixo, & o ferido lançado mão a

huma alabarda, decepou ao outro hum braço, & trauandose com isto a

briga entre todos noue sobre esta desauenturada questão, a cousa veyo a

estado que despois de sete de nos estarmos muyto feridos, acudio o

Chaem71 em pessoa com todos os Anchacys da justiça, & tomandonos âs

mãos, nos derão logo a cada hum trinta açoutes, de que ficamos mais

sangrados que das feridas, & nos leuarão a huma mazmorra que estaua

debaixo do Chão, onde nos tiuerão quarenta & seis dias com grilhões nos

peis, algemas nas mãos, & colares nos pescoços, com que passamos assaz

de trabalho. Este nosso negocio se pós logo na mão do prometor da

justiça, o qual veyo logo com libello contra nós, & num dos artigos delle,

o qual prouou com dezasseis testemunhas, veyo dizendo que nòs eramos

71 Chaem = “Termo chinês que Fernão Mendes Pinto torna equivalente ao de Visorrei e, mais particularmente, de juiz do Supremo” (extraído do glossário de António José Saraiva que acompanha a edição da Peregrinação publicada entre 1961 e 1984 em quatro volumes). 68

gente sem temor nem conhecimento de Deos, nem tinhamos mais que

confessalo com a boca, como podia fazer qualquer animal bruto se

soubesse fallar, porque de crer era que homens de huma nação, de hum

sangue, de huma carne, de huma terra, de hum reyno, de huma lingoa, e de

huma ley, que se ferião & matauão tanto sem piedade, sem auer causa nem

razão para isso, não era senão por sermos seruos da serpe tragadora da

casa do fumo, o que se via claramente em nossas obras. (115, 379-380)72

Em primeiro lugar, é preciso notar a presença do tema da honra aristocrática nesta passagem – manifesta na discussão, de final sumamente infeliz, entre qual família,

Madureira ou Fonseca, gozava de mais privilégios na corte do Rei português. É fácil perceber que a questão da honra e linhagem não é apresentada pelo narrador da

Peregrinação como virtude, senão como defeito. Naturalmente, as críticas às noções de

“honra e linhagem” formaram parte do horizonte discursivo cristão-novo porque o estatuto de descendente de judeus convertidos ao catolicismo, reforçado pelas leis de pureza de sangue (criadas em Toledo, Espanha, em 1449 e implementadas em Portugal no século XVI), complicou de forma arbitrária a aquisição de prestígio social e o acesso a títulos de nobreza e a determinados cargos administrativos, políticos e militares.

Fernando de Rojas (1470?-1551) por exemplo, na famosa tragicomédia Celestina (1499), coloca na boca do personagem Semprônio a seguinte fala: “Y dizen algunos que la

72 “Casa do fumo” = “The Chinese hell (Diyu, literally ‘earth prision’, or yinfu ‘the shady mansion’) is the realm of the dead or ‘hell’ in Chinese mythology. It is very loosely based upon the Buddhist concept of Naraka combined with Taoist and traditional Chinese afterlife beliefs” (Eberhard 142-3, citado por Manel Ollé na nota de rodapé número 13 do capítulo 89 da Peregrinação, edição de Jorge Santos Alves [2010]). No capítulo 161 da Peregrinação Mendes Pinto afirma que a serpe tragadora da casa do fumo é “Lucifer” (538). 69 nobleza es una alabança que proviene de los merescimientos y antigüedades de los padres. Yo digo que la agena luz nunca te hará claro si la propria no tienes. Y por tanto no te estimes en la claridad de tu padre, que tan magnífico fue, si no en la tuya; y ansí se gana la honrra, que es el mayor bien de los que son fuera de hombre” (segundo ato,

131).73 Outro aspecto interessante da passagem da Peregrinação supracitada é a fala pungente do promotor de justiça que, pasmado, não podia acreditar que “homens de huma nação, de hum sangue, de huma carne, de huma terra, de hum reyno, de huma lingoa, e de huma ley, que se ferião & matauão tanto sem piedade” (380). De maneira similar àquela clamada pelos cristãos-novos do círculo humanista do arcebispo Alfonso

Carrillo (1446-82) estudados por Gregory Kaplan, esse trecho da Peregrinação expressa um anseio por (ou, de outro modo, põe em evidênca uma falsa ideia de) unidade e harmonia sociais que, para desespero e espanto do narrador (e também do legislador chinês), não se cumprem na prática. Ainda mais interessante é notar a alusão a ideia de

“hum sangue” – sobretudo no contexto dos estatutos de pureza de sangue. Estaria Mendes

Pinto aludindo sutilmente aos estatutos de pureza de sangue?

Não é de surpreender que Mendes Pinto coloque comentários críticos sobre o modo de proceder dos portugueses na boca do legislador chinẽs, e não na voz do próprio narrador. Esse procedimento, reconhecido como “crítica indireta”, de certa forma isenta o autor (que fala desde um local de enunciação supostamente cristão e português) de responsabilidade pelo comentário potencialmente indecoroso, uma vez que a fala vem de

73 Para uma leitura da Celestina à luz do estatuto cristão-novo de Fernando de Rojas ver o estudo pioneiro de Stephen Gilman (1972). 70 um personagem que não é cristão nem português. De toda forma, o procedimento de crítica indireta operado por Mendes Pinto não implica que seu discurso seja essencialmente anti-imperial. O procedimento de “crítica indireta” não é uma exclusividade da Peregrinação, pois também é adotado, por exemplo, por Galiote Pereira

(1510? - 1561). Embarcado para o Oriente em 1534 na armada do vice-rei Martim

Afonso de Sousa, Galiote Pereira é o autor de Algumas cousas sabidas da China (1561?).

Entusiasmado com a civilização chinesa, Pereira elogia abertamente (e de forma bastante ousada) “a maneira e estilo que os chins têm em o fazer de sua justiça, para que se saiba a vantagem que nos estes têm sendo gentios, e nós cristãos, tanto mais obrigados a fazer a verdade e direito” (29).74

Mendes Pinto coincide com Galiote Pereira não somente no uso do procedimento de crítica indireta, mas também na preocupação com o tema da justiça. A justiça, como observa António José Saraiva, é “um dos temas fundamentais da Peregrinação”

(1985,153). A preocupação com a justiça no discurso da Peregrinação se manifesta, por exemplo, na figura do “promotor da justiça” que emerge no trecho supracitado (capítulo

115) para punir o comportamento inadequado dos portugueses que viajam com Mendes

Pinto. O encontro de Mendes Pinto e seu grupo com um rei da Tartária (capítulo 122) oferece outro exemplo da preocupação do discurso da Peregrinação com o tema da justiça. O monarca tártaro pergunta (com a ajuda de um intérprete) qual é a origem do grupo de Mendes Pinto e quão distante está sua terra natal. Um dos membros do grupo

74 Sabemos que uma das fontes utilizadas por Fernão Mendes Pinto foi o Tratado das coisas da China de Gaspar da Cruz (Margarido, Fernão Mendes Pinto, um herói do cotidiano 25). Gaspar da Cruz por sua vez aproveitou o relato de Galiote Pereira (Loureiro, Introdução a Algumas cousas sabidas da China 30, nota 100). 71

“em nome de todos respondeo, que a nossa terra se chamaua Portugal, cujo Rey era muyto grande, poderoso, & rico, & que della a aquella cidade do Pequim aueria distancia de quasi tres annos de caminho, de que elle fez hum grande espanto como homem que não tinha esta maquina do mundo por tamanha [...]” (405). Espantado, o monarca tártaro pergunta aos portugueses porque preferiram viajar por mar, e não por terra. O grupo explica que “por a terra ser muyto grande, & auer nella Reys de diuersas nações que o não consintirião” (406). O monarca tártaro lança então a seguinte pergunta: “que he o que vindes buscar a essoutra [nação], porque vos auenturais a tamanhos trabalhos?” (406).

Mendes Pinto não entra em detalhes sobre a resposta fornecida ao monarca tártaro, contando apenas que o grupo respondeu ao monarca usando as “melhores & milhor enfeitadas palauras que então o correrão” (idem). A reação do monarca tártaro é descrita da seguinte maneira: “e esteue hum pouco suspenso, & bulindo tres ou quatro vezes com a cabeça disse, para hum homem velho que estaua junto delle, conquistar essa gente

[portugueses] terra tão alongada da sua patria, dâ claramente a entender que deue de auer entre elles muyta cubiça & pouca justiça” (idem). O velho, que se chamava Raja Benão, disse então: “assi parece que deue ser, porque homens que por industria & engenho voão por cima das agoas todas, por aquirirem o que Deos lhes não deu, ou a pobreza nelles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua patria, ou a vaydade, & a cegueyra que lhes causa a sua cobiça he tamanha que por ella negão a Deos, & a seus pays” (idem). Ao dar a palavra ao monarca tártaro e ao velho que o acompanha, a narrativa da Peregrinação é capaz de abordar o tema da Justiça (ou falta dela) na sociedade portuguesa de forma sutil mas contundente. Além disso, atribui-se aos portugueses características como cobiça,

72 vaidade e cegueira. Tudo isso, somado, faz que os portugueses neguem seu Deus e seus pais – conforme asseverado pelo velho tártaro (que, supostamente, é pagão). A preocupação com o tema da Justiça é certamente uma preocupação universal, mas é possível supor – assim como o tópico da honra e linhagem – que se tratou de um tema significativo para cristãos-novos. António Enríquez Gómez (Cuenca, c.1601- Sevilha,

1663) constitui um bom exemplo. Perseguido pela Inquisição em diversas ocasiões e considerado um dos cristão-novos exilados mais emblemáticos do século XVII, o autor da adaptação da Peregrinação ao teatro fez do tópico da Justiça um dos temas centrais de sua vasta obra. O elogio de Enríquez Gómez à conduta virtuosa no governo, nas profissões e nas relações individuais, bem como sua crítica contra a conduta anti-virtuosa, afirmam sua consciência da degradação social que o cercava (Warshawsky iii). Os trechos da Peregrinação supracitados se alinham com a crítica social de Enríquez Gómez e oferecem mais um ponto de contato entre a Peregrinação e a obra de um cristão-novo.

O fato de a visão de mundo expressada por Enríquez Gómez ao longo de sua vasta obra ser “neither completely Jewish nor Christian, but combines teachings of both faiths”

(Warshawsky 2) constitui um ponto adicional de contato entre a dimensão religiosa dos discursos de Enríquez Gómez e Mendes Pinto.

O hispanista francês Marcel Bataillon (1895-1977) concluiu o famoso ensaio

¿Melancolía renacentista o malancolía judía? sugerindo que o componente melancólico

(quase romântico) da novela pastoril “si no fue creación de los ‘conversos’ y judíos peninsulares, fue de su particular agrado, y tal vez cobró gracias a ellos nueva resonancia” (50). Da mesma forma, é possível supor que a preocupação com o tema da

73 justiça, bem como de honra e linhagem, na literatura ibérica do séculos XVI e XVII não tenha sido necessariamente uma invenção dos descendentes de judeus. A melancolia causada pelas aflições da condição de pária tampouco o foi. Não obstante, é provável que esses temas tenham sido particularmente relevantes para os descendentes de judeus ibéricos – uma vez que a “falta de honra” os excluía de forma arbitrária de vários círculos das sociedades ibéricas. Da mesma forma, a arbitrariedade do Santo Ofício da Inquisição provavelmente os tornava especialmente sensíveis ao tema da justiça.

Considerações finais

A extensão e complexidade da Peregrinação, bem como a falta de documentação que comprove ou refute a origem judaica de seu autor, permitiu que a fortuna crítica em torno da obra tanto enfatizasse a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo quanto a desprezasse veementemente. Como vimos, tal hipótese esteve geralmente submetida às tendências de investigação, ao contexto social e ao espírito do tempo de cada pesquisador, bem como a suas maneiras de projetar a identidade nacional portuguesa. A hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo desenvolveu-se sobretudo fora de Portugal, e foi rebatida principalmente dentro de Portugal - fato que talvez indique a tendência de projetar a pátria lusitana enquanto nação católica, e/ou o afã de livrar-se de um estigma de país judaico. O caso de Garcia d’Orta é diferente, pois desde a década de 1930 há suficiente documentação que comprova sua origem judaica.

Também há suficientes passagens ao longo dos Colóquios que sugerem ecos da

74 identidade cristã-nova de seu autor. De todo modo, vimos que a historiografia portuguesa moderna às vezes resistiu à ideia de reconhecer o impacto da condição de cristão-novo na vida e obra do doutor de Castelo de Vide.

Vimos que a tese da identidade cristã-nova de Mendes Pinto como mola motora de sua verve crítica contra a prática imperial lusitana é uma tese problemática. Esta tese torna-se ainda mais problemática ao estabelecermos uma comparação entre a

Peregrinação de Mendes Pinto e os Colóquios de D’Orta, uma vez que D’Orta foi cristão-novo, mas não foi um crítico veemente do império. Não obstante, D’Orta apresenta a expansão do império despida de sua dimensão católica. Mendes Pinto por sua vez não ignora a ideia de dilatação da fé e do império. Porém, o peregrino de Montemor- o-Velho veicula um discurso religioso ambíguo ao longo de seu texto. De qualquer modo, devemos adotar cautela ao comparar os texto de D’Orta e Mendes Pinto, já que se tratam de textos criados em circunstâncias bastante diferentes. Uma coisa é certa: ambos os textos representam a expansão imperial lusitana de um modo muito singular, e a condição cristã-nova desses autores (ainda por ser averiguada documentalmente no caso de

Mendes Pinto) pode haver influenciado seus modos singulares de narrar a mobilidade portuguesa no além-mar. Ambos textos tem seu lugar garantido no cânone da literatura portuguesa de todos os tempos, e permanecem sendo textos atuais em pleno século XXI.

Apesar de os Colóquios de D’Orta haverem sido banidos em 1580 –

“sobrevivendo” tão somente graças a adaptações e traduções – seu impacto é óbvio em um obra escrita no nordeste do Brasil em 1618. Refiro-me aos Diálogos das grandezas

75 do Brasil, atribuídos ao cristão-novo português Ambrósio Fernandes Brandão e objeto de estudo do próximo capítulo.

76

CAPÍTULO 3

UM CRISTÃO-NOVO NOS TRÓPICOS: EXPANSÃO IMPERIAL E IDENTIDADE

RELIGIOSA NOS DIÁLOGOS DAS GRANDEZAS DO BRASIL DE AMBRÓSIO

FERNANDES BRANDÃO75

Os Diálogos das grandezas do Brasil (daqui em diante Diálogos), atribuídos ao cristão-novo português Ambrósio Fernandes Brandão (1555-1618?), foram redigidos em

1618 no nordeste do Brasil, provavelmente na capitania da Paraíba.76 A obra circulou em forma manuscrita e veio a ser publicada pela primeira vez tão somente na segunda metade do século XIX. Desde então os Diálogos vêm ganhando uma densa camada crítica, inaugurada pelos estudos pioneiros de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-

1878), Capistrano de Abreu (1853-1927) e Rodolfo Garcia (1873-1949), e consolidada nas edições críticas de José Antônio Gonsalves de Mello (1966) e Frederick Holden Hall

75 Uma versão preliminar deste capítulo apareceu publicada em Colonial Latin American Review, 25/2 (2016), 200-219. 76 A polêmica sobre a determinação da autoria dos Diálogos, finalmente atribuída a Ambrósio Fernandes Brandão por Capistrano de Abreu em 1900 após décadas de caloroso debate, é investigada detalhadamente por Mello (1966, vii-xxiv). Mello corroborou a autoria de Brandão através do cruzamento de diversos achados documentais com a informação aparentemente autobiográfica fornecida ao longo dos Diálogos, assumindo que ‘Se outro é o autor dos Diálogos que não Ambrósio Fernandes Brandão, muita documentação, até agora desconhecida, terá que ser revelada, para propor uma nova hipótese’ (vii). 77

(1987).77 A obra foi situada no contexto da literatura de viagens e de informação sobre a terra, e aclamada pela fortuna crítica devido à riqueza descritiva da fauna e flora, da paisagem física e humana, e de aspectos econômicos, políticos e sociais da colônia portuguesa nas Américas (Taunay 33-77; Coutinho 1968; Rodrigues 1979). Mais recentemente, a fortuna crítica dos Diálogos vem atribuindo atenção ao fato de a obra ter sido escrita por um autor cristão-novo português, isto é, um descendente de judeus convertidos em massa ao catolicismo devido ao decreto de expulsão promulgado pelo rei

Manuel I em 1496.78 De fato, os cristãos-novos vem sendo cada vez mais reconhecidos no âmbito acadêmico como um elemento central e determinante na história, sociedade e mentalidade ibéricas proto-modernas (Kaplan, Be'ayat ha-anusim 119). Por esse motivo, não é surpreendente que críticos como Arnold Wiznitzer (1960), Elias Lipiner (1969),

77 Nota bibliográfica: os dois apógrafos dos Diálogos conhecidos atualmente se encontram na Biblioteca Nacional de Lisboa e na biblioteca da Universidade de Leiden, na Holanda (Mello 1966, xxiv). Os primeiros bibliógrafos que mencionaram os Diálogos foram Andrés González de Barcia Carballido y Zúñiga (1738) e Diogo Barbosa Machado (1741), de modo que é equivocado atribuir a descoberta do texto a Francisco Adolfo de Varnhagen, conforme o fazem muitos pesquisadores. Contudo, foi Varnhagen quem levou para o Brasil uma cópia do apógrafo. O primeiro diálogo (do total de seis diálogos que compõe a obra) foi publicado pela primeira vez em 1848 na revista Iris, do Rio de Janeiro, e em 1874 no Jornal do Recife. Os seis diálogos foram publicados entre 1883 e 1887 na Revista do Instituto Archeológico e Geographico Pernambucano, com posfácio de Varnhagen, e entre 1900 e 1901 no Diário Oficial do Rio de Janeiro. A primeira edição reunindo os seis diálogos foi publicada no Rio de Janeiro pela Academia Brasileira de Letras em 1930 com introdução de J. Capistrano de Abreu e comentário crítico de seu aluno Rodolfo Garcia. Em 1943 publicou-se na mesma cidade uma edição com apresentação do historiador português Jaime Cortesão (1884-1960). A edição de 1930 foi republicada em 1956 em Salvador, . Em 1962 o historiador pernambucano José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002) lançou uma nova edição dos Diálogos, publicada em Recife, cujo resultado provem do cotejo dos dois apógrafos conhecidos atualmente. Essa edição, considerada a edição definitiva dos Diálogos, foi republicada em 1966 e novamente em 1997, desta vez com prefácio de Leonardo Dantas Silva. Os Diálogos foram republicados em 1968 no Rio de Janeiro (com introdução de Afrânio Coutinho), e em 1977 em São Paulo e Brasília simultaneamente. Em 1987 foi publicada em Albuquerque, Novo México, a tradução dos Diálogos ao inglês, realizada pelo brasilianista e bibliógrafo americano Frederick Holden Hall (1915-1972), numa edição crítica ilustrada e cuidadosamente comentada. A mais recente publicação dos Diálogos ocorreu em 2010 em Brasília. Neste trabalho cito a edição de Mello (1966), cujo resultado, baseado no cotejo dos dois apógrafos conhecidos, é provavelmente o que mais se aproxima do texto original. Para mais detalhes sobre as edições dos Diálogos ver a compilação realizada por Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins (1994). 78 Sobre este evento histórico ver Lipiner (1998). 78

Käthe Windmüller (1992), Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins (1994), Manuel

Simões (2001), Carlos Alberto Santos (2007), Nachman Falbel (2008) e Lúcia Costigan

(2010) tenham investigado, em diferentes contextos e profundidades, a maneira pela qual as circunstâncias históricas e o status religioso e social do provável autor dos Diálogos influenciaram a forma e o conteúdo da obra. Meu objetivo neste capítulo é continuar esta linha de pesquisa, destacando algumas passagens dos Diálogos onde reverberam prováveis ecos da instabilidade religiosa que persistiu caracterizando parte da população cristã-nova portuguesa, tanto no Reino como no além-mar, mesmo quatro gerações após a conversão em massa ocorrida em 1497. De fato, a cultura religiosa dos cristãos-novos, também chamados às vezes de “marranos”, “was born in the confrontation between

Christianity and Judaism, which steadily nourished their complex state of being”

(Kaplan, Foreword xi).79 Entre os textos analisados ao longo desta tese, os Diálogos de

Brandão são provavelmente aquele que melhor indica essa tensão. Como veremos, as passagens destacadas ao longo deste capítulo não demarcam de forma explícita a orientação religiosa do texto e seu autor, criando um efeito de indefinição ou brecha que

79 Vários pesquisadores, apesar de reconhecerem as complexidades e nuances da identidade dos cristãos- novos, propuseram taxonomias esquemáticas para classificar seu comportamento religioso. Faur (41-52) por exemplo sugeriu uma classificação dividida em quatro grandes grupos. O primeiro grupo estaria composto por ‘those who wanted to assimilate into the Christian body and loose all contacts with Judaism and their former coreligionists’. O segundo grupo incluía ‘those who wanted to remain Jewish at all costs’. No terceiro grupo estavam ‘those who wanted to be both Jewish and Christian’, e no quarto grupo encontravam-se os cristãos-novos que ‘wanted to be neither Jewish not Christian’. Gitlitz (84) propôs uma classificação muito similar, também dividida em quarto grandes grupos: ‘Some [New-Christians] thought of themselves as (1) Christians; some as (2) Jews; some as (3) seekers of truth caught between the two religions; and some as (4) skeptical dropouts, for whom religion was as unimportant as the times allowed it to be’. Mais recentemente, historiadores como Graizbord (2013) sugeriram que a complexidade e variedade da identidade dos cristãos-novos (também conhecidos como ‘homens da Nação’) não admitem modelos totalizantes (118). Graizbord sugeriu uma aproximação mais cuidadosa ao tema, argumentando que a discussão sobre a identidade dos cristãos-novos não deve levar em conta somente elementos religiosos, mas também étnicos, econômicos e nacionais, entre outros. 79 se aproxima do conceito de liminalidade proposto por Turner (1969). No entanto, trata-se de uma situação de liminalidade que não é necessariamente temporária ou transitória, conforme a definição do ilustre antropólogo cultural britânico, mas possivelmente permanente.80

Escrito em uma época em que a expansão imperial lusitana estava intimamente relacionada à propagação da fé católica – uma prática discursiva chamada “De

Propaganda Fide”, conforme vimos na introdução desta tese – é significativo notar que os

Diálogos são um texto desprovido de alusões positivas à expansão do império e à missão evangelizadora dos portugueses no além-mar (Windmüller 415-6). Também é pertinente notar que as alusões a fontes bíblicas ao longo dos Diálogos se restringem em sua maioria quase absoluta ao Velho Testamento, evidenciando-se assim um procedimento que pode ser chamado de ‘tópica hebraizante’ (Santos 74). Estas duas características marcantes da obra indicam não somente o caráter sugestivo do discurso religioso veiculado ao longo dos Diálogos, mas também podem ser interpretadas como afirmação de uma identidade (cripto-)judaica nas entrelinhas do texto (Costigan 142). Essas características certamente aproximam os Diálogos de Brandão dos Colóquios de Garcia d’Orta estudados no capítulo anterior desta tese.

Conforme veremos a seguir, o fato de os Diálogos terem sido redigidos durante um período histórico especialmente atribulado para os cristãos-novos portugueses

80 Segundo Turner as entidades liminares não estão “nem aqui nem lá”, mas na brecha entre as posições determinadas e ordenadas pela lei, costumes, convenções e cerimonial (94). Para Turner o estado de liminalidade é transitório e temporário, caracterizando-se sobretudo pela passagem de um estado a outro. No entanto, cabe notar que Turner também reconheceu a possibilidade de estados liminares permanentes, onde a situação de transitoriedade “become a permanent condition” (107). 80 permite sugerir que Brandão buscou alcançar não somente o público leitor português de modo geral, mas também se esforçou em apresentar o Brasil de forma atrativa para os cristãos-novos em particular ao apelar para a fluidez identitária desta audiência. O fato de

Brandão haver sido denunciado duas vezes ao Santo Ofício da Inquisição por práticas judaizantes de certa forma também colabora para esta hipótese. Entretanto, as passagens que analisaremos são suficientemente sutis ao ponto de não permitirem conclusões categóricas sobre seu conteúdo religioso. Essas passagens permanecem em última instância abertas e polissêmicas, de modo que continuarão desafiando críticos literários, historiadores e especialistas no estudo da cultura cristã-nova e da literatura colonial luso- brasileira. No mesmo sentido, também é possível supor que a ambivalência das passagens que examinaremos não resulta somente de uma situação de instabilidade religiosa, mas reflete a habilidade de um autor preocupado com a censura e repressão do aparato inquisitorial.

Um dos eventos históricos mais destacados para explicar o êxodo dos descendentes dos judeus lusitanos foi a anexação do trono português pela monarquia espanhola. O período histórico em que a monarquia espanhola anexou o trono português durou sessenta anos (1580-1640) e ficou conhecido, entre outros nomes, como ‘União

Ibérica’. A anexação espanhola do trono português ocorreu após o desaparecimento do rei de Portugal Dom Sebastião (1554-1578) na famosa (ou infame) batalha de Alcácer-

Quibir em 1578 e o subsequente falecimento de seu tio e sucessor, o cardeal Dom

Henrique I (1512-1580), último monarca da Casa de Avis. Tais acontecimentos permitiram que outro tio de Dom Sebastião, Felipe II (1527-1598), rei da Espanha,

81 assumisse também o trono português em 1580 (desta maneira Felipe II da Espanha passou a ser conhecido também como Felipe I de Portugal). A anexação do trono português pelo monarca espanhol proporcionou maior liberdade de movimento aos cristãos-novos portugueses devido ao desaparecimento virtual das fronteiras entre as duas nações. Além disso, a crise econômica em Portugal, bem como o incremento das atividades inquisitoriais lusitanas (Israel, Buenos Aires, Tucumán 315), motivou os cristãos-novos portugueses a imigrar em grandes números, inclusive para a Espanha, onde a atividade inquisitorial havia declinado (Yerushalmi, From Spanish Court 8-9).

Além da atividade inquisitorial e das causas econômicas, outro fator que motivou os cristãos-novos portugueses a deixar a Península Ibérica foi a discriminação imposta pelos estatutos de limpieza de sangre, implementados na Espanha em meados do século XV (e posteriormente em Portugal) com a finalidade de ‘limitar o eliminar cualquier participación de los judeocristianos en las diversas comunidades, tanto religiosas cuanto laicas’ (Sicroff 43).81

Com o advento da União Ibérica o nordeste do Brasil passou a ser uma alternativa atraente para os cristãos-novos que desejavam deixar a Península Ibérica de modo geral, e

Portugal em particular. Além de se tratar de uma região distante dos centros do poder ibérico, suficientemente afastada dos tribunais do Santo Ofício da Inquisição (Boxer, The

81 Baseando-se na Historia dos Christãos Novos Portugueses (1922) de J. Lucio de Azevedo, Lipiner afirma que durante o período em que reinou sobre Portugal Felipe II da Espanha “used against the New Christians of this kingdom [Portugal] the same strict methods that were in force in his own native country. Indeed, he rejected a memorial of the New Christians, in which they requested to be equal to the Old Christians so that they could occupy public offices and enjoy the same benefits granted to the king’s other subjects. He also rejected their requests to intervene with Rome in order to obtain a general pardon for the ‘offences’ of Judaism” (Two Portuguese Exiles in Castile, 27). 82

Portuguese Seaborne Empire 270), o nordeste do Brasil gozava de uma incipiente prosperidade econômica baseada no comércio do açúcar (Schwartz, Sugar plantations

266) e no tráfico de escravos africanos negros. Cabe notar que a relativa liberdade religiosa encontrada no nordeste brasileiro não atraiu somente cristãos-novos temerosos do policiamento inquisitorial, mas também cristãos-velhos insatisfeitos com a exacerbação da ortodoxia e a limitação da liberdade de consciência impostas pelos tribunais da Inquisição e pelas reformas do Concílio de Trento (Schwartz, All Can Be

Saved 180). Entre as capitanias do Nordeste, a de era especialmente atrativa não somente devido às oportunidades econômicas relativas ao comércio do açúcar, mas também porque o primeiro governador da capitania, Duarte Coelho (1485-1554), se mostrou receptivo à presença de cristãos-novos (Costigan 114).82

Em 1583 Ambrósio Fernandes Brandão já habitava a cidade de Olinda, em

Pernambuco, capitania governada então pelo donatário Jorge de Albuquerque Coelho

(1539-1596), filho de Duarte Coelho. No princípio, Brandão trabalhou como agente do afamado cristão-novo Bento Dias de Santiago (contratador da cobrança dos dízimos em

Pernambuco durante as décadas de 1570 e 1580) na coleta de impostos relativos ao comércio do açúcar. No decorrer de apenas alguns anos, Brandão veio a se tornar um próspero senhor de engenho, de maneira que alcançou uma importante e prestigiada posição social. Além disso, também sabemos que em 1585 Brandão se envolveu em

82 Muitos historiadores consideraram o nordeste do Brasil colonial não somente um espaço de maior liberdade religiosa, mas também um local apropriado para cristãos-novos interessados em assumir uma identidade judaica. Segundo Rodolfo Garcia por exemplo: ‘A colônia vastíssima, despoliciada dos zeladores do credo oficial, a uns e outros permitia certa liberdade de ação, e sem receio da repressão imediata, voltavam eles [cristãos-novos] natural e instintivamente às crenças ancestrais’ (citado em Câmara Cascudo 1967, 124). 83 atividades militares, pois participou, na condição de capitão da brigada de mercadores, da marcha liderada por Martim Leitão à capitania da Paraíba, onde portugueses travaram batalhas contra franceses e índios potiguares (Salvador 1965, 266).

Durante a monarquia espanhola de Felipe II (1556-1598) e de Felipe III (1598-

1621) foram estabelecidos tribunais da Inquisição em Lima (1569), na Cidade do México

(1570) e em Cartagena de Índias (1610). Ao contrário da América espanhola, a América portuguesa continuou sendo um território desprovido de tribunais do Santo Ofício.

Apesar disso, o complexo e temido aparato inquisitorial não deixou de ‘marcar sua presença’ em território brasileiro (Sá 266), o qual se encontrava sob a jurisdição do Santo

Ofício de Lisboa. Como sabemos, durante o período em que Felipe II e Felipe III da

Espanha (Felipe I e Felipe II de Portugal respectivamente) reinaram sobre a pátria lusitana foram introduzidas as visitas sistemáticas do Santo Ofício da Inquisição ao nordeste do Brasil. A primeira delas permaneceu no Brasil entre 1591-1595, e a segunda entre 1618-1620.

Ambrósio Fernandes Brandão foi denunciado à primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil juntamente com seu colega cristão-novo português Nuno Álvares, que também se ocupava da coleta de impostos do açúcar. Conforme Rodolfo Garcia, em 1591

Brandão, Álvares e outros cristãos-novos foram ‘acusados de frequentarem a esnoga

[sinagoga secreta] de Camaragibe, blasfemos e hereges, que trabalhavam e faziam trabalhar aos domingos e dias santos’ (43).83 Tal denúncia aparentemente nunca foi

83 A denúncia foi realizada pelo Padre Francisco Pinto Doutel em 8 de outubro de 1591 perante a mesa do Santo Ofício na Bahia (Primeira Visitação do Santo Offício às Partes do Brasil – Denunciações da Bahia, 518-520). 84 levada à investigação e não teve grandes consequências para Brandão. No entanto, este dado biográfico do provável autor dos Diálogos provoca algumas perguntas: acaso a denúncia indica que Brandão de fato realizava práticas judaizantes? Ou, pelo contrário, o fato de a denúncia não ter sido levada a julgamento indica que Brandão era um católico convicto falsamente acusado? Acaso o status, posição social e poder econômico de

Brandão influenciaram as atitudes dos representantes do Santo Ofício? Em que medida os documentos produzidos pela Inquisição refletem a realidade e podem ser considerados fontes fidedignas de informação histórica? Não cabe aqui aprofundar questões a respeito da identidade religiosa dos sujeitos denunciados à inquisição, já discutidas na paradigmática polêmica entre António José Saraiva (1917-1993) e Israel Salvator Révah

(1917-1973), mas advertir que a complexidade histórica e contextual do enorme volume de documentos produzidos pelo Santo Ofício da Inquisição durante mais de três séculos de atividade exige uma interpretação cautelosa do leitor moderno.84

A denúncia contra Brandão ocorrida em 1591 não nos permite chegar a conclusões categóricas sobre a religiosidade do provável autor dos Diálogos. Contudo, devemos notar que em 1595 o nome de Brandão aparece mais uma vez nos registros da primeira visita do Santo Ofício da Inquisição ao Brasil, desta vez não como acusado, mas

84 A discussão entre António José Saraiva e Israel Salvator Révah sobre a natureza da informação produzida pela Inquisição no que diz respeito à identidade judaica dos acusados apareceu no suplemento literário do Diário de Lisboa em 1971, e foi republicada na quinta edição (1985) de Inquisição e Cristãos- Novos de António José Saraiva. De modo geral, Révah considerava que os processos inquisitoriais realmente refletiam as ‘práticas’ e crenças judaicas (ou cripto-judaicas) dos acusados. Saraiva por sua vez considerava todo o procedimento inquisitorial uma grande farsa que refletia o esforço de uma aristocracia decadente em sua luta econômica e ideológica contra a ascensão da nova classe social burguesa. Salomon propôs um meio termo para esta discussão em seu estudo sobre o cristão-novo Fernão Álvares Melo (1982, 6-7). Ver também Graizbord (Souls in Dispute 14-16, 106). 85 como testemunha que prestou depoimento defendendo a inocência do cristão-novo portuense Bento Teixeira (1561-1600).85 Acusado de práticas judaizantes, Bento Teixeira foi preso em Pernambuco pelo primeiro visitador inquisitorial ao Brasil, o licenciado

Heitor Furtado de Mendonça, e enviado ao cárcere do tribunal do Santo Ofício de Lisboa, onde veio a falecer. Além de ter sido um dos casos mais famosos e dramáticos da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, Bento Teixeira também é conhecido como o autor da Prosopopéia, poema épico publicado postumamente em Lisboa, dedicado a

Jorge de Albuquerque Coelho e considerado por Nelson Vieira (1993), entre outros, como uma expressão de cripto-judaísmo na literatura colonial brasileira. Segundo

Costigan, Bento Teixeira escreveu a Prosopopéia com o propósito de registrar sua experiência de cristão-novo injustamente perseguido pela Inquisição, bem como se comunicar de forma velada com outros cristãos-novos importunados pela temerosa instituição (83). Apesar de que os textos, as circunstâncias de produção e os destinos pessoais de Bento Teixeira e Ambrósio Fernandes Brandão tenham sido bastante diferentes, um estudo dos Diálogos das grandezas do Brasil focado no discurso religioso da obra também pode contribuir para a compreensão da complexa interação entre literatura e fontes inquisitoriais no âmbito do Brasil colonial.86

Em torno de 1597, por motivos que ainda não foram devidamente esclarecidos,

Brandão regressou a Portugal, e residiu em Lisboa, na Calçada do Combro, com sua

85 O depoimento aparece no processo de Bento Teixeira localizado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cartório da Inquisição de Lisboa, processo 5206, fólios 57-8. Fotos do manuscrito com o depoimento de Brandão foram reproduzidas por Mello (1966, xlv-xlvii). 86 Também é interessante e curioso notar que Varnhagen, primeiro estudioso a se dedicar ao problema da autoria dos Diálogos, atribuiu a obra a Bento Teixeira (Mello 1966, x). 86 família, por cerca de dez anos. Durante esse período Brandão exerceu o prestigiado e estratégico cargo de Tesoureiro-Geral da Fazenda dos Defuntos e Ausentes, de modo que travou contato com autoridades das mais altas esferas governamentais luso-espanholas.

Entretanto, durante sua estadia em Lisboa Brandão novamente foi denunciado à

Inquisição por práticas judaizantes. A denúncia ocorreu em 1606 perante o tribunal do

Santo Ofício de Lisboa (Mello 1966, xv; Hall 10; Mello 1986, 64-5; Mello 1996, 27;

Costigan 125-6). Assim como a primeira denúncia (ocorrida em 1591), esta nova denúncia tampouco foi levada à investigação. Não sabemos qual foi o principal motivo que levou Brandão a deixar Portugal outra vez, em 1607, e somente a revelação de documentação até agora desconhecida poderá esclarecer se a nova viagem de Brandão rumo ao Brasil esteve relacionada à denúncia ocorrida em Lisboa em 1606.

Em 1607 encontramos Brandão mais uma vez vivendo no nordeste brasileiro, novamente em Pernambuco, onde havia deixado laços comerciais e familiares durante o período em que esteve ausente. Após alguns anos residindo em Pernambuco, em 1613 o provável autor dos Diálogos já habitava a capitania da Paraíba (vizinha de Pernambuco), onde viria a possuir dois engenhos de açúcar (Varnhagen 392) e aparentemente permaneceria até o fim dos seus dias. Brandão finalizou a redação dos Diálogos em 1618, com aproximadamente sessenta e três anos de idade, dono de uma longa e variada experiência brasileira (cerca de vinte e cinco anos vividos no Brasil). Apesar de não assinar sua obra, a autoria de Brandão se insinua através do nome do principal interlocutor e protagonista dos Diálogos: Brandônio, forma alatinada de Brandão.

87

Através do personagem Brandônio, portanto, o autor dos Diálogos simultaneamente se mascara e se revela.87

Coincidentemente, a redação dos Diálogos ocorreu no mesmo ano do desembarque da segunda visitação do Santo Ofício no nordeste do Brasil (1618-1620), liderada pelo licenciado Marcos Teixeira. Terminava assim um período de quase vinte e cinco anos sem a presença de visitadores da Inquisição na América portuguesa. É possível que uma das principais motivações da segunda expedição repressiva do Santo

Ofício ao nordeste do Brasil tenha sido ‘confiscar os bens transferidos clandestinamente por judeus fugidos da Inquisição de Portugal para a colônia’ (Lipiner, Os judaizantes nas capitanias de cima 22-23). Porém, além da motivação econômica, ainda é necessário investigar em que medida a religiosidade flutuante de alguns dos cristãos-novos que habitavam o nordeste do Brasil atraiu a visita da comitiva liderada por Marcos Teixeira.88

Ao pesquisar este aspecto, talvez possamos esclarecer melhor o fato de a redação dos

Diálogos e a chegada da expedição de Marcos Teixeira terem ocorrido no mesmo ano, e assim quiçá estabelecer novas conexões entre os Diálogos e a problemática cristã-nova no âmbito transatlântico português. De todos modos, não sabemos o que aconteceu com

Brandão após a redação dos Diálogos, e por esse motivo a maioria dos pesquisadores considera 1618 como o ano de sua morte.89 Tampouco há suficiente informação sobre a

87 Jaime Cortesão notou que ‘Alatinando o nome de Brandão para Brandônio, o autor dos Diálogos disfarçava-se elegantemente, à moda do Renascimento, mais ou menos aos sábios e humanistas da Europa, aos que escreviam tratados de caráter científico, moral ou religioso, e a qual tamanha repercussão teve ainda na poesia bucólica e na novela pastoril em Portugal’ (13). 88 Sobre as motivações da segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil ver as conjecturas apresentadas por Franç a & Siqueira (1963). 89 Varnhagen aparentemente se equivocou ao indicar que em 1623 Brandão ainda estava vivo: ‘Em 1613 pedia licença para fazer terceiro engenho na ribeira de Garjaú, uma sesmaria, que de facto lhe foi concedida 88 circulação e o impacto do texto para além de conjecturas sobre como um dos apógrafos conhecidos atualmente percorreu seu caminho até chegar à Holanda (Mello 1987, vii- viii), onde viviam então centenas de cristãos-novos de origem ibérica. Na relativamente tolerante Amsterdã de princípios do século XVII, vários entre estes cristãos-novos tiveram a oportunidade de assumir publicamente uma identidade judaica, vindo a tornarem-se ‘judeus-novos’, segundo a expressão de Kaplan (1994).90 Antes de procedermos à leitura atenta de algumas passagens dos Diálogos onde é possível identificar ecos de um discurso religioso sugestivo, convém discorrer brevemente sobre certas características gerais da obra.

Os Diálogos

a 27 de Novembro de 1623. Ignora-se quando faleceu [...]’ História Geral do Brasil, Tomo I, Secção XXII, nota V (392). O intervalo de quase dez anos entre o pedido e a concessão da licença parece demasiado longo. É mais lógico supor que o autor (ou editor de Varnhagen) quis dizer ‘1613’ no lugar de ‘1623’. Wiznitzer se baseou na informação de Varnhagen, mas adicionou um novo equívoco ao indicar 1627 como o ano em que Brandão adquiriu seu terceiro engenho na Paraíba: ‘In 1627 he [Brandão] acquired a third mill in Parahiba, [...]’ (27). Segundo Varnhagen (392) os herdeiros dos Brandões (Luís Camelo Brandão e Jorge Lopes Brandão) emigraram quando os holandeses tomaram a Paraíba. Os três engenhos que pertenceram a Ambrósio Fernandes Brandão foram confiscados pela Companhia das Índias Ocidentais e vendidos a um negociante de Amsterdam chamado Isaac de Rasière. Depois da restauração portuguesa essas propriedades caíram nas mãos de João Fernandes Vieira. Horácio de Almeida (1978, II, 15) afirmou que após a restauração portuguesa os engenhos voltaram a pertencer aos herdeiros de Ambrósio Fernandes Brandão, que residiam então em Madrid, adquirindo as propriedades por meio de procuração. Sobre o destino dos engenhos que pertenceram a Ambrósio Fernandes Brandão ver também Mello (2012, 78-9; 165-7). Sobre Jorge Lopes e outros sucessores da família Brandão ver Kalina Vanderlei Silva (Fidalgos, capitães e senhores de engenho). 90 Alguns dos cristãos-novos tornados judeus em Amsterdam residiram no nordeste do Brasil antes de chegar à Holanda. Entre os casos mais famosos estão James Lopes da Costa (aliás Jacob Tirado, fundador da primeira sinagoga portuguesa de Amsterdã), e Paulo de Pina (aliás Rehuel Jessurun, autor do Diálogo dos montes – obra teatral performatizada na sinagoga Beth Jahacob de Amsterdã em 1624 e publicada pela primeira vez em 1767). Sobre a prolífica e variada literatura criada pelos judeus-novos de Amsterdã ver Boer (1996). 89

Os Diálogos das grandezas do Brasil estão divididos em seis partes. Cada parte corresponde a um diálogo, transcorrido no espaço de tempo de um dia, entre Brandônio e

Alviano. Se Brandônio é uma espécie de alter-ego de Brandão, também podemos inferir que o nome Alviano alude a uma pessoa real: o cristão-novo Nuno Álvares, colega de

Brandão na coleta de impostos do comércio do açúcar cujo nome, conforme vimos, aparece na mesma denúncia realizada contra Brandão durante a primeira visitação do

Santo Ofício da Inquisição ao Brasil (Garcia 2010, 44). Brandônio representa um colono eloquente, já estabelecido no Brasil há muito tempo, uma espécie de anfitrião, enquanto

Alviano representa um reinol (português oriundo do Reino) que recém chegou ao Brasil, cheio de dúvidas, incertezas, preconceitos e ceticismo em relação às qualidades da colônia portuguesa das Américas.

A estrutura dialogada nos é familiar do primeiro capítulo da tese. Refiro-me naturalmente aos Colóquios de Garcia d’Orta. Frederik Holden Hall (11) notou que a estrutura dialogada do texto de Brandão se inspira na obra de D’Orta.91 Antes dele,

Capistrano de Abreu (40) já havia notado que Brandão conhecia e havia se inspirado nos

Colóquios de D’Orta para elaborar seus Diálogos.92 Uma das diferenças básicas entre os texto de Garcia d’Orta e Ambrósio Fernandes Brandão é, naturalmente, o local exaltado.

91 Segundo Hall, ‘The argument between the two interlocutors typifies a conflict that extended over several centuries between men who saw the New World as a land of either innocence or promise and men who condemned it out of hand as savage or degenerated’ (11). Esse tipo de discussão faz parte das chamadas ‘disputas do novo mundo’, conforme o estudo de Antonello Gerbi (1973). A estrutura dialógica dos Diálogos chamou a atenção de Manuel Simões (2001), que dedicou um artigo a este tema. 92 Nas notas de rodapé para a primeira edição dos Diálogos (1930), Rodolfo Garcia também estabelece conexões entre Garcia d’Orta. Na primeira nota do segundo diálogo Rodolfo Garcia assinala que “Brandônio não era médico, como Garcia da Orta; delle nenhum depoimento existe de que tenha passado, como o outro, por Coimbra ou Salamanca. Simples colono, simples mercador, por isso mesmo é que maravilha como dispuzesse de tamanho cabedal scientífico, de tão extensa erudição em materias que por seu officio ou profissão não estava obrigado a versar, quanto mais a ensinar”. 90

Os Colóquios de Garcia d’Orta abordam a Índia e suas virtudes farmacológicas durante a

época de apogeu da presença lusitana no Oriente. Brandão por sua vez escreve num tempo em que a presença portuguesa no Oriente estava em decadência. Brandão adverte as desvantagens da Índia, ao mesmo tempo em que louva as grandezas e virtudes do

Brasil. Não obstante, há muitas similaridades entre os dois textos e, curiosamente, nenhum crítico foi capaz de interpretar as implicações ideológicas do fato de Brandão eleger os Colóquios como modelo para seu texto. O impacto dos Colóquios de D’Orta sobre os Diálogos de Brandão se expressa, num primeiro plano, na dinâmica entre autor e personagem. Assim como D’Orta, Brandão também confunde autor e personagem ao eleger o nome Brandônio para o principal interlocutor do diálogo. Da mesma forma,

Alviano é a representação literária do jovem Brandão quando este chegou ao Brasil na década de 1580, do mesmo modo em que Ruano representa Garcia d’Orta quando este chegou à Índia na década de 1530. É bom lembrar que tanto D’Orta quanto Brandão deixaram Portugal, deslocando-se para o além-mar, e é possível supor, conforme vimos, que a Inquisição influenciou o embarque de ambos. Assim como D’Orta, Brandão também tinha um jardim particular em sua casa (certamente o jardim de Brandão, localizado em sua casa na Calçada do Combro em Lisboa, não era tão opulento quanto aquele que o autor dos Colóquios possuiu em Bombaim). É possível supor que o interesse de Brandão pela incipiente ciência botânica – e portanto pela obra de D’Orta – tenha colaborado para seu sucesso como senhor de engenhos de açúcar no noderde do Brasil.

Se Brandão não tinha o cabedal científico de D’Orta, ele pelo menos foi capaz de absorver algumas das lições ensinadas pelo doutor de Goa ao longo dos Colóquios. Por

91 exemplo, na seguinte afirmação de Brandônio: “Donde certamente cuido que se neste

Brasil houvera bons herbolários, se poderiam fazer de qualidade a natureza das plantas e

árvores muitos volumes de livros maiores que os de Dioscórides, porque gozam e encerram em si grandissimas virtudes e excelências ocultas, e enxerga-se o seu muito em algum pouco delas, de que nos aproveitamos” (103).93 Para além dos vários paralelismos biográficos e textuais óbvios, é preciso notar que ao usar os Colóquios como modelo para seus Diálogos, Brandão elegeu um texto banido pela Inquisição. Como vimos no primero capítulo desta tese, os Colóquios de D’Orta caíram no esquecimento após o lançamento da versão latina de Clusius em 1567, e possivelmente foram jogados às chamas pela

Inquisição em Goa no mesmo auto-de-fé que condenou D’Orta postumamente em 1580.

Conforme assinalado pelo Conde de Ficalho, “quasi ninguem leu os Coloquios no original portuguez” (379). Brandão foi um dos poucos que o fez, elegendo-os como modelo para seus Diálogos, portanto, um texto envolto em um estigma judaico. A implicação ideológica desta escolha, no entanto, nunca foi notada pelos críticos dos

Diálogos, e pode certamente ser considerada como parte da expressão da identidade judaica de Ambrósio Fernandes Brandão.

Os temas abordados ao longo dos Diálogos são vários e variados e incluem, entre outros tópicos, a exuberância e abundância dos recursos naturais, o clima ameno, a fertilidade dos campos, a variedade da fauna e da flora e a paisagem humana. O primeiro diálogo se ocupa principalmente da localização geográfica do Brasil e da descrição das capitanias, desde o rio Amazonas até São Vicente. O segundo diálogo se concentra nas

93 Todas as citações dos Diálogos foram retiradas da edição de Mello (1966). 92 características climáticas da terra e discute teorias sobre a origem dos nativos americanos.

O terceiro e quarto diálogos traçam um quadro da vida vegetal e discutem fontes de riqueza do Brasil tais quais a lavoura de açúcar, o comércio do pau-brasil, de algodões e outros produtos. O quinto diálogo enumera os animais e o sexto e último diálogo se ocupa dos costumes dos índios brasileiros.94

A informação prática e extremamente valiosa para potenciais colonos fornecida ao longo dos Diálogos foi geralmente o aspecto mais investigado pelos pesquisadores que se dedicaram ao estudo da obra. A fortuna crítica dos Diálogos é unânime em afirmar que o objetivo de Brandão era encorajar a imigração ao Brasil e promover a exploração dos recursos naturais da colônia – de modo a beneficiar tanto os colonos como o Brasil e a pátria-mãe, Portugal – então sob o controle dos Habsburgos (dinastia dos reis espanhóis que anexaram o trono lusitano).95 Para Manuel Simões por exemplo os Diálogos não se dirigiam somente a um público geral, mas principalmente ao rei de Espanha e Portugal.96

Por outro lado, a obra rompia com a política de sigilo lusitana, pois revelava para o mundo as grandezas do Brasil, tais como a fertilidade e abundância de recursos naturais da terra, de modo a despertar a cobiça de nações inimigas como Holanda e França

94 Para a sistematização dos assuntos e tópicos abordados nos Diálogos ver Rodrigues (1979, 371), Simões (76-79) e Abreu (2010, 27-28). 95 Sobre a dinâmica das relações entre portugueses e espanhóis no Brasil Habsburgo ver Stuart Schwartz (Luso-Spanish Relations). 96 Manuel Simões baseia sua afirmação em trechos como ‘podia ainda este Brasil ser mais rico e dar mais rendimento para a fazenda de Sua Majestade, se esse senhor e os de seu conselho quizeram pôr os olhos nele’ [1966, 80] (2001, 79). Esta e outras referências de Brandão a Sua Majestade (Felipe III da Espanha / Felipe II de Portugal) são, contudo, demasiado vagas, indiretas e marginais, de maneira que contrastam com o modo solene através do qual outros cronistas da época, como Gabriel Soares de Sousa (1587) e Diego de Campos Moreno (1612) por exemplo, se dirigiram ao monarca ibérico, figura na qual buscavam a autoridade e legitimação necessárias para justificar seus relatos sobre a América portuguesa. 93

(Monteiro 82; Rodrigues 1979, 371; Simões 81).97 O rompimento da política de sigilo lusitana foi geralmente o motivo destacado para explicar o fato de os Diálogos terem circulado somente em forma de manuscrito, e de maneira limitada, vindo a ser publicados pela primeira vez apenas tardiamente, entre 1883-1887. Contudo, ao não dar devida importância ao discurso religioso irresoluto de Brandão e à problemática cristã-nova no

âmbito atlântico português, a maioria dos pesquisadores não relacionou a circulação limitada dos Diálogos ao fato de a obra veicular um discurso alternativo em relação à narrativa oficial lusitana. Nesse contexto também é possível supor, conforme sugeriu

Costigan (139), que os Diálogos possuíam um apelo especial aos cristãos-novos (muitos deles mercadores e homens de negócios) que buscavam espaços afastados do policiamento inquisitorial, inclusive aqueles interessados em praticar o judaísmo secretamente – não só porque Brandão foi duas vezes denunciado à Inquisição, mas também devido ao fato de os Diálogos estarem permeados por possíveis referências à cultura judaica.

Sugestividade religiosa ao longo dos Diálogos

Em primeiro lugar, voltemos nossa atenção para a organização temporal dos seis diálogos no conjunto da obra. Cada um dos seis diálogos ocorre no espaço de um dia, ou pelo menos durante algumas horas do dia. É provável que esta estruturação aluda à

97 Sobre as teorias de colaboração entre cristãos-novos e Holandeses ver Anita Novinsky (A Historical Bias). 94 criação do mundo, ocorrida em seis dias segundo o livro de Gênesis (1:1-31; 2:1-3).

Contudo, os seis diálogos entre Brandônio e Alviano não ocorrem em seis dias, mas em sete, porque Brandônio não comparece no dia imediatamente seguinte ao terceiro diálogo. Consequentemente, os seis diálogos transcorrem num espaço de tempo de sete dias devido ao intervalo de um dia entre o terceiro e quarto diálogos. Brandônio justifica sua ausência entre o terceiro e quarto dia de diálogo da seguinte maneira:

Alviano: Ontem vos estive esperando tôda a tarde dêsde mesmo pôsto, e

por faltardes dêle me tornei a recolher mais cedo do que imaginava

Brandônio: Certa ocasião foi causa de não poder cumprir com que vos

tinha prometido [comparecer no local e hora combinados para dar

continuidade à conversa interrompida no dia anterior]; mas, se se vai dizer

a verdade, quis fazer pé atrás para poder dar melhor salto sôbre o que hoje

havermos de tratar, porque a matéria é tão facunda que requer muito

estudo para se prosseguir, que do seu processo se debuxarão mais ao vivo

as riquesas e grandezas do Brasil, supondo que as mais das cousas de que

pretendo tratar são das Capitanias da parte do norte, porque das do sul sei

pouco por respeito de, como já disse outra vez, não haver andado por

aquelas partes. Mas das que tenho entre mãos para haver de tratar, há tanto

que dizer, que não sei por onde começar (113)

Por que motivo o autor dos Diálogos haveria de criar um intervalo de um dia na sequência dos seis diálogos travados entre os dois interlocutores-personagens? Ao

95 escrever a introdução para a primeira edição completa dos Diálogos, Capistrano de Abreu não deixou de notar o intervalo na conversação entre Brandônio e Alviano. Porém, o afamado historiador cearense não ofereceu explicações a respeito: “Entre o terceiro e o quarto dia falhou Brandônio: a conversação reproduzida nos Diálogos das Grandezas do

Brasil durou, portanto, sete dias, com um de descanso” (26). Já para Simões, a interrupção entre o terceiro e quarto dia de diálogo determinou ‘um plano sintagmático que “tomou forma” através de uma estrutura simétrica (3 dias + pausa para descanso + 3 dias), totalizando por isso sete dias, número certamente simbólico” (76). Simões, no entanto, não ofereceu nenhuma interpretação para o intervalo além do resultado de sete dias, lembrando que o número sete está repleto de simbolismo e sacralidade para o judaísmo. Carlos Alberto dos Santos por sua vez assinalou que o termo certa ocasião

“suscita a idéia de que algo de importante fizera Brandônio no dia em que se ausentou”, algo relacionado com “um sábado e uma sinagoga” (49). Assim, Carlos Alberto dos

Santos supôs que os seis diálogos “tiveram início numa quarta-feira e se encerraram numa terça-feira” (idem). Não é implausível interpretar a ausência de Brandônio como uma alegoria do descanso sabático – uma das práticas mais comuns entre cristãos-novos que de uma maneira ou outra tentavam preservar, ainda que de forma clandestina e não- normativa, algo de sua identidade religiosa ancestral (Gitlitz 317). O uso do termo

“estudo” por Brandônio reforça esta hipótese (Santos 49), uma vez que a polissemia desta palavra permite associá-la não a um estudo qualquer, mas ao estudo específico da lei mosaica. Nesse sentido, também é oportuno notar a associação entre “estudo” e descanso sabático na segunda denúncia realizada contra Brandão, em 1606, em Lisboa. Naquela

96 ocasião o denunciante, Miguel Fernandes de Luna, um jardineiro que trabalhava para

Brandão, declarou

que é lembrado que desde tempo que há que está em casa do dito

Ambrósio Fernandes, que é mais de um ano, viu, por atentar por isso, que

o dito Ambrósio Fernandes em todos os dias de sábado se recolhe em um

estudo seu e nêle está quase todo o dia e não sai fora de casa, nem faz

pagamento nem contrato no dito dia com pessoa alguma, sendo recebedor

do Consulado e tendo negócios na dita casa (Mello, Introdução xv, meu

grifo).98

Cabe ao leitor interpretar a ausência de Brandônio entre o terceiro e quarto dia de sua conversa com Alviano. Apesar de não se referir explicitamente ao descanso sabático, tal interpretação não pode ser totalmente descartada se levarmos em consideração o contexto histórico e social no qual os Diálogos foram criados. Neste caso, seria possível afirmar que o autor dos Diálogos não estaria somente aludindo ao descanso sabático, mas também conferindo a este ritual judaico uma posição central, ainda que oculta, na sua descrição dialogada das grandezas do Brasil. Digo “central” porque se o primeiro diálogo ocorre em uma quarta-feira, conforme sugerido por Santos (49), então o sábado de

Brandônio se localiza (de forma oculta) precisamente no centro do texto, entre o terceiro diálogo, ocorrido supostamente em uma sexta-feira, e quarto diálogo, ocorrido portanto em um domingo. Forma-se assim a estrutura de três dias de diálogos + um dia de

98 O trecho é acompanhado pela seguinte nota de rodapé de Mello (1966, xv): “Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cartório da Inquisição de Lisboa, caderno 4° Promotor, fls. 5/8v; ao mesmo respeito veja-se ainda fls. 9/11 e 13”. 97 descanso sabático + três dias adicionais de diálogos, totalizando seis diálogos ocorridos em sete dias. Se for assim, podemos supor que Brandão estaria apelando à sensibilidade do leitor cristão-novo e seu “judaísmo potencial”, conforme a famosa expressão de Israël

Salvator Révah (Les Marranes 55), e projetando o Brasil como uma opção ainda mais atraente aos olhos desta audiência.99

Um dos motivos que facilitava a manutenção de rituais (cripto-)judaicos entre os cristãos-novos que habitavam o nordeste no Brasil no tempo de Brandão era precisamente a ausência de um tribunal da Inquisição naquela região. Enquanto no vizinho Peru um tribunal do Santo Ofício já funcionava desde 1570, o nordeste de Brandão continuava afastado de tribunais inquisitoriais. Nesse sentido, a seguinte passagem extraída do quinto diálogo merece nossa atenção:

Estas coisas me faziam grande carranca para me haver de retirar do

prometido; mas, vendo que o não podia fazer sem ficar mal reputado,

arrazei-me a passar avante, com descorrer por aquelas coisas que os

elementos que rodeiam a terra cio Brasil encerram dentro de si, sem tratar

do mais alevantado dêles, que é o fôgo, porque de todo o tenho por estéril,

que a salamandra, que se diz criar-se nêle, entendo por fabulosa; porque,

quando as houvera, nas fornalhas dos engenhos de fazer açúcares do

Brasil, que sempre ardem em fôgo vivo, se deveram de achar. (149-150)

99 Sobre as práticas, ritos e costumes observados por cripto-judeus durante o descanso sabático ver David M. Gitlitz (317-353). 98

Cabe perguntar por que motivos Brandônio menciona de forma aparentemente fortuita

“as fornalhas dos engenhos de fazer açúcares do Brasil, que sempre ardem em fôgo vivo”. Na verdade, como vemos na passagem citada, Brandônio exclui o fogo de entre os elementos que deverão orientar sua fala. Mais curioso é notar a menção de Brandônio à salamandra – um réptil anfíbio ao qual atribuiram-se várias fábulas e lendas, inclusive a de que vivia no fogo. Ainda há de se esclarecer se a salamandra carregou algum significado simbólico especial no contexto da cultura cristã-nova judaizante. De todos modos, é interessante notar uma menção à salamandra em um poema de Miguel (alias

Daniel Levi) de Barrios (1625-1701), famoso cristão-novo espanhol aderido ao judaísmo em Amsterdã. Como sabemos, Miguel de Barrios foi um dos poetas cristãos-novos aderidos ao judaísmo mais prolíficos de todos os tempos. Em um poema dedicado à mártir Raquel Núñez Fernández (condenada em um auto-de-fé realizado em Córdova em

1665), Barrios alude à salamandra da seguinte forma: “Rindió el alma a sua criador / en la guerra luminosa, / si de un ardor mariposa / salamandra de otro ardor: / allí polvo, aquí fulgor, / pasando la llama infiel / del suplicio fue al dosel / por tan alto firmamento / que nunca llegó el violento / fuego donde el alma fiel” (A la bien aventurada Raquel Núñez

Fernández, publicado em Scholberg 244 [grifo no original]). Voltando agora à salamandra de Brandão: não sabemos se o autor dos Diálogos estabelece um paralelismo entre a ausência do legendário reptil nas “fornalhas dos engenhos de fazer açúcares do

Brasil, que sempre ardem em fôgo vivo”, por um lado, e o fato de o Brasil ser um território desprovido de tribunais inquisitoriais, por outro. De qualquer forma, esse trecho fornece mais um exemplo de uma passagem sugestiva e enigmática dos Diálogos; essa

99 passagem dá espaço para especulações plausíveis, mas ao mesmo tempo não permite conclusões concretas sobre seu possível caráter cristão-novo.100

Conforme notado por vários críticos, as referências ao texto bíblico ao longo dos

Diálogos se limitam quase totalmente a histórias do Velho Testamento (Jacó e Raquel,

Noé, Cã e Chanão, reis David e Salomão e Daniel). Esta característica do texto de

Brandão, chamada por Santos de ‘tópica hebraizante’ (2007, 74), pode ser interpretada como um sinal de insinuação religiosa já que, conforme observado por David M. Gitlitz, para muitos cristãos-novos que se esforçavam para manter sua fé ancestral em meio ao medo da erosão de seu conhecimento do judaísmo, a essência da identidade judaica estava fortemente ligada à negação de sua identidade católica (137, citado em Costigan

142).101 Windmüller (1992) chamou de ‘omissão-confissão’ a ausência praticamente total de motivos católicos ao longo dos Diálogos. Trata-se não somente da ausência de menções do Novo Testamento, mas também de qualquer alusão positiva à dilatação da fé católica e expansão imperial lusitana no Novo Mundo. Windmüller pôs em relevo a falta de alusões positivas à conversão dos índios, tópico obrigatório que ‘em época de plena

Contra-reforma ocorreria a qualquer cristão-velho’ (415-6). O trecho a seguir, retirado do

100 O poema de Miguel de Barrios dedicado a Raquel Núñez Fernández foi originalmente publicado em Contra la verdad no ay fuerç a (Amsterdã, c.1665). Segundo Miriam Bodian, “in the course of the seventeenth century up to the 1680s, a total of less than twenty-five persons were recognized by name in the literature of the Portuguese-Jewish diaspora as having been burned alive for judaizing” (Dying in the Law of Moses 41). Entre essas pessoas Raquel Núñez Fernández permanence sendo uma das mais desconhecidas (seu nome aparece tão somente em esparsas notas de rodapé). 101 Um exemplo contemporâneo desta “prática negativa” aparece na pesquisa de campo realizada por Nathan Wachtel entre 2000 e 2001. O objetivo da pesquisa foi documentar práticas de comunidades cristãs judaizantes no nordeste do Brasil. Wachtel relatou que “several witnesses said that they had never seen their parents observe Christian holidays nor go to the church” (257). 100 sexto e último diálogo, ilustra o ceticismo e humor de Brandão em relação à conversão das almas dos nativos:

Os Padres da Companhia ensinaram a um dêstes índios, por sentirem nêle

habilidade, a ler e a escrever, canto e latinidade, e ainda algum pouco das

artes, mostrando-se êle em tudo mui ágil e de bons costumes; chegaram a

lhe fazer dar ordens menores, e cuido que ouvi dizer que também as de

epístola e evangelho, para o ordenarem em sacerdote de missa. Mas o bom

do índio, obrigado de sua natural inclinação, amanheceu um dia despido, e

se foi, com outros parentes seus, para o sertão, aonde exercitou seus

bárbaros hábitos até a morte, não se alembrando dos bons que lhe haviam

dado. (214)102

Por um lado, a descrição da tentativa frustrada de catequização retratada por Brandônio pode ser lida no contexto do discurso que buscava justificar a escravização do índio devido à sua suposta inferioridade espiritual e/ou moral, e assim incorporá-lo ao sistema mercantil colonial. De fato, apesar da preferência pelo trabalho do escravo africano negro, sabemos que a mão-de-obra indígena também foi utilizada nos engenhos de açúcar do Brasil colonial (Schwartz, Sugar plantations 51-72). Contudo, Brandônio destaca em algumas passagens dos Diálogos que os escravos africanos negros eram a principal mão de obra da economia brasileira (‘neste Brasil se há criado um novo Guiné, com a grande multidão de escravos vindo dela’, 44), sem fazer menção da exploração do trabalho

102 Sobre a construção literária da imagem do sertão nos Diálogos ver Kalina Vanderlei Silva (O sertão na obra de dois cronistas coloniais). 101 indígena nos engenhos. A falta de preocupação de Brandônio com a ‘conquista das almas’ dos índios também pode ser interpretada como um reflexo da dimensão laica da identidade do autor dos Diálogos, um senhor de engenho às vezes talvez mais preocupado com aspectos pragmáticos da vida do que com questões relativas ao espírito.

De todos modos, é necessário notar o teor humorístico de combinações como ‘bom do

índio’, ou ‘exercitou seus bárbaros hábitos’. Tanto o adjetivo ‘bom’ quanto o verbo

‘exercitar’ são positivos, de modo que contradizem as características supostamente negativas, selvagens e incivilizadas do nativo brasileiro. O humor de Brandão em relação ao processo de catequização pode ser interpretado como resultado de um olhar laico sobre o tema, mas também como sinal de desconfiança do projeto arbitrário de transformação dos índios brasileiros em súditos da Coroa portuguesa através de coerção religiosa – rompendo assim o discurso e narrativa que entrelaçaram a expansão do império à dilatação da fé católica.103 De todos modos, Brandão não discute somente a conversão (frustrada) dos índios, mas também a polêmica sobre sua origem, conforme veremos a seguir.

Uma das questões mais sérias decorrentes da ‘descoberta’ da América foi elucidar a origem dos nativos do Novo Mundo sem desviar-se da concepção bíblica do mundo e da História (Huddleston vii; Popkin 81). Se os índios também eram filhos de Adão e, ao

103 O uso do humor ao longo dos Diálogos, aspecto todavia pouco pesquisado pela fortuna crítica, chamou a atenção de Marcelo Mirisola (2013). O escritor paulistano também valeu-se de bom humor ao argumentar que “Ambrósio Brandão foi o primeiro sacana e tirador de onda da literatura brasileira”. Mirisola destaca um trecho cômico do quinto diálogo onde Brandônio descreve ferozes piranhas que costumam atacar os testículos dos índios que se aventuram pelas águas de determinados rios. Pasmado ante esse fato, Alviano reage da seguinte forma: “Dou-vos minha palavra que não haverá cousa na vida que me faça meter nos rios desta terra; porque ainda que não tenham mais de um palmo d’água imaginarei que já são essas piranhas comigo, e que me desarmam da cousa que mais estimo”. 102 mesmo tempo, não sabiam navegar distâncias transatlânticas, como era possível explicar sua existência sem contrariar a narrativa bíblica? Nesse sentido, era lógico cogitar que os nativos do novo mundo descendiam de povos da Antiguidade, de modo que a teoria sobre a origem israelita dos índios certamente não foi uma invenção de Brandão.

Pautando-se na história narrada no livro bíblico de Reis (1 Reis 10), Brandônio afirma que algumas das embarcações de israelitas que buscavam matéria-prima para a construção do Primeiro Templo de Jerusalém, erguido pelo rei Salomão, se perderam e vieram parar no Cabo de Santo Agostinho, no nordeste do Brasil (56). Os índios seriam, de acordo com esta teoria, descendentes destes israelitas que chegaram acidentalmente à região. Segundo Brandônio, os indícios da origem israelita dos índios se manifestavam na presença de palavras hebraicas na língua dos índios (‘ainda hoje em dia se acha entre êles muitas palavras e nomes próprios na língua hebréia’ [57]) e nos seus conhecimentos das estrelas (idem). O paralelismo entre índios e israelitas também surge na seguinte fala de

Brandônio: ‘o mancebo que se namora de qualquer donzela, o remédio mais certo de alcançá-la é ir-se ao mato com um machado e fazer lenha, sem o fazer a saber ninguém, a qual, depois de feita, acarretam às costas em feixes e a vai lançar ao rancho aonde habitam o pai e a mãe de sua afeiçoada’ (196), afirmação que leva Alviano à seguinte conclusão: ‘Devem de ter logo êstes notícia do modo com que Jacó ganhou a sua amada

Raquel, e parece que neste uso o querem imitar’ (197).104 Alviano, no entanto, contesta a origem israelita dos índios e apresenta a hipótese de que os índios eram descendentes dos

104 Esse costume indígena é documentado por Florestan Fernandes (Hall 332, nota 29). Alviano está aludindo a Gênesis 29. 103 chineses. Brandônio refuta a hipótese alegando que não havia nenhuma característica em comum entre as culturas indígenas e chinesas (56), e assim encerra-se a discussão.

É provável que a origem israelita aos índios brasileiros não tenha sido atribuída por Brandônio fortuitamente. Trata-se de uma atribuição que não somente propõe uma solução para o enigma em torno da origem dos nativos locais, mas também cria a possibilidade de uma identificação entre índios e cristãos-novos no que diz respeito a sua origem israelita comum. Nesse sentido, é significativo notar a explicação de Brandônio para as dúvidas de seu interlocutor. Alviano assume não ser possível que ‘tão bárbaro gentío’ traga a sua origem da gente israelita, ‘porque se a trouxera, de fôrça que lhes havia de comunicar alguma polícia [polidez, bons costumes, civilidade] de seus pais e avós, o que nós não vemos neles [nos índios]’ (57). Brandônio explica a ‘falta de polícia’ dos índios da seguinte maneira:

Confesso que os primeiros pais deveram de mostrar e ensinar seus filhos e

netos o uso das artes e polícia que tinham; mas essa como havia de ser

ensinada sòmente de palavra, não podia passar à memória de tão comprida

geração, em gentes a que lhe faltou logo as escrituras e o mais necessário

para a conservação das artes e polícia, em terras tão remotas e incógnitas,

como eram as que habitavam. E assim, com a continuação do tempo, se

lhes havia de ir varrendo da memória o que seus avós lhes tinham

amostrado, com ficarem [os índios] no estado em que de presente

conhecemos. (57)

104

A explicação de Brandônio para a erosão da ‘polícia’ dos índios não é propriamente original pois, conforme observado por João Adolfo Hansen, ‘Defendendo a versão católica oficial, os inacianos [jesuítas] definem o índio como ser humano criado por Deus e dotado da luz natural, mas concedem que é um homem desmemoriado da verdadeira lei, a lei eterna’ (A servidão natural do selvagem 354). No entanto, ao mesmo tempo em que a falta de polícia dos índios se explica como resultado da falta de uma cultura escrita enquanto veículo da memória, também se cria a possibilidade de um paralelismo entre a experiência do índio e a própria experiência dos cristãos-novos que perderam sua conexão com a fé ancestral. Uma vez desprovidos do aparato textual litúrgico, os cristãos-novos interessados em preservar sua religião ancestral ficaram dependentes da transmissão oral para manter suas tradições, consequentemente defasadas no decorrer do tempo devido à falta de acesso

à tradição textual judaica.105 A título de comparação, é oportuno mencionar o famoso caso do viajante cristão-novo português António de Montezinos, autor da Relación (1644) – relato extraordinário que levou Menasseh ben Israel a escrever Esperança de Israel (1650).

Considera-se que a possível identidade cripto-judaica de Montezinos (também conhecido como Aharon Levi) pode haver contribuído para a ‘descoberta’ de israelitas (supostamente oriundos da tribo de Reuven) entre os índios andinos de Nova Granada (Perelis, ‘These

Indians Are Jews’ 202).106

A tópica hebraizante ao longo dos Diálogos também chamou a atenção de Falbel, que viu nas referências de Brandão ao Velho Testamento uma possibilidade de conexão

105 A importância da memória e da oralidade na manutenção da identidade judaica dos cristãos-novos é bem captada ao longo do estudo fundamental de Wachtel; ‘It is oral tradition that has perpetuated Marrano memory until today’ (269). 106 Sobre a Relación de Antonio de Montezinos ver também Jonathan Schorsch (2009). 105 com ‘tradições orais que poderiam perfeitamente fazer parte do “judaísmo” ibérico e seu marranismo’ (106). A vinha de Noé, o perverso Cã, o santo profeta Rei Davi e o profeta

Daniel no lago [poço] dos leões são alguns dos motivos bíblicos presentes nos Diálogos que, segundo Falbel, representam ‘temas de uma exegese judaica tradicional que merece, em seu contexto literário uma reflexão maior no sentido de identificar o judaísmo de seu autor’ (idem). Seguindo a sugestão de Falbel, investigaremos a seguir a alusão de Brandão ao Livro de Daniel.

Brandônio menciona o Livro de Daniel de maneira aparentemente fortuita, precisamente quando alude à lenda segundo a qual foi São Tomé quem mostrou aos nativos do Brasil o uso da mandioca.107 É oportuno notar que esta é uma das poucas ocasiões em que há nos Diálogos uma alusão a uma lenda relativa a um personagem do

Novo Testamento. De fato, a lenda da presença de São Tomé entre indígenas foi bastante difundida não somente na América portuguesa, através do jesuíta Simão de Vasconcelos

(1597-1671) por exemplo (1977 [1663], 119), mas também na América espanhola e nos enclaves ibéricos no Oriente. Esta lenda, resultante da combinação de uma série de textos bíblicos, novas descobertas e antigas crenças (Lafaye 177), certamente serviu como exemplo e apoio retórico para o discurso da dilatação da fé católica e o esforço de evangelização dos nativos do Novo Mundo durante o século XVII. Brandão, no entanto, não alude à lenda de São Tomé para afirmá-la, mas refutá-la:

107 Considera-se que a semelhança fonética entre ‘Tomé’ e ‘Sumé’, personagem da mitologia indígena, favoreceu a criação desta lenda. Sobre a lenda de São Tomé no Brasil colonial ver Horácio de Almeida (1966, Tomo I, 255-264). 106

Brandônio: [Os índios] afirmam que têm por tradição de seus antigos

antepassados, que São Tomé lhes mostrara o uso da mandioca, de que se

sustentam, que dantes não usavam dela, nem conheciam a sua qualidade,

mas isso sem nenhum fundamento.

Alviano: Assim deve de ser, pois não sabemos, nem lemos de São Tomé

que passasse nestas partes.

Brandônio: Isso podia Deus fazer quando fôsse servido, como fêz que

Abacuque levasse o comer ao profeta Daniel, ao lago dos leões, aonde

estava encerrado. (194)

Sem dúvida é possível argumentar que a negação da lenda de São Tomé está relacionada

à dimensão secular/empírica do discurso de Brandão. Entretanto, Brandônio não somente desqualifica a lenda de São Tomé, mas introduz outra ‘lenda’ (que também envolve alimentos), a da salvação de Daniel, no poço dos leões, por Abacuque.108 Brandônio portanto intercala (ou mesmo substitui) uma lenda católica com uma lenda derivada do

Velho Testamento. É possível que tal oscilação entre uma lenda cristã e uma lenda hebraica não indique somente o caráter ambivalente da dimensão religiosa do discurso de

Brandão, mas também possa ser interpretada como um exemplo de inversão sutil da narrativa católico-imperial imbuída na lenda de São Tomé. Além disso, cabe notar que

108 Conforme Hall, ‘The incident of Habbakuk bringing food to Daniel does not appear in the canonical account of Daniel in the lion’s den (Daniel 6) and is rejected by many biblical scholars as apocryphal’ (1987, 330). 107 um dos tópicos do Livro de Daniel é a resistência israelita no exílio contra a imposição de crenças alheias à lei mosaica em uma situação de cativeiro. A alusão de Brandônio a

Daniel também pode, portanto, ser interpretada nesta direção se considerarmos o transfundo histórico da imposição da fé católica aos judeus portugueses ocorrida com a conversão em massa em 1497, e o status de ‘cristãos-novos’ herdado pelos descendentes dos conversos. Nesse sentido, também é importante notar que a associação entre o Livro de Daniel e a expulsão-exílio dos judeus ibéricos já havia sido estabelecida por Don Isaac

Abravanel (1437-1508), um dos judeus portugueses mais influentes de seu tempo, nascido em Lisboa, exilado em Castela e posteriormente na Itália. Em Maayanei

Hayeshua (‘Fonte da Salvação’), obra publicada postumamente em Ferrara em 1551,

Abravanel traçou um paralelismo entre a narrativa de Daniel e as circunstâncias vivenciadas pelos judeus impelidos a deixar a Península Ibérica.109 Portanto, não podemos descartar a possibilidade, conforme intuído por Falbel, de encontrar nesta passagem dos Diálogos ecos de uma tradição ibero-judaica. Contudo, tanto nesta passagem como nas outras analisadas anteriormente o autor dos Diálogos é suficientemente ambíguo, moderado e/ou cauteloso para não permitir interpretações categóricas sobre uma possível dimensão discursiva cripto-judaica imbuída no texto.

109 Segundo Cohen-Skalli ‘[…] facing the crisis of the Expulsion, Abravanel presents his commentary on Daniel as an act of leadership that intends to bring his people back from the despair of Exile to the hope for a prompt redemption’ (2006, 188).

108

Considerações finais

Os aspectos sugestivos e ambivalentes do discurso religioso veiculado nos

Diálogos das grandezas do Brasil nos permitem afirmar que esta obra de Ambrósio

Fernandes Brandão representou uma forma alternativa, não ortodoxa, de narrar a expansão lusitana no Novo Mundo pois, conforme assinalado por vários pesquisadores, os Diálogos divergem da narrativa oficial de expansão do império condicionada à dilatação da fé católica. Essa transgressão discursiva faz dos Diálogos uma obra singular no conjunto dos textos relativos à expansão portuguesa na América, e talvez seja um dos motivos para explicar sua circulação aparentemente limitada durante o século XVII, principalmente em um contexto onde a palavra escrita esteve constantemente submetida à sombra repressiva do aparato inquisitorial. Também devemos notar que a sugestividade religiosa dos Diálogos não resulta somente da ausência quase total de elementos católicos ao longo do texto, mas também se manifesta nas passagens ‘marginais’ que analisamos.

Muito embora as passagens analisadas ao longo deste capítulo não permitam conclusões categóricas sobre um possível discurso ‘cripto-judaico’ ao longo dos Diálogos, é necessário notar que a ambiguidade que criam não deve ser ignorada, e certamente permanecerá intrigando investigadores por muito tempo.

Através da discussão sobre a ‘voz’ cristã-nova nos Diálogos busquei contribuir para o preenchimento de uma lacuna na pesquisa sobre os cristãos-novos luso-brasileiros da primeira metade do século XVII. Refiro-me à aproximação literária a um tema de

109 investigação que vem sendo predominantemente situado no âmbito historiográfico. No mesmo sentido, um ensaio sobre os Diálogos dedicado ao contexto cristão-novo de sua criação também constitui uma modesta contribuição para o estudo da complexa intersecção entre literatura e Inquisição. Não se trata de realizar uma leitura dos Diálogos condicionada às duas denúncias que o provável autor da obra sofreu, mas levar em consideração os desafios estéticos e estilísticos enfrentados por escritores inseridos num contexto histórico e cultural onde a denúncia (seja ela verdadeira ou não) e a angustiante repressão inquisitorial pairavam no ar como uma nuvem constante. O fator censura é, portanto, outro elemento que, ao lado da complexa identidade religiosa dos cristãos- novos, nos ajuda a interpretar a sutileza do discurso de Brandão. Ao mesmo tempo, também busquei preencher uma lacuna no próprio estudo da literatura criada por descendentes de judeus ibéricos convertidos ao catolicismo, uma vez que a investigação da expressão literária de cristãos-novos/conversos vem se restringindo majoritariamente à

Espanha dos séculos XV e XVI e à chamada ‘literatura picaresca’, conforme exemplificado pelos estudos de Colbert Nepaulsingh (1995), Gregory Kaplan (2002) e

Yirmiyahu Yovel (2009), entre outros. Cabe notar que a ambiguidade das passagens dos

Diálogos que analisamos coincide de certa forma com a ambiguidade identificada por

Nepaulsingh em textos literários escritos pela primeira geração de conversos espanhóis.

Nesse sentido, será pertinente investigar em maior profundidade e detalhe de que maneira a literatura criada por judeus ibéricos convertidos ao catolicismo no século XV reverberou, como um acorde atávico, em obras de cristãos-novos da geração de Ambrósio

Fernandes Brandão.

110

Além de abordar sucintamente a presença portuguesa na Ásia (já em declínio no começo do século XVII), os Diálogos das grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes

Brandão também se referem, ainda que de forma breve, à América espanhola – mais precisamente ao vizinho Peru e os chamados “peruleiros” (mercadores ibéricos abastados que comercializavam na região do Peru).110 O trecho a seguir, retirado do primeiro diálogo, mostra que Brandão cogitava a possibilidade de estabelecimento de uma rota comercial fluvial entre o nordeste do Brasil e a cidade de Lima via o Rio Amazônas:

Assim mo afirmava o peruleiro, dizendo que seu irmão notara, com muita

curiosidade, que fazendo-se duas cachoeiras que pelo rio [Amazonas]

arriba havia, não tão sòmente podia Sua Majestade navegar por êle abaixo

a sua prata, mas ainda os mercadores levariam as suas mercadorias para o

Peru pelo mesmo rio acima, com forrarem tão grande gasto quanto fazem

com elas pelo comprido caminho por onde as levam. (14-15)

Após havermos discutido a Ásia portuguesa de Garcia d’Orta e Fernão Mendes Pinto, e as capitanias do nordeste brasileiro retratadas nos diálogos entre Brandônio e Alviano, a referência sucinta de Brandão ao vizinho Peru proporciona um bom ponto de transição para passarmos a tratar da próxima fonte primária a ser analisada no quarto e último capítulo desta tese: uma descrição anônima do Peru redigida ao redor de 1620 e atribuída ao cristão-novo Pedro de León Portocarrero (Vinhais, c.1576 -1620?). A transição geográfica entre nordeste brasileiro e vice-reinado peruano não é fortuita. Como veremos,

110 No uso corrente no século XVII, a palavra “peruleiro” também carregava a conotação de contrabandista, ou “a trader who purchased goods in Brazil and transported them to Peru to be exchanged for silver, a traffic forbidden by law in both colonies” (Hall 181, nota 101). 111 ela acompanha a expansão da presença portuguesa na América espanhola deflagrada em

1580 com o advento da união das coroas ibéricas.

112

CAPÍTULO 4

UM CRISTÃO-NOVO ENTRE ESPANHA E HOLANDA:

PEDRO DE LEÓN PORTOCARRERO E A DESCRIPCIÓN DEL VIRREINATO DEL

PERU

Em 22 de julio de 1615 uma frota holandesa composta por cinco navios e oitocentos homens liderados pelo almirante Joris Van Spielbergen impetrou um ataque frustrado ao Callao, porto de cidade de Lima, capital do vice-reinado do Peru (Crespo

1962; Salmoral 1994: 128-9). Um sujeito luso-espanhol, habitante de Lima e contemporâneo dos fatos, escrevendo de forma anônima e tomando o devido cuidado de não mencionar o nome do almirante (ou pirata) holandês, referindo-se a ele como “el contrario” (isto é, oponente), descreve o dramático evento:

Yo me hallé en esta playa y puerto del Callao el año de mil y seiscientos y

quince, en veinte y dos de julio, día de la Magdalena, porque entraron por

el estrecho de Magallanes cinco navíos destas tierras, después que

pelearon con la armada real del Perú junto de la villa de Cañete, questá [a]

veinte y cuatro leguas de Lima. Y los cinco navíos echaron a fondo la

almirante, que era una poderosa nave e iba en ella por almirante Pedro de

113

Pulgar. Y el almirante contrario le dijo que mirase que él y cuantos estaban en sua nave se iban a pique, que [si] quisiesen salvar las vidas en sua nave, que él les daba palabra de ponellos a todos en tierra salvos y sin hacelles agravio ninguno. El almirante Pedro Pulgar respondió que no quisiese Dios quél desamparase la nave de que su rey le había hecho almirante; y ansí se hundió la nave y se ahogaron todos cuantos iban en ella, que fueron quinientas personas. Don Rodrigo de Mendoza, general de

Callao, se fue huyendo con la capitana y una fragata y se metió en el puerto de Callao. Toda la Ciudad de los Reyes se alborotó como si ya el contrario la entrara y la fuera saqueando. Toda la gente acudió luego al

Callao a defender la entrada al contrario, que en día de la Magdalena surgió en el puerto con sus cinco navíos, frontero del Callao. Y estábamos toda la gente puestos en la playa con las armas en las manos y con pena de muerte que ninguno se menease de su puesto, esperando cuando el comedido contrario enmpezase a disparar sua artillería y nos fuese despachando al otro mundo. El anduvo cortés que disparó dos piezas por alto. Una bala dió en la esquina de San Francisco y derrocó algunos adobes, y la otra pasó por alto de las casas. Y sin hacer más daño zarpó las anclas y alzó las velas y se fue, diciendo aquél no iba a matar ni robar [a] los vasallos del rey, sino que iba a hacer su viaje para la India, y ansí se fue. Con qué en Lima se hicieron más fiestas y alegrías que se hicieron en

114

Roma cuando Pompeo el Magno triunfó de las tres partidas del mundo y

de los corsarios del mar de Levante (Descripción 66-7).111

Este relato do ataque à costa peruana perpetrado por Joris Van Spielbergen aparece em um manuscrito de 256 fólios intitulado Discricion general del Reyno del piru, em particular de Lima (daqui em diante Descripción, conforme a forma modernizada do título). Trata-se de uma obra redigida ao redor de 1620, atribuída ao cristão-novo de origem portuguesa Pedro de León Portocarrero (1576-c.1620), e considerada uma das crônicas mais pitorescas e detalhadas sobre o vice-reinado peruano de princípios do século XVII (Riva-Agüero 347). A Descripción também é considerada um documento de extraordinária qualidade, escrito em um tom extremamente espontâneo por alguém que experimentou verdadeiro afeto pela terra peruana (Villena 315, 316, 319).

Adicionalmente, considera-se que a Descripción é a única fonte de informação sobre o

Peru colonial escrita diretamente por um descendente de judeus residente naquela região

(Böhm, Crypto-Jews and New Christians 209).112

111 Todas as citações da Descripción ao longo deste capítulo foram retiradas da edição de Boleslao Lewin (1958). 112 Redigida ao redor de 1620 em local que nos é todavia desconhecido, a Descripción permaneceu esquecida até o século XIX, ressurgindo em uma citação do Catalogue des manuscrits espagnols et des manuscrits portugais da Biblioteca Nacional da França, compilado por Alfred Morel-Fatio (1892, 174). O historiador, ensaísta e político peruano José de la Riva-Agüero (1885-1944) e o padre jesuita e historiador peruano Rubén Vargas Ugarte (1886-1975) realizaram os primeiros estudos da Descripción e publicaram alguns excertos da obra (em 1914 e 1935 respectivamente). A primeira edição completa da Descripción, lançada em 1958 pelo historiador de origem polonesa radicado na argentina, Boleslao Lewin (1908-1988), pavimentou definitivamente o caminho para a formação de uma camada crítica em torno do texto. Após o lançamento da edição completa em 1958, os excertos da Descripción que retratam a sociedade limenha e o percurso entre a capital do vice-reino e a região de Cusco foram traduzidos ao inglês por Irving A. Leonard, da University of Michigan, e apareceram publicados na coletânea Colonial Travelers in Latin America (em 1972). Em 1998 outro trecho da Descripción foi traduzido ao inglês. Trata-se da passagem que descreve as (cerca de doze) principais ruas de Lima. A tradução foi publicada na coletânea Colonial Spanish America: A Documentary History (editada por Kenneth Mills e William B. Taylor) e vem acompanhada de uma breve introdução e um mapa da cidade de Lima em meados do século XVII. Günter Böhm (Una descripción del reino de Chile 24, nota 4) chegou a manifestar a intenção de reproduzir o texto completo da 115

Além de fornecer uma descrição detalhada da geografia, clima, recursos naturais, produtos comerciais, rotas terrestres e marítimas, e a paisagem humana do chamado

“vice-reinado do Peru”, esta crônica anônima escrita em um castelhano permeado de lusitanismos também fornece alguns elementos autobiográficos inseridos de modo espontâneo ao longo do texto. 113 Nesse sentido, a obra se assemelha aos textos de Garcia d’Orta, Fernão Mendes Pinto e Ambrósio Fernandes Brandão estudados nos capítulos anteriores desta tese. Ademais, o texto atribuído a Portocarrero aborda de modo irreverente e pouco protocolar eventos históricos como o famoso ataque holandês à costa peruana. Ao mesmo tempo, a crônica fornece informação comercial, militar e estratégica extremamente sigilosa, que certamente não favorecia o aparato governamental oficial da colônia, pois revelava ao mundo informação que poderia ser aproveitada pelas potências marítimas inimigas da Espanha, sobretudo a Holanda. Convém lembrar que quando a

Descripción foi redigida, ao redor de 1620, Lima era uma das capitais mundiais do comércio e Potosí, com suas pujantes minas de prata, uma das cidades mais populosas do

Descripción em forma de apêndice ao segundo volume de seu Judíos en Chile Colonial (estudo que aparentemente nunca chegou a ser lançado). Em 2009 Eduardo Huarag Álvarez, da Pontificia Universidad Católica del Perú, lançou uma edição bilíngue (espanhol-português) da Descripción, contendo um prólogo, uma reprodução da edição de Boleslao Lewin (incluindo-se as notas de rodapé de Lewin), e uma tradução ao português realizada em equipe sob a coordenação de Isabel Araújo Branco. Em 2013 surge uma nova versão da tradução portuguesa da Descripción, desta vez com novas notas de rodapé e um índice remissivo. Esta edição crítica foi elaborada por uma equipe de investigadores portugueses do Centro de História de Além-Mar, do Centro de Estudos Comparatistas e do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da Universidade Nova de Lisboa. Para este trabalho utilizei a edição de Boleslao Lewin (1958), considerada até hoje a edição moderna standard da Descripción. 113 No fim do século XVI e princípio do XVII a América espanhola, também chamada de “Índias de Castela”, estava subdividida em dois vice-reinos, o da Nueva España e do Peru. O vice-reino do Peru era, do ponto de vista geográfico, o maior entre os dois vice-reinos, abrangendo praticamente toda a jurisdição espanhola da América do Sul (Figueirôa-Rego 35). 116 planeta, contando cerca de 130.000 habitantes. Portanto, não é de surpreender que a

Descripción tenha sido escrita anonimamente.114

O objetivo deste capítulo é mostrar que a Descripción representa uma voz dissidente no contexto da narrativa oficial ibérica e um gesto de expressão de uma identidade desviante, “subterrânea” ou subalterna, alternativa à identidade hegemônica católico-espanhola. Como veremos ao longo do capítulo, tanto o texto quanto o contexto da Descripción permitem sugerir que esta dissidência se expressa através de uma perspectiva pró-holandesa para abordar o Peru colonial. Ao apresentar uma “imagem suavizada” (Garcia 14) do pirata Van Spielbergen – caracterizado na Descripción como

“comedido” e “cortés” – o texto de Portocarrero claramente se inclina em favor de um discurso pró-holandês.115 Em termos religiosos, veremos que apesar de promover um discurso indiferente a propagação do catolicismo no Novo Mundo, a Descripción não apresenta manifestações formais de judaísmo, mas elementos comuns entre a cultura judaica e o reformismo cristão prevalecente na Holanda de então. Assim, apesar da documentação inquisitorial que aponta para a identidade cripto-judaica de Pedro de León

Portocarrero, o discurso religioso da Descripción não pode ser definido como um discurso propriamente judaico.

114 Conforme observado por Ana E. Schaposchnik, “Jewish and New Christian loyalty to royal houses was seldom taken for granted. Active as they were in a transatlantic commerce that crossed national boundaries, members of this diaspora were suspected of a two-tiered lack of loyalty: to the king of the country where they resided and to the Chrisitan faith” (112). Schaposchnik acrescenta que os cristãos-novos residentes no nordeste brasileiro na década de 1630 “were presumed to be supporters of a Dutch invasion on the grounds that the Dutch might offer them religious freedom, even though the historical evidence is unclear on this matter” (112). 115 Com efeito, a descrição da tentativa de Van Spielbergen de invadir Lima é tão transgressiva que chegou- se mesmo a argumentar que exprime “cierta filosófica resignación del judío portugués, no exenta de una dosis de humor negro” (Villena 326). 117

Apesar de haver sido escrita anonimamente, a Descripción oferece alguns dados autobiográficos. Baseando-se nesses dados autobiográficos, em documentos comerciais e em fontes inquisitoriais, como as relaciones de causas despachadas en el santo offiçcio de la Inquisiçion de Sevilla, Guillermo Lohmann Villena (1970) foi capaz de desvendar a incógnita sobre a autoria da Descripción, atribuindo-a com boa dose de certeza ao “judío portugués y propagandista activo” (Villena 378) Pedro de León Portocarrero.

O homem por trás do texto

Nascido ao redor de 1576 em Vinhais, na atual província de Trás-os-Montes, no norte de Portugal, Pedro de León Portocarrero mudou-se para a Espanha ainda criança, provavelmente na década de 1580, acompanhando assim a onda migratória de cristãos- novos portugueses rumo a Espanha, deflagrada com a anexação do trono português por

Felipe II da Espanha. Encarcerado pela Inquisição de Toledo em 1596, quando contava cerca de 20 anos, Portocarrero sairia num auto-de-fé em 1599 “penitenciado con sambenito por haver sido judío y guardado la lei de Moisen [sic]” (192).116 Portocarrero

116 Excerto da relacion de las causas despachadas en este santo offiçcio de la Inquisiçion de Sevilla el año de 1619 se encontra no Archivo Histórico Nacional (AHN) de Madrid, Inquisición, legajo 2075, fólios 2- 4v. Citado por Guillermo Lohmann Villena (347-8; 378-384). Villena realizou um extenso comentário/glosa sobre o excerto, mas não chegou a publicá-lo. A transcrição do excerto foi publicada por Carlos Guillermo Carcélen Reluz (111-113) e também como apêndice à tradução da Descripción ao português, lançada em 2013 (191-195). As citações deste documento ao longo deste capítulo foram retiradas do apêndice da tradução portuguesa de 2013 (transcrição realizada por Miguel Rodrigues Lourenço). Segundo declarado por Portocarrero nesta relacion de las causas, seu pai foi condenado à fogueira pela Inquisição de Coimbra, sua mãe morreu nos cárceres da Inquisição, e alguns de seus tios e irmãos foram presos por diferentes tribunais inquisitoriais (192). Apesar de esta relacion de las causas indicar que Pedro de León Portocarrero nasceu em Vinhais, Portugal, Villena observa que “tanto la partida matrimonial como la carta de dote consignan como patria de León Portocarrero la villa gallega de Viana del Bollo, población situada en la extremidad oriental de la provincia de Orense, confinante por el sur con 118 livrou-se da Inquisição toledana em circunstâncias que nos são desconhecidas, e desembarcou no vice-reinado peruano ao redor de 1600, onde permaneceria até 1615, exercendo a profissão de comerciante. Durante os cerca de quinze anos que habitou no

Peru, Portocarrero foi denunciado à Inquisição em pelo menos duas ocasiões – em 1609 e

1611 respectivamente.117 As denúncias contra Portocarrero aparentemente não o levaram

às cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Lima – mas podem ter influenciado nosso protagonista a deixar o vice-reinado peruano. Não obstante, o declínio da atividade comercial e os contratempos financeiros experimentados por Portocarreiro a partir de

1613 também podem ter influenciado sua partida do Peru (Villena 370-1; 376). Em 1615

Portocarrero voltaria a cruzar o oceano atlântico rumo a Espanha, onde seria novamente

Portugal” (Villena 347). Sempre desconfiado das intenções de Portocarrero, Villena argumenta que “el recurso de la oriundez bolesa debió de ser un subterfugio para encubrir la auténtica extracción portuguesa, que solía traer complicaciones de varia índole ante la legislación y despertaba sospechas entre las autoridades recelosas” (idem). 117 De acordo com as relaciones de causas despachadas (1601-1613) (AHN, Inquisición, libro 1029, fólios 404v e 448), Portocarrero e outros três portugueses, Álvaro Cardoso, Manoel de Fonseca e Manuel Núñez Magro de Almeyda, comemoraram o dia de Yom Kippur em Lima em setembro de 1609 (citado em Villena, 379-380). A acusação contra Portocarrero relativa ao ano de 1611 provém de um depoimento fornecido por um cristão-novo de idade de vinte e seis anos preso nos cárceres secretos da Inquisição de Lima, quem declarou que muitas vezes e em diferentes dias e ocasiões Portocarrero lhe aconselhou a seguir a “Lei de Moisés”. Segue a transcrição: “[Portocarrero] le aconsejó que guardase la lei de Moisen y le dijo que aiunase los jueves sin comer en todo el dia hasta la noche salida la estrella, y que no comiese sangre porque era prohibido en la lei de Moisen y pecaba mortalmente quien la comia, y que si estubiera en Françia en quatro dias le ensenaria [sic] todo lo de la lei de Moisen, y que estando alla pecara si no se la enseñara, y alli pecaba en decirselo, y que en la dicha platica le dijo otras muchas muchas cosas concernientes a la dicha lei de Moisen”. Esse depoimento aparece no excerto da relacion de las causas despachadas en este santo offiçcio de la Inquisiçion de Sevilla el año de 1619 (AHN, Inquisición, legajo 2075, página 191 na transcrição de Miguel Rodrigues Lourenço). Villena complementa sua pesquisa baseada em documentos inquisitoriais com documentação paroquial para argumentar que Portocarrero exibia, sempre de forma disimulada, um comportamento católico: “a fin de alejar toda sospecha, [Portocarrero] se mezclaria con populacho que acudía a curiosear los autos de fe y hasta llegó a presenciar los que tenían lugar dentro del local del Santo Oficio, como lo hizo el 17 de junio de 1612, en que se celebró un autillo en la capilla del Tribunal (págs. 72-73 [ed. Boleslao Lewin]). Con la misma desenvoltura figura como testigo del bautismo de una hija de Lázaro Rodríguez de Escobar y de Ana de Burgos el 2 de junio de 1613” (378-9). Como vemos, Villena não interpreta a cultura cristã-nova como um conflito genuíno entre judaísmo e cristianismo, senão como dissimulação cristã em favor de um comportamento judaico velado. 119 encarcerado pela Inquisição, provavelmente em 1617, desta vez em Sevilha. Em 1619 nosso personagem foi absolvido pela Inquisição sevilhana mediante o pagamento de trezentos ducados. Seu paradeiro a partir de então é desconhecido, muito embora o fato de referir-se à frota de Spielbergen como “navíos destas tierras” (66) sugere que a

Descripción foi escrita na Holanda. Cogita-se portanto que após ser liberado do cárcere sevilhano Portocarrero “terá ido para a Holanda e, uma vez por aí, posto o conhecimento adquirido no Peru ao serviço das autoridades holandesas” (García 13).118 No entanto, não há todavia nenhuma evidência documental da presença de Portocarrero nos Países

Baixos. Tampouco há provas que a Descripción tenha sido aproveitada pela Holanda ou por outras potências inimigas da Espanha, uma vez que não sabemos nada sobre o impacto, a recepção e a circulação do texto durante o século XVII. Não obstante, cogita- se que a Descripción certamente “recibió en Holanda la atención que merecía” (Böhm,

Una descripción del reino de Chile 24), e que suas notícias, “así como la de muchos otros viajeros de origen judío, pudieron servir para acrecentar la ambición de los corsários holandeses como Jacques L’Hermite [1582-1624] y otros más” (Reluz 111).119

118 Ainda há de se esclarecer se a informação estratégica fornecida ao longo da Descripción era todavia sigilosa, ou se já era conhecida por todos. 119 Além da hipótese de que Portocarrero tenha imigrado à Holanda, cogita-se também que Portocarrero teria buscado asilo “en alguna de las juderías de Bayona” na França. Essa hipótese ganha respaldo no fato de que, conforme indicado na nota anterior (nota n.6), Portocarrero haja mencionado a França como local apropriado para a prática da Lei de Moisés (ver a supracitada relacion de las causas despachadas en este santo offiçcio de la Inquisiçion de Sevilla el año de 1619, 191-2). Cabe lembrar que houve uma significativa presença de cristãos-novos portugueses no sul da França durante o princípio do século XVII. Conforme Esther Benbassa (1999), “Unification of Spain and Portugal between 1580 and 1640, by opening the border between the two lands, allowed the departure of all those who suffered increasingly burdensome restrictions and who feared persecution - mainly New Christians (not only Spanish Conversos but also, and especially, Portuguese converts), who headed for southwest France. For those fleeing the harsh repression of the Inquisition by land, France, lying immediately adjacent to the Iberian peninsula, was an obligatory stopover” (48). Nesse sentido, é curioso notar que o único manuscrito da Descripción conhecido atualmente se encontra na França, em Paris. Também cogita-se que Portocarrero possa haver ido a Portugal (onde presumivelmente nunca viveu como adulto), ou mesmo voltado para a América espanhola (Villena 120

Apesar do inegável e legítimo valor histórico da documentação produzida pelo

Santo Ofício da Inquisição, a natureza complexa e problemática desses materiais não permite que os consideremos como parâmetro absoluto para definir a identidade religiosa dos acusados. Ou, conforme a tese de Ana E. Schaposchnik, “to argue that the crypto-

Judaism of the prisoners was real or an artifact created by the Inquisition, and whether it represented a coherent Jewish practice or an incoherent array of fragments combined with

Christian elements, lead to dead ends. The people accused of crypto-Judaism in colonial

Lima were diverse and inconsistent among themselves” (129). Uma vez que foram produzidos dentro de um sistema de valores e universo de referências específicos, esses documentos de certa forma talvez serviram para reforçar o tropo que equacionou português com judeu. Desse modo, ao atribuir a Portocarrero, de forma categórica e acrítica, a identidade de “judaizante contumaz y propagandista activo” da fé mosaica,

Lohmann Villena continua enquadrando, em pleno século XX, o discurso desviante, anti- espanhol, não-católico, e a colaboração com inimigos da Espanha no universo retórico imperial e homogeneizante do período colonial. Não obstante, um exame da Descripción mostra que tanto a identidade judaica quanto portuguesa de seu autor não são tão cristalinas. Além disso, é preciso comparar a documentação inquisitorial sobre

387). Adicionalmente, também é possível supor que Portocarrero tenha permanecido na Espanha. Não obstante, Villena (384) diz haver lido a documentação da Inquisição espanhola até 1640, não encontrando nenhum processo onde o nome de Portocarrero voltasse a aparecer. De todas formas, é difícil supor que Villena haja percorrido toda a documentação da Inquisição espanhola relativa ao período entre 1619-1640. Por isso faz-se necessária uma pesquisa nos arquivos inquisitoriais da Espanha. Além das duas relaciones de causas mencionadas anteriormente, o nome de Portocarrero também figura no processo inquisitorial movido contra Garcí Méndez de Dueñas (1565-1623), abastado comerciante português nascido em Olivença e julgado pela Inquisição de Lima (Schaposchnik 220). Schaposchnik (idem) indica que o processo contra Garcí Méndez de Dueñas se encontra no Archivo Histórico Nacional de Madrid (AHN- Inquisición, Leg. 1648, Exp. 16), mas não especifica em que fólios do processo o nome de Portocarrero é mencionado. Infelizmente ainda não obtive acesso a esse documento. 121

Portocarrero com outros documentos relativos a sua pessoa. Por exemplo, o documento que atesta a participação de Portocarrero como testemunha do batismo de uma filha de

Lázaro Rodríguez de Escobar y de Ana de Burgos realizado na paróquia de San Marcelo de Lima em 1613.120 Acaso a presença de Portocarrero na igreja indica que muitos cristão-novos de fato experimentaram um genuina tensão entre dois mundos – o judaico e o católico – ou, conforme sugere Villena, que se trata de mais um exemplo de

“comportamento dúplice” (378) para afastar toda a suspeita quanto a sua “verdadeira” identidade religiosa judaica? Finalmente, é preciso estabelecer limites entre o texto, neste caso a Descripción, e seu provável autor, Pedro de León Portocarrero, levando em conta que sempre há um certo nível de autonomia do primeiro em relação ao segundo.

A conexão holandesa

Não sabemos se Pedro de León Portocarrero imigrou para a Holanda após ser liberado pelo Tribunal da Inquisição de Sevilha em 1619. De qualquer forma, a

Descripción atribuída a Portocarrero não pode ser plenamente compreendida se não levarmos em consideração os conflitos imperiais e a guerra pela informação travada entre

Espanha e o emergente império holandês. Nesse sentido, é sintomático notar que o texto atribuído a Portocarrero se encerra com louvores “a honra y gloria del Señor del Mundo y servicio de Vuestras Señorías” (113; 123), ou seja, uma clara alusão às autoridades

120 Parroquia de San Marcelo de Lima, libro 1o de bautismos, 1591-1619, f.89v., citado em Villena (379). 122 holandesas (Riva-Agüero 348; Lewin, Prólogo 12).121 Tanto essas dedicatórias finais quanto a imagem negativa dos colonos e do império espanhol veiculada ao longo da

Descripción sugerem que se trata de um texto escrito para favorecer as autoridades holandesas em seu esforço por romper com a hegemonia comercial e cultural (e talvez política) da Espanha na região do Peru (Reluz 102). Com efeito, naquele tempo a

Holanda já havia obtido independência do domínio espanhol e se tornado uma potência marítima que ameaçava seriamente à hegemonia comercial ibérica nos mares. Obras como Mare Liberum (1609), do jurista Hugo Grotius (1583-1645), contestavam não somente o monopólio marítimo português no oceano índico, mas também, por extensão, o monopólio comercial ibérico em qualquer oceano: “every nation is free to travel to every other nation, and to trade with it” (7).122 É curioso notar que a tese de Grotius não era nova, mas uma reelaboração de tratados sobre o comércio nos mares escritos precisamente por autores espanhóis (!) como Francisco de Victoria (c.1483-1546) e

Francisco Vásquez de Menchaca (Crespo 266).123 Textos como a Arte da Guerra do Mar

(Coimbra, 1555), do (ex-)dominicano português Fernando Oliveira (1507-c.1581),

121 A primeira dedicatoria final diz: “con que hemos cerrado con nuestra cosmografía y descripción y relación del Perú, a honra y gloria del Señor del Mundo y servicio de Vuestras Señorías &ª” (113). A segunda assinala: “Con esto hemos concluido con nuestra historia de las Indias, a gloria y honra de Dios y de servicio de Vuestras Señorías, a quien El se sirva de aumentar y hacer señores de grandes reinos e señoríos. Todo para su santo servicio y bien de Vuestras Señorías &ª” (123). 122 Traduzido ao inglês como o título de Freedom of The Seas, Mare Liberum apareceu originalmente como o capítulo XII de De Jure Praedae (“On the Law of Prize and Booty”) de Hugo Grotius (Scott v). 123 “La tesis grociana no era nueva, ya que en lo fundamental había sido expuesta por los autores de la Escuela Española del Derecho Internacional del siglo XVI – especialmente Fernando Vásquez de Menchaca –, defensores del principio de la libertad de los mares. Se ha llegado a decir que el “De Mare Liberum”, no tiene sino el valor de un estudio bien hecho de segunda mano, tomado a préstamo de la sabiduría española, desarrollo en su primera mitad de la idea directriz debida a [Francisco de] Victoria: cada pueblo tiene derecho a visitar a los otros y a comercial con ellos, ampliación en su segunda parte sobre el tema proseguido por Vásquez, según el cual un derecho exclusivo de navegar sobre el Océano en todo o en parte no puede ser admitido en provecho de una nación, cualquiera que sea” (Crespo 266). 123 também buscavam regular de forma justa a dinâmica das relações internacionais em alto- mar, inclusive o comércio de escravos africanos negros.124 O advento da Trégua dos

Doze Anos (1609-1621) entre Holanda e Espanha representou uma vitória adicional para os holandeses, já que os Estados Gerais dos Países Baixos obtiveram o direito de estabelecer comércio com territórios controlados por espanhóis (Israel, Dutch Primacy

86-7; Israel, The Dutch Republic 399-410).

Portugueses no Peru colonial

Além da conexão holandesa, a Descripción também não pode ser plenamente compreendida se não levarmos em consideração o contexto da presença de portugueses no vice-reinado do Peru durante o fim do século XVI e o princípio do XVII. O advento da União Ibérica em 1580 forneceu oportunidades administrativas legais a sujeitos portugueses para imigrar à América espanhola – como por exemplo cartas de naturalização ou emprego na indústria naval. Não obstante, muitos sujeitos portugueses se estabeleceram no vice-reinado peruano sem as devidas permissões, de modo a

124 Conforme David Thomas Orique (103), é possível que as ideias radicais contidas na Arte da Guerra do Mar hajam precipitado o segundo encarceramento de Fernando Oliveira pelo Santo Ofício da Inquisição. A falta de comprometimento de Oliveira com o discurso luso-católico hegemônico se evidencia em um dos seus depoimentos concedidos ao Santo Ofício da Inquisição, onde Oliveira assumiu ter prestado serviços a Henry III, rei da Inglaterra. Por esse motivo, Oliveira se recusou a denunciar a religiosidade supostamente herética do monarca protestante. Nas palavras de Orique: “Upon Oliveira's return to Lisbon in autumn of that same year [1547], the Inquisition arrested him for the first time. Evidence of his alleged ‘heresy’ and perhaps ‘treason’ was found in remarks he reportedly made that were deemed critical of the Catholic Church and favorable to England's Protestant monarchs. For example, during an interrogation, Oliveira refused to denounce Henry VIII’s religious views because, as he insisted, he ‘had been Henry's servant, and eaten his bread’” (110).

124 interferir significativamente na esfera sócio-econômica da colônia (Cross 153; ver também Hanke 1961, Liebman 1974, Reparaz 1976, Canabrava 1984, Schwartz, “Panic in the Indies” [1992], Ventura 2005, Brunke 2013).

Como sabemos, muitos dos portugueses que habitaram no vice-reinado peruano durante o período em questão eram cristãos-novos que buscavam oportunidades comerciais na região e/ou um ambiente afastado dos tribunais Inquisitoriais estabelecidos na Península. Alice Canabrava (1984) e outros pesquisadores mostraram que autoridades coloniais espanholas “lançaram contra os portugueses o anátema de judeus e de inimigos da fé católica, a tal ponto que, na América Espanhola, o fato de ser português implicava, no conceito popular, o ser também judeu” (Canabrava, 157).125 Com efeito, o fato de que muitos dos mercadores portugueses que circularam pela região terem sido cristãos-novos deu vazão à emergência de um discurso teológico-político segundo o qual os cristãos- novos de origem portuguesa que residiam ou circulavam pelo vice-reinado peruano representavam uma ameaça à hegemonia religiosa, comercial, administrativa e estratégica da Espanha na região.126 O discurso colonial que associou portugueses com judeus no contexto do Peru colonial viu seu apogeu na chamada “grande cumplicidad” (1635-1639)

– evento histórico que culminou em um Auto de Fé performatizado em Lima em janeiro

125 Sobre a tropo que estabelecia uma associação automática entre “português” e “judeu” no contexto do Peru vice-reinal ver também ver também Boleslao Lewin (El judío en la época colonial 47-90); Yara N. Monteiro (1996), Nathan Wachtel (2013 [2001]), Günter Böhm (Crypto-Jews and New Christians [2001]), Jonathan Israel, Buenos Aires, Tucumán (2002), Irene Silverblatt (2004), Daviken Studnicki-Gizbert (2007), João de Figueirôa-Rêgo (2013), Ana E. Schaposchnik (2015) e Matthew Warshawsky (2016). 126 A imagem do cristão-novo português enquanto elemento suspeito e subversivo no contexto do vice- reinado do Peru se atesta na documentação produzida pelo tribunal da Inquisição de Lima (instalado em 1570), nas ordens emitidas à audiência de Charcas (na atual Bolívia), nas discussões travadas na corte de Madrid e na Suprema da Inquisição com respeito à instalação de um tribunal da Inquisição em Buenos Aires, e em vários outras fontes documentais (Israel, Buenos Aires, Tucumán 125-7).Sobre o tribunal da Inquisição de Lima ver o estudo fundamental de José Toribio Medina (1956). 125 de 1639 no qual onze homens, a maioria deles pertencentes a uma rede de comerciantes de origem portuguesa, perderam suas vidas (Schaposchnik 3). Entre estes homens estavam o comerciante e traficante de escravos africanos Manuel Bautista Perez (1590-

1639) e o cirurgião tucumano Francisco Maldonado da Silva (1592-1639), personagens já amplamente estudados pela crítica.127

A maior parte da fortuna crítica sobre a Descripción trabalhou precisamente em torno das intersecções entre a identidade luso-judaica de seu autor e sua provável colaboração com a Holanda (Riva-Agüero 1914, Lewin 1958, Villena 1970, Böhm, Una descripción del reino de Chile [2001], Álvarez 2009, Reluz 2009 e García 2013). De modo geral, os críticos que investigaram essas intersecções tenderam a reproduzir o mesmo discurso colonial que, já no século XVI, estabeleceu uma conexão automática entre a identidade portuguesa, cripto-judaísmo e espionagem em favor do inimigo holandês. Contrariando esta tendência, este capítulo argumenta por uma abordagem mais cuidadosa ao texto de Portocarrero e às fontes documentais sobre sua pessoa. Coincido assim com a proposta de Margarita Eva Rodríguez García segundo a qual a identidade judaica do autor da Descripción e sua possível colaboração com as autoridades holandesas não devem ser interpretadas como ponto de chegada, mas sim como um ponto de partida para abordar o texto (García 14).128 Meu argumento em favor de uma

127 Sobre Manuel Bautista Perez, considerado um dos líderes da “grande cumplicidade”, ver Boleslao Lewin (Mártires y conquistadores 208-215), Nathan Wachtel (50-68); Matthew Warshawsky (43-62). Sobre Francisco Maldonado da Silva ver Boleslao Lewin (Mártires y conquistadores 177-207), Günter Böhm (Historia de los judíos en Chile), Wachtel (28-49), Miriam Bodian (Dying in the Law of Moses 117- 152), assim como a consagrada novela histórica do escritor argentino Marcos Aguinis (1999). 128 Margarita Eva Rodríguez García argumenta que tanto a Descripción como outros textos anônimos atribuídos a cristãos-novos portugueses “devem ser repensados, evitando a relação mecânica que os contemporâneos estabeleceram com frequência entre os portugueses, os praticantes da fé judaica e a 126 aproximação mais cuidadosa ao discurso da Descripción e à identidade religiosa de seu autor também coincide com a conclusão de Ana E. Schaposchnik, para quem as variadas razões e circunstâncias da presença dos cristãos-novos portugueses nas colônias ibéricas, a diversidade de seu status social e do seu grau de alegada filiação religiosa não permitem que esta minoria étnico-religiosa seja classificada “under a single label” (128). Na finalidade de encontrar modelos mais sutís e não-essencialistas para se pensar a identidade cristã-nova no contexto transoceânico proto-moderno, também coincido com a proposta de David Graizbord segundo a qual “the variable interplay of ethnicity, religion, the construct of race, and economic behaviour in the lives of ‘Men of the Nation’

[homens-da-nação] challenges totalising models of these subjects’ Jewishness and ‘Ibero

Atlanticity’ and argues for a more nuanced approach to Jewish and judeoconverso identity” (18).129 De modo geral, minha proposta também se alinha como a advertência de Doris Sommer (1999), isto é: proceder com cautela ao estudar literaturas escritas por

conspiração permanente contra os monarcas católicos, uma identificação demasiado presente também no trabalho de Lohman Villena” (14). Uma análise dos escritos do cristão-novo lisboeta aderido ao judaísmo em Hamburgo, Manuel Bocarro Francês (1593-1662), aliás Jacob Rosales, constitui um exemplo que contraria a lógica generalizadora da associação entre cristãos-novos e holandeses na América do Sul. Conforme assinalado por Francisco Moreno de Carvalho, “Rosales preferia o domínio hispano-português sobre o Brasil, no lugar do holandês, pois estava ligado a um segmento da sociedade ibérica, composto na sua maioria por cristãos-novos (judaizantes ou não), cujos interesses políticos e econômicos acomodavam- se aos do governo filipino e nada, ou muito pouco, tinham a ver com os interesses dos judeus portugueses de Amsterdã” (122). Carvalho tem razão em afirmar que para além das lógicas, preconceitos e generalizações apriorísticas trazidas por nossos preconceitos “se encontra a dinâmica de pessoas vivas, atores, agentes e pacientes no palco da história” (idem). O exemplo de Bocarro Francês sugere que o paradigma que equacionou a origem portuguesa e a identidade judaica à atividade de espionagem e apoio incondicional a Holanda deve ser repensado, pois se baseia em uma interpretação unidimensional do contexto histórico e social dos cristãos-novos em geral. 129 Sobre o conceito de “homens-da-nação” (conhecidos também como “homens-de-negócios”) ver Yosef Hayim Yerushalmi (From Spanish Court 12-21), Miriam Bodian (“Men of the Nation”) e Daviken Studnicki-Gizbert (9-13). Conforme explicado na nota n. 4 desta tese, o termo “nação” desempenhou um papel ambíguo, pois conotava tanto “nação portuguesa” quanto “nação hebraica”. 127 minorias sociais nas Américas (essa advertência naturalmente também se aplica ao estudo dos Diálogos das grandezas do Brasil atribuídos a Ambrósio Fernandes Brandão).

Como veremos ao longo deste capítulo, a Descripción cria uma imagem bastante negativa da presença espanhola no Peru. A falta de devoção católica atesta o caráter anti- espanhol do texto, e se exemplifica, entre outras passagens, na completa indiferença com que o cronista se refere à figura neotestamentária de Maria Madalena no trecho relativo ao pirata Spielbergen citado no início deste capítulo (Descripción 66-7). A ausência de alusões positivas à expansão do cristianismo aproxima o texto atribuído a Portocarrero aos textos de Garcia d’Orta e de Ambrósio Fernandes Brandão estudados nos capítulos anteriores. Não obstante, uma das características mais interessante e pouco notadas pela fortuna crítica sobre a Descripción é a associação metafórica entre o império espanhol- católico e o antigo império romano pagão. Ao estabelecer esta associação, a Descripción inverte o discurso oficial ibérico de dilatação da fé e do império, pois representa a ação imperial espanhola como oponente de valores religiosos-civilizatórios. O desfecho da narração do ataque de Van Spielbergen ao porto de Callao citado no início deste capítulo exemplifica esta tendência discursiva ao associar a felicidade da população limenha ante o resultado frustrado do ataque holandês às festas deflagradas em Roma após a expulsão de corsários levantinos repelidos por Pompeo el Magno. Convém lembrar que Pompeo

(Gnaeus Pompeius Magnus, 106–48 a.C) foi um comandante militar romano que além de ter participado de campanhas contra piratas, também se envolveu na campanha de destruição de Jerusalém – símbolo da ação romana, e portanto pagã, contra o monoteísmo judaico-cristão. Como veremos, o paralelismo entre Roma e o império espanhol também

128

é explorado pelo discurso colonial holandês (Schmidt, 220-2). A Descripción atua portanto não somente na dimensão prática da competição mercantil e militar entre

Espanha e Holanda, mas também num plano não menos poderoso, isto é, o plano discursivo-ideológico. Antes de analisar algumas passagens que atestam o caráter alternativo da Descripción, seu discurso religioso desviante, sua ruptura com a narrativa triunfalista espanhola e sua afinidade com a Holanda, convém discorrer brevemente sobre algumas das características gerais da obra.

A Descripción, uma crônica em movimento

Seguindo o protocolo dos relatos de informação sobre a terra, a Descripción começa com uma apresentação geral da geografia, dimensões, clima, recursos naturais, produtos comerciais e paisagem humana do território em questão, neste caso o chamado vice-reinado do Peru (19-21). Em seguida, descreve-se a entrada na América do Sul via a região do Panamá e, na sequência, um dos trajetos terrestres entre Guayaquil e Lima (21-

32).130 A Descripción passa então a se concentrar nas características de Lima, como o plano urbano da cidade e suas instituições administrativas, políticas, religiosas e militares

(32-36). Na sequência há seções dedicadas especificamente à Praça Maior e adjacências, ao porto de Callao (36-41), à paisagem humana/composição étnica da cidade (41-43), bem como o clima e épocas de colheita em Lima (43-45). A Descripción passa então a se

130 Uma vez que a Descripción se inicia descrevendo a rota Guayaquil – Lima, supõe-se que Pedro de León Portocarrero entrou na América espanhola pela região do Panamá ou da costa atlântica colombiana, e não pelo porto de Buenos Aires, como muitos cristãos-novos portugueses fizeram a partir de 1580 (Villena 351). 129 ocupar das frutas e outros produtos cultivados no Peru antes da chegada dos espanhóis

(45-55). Apesar de se concentrar nos produtos encontrados em Lima, essa seção do texto também tece considerações sobre produtos do Peru de modo geral. Posto isso, a

Descripción volta a se concentrar nas características de Lima, desta vez especificamente nas oito ruas adjacentes à Praça Maior (55-62), incluindo-se uma subseção dedicada a quatro ruas adicionais da cidade (62-64). O texto passa então a descrever em detalhe o

Callao, porto da cidade de Lima (64-77). A partir de então, a Descripción volta a entrar em movimento, pois aborda o caminho principal entre Lima e Cusco (77-91). A descrição do trajeto contém uma subseção dedicada especialmente à ponte do Rio Apurima (88-91).

Segue-se então uma descrição de Cusco (91-96). Posteriormente, descreve-se o caminho de ligação entre Cusco e Potosí (96-99) e a própria cidade de Potosí e suas minas de prata

(99-101). Uma vez descrita a cidade de Potosí, opera-se uma ruptura na direção do itinerário seguido até então. Ao invés de continuar a movimentação a partir de Potosí, a

Descripción inverte sua direção, passando a descrever brevemente o itinerário que liga

Buenos Aires a Potosí através de Tucumán (101-103). Nesta curta seção dedica-se especial atenção à cidade de Córdova. A inversão no itinerário inicial não deve ser interpretada como uma incoerência, senão o contrário: trata-se de apresentar o itinerário de chegada a Potosí desde um porto alternativo, o de Buenos Aires, já naquele então bastante utilizado por portugueses como ponto de entrada para se chegar à cidade das minas de prata.131 A brevidade e a forma “descolorida” (Lewin, Prólogo 10) com que

131 Conforme Harry E. Cross, “The route through Bueno Aires provided the easiest access to Peru for Portuguese travelers” (153). Ver também Jonathan Israel (Buenos Aires, Tucumán). 130

Portocarrero descreve o trajeto Buenos Aires – Potosí apoia a hipótese levantada por

Boleslao Lewin (idem) que a descrição desse trajeto não se baseou em experiência própria, mas em informação de segunda mão. Na sequência, a Descripción dedica uma seção ao chamado “Reino de Chile” (103-115) - reino “abundantísimo de ganado y vino y frutas” (103). Posto isso, a crônica de Portocarrero oferece duas breves seções sobre as trocas comerciais, rotas e períodos de navegação entre Peru e México (114-115) – extrapolando portanto os limites formais do vice-reino do Peru. A última seção da

Descripción se concentra no itinerário de navegação entre o porto de Callao, em Lima, e o istmo do Panamá (115-123) – região conhecida também como Tierra Firme.

Adicionalmente, essa seção descreve a cidade panamenha de Portobello, e inclui breves descrições de Cartagena de Índias (na costa caribenha da atual Colômbia) e de Havana.

Apesar de breve, a vivacidade da descrição de Havana permite inferir que o cronista da

Descripción realmente visitou Cuba. Finalmente, como espécie de apêndice, a

Descripción apresenta uma lista de produtos indispensáveis intitulada “memória de todos los géneros de mercadurías que son necesarios para el Perú y sin ellas no pueden pasar, porque no se fabrican en la tierra” (124-135). Nesta seção menciona-se a infinidade e variedade de produtos comercializados no Peru, incluindo-se também, às vezes, o local de procedência – Espanha Holanda, Inglaterra, Levante, Flandres, Itália, Índia, França,

Alemanha, Ceilão, China, etc. Curiosamente, Portugal não aparece na lista de procedência dos produtos. Essa seção inclui uma subseção (134-135) com instruções sobre os procedimentos adequados para armazenar mercadorias de modo que não sejam danificadas durante seu traslado oceânico.

131

As brechas no discurso imperial hegemônico

Textos informativos sobre as colônias ibéricas tais como a Descripción eram considerados material altamente sensível pelas autoridades reais espanholas e portuguesas porque revelavam detalhes sigilosos e, às vezes, chegavam até mesmo a contestar a legitimidade do projeto imperial hispano-português (Studnicki-Gizbert 29). A

Descripción contesta esta legitimidade de diversas formas. Focalizando o potencial mercantil peruano, os produtos mais requisitados na região e as rotas comerciais tradicionais que entram e saem de Lima – de modo a conectar a capital do vice-reino a outros entrepostos comerciais – a Descripción não se compromete com a dimensão católica da empresa ibérica no além-mar. Trata-se portanto de um texto singular em meio ao horizonte discursivo da expansão ultramarina ibérica devido à ausência de alusões positivas à dilatação do catolicismo no Novo Mundo, ao nome de Cristo, à literatura neotestamentária ou a expressões devotas cristãs (Riva-Agüero 438; Lewin, Prólogo 13).

Assim, o texto de Portocarreiro diverge radicalmente de obras que, inseridas no universo discursivo oficial do império, enfatizaram o compromisso entre expansão imperial e a dilatação da fé católica no Novo Mundo, como por exemplo a Crónica

Franciscana de las Provincias del Perú (Lima, 1651) de Fray Diego de Córdova Salinas

(1591-1654).132 Não obstante, tal compromisso também foi enfatizado por sujeitos

132 Cito a seguinte sentença retirada do capítulo 4 da crônica de Diego de Córdova Salinas: “[...] con que nos enseña la providencia y misericordia de Dios, cuán incomprensibles y grandes fueron sus favores para con D. Francisco Pizarro, héroe ilustre, y sus valerosos compañeros y soldados, que los armó de su fortaleza para la exaltación de la fe católica y extirpación de las diabólicas idolatrías, en que tantos siglos 132 seculares como o navegador espanhol Pedro Sarmiento de Gamboa (c.1532–1592). Na

Relación y derrotero del viaje y descubrimiento del estrecho de la Madre de Dios, antes llamado de Magallanes (c.1580), Gamboa afirma a conexão entre sua expedição marítima ao extremo sul do continente americano e o “servicio de Dios Nuestro Señor, aumento y conservación de sua Santa Iglesia” (131).133

A preferência da Descripción pela bíblia hebraica se expressa por exemplo na noção de um Deus abstrato e criador da natureza, nos moldes da representação divina conforme o Velho Testamento: “En estos Andes hay animales bravos y serpientes ponzoñosas. Hay una serpiente que llaman del cascabel que en picando a un hombre lo mata, y le puso Dios este cascabel que en estando la sierpe cerca del hombre lo oye y tiene lugar de se guardar de ella” (20); “Y para reparo del agua [contra mercadorias] crió

Dios en esta tierra unas hojas que llaman bigan, muy grandes y recias” (117-118).

Expressões laudatorias como “Ganas de comer faltan en el Perú, que comida siempre sobra, Bendito sea Dios y alabado que tanto bien dió en aquellas tierras” (53) ou “sólo

Dios es firme y sus cosas firmes y su palabra verdad. El nos encamina en todo lo bueno y nos aparta de todo lo malo, y nos encamina por el camino de Santo Servicio, Amén” (76), parecem estar calcadas em fórmulas de louvor a Deus retiradas do Velho Testamento.

habían estado enredadas aquellas gentes, y por medio destos invencibles capitanes se dilató en ellos la luz del Evangelio, que les predicaron muchos sacerdotes y apostólicos religiosos” (29). 133 Na década de 1560 Sarmiento de Gamboa havia sido acusado pelo arcebispo de Lima e Inquisidor ordinário de possuir elementos mágicos e realizar conjuros e invocações proibidas. Adicionalmente, Rubén A. Arribas explica que a expedição de Sarmiento de Gamboa para o Estreito de Magalhães o livrou de cumprir uma pena imposta pela Inquisição de Lima: “Apesar de su impetuoso cristinismo, ésta fue la segunda vez que lo castigaban – la primera fue en México. Por eso, no es baladí cuando él clama ‘cuidado con mezcla astrologías e itinerarios’. Quizá eso aclare, en parte, el porqué de tantas exclamaciones fervorosas, los muchos topónimos de acuerdo al santoral católico y las escuetas precisiones sobre los astros” (Arribas 35). 133

A indiferença da Descripción em relação a missão evangelizadora no Novo

Mundo fica patente não somente na preferência pela bíblia hebraica em detrimento da tradição textual exclusivamente cristã, mas também em trechos onde mencionam-se datas cristãs de maneira completamente irreverente. Já vimos na introdução deste capítulo que o cronista não manifesta nenhuma devoção por Maria Madalena, afirmando tão somente que a tentativa de invasão do porto de Callao perpetrada por uma frota holandesa coincidiu com a data em que se celebra uma das mais famosas discípulas de Jesus. Essa tendência se confirma em outras passagens da Descripción, por exemplo no seguinte trecho onde, ao discutir o clima de Lima e as épocas de colheita, menciona-se o natal de forma totalmente desvinculada de significados religiosos: “Siempre en veinte [y] cinco de diciembre hay uvas frescas en Lima, porque en veinte y seis, segundo día do natal da el bisorrey de comer a la Audiencia” (44). O mesmo ocorre num trecho dedicado a descrição das ruas de Lima onde menciona-se a semana santa (“semana de en doenças”) com completa indiferença religiosa: “Tiene monumento[s] que fazen la semana de en doenças todo de terciopelo carmesí, y por encima guarnecido todo de plata fina con mil azos labrados al buril” (62).

A verve heterodoxa da Descripción não se expressa somente através da falta de devoção católica ou cristã, mas também fica evidente nas críticas explícitas às ordens monásticas estabelecidas em Lima. Ao referir-se à ordem dos frades agostinhos, por exemplo, a Descripción diz que “Estos son los que mejor se aprovechan en el Perú, o los que mejor saben furtar, en bon romance” (35). Portocarrero tampouco poupa os frades da

134 ordem de São Caetano e as monjas e clérigos que habitavam a vila de Potosí, pois

“siempre acuden al olor de la plata y donde hay mucha fortuna” (99).

Quando começa a descrever a cidade de Lima, Portocarrero diz: “Aquí está la

Inquisición, tan temida y aborrecida de todas las gentes” (32). Uma referência adicional à

Inquisição aparece em um trecho sobre a cidade de Lima onde Portocarrero menciona um convento e casa de jesuítas, assinalando: “Aquí entró, estando yo en Lima, Antonio

Correa, secretario de la Inquisición, con trescientos mil pesos y se fizo de su orden, que de estos bocados engullen muchos en el Perú y no se ahogan, porque tienen estómago para todo” (63). A esses juízos de valor pouco protocolares soma-se outra passagem em que Portocarrero diz ter visto “encorozar y azotar y salir en auto público de Inquisición hechicera que enredó con sus embustes las señoras más principales de Lima, y vide quemar sodomitas y capitán de los que estaban en mayor reputación” (73). A crítica à

Inquisição nesses trechos é uma crítica geral, voltada por exemplo contra a ganância financeira de instituição, e não uma crítica no que diz respeito à ação inquisitorial contra cristãos-novos portugueses. Como vemos, Portocarrero menciona a ação da Inquisição contra feiticeiras e sodomitas, e não contra cristãos-novos judaizantes. De fato, durante as primeiras duas décadas do século XVII a Inquisição de Lima foi uma instituição

“dormente”, que não concentrou suas atividades em torno dos cristãos-novos portugueses

(Schaposchnik 112). A ação voltada especificamente contra cristãos-novos portugueses ocorreria somente na metade de década de 1630, no contexto da “grande complicidad”.

Boleslao Lewin reconhece que “la crítica de las órdenes monásticas – singularmente de la jesuítica, – os encargos contra la sed del lucro del clero y la aversión al Santo Ofício no

135 indican necesariamente judaísmo del opinante – a la sazón podía también tratarse de protestantismo” (Prólogo 13). Porém, o mesmo pesquisador afirma que “el caso de nuestro autor, y junto con las outras revelaciones, incluso lo confirman [el judaísmo del opinante]” (Lewin, idem). Lewin reconhece na Descripción um discurso dividido entre o judaísmo e o protestantismo, porém prefere associá-lo mais que tudo ao judaísmo – possivelmente porque esta abordagem se encaixava melhor em sua agenda de pesquisa.

Lewin também afirma que o judaísmo do autor de la Descripción “es fácilmente deducible [...] aún cuando no se hacen en él [manuscrito] manifestaciones formales de pertenencia a la grey judía ni de residencia en los Países Bajos” (Prólogo 14). É certamente difícil identificar um judaísmo “facilmente dedutível” mas que simultaneamente “não se manifesta formalmente”, sem apelar a fontes extemporâneas ao texto. Um dos desafios impostos pelo estudo da Descripción é, portanto, não sucumbir à tentação de impor interpretações categóricas condicionadas a elementos extra-textuais.

Por outro lado, como bem notou Julio Caro Baroja, não era necessario ser protestante ou judeu para posicionar-se contra a Inquisição: “desde el siglo XVI encontramos no sólo detractores sistemáticos de aquel tribunal ajenos a la fe [católica], sino también católicos sinceros” (15). Com efeito, é preciso considerar a possibilidade que o discurso anti- inquisitorial e anti-espanhol veiculado ao longo da Descripción não derive necessariamente (ou somente) da provável identidade judaica de seu autor, mas também de uma tendência crítica contra a Espanha que permeou tanto o discurso protestante holandês quanto alguns círculos das próprias sociedades espanhola e portuguesa (por exemplo, a crítica veiculada pelo jesuíta português António Vieira [1608-1697] e pelo

136 diplomata português Luís da Cunha [1662-1747]). A crítica contra a Inquisição ao longo da Descripción também permite que o cronista ponha em relevo características pouco meritórias da sociedade espanhola. Como vemos, nem mesmo as “señoras más principales de Lima”, ou um “capitán” de grande reputação deixam de ser representados como figuras pouco virtuosas. A Descripción também menciona a captura de um navio inglês “que siempre navegó y fue el mejor navío que había en su tiempo en aquel Mar del

Sur, y a los ingleses los metieron en la Inquisición y los sacaron en auto público y [a] algunos con sambenitos” (105). Nesta passagem o cronista não somente menciona a ação inquisitorial contra ingleses, mas também aproveita para destacar a potência de seu navio,

“el mejor navío que había en su tiempo” no Mar del Sur (nome com que se conhecia o oceano Pacífico na época das primeiras explorações espanholas na América). Desse modo, a Descripción parece usar o navio inglês como instrumento retórico para insinuar uma superioridade inglesa e, consequentemente, diminuir a moral espanhola.134 De qualquer forma, a crítica da Descripción em relação à Inquisição deixa evidente que o texto de Portocarrero é uma obra dissidente. Isso fica claro se a comparamos, por exemplo, com a afirmação do clérigo dominicano e cronista espanhol Reginaldo de

Lizárraga (1545 - 1615) – para quem o envio de inquisidores ao reino do Peru foi considerado algo “acertadísimo y necesarísimo” (Tomo II, 164-165, citado em Acevedo

931).

134 Cabe lembrar que o inglês Francis Drake (c.1540-1596) foi o primeiro navegador que, sem ser súdito espanhol, cruzou o Estreito de Magalhães em 1578, de modo a obter acesso ao porto de Callao, o qual saqueou. Portanto, Drake cruzou o Estreito de Magalhães cerca de 37 anos antes de o holandês Spielbergen realizar a mesma façanha. Sobre Francis Drake ver Manuel Lucena Salmoral (98-104) e Enrique Silberstein (69-81) . 137

Portocarrero também não poupa críticas ao comportamento prático dos colonizadores espanhóis. Por exemplo, na passagem onde se descreve a localidade de La

Barranca, nas cercanias de Lima: “Por todos estos ríos, arrimados a la sierra, viven muchos indios, alegres y contentos, aunque que los españoles los traen muy oprimidos y sus dotrinantes les cogen todo su bien” (30). Em outro trecho, ora relativo à cidade de

Lima, afirma-se que “los negros e indios son más bárbaros que eram antes que conociesen [a] los españoles, porque entonces no tenían quién los encaminase y ahora son supersticiosos y hechiceros” (73). Esses trechos exemplificam não somente a representação dos espanhóis enquanto opressores, gananciosos, bárbaros, supersticiosos e feiticeiros (características que contrariam elementos básicos da doutrina judaico-cristã), mas também demarcam uma rígida separação entre o cronista e os espanhóis. Com efeito, ao longo de toda a Descripción o termo “espanhóis” sempre aparece na terceira pessoa.

Em nenhum momento a Descripción deixa de estabelecer essa separação, demarcando de forma clara que o cronista não pertence a este grupo – muito embora esteja escrevendo em castelhano e tenha vivido a maior parte de sua vida (ou toda sua vida?) na Espanha ou em suas colônias. Por outro lado, em nenhum momento da Descripción o cronista chega a se identificar como português – apesar dos lusitanismos linguísticos que provavelmente indicam sua origem portuguesa.135 A seguinte passagem atesta não somente a diversidade das nações que habitavam em Lima, mas mostra que o narrador da Descripción também se refere aos portugueses na terceira pessoa: “En Lima y por todo el Perú viven y andan

135 Por exemplo “em”, “botica”, “estrada”, “duas”, “daqui” etc. (Lewin, Prólogo 9; Villena 318; Riva- Agüero 4). 138 gentes de todos los mejores lugares, ciudades y villas de España, y hay gentes de la nación portuguesa, hay gallegos, asturianos, vizcaínos, navarros, aragoneses, valencianos, de Murcia, franceses, italianos, alemanes y flamencos, griegos y raguceses [nativos de

Ragusa, região do sul da Sicília], corsos, genoveses, mallorquines, canarios, ingleses, moriscos, gente de la India y de la China, y otras muchas mezclas y mixturas” (73). Nota- se portanto que a identidade nacional e religiosa do autor da Descripción constitui um caso complexo que não permite abordagens essencialistas ou conclusões simplistas.

Classificá-lo simplesmente, de forma acrítica, como “judeu-português”, reflete precisamente uma abordagem essencialista.

Um dos aspectos mais transgressivos da Descripción não é somente a preferência pela bíblia hebraica e a indiferença pelas fontes cristãs pós-bíblicas, mas a maneira como o autor da Descripción aproveita a bíblia hebraica para estabelecer comparações entre a história peruana contemporânea e a história bíblica, de modo a criar um paralelismo entre os inimigos do antigo Israel e os espanhóis do século XVII. Além do exemplo citado na passagem relativa ao pirata holandês Joris Van Spielbergen (66-7), encontramos pelo menos mais dois exemplos desse procedimento discursivo ao longo da Descripción. Na seção em que descreve o Callao, porto da cidade de Lima, o cronista afirma que “Oí y vide y experimenté cosas en este Reino [Perú] que de los antiguos cananeos y amorreos no se dicen mayores vicios y maldades” (72). É interessante notar que esta comparação entre espanhóis e cananeus é similar aquela estabelecida em um panfleto holandês relativo a uma batalha travada em Olinda (Brasil) entre holandeses e portugueses

(naquele então Portugal estava submetido ao governo da Espanha devido à anexação do

139 trono português pela dinastia dos habsburgos).136 Na mesma seção sobre o Callao o autor da Descripción afirma: “pues los que gobiernan [el Perú] tanto lo seglar como lo eclesiástico no [sic] son más ladrones que el ladrón (caco) ni más artificiosos para juntar dinero que el gobernador Floro que fue causa por donde se alzaron los judíos contra los romanos, principio de su destruir Jerusalaim” (72). Neste último trecho a palavra

Jerusalém aparece como “Jerusalaim”, isto é, uma grafia que se desvia da norma linguística espanhola ou portuguesa, e busca refletir a transliteração do vocábulo hebraico

Esse detalhe linguístico também pode ser interpretado como a afirmação de .(ירושלים) uma identidade judaica (Lewin, Prólogo 13), muito embora não haja outras palavras ou expressões transliteradas do hebraico ao longo da Descripción.137 Ao optar por manter a grafia hebraica da palavra “Jerusalém”, Portocarrero provavelmente buscou enfatizar a oposição entre a cultura hebraica e a cultura romana. Além do mais, é possível supor que esse gesto exprima o anseio pela volta às fontes canônicas bíblicas – sem a interferência de intermediários – característico da reforma cristã. De qualquer forma, vemos aqui novamente o paralelismo entre o governo peruano e a Roma antiga, responsável pela destruição da Jerusalém hebraica. Ao explorar este paralelismo, a Descripción se alinha com um discurso reformista cristão que veicula a ideia de que o cristianismo católico representa uma versão corrupta, “romanizada”, da autêntica fé cristã – pois o cristianismo

136 Panfleto citado por Benjamin Schmidt (221). Benjamin Schmidt demonstrou que a guerra religiosa entre Holanda e Espanha não foi travada somente na Europa, mas se transpôs ao Novo Mundo. Segundo o discurso reformista-imperial holandês, “America had long since fallen captive to the whore of Rome (the pope) and her bastard son in Spain (the king), who had transformed Brazil into a latter-day Babylon” (Schmidt 222). 137 Essa nuance se perdeu na tradução portuguesa de 2013, onde optou-se pela grafia padrão “Jerusalém” (143), mas foi preservada na edição de Boleslao Lewin. 140 católico está submetido à hierarquia papal, sediada em Roma. Com efeito, Portocarrero não é o primeiro cristão-novo a explorar o paralelismo entre o catolicismo e a Roma pagã. Luis de Carvajal, el mozo (1567–1596) também teceu comparações entre espanhóis e portugueses, por um lado, e personagens da história romana que combateram contra o antigo Israel, por outro. Carvajal foi lançado ao cárcere da Inquisição mexicana em 1589, onde escreveu o que hoje chamamos de suas memórias e testamento. Nestas memórias

Carvajal comparou os monarcas de Espanha e Portugal a Antíoco IV Epifânio (c 215 a.C.

- 162 a.C.), rei e líder militar romano que tomou parte no processo de helenização/romanização da Judéia. Por exemplo, no seguinte trecho: “creo que aquel rey

Antíoco… fue figura de los reyes de España y Portugal” (Testamento 416, citado em

Costigan 75). Ao comparar os espanhóis aos antigos romanos, Portocarrero se alinha portanto a uma retórica que permeou tanto o discurso cristão-novo quanto o discurso reformista cristão. De todos modos, trata-se de mais uma evidência do caráter anti- espanhol da Descripción e de seu alinhamento ideológico com a Holanda.

Reflexões finais

Se nos Diálogos das grandezas do Brasil a hipótese de colaboração e intercâmbio de informação com holandeses é difícil de provar devido às ambiguidades e sutilezas estéticas elaboradas por Ambrósio Fernandes Brandão, na Descripción atribuída a

Portocarrero tal hipótese parece mais óbvia devido ao conjunto de evidências apresentadas ao longo deste capítulo, principalmente as dedicatórias finais a autoridades

141 holandesas. De fato, é possível especular que Portocarrero desejava ver a relativa tolerância religiosa concedida em Amsterdã (onde muitos cristãos-novos passaram a praticar o judaísmo abertamente) implantada no Peru. Ou, em outras palavras, ver Lima

“liberada” de cananeus e amorreus modernos (= espanhóis) pelo comedido e cortés Joris

Van Spielbergen. Tudo isso para “honra y gloria del Señor del Mundo”. Não obstante e apesar de plausível, trata-se de uma hipótese difícil de ser provada, pois não sabemos em que medida Portocarrero buscou atuar em um plano político ou religioso. Talvez seja mais provável que os motivos que levavam cristãos-novos portugueses habitantes do Peru colonial a colaborar com os holandeses tenham sido “antes de tudo econômicos, e não religiosos ou políticos” (Boxer, Salvador de Sá 56). De fato, a Descripción focaliza sobretudo as oportunidades comerciais do vice-reinado peruano, de modo a abrir caminho e guiar mercadores interessados em investir na América espanhola. O rompimento com o monopólio comercial ibérico e o estabelecimento de um comércio honesto, “bueno y sin pesadumbre” (Descripción 59) seria portanto uma das possíveis formas de honrar a Deus.

Portocarreiro não foi exatamente o tipo de cativo “tradicional” estudado por Lisa

Voigt em Writing captivity in the early modern atlantic, isto é, um sujeito europeu – como Diogo Álvares “Caramuru” por exemplo – que habitou entre tribos de índios nativos do continente americano. Portocarrero tampouco experiementou um cativeiro nos moldes daquele vivenciado por Nuno da Silva, isto é, o cativeiro de um sujeito luso- espanhol nas mãos de piratas ingleses (Voigt, Writing Captivity 255-319). Não obstante, a tranferência de conhecimentos (dos nativos americanos para os portugueses no caso de

Caramuru e dos espanhóis para os ingleses no caso de Nuno da Silva) de certa forma se

142 assemelha à tranferência de conhecimento, desta vez da Espanha para a Holanda, operada através da Descripción. Com efeito, a retórica negativa da Descripción em relação aos espanhóis permite que a interpretemos como um texto de um autor que viveu entre espanhóis a contragosto, quase como um cativo. Por exemplo, ao escrever que

“estábamos toda la gente puestos en la playa con las armas en las manos y con pena de muerte que ninguno se menease de su puesto, esperando cuando el comedido contrario enmpezase a disparar sua artillería”, Portocarrero de certa forma indica que combateu os holandeses a contragosto, “con pena de muerte” se não o fizesse. Além disso, se levarmos em consideração a documentação inquisitorial apresentada ao longo deste capítulo, será possível dizer que o autor da Descripción esteve cativo do Santo Ofício da Inquisiçaão por cerca de sete anos (periodo total em que se viu preso nos cárceres de Toledo e

Sevilha). Mesmo não sendo exatamente um cativo no sentido mais comum do termo, o caso de Portocarrero sugere que, assim como os ingleses, os holandeses também dependeram de informação proveniente de fontes ibéricas para alimentar suas investidas na América do sul.

Em conclusão, vimos ao longo deste capítulo que Portocarrero não se alinha ao projeto imperial espanhol. Seu texto representa uma voz dissidente no contexto da narrativa oficial ibérica e um gesto de expressão de uma identidade desviante, alternativa

à identidade hegemônica católico-espanhola. Apesar de escrever em castelhano, sua perspectiva tende a favorecer os holandeses; os espanhóis, mencionados sempre na terceira pessoa, aparecem representados como um grupo à parte, ao qual o cronista não pertence. Não obstante, é difícil determinar com precisão em que medida o carácter

143 dissidente e alternativo da Descripción e sua “perspectiva holandesa” em relação ao Peru resulta necessariamente (ou somente) da possível identidade cripto-judaica de seu de seu autor. Apesar da evidência documental que sugere a identidade cripto-judaica de

Portocarrero, esta identidade não se manifesta claramente na crônica. Os exemplos estudados ao longo deste capítulo, como a crítica à Inquisição, às ordens monásticas, à ganância em geral, à conduta dos espanhóis e sua comparação com os antigos romanos, também podem estar relacionados aos discursos anticlerical, reformista e de livre comércio que circularam tanto na Holanda como na própria Espanha. Não é por acaso que o discurso religioso da Descripción – sobretudo a ausência de alusões a motivos católicos – pode ser identificado tanto como um discurso cristão-novo como com um discurso cristão reformista. Nesse sentido, é possível supor que o cronista buscou um meio termo entre sua possível identidade judaica e o horizonte religioso cristão- reformista. Esse meio termo denotaria uma tentativa de não ferir a sensibilidade das

“vuestras señorías” holandesas, para quem a Descripción afinal se dirige e, ao mesmo tempo, não anularia a identidade religiosa de um sujeito possivelmente dividido entre cristianismo reformado e (cripto-)judaísmo. De qualquer forma, é possível afirmar que entre todos os textos estudados ao longo desta tese, a Descripción atribuída a

Portocarrero é o que se desvia de forma mais explicita e radical do discurso triunfalista ibéro-católico.

144

CONCLUSÃO

Os textos analisados ao longo desta tese exemplificam modos de narrar a expansão ultramarina ibérica que divergiram da ideia de dilatação da fé e do império (de propaganda fide) e de um discurso triunfalista luso-espanhol para justificar e apoiar a presença ibérica no além-mar durante os primórdios da era moderna (séculos XV a

XVII). Portanto, apesar das diferenças de forma, conteúdo e contexto de criação, esses textos podem ser agrupados em um mesmo conjunto. Com exceção do caso de Mendes

Pinto (cuja origem judaica não foi todavia confirmada ou refutada, conforme visto no segundo capítulo da tese), é possível cogitar que o estatuto cristão-novo dos autores dos textos estudados ao longo desta tese influenciaram significativamente sua forma de abordar do processo de expansão imperial. Enquanto cristãos-novos, sua posição ao mesmo tempo central e marginal nas sociedades ibéricas durante os primórdios da era moderna deve haver contribuído para o desenvolvimento de uma perspectiva singular em relação à política religiosa luso-espanhola. As tensões atávicas entre a velha fé judaica e a nova fé cristã herdadas das primeiras gerações de judeus convertidos ao catolicismo também devem haver colaborado nesse sentido. Não obstante, ao longo desta tese busquei me desviar das concepções romantizantes que atribuiram à maioria dos cristãos- novos uma atitude essencialmente inclinada em direção à fé mosaica. Mais do que a expressão de um judaísmo clandestino ou de um modo de pensar cristão-novo, os textos 145 analisados ao longo desta tese – e sobretudo os trechos estudados em profundidade – sugerem uma subjetividade pouco comum no panorama da representação textual da expansão ultramarina ibérica. Considerando que várias instituições luso-espanholas criaram mecanismos especiais para restringir e mesmo erradicar a presença de cristãos- novos entre seus membros (Paiva 272), é possível inferir que a subjetividade identificada nos textos analisados ao longo desta tese não deriva necessariamente (ou somente) da dualidade religiosa experimentada por cristãos-novos, mas também de sua autonomia institucional, política e econômica.

No primeiro capítulo da tese vimos como a descoberta de documentos inquisitoriais sobre a família de Garcia d’Orta alterou profundamente a imagem construída pela crítica para representá-lo, bem como nosso próprio entendimento dos

Colóquios como um todo. O revelação do estatuto cristão-novo de D’Orta lançou nova luz sobre algumas passagens dos Colóquios e colaborou para explicar sua indiferença em relação ao aspecto evangelizador da expansão imperial lusitana na Ásia. D’Orta não se apresenta como um crítico da expansão imperial lusitana no Oriente. Sua obra apoiava a manutenção do império pois contribuia para a sistematização do conhecimento das ervas e produtos locais, bem como para a cura de doenças. No entanto, sua representação da expansão imperial aparece completamente desprovida do elemento evangelizador que caracterizou o discurso oficial do império, de modo geral, e os livros impressos nos prelos da Índia portuguesa, em particular.

No segundo capítulo da tese vimos que a extensão e complexidade da

Peregrinação, bem como a falta de documentação que comprove ou refute a origem

146 judaica de Fernão Mendes Pinto, permitiu que a fortuna crítica em torno da obra tanto enfatizasse a hipótese de um Mendes Pinto cristão-novo quanto a desprezasse veementemente. Também vimos que a tese da identidade cristã-nova de Mendes Pinto como mola motora de sua verve crítica contra a prática imperial lusitana é uma tese problemática, pois essencializa a identidade cristã-nova. Por outro lado, vimos que

Mendes Pinto não ignora completamente o ideal de dilatação da fé e do império. Porém, o peregrino de Montemor-o-Velho veicula um discurso religioso ambíguo ao longo de seu texto. Ao mesmo tempo, demonstramos que certas passagens da Peregrinação relativas aos temas da honra, linhagem e justiça coincidem com o discurso veiculado em textos escritos por cristãos-novos.

O estudo dos Diálogos das grandezas do Brasil, empreendido no terceiro capítulo desta tese, mostra que a obra atribuída a Ambrósio Fernandes Brandão também se apresenta como indiferente (e às vezes irreverente) em relação à expansão do catolicismo no Novo Mundo. Também vimos que a ambivalência e sugestividade religiosa das passagens examinadas ao longo do capítulo provavelmente não resulta somente de uma situação de instabilidade religiosa, mas também reflete a habilidade de um autor preocupado com a censura e repressão do aparato inquisitorial. O capítulo também estuda brevemente o impacto dos Colóquios de Garcia d’Orta sobre os Diálogos de Brandão, sugerindo que este impacto não foi fortuito, mas sim indicativo da identidade religiosa de

Brandão.

A análise da Descripción del Virreinato del Perú empreendida no quarto capítulo representa o exemplo mais radical entre os textos estudados ao longo da tese. Vimos que

147 além da completa indiferença em relação a expansão do catolicismo no América do sul espanhola, o texto atribuído a Pedro de León Portocarrero também se alinha logística e ideologicamente com a Holanda protestante, de modo a desvirtuar completamente o discurso ibero-católico triunfalista desenvolvido para ratificar a presença espanhola na região.

Os textos analisados ao longo desta tese representam apenas uma pequena fração da eclética e variada criação textual levada a cabo por descendentes de judeus portugueses e espanhóis no contexto da expansão ibérica ultramarina ocorrida nos séculos XVI e XVII. Não obstante, a análise destes textos já nos é suficiente para concluir que a identidade cristã-nova não pode ser essencializada ou reduzida a determinadas características religiosas e lealdades (ou deslealdades) nacionais específicas. De fato, conforme assinalado por Paul Julian Smith, um dos maiores desafios para os estudiosos da cultura cristã-nova/conversa é “to respect the alterity of the conversos’ position without lending that position monolithic consistency of metaphysical essence, whether positive or negative” (29). De qualquer forma, apesar de escritos em diferentes regiões, contextos e circustâncias, os textos que estudamos nesta tese coincidem em sua abordagem alternativa da expansão ibérica e da dilatação do catolicismo no além-mar. Conforme argumentado ao longo da tese, esse denominador comum talvez não seja necessariamente (ou somente) uma consequência das tensões religosas experimentadas pelos judeus convertidos ao catolicismo e seus descendentes, mas também se relacione à autonomia institucional experimentada pelos autores em questão – neste caso um médico (Garcia d’Orta), um pirata e “soldado-da-fortuna”

148

(Fernão Mendes Pinto), um senhor de engenho (Ambrósio Fernandes Brandão) e um mercador de grosso trato (Pedro de León Portocarrero). Espero que este projeto inspire outros estudiosos a seguir abrindo novos horizontes para o campo de investigação da expansão imperial luso-espanhola e, em termos específicos, da participação de cristãos- novos nesse complexo e intrigante processo.

149

Bibliografia

Fontes Primárias

Abravanel, Isaac. Ma’aynei ha-Yeshu’a. Ferrara, 1551.

Aguinis, Marcos. La gesta del marrano. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1991.

Barrios, Miguel de. “A la bien aventurada Raquel Núñez Fernández”, Contra la verdad no ay fuerç a panegirico a los tres bienaventurados martires Abraham Athias, Yahacob Rodriguez Cà sares, y Raquel Nuñez Fernandez: que fueron quemados vivos en Có rdova, por santificar la unidad divina. En 16, de Tamuz. Año de 5425 [1665]. Em Amsterdam: En casa de David de Castro Tartaz [1665?], 14-16.

_____. and Kenneth R. Scholberg. La poesía religiosa de Miguel de Barrios. Columbus: Ohio State University Press, 1962.

Ben Israel, Menasseh. Esperança de Israel. Amsterdam: Semuel Ben Israel Soeiro, 1650.

_____ . De la fragilidad humana, y inclinacion del hombre al peccado. Amsterdam, 5402 [1642].

Brandão, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. 2ᵃ edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Imprensa Universitária, 1966 [c.1618].

Caminha, Pero Vaz de; José Augusto Vaz Valente. A certidão de nascimento do Brasil: A carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Fundo de Pesquisas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 1975 [1500].

Camões, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa, 1572.

Castro, João de. Tratado da esfera por perguntas e respostas [c.1538], in Armando Cortesão e Luís de Albuquerque (eds.), Obras completas de D. João de Castro, 4. Volumes. Coimbra, 1968-1982, vol. I, 23-114.

Carpentier, Alejo. El arpa y la sombra. México: Siglo XXI Editores, 1979.

Carvajal, Luis de. “Memorias”. Procesos de Luis de Carvajal, el Mozo. México, D.F.: Publicaciones del Archivo General de la Nación, 1935 [1596].

150

Colón, Cristóbal. Textos y documentos completos: relaciones de viajes, cartas y memoriales. Consuelo Varela, ed. Madrid: Alianza, 1982.

Costa, Uriel da. Exemplo de Vida Humana [Exemplar Humanae Vitae, 1687]. Tradução de Castelo Branco Chaves. Lisboa, 1937. In Uriel da Costa, Exame das tradições farisaicas, acrescentado com Semuel da Silva Tratado da imortalidade da alma. Introdução, leitura, notas e cartas genealógicas por H. P. Salomon e I. S. D.Sassoon. Braga: Edições APPACDM distrital de Braga, 1995, 576-584.

Cruz, Frei Gaspar da. Tratado das coisas da China: (Évora, 1569-1570). Introdução, modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Cotovia, 1997.

Delgado, João Pinto. “A la despedida de un amigo”, Marrano poets of the seventeenth century: An anthology of the poetry of João Pinto Delgado, Antonio Enríquez Gómez, and Miguel de Barrios. Edited and translatated by Timothy Oelman. Rutherford [N.J.]: Fairleigh Dickinson University Press, 1982, 64-73.

Descrição Geral do Reino do Peru, em particular de Lima. Edição de Isabel Araújo Branco, Margarita Eva Rodríguez García e Teresa Lacerda. Tradução de Isabel Araújo Branco e Ana Silva. Notas de António Castro Nunes. Lisboa: Centro de História de Além-Mar; Centro de Estudos Comparatistas; Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, 2013.

Descripció n del Virreinato del Perú : Cró nica inédita de comienzos del siglo XVII. Edición, prólogo y notas de Boleslao Lewin. Rosario: Universidad Nacional del Litoral, Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias de la Educación, 1958 [c.1620]. Excerto da relacion de las causas despachadas en este santo offiçcio de la Inquisiçion de Sevilla el año de 1619. Archivo Histórico Nacional, Inquisición, legajo 2075, N. 32, fols 2-4v. Transcrição de Miguel Rodrigues Lourenço. In: Descrição Geral do Reino do Peru, em particular de Lima. Edição de Isabel Araújo Branco, Margarita Eva Rodríguez García e Teresa Lacerda. Tradução de Isabel Araújo Branco e Ana Silva. Notas de António Castro Nunes. Lisboa: Centro de História de Além-Mar; Centro de Estudos Comparatistas; Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero- Americanos, 2013, 191-195.

Gamboa, Pedro Sarmiento de. Viaje al Estrecho de Magallanes y noticia de la expedición que despué s hizo para poblarlo. Estudio preliminar de José Luis Lanata; artículos anexos y notas de Rubén A. Arribas. Buenos Aires: EUDEBA, 2005.

Grotius, Hugo. The Freedom of the Seas, or The right which belongs to the Dutch to take part in the East Indian Trade. A dissertation by Hugo Grotius. Translated with a revision of the Latin Text of 1633 by Ralph Van Deman Magoffin. New York: Oxford University Press, 1916 [1609].

151

HaKohen, Yosef. Sefer ha-Indiʼah ha-hadashah;̣ Ṿe-Sefer Fernando Koṛ tẹ ś , 1553: nusah ̣ ʻIvri shel toldot Peru u-Meksị kọ bi-yede Yosef ha-Kohen, 1568: ketav-yad shel sifriyat Kiah,̣ Paris = History of New Infia and Mexico (1553): Hebrew version (1568) by Yosef Ha-Kohen. Lancaster, California: Hotsaʼat Labirintos, 2002.

Ibn Verga, Selomoh. La Vara de Yehudah (Sefer Sebet Yehudah). Introducción, traducción y notas por María José Cano. Barcelona: Riopiedras ediciones, 1991 [1550].

Jessurun, Rehuel, and Ishac Belinfante. Diálogo dos montes, auto que se reprezentou com a mayor aspectaç aô , & solemnidade, na synagó ga amstelodama de Beth Jahacob... anno 5384 [1624]: ané xo vaô sé te discurç os academicos, & predicaveis que pré garaô os montes. Amsterdam: Janson, 1767. Lizárraga, Reginaldo de. Descripción breve de toda la tierra del Perú, Tucumán, Río de la Plata y Chile. Publicada como Descripción colonial. Con Noticia Preliminar de Ricardo Rojas. Dos Tomos. Buenos Aires. La Facultad, 1916 [.

Moreno, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil, 1612. Edição crítica, com introdução e notas de Hélio Vianna. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955 [1612].

Oliveira, Fernando. Arte da Guerra do Mar: Estratégia e Guerra Naval no Tempo dos Descobrimentos: com um estudo introdutório de António Silva Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2008 [1555].

Orta, Garcia d' [da]. Coloquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India, a assi dalguas frutas achadas nella onde se tratam alguas cousas tocantes amediçina, pratica, e outras cousas boas, pera saber cõpostos pello Doutor garçia dorta : fisico del Rey nosso senhor, vistos pello muyto Reverendo senhor, ho liçençiado Alexos diaz: falcam desembargador da casa de supricaçã inquisidor nestas partes. Com privilegio do Conde viso Rey. Impresso em Goa, por Ioannes de endem as x. dias de Abril de 1563. Annos.

____. Aromatum, et simplicium aliquot medicamentorum apud Indos nascentium historia: primù m quidem Lusitanica lingua per dialogos conscripta / à D. Garcia ab Horto auctore, nunc vero primum Latina facta et in epitomen contracta a C. Clusius. Antuerpiae: Ex officina Christophori Plantini, MDLXVII [1567].

____. Colóquios dos simples e drogas da Índia. Edição publicada por deliberação da Academia Real das Sciencias de Lisboa; dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho: Socio effectivo da mesma academia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891- 1895 [1563], 2. vols.

Paiva, Mosseh Pereyra de. Notisias dos judeus de Cochim. Amsterdam:, 5447 [1687]. 152

Pereira, Galiote. Algumas cousas sabidas da China (1553-1561). Introdução, modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1992 [1561].

Pharar, Abraham. Declaracaō das 613 encomendancas de nossa sancta ley. Amsterdam: Impresso em casa de Paulus Aertsen de Ravesteyn, 1627.

Pinto, Fernaõ Mendes. Fernão Mendes Pinto and the Peregrinaç ão: Studies, restored Portuguese text, notes and indexes. Ed. Jorge Manuel dos Santos Alves & Elisa Maria Lopes da Costa. 4 vols. Lisboa: Fundação Oriente/Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010.

_____. Peregrinaç ão e outras obras: texto crítico, prefácio, notas e estudo por António José Saraiva. Lisboa: Sá da Costa, 1961 [1614], 4 vols. Portocarrero, Pedro de León. Descripción del Virreinato del Perú. Edición y prólogo de Eduardo Huarag Álvarez. Lima: Universidad Ricardo Palma Editorial Universitaria, 2009 [c.1615].

Primeira visitação do Santo Officio ás partes do Brasil: Pelo licenciado Heitor Furtado de Mendoça : Capellão fidalgo del rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio: Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Homenagem de Paulo Prado, 1925.

Ribeiro, Bernardim. Histó ria de Menina e Moç a. Variantes, introduç ao,̃ notas, e glossário de D.E. Grokenberger; prefácio do Prof. Hernani Cidade. Lisboa: Livraria Studium, 1947 [1554].

Rojas, Fernando de. La Celestina. Edición de Dorothy S. Severin; notas en colaboración con Maite Cabello. Madrid: Cátedra, 2005 [1499]. Romanus Pontifex [bula papal emitida por Nicolau V]. In Ribeiro, Darcy; Neto C. A. Moreira & Gisele J. A. Moreira. La Fundación de Brasil: testimonios 1500 – 1700. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1992 [1454], 3-5.

Salinas, Fray Diego de Cordova. Crónica Franciscana de las Provincias de Perú. New edition with notes and introduction by Lino G. Canedo. Washington D.C.: Academy of American Franciscan History, 1957 [1651].

Sanches, António Nunes Ribeiro. Christãos Novos e Christãos Velhos em Portugal. Prefácio de Raul Rê go. Porto: Livraria Paisagem, 1973 [1748].

Sousa, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Edição castigada pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal,

153

Hespanha e Franç a, e accrescentada de alguns comentários por Francisco Adolpho de Varnhagen. Saõ Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938 [1587].

Teixeira, Bento. Prosopopéia. Editado por Celso Cunha e Carlos Durval. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro / MEC, 1972 [1601].

Usque, Samuel. Consolaçam ás Tribulaçoens de Israel por Samuel Usque. Com revisão e prefácio de Mendes dos Remédios. Coimbra: França Amado, 1906 [1553], 3 vols.

Vasconcelos, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Introdução de Serafim Leite. Petrópolis: Editora Vozes. 2 vols, 1977 [1663].

Vega, Lope de. El peregrino en su patria. Edición, introducción y notas de Juan Bautista Avalle-Arce. Madrid: Castalia, 1973 [1604].

Viajes de extranjeros por España y Portugal en los siglos XV, XVI y XVII: colección de Javier Liske: (año de 1878). Traducidos del original por Félix Rozanski. Madrid: Casa Editorial de Medina, [s.d.].

Zurara, Gomes Eanes da. Cró nica da Tomada de Ceuta. Introduç ao,̃ selecç aõ e notas de Alfredo Pimenta. Lisboa: A.M. Teixeira, 1965 [1453]

Fontes secundárias

Abreu, J. Capistrano de. Introdução aos Diálogos das grandezas do Brasil [1618] de Ambrósio Fernandes Brandão. Segundo a edição da Academia Brasileira, corrigida e aumentada, com numerosas notas de Rodolfo Garcia e introdução de Jaime Cortesão. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010 [1930], 25-41.

Acevedo, Edverto Oscar. “Dos descripciones del 1600 hispanoamericano (Pedro de León Portocarrero y Reginaldo de Lizárraga)”. XIII Coloquio de historia canario- americana. Las Palmas de Gran Canaria: Cabildo Insular de Gran Canaria, 1998, 925-943.

Almeida, Fernando António. “Farias. Uma sombra protectora para Fernão Mendes Pinto”, História 102 (1987), 48-55 & 103 (1987), 51-57.

_____. “Ainda Fernão Mendes Pinto. As terras portuguesas. A gente”. História 104 (1988), 4-23.

_____. “Uma biografia ‘portuguesa’ de Fernão Mendes Pinto”, História 105 (1988), 30- 37.

154

Almeida, Horácio de. História da Paraíba. Tomo I. Parte Primeira. João Pessoa: Imprensa Universitária, 1966.

_____. História da Paraíba. João Pessoa: Editora Universitária, 2 vols, 1978.

Álvarez, Eduardo Huarag. “Portugueses en el Perú del siglo XVII a través del estilo de Don Ricardo Palma y la descripción del Virreinato de un judío portugués, Descripción del Virreinato del Perú, Lima: Universidad Ricardo Palma Editorial Universitaria, 2009 [1620?], ix-xlii.

Arribas, Rubén A. “Instrucción para el viaje: (claves de lectura),” Viaje al Estrecho de Magallanes y noticia de la expedición que despué s hizo para poblarlo de Pedro Sarmiento de Gamboa. Estudio preliminar de José Luis Lanata; artículos anexos y notas de Rubén A. Arribas. Buenos Aires: EUDEBA, 2005, 33-36.

Andrade, Rui Silvestre. Armando Cortesão (1891-1977): ideologia e nacionalismo na historiografia da cartografia portuguesa dos séculos XV e XVI. Tese de mestrado em História. Universidade de Lisboa, 2014.

Arrizabalaga, Jon. “Garcia de Orta in the context of the Sephardic diaspora”, Medicine, Trade and Empire: Garcia De Orta's Colloquies on the Simples and Drugs of India (1563) in Context. Edited by Palmira Fontes da Costa. Farnham: Ashgate, 2015, 11-32.

Ashkenazi, Assaf. “La traducción hebrea de la Historia general de las Indias de Gómara (siglo XVI): un encuentro textual y cultural singular”, Actas del VIII congreso de la Asociación Internacional Siglo de Oro (AISO), 2011, 55-62.

Ayres, Christovam. Fernão Mendes Pinto: Subsídios para a sua biographia e para o estudo da sua obra. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1904.

_____. Fernão Mendes Pinto e o Japão: pontos controversos, discussão, informaç ões novas. Lisboa: Typ. da Academia, 1906.

Azevedo, J. Lucio d’. Historia dos Christãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Editora de A.M. Teixeira, 1921.

Barletta, Vincent. “Masochistic Ritual and Rebirth in Fernão Mendes Pinto’s Peregrinação,” Ellipsis 7 (2009), 53-70.

Baroja, Julio Caro. Los judíos en la España moderna y contemporá nea. Madrid: Ediciones Arión, 1961, 3 tomos. _____. El señor Inquisidor y otras vidas por oficio. Madrid: Alianza Editorial, 1983 [1968].

155

Barreto, Luís Filipe. “Fernão Mendes Pinto and the Jesuit Connection.” Fernão Mendes Pinto and the Peregrinação. Ed. Jorge Manuel dos Santos Alves. 4 vols. Lisboa: Fundação Oriente/Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010. I: 55-87.

_____. “Garcia de Orta e o diálogo civilizacional”, II Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa: actas. Edição organizada por Luís de Albuquerque e Inácio Guerreiro. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical - Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1985, 541-569.

Benbassa, Esther. The Jews of France: A History from Antiquity to the Present. Princeton, N.J: Princeton University Press, 1999.

Bhabha, Homi K. The Location of Culture. New York: Routledge, 1994.

Biedermann, Zoltán & Carvalho, Andreia Martins de. “Home Sweet Home: The Social networks of Mendes Pinto in Portugal”, Fernão Mendes Pinto and the Peregrinação. Ed. Jorge Manuel dos Santos Alves. 4 vols. Lisboa: Fundação Oriente/Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010. I: 29-53.

Blackmore, Josiah. Moorings: Portuguese Expansion and the Writing of Africa. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.

Boer, Harm den. La literatura sefardí de Amsterdam. Alcalá de Henares: Instituto Internacional de Estudios Sefardíes y Andalusíes, Universidad de Alcalá, Servicio de Publicaciones, 1996.

Bodian, Miriam. Dying in the Law of Moses: Crypto-Jewish Martyrdom in the Iberian World. Bloomington: Indiana University Press, 2007.

____. "Men of the Nation": The Shaping of Converso Identity in Early Modern Europe”, Past & Present 143 (May 1994), 48-76.

Böhm, Günter. “Crypto-Jews and New Christians in Colonial Peru and Chile”, The Jews and the Expansion of Europe to the West, 1450-1800, ed. Paolo Bernardini and Norman Fiering. New York and Oxford: Berghahn Books, 2001, 203-212.

____. “Una descripción del reino de Chile por un judío ‘portugués’ a comienzos del siglo XVIII [sic]”, Maguén-Escudo 100 (1996), 20-24.

____. Historia de los judíos en Chile. Volumen 1. Período Colonial. Judíos y judeoconversos en Chile colonial durante los siglos XVI y XVII. El Bachiller Francisco Maldonado de Silva, 1592-1639. Santiago de Chile: Editorial Andrés Bello, 1984.

156

Borowitz, Molly. “Consolation and Performative Emotion in Early Jesuit Correspondence”, unpublished paper presented at the American Portuguese Studies Association, Stanford, CA, October 15, 2016.

Boxer, Charles R. The Portuguese Seaborne Empire 1415-1825. New York: Alfred A. Knopf, 1975 [1969].

_____. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686. Tradução de Olivério de Oliveira Pinto. São Paulo: Editora Nacional - Editora da Universidade de São Paulo, 1973.

_____. Two Pioneers of Tropical Medicine: Garcia D’orta and Nicolá s Monardes. London: Hispanic & Luso-Brazilian Councils, 1963.

Braga, Theofilo. A primeira poesia impressa de Luiz de Camões: no livro do Doctor Garcia D'orta intitulado Coloquios dos Simples e Drogas. Lisboa: Officinas typographicas de Adolpho, Modesto &c.a, [1887].

Brunke, José de la Puente. “La mirada portuguesa al Perú de los siglos XVI y XVII”, Descrição Geral do Reino do Peru, em particular de Lima. Edição de Isabel Araújo Branco, Margarita Eva Rodríguez García e Teresa Lacerda. Tradução de Isabel Araújo Branco e Ana Silva. Notas de António Castro Nunes. Lisboa: Centro de História de Além-Mar; Centro de Estudos Comparatistas; Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, 2013, 69-98.

Canabrava, Alice P. O Comé rcio Portuguê s no Rio da Prata (1580-1640). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1984.

Carvalho, Augusto da Silva. Garcia d'Orta. Comemoração do quarto centenário da sua partida para a Índia em 12 de março de 1534. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934. Separata da Revista da Universidade de Coimbra. Vol. XII, n.1.

Carvalho, Francisco Moreno de. “O Brasil nas profecias de um judeu sebastianista: o “Aforismos” de Manoel Bocarro Francês/Jacob Rosales”, Os Judeus no Brasil: Inquisição, imigração e identidade. Organização de Keila Grinberg. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, 115-135.

Carvalho, Teresa Nobre de. “Estratégias, patronos e favores em Colóquios dos Simples de Garcia de Orta”, Humanismo e Ciência: Antiguidade e Renascimento. Coordenação de António Manuel Lopes Andrade, Carlos de Miguel Mora & João Manuel Nunes Torrão. Aveiro - Coimbra - São Paulo: UA Editora, Universidade de Aveiro - Imprensa da Universidade de Coimbra - Annablume, 2015, 63-94.

157

Cascudo, Luís da Câmara. Mouros, Franceses e Judeus: (Três presenças no Brasil). Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1967.

Castro, Aníbal Pinto de. “Introdução”, Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e Itinerário de António Tenreiro, Tratado das Cousas da China, Conquista do Reino de Pegu. Introd. Aníbal Pinto de Castro. Porto: Lello & Irmão, 1984, v-lxx.

Catz, Rebecca. D. “Introduction”, em Fernão Mendes Pinto, The Travels of Fernão Mendes Pinto. Ed. and trans. Rebecca D. Catz. Chicago: U of Chicago P, 1989, xv-xliv.

_____. (Interview). “Life of adventure: A 16th Century explorer led Rebecca Catz on a journey”, Chicago Tribune, July 8 1990. Reprinted in Remembering Rebecca D. Catz, December 26, 1920 - July 16, 2001, [s.l.], [s.d.].

_____. A sátira social de Fernão Mendes Pinto: análise crítica da Peregrinação. Prefácio de Luís de Sousa Rebelo. Lisboa: Prelo Editora, 1978.

Coelho, António Borges. “O saber em Garcia de Orta”, Questionar a História: Ensaios sobre História de Portugal. Lisboa: Editorial Caminho, 1983, 157-170.

Cohen-Skalli, Cedric. “Authorship in the age of early Jewish print: Isaac Abravanel’s `Ma’aynei ha-Yeshu’a` and the first printed edition in Ferrara 1551”, Tradition, Heterodoxy, and Religious Culture: Judaism and Christianity in the Early Modern Period. Ed. Chanita Goodblatt and Howard Kreisel. Beer-Sheva: Ben- Gurion University of the Negev Press, 2006, 185-201.

Cortesão, Armando. “Fernão Mendes Pinto não era de origem judaica”. In Seara Nova: Lisboa, 1943. Republicado em Armando Cortesão, Esparsos, vol. I. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra: Por ordem da Universidade, 1974, 355- 364.

Cortesão, Jaime. Apresentação aos Diálogos das grandezas do Brasil [1618], by Ambrósio Fernandes Brandão. Segundo a edição da Academia Brasileira, corrigida e aumentada, com numerosas notas de Rodolfo Garcia e introdução de Jaime Cortesão. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010 [1943], 9-19.

Costa, Palmira Fontes da. “Identity and the Construction of Memory in Representations of Garcia de Orta”, Medicine, Trade and Empire - Garcia de Orta's Colloquies on the Simples and Drugs of India (1563) in Context. Edited by Palmira Fontes da Costa. Farnham: Ashgate, 2015, 237-265.

Costigan, Lúcia Helena. Through Cracks in the Wall: Modern inquisitions and New Christian letrados in the Iberian Atlantic world. Leiden – Boston: Brill, 2010.

158

Coutinho, Afrânio. Apresentação aos Diálogos das grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1968, [9]-[18].

Crespo, Pedro Rodríguez. “El peligro holandés en las costas peruanas a principios de Siglo XVII: La Expedición de SPilbergen y la Defensa del Virreynato”, Revista histórica: órgano del Instituto Histórico del Perú, 1962, 26, 259-310.

Cross, Harry. “Commerce and orthodoxy: a Spanish response to Portuguese commercial penetration in the Viceroyalty of Peru, 1580-1640”, The Americas 25:151-67 (1978).

Cunha, Ana I. Cannas da. “Garcia de Orta”, in Dicioná rio do Judaísmo Portuguê s. Coordenação de Lúcia Liba Mucznik, José Alberto R. S. Tavim, Esther Mucznik e Elvira A. Mea. Lisboa: Presenç a Editorial, 2009, 395-6.

D’Cruz, Ivan A. “Garcia da Orta in Goa: pioneering tropical medicine”, BMJ 303 (1991), 1594-6.

Doré, Andréa. “O deslocamento de interesses da Índia para o Brasil durante a União Ibérica: mapas e relatos”. Colonial Latin American Review. 23/2, 2014, 171-196.

Eberhard, Wolfram. A Dictionary of Chinese symbols: hidden symbols in Chinese life and thought. London: Routledge.

Encyclopaedia Judaica. Jerusalem: Keter Publishing House, 1972.

Falbel, Nachman. “Judaica Pernambucensis: alguns perfis de judeus e judaizantes em Pernambuco”, Judeus no Brasil: Estudos e notas. São Paulo: Humanitas – Edusp, 2008, 97-119.

Faria, Francisco Leite de. As muitas ediç ões da “Peregrinaç ão” de Fernão Mendes Pinto. Lisboa: Academia portuguesa da história, 1992. Farinelli, Arturo. Marrano: (Storia di un vituperio). Geneve: L.S. Olschki, 1925.

Faur, José. In the Shadow of History: Jews and Conversos at the Dawn of Modernity. Albany: State University of New York Press, 1992.

Ficalho, Francisco Manuel de Melo, Conde de. Garcia da Orta e o seu tempo, pelo conde de Ficalho. Lisboa: Imprensa nacional, 1886. [relançado em Lisboa pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 1983 com introdução de Nuno de Sampayo]

Figueirôa-Rêgo, João de. “Notas de errância e diáspora. A presença de cristãos-novos portugueses no Peru: inquisição e tabaco (séculos XVI-XVII)”, Descrição Geral do Reino do Peru, em particular de Lima. Edição de Isabel Araújo Branco, Margarita Eva Rodríguez García e Teresa Lacerda. Tradução de Isabel Araújo 159

Branco e Ana Silva. Notas de António Castro Nunes. Lisboa: Centro de História de Além-Mar; Centro de Estudos Comparatistas; Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, 2013, 33-53.

Fischel, Walter J. “Garcia de Orta – a militant marrano in Portuguese-India in the 16th Century”, in Salo Wittmayer Baron jubilee volume on the occasion of his eightieth birthday. Jerusalem: American Academy for Jewish Research; New York: distributed by Columbia University Press, 1974 [i.e. 1975]. Vol, 1, 407-432.

Fouto, Catarina. “Revisiting Baroque Poetics in Fernão Mendes Pinto’s Peregrinação: The Hermeneutics of Worldview”, Ellipsis 12 (2014), 65-89.

Franç a, Eduardo d'Oliveira & Siqueira, Sonia A. ‘Origem da visitação de 1618’, Segunda Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil: pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos Teixeira: Livro das confissões e ratificações da Bahia: 1618- 1620. [Saõ Paulo]: [Museu Paulista], [1963], 123-129.

Freitas, Jordão A. de. “A Inquisição em Goa. Subsídios para sua história”, Archivo Historico Portuguez, vol. V, 1907, 216-227.

García, Margarita Eva Rodríguez. “Descrição de reino do Peru: a circulação no mundo andino aos olhos de um súbdito ibérico”, Descrição Geral do Reino do Peru, em particular de Lima. Edição de Isabel Araújo Branco, Margarita Eva Rodríguez García e Teresa Lacerda. Tradução de Isabel Araújo Branco e Ana Silva. Notas de António Castro Nunes. Lisboa: Centro de História de Além-Mar; Centro de Estudos Comparatistas; Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, 2013, 11-24.

Garcia, Rodolfo. Aditamento aos Diálogos das grandezas do Brasil [1618], de Ambrósio Fernandes Brandão. Segundo a edição da Academia Brasileira, corrigida e aumentada, com numerosas notas de Rodolfo Garcia e introdução de Jaime Cortesão. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010 [1930], 43-44.

Gerbi, Antonello. The dispute of the New World: The History of a polemic, 1750-1900. [Pittsburgh]: University of Pittsburgh Press, 1973.

Gilman, Stephen. The Spain of Fernando de Rojas: The intellectual and social Landscape of La Celestina. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1972.

Gitlitz, David M. Secrecy and deceit: The Religion of the Crypto-Jews. Philadelphia: Jewish Publication Society, 1996.

Goldish, Matt. “Perspectives on Uriel da Costa’s Example of a Human Life,” Studia Rosenthaliana 42 (2010), 1-23.

160

Gómez, António Enríquez. Fernan Mendes Pinto: Comedia Famosa en dos partes. Ed. with an introduction by Louise G. Cohen, Francis M. Rogers & Constance H. Rose. Cambridge, Massachusetts: Harvard UP, 1974 [1640?].

Gouveia, A. J. Andrade de. Garcia d’Orta e Amato Lusitano na Ciência do seu tempo. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1985.

Graizbord, David. “Between Ethnicity, Commerce, Religion, and Race: The Elusive Definition of an Early Modern Jewish Atlantic”, Theorising the Ibero-American Atlantic. Edited by Harald E. Braun and Lisa Vollendorf. Leiden/Boston: Brill, 2013, 117-140.

_____. Souls in Dispute: Converso Identities in Iberia and the Jewish Diaspora, 1580- 1700. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004.

Greenblatt, Stephen. Renaissance Self-Fashioning: From More to Shakespeare. Chicago: U of Chicago P, 1980.

Guerra, Francisco. “Sexo y drogas en siglo XVI”. Asclepio, Archivo iberoamericano de historia de la medicina y antropología médica. Madrid: Instituto Arnaldo de Vilanova, Vol. 24, 1972, 293-314.

Gutwirth, Eleazar. “Gangéticas Musas na sciencia: García D’Orta y las culturas de su época”, Lo converso: orden imaginario y realidad en la cultura española (siglos XIV-XVII). Ed. Ruth Fine, Michèle Guillemont, Juan Diego Vila. Frankfurt am Main: Iberoamericana – Vervuert, 2013, 285-305.

Hall, Frederick Holden. Introduction to Dialogues of the Great Things of Brazil (Diálogos das grandezas do Brasil): Attributed to Ambrósio Fernandes Brandão [c.1618]. Translated and annotated by Frederick Holden Hall, William F. Harrison and Dorothy Winters Welker. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1987, 3-14.

Hanke, Lewis. “The Portuguese in Spanish America, with Special Reference to the Villa Imperial De Potosi.” Revista de Historia de Amé rica. (1961): 1-48. Hansen, João Adolfo. “A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro”, A Descoberta do Homem e do Mundo. Organização de Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 347-373.

_____. “Introdução”, Padre Antônio Vieira, Cartas do Brasil: 1626-1697: Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grã Pará. Organização de João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003, 9-74.

161

Huddleston, Lee Eldridge. Origins of the American Indians: European Concepts, 1492- 1729. Austin – London: University of Texas Press – Institute of Latin American Studies, 1967.

Israel, Jonathan I. “Buenos Aires, Tucumán and the River Plate Route: Portuguese conversos and the ‘commercial subversion’ of Spanish Indies (1580-1640)”, [chapter four of] Diasporas within a diaspora: Jews, Crypto-Jews and the World Maritime Empires (1540-1740). Leiden; Boston; Köln: Brill, 2002, 125-150.

____. Dutch Primacy in World Trade, 1585-1740. Oxford [England]: Clarendon Press, 1989.

____. The Dutch Republic: Its Rise, Greatness, and Fall 1477-1806. Oxford: Clarendon Press, 1995.

____. “The Sephardi Diaspora and the Struggle for Portuguese Independence from Spain (1640-1668)”, [chapter ten of] Diasporas within a diaspora: Jews, Crypto-Jews and the World Maritime Empires (1540-1740). Leiden; Boston; Köln: Brill, 2002, 313-353.

Jews and the Encounter with the New World 1492/1992. A Series of Public Programs in observance of the Columbus Quincentenary and the Expulsion of the Jews from Spain; on the Ann Arbor campus of the University of Michigan and in Detroit, Flint, Grand Rapids, and Kalamazoo [1992].

Kadir, Djelal. Columbus and the Ends of the Earth: Europe's Prophetic Rhetoric as Conquering Ideology. Berkeley: University of California Press, 1992.

Kaplan, Gregory B. The Evolution of Converso Literature: The writings of the converted Jews of Medieval Spain. Gainesville: University Press of Florida, 2002.

_____. “Toward the establishment of a Christian identity: The conversos and early Castilian humanism,” La corónica 25, 1 (1996), 53-66.

Kaplan, Yosef. “An Alternative Path to Modernity”, An Alternative Path to Modernity: the Sephardi Diaspora in Western Europe. Leiden; Boston; Köln: Brill, 2000, 1- 28.

_____. “Be'ayat ha-anusim veha-Notsrim ha-hadashim ba-mehkar ha-histori shel ha-dor ha-aharon”, Studies in Historiography: Collected Essays. Edited by Joseph Salmon, Menahem Stern & Moshe Zimmermann. Jerusalem: The Zalman Center for Jewish History, 1987, 117-144.

_____. Foreword to The Faith of Remembrance: Marrano labyrinths, by Nathan Wachtel. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2013, ix-xiv.

162

_____. “Wayward New Christians and Stubborn New Jews: The Shaping of a Jewish Identity”, Jewish History, 8, 1-2, 1994, 27-41.

Kayserling, Meyer. Christopher Columbus and the Participation of the Jews in the Spanish and Portuguese Discoveries. New York: 1893. Reprinted by Carmi House, No. Hollywood, CA, 1989.

Lafaye, Jacques. Quetzalcóatl and Guadalupe: The formation of Mexican national consciousness, 1531-1813. With a foreword by Octavio Paz; translated by Benjamin Keen. Chicago: University of Chicago Press, 1987 [1976].

Leonard, Irving A. “Anonymous Description of Peru (1600-1615), Colonial Travelers in Latin America. Edited with an introduction by Irving A. Leonard. New York: Alfred A. Knopf, 1972, 97-117.

Lewin, Boleslao. El judío en la época colonial: un aspecto de la historia rioplatense. Buenos Aires, Colegio Libre de Estudios Superiores, 1939.

____. Mártires y conquistadores judíos en la América hispana. Buenos Aires: Editorial Candelabro [1954].

____. Prologo a Descripció n del Virreinato del Perú : Cró nica iné dita de comienzos del siglo XVII. Edición, prólogo y notas de Boleslao Lewin. Rosario: Universidad Nacional del Litoral, Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias de la Educación, 1958, 7-17.

Liebman, Seymour B. The Inquisitors and the Jews in the New World: Summaries of Procesos, 1500-1810, and Bibliographical Guide. Coral Gables, Fla: University of Miami Press, 1974.

Lima, Francisco Ferreira de. O outro livro das maravilhas. A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998.

Lins, Guilherme Gomes da Silveira d'Avila. Levantamento das publicações dos Diálogos das grandezas do Brasil com algumas notas sobre o seu mais do que provável autor. João Pessoa: Empório dos Livros, 1994.

Lipiner, Elias. “Os baptizados em pé: Evocação de um feito de contrabalanço histórico”, Os Baptizados em Pé : Estudos acerca da origem e da luta dos Cristãos-Novos em Portugal. Lisboa: Vega, 1998, 13-52.

_____. Gaspar da Gama: Um converso na frota de Cabral. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

_____. Os judaizantes nas capitanias de cima: Estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Brasiliense, 1969. 163

_____. Santa Inquisição: Terror e linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977.

_____. Two Portuguese Exiles in Castile: Dom David Negro and Dom Isaac Abravanel. Jerusalem: Magnes Press, The Hebrew University, 1997.

Loureiro, Rui Manuel. “Introdução”, Algumas cousas sabidas da China (1553-1561), de Galiote Pereira. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1992 [1561], 7-12.

_____. “‘Peregrinação’ de Fernão Mendes Pinto”, SRAZ XXIX-XXX, 229-250 (1984- 1985).

Lourenço, Eduardo. “A Peregrinação ou a Metamorfose do Olhar Europeu”, Portugal e o Oriente (Actas do 1º Ciclo de Conferências), AAVV. Lisboa: Quetzal Editores/Fundação Oriente, 1994, 51-66.

Malkiel, Yakov. “Hispano-Arabic marrano and Its Hispano-Latin Homophone”. Journal of the American Oriental Society, 68 (4), (1948), 175-184.

Margarido, Alfredo. “Fernão Mendes Pinto, um herói do cotidiano”, Colóquio: Letras, 74 (1983), 23-28.

____. “La multiplicité des sens dans l’écriture de Fernão Mendes Pinto et quelques problèmes de la littérature de voyages au XVIe siècle”, Arquivos do Centro Cultural Português (Paris), vol. XI, 1976.

Martins, A. “O Catolicismo de Garcia de Orta”, Brotéria, Revista contemporánea de Cultura. Lisboa, LXXVII, 1 (Julho 1963), 35-46.

Maryks, Robert A. The Jesuit Order as a Synagogue of Jews: Jesuits of Jewish Ancestry and Purity-of-Blood Laws in the Early Society of Jesus. Leiden: Brill, 2010.

Medina, José Toribio. Historia del Tribunal de la Inquisición de Lima, 1569-1820. Prólogo de Marcel Bataillon. Santiago de Chile: Fondo Histórico y Bibliográfico J. T. Medina, 1956. 2 vols.

Mello, Evaldo Cabral de. O bagaço da cana: Os engenhos de açúcar do Brasil holandês. São Paulo: Penguin – Companhia das Letras, 2012.

Mello, José Antônio Gonsalves de. Estudos pernambucanos: Crítica e problemas de algumas fontes da história de Pernambuco. Recife: Governo de Pernambuco, Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes, Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, Diretoria de Assuntos Culturais, 1986.

164

_____. Foreword to the Dialogues of the Great Things of Brazil (Diálogos das grandezas do Brasil). Attributed to Ambrósio Fernandes Brandao.̃ Translated and annotated by Frederick Holden Hall, William F. Harrison, and Dorothy W. Welker, vii-ix. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1987, vii-ix.

_____. Gente da Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco 1542-1654. Recife: Editora Massangana,1996 [1989].

_____. Introdução aos Diálogos das grandezas do Brasil [1618], by Ambrósio Fernandes Brandão, vii-xlvii. 2ᵃ edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Imprensa Universitária, 1966 [1962].

Mintz-Manor, Limor. The Discourse on the New World in Early Modern Jewish Culture. PhD dissertation, The Hebrew University of Jerusalem, 2011 [in Hebrew].

Mills, Kenneth & Taylor, William B. “Pedro de León Portocarrero’s Description of Lima, Peru (early seventeenth century),” Colonial Spanish America: A Documentary History. Edited by Kenneth Mills & William B. Taylor. Wilmington, Delaware: Scholarly Resources Inc., 1998, 165-175.

Mirisola, Marcelo. “Diálogos das grandezas do Brasil”, Congresso em foco, 30 de janeiro de 2013. Accessed January 27, 2016, http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/dialogos-das-grandezas-do- brasil/.

Monteiro, Clóvis. Esboços de história literária. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1961.

Monteiro, Yara N. “Política de Castela contra os cristãos-novo portugueses na América”, Novinsky, Anita, and Diane Kuperman. Ibé ria Judaica: Roteiros da Memó ria. Rio de Janeiro: Expressaõ e Cultura, 1996, 211-32.

Mordoch, Gabriel. “Um cristão-novos nos trópicos: identidade religiosa e expansão imperial nos Diálogos das grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandão”, Colonial Latin American Review, 25/2 (2016), 200-219.

Morel-Fatio, Alfred. Catalogue des manuscrits espagnols et des manuscrits portugais. Paris: Imprimerie nationale, 1892. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k209172b/f206.image

Nelson H. Vieira. “Simulation and dissimulation: An expression of Crypto-Judaism in the literature of ”, Colonial Latin American Review, 2:1-2, 1993, 143- 164.

165

Nepaulsingh, Colbert I. Apples of Gold in Filigrees of Silver: Jewish Writing in the Eye of the Spanish Inquisition. New York: Holmes & Meier, 1995.

Nirenberg, David. “Unrenounceable Core,” Review of The Other Within The Marranos: Split Identity and Emerging Modernity by Yirmiyahu Yovel. London Review of Books. Vol. 31 No. 14, 23 July 2009, 16-17.

Novinsky, Anita. “A família marrana de Garcia de Orta, O “correio” dos Judeus”. Mé morial I.-S. Ré vah: É tudes sur le marranisme, l'hé té rodoxie juive et Spinoza. Édité par Henry Méchoulan et Gérard Nahon. Paris-Louvain: E. Peeters, 2000, 357-369.

____. “A Historical Bias: The New-Christian collaboration with the Dutch invaders of Brazil (17th Century)”, Proceedings of the World Congress of Jewish Studies / , Volume II, Division II: Jewish History in the Mishnah and Talmud ה .Vol Period, in the Middle Ages and Modern Times; the Jewish Labour Movement; Contemporary Jewish History; the Holocaust, 1969, 141-154.

Oelman, Timothy (ed. and trans.). Marrano poets of the seventeenth century: An anthology of the poetry of João Pinto Delgado, Antonio Enríquez Gómez, and Miguel de Barrios. Rutherford [N.J.]: Fairleigh Dickinson University Press, 1982.

Offenberg, A.K. “Some remarks regarding six autograph letters by Menasseh ben Israel in the Amsterdam University Library,” Menasseh Ben Israel and His World. Ed. Yosef Kaplan, Richard H. Popkin, and Henry Méchoulan. Leiden: E.J. Brill, 1989, 191-198.

Orique, David Thomas. “A Comparison of the Voices of the Spanish Bartolomé de Las Casas and the Portuguese Fernando Oliveira on Just War and Slavery”, e-JPH 12/1 (June 2014), 87-118. Disponível em: http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/ issue23/pdf/v12n1a04.pdf

Paiva, José Pedro. "The New Christian Divide in the Portuguese-Speaking World: (Sixteenth to Eighteenth Centuries)". Racism and Ethnic Relations in the Portuguese-Speaking World. Edited by Francisco Bethencourt and Adrian J, Pearce. Oxford [England]; New York: Published for the British Academy by Oxford University Press, 2012, 269-280

Parker, Geoffrey. Imprudent King: A new life of Philip II. New Haven - London: Yale University Press, 2014.

Perelis, Ronnie. Narratives from the Sephardic Atlantic: Blood and Faith. Bloomington: Indiana UP, 2016.

166

_____. “‘These Indians Are Jews’: Lost Tribes, Crypto-Jews, and Jewish Self-Fashioning in Antonio de Montezinos’ Relación of 1644”. Atlantic Diasporas: Jews, Conversos, and Crypto-Jews in the Age of Mercantilism, 1500-1800. Edited by Richard L. Kagan and Philip D. Morgan. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2009, 195-211.

Pimentel, Juan & Soler, Isabel. “Painting Naked Truth: The Colóquios of Garcia da Orta (1563)”, Journal of Early Modern History, 2014, 18-1/2, 101-120.

Popkin, Richard H. “The Rise and Fall of the Jewish Indian Theory”, Menasseh Ben Israel and his World, edited by Yosef Kaplan, Henry Méchoulan and Richard H. Popkin, 63-82. Leiden – New York: E.J. Brill, 1989.

Puga, Rogério Miguel. “Os elementos paratextuais dos Colóquios de Garcia de Orta”, Garcia de Orta e Alexander von Humboldt: Errâncias, Investigações e Diálogo entre Culturas. Organização de Anabela Mendes e Gabriela Fragoso. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, 119-133.

Raphael, David. “The Road to Expulsion”, The Expulsion 1492 Chronicles: An Anthology of Medieval Chronicles Relating to the Expulsion of Jews from Spain and Portugal. Selected and Edited by David Raphael. North Hollywood, California: Carmi House Press, 1992, iii-xix.

Révah, I.S. La Famille de Garcia de Orta. Coimbra, 1960. Separata da Revista da Universidade de Coimbra, Vol. 19.

_____. “Les Marranes”, Revue des Études Juives, 118, 1959-1960, 29-77.

Rego, A. da Silva. Garcia de Orta e a ideia de tolerância religiosa. Lisboa, 1963. Separata de Garcia de Orta, Revista da Junta de Investigações do Ultramar, vol. 11, n. 4, 663-676. Disponível em: http://www.catedra-alberto- benveniste.org/_fich/15/Silva_Rego_-_Garcia_de_Orta.pdf. Acessado em 1 de agosto de 2016.

Reluz, Carlos Guillermo Carcelén. “Espionaje, guerra, y competencia mercantil en el siglo XVII: el judío portugués Pedro de León Portocarrero, autor de la Descripción del Virreinato del Perú”, Investigaciones Sociales: Revista del Instituto de Investigaciones Histórico-Sociales, 22, junio 2009, 101-116. http://revistasinvestigacion.unmsm.edu.pe/index.php/sociales/article/view/7239/6 366. Acessado em 6 de dezembro de 2016.

Remédios, Joaquim Mendes dos. Os Judeus Portugueses em Amsterdam. Coimbra: FrançaAmado, Editor, 1911.

167

Reparaz, Gonzalo de. Os portugueses no vice-reinado do Peru (sé culos XVI e XVII). Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1976.

Ribeiro, Aquilino. “Quem era Fernão Mendes Pinto”, Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: Aventuras extraordinárias dum português no Oriente. Adaptação de Aquilino Ribeiro, ilustrações de Martins Barata. Lisboa: Sá da Costa, 1933, 201- 212.

Riva-Agüero, José de la. “Descripción anónima del Perú y de Lima á principios del siglo XVII, compuesta por un judío portugués y dirigida á los estados de Holanda”, Congreso de Historia y Geografía Hispano-Americanas celebrado en Sevilla en Abril de 1914: Actas y Memorias. Madrid: Establecimiento tipográfico de Jaime Ratés, 1914, 347-384. [Republicado na Revista del Archivo Nacional del Perú, 17, 1 (1944), 3-44]. Disponível em: https://archive.org/stream/congresodehistor00cong#page/346/mode/2up

Rodrigues, José Honório. História da história do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.

Rose, Constance Hubbard. “António Enríquez Gómez and the literature of exile”, Romanische Forschungen 85, 1/2, (1973), 63-77. http://www.jstor.org/stable/27937945. Accessed: 23-09-2015.

Rosenberg, Deborah Skolnik. “The Converso and the Spanish Picaresque Novel”, Marginal Voices: Studies in Converso Literature of Medieval and Golden Age Spain. Ed. Aronson-Friedman and Gregory B. Kaplan. Leiden: Brill, 2012, 183- 206.

Roth, Cecil. A History of the Marranos. Philadelphia: The Jewish Publication Society of America, 1932.

Ruderman, David B. “The Community of Converso Physicians: Race, Medicine, and the Shaping of a Cultural Identity”, Jewish thought and scientific discovery in early modern Europe. New Haven, Conn.: Yale University Press, 1995, 273-309.

Sá, Isabel dos Guimarães de. “Ecclesiastical structures and religious action”, Portuguese Oceanic Expansion, 1400-1800. Edited by Francisco Bethencourt and Diogo Ramada Curto. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, 255-282.

Salmoral, Manuel Lucena. Piratas, Bucaneros, Filibusteros y Corsarios en Amé rica: Perros, mendigos y otros malditos del mar. Caracas: Grijalbo, 1994.

Salomon, Herman Prins. “O que tem de judaico a Menina e Moça?”, Cadernos de Estudos Sefarditas, 4, 2004, 185-223.

168

____. Portrait of a New Christian: Fernão Álvares Melo (1569-1632). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian – Centro Cultural Português, 1982.

____ & Leoni, A. de L., “Mendes, Benveniste, de Luna, Micas, Nasci: The State of the Art (1532-1558)”, The Jewish Quarterly Review, 88, 3-4, 1998, 1-76.

Salvador, Frei Vicente do. História do Brasil, 1500-1627. São Paulo: Melhoramentos, 1965 [1627].

Salvador, José Gonçalves. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680). São Paulo: Pioneira - Editora da Universidade de São Paulo, 1976.

Samson, Alexander. “Life’s Pilgrim: El peregrino en su patria,” A Companion to Lope de Vega. Ed. Alexander Samson & Jonathan Thacker. Woodbridge: Tamesis, 2008, 229-243.

Santos, Carlos Alberto dos. O olhar cristão-novo de Ambrósio Fernandes Brandão nos Diálogos das grandezas do Brasil. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2007.

Saraiva, António José. “Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca da ideologia senhorial”, História da Cultura em Portugal, vol. III. Lisboa, 1962 [1958], 343- 496.

_____. Inquisição e Cristãos-Novos. 5ª edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1985 [1969].

_____. The Marrano Factory: The Portuguese Inquisition and Its New Christians 1536- 1765. Translated, revised and augmented by H P. Salomon, and I S. D. Sassoon. Leiden: Brill, 2001.

_____. “Prefácio”, in Fernão Mendes Pinto, Peregrinação e outras obras; texto crítico, prefácio, notas e estudo por António José Saraiva. Lisboa: Sá da Costa, 1961, Vol. 1, vii-lii.

Saraiva, Arnaldo. “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto revisitada: a sua teoria moderna da viagem”, CEM Cultura, Espaço & Memória: Revista do CITCEM. Porto: CITCEM Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço & Memória”, Edições Afrontamento, 1, 2010, 129-142.

Schaposchnik, Ana E. The Lima Inquisition: The Plight of Crypto-Jews in Seventeenth- Century Peru. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2015.

Schmidt, Benjamin. Innocence Abroad: The Dutch Imagination and the New World, 1570-1670. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

169

Schorsch, Jonathan. “(Re)Reading the Old/New World in the 1640: The Relación of Antonio de Montezinos”, Swimming the Christian Atlantic: Judeoconversos, Afroiberians and Amerindians in the Seventeenth Century. Leiden – Boston: Brill, 2009, Vol. 2, 379-477.

Schwartz, Stuart B. All Can Be Saved: Religious tolerance and salvation in the Iberian Atlantic World. New Haven & London: Yale University Press, 2008.

_____. “Luso-Spanish Relations in Hapsburg Brazil, 1580-1640”, The Americas, 25, no. 1, Jul. 1968, 33-48.

_____. “Panic in the Indies: The Portuguese Threat to the Spanish Empire, 1640 1650”, in Thomas, Werner, and Bart de Groof, Rebelió n y Resistencia en el Mundo Hispá nico del siglo XVII: Actas Del Coloquio Internacional, Lovaina, 20-23 de noviembre de 1991. Leuven, Belgium: Leuven University Press, 1992, 205-26. Republicado em Colonial Latin American Review, 2:1-2 (1993), 165-187.

_____. Sugar plantations in the formation of Brazilian society: Bahia, 1550-1835. Cambridge [Cambridgeshire]: Cambridge University Press, 1985.

Schwarz, Samuel. Os cristãos-novos em Portugal no século XX. Lisboa, 1925.

Scott, James Brown. “Introductory note”, The Freedom of the Seas, or The right which belongs to the Dutch to take part in the East Indian Trade. A dissertation by Hugo Grotius. Translated with a revision of the Latin Text of 1633 by Ralph Van Deman Magoffin. New York: Oxford UP, 1916, v-x.

Serrano y Sanz, Manuel. “Los amigos y protectores aragoneses de Cristóbal Colón: capítulo primero: los judíos de Zaragoza y de Calatayud en el Siglo XV”, Orígenes de la dominación española en América, tomo primero. Madrid: Bailly/Bailliere, 1918, v-lxiv.

Sicroff, Albert A. Los Estatutos de Limpieza de Sangre: Controversias entre los siglos XV y XVII. Versión castellana de Mauro Armiño, revisada por el autor. Madrid: Tauros, 1985 [1979].

Silberstein, Enrique. Piratas, filibusteros, corsarios y bucaneros. Buenos Aires: Carlos Pérez Editor, 1969.

Silva, Kalina Vanderlei. “Fidalgos, capitães e senhores de engenho: o Humanismo, o Barroco e o diálogo cultural entre Castela e a sociedade açucareira (Pernambuco, séculos XVI e XVII)”, Varia Historia, 28 (47), 2012, 235-257. Accessed January 27, 2016, http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 87752012000100011&lng=en&tlng=pt.

170

_____. “O sertão na obra de dois cronistas coloniais: A construção de uma imagem barroca (séculos XVI-XVII)”, Estudos Ibero-Americanos, XXXII, 2, dezembro de 2006, 43-63.

Silverblatt, Irene. Modern Inquisitions: Peru and the Colonial Origins of the Civilized World. Durham: Duke University Press, 2004.

Simões, Manuel G. “Dialogismo e narração nos Diálogos das Grandezas do Brasil”, O Olhar Suspeitoso: Viagens e discurso literário. Lisboa: Edições Colibri, 2001, 71- 84.

Siqueira, Sonia A. de. A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.

Smith, Paul Julian. Representing the Other: ‘Race’, Text, and Gender in Spanish and Spanish American Narrative. Oxford: Oxford University Press-Clarendon, 1992.

Sommer, Doris. "Mosaic and Mestizo: Bilingual love from Hebreo to Garcilaso", Proceed with Caution, when Engaged by Minority Writing in the Americas. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1999, 61-91.

_____. Proceed with caution, when engaged by minority writing in the Americas. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1999.

Sousa, Ronald W. “Cannibal, cartographer, soldier, spy: The peirai of Mendes Pinto’s Peregrinação”, The project of prose in early modern Europe and the New World. Ed. Elizabeth Fowler and Roland Greene. Cambridge: Cambridge UP, 1997, 15- 30.

Stuczynski, Claude B. “New-Christian political leadership in times of crises: The pardon negotiations of 1605”, Leadership in times of crises. Edited by Moises Orfali. Bar-Ilan Studies in History V. Ramat Gan: Bar-Ilan University, 2007, 45-70.

Studnicki-Gizbert, Daviken. A Nation upon the Ocean Sea: Portugal's Atlantic Diaspora and the Crisis of the Spanish Empire, 1492-1640. Oxford: Oxford University Press, 2007.

Subrahmanyam, Sanjay The Portuguese Empire in Asia, 1500-1700: A Political and Economic History. London ; New York: Longman, 1993.

Taunay, Alfonso d’Escragnolle. Monstros e Monstrengos do Brasil: Ensaio sobre a zoologia fantástica brasileira nos séculos XVII e XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [1937].

Tavares, Célia Cristina da Silva. “Santo Ofício de Goa: estrutura e funcionamento”, A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso. Organização de 171

Ronaldo Vainfas, Bruno Feitler e Lana Lage da Gama Lima. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006, 47-59.

Tavares, Maria José Pimenta Ferro. “Os cristãos-novos no oriente”, Amé rica y los judíos hispanoportugueses. Díaz, Esteban F. (coord.). Madrid: Real Academia de la Historia, 2009, 247-281.

Tavim, José Alberto Rodrigues da Silva Tavim. Judeus e Cristãos-Novos de Cochim: História e Memória (1500-1662). Braga: Edições APPACDM Distrital de Braga, 2003.

Tavim, José Alberto Rodrigues da Silva. "Jewish Studies in Portugal", Hamsa. Journal of Judaic and Islamic Studies 1 (2014): 81-93.

Teyssier, Paul. “Note sur la langue de la Consolação às tribulações de Israel”, Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 13/14, 5.ª série, Dezembro 1990, 417-42.

Trullemans, Ulla M. “Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, ¿obra ‘pícara’ de la literatura portuguesa?”, in Ulla M. Trullemans, Huellas de la picaresca en Portugal. Madrid, 1968, 77-102.

Turner, Victor W. “Liminality and Communitas”, The Ritual Process: Structure and Anti-Structure. Chicago: Aldine Publishing Company, 1969, 94-130.

Vainfas, Ronaldo. Jerusalém Colonial: Judeus portugueses no Brasil holandê s. Rio de Janeiro: Civilizaç aõ Brasileira, 2010.

Ugarte, Rubén Vargas. Manuscritos peruanos en las bibliotecas del extranjero. Lima. Talleres Tipográficos de la Empresa Periodística, 1935, 41-67.

Vale, Maria Teresa. Seleção, prefácio, notas e glossário à Fernão Mendes Pinto: O outro lado do mito. Lisboa: Terra Livre, 1985.

Varnhagen, Francisco Adolfo de. Histó ria Geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal. Sao Paulo: Ediç ões Melhoramentos, 5 vols, 1962 [1854].

Ventura, Maria da Graça Mateus. Portugueses no Peru ao tempo da União Ibérica. Mobilidade, cumplicidades e vivências. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2005.

Villena, Guillermo Lohmann. “Una incógnita despejada. La identidad del Judío Portugués”, Revista Histórica [Lima], XXX (1967), 26-93. Republicado em Revista de Indias, 30, 1970, 315-387.

172

Voigt, Lisa. Spectacular Wealth: The Festivals of Colonial South American Mining Towns. Austin: University of Texas Press, 2016.

_____. Writing Captivity in the Early Modern Atlantic: Circulations of Knowledge and Authority in the Iberian and English Imperial Worlds. Chapel Hill: Published for the Omohundro Institute of Early American History and Culture, Williamsburg, Virginia, by the University of North Carolina Press, 2009.

Wachtel, Nathan. The Faith of Remembrance: Marrano labyrinths. Translated by Nikki Halpern; foreword by Yosef Kaplan. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2013 [2001].

Wacks, David A. “Empire and Diaspora: Solomon ibn Verga’s Shevet Yehudah and Joseph Karo’s Magid Meisharim”, Double Diaspora in Sephardic Literature: Jewish cultural production before and after 1492. Bloomington: Indiana University Press, 2015, 151-181.

Walter, Jayme. “Bibliografia principal”, Garcia de Orta: Revista da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, 11/4, 1963, 857-875.

Warshawsky, Matthew. Longing for Justice: The New Christian Desengaño and Diaspora Identities of Antonio Enríquez Gómez. PhD Dissertation. Ohio State University, 2002.

______. The Perils of Living the Good and True Law: Iberian Crypto-Jews in the Shadow of the Inquisition of Colonial Hispanic America. Newark, Delaware: Juan de la Cuesta, 2016.

Wiesenthal, Simon. Sails of Hope: The secret mission of Christopher Columbus. New York: Macmillan, 1973.

Windmüller, Käthe. “Omissão como confissão: Os Diálogos das Grandezas do Brasil de Ambrósio Fernandes Brandão”, Inquisição: Ensaios sobre mentalidade, heresias e arte, organização de Anita Novinsky e Maria Luiza Tucci Carneiro. São Paulo: Expressão e Cultura – Edusp, 1992, 408-417

Wiznitzer, Arnold. Jews in Colonial Brazil. New York, 1960.

Xavier, Â ngela B, and Ines G. Ž upanov. Catholic Orientalism: Portuguese Empire, Indian Knowledge (16th-18th Centuries). New Delhi, India: Oxford University Press, 2015.

Yerushalmi, Yosef Hayim. “Exile and Expulsion in Jewish History”, Crisis and Creativity in the Sephardic World: 1391-1648. Edited by Benjamin R. Gampel. New York: Columbia University Press, 1997, 3-22.

173

____. From Spanish Court to Italian Ghetto: Isaac Cardoso, a Study in Seventeenth- Century Marranism and Jewish Apologetics. Seattle: U of Washington P, 1981 [1971].

____ . “A Jewish Classic in the Portuguese Language”, Consolação às tribulações de Israel de Samuel Usque. Edição de Ferrara, 1553. Com estudos introdutórios por Yosef Hayim Yerushalmi e José V. de Pina Martins. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, Vol. 1, 15-123.

Yovel, Yirmiyahu. The Other Within: The Marranos: Split Identity and Emerging Modernity. Princeton, N.J: Princeton University Press, 2009.

Zepp, Susanne. “Sacred Text and Poetic Form: The Poetry of João Pinto Delgado (1627)”, [chapter five of] An Early Self: Jewish Belonging in Romance Literature, 1499-1627. Translated by Insa Kummer. Stanford, California: Stanford University Press, [2014], 117-160.

Županov, Ines G., “Botanizing in Portuguese India: Between Errors and Certainties (16th–17th centuries)”, Garcia de Orta and Alexander von Humboldt: Across the East and the West. Edited by Anabela Mendes. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2009, 21–31.

____. “Garcia de Orta’s Colóquios: Context and Afterlife of a Dialogue”, Medicine, Trade and Empire: Garcia De Orta's Colloquies on the Simples and Drugs of India (1563) in Context. Edited by Palmira Fontes da Costa. Farnham: Ashgate, 2015, 49-65.

_____. “‘The Wheel of Torments’: mobility and redemption in Portuguese colonial India”, Cultural Mobility: A Manifesto. Edited by Stephen J. Greenblatt et al. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, 24-74.

174

Apêndice: figuras

Fig. 1. Mapa da cidade de Goa no século XVI. Em: Manuel de Faria e Sousa, Ásia Portuguesa [1666]. Tradução de Isabel Ferreira do Amaral Pereira de Matos e Maria Vitória Garcia Santos Ferreira. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945; Vol. 1, página 304.

175

Fig.2. Frontispício do exemplar dos Colóquios digitalizado pela Biblioteca Nacional de Portugal (http://purl.pt/22937/5/P11.html). Acessado em 21 de julio de 2017.

176

Fig. 3. Tentativa de reconstituição das viagens de Fernão Mendes Pinto pelo Oriente realizadas entre 1537 e 1558. Em: Joaõ A. M. J. Lagoa, A Peregrinaç ão de Fernão Mendes Pinto: Tentativa de reconstituiç ão Geográ fica. Lisboa: Junta das Missões Geográficas e de Investigaç ões Coloniais, 1947.

177

Fig. 4. Frontispício do exemplar da Peregrinação digitalizado pela Biblioteca Nacional de Portugal (http://purl.pt/82/3/#/5). Acessado em 21 de julio de 2017.

178

Fig. 5. Mapa do Brasil em 1618. Em: Dialogues of the Great Things of Brazil (Diálogos das grandezas do Brasil): Attributed to Ambrósio Fernandes Brandão [c.1618]. Translated and annotated by Frederick Holden Hall, William F. Harrison and Dorothy Winters Welker. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1987, [2].

179

Fig. 6. Depoimento de Ambrósio Fernandes Brandão no processo inquisitorial contra Bento Teixeira localizado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cartório da Inquisição de Lisboa, processo 5206, fólios 57-8. Em: Diálogos das grandezas do Brasil. 2ᵃ edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Imprensa Universitária, 1966 [c.1618], xlv-xlvii. 180

Fig.7. Fólio inicial do manuscrito dos Diálogos das grandezas do Brasil localizado na biblioteca da Universidade de Leiden (shelfmark VGG Q 14). Digitalizado pela mesma instituição e disponível em: https://socrates.leidenuniv.nl/R/-?func=dbin-jump- full&object_id=2884727. Acessado em 21 de julio de 2017.

Fig. 8. Capa da primeira edição completa dos Diálogos das grandezas do Brasil, lançada em 1930 no Rio de Janeiro. Exemplar da Ohio State University Libraries (call number F2508 .B77 1930). 181

Fig. 9. Mapa da cidade de Lima, Peru, em meados do século XVII. Em: Colonial Spanish America: A Documentary History. Ed. by Kenneth Mills & William B. Taylor. Wilmington, Delaware: Scholarly Resources Inc., 1998, 169.

182

Fig. 10. Fólio inicial do único manuscrito da Discricion general del Reyno del piru, em particular de Lima conhecido atualmente, localizado na Biblioteca Nacional de Paris (Département des manuscrits, cote Espagnol 280). Reproduzido por Boleslao Lewin em Descripció n del Virreinato del Perú : Cró nica inédita de comienzos del siglo XVII. Edición, prólogo y notas de Boleslao Lewin. Rosario: Universidad Nacional del Litoral, Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias de la Educación, 1958 [c.1620].

183