UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA

FABIANA PRUDENTE CORREIA

FILOLOGIA E HUMANIDADES DIGITAIS NO ESTUDO DA DRAMATURGIA CENSURADA DE ROBERTO ATHAYDE: ACERVO E EDIÇÃO DE OS DESINIBIDOS

Salvador 2018

FABIANA PRUDENTE CORREIA

FILOLOGIA E HUMANIDADES DIGITAIS NO ESTUDO DA DRAMATURGIA CENSURADA DE ROBERTO ATHAYDE: ACERVO E EDIÇÃO DE OS DESINIBIDOS

Tese apresentada ao curso de Doutorado na área de Teorias e Crítica da Literatura e Cultura, na linha de pesquisa Crítica e processos de criação em diversas linguagens, do Programa de Pós- Graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult) da Universidade Federal da Bahia (UFBa), para obtenção do título de Doutora em Literatura e Cultura.

Orientadora: Profa. Dra. Rosa Borges dos Santos

Salvador 2018 Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA), com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Correia, Fabiana Prudente FILOLOGIA E HUMANIDADES DIGITAIS NO ESTUDO DA DRAMATURGIA CENSURADA DE ROBERTO ATHAYDE: ACERVO E EDIÇÃO DE OS DESINIBIDOS / Fabiana Prudente Correia. - - Salvador, 2018. 360 f. : il

Orientador: Rosa Borges dos Santos. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura) -- Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2018.

1. Filologia. 2. Humanidades Digitais. 3. Edição. 4. Acervo. 5. Texto teatral censurado. I. Santos, Rosa Borges dos. II. Título.

Para Rosa, por toda a minha formação filológica. AGRADECIMENTOS

Aos que vieram antes de mim e me sustentam com a força de suas vitórias; A Deus, que o sei pelo que sinto – e não pelo que penso; A mainha, Clese Prudente, presença de Deus na minha vida e revisora de todo o meu trabalho; À minha família, meu berço e minha razão, Nalda, Luiz, Ilana, Ricardo e Rafaella; À minha orientadora, mestre e amiga Rosa Borges, por não me deixar desistir em onze anos de orientação e pesquisa. Ao professor e amigo Ari Sacramento, pela amizade sincera e pela orientação constante que se manifesta em todos os frutos da minha pesquisa; A Mabel Mota, pela consultoria arquivística e apoio em todas as etapas da pesquisa; A Syd Franco, Milla Carol, Samira Soares e Nathan Queiroz, pela colaboração e apoio; Aos colegas, amigos e parceiros da ETTC de ontem e de hoje, especialmente Isabela Almeida, Débora de Souza e Rosinês Duarte, pela nossa trajetória de pesquisa; Aos alunos e amigos, que dão sentido ao meu trabalho e preenchem minha vida de afeto.

Muito obrigada!

Ubuntu. sou porque somos.

Nas cidades de agora como um bando de vândalos Você e eu e nós catalogando No livro rubro-negro do destino Para os tipos de horror as espécies de escândalo.

ROBERTO ATHAYDE (1982) Os Desinibidos

RESUMO

Considera-se a diversidade de práticas acadêmicas que se ocupam do texto em perspectiva material e histórica como panorama humanístico da Filologia para realizar uma leitura filológica, edição e estudo do acervo de textos teatrais censurados produzidos pelo dramaturgo carioca Roberto Athayde durante a ditadura militar. A partir das pesquisas documental e bibliográfica, isolou-se o conjunto de sete produções teatrais do autor para, a partir delas, organizar um dossiê referente a um dos textos, Os Desinibidos, submetido à Censura Federal e encenado entre 1982 e 1983. Tal dossiê é composto por documentação censória, textos de jornal, programa do espetáculo e publicações autorais, como contos e poemas que integram o texto encenado em 1983. Na interface Filologia e Humanidades Digitais, que compreende tecnologia digital, ciências humanas e sociais sob perspectiva transdisciplinar, analisou-se a história cultural das práticas de escrita e transmissão do texto teatral censurado e construiu-se uma hiperedição como arquivo hipermídia, disponibilizada na Internet através do domínio www.acervorobertoathayde.com. Intitulada Roberto Athayde: dramaturgia censurada, a hiperedição integra edições e acervo digital, em que se inclui o dossiê Os Desinibidos, para o qual se apresentam duas modalidades editoriais: uma edição fac-similar e uma edição sinóptico-crítica hipermídia. Caracterizados por manifestar o engajamento do autor em diversos temas políticos e sociais que enfrentam o senso comum da consciência burguesa e o conservadorismo moral brasileiro, os textos teatrais de Roberto Athayde, objetos desta pesquisa, produzem diversos letramentos políticos e sociais sobre período do golpe civil-militar de 1964-1984. Dessa forma, a hiperedição realizada, pode, enquanto arquivo hipermídia, promover descentramentos sucessivos da história da literatura brasileira, democratizando o acesso à informação e criando, através do hipertexto digital, novos gestos de leitura e circulação social de textos.

PALAVRAS-CHAVE: Filologia. Humanidades Digitais. Hiperedição. Acervo. Texto teatral censurado.

ABSTRACT

The diversity of academic practices that deal with the text in a material and historical perspective is considered here as a humanistic panorama of Philology to carry out a philological reading, edition and study of the collection of censored theatrical texts produced by the Brazilian playwright Roberto Athayde during the military dictatorship. From the documentary and bibliographical research, the set of seven theatrical productions of the author was isolated to organize a dossier related to one of the texts, Os Desinibidos, which was submitted to Federal Censorship and was staged between 1982 and 1983. Such a dossier is composed of census documentation, newspaper texts, show program and authorial publications, such as short stories and poems that integrate the text staged in 1983. At the interface Philology and Digital Humanities, which comprises digital technology, human and social sciences under a transdisciplinary perspective, it was analyzed the cultural history of the practices of writing and transmitting the censored theatrical text and a hyper-edition as a hypermedia file was set up and made available on the Internet through the domain www.acervorobertoathayde.com. Entitled Roberto Athayde: dramaturgia censurada, the hyper-edition integrates issues and digital collection, which includes the Os Desinibidos’ dossier, for which two editorial modalities are presented: a facsimile edition and a hiper- media synoptic-critical edition. Characterized by manifesting the author's involvement in various political and social issues that face the common sense of bourgeois conscience and Brazilian moral conservatism, Roberto Athayde's theatrical texts, objects of this research, produce various political and social literatures about the civil-military operation period of 1964-1984. In this way, the hyper-edition accomplished in this work can promote, as a hypermedia archive, successive decentralization of the history of Brazilian literature, democratizing access to information and creating, through digital hypertext, new possibilities of reading and social circulation of texts.

KEY WORDS: Philology. Digital Humanities. Hyper-edition. Collection. Censored theatrical text.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 – Roberto Athayde, no casarão do Cosme Velho, onde viveu em sua 105 infância. FIGURA 2 – Fachada da mansão onde viveu Roberto Athayde, o Solar dos 108 Abacaxis. FIGURA 3 – Austregésilo Athayde comenta a incoerência da censura diante da 112 retirada de cartaz da peça de seu filho. FIGURA 4 – Notícia de apresentação de Apareceu a Margarida em 2017. 113 FIGURA 5 – Notícia de apresentação de Apareceu a Margarida em 2016. 113 FIGURA 6 – Notícia de apresentação de Apareceu a Margarida em 2016. 113 FIGURA 7 – Excerto de notícia sobre a encenação de Juliette castigada (e Justine 114 recompensada). FIGURA 8 – Excerto de notícia sobre a encenação de Juliette castigada (e Justine 114 recompensada). FIGURA 9 – Excerto de notícia sobre a encenação de Juliette castigada (e Justine 115 recompensada). FIGURA 10 – Capa do datiloscrito Os Desinibidos. 118 FIGURA 11 – Folha de rosto do datiloscrito Os Desinibidos. 118 FIGURA 12 – Trecho da F.2. 119 FIGURA 13 – Trecho da F.4. 119 FIGURA 14 – Indicação de corte à palavra Geisel, na F.33 (parte II). 119 FIGURA 15 – Emenda manuscrita à F.1 (parte III). 120 FIGURA 16 – Capa do programa do espetáculo. 120 FIGURA 17 – Vera Fischer. 122 FIGURA 18 – Perry Salles. 122 FIGURA 19 – Ariel Coelho. 122 FIGURA 20 – Marina Miranda. 122 FIGURA 21 – Cláudio Gaya. 122 FIGURA 22 – Ficha técnica do espetáculo Os Desinibidos. 122 FIGURA 23 – Aderbal Júnior comenta Os Desinibidos no programa do espetáculo. 124 FIGURA 24 – Capa de O jardim da Fada Mangana. 125 FIGURA 25 – Capa de O homem da Lagoa Santa. 125

FIGURA 26 – Capa da publicação que contém Os Desinibidos. 126 FIGURA 27 – Primeira folha do texto publicado. 126 FIGURA 28 – Lista de personagens e indicação de cenário. 126 FIGURA 29 – Capa do processo Os Desinibidos, registrado no Arquivo Nacional – 132 DF. FIGURA 30 – Ofício 94/83, encaminhamento de documentos para expedir 133 certificado definitivo. FIGURA 31 – Solicitação encaminhada pela Sociedade Brasileira de Autores 133 Teatrais (SBAT). FIGURA 32 – Requerimento para fins de avaliação censória (anverso). 133 FIGURA 33 – Requerimento para fins de avaliação censória (verso). 133 FIGURA 34 – Trecho de parecer 008, assinado por censor R.M.C.L. sobre o texto 135 (F.2). FIGURA 35 – Parecer 007, de censor M.M.M.M. sobre o texto (F.1). 136 FIGURA 36 – Parecer 007, de censor M.M.M.M. sobre o texto (F.2). 137 FIGURA 37 – Trecho da F.2 do Relatório de observação do ensaio geral. 138 FIGURA 38 – Certificado provisório emitido pela direção do DCDP-RJ (anverso). 139 FIGURA 39 – Certificado provisório emitido pela direção do DCDP-RJ (verso). 139 FIGURA 40 – Certificado definitivo emitido pela direção do DCDP-RJ (anverso). 140 FIGURA 41 – Certificado definitivo emitido pela direção do DCDP-RJ (verso). 140 FIGURA 42 – Marcos Vogel comenta as dificuldades de produzir teatro no Brasil e 141 o caráter coletivo da produção de um espetáculo. FIGURA 43 – Interface da página inicial de A edição variorum eletrônica Do 147 Quijote. FIGURA 44 – A edição variorum eletrônica Do Quijote. 147 FIGURA 45 – Página inicial de Les manuscrits de Madame Bovary: édition 148 intégrale sur le web. FIGURA 46 – Visualização da transcrição do romance digital Madame Bovary em 148 Les manuscrits de Madame Bovary: édition intégrale sur le web. FIGURA 47 – Fac-símile e transcrição diplomática de Madame Bovary: édition 149 intégrale sur le web. FIGURA 48 – Interface do arquivo hipermídia The complete writings and pictures 149 of Dante Gabriel Rosseti: a hypermedia archive. FIGURA 49 – Aba exhibits & objects. 150

FIGURA 50 – Hiperlink Poems. 150

FIGURA 51 – Edição interpretativa em meio digital de Auto da Barca do Rio das 152 Lágrimas de Irati, de Jurema Penna: interface da página inicial e destaque para aparato crítico e aparato de notas, em hiperlinks de primeiro e segundo nível, respectivamente. FIGURA 52 – Interface da edição sinóptica de Apareceu a Margarida em Prezi. 153 FIGURA 53 – Interface da edição fac-similar de Apareceu a Margarida em Prezi. 154 FIGURA 54 – Interface do Arquivo Hipertextual de Greta Garbo, quem diria, 154 acabou no Irajá. FIGURA 55 – Confronto sinóptico-crítico na edição de Greta Garbo, quem diria, 155 acabou no Irajá. FIGURA 56 – Interface do arquivo hipertextual de A Escolha ou O Desembestado. 155 FIGURA 57 – Aba acervo do arquivo hipertextual de A Escolha ou O 156 Desembestado. FIGURA 58 – Interface da hiperedição O pasquineiro da roça. 157 FIGURA 59 – Interface do acervo digital e hiperedição Roberto Athayde: 163 dramaturgia censurada. FIGURA 60 – Interface do acervo digital e hiperedição Roberto Athayde: 163 dramaturgia censurada. FIGURA 61 – Interface do acervo digital e hiperedição Roberto Athayde: 164 dramaturgia censurada. FIGURA 62 – Interface do acervo digital e hiperedição Roberto Athayde: 164 dramaturgia censurada. FIGURA 63 – Interface do acervo digital e hiperedição Roberto Athayde: 164 dramaturgia censurada. FIGURA 64 – Interface de Roberto Athayde: dramaturgia censurada em 165 smartphone. FIGURA 65 – Barra de menus de Roberto Athayde: dramaturgia censurada em 165 smartphone. FIGURA 66 – Tela Apresentação, em computador. 165 FIGURA 67 – Tela Apresentação, em smartphone. 165 FIGURA 68 – Uso de link hipermídia no texto como glossário. 166 FIGURA 69 – Uso de link hipermídia no texto como vídeo. 166 FIGURA 70 – Menu O Acervo. 166

FIGURA 71 Menu O Acervo, ícone de acesso ao dossiê Os Desinibidos. 167

FIGURA 72 Menu Edições. 167 FIGURA 73 Menu Edições, cursor sobre o ícone Apareceu a Margarida. 168 FIGURA 74 – Menu Edições, cursor sobre o ícone Os Desinibidos. 168 FIGURA 75 – Menu Contato. 169 FIGURA 76 – Ficha catálogo utilizada em SIGD_RA para a série documentação 178 censória, subsérie texto teatral. FIGURA 77 – Ficha catálogo utilizada em SIGD_RA para a série publicações na 179 imprensa e em diversas mídias, subsérie publicações sobre o autor e suas produções. FIGURA 78 – Login e senha de acesso ao SIGD-RA. 180 FIGURA 79 – Identificação do usuário para acesso ao sistema. 180

FIGURA 80 – Interface de busca do SIGD-RA. 181 FIGURA 81 – Opções de leitura do Reconhecimento Óptico de Caracteres (OCR). 182 FIGURA 82 – Edição sinóptico-crítica hipermídia (destaque para emenda em trecho 185 e quadro em branco). FIGURA 83 – Edição sinóptico-crítica em modelo de impressão (aparato à direita). 185 FIGURA 84 – Nota com texto e imagem na edição sinóptico-crítica hipermídia. 186 FIGURA 85 – Trecho correspondente a outras produções autorais presentes no 186 SIGD-RA. FIGURA 86 – Correspondência eletrônica: Roberto Athayde informa sobre 335 encenação de Apareceu a Margarida.

LISTA DE QUADROS E GRÁFICOS

QUADRO 1 – Mudança de paradigma na Filologia 58 QUADRO 2 – Personagens e atores de Os Desinibidos, segundo Athayde (1983b) 121 QUADRO 3 – Indicação de cenas e textos 142 QUADRO 4 – Catalogação dos documentos dos acervos por SÉRIES 171 QUADRO 5 – Dossiês que compõem o Acervo Roberto Athayde 172 QUADRO 6 – Ordenação dos documentos RA.D 174 QUADRO 7 – Temas das notas empregadas no aparato editorial 327

GRÁFICO 1 – Tipologias documentais de RA.D 173

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABL – Academia Brasileira de Letras AI-5 – Ato Institucional no 5 Art.- artigo ATTC – Arquivo Textos Teatrais Censurados AVI – Audio Video Interleave CGI – Comissão Geral de Investigações CNV – Comissão Nacional da Verdade CONARQ – Conselho Nacional de Arquivos CSN – Conselho de Segurança Nacional D – Os Desinibidos DCDP – Divisão de Censura de Diversões Públicas DCDP/DPF – Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal Dec. – decreto DEPCA – Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente DF – Distrito Federal DFSP – Departamento Federal de Segurança Pública DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda DOPS/DOI-CODI DPF – Departamento da Polícia Federal (DPF) ETTC – Equipe Textos Teatrais Censurados EVE-DQ – Eletronic variorum edition of the Quixote MBL – Movimento Brasil Livre MP3 – Music Player 3 NA – Arquivo Nacional NINES – Nineteenth-century Scholarship Online OCR – Optical Character Recognition (Reconhecimento Óptico de Caracteres) PDF – Portable Document Format RA – Roberto Athayde SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais SCDP – Serviço de Censura de Diversões Públicas SIGD-RA – Sistema Informatizado de Gerenciamento de Documentos SNI – Serviço Nacional de Informações UFBA – Universidade Federal da Bahia UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto UnB – Universidade de Brasília UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. UNI-RIO – Universidade do Rio de Janeiro VHS – Video Home System

SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 15

2 FILOLOGIA E HISTÓRIA CULTURAL: TRAMAS PARA ESTUDO 31 DO TEXTO TEATRAL CENSURADO

2.1 O lugar dos estudos filológicos no campo das humanidades 32 contemporâneas

2.1.1 O texto na Filologia: entre paradigmas e teorias editoriais 44

2.2 Nova História Cultural, Filologia e história das práticas de escritura 63

2.2.1 O texto como testemunho, documento, monumento 74

2.3 Filologia de práxis e crítica filológica 82

3 FILOLOGIA, ARQUIVO HIPERMÍDIA E HUMANIDADES 90 DIGITAIS A CAMINHO DE UMA HIPEREDIÇÃO PARA OS DESINIBIDOS

3.1 Uma leitura do arquivo: entre textos e documentos de censura 102

3.1.1 Roberto Athayde, o dramaturgo: entre neuroses e ressurreições 105

3.1.2 Os Desinibidos: texto, espetáculo e censura 117

3.1.3 Desinibidos, mas nem tanto: procedimentos da censura na fase “branda” 126

3.2 Construindo a proposta editorial: hiperedição como arquivo 144 hipermídia

4 UM DIVÃ PARA OS DESINIBIDOS: A HIPEREDIÇÃO 158

4.1 O acervo: constituição do dossiê arquivístico Os Desinibidos 170

4.2 As edições: critérios e apresentação 181

4.3 A edição sinóptico-crítica: modelo de impressão 187

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOTAS PARA UMA FILOLOGIA 325 POLÍTICA

REFERÊNCIAS

APÊNDICE – Informações para Login e Senha de acesso ao sistema

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Lembrar é resistir. 1 Alvarez e Almada

Após 11 anos desenvolvendo pesquisa sobre os textos teatrais censurados no período da ditadura civil-militar de 1964, dei-me conta de que sempre me referi aos horrores promovidos pela repressão política e policial como algo que estivesse ligado a um passado histórico, quase remoto, que não representava mais uma ameaça, posto que, a meu ver, o Brasil estava acomodado há mais de 30 anos de regime democrático, assegurado pela Constituição Federal de 1988. Pensando dessa forma, meu compromisso de pesquisa filológica estaria ligado à memória e à inserção dos textos teatrais censurados na história da literatura e da dramaturgia brasileira. Eu seguia o idealismo romântico e ingênuo de que minha pesquisa, assim como outras sobre o mesmo período, contribuía para que esse capítulo da história do Brasil não fosse esquecido e não se repetisse. Contudo, diante do desencadear da crise política que culminou no impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff e na posse de seu então vice Michel Temer, observo cada vez mais nítida a necessidade de me posicionar politicamente sobre minha produção acadêmica e seu valor no atual cenário sociopolítico (o que evidencio aqui ao utilizar o discurso em primeira pessoa, apontando não apenas a dicção ensaística deste trabalho, mas também a presença física e a subjetividade da minha pessoa no texto). Para tanto, situo brevemente, nessas considerações iniciais, alguns acontecimentos de 2017/2018 que leio como uma versão remasterizada da construção de um regime político opressor. É neste contexto que minha pesquisa chega aos estágios finais de análise, o que me permite, através dela, relacionar um golpe e outro (1964 e 2016), assegurando meu compromisso social e político de leitura dos tempos atuais através do meu objeto de pesquisa, o texto teatral censurado, produzido no contexto da ditadura civil-militar (1964-1985), que é também um objeto histórico, político e artístico-literário. De fato, no momento em que escrevo esta tese, a gestão de Michel Temer (empossado em 31 de agosto de 2016) tem sido caracterizada pela progressiva perda de direitos básicos das minorias políticas (exemplificada com a descontinuidade e redução de programas de bolsas de auxílio família, moradia, educação e saúde) e da classe trabalhadora (com a reforma trabalhista, em 2017, e a possível reforma da previdência, a ser votada em 2018). A esses

1 Título de peça teatral de autoria de Analy Alvarez e Izaías Almada, encenada em 1999, sob a direção de Silnei Siqueira, na sede do DOPS/DOI-CODI, em São Paulo, onde se preserva o Memorial da Resistência.

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fatores, soma-se o violento desprezo social crescente pelas figuras de intelectuais e artistas, como ocorreu no vergonhoso episódio de agressão à filósofa estadunidense Judith Butler (que, atualmente, representa um dos principais nomes em torno das questões teóricas de gênero e feminismo contemporâneo, teoria queer e filosofia política), em visita ao Brasil em 2017, e contra artistas que se posicionam como intelectuais da esquerda brasileira, como Caetano Veloso, Chico Buarque e Letícia Sabatella. Ainda sobre a desvalorização do intelectual, destaco a perseguição judicial a professores e universidades públicas em dois casos que atentam contra a autonomia das instituições e contra o Estado Democrático de Direito prescrito pela Constituição de 1988, evidenciando retrocesso de direitos sociais, de direitos fundamentais individuais e da própria estrutura normativa da democracia (IOTTI et al, 2017). O primeiro caso refere-se aos professores André Mayer e Marcone Souza, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que foram intimados pela Polícia Federal a prestar esclarecimentos sobre o projeto de pesquisa Liga dos Comunistas, desenvolvido na referida universidade, sob alegação de utilizarem ―recursos públicos da UFOP para divulgação e realização de eventos de cunho comunista [...] promovendo, integrando, divulgando e convocando pessoas para o projeto Liga dos Comunistas nas dependências e com recursos da Universidade Federal de Ouro Preto‖ (IOTTI et al, 2017). Também a Universidade de Brasília (UnB) sofreu recente ataque à sua autonomia, quando o Ministério da Educação solicitou apuração do componente curricular optativo O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil, que, segundo o ministro Mendonça Filho (CIPRIANI, 2018), seria apenas a ―promoção de pensamentos político-partidários‖. Diante do ataque à disciplina criada sob a responsabilidade do docente titular de Ciências Políticas, Luis Felipe Miguel, a UnB (CIPRIANI, 2018) informou que as unidades acadêmicas têm autonomia para definir os cursos, reiterando seu compromisso com a liberdade de expressão e opinião. Assim como na UnB, mais de 30 universidades brasileiras estão propondo a disciplina eletiva em questão, utilizando o mesmo programa. Em Salvador, onde o departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA) propôs a referida disciplina, o professor por ela responsável, Carlos Zacarias, foi intimado a prestar depoimento à justiça em março de 2018. Outra face da intolerância vigilante é a crescente censura moral sobre as artes, com alguns capítulos lamentáveis, dentre os quais destaco quatro, todos ocorridos no segundo semestre de 2017: 1) o fechamento da exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, promovida pelo Santander Cultural, em Porto Alegre; 2) a abertura de

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inquérito para investigação da performance nua La Bête, do artista Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna de São Paulo; 3) a proibição da apresentação da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, em Jundiaí, pela presença da artista transgênero Renata Carvalho no papel de Jesus; 4) o confisco do quadro Pedofilia, da artista Alessandra Cunha, exposto no Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande, pelo delegado Fábio Sampaio, da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente – DEPCA. A respeito de tal repressão, um recente dossiê publicado pela revista Cult em dezembro de 2017 sob o título Arte sob coerção moralismo privado no espaço público reuniu diferentes ensaios de intelectuais, como Claudia Valladão de Mattos, Charles Feitosa, Gaudêncio Fidelis, Márcia Tiburi, Rodrigo Duarte. Destaco o texto Livre expressão e democracia – reflexões sobre arte e censura para os jovens que não conheceram a ditadura (MATTOS, 2017), em que a autora traça um panorama histórico e mundial da relação arte, autoritarismo, censura e resistência, concluindo que:

[...] a censura, sob a alegação de falta de decoro moral, é tão típica de governos autoritários como a censura política, e só podemos nos alarmar com os últimos acontecimentos. Procuremos aprender com a história, com a recente e com a passada. A arte é antes de tudo lugar de reflexão crítica. Já no século 18, Winckelmann reconhecia a relação vital que ela estabelece com a liberdade de expressão e com a democracia (MATTOS, 2017).

O desrespeito às artes que tem feito surgir no Brasil uma versão verde-amarela da Arte Degenerada da Alemanha nazista, também tem ecoado em profunda negação ao cientificismo (com a ampliação de doutrinas criacionistas e movimentos terraplanistas) e em ceticismo político, como entendo os movimentos que se dizem apartidários, como o Movimento Brasil Livre – MBL (indiretamente financiado por partidos de direita) e a antipolítica disfarçada de renovação política, representada em organizações como Acredito, Renova Brasil e Agora! (GOMES, 2018), ou em partidos como o Novo e o Rede, que traz a nova política de Marina Silva, propondo-se a superar a polarização entre esquerda e direita. Esse contexto de tensionamento político, social, intelectual e artístico têm sido solo fértil para o rápido desenvolvimento de um patriotismo ufanista e armado (que pode ser visto em campanhas pelo armamento civil) com consequente desdém pelos direitos humanos e estabelecimento da supremacia militar como solução para o reestabelecimento da ordem. A esse respeito, tomo como exemplo notável o crescimento de movimentos pela intervenção militar constitucional (SOS FFAA, Brasil pela direita, e Movimento Intervencionista Unificado), que apoiam a pré-candidatura à presidência de Jair Bolsonaro, do Partido Social

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Cristão; e a recente intervenção das forças armadas no Rio de Janeiro, sob decreto de 16 de fevereiro de 2018, que nomeou o general Braga Netto como interventor responsável. Entendida como um ensaio para a intervenção em outros estados, a referida intervenção nas terras fluminenses está programada até 31 de dezembro de 2018, e tem sido caracterizada pela opressão armada contra moradores das comunidades periféricas da capital. Sobre a ação militar, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, disse ser necessário conceder aos militares "[...] garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade" (LÔBO, 2018). A solicitação do comandante, remetendo-se à comissão estabelecida após a lei da anistia de 1979 que, durante o governo Dilma, investigou casos de tortura e morte durante a ditadura de 1964, deixa evidente que a intervenção institui um Estado que não é favorável à vida, sobretudo no que se refere às vidas das minorias políticas. O fortalecimento da extrema direita brasileira mostra que o fascismo deixou de ser uma ameaça e se materializou no cenário nacional, o que me tem feito sentir (e aqui me desfaço da pretensiosa e ilusória objetividade acadêmica para expor minha subjetividade não mensurável e abstrata) que é urgente validar o lugar do filólogo como intelectual humanista cujo trabalho objetiva romper com particularismos opressores para operar em uma esfera democrática – perspectiva que abordarei na segunda seção deste trabalho, com base em Rouanet (2006), Santos (2010 [1987]), Kristeva (2013), e Appadurai (2009 [2006]), a respeito da relação humanismo e democracia, Said (2004), McKenzie (2005 [1985]), e McGann (1983), a respeito de uma teoria filológica que se entenda como ética de leitura. Quando observo os pudores que, em nome da moral e dos bons costumes, estão deslocando o moralismo privado ao espaço público, fechando exposições de arte e retirando espetáculos de cartaz, entendo que este tema de pesquisa nunca esteve tão atual. Quando vejo intelectuais, professores e universidades públicas sofrerem perseguição política, temo pelos modos como os produtos de minha pesquisa serão lidos dentro e fora da academia. Quando presencio o endireitamento político e o conservadorismo moral em voga, com campanhas intervencionistas, identifico que a crise política que se estabeleceu em 2016 possui alguns matizes que a assemelham ao golpe civil-militar estabelecido entre 1964 e 1985, que é precisamente o contexto estudado aqui, com foco na dramaturgia censurada de um autor carioca, Roberto Athayde. Partindo dessa perspectiva, retorno ao contexto da produção teatral brasileira que se estabeleceu entre os anos 1964 e 1988, marcada pela ação de diversos mecanismos de coerção política, moral e ideológica, sobretudo após a instauração do Ato Institucional no 5 (AI-5), de

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13 de dezembro de 1968. Assinado pelo então presidente Artur da Costa e Silva, o AI-5 foi o quinto dos decretos estabelecidos na política ditatorial e vigorou até o ano de 1978 (BRASIL, 1968). Esta medida determinou, entre outros aspectos, a censura prévia a todas as atividades artísticas, privando a liberdade de expressão e conferindo poderes absolutos ao regime, cuja primeira ação foi colocar o Congresso Nacional em recesso por quase um ano (Art. 2). O AI-5 possibilitava às autoridades a prisão e a cassação dos direitos políticos, públicos e privados de qualquer cidadão (Art. 4), permitindo ao Ministro de Estado da Justiça a adoção das seguintes medidas de segurança: liberdade vigiada, proibição de frequentar determinados lugares e domicílio determinado. Além disso, o Art.7 também possibilitou ao presidente decretar no país o estado de sítio, bem como confiscar bens (Art. 8) e suspender a garantia de habeas corpus (Art. 10). No âmbito teatral, os textos encaminhados à Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal (DCDP/DPF) sofreram cortes a expressões, réplicas ou cenas, além de vetos à encenação. Objetivando exercer vigilância sobre a difusão da cultura subversiva, os cortes mutilavam conteúdos sócio-políticos, morais, culturais e religiosos, retratando a opressão de uma política que ficou conhecida como ―linha dura‖. Com a submissão dos textos teatrais à censura prévia, bem como o condicionamento da encenação à observação censória em ensaio geral, fortaleceu-se a arte engajada, de resistência política e de forte conteúdo ideológico. É nesse contexto que se insere a produção dramatúrgica do carioca Roberto Athayde, que proponho como objeto da crítica filológica, estudo que desenvolverei sob a perspectiva de Said (2004), Gumbrecht (2007 [2003]), Moreira (2011), Borges e Sacramento (2012). Nascido em 25 de novembro de 1949, Roberto Athayde, o filho do escritor cronista imortal Austregésilo Athayde, que ocupou a 8ª cadeira da Academia Brasileira de Letras, evidenciou, desde jovem, interesse pelas artes. O autor, oriundo de uma família de intelectuais literatos e politicamente engajados, viveu nos Estados Unidos e na França dos dezessete aos vinte e um anos, onde teve oportunidade de estudar música, chegando a almejar a carreira de compositor. A sua experiência na faculdade de música da Universidade de Michigan e na Sorbonne apontou-lhe, entretanto, outro talento: a escrita dramática. Aos 21 anos, quando retornou ao Brasil, em 1971, o autor já havia escrito cinco textos dramáticos, dentre eles, Apareceu a Margarida2, uma das peças brasileiras mais encenadas ao

2 Em 2013, defendi a dissertação intitulada O desabrochar de uma flor em tempos de repressão: edição e crítica filológica de Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde (CORREIA, 2013). Nesse trabalho, estudei a história da tradição, através da elaboração de edições sinóptica e fac-similar, e preparei um arquivo em meio eletrônico

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redor do mundo ao longo da história, com tradução para cinco línguas e encenada até os dias atuais3. Em 2003, a editora Nova Fronteira publicou uma coletânea dos cinco primeiros textos dramáticos produzidos por Roberto Athayde (2003) no período da ditadura militar. Sob o título As peças precoces: Apareceu a Margarida e outras, apresentam-se, além de seu trabalho mais famoso, os textos O reacionário, Um visitante do alto, Manual de sobrevivência na selva e No fundo do sítio. Os textos dramáticos do jovem Athayde produzidos durante a década de 1970 evidenciam o compromisso do autor com ideais políticos de resistência ao regime ditatorial e provocadores dos órgãos de censura. Com exceção de O reacionário, de cuja encenação não tenho notícia, todos os demais textos de As peças precoces, e ainda os textos Os Desinibidos e Crime e impunidade, de autoria de Roberto Athayde, foram encaminhados à Censura e possuem registro no Arquivo Nacional – DF, que me disponibilizou cópias dos certificados de censura, documentos relativos aos textos e testemunhos datiloscritos e impressos, encaminhados aos órgãos de censura até o ano de 1988, quando houve a alteração da Constituição Federal e revogou-se a censura prévia. Tais produções podem ser consideradas importantes testemunhos da cultura de resistência que marcou o período político brasileiro da ditadura civil-militar. Diante disso, ponho em evidência a vasta produção intelectual de um autor, que tem ―29 peças escritas, mas a grande maioria é inédita, assim como traduzi[u] 15 peças e apenas cinco foram montadas‖ (REIS, 2016). Para Roberto Athayde, o grande sucesso de Apareceu a Margarida, encenada até os dias atuais, ocultou suas outras produções:

[...] o meu problema mais grave é que Apareceu a Margarida teve tanto sucesso que acabou bloqueando o resto do meu trabalho. [...] tenho mais interesse no momento que sejam produzidas outras peças minhas (KAUFMANN, 2007).

Entre os documentos provenientes do Arquivo Nacional, em Brasília, bem como dos textos que compõem a coletânea As peças precoces, a produção dramatúrgica de Roberto Athayde no período da ditadura compõe-se de sete textos: i. O Reacionário, espetáculo construído no diálogo entre dois personagens de posições políticas opostas: o Dr. Pratraz, da direita conservadora, e Leão Trote (nome inspirado em Leon Trótski), militante da esquerda socialista. Em trechos nos quais as personagens discutem cultura, literatura, teatro, arte e engajamento social no contexto da ditadura, o personagem com documentos relativos ao texto, tais como matérias de jornais da época de sua primeira encenação, pareceres e certificados de censura, fotos e diários do diretor. 3 Segundo o autor, Apareceu a Margarida retornou a cartaz na França, em turnê por diferentes cidades, de novembro de 2017 a junho de 2018 (ATHAYDE, 2018).

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Leão Trote diz: ―eu quero mudar a realidade, entende? É preciso sempre mudar a realidade e dar a ela um sentido de justiça‖ (ATHAYDE, 2003, p.36-37). Em seu desejo de fazer justiça, Leão Trote propõe uma Revolução Cultural, que deve iniciar com a popularização do teatro. A única versão desse texto encontrada até o momento é a que consta na coletânea As peças precoces (ATHAYDE, 2003), ocupando as páginas 7 a 41. ii. Um visitante do alto, cuja história retrata a visita de dois marcianos ao planeta Terra, e se resume a uma conversa em que os alienígenas explicam aos cientistas terráqueos o quão atrasada está a Terra, considerada colônia de experimentos científicos da população marciana. Em alguns trechos, evidencia-se que o problema social da Terra está vinculado ao sistema capitalista imposto pelos Estados Unidos da América, e que Jesus Cristo não foi o filho de Deus enviado à Terra, mas um farsante programado para estabelecer uma doutrina de alienação social. Com tais conteúdos, o texto sofreu cortes de cunho moral, político e religioso em quase todas as folhas, subtraindo-lhe, em alguns casos, cenas inteiras. Na documentação que recebi do Arquivo Nacional, registra-se um testemunho datiloscrito, datado de 3 de dezembro de 1973, com 17 folhas e cortes; há ainda folhas avulsas com partes do texto e cortes realizados pelos censores. Na coletânea As peças precoces (ATHAYDE, 2003), o texto se encontra às páginas 43 a 74. iii. Manual de sobrevivência na selva, um texto sem cortes que relata a vida na floresta amazônica de um grupo de sobreviventes de um desastre aéreo, evidenciando os modos como o grupo estabelece regras de convivência e como seus membros buscam tirar proveito sobre os demais, à procura de água e de um manual de sobrevivência na selva. Há dois datiloscritos entre a documentação do Arquivo Nacional, o primeiro, com 20 folhas, datado de 1973; o segundo, datado de 1975, com 28 folhas. Nenhum dos dois apresenta cortes. O texto também está presente em As peças precoces (ATHAYDE, 2003), nas páginas 75 a 114. iv. Apareceu a Margarida, peça que correspondeu à estreia de Roberto Athayde na cena teatral. Trata de um monólogo desenvolvido por uma professora esquizofrênica que subjuga a turma (a plateia) aos seus ditames, com um comportamento intempestivo e sede de poder. Apresentada como uma ―personificação da ditadura‖ (ATHAYDE, 1973), a personagem Margarida, interpretada primeiramente pela atriz Marília Pêra, conquistou a plateia e foi encenada em quase todos os estados brasileiros, além de ter sido apresentada também na Argentina, Estados Unidos, França, Dinamarca e Alemanha (ATHAYDE, 2003). Os documentos do Arquivo Nacional totalizam mais de mil folhas de testemunhos (produzidos em diferentes estados), pareceres de censores e certificados. Na pesquisa que

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realizei durante o curso de Mestrado (CORREIA, 2013), isolei sete testemunhos, produzidos no Rio de Janeiro e na Bahia, para a realização de edição e estudo. v. No fundo do sítio, pantomima com pequenos cortes de cunho moral, que encena um drama de dois bonecos, amigos de infância que se reencontram após 40 anos e conversam sobre as memórias de infância e as dificuldades de recordar a vida além do sítio onde se encontram. Há uma cópia de testemunho impresso, entre os documentos do Arquivo Nacional, da editora Tavares e Tristão, em que o texto se apresenta às páginas 226 a 264. Pela data dos processos de censura, é possível que o texto tenha sido encenado em 1987. Já na coletânea As peças precoces (ATHAYDE, 2003), o texto figura entre as últimas folhas, da 177 a 220. vi. Os Desinibidos, comédia de costumes que se apresenta em duas versões. A primeira, datiloscrito de 68 folhas submetido à censura em 1982, com cortes, disponibilizado pelo Arquivo Nacional, produzida a partir de colagem de textos de Roberto Athayde, com dois atos e três partes: a primeira parte apresenta uma retextualização do conto A jardim da fada Mangana (ATHAYDE, 1979), a segunda apresenta a cena Os desinibidos, e a última expõe cenas do conto Divertissiment para ambientes finos, com os personagens históricos Conde Goubineau e Princesa Isabel a bordo de um navio negreiro. A segunda versão, publicada em livro, datada de 1983, pela editora Record, compondo a coletânea Crime & Impunidade e outras peças (ATHAYDE, 1983a), apresenta apenas a cena Os desinibidos, dividida em dois atos, com questões da teoria psicanalítica de Lacan através de seu personagem principal, o doutor Oliveira Frustrafroide, considerado o mais brilhante e polêmico psicanalista brasileiro de orientação lacaniana. vii. Crime e impunidade, em cuja documentação provinda do Arquivo Nacional registram-se apenas pareceres e certificados, sem constar testemunhos do texto, que foi publicado em 1983, pela editora Record, na coletânea autoral Crime & Impunidade e outras peças. O enredo trata de um jovem revolucionário que, após atirar uma bomba na sede da Ordem dos Advogados Brasileiros, passa a encontrar-se com uma antropóloga, ex-funcionária da Ordem, que objetiva estudar as razões sociais que motivaram a atitude do jovem que, ao longo da história, estupra a pesquisadora. Apesar do conteúdo amplamente subversivo, os pareceres não evidenciam a presença de cortes, o que possivelmente se deve ao ano de encaminhamento dos textos à censura, em 1984, quando já havia cessado a política de cortes, marcando um momento conhecido como ―abertura política, lenta e gradual‖. Deste total, selecionei Os Desinibidos para organizar o dossiê digital e oferecer uma leitura, através da hiperedição, transcrição das duas versões em confronto sinóptico crítico e

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edição fac-similar dos documentos que compõem o dossiê. A escolha desta peça como recorte de pesquisa decorre do fato de ela não integrar4 a coletânea As peças precoces, publicação mais atual da dramaturgia censurada de Athayde. Além disso, interessou-me também o fato de Os desinibidos ter marcado o retorno de Roberto Athayde aos palcos após o ostracismo a que se submeteu o autor diante do sucesso de Apareceu a Margarida, e foi produzida a partir da colagem de alguns textos diversos do dramaturgo, que lhe deu em princípio subtítulo de ―neurose e ressurreição de Roberto Athayde‖ (ATHAYDE, 1983). Há poucos cortes no datiloscrito enviado à censura, embora muito significativos, como o veto ao nome de um cão, de raça pastor alemão, apelidado de Geisel, e à bandeira do Flamengo em verde e amarelo, representada como bandeira nacional. A peça esteve em cartaz uma única temporada, com Vera Fischer, Perry Salles, Marina Miranda, Ariel Coelho e Claudio Gaya no elenco que se apresentou no Teatro Clara Nunes, em 1983. A versão encenada teve seu subtítulo modificado de ―neurose e ressurreição de Roberto Athayde‖ para ―comédia de paradoxos‖ e apresenta, na primeira cena, o diálogo entre duas senhoras, pacientes do Dr. Frustrafróide, que o aguardam na sala de espera de seu consultório, e fazem diversas menções ao jardim da Fada Mangana, o lugar onde as coisas e memórias se perdem; enquanto isso ocorre, Frustrafróide dorme em seu consultório. Na segunda cena, o Dr. Frustrafróide anuncia à esposa Proteína – e pede a ela que o substitua como psicanalista de Valdir Teixeira, o presidente do Clube de Regatas Flamengo na época – que irá viajar para encontrar o casal de filhos (aos quais a mãe se refere como ―os desinibidos‖) que mantém entre si uma polêmica relação incestuosa, com vistas a coletar material para a sua revolucionária e inconclusa teoria dos incestos. A presença marcante do personagem Frustrinha, neto de Frustrafróide, fruto da relação incestuosa de seus filhos, é destacada pelas diversas inserções poéticas que ele realiza em cena, interagindo, principalmente, com Marinete, mulher negra que buscava auxílio de Frustrafróide para qualificar-se como psicanalista, em troca da realização de serviços gratuitos como babá da criança. Ludibriada pela argumentação oportunista de Frustrafróide, Marinete é convencida a manter-se servil ao casal em regime de trabalho afirmado no texto como escravidão. No segundo ato, após a consulta de Valdir a Proteína, que culminou em um ato de sedução seguido de coito, Marinete conduz Proteína a um transe em busca do gozo5, o que

4 Crime e Impunidade também não consta da referida coletânea, mas, como não há o registro do testemunho do texto no Arquivo Nacional, ela não será trabalhada na tese. 5 Pode-se entender que há diversas menções a conceitos da psicanálise lacaniana no texto, como gozo, desejo, estádio de espelho, inibir/desinibir.

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acarreta em uma viagem no tempo, através da qual Proteína se vê como a Princesa Isabel, e Valdir Teixeira reaparece como o Conde Goubineau, ambos a bordo de um navio negreiro, discutindo questões semânticas relativas à escravidão. Durante toda a peça, cães ladram ao fundo do palco e, no segundo ato, são registradas diversas ordens de Proteína para que Marinete cuidasse de silenciar os cães, especialmente a cadela chamada Desinibida. A riqueza de conteúdos simbólicos de Os Desinibidos marcou o retorno de Roberto Athayde à cena teatral brasileira, uma vez que, após a gloriosa estreia de Apareceu a Margarida, em 1973, seguida das montagens de Um visitante do Alto e Manual de sobrevivência na selva, ambas em 1974, o autor permaneceu ―seis anos ‗bloqueado‘, como dizem os americanos, sem conseguir escrever uma única fala‖ (ATHAYDE, 1983b). Nesse sentido, o subtítulo da primeira versão do texto, neurose e ressureição de Roberto Athayde, é uma resposta à provocação que, segundo o próprio Athayde (1983b), o motivou a escrever o texto, proposto por Aderbal Freire Filho, diretor responsável por levar aos palcos brasileiros os seus principais trabalhos. Fica evidente que Os Desinibidos é um texto que representa não apenas a ―ressurreição‖ de Roberto Athayde nos palcos, mas também uma exteriorização de seu pensamento crítico, suas contradições e, citando novamente o primeiro subtítulo, suas ―neuroses‖. O conjunto documental evidencia a presença das personagens Frustrafróide e Fada Mangana em contos publicados em outros livros de Roberto Athayde, como O Homem da Lagoa Santa (1979) e O jardim da Fada Mangana (1974), o que me permite, em certa medida, conhecer elementos referentes à produção do texto. Além disso, os documentos provindos do Arquivo Nacional (certificados e relatórios de observação do ensaio geral produzido pela ação de censores), bem como menções em jornais sobre o texto podem ajudar a elucidar a recepção e a circulação de Os Desinibidos. Desse modo, pretendo enfocar – na perspectiva da Nova Filologia, em relação com a História Cultural das práticas de escrita e leitura e com a Informática, que me permitiu produzir um arquivo hipertextual e hiperedição de Os Desinibidos – a história do texto a partir da leitura dos documentos que compõem o dossiê estudado. A realização deste trabalho resulta de um estudo desenvolvido ao longo da minha trajetória nas atividades de pesquisa da Equipe Textos Teatrais Censurados – ETTC que, desde 2006, sob a coordenação da Profa. Dra. Rosa Borges, na Universidade do Estado da Bahia (2006-2009) e no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (2006-), tem-se ocupado dos textos teatrais censurados como objetos de estudo no campo da Filologia. Ao catalogar e organizar os textos dispersos em Acervos de Teatro e também Privados (alguns), o

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Grupo cumpre com seu objetivo primordial, que é recuperar o patrimônio cultural escrito, através do estudo da transmissão dos textos, bem como das diferentes relações que se estabelecem entre os autores e a censura. É objetivo da ETTC analisar os diversos processos de produção teatral de resistência, empreendidos por cada dramaturgo em particular, no contexto cultural dos ―anos de chumbo‖, oferecendo, com base nesses estudos, edições diversas. Nesse ínterim, os trabalhos publicados6 por membros da ETTC têm sido exitosos ao divulgar, através de edições de diversos modelos e sob múltiplas perspectivas de estudo, o teatro produzido e/ou censurado na Bahia, construindo uma história do teatro baiano através da práxis filológica. Tendo ingressado na ETTC em 2007, quando ainda cursava o segundo período da Licenciatura em Letras na Universidade do Estado da Bahia, realizei, na condição de bolsista, a transcrição de diversos textos teatrais monotestemunhais e politestemunhais, produzindo, através destes, exercícios de edição interpretativa e crítica, com vistas ao conhecimento e domínio do método neolachmanniano aplicado à edição de textos modernos, orientado pela teoria intencionalista da escola italiana, buscando, pelo cotejo das variantes, reconstituir um texto representativo do ânimo autoral, ideias que vim a problematizar em fins da graduação, com base no trabalho com dois textos específicos: o primeiro, Apareceu a Margarida, cuja vasta tradição autoral evidenciou-me que cada versão havia sido produzida para contexto diferente (o que me fez reservar seu estudo para o curso de mestrado); o segundo, Me segura que eu vou dar um voto, de Bemvindo Sequeira (1982), de que dispus de dois testemunhos, que se encontravam no acervo do Espaço Xisto Bahia, na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. O texto de Sequeira (1982) apresentava-se em dois datiloscritos de datas muito próximas, com anedotas políticas sobre os candidatos às primeiras eleições diretas para o cargo de governador. Fato interessante é que um testemunho contextualizava o panorama político da Bahia, enquanto outro tratava do cenário fluminense. Em meu esforço por produzir uma edição crítica sob a perspectiva intencionalista, com os documentos de que dispunha à época, reduzi a complexidade das variantes em privilégio da versão produzida na Bahia, expondo resultados e problemas das minhas escolhas editoriais no trabalho que apresentei em

6 Em sua maioria, as edições foram apresentadas como dissertações ou teses nos programas de pós-graduação da UFBA, disponibilizadas em CD-ROM, DVD ou site, com conteúdo divulgado no repositório acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult/UFBA). Destaco as dissertações de Isabela Santos de Almeida (2011), Débora de Souza (2012), Williane Silva Corôa (2012), Mabel Meira Mota (2012), a minha (CORREIA, 2013), e Hugo Leonardo P. Correia (2014); e as teses de Arivaldo Sacramento de Souza (2014), Ludmila Antunes de Jesus (2014), Isabela Santos de Almeida (2014) e Mabel Meira Mota (2017). Algumas das edições serão retomadas na seção terceira deste trabalho, com vistas à construção do modelo que seguirei.

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Correia e Santos (2009a). Poucos anos depois, na dissertação defendida por Hugo L. P. Correia (2014), Me segura que eu vou dar um voto foi por ele apresentada com um tratamento editorial que valorizou a historicidades das versões, isolando cada uma para estudo em perspectiva sociológica. Esta e outras situações textuais conduziram-me para o estudo das variantes textuais, orientando-me, sistematicamente, para uma crítica das variantes e uma filologia autoral, sob influência da Storia della tradizione e critica del texto, de G. Pasquali (1953 [1934]); Come lavorava l‟Ariosto e Esercizî di lettura sopra autori contemporanei con un'appendice su testi non contemporanei (CONTINI, 1982 [1937]; 1947); e dos Studies in Bibliography de T. Tanselle (1980 [1975]). Nos idos de 2007-2009, buscava ainda diferenciar variantes autorais e variantes de transmissão, a fim de conhecer os mecanismos relacionados ao fazer textual e às modificações realizadas no texto por diferentes mãos, no intinerário dos processos censórios (CORREIA; SOUZA, L.C.; SANTOS, 2007) (CORREIA; SOUZA, D.; SANTOS, 2009) (CORREIA; SANTOS, 2008a; 2008b; 2009a; 2009b). A esses dois tipos de variantes, acrescentei aos meus estudos um terceiro: as variantes linguístico-estilísticas, aproximando, pelo conceito de variante, história da língua e história das transmissões textuais – como propôs Pons Rodríguez (2006) – para analisar o tratamento editorial das variantes em textos de teatro de cordel produzidos por João Augusto e editados por Ludmila Antunes de Jesus (2008) em sua dissertação. Este estudo conduziu-me à relação escrita/oralidade em textos teatrais, cujos resultados apresentei em monografia de conclusão de curso (CORREIA, 2010) e em alguns trabalhos, como se vê em Correia e Santos (2009c, 2009d, 2009e), e Correia, Jesus e Santos (2010). Com base nessas diferentes perspectivas de estudos sobre variantes, ingressei no curso de mestrado (2011-2013) disposta a compreender a tradição de Apareceu a Margarida a partir da perspectiva das variantes autorais, expectativa que refutei na primeira fase da pesquisa documental, no Arquivo Nacional, em Brasília, e quando tive acesso ao acervo pessoal de Roberto Athayde, em seu apartamento no Rio de Janeiro. Ao perceber que as diferentes versões de Apareceu a Margarida expressavam tempos, lugares e sujeitos (MCKENZIE, 2005 [1985]), conduzi-me à perspectiva sociológica da edição (MCGANN, 1983; LOURENÇO, 2009), buscando evidenciar a variabilidade e a historicidade das versões. Já não buscava um texto único, composto de aparato de variantes. Deste texto, o leitor comum poderia dispor em coletâneas autorais, como se lê em Athayde (2003). Interessava-me o itinerário da escritura, da censura, das encenações, das críticas, dos caminhos do texto entre Rio de Janeiro e Bahia. O próprio conceito de variante foi considerado inadequado no meu

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estudo, que buscava compreender a variação, a variabilidade do texto, ou, mais adequadamente: dos textos. No esforço de evidenciar as diferentes versões de Apareceu a Margarida em confronto, realizei edição sinóptica (em suporte papel e eletrônico) e fac-similar, em meio digital, utilizando o software Prezi como suporte de edição que me permitia, pelo recurso de zoom, exposição radial do conteúdo e ampla dimensão lateral, vertical e em profundidade. Além disso, realizei um estudo da tradição da obra inserida na história, enfocando, principalmente, seu processo de transmissão e sua divulgação no Estado da Bahia, bem como propus uma leitura crítico-filológica do texto, considerando as metáforas utilizadas na linguagem cênica em seu contexto sócio-histórico. Além da dissertação apresentada em Correia (2013), divulguei resultados parciais em diversos trabalhos, como Correia, Machado Jr e Santos (2011), Correia e Santos (2011); Correia, Almeida e Santos (2013); Prudente (2016, 2017). A produção da minha dissertação apontou-me problemas e insuficiências de ordem teórica, metodológica e experimental, que trouxe para o curso de doutorado: o primeiro, referente às noções de arquivo, hipertexto e humanidades digitais, não exploradas no mestrado, quando eu ainda pensava o digital como um meio, um suporte para a produção da edição (MORRÁS, 2003). O segundo problema, referente aos demais textos teatrais censurados de Roberto Athayde, que se encontram no ostracismo, abafados pelo esplêndido sucesso de Apareceu a Margarida, direcionava-me a um duplo compromisso ético de compreender o autor através de seus outros textos, e de investigar suas produções que estiveram à margem do cânone. O terceiro, relativo à minha identidade no campo da Filologia, sufocava-me de questões, como: quais tarefas seriam propriamente filológicas? Como operam as relações História Cultural e Filologia? Como propor uma leitura filológica ativa e interventiva/crítica sobre tais textos? Foi no desconforto dessas dúvidas que delineei as etapas de pesquisa que segui no doutorado. Nesse ínterim, eu poderia dizer que esta tese que por ora apresento é resultado de um acúmulo ou de um percurso teórico, mas tais termos me fariam linear e teleológica em demasia, desvalorizando as intercorrências e os platôs da escrita em vista de um fim a que me destinaria. Prefiro, antes de qualquer perspectiva de resultado ou conclusão, o ensaio (tanto em sua ideia de ‗fase de teste‘, quanto na incompletude que sugere), a metáfora dos descaminhos, das veredas que se bifurcam (BORGES, 1944 [1941]), da galeria de saberes em torno de um eixo temático (SANTOS, 2010 [1987]), do livro-rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2011 [1980]) ou do livro de areia (BORGES, 1983 [1975]), que a cada nova

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leitura recombina as peças/grãos de que dispõe para produzir novos sentidos, dando a ler novas histórias, conhecendo e reconhecendo (criando novas imagens) Roberto Athayde a cada documento do dossiê estudado, produzindo uma história não linear, mas marcada pela descontinuidade das múltiplas narrativas e imagens que produzo na leitura arquivo. Dessa forma, ao organizar o dossiê em meio digital de Os Desinibidos, de Roberto Athayde, proponho-me realizar uma leitura filológica deste arquivo para a edição e o estudo dos processos de produção, circulação e recepção. Assim, na seção FILOLOGIA E HISTÓRIA CULTURAL: TRAMAS PARA ESTUDO DO TEXTO TEATRAL CENSURADO, situo o eixo teórico em que essa análise foi desenvolvida, de modo que caracterizo o objeto dessa pesquisa, o texto teatral censurado, como testemunho/documento/monumento (BORGES, 2015). Busco entender o que pretende e o que pode o filólogo contemporâneo enquanto intelectual humanista, apontando discussões estabelecidas principalmente por Castro (1984), Kristeva (2013), Foucault (2004 [1982]; 2013 [1967]), Rouanet (2006), Gumbrecht (2007 [2003]), Auerbach (1972 [1949]) e Said (2007 [2004]). Traço, na referida seção, um panorama histórico, envolvendo as mudanças de paradigma sobre o texto e os modos como tais transformações interferiram no desenvolvimento de teorias editoriais, situando a Filologia como prática interdisciplinar e tendo como base Cerquiglini (1989; 2007), Marquilhas (2010a; 2010b), Kastan (2001), Chartier (2002; 2010 [2007]), Deleuze e Guattari (2011 [1980]), Lourenço (2009), McKenzie (2005 [1985]), McGann (1983) e Moreira (2011). Em seguida, aproximo a Filologia da Nova História Cultural das práticas de escritura e dos textos – segundo a perspectiva apontada por Burke (2005), Pesavento (2005) e Chartier (2010 [2007]) e Le Goff (1990) – para compreender o texto teatral censurado em perspectiva material, histórica, social e cultural, o que culmina na caracterização de diferentes práxis filológicas, como as que se desenvolvem por Warren (2003), Clark de Lara (2003), Zancarini (2008), Borges (2012), Borges e Souza (2012), na defesa de uma crítica filológica para a pesquisa aqui empreendida. Em FILOLOGIA, ARQUIVO HIPERMÍDIA E HUMANIDADES DIGITAIS: A CAMINHO DE UMA HIPEREDIÇÃO PARA OS DESINIBIDOS, indico mudanças sociais decorrentes da revolução informática e do desenvolvimento das tecnologias digitais para compreender os modos como isso modifica as ciências que se ocupam do homem, da sociedade e de suas produções culturais, caracterizando o hipertexto digital para propor uma hiperedição de Os Desinibidos como arquivo hipermídia. Para isso, retomo algumas discussões que situam a relação arquivo, hipertexto e humanidades digitais, tais como

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Barreiros (2014), Chartier (2009 [1977]), Derrida (2001 [1995]), Finneran (1999 [1996]), Lucía Megías (2012), Miranda (2003), Paixão de Sousa (2011; 2013a; 2013b), Shillingsburg (2004 [1996]; 1999 [1993]; 2004), Zilberman, (2004), e realizo uma leitura do arquivo, ou seja, considero o conjunto documental estudado para construir uma síntese da trajetória dramatúrgica do escritor e uma análise da história do texto Os Desinibidos, apresentando os documentos que compõem seu dossiê para estudo das práticas culturais de produção do texto teatral censurado, enfocando o intinerário da censura a partir de Fagundes (1974) e da documentação censória referente a Os Desinibidos. Ilustrarei algumas edições que me serviram de modelo – tais como Urbina et al (2005), McGann (2008), Leclerc et al (2009), Barreiros (2015), enfocando as edições que tomaram os textos teatrais censurados como objeto, produzidas por membros da ETTC, especialmente Almeida (2014), Souza (2014) e Mota (2017) – para definição dos critérios de tratamento documental e de edição. Apresentarei à seção UM DIVÃ PARA OS DESINIBIDOS: A HIPEREDIÇÃO os critérios utilizados para a constituição do dossiê arquivístico, a ordenação dos documentos e a elaboração de fichas-catálogo, com base nos princípios para edições digitais estabelecidos por Shillingsburg (1999 [1993]), na metodologia de classificação de documentos produzidas para a ETTC (Borges et al, 2016) e no modelo de arquivo hipertextual proposto por Mota (2017). Sobre as edições, apresentarei os critérios para a captura das imagens digitais para os fac- símiles, os critérios para as edições sinóptico-crítica hipermídia e em modelo de impressão, a estrutura e funcionamento da hiperedição com amostras da interface eletrônica, mapa do site e comentários sobre as partes que o compõe. Encerro a seção com a apresentação da edição sinóptico-crítica em modelo de impressão, composta por aparato sinóptico e comentários em notas que não somente glosam o vocabulário técnico-científico relativo à psicanálise e a outras abordagens psicoterapêuticas – fundamentado principalmente em Chemama (1996), Laplanche e Pontalis (2001 [1982]), Kaufmann (1996 [1993]), Roudinesco e Plon (1998 [1997]), Zimerman (2001) –, como também comentam sobre acontecimentos históricos, personalidades, estudos, literatura, cinema e música, mencionados direta ou indiretamente no texto cênico. Nas CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOTAS PARA UMA FILOLOGIA POLÍTICA, retomo o comentário filológico do dossiê a partir dos diferentes tipos de notas inseridas na edição, evidenciando o sujeito autor inserido no ambiente intelectual burguês ficcionalizado na comédia de costumes Os Desinibidos, na qual se produzem narrativas sobre si (KLINGER, 2012 [2007]) e representações de outros que não participam do grupo. Para isso, relaciono a hermenêutica filológica proposta por Said (2007 [2004]), Gumbrecht (2007

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[2003]) e Santos e Sacramento (2017) para apontar como Roberto Athayde utiliza seu lugar de intelectual para construir um discurso político. Na epígrafe que me serve de inspiração a esta tese, apresentei um poema de Roberto Athayde que se encontra em Os Desinibidos. Penso que tais versos evidenciem um compromisso firmado pelo autor em vandalizar, catalogar e registrar na literatura os ―tipos de horror‖ e suas respectivas ―espécies de escândalo‖ (ATHAYDE, 1982) de seu contexto. De fato, ao colocar microfones no divã, Os Desinibidos transpõe para o público horrores de um ambiente privado e familiar, com as diferentes reações de escândalo às situações evidenciadas. Fazer a leitura filológica desse texto será, nessa medida, romper o silêncio da instituição da censura e do ostracismo literário, revirando o arquivo para publicá-lo.

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2 FILOLOGIA E HISTÓRIA CULTURAL: TRAMAS PARA ESTUDO DO TEXTO TEATRAL CENSURADO

A despeito de a racionalidade científica moderna (que começou a se desenvolver no humanismo quinhentista do século XVI) ter-se estabelecido, no século XIX, a partir de campos disciplinares sólidos e independentes (SANTOS, 1987) – e de muitas pesquisas ainda defenderem o paradigma da ‗ciência pura‘ –, a Filologia tem sustentado uma práxis interdisciplinar, crítica e humanística sobre seu objeto de estudo, o texto, que se redefine na contemporaneidade, conforme explorarei nesta seção. Situada como espaço dialógico de práticas que cuidam do tratamento histórico do texto como testemunho, documento e monumento (BORGES, 2015), posso afirmar que é de interesse filológico estudar textos como testemunhos materiais, linguísticos, históricos e culturais. Nesse sentido, a dimensão histórico-cultural de um texto está presente na sua materialidade, nos conteúdos situados na época e no lugar aos quais ele pertence, e nos seus usos linguísticos, já que o texto é produzido a partir de códigos linguísticos e bibliográficos (MCGANN, 1991, p.13), que podem ser entendidos como códigos contextuais, pois

on the one hand, [...] a contextual code is bibliographic in that it pertains to the physical constitution of the volume; on the other, the contextual code is linguistic in that it is made up of the words7 (BORNSTEIN, 2001, p.179).

Tal relação entre os códigos identificados por McGann (1991) e Bornstein (2001) é explorada por Barreiros (2015), que a situa no campo da crítica textual em relação com as práticas culturais de escrita. Seguindo sua perspectiva, a História Cultural, entendida aqui como história dos textos e das práticas de escritura e leitura (CHARTIER, 2010 [2007]), acompanha os quatro objetivos de trabalho da Nova História propostos por Le Goff (1990): repensar o documento, a partir de uma crítica ao objeto da História e à ação do historiador; redefinir o tempo, compreendendo-o em suas descontinuidades, propondo uma cronologia que se oriente pela sua eficácia na História; direcionar-se para uma história total a partir das micro-histórias, integrando documentos de diversos tipos; construir novos dispositivos teóricos de análise.

7 Tradução livre: ―[...] de um lado, um código contextual é bibliográfico, na medida em que se refere à constituição física do volume; por outro, o código contextual é linguístico, na medida em que é constituído de palavras‖.

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Para tais propósitos, considero o texto teatral censurado como objeto de estudo da Filologia, em relação com a História Cultural, para realizar, a partir do estudo da dramaturgia censurada de Roberto Athayde, uma história das práticas de escritura, com foco no processo de produção, circulação e recepção do texto Os Desinibidos. Escrito para ser encenado, o texto teatral é caracterizado pela duplicidade de ser, ao mesmo tempo, obra literária e roteiro de interpretação. Nesse sentido, entendo que se trata de um texto com uma dimensão oral e performática corporificada na cena. O texto teatral produzido no período marcado pela repressão política, evidenciada pelo encaminhamento obrigatório de produções artísticas aos órgãos de censura, apresenta configurações contextuais (materiais, linguísticas e discursivas) únicas que o identificam historicamente, geograficamente, politicamente e culturalmente, o que justifica compreendê-lo como objeto de estudo da História. Realizando um estudo interdisciplinar, considero aqui o lugar da Filologia no campo das humanidades, a fim de compreender como as mudanças na concepção de texto promoveram o desenvolvimento de diferentes teorias editoriais que buscam compreendê-lo em seu processo de transmissão. Destaco, para isso, os processos técnicos, sociais, históricos e culturais que coordenaram os modos como os textos foram produzidos, e as diferentes etapas de circulação social do texto (ou sua proibição, seja pela censura editorial/comercial, ou política), esboçando aproximações com a Nova História Cultural para construir uma ideia de texto como testemunho, documento e monumento. É a partir desse paradigma que acolho a crítica filológica e a Filologia de práxis, temas aos quais darei prosseguimento nas últimas seções.

2.1 O lugar dos estudos filológicos no campo das humanidades contemporâneas

Afirmava Ivo Castro em sua tese de doutoramento, nos idos de 1984, a respeito do lugar da Filologia:

[A filologia, hoje] limita[-se] ao exercício de uma missão deixada vaga pelas outras disciplinas da palavra e que é a de verificar se um texto que vai ser lido e interpretado dá garantias de estar tão próximo quanto é possível daquilo que o seu autor escreveu. Esta filologia estrita equipa-se com recursos técnicos muito desenvolvidos (contributo das ciências da escrita e do livro, da história e da linguística) para desempenhar a sua missão, que não é estética nem semântica, mas técnica e, de certo modo, ética: a missão de interrogar os objectos escritos sobre a sua proveniência e a sua existência, antes de os declarar aptos a serem lidos pelos outros, os literatos, os linguistas e outros que, distraídos pelas suas especialidades, tendem demasiadas vezes a confiar em que a palavra escrita é sempre a palavra do seu autor (CASTRO, 1984, grifos meus).

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A ideia de Filologia estrita evidenciada acima levanta duas séries de discussões que estão imbricadas: a primeira, relativa à restrição do campo de trabalho da Filologia moderna frente aos estudos linguísticos e literários; a segunda, a respeito da missão considerada técnica e ética dessa Filologia definida por Castro (1984), que repousaria sob os ideais de uma edição confiável, representativa da vontade autoral. Discutir essas questões é essencial para definir o lugar do filólogo dentro de uma perspectiva humanista pós-moderna. Marquilhas (2010a) ao retomar o conceito de Castro (1984), distinguiu a Filologia moderna, estrita, da Filologia oitocentista, estabelecida como esplêndida ciência no século XIX, a partir de uma abordagem lata, romântica e historicista, que buscava reencarnar o espírito das nações (o Volksgeist alemão) a partir da reconstrução das línguas dos povos autóctones. Essa abordagem historicista possuía um viés nostálgico de valorização do passado, baseando-se na ideia de que a língua, tal como um organismo vivo, degenerava-se através do tempo, e os textos, de modo semelhante, também tenderiam, de acordo com essa concepção, à degenerescência, seja ela provocada pela corrupção material ao longo do tempo, seja ela fruto da transmissão pelas gerações.

O trabalho filológico, na abordagem oitocentista, buscava então ―higienizar‖ o texto das ―feridas‖ que sua tradição lhe imputara, o que era assegurado através do preparo da edição crítica, baseada em princípios seculares, como lectio antiquior potior e emendatio opus codicum8. Constituindo-se como base da teoria da edição crítica estabelecida pelo alemão Karl Lachmann (1974 [1850])9, tais princípios evidenciavam a busca pelo arquétipo, considerado o texto original perdido, corrompido ao longo do tempo, reconstruído a partir do exercício crítico. O trabalho de Lachmann (1974 [1850]) possui extrema relevância para os estudos filológicos, uma vez que ele se propôs a sistematizar as diversas atividades que se organizavam pela alcunha ―filológica‖, estabelecendo um método de edição de textos condizente com a racionalidade científica de sua época. Baseado nas etapas recensio,

8 A prática da emendatio (correção, revisão do texto) é atribuída aos estudos de Varrão, na Roma do século III a.C., sob a influência dos filólogos alexandrinos, tendo-se desenvolvido em emendatio opus codicum (correção feita com a ajuda da lição de outros códices) com Poliziano, no período renascentista. Já o princípio lectio antiquior potior (a lição mais antiga é mais confiável) tem origem atribuída a Jean Le Clerc, em fins do século XVII. Baseada nesses princípios, a perspectiva da crítica lachmanniana buscava realizar emendas no texto buscando reconstituir o arquétipo, que estaria mais próximo da lição mais antiga, ou seja: menos corrompida pela ação do tempo e dos escribas. 9 Em edições de autores gregos e latinos; na poesia medieval alemã; além da edição crítica do Novo Testamento e, principalmente, nos seus últimos trabalhos, com o poema de Lucrécio (1850).

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emendatio e constitutio textus10, Lachmann fixou a Filologia em sentido estrito sobre a qual Ivo Castro (1984) se referia. Contudo, a busca pelo arquétipo desvalorizava as transformações históricas pelas quais passou o texto, além de apresentar como resultado ―um ideal de texto que se supõe ter existido, embora não haja provas materiais conclusivas de sua existência‖ (MOREIRA, 2011, p.53). A constitutio textus produz, assim, um texto compósito, anacrônico, nunca antes realizado em sua materialidade, como afirmou Moreira (2011). Além disso, ao mesmo tempo em que a pretensão de um método filológico universal objetivava reduzir o caráter subjetivo das práticas filológicas oitocentistas, ela também tenderia, simultaneamente, à valorização da técnica de edição, aprimorada por outros pesquisadores que seguiram a abordagem proposta por Lachmann, como Henri Quentin (1926), com a estatística das variantes, e Paul Maas (1927), com o método dos erros-guia utilizado para aprimoramento do stemma11. O modelo lachmanniano foi duramente criticado por muitos teóricos, dentre eles, Joseph Bédier (1913 [1890]), que formulou a teoria do bom manuscrito. Para ele, a construção de um stemma viciaria a tradição, por ser baseada em estemas bífidos, ignorando a possibilidade de haver derivação radial na história da tradição. Foi a partir dessa análise que Bédier, ao editar Lai de l´Ombre, de Jean Renard (1913 [1890]), recorreu à edição de um texto real, eleito pelo filólogo como ―bom manuscrito‖. A esse respeito, Cerquiglini (1989) assegura que

[o] antimétodo de Bédier reconduz igualmente a obra medieval ao texto autorizado, estável e fechado da Modernidade. Já não se trata, e muito felizmente, de dirigir essa redução invocando um fantasma, convertido na primordial garantia da estabilidade, e simulando a unicidade de sua concepção; mas rebate-se a noção de texto sobre um manuscrito, sem dúvida real, entretanto único, descuidando-se do seu espaço variacional (CERQUIGLINI, 1989, p.101).

10 Recensio, emendatio e constitutio textus são as principais etapas do método lachmanniano, e também consistem em metodologia básica de diferentes abordagens editoriais. A recensio corresponde à recolha dos testemunhos da tradição textual a ser estudada e, a partir dela, realiza-se a colação (collatio codicum), com o confronto de tais textos, seguidos do expurgo das cópias desprovidas de autoridade (eliminatio codicum descriptorum) e do estabelecimento de um parentesco entre os testemunhos (stemma codicum). A segunda fase, emendatio, corresponderia à correção (emenda) dos ‗erros‘ impostos à tradição do texto, o que se faz, no método de Lachmann, a partir da seleção de variantes. A constitutio textus, por fim, é a reconstrução do arquétipo para dispor à apresentação. 11 Para Duarte ([1997-]), o estema (stemma codicum) seria o ―esquema que representa a relação hierárquica dos testemunhos da tradição. Obtém-se depois de feita a colação, de se ter procedido ao encadeamento dos testemunhos e se ter definido a relação de conexão e de derivação entre eles. Em um estema, os testemunhos conhecidos são representados por letras romanas e os desconhecidos e conjecturados por letras gregas‖ (verbete estema).

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O que considero importante destacar é que, embora já não se construa um texto fantasma, tanto Bédier quanto Lachmann ainda estão presos à unicidade do texto. Marquilhas (2010a), no entanto, afirma que, mesmo na busca de um texto arquetípico, ―original‖,

a edição lachmanniana continha o germe do seu enriquecimento e diversificação, ao contrário da filologia oitocentista que conteria o germe da sua própria refutação. As modalidades renovadas de crítica textual que surgiram no último quartel do século XX – a sociologia dos textos e a crítica genética – vieram provar isso mesmo. São modalidades que revelam a plasticidade da crítica lachmanniana e a sua capacidade de diálogo com novas análises da cultura e da sociedade (MARQUILHAS, 2010a, p.361).

Para Marquilhas (2010a), os conceitos de arquétipo, stemma e variante, sobre os quais se estabeleceu a teoria da edição crítica de Karl Lachmann, foram os fatores de diversificação das práticas editoriais que contribuíram para o desenvolvimento da Crítica Genética e da Sociologia dos Textos, que, ao proporem novos modos de pensar e trabalhar com os textos, modificaram as teorias de edição. A primeira evidencia as relações entre o stemma (diagrama em formato de árvore que estabelece relações entre testemunhos de um texto) e a genealogia da criação (rede de conexões entre elementos que ilustram e encadeiam o processo criativo de determinada obra). A segunda pauta-se na convicção de que ―toda edição crítica é histórica‖ (MCGANN, 1983), na medida em que preserva a história do texto e de suas transformações no aparato das variantes, ainda que a edição busque legitimar uma única forma textual. O desenvolvimento da Crítica Genética e da Sociologia dos Textos não ocorreu senão através do estabelecimento de uma profunda crise que afetou não somente a noção de texto, mas promoveu uma desestabilização das ciências humanas como um todo, incluindo a Filologia. Tal transformação, mobilizada por diversos acontecimentos sociais, políticos e filosóficos que alteraram a organização dos países ocidentais, ocorreu a partir de uma mudança na racionalidade científica dominante na primeira metade do século XX (SANTOS, B., 2010 [1985]), antes configurada como um modelo global de saber totalitário que se pretendia como verdade, baseado na redução das complexidades que particularizariam cada objeto. Para Santos (2010 [1985, p.17]) o modelo científico baseado na experimentação e na construção de leis universais oriundas de uma análise quantitativa começou a se estabelecer no século XVI, com a revolução científica empreendida por Copérnico, Galileu e Newton.

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Foi no século XIX, porém, sob influência da doutrina positivista construída por August Comte12, e das contribuições de Lévi Strauss13 para o estabelecimento do pensamento estruturalista, que a racionalidade científica construída nas ciências exatas e naturais estende- se para as ciências sociais emergentes, assentando-se como um paradigma totalitário, global, que

[...] se distingue e se defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluiriam, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos) (SANTOS, 2010 [1985], p.21).

À inadequação da Filologia – de natureza humanística, crítica e pautada, portanto, na interdisciplinaridade que sustenta as investigações sobre o texto – à racionalidade científica dominante no século XIX, seguiu-se a primeira diversificação desse campo em Linguística Histórica e Crítica Textual, o que compreendo pela ideia de essa Filologia (à época, em sentido lato) não atender ao modelo de conhecimento sustentado pela investigação quantitativa, classificatória, abstracionista e generalizante sobre o objeto. Afirma Santos (2010 [1985], p. 27-29) que o paradigma positivista, construído a partir do modelo das ciências exatas e naturais, pautava-se na redução da complexidade do objeto de pesquisa, desvalorizando aspectos que não poderiam ser quantificados, de modo que

12 Augusto Comte (1798-1857) desenvolveu uma abordagem filosófica conhecida como Positivismo, que se baseava na tese de que a ciência seria a única forma de conhecimento verdadeiro. Em seus principais trabalhos – Système de philosophie positive (1830-1842), Cathéchisme positiviste (1852), Système de politique positive (1851-1854), Appel aux conservateurs (1855) e Synthèse subjective (1856) – nota-se que ele buscou incorporar a abordagem científica a diversos temas sociais (filosofia, ciência, política e religião), prescrevendo que toda a sociedade poderia organizar-se com base em critérios estabelecidos pelas ciências exatas e biológicas. Sua obra de maior destaque, o Système de philosophie positive (1830-1842), consiste em uma obra escrita em doze anos e seis volumes, que trata de ―um exame sistemático das ciências abstratas constituídas até então, de acordo com a ‗escala enciclopédica‘ de Comte; a sequência seria a seguinte: Matemática, Astronomia, Física, Química e Biologia. Esse exame das ciências não era um fim em si mesmo, mas um meio para um fim ambicioso: a constituição da ciência da sociedade, inicialmente chamada de ‗Física Social‘ e depois renomeada para ‗Sociologia‘. Os três primeiros volumes foram dedicados a essa progressão de ciências preliminares; já os três últimos trataram da definição do objeto e do método da nova ciência, incluindo aí as tentativas anteriores e as principais questões teóricas (especificamente, a Estática e a Dinâmica sociais)‖ (LACERDA, 2009). Ao aplicar as leis naturais às ciências sociais, Comte influenciou-se pelo progresso contínuo da ciência no século XIX, de modo que a construção de leis que pudessem explicar os fatos submetia os fenômenos humanos e sociais a um único método científico. 13 Claude Lévi-Strauss (1908-2009), etnólogo e antropólogo francês, fundamentou uma das correntes filosóficas que marcaram a segunda metade do século XX, o Estruturalismo, irradiando sua epistemologia para os mais diversos campos das ciências humanas e sociais, com um papel decisivo na trajetória que envolve o embate entre o positivismo lógico, a fenomenologia, a fenomenologia existencial e o historicismo (THIRY-CHERQUES, 2006). Com fortes influências do Positivismo de Auguste Comte, especialmente em relação à necessidade de garantir o estatuto de Ciência para os estudos sobre a sociedade, e pretendendo dar objetividade ao estudo do humano, o estruturalismo construiu um método de análise formal que considera o objeto como totalidade passível de descrição a partir dos elementos que a constituem e das relações que mantém entre si.

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[...] conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e, em seu lugar, passam a imperar as quantidades que eventualmente se podem traduzir (SANTOS, 2010 [1985], p.27-28).

Essa postura construía para as ciências um objeto de pesquisa idealizado, fruto de uma simplificação teórica que recaía ao abstracionismo. Assim, ―conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou‖ (SANTOS, 2010 [1985], p.28). É a partir dessas relações que, percebendo-se a regularidade dos fatos observados em uma pesquisa, estabeleciam-se as leis, ou princípios universais, aplicáveis à observação de outros objetos semelhantes. Tais leis buscavam, ainda, promover um distanciamento subjetivo na relação pesquisador/objeto, o que, como já apontei no início desta seção, teve como consequência a construção de uma práxis científica baseada no tecnicismo. Nisso residia a perspectiva lachmanniana de busca de um texto arquetípico (e, portanto, idealizado, abstrato) reconstituído e tomado como verdadeiro, legítimo e autêntico, a partir da autoridade do filólogo. Baseada na divisão, classificação e quantificação das variantes e testemunhos, e, buscando estabelecer um método universal de edição, a teoria da edição crítica ilustra o modelo de racionalidade sobre o qual se baseava o pensamento filológico do início do século XX. Posso afirmar que esse aspecto estrito da Filologia, que se manifesta na restrição do campo de trabalho, contribuiu para o estabelecimento de uma relação de subserviência da Filologia à Linguística Histórica14 e aos Estudos Literários15, nos

14 Cano Aguilar (2000, p.14) destaca que a Linguística, ―filha ou irmã da Filologia […] hija o hermana de la Filología, [...] tem percorrido junto a ela um longo e tortuoso caminho, cheio de encontros e rejeições‖, mantendo entre si ―uma relação que poderíamos qualificar como complementariedade utilitária‖ (CANO AGUILAR, 2000, p.20, tradução livre). Afirma ainda que ―a ruptura se consolida em meados do século XIX: ‗o filólogo-linguista foi desaparecendo poupo a pouco diante do linguista puro‘‖ (CANO AGUILAR, 2000, p.18, tradução livre). 15 Destaco aqui a perspectiva de Benedetto Croce (1920, p.23, tradução livre), ao defender o ―historiador real‖ em relação ao ―historiador filólogo‖. Para ele, o filólogo cumpre um papel secundário de ajudante da história, comparando-o a um animal que tende a desaparecer com a ampliação do trabalho civilizatório do historiador: ―[...] os filólogos puros e simples: contra os pobres eruditos, arquivistas e arqueólogos, verdadeiros animais inofensivos e benéficos, como se fossem destruídos, como na agitação polêmica às vezes a fertilidade dos campos do espírito é esperada não só seria diminuído, mas mesmo arruinado, e a reintrodução deve ser promovida com urgência o crescimento desses coeficientes de cultura [...] após a caça repentina dada por vários anos a sapos inofensivos e benéficos‖. Para Croce, o filólogo deve despir-se da pretensão de ser historiador e ocupar o lugar de mero preparador de texto, um trabalho técnico, artesanal e – como sugere sua comparação aos sapos e bichos inócuos – desprovido de racionalidade. Nessa perspectiva, como um ―sapinho‖, o filólogo, arqueólogo ou arquivista ―deveria pular da mesa para dar espaço ao historiador e à sua crítica iluminante‖ (PICCHIO, 1979, p. 213). Essa abordagem reducionista e desprovida de tarefa hermenêutica sobre os textos permanece dominante por muito tempo, submetendo o trabalho filológico à condição de auxiliar da História, da Linguística e da Literatura, como se lê em Cano Aguilar (2000, p.22, tradução livre, grifo meu): ―os estudos filológicos na literatura devem ser claramente distinguidos da história da literatura, literatura comparada e da

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quais predominavam as abordagens imanentistas que promoviam abstração do objeto, desconectado de sua realidade material (neogramáticos e estruturalistas, na Linguística, e formalistas russos e New Criticism, na Literatura). De fato, as relações de fonte/influência e langue/parole sobre as quais se centravam, respectivamente, a literatura e a linguística da primeira metade do século XX, estavam enraizadas em um ideal normativo, hegemônico, totalizador, homogeneizante e eurocêntrico de língua, de obra literária, de texto e, sobretudo, de Homem16. Dentro desse paradigma, considero necessário enfocar o legado de Erich Auerbach e Edward Said, como filólogos que resistiram à tendência de fragmentação e especialização dos campos de saber e sustentaram, de modos diferentes, um enfoque humanista e multidisciplinar da Filologia. Esta, segundo Auerbach (1972 [1949]), seria entendida como o

conjunto das atividades que se ocupam metodicamente da linguagem do Homem [sic] e das obras de arte escritas nessa linguagem. Como se trata de uma ciência muito antiga, e como é possível ocupar-se da linguagem de muitas e diferentes maneiras, o termo filologia tem um significado muito amplo e abrange atividades assaz diversas. Uma de suas formas mais antigas, a forma por assim dizer clássica e até hoje considerada por numerosos eruditos como a mais nobre e a mais autêntica, é a edição crítica de textos (AUERBACH, 1972 [1949], p.11, grifos meus).

Note-se que Auerbach (1972 [1949]), como intelectual humanista de seu tempo, compreende o humanismo como um teomorfismo (KRISTEVA, 2013), em que o homem é tomado à semelhança de um deus. Aproximando-se do axioma de Protágoras (em V a.C.) de que ―o Homem é a medida de todas as coisas‖, a noção de humano em Auerbach é centralizada na ideia de Homem como criador da linguagem e das grandes obras nela produzidas. Nesse sentido, ao exaltar a erudição, a nobreza, a autenticidade e o caráter clássico da edição crítica de textos como atividade filológica, Auerbach (1972 [1949]) defende uma práxis filológica voltada para uma hermenêutica do cânone ocidental, como ele mesmo o fez em seus diversos estudos, dentre os quais destaco Mimesis – a representação da realidade na literatura ocidental, em 1946, um conjunto de vinte ensaios que se define como ―não só um momento privilegiado de confluência da pesquisa filológica e literária do Ocidente, nos termos da erudição clássica, como um exemplo ímpar da possibilidade de conexão entre a ciência da literatura: a filologia é uma técnica básica para todo o estudo do literário, mas não o abrange. Em resumo: embora a filologia seja concebida para o literário, não deixa de ser uma técnica de análise, sem se identificar, portanto, com qualquer estudo literário. [...] Também neste campo, a filologia tem, em geral, a consideração de instrumento auxiliar‖. 16 Nesse caso, optei pelo uso do H maiúsculo para assegurar, na escrita, o modelo de humano sobre o qual recaíam os estudos do humanismo antropocêntrico, a ser compreendido e problematizado mais adiante, nesta seção.

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análise diacrônica e sincrônica e da fecundidade de sua aplicação para uma leitura atualizada dos grandes textos da criação literária‖. Dessa forma, retomo que a perspectiva de Auerbach (1972 [1949]) propõe um regresso à Filologia Oitocentista como esplêndida ciência, cujo modelo começou a ser construído no humanismo quinhentista de caráter antropocêntrico, que integra diferentes saberes em torno de uma erudição canônica, buscando recuperar textos que manifestam os ideais de cultura de um povo e o ―espírito da nação‖. Confrontando a noção de Homem partilhada pelo Humanismo evidenciado nos estudos de Auerbach (1972 [1949]), Foucault (2013 [1967]), ao buscar compor um corpus geral das técnicas interpretativas, analisa o Homem estabelecido no humanismo quinhentista como centro de poder, isto é, como um lugar estratégico que produz interpretações a partir do reconhecimento e da semelhança. Segundo Foucault (2013 [1967]), essa noção de Homem, ao atravessar o que Freud, em 1933, denominou tríplice humilhação, tem sido deslocada sistematicamente. Foucault (2013 [1967]) aponta três feridas narcísicas, já apresentadas por Freud em 1933, capazes de confrontar a noção de Homem como centro de poder. A primeira ferida, de ordem cosmológica, foi estabelecida por Copérnico, ao descobrir que a Terra onde habita o homem gira em torno do Sol, estando a ele submetida. A segunda ferida, considerada biológica, foi de responsabilidade de Darwin, quando, ao cunhar a sua teoria de A origem das espécies, propôs que o homem descende do primata. Por fim, ao submeter a consciência humana ao inconsciente, Freud estabeleceu a terceira ferida, de ordem psicológica. Dessa forma, Foucault (2013 [1967]) questiona-se em que medida Nietzsche, Freud e Marx abrem as feridas que, na pós-modernidade, resultam em um reposicionamento do Homem, que deixa de ser observado como centro estável de poder e passa a ser analisado como um construto histórico. Atravessado por um deslocamento de poder, o homem ao qual se refere Foucault (2013 [1967]) já não seria um centro hegemônico e, como tal, é grafado em minúsculas, diferenciando-se do Homem referido por Auerbach (1972 [1949]) e por outros teóricos do humanismo hegemônico. Mais adiante, Kristeva (2013, p.409) aponta que, no século XXI, o Homem (com H maiúsculo) não existirá, e, tampouco, haverá um

[…] ‗valor‘ ni un ‗fin‘ superiores; ningún descenso de lo divino por medio de los actos más elevados de algunos hombres que son llamados ‗genios‘ desde el Renacimiento. Después de la Shoah y del Gulag, el humanismo tiene el deber de recordar a los hombres y a las mujeres que, si nos consideramos a nosotros mismos como los únicos legisladores, es únicamente por la puesta en cuestión continua de nuestra situación personal, histórica y social que podemos decidir acerca de la

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sociedad y de la historia. Hoy en día, lejos de desglobalizar, es necesario inventar una nueva reglamentación internacional para regular y controlar las finanzas y la economía globalizada y crear finalmente una gobernanza mundial ética, universal y solidaria17 (KRISTEVA, 2013, p.409).

O reposicionamento do homem proposto por Foucault (2013 [1967]) visa à construção de uma nova hermenêutica, na qual a interpretação será como um jogo de espelhos, que sempre volta para si (FOUCAULT, 2013 [1967], p.44), e, por isso, é infinita, heterogênea e não hegemônica. A crítica foucaultiana ao humanismo se constrói, então, como uma autocrítica que, segundo Moutinho (2004, p.172) em Humanismo e anti-humanismo: Foucault e as desventuras da dialética, se realiza na descoberta do vínculo estreito entre as ciências humanas e as experiências humanas consideradas negativas, de modo que:

A radicalização do negativo conduz Foucault à ideia de uma experiência sem sujeito e põe fim ao seu projeto original de tipo fundacionista, bem como a todo solo sobre o qual o humano pudesse se assentar. Para isso, Foucault teve que superar os sortilégios da dialética, verdadeira matriz de todos os humanismos, e seu interminável jogo do ―mesmo‖ e do ―outro‖(MOUTINHO, 2004, p.171).

Enquanto a crítica foucaultiana foi conduzida ao anti-humanismo e aos estudos das relações de poder, Edward Said resistiu, através da Filologia, propondo, em Humanismo e Crítica Democrática (2007 [2004]), outro caminho epistemológico no qual o termo humanismo compreenderia sentidos bastante amplos e suscitaria questionamentos sempre que se inserem palavras num discurso que se originam da mesma raiz, como ―humano‖, ―humanidade‖ (SAID, 2007, p.25). De fato, ―historicamente, o humanismo esteve associado a ideias etnocêntricas, promotoras de uma espécie de colonialismo cultural, cujo motor principal foi engendrar políticas de reprodução e perpetuação de formas de vida marcadamente europeias‖ (SANTOS, L., 2016, p.113). É por isso que a proposta de Said para a Filologia é de uma ética de leitura, que propõe a busca pelas produções culturais de resistência, não canônicas, para reinseri-las na história. Edward Said (2007 [2004]) aponta para uma concepção geral do termo humanismo como

17 Tradução livre: ―[...] 'valor' nem um 'fim' superiores; nenhuma descida do divino através dos atos mais elevados de alguns homens que são chamados de ‗gênios‘ desde o Renascimento. Depois da Shoáh e do Gulag, o humanismo tem o dever de lembrar aos homens e mulheres que, se nos consideramos os únicos legisladores, é somente por causa do contínuo questionamento de nossa situação pessoal, histórica e social que podemos decidir sobre sociedade e história. Hoje em dia, longe de se desglobalizar, é necessário inventar uma nova regulamentação internacional para regular e controlar as finanças e a economia globalizada e, finalmente, criar uma governança global ética, universal e solidária.‖

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[...] noção secular de que o mundo é feito por homens e mulheres, e não por Deus, e que pode ser compreendido racionalmente segundo o princípio formulado por Vico em A ciência nova, de que só podemos realmente conhecer o que fazemos ou, para dizer de outra maneira, podemos conhecer as coisas segundo o modo como foram feitas (SAID, 2007 [2004], p.29-30, grifo meu).

A proposta de Said (2007 [2004]), ao retomar o pensamento de Vico para o estabelecimento de um novo humanismo, baseia-se na crítica secular e na contextualização dos objetos estudados, a fim de buscar compreender como eles se construíram como tal (o modo como as coisas foram feitas), de modo que sua problemática do humanismo estaria

[...] aberta às especificidades do mundo contemporâneo, e não como uma forma patrimonialista de salvaguarda de tradições, isolacionismo cultural, exclusivismo ou hierarquização. O que anima o humanismo saidiano é a reintrodução de noções histórico-humanistas, seculares e mundanas, dentro do contexto do recrudescimento de políticas conservadoras e tradicionalistas no campo das humanidades, e do agravamento de conflitos e ideias beligerantes entre culturas tidas como apartadas e rivais (SANTOS, L., 2016, p.113).

Kristeva (2013), ao pensar o modelo humanista para o século XXI, estabeleceu dez princípios para a refundação do humanismo como uma aposta do novo século, que podem ser aqui resumidos em: i. ―no es un teomorfismo‖18 e, por tal razão, ―el Hombre con mayúscula no existe‖19 (KRISTEVA, 2013, p.409); ii. desenvolve-se por rupturas, inovações que se propõem a facilitar ―la cohabitación de las memorias culturales construidas en el curso de la historia‖20 (p.410); iii. ―el humanismo es el encuentro de las diferencias culturales favorecido por la globalización‖21 (p.410); iv. compreende a liberação do desejo empreendida pela psicanálise, o que significa que o humanista tem um corpo, é materializado, seguindo a máxima de Santa Teresa de Ávila ―no somos ángeles, tenemos un cuerpo‖22 (p.410); v. é feminista, pois ―la liberación de los deseos tenía que conducir a la emancipación de las mujeres‖23 (p.410); vi. combate o automatismo em curso da espécie humana (o que faz através do reconhecimento da singularidade como expressão da experiência interior); vii. compreende que ―la historia no es pasado‖24 (p.411), mas habita o presente; viii. investiga o multiverso, os espaços cósmicos, a ―multiplicidad de culturas, de religiones, de gustos y de creaciones‖25

18 Tradução livre: ―não é um teomorfismo‖. 19 Tradução livre: ―o Homem com maiúscula não existe‖. 20 Tradução livre: ―a coabitação das memórias culturais construídas no curso da história‖. 21 Tradução livre: ―é o encontro das diferenças culturais favorecido pela globalização‖. 22 Tradução livre: ―não somos anjos, temos um corpo‖. 23 Tradução livre: ―a liberação dos desejos tinha que conduzir à emancipação das mulheres‖. 24 Tradução livre: ―a história não é passado‖. 25 Tradução livre: ―multiplicidade de culturas, de religiões, de gostos e de criações‖.

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(p.411); ix. acompanha a revolução antropológica, por isso, tem uma finalidade prática; e x. entende que ―el hombre no hace la historia, pero la historia somos nosotros‖26 (p.409-411). A aposta humanista para o século XXI desenhada por Kristeva (2013) coaduna-se com a defesa do papel crítico (interpretativo), e político (ideológico, movido por convicção) dos intelectuais que se afirmam a favor da democracia:

O trabalho do intelectual [...] visa à eliminação dos particularismos repressivos, que impedem a fruição concreta dos direitos universais do homem. É o que chamo a ética da universalização. Na arena interna, universalizar significa outorgar a toda a população os benefícios materiais e culturais que por enquanto se concentram em uma pequena minoria. E significa, na arena internacional, combater as discrepâncias de riqueza entre as nações, através de uma nova divisão internacional do trabalho, e as discrepâncias de poder, através da implantação de uma democracia mundial (ROUANET, 2006, p.82, grifos meus).

Segundo Rouanet (2006), o trabalho do intelectual, tendo relação umbilical com a democracia, visaria à eliminação dos particularismos repressivos e popularizaria benefícios materiais e culturais. A despeito de partilhar dessa perspectiva, sobretudo por valorizar a relação do intelectual com o combate à discrepância de riqueza e de poder, considero, porém, perigosa e contraditória a expressão ―democracia mundial‖, que pode tender a uma ideia totalitária e despótica. Por isso, faço o adendo sob as palavras de Bobbio (1993 [1988]), ao pontuar que, como modelo político, a democracia possui limites, pois corresponde à carga ideológica da maioria, sendo eliminatória àqueles que se veem contra as opções disponíveis em seu contexto social. Bobbio (1993 [1988], p.57) fala em ―tirania da maioria‖, remetendo ao pensamento de Alexis de Tocqueville: ―o perigo que a democracia corre como progressiva realização do ideal igualitário é o nivelamento, cujo efeito final é o despotismo. São duas formas diversas de tirania, e, portanto, ambas, embora de maneira diversa, são a negação da liberdade‖ (BOBBIO, 1993 [1988], p.57). O princípio de maioria é, nessa perspectiva, um princípio igualitário apenas ―na medida em que pretende fazer com que prevaleça a força do número sobre a força da individualidade singular‖ (BOBBIO, 1993 [1988], p.58, grifo meu). É justamente sobre a força do número que reside o medo das minorias politicamente organizadas e reivindicativas nas sociedades. Sobre esse aspecto, enfoco o trabalho de Arjun Appadurai, O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva (2009 [2006]), que se propõe a explicar, sob uma perspectiva deslocalizada, liberal e globalizada, a violência mundial e urbana, mobilizando a influência dos media como catalisadores da construção identitária e da territorialização dos discursos. Na investigação empreendida, Appadurai

26 Tradução livre: ―o homem não faz a história, mas a história somos nós‖.

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compreende maiorias e minorias como ―invenções históricas recentes, essencialmente vinculadas a ideias sobre nação, população, representação e enumeração‖ (APPADURAI, 2009 [2006], p.45), que se configuram muito mais em uma denominação política do que numérica, e existem em relação à outra. Ao buscar compreender as razões pelas quais as minorias, na conjuntura globalizada, implicam medo e, em decorrência disso, raiva, Appadurai propõe uma análise da construção das identidades coletivas, para refletir como e porque tais identidades podem tornar-se predatórias, ou seja, requerer ―a extinção de outras categorias sociais próximas, definidas como ameaças à própria existência de algum grupo, definido como ‗nós‘‖ (APPADURAI, 2009 [2006], p.46). Sendo predatória, a ideologia majoritária impõe às outras coletividades a condição de subalternidade, que se configura, nos termos de Spivak (2010) em uma ―violência epistêmica, uma tática de neutralização, silenciamento e expropriação de representação do outro‖, que, necessariamente, é distanciado do ―nós‖ para justificar a violência colonizadora. Em última análise, avalio que a noção de ―democracia mundial‖ poderia recair em um romantismo universalista de neutralização da diversidade expressa no multiverso – sob o pano de fundo do multiculturalismo apontado por Kristeva (2013) – , o que seria a negação da própria ―fruição concreta dos direitos universais do homem‖ (ROUANET, 2006, p.82). Feito o adendo ao termo supracitado, reitero a importância, apontada por Rouanet, de compreender o lugar político e sociológico do intelectual, que:

[...] é alguém que se define sociologicamente, por ocupar um lugar, como trabalhador não manual, no processo de produção e reprodução da cultura – é um médico, um físico, um professor universitário, um jornalista, um romancista. E define-se, politicamente, por sua relação umbilical com a democracia, e por sua vocação para desprender-se do seu lugar social, com vistas a agir no espaço público com base em normas e princípios universais (ROUANET, 2006, p.74-75).

A condição do intelectual é, nessa perspectiva, permeada pela contradição de ser e não ser burguês, isto é: o intelectual ocupa um lugar definido na divisão social do trabalho e, ao mesmo tempo, detentor dos meios de produção do saber que ele utiliza em prol do universalismo cognitivo, ético e político, exercendo uma ―função excedente, supranumérica, cumprindo um mandato que ninguém lhes deu‖ (ROUANET, 2006, p.73). Das minhas leituras de Foucault (2013 [1967]), Kristeva (2013) e Rouanet (2006), observo que o descentramento da noção de Homem acompanhou uma série de outros descentramentos de hierarquias de poder que suscitaram novas definições de papéis sociais,

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políticos e científicos. No âmbito filológico, a noção texto – que, na teoria da edição crítica, segundo a Crítica Textual Tradicional, centrava-se no arquétipo pretendido, idealizado pelo autor e reconstituído pelo filólogo (em Lachmann), ou no testemunho eleito como bom manuscrito a ser editado (em Bédier) – sofreu uma desestabilização sistemática ao longo do desenvolvimento de estudos aplicados a textos modernos, que culminaram com a diversificação das atividades filológicas, com o desenvolvimento da Crítica Genética e da Sociologia dos Textos, e com uma redefinição do papel social, político e científico do filólogo como intelectual humanista. Dessa forma, analisar a desconstrução do paradigma científico, social, político e humanista moderno que modificou o lugar do filólogo envolve compreender os deslocamentos de conceitos de texto, autor, obra, edição, como propôs Lourenço (2009).

2.1.1 O texto na Filologia: entre paradigmas e teorias editoriais

As tarefas filológicas mais remotas estavam ligadas ao desejo de compreender as ―sociedades e civilizações antigas através de documentos legados por elas, privilegiando a língua escrita e literária como fonte de estudos‖ (HOUAISS et al., 2001, s.v. Filologia). Dessa concepção, emergiram as atividades hermenêuticas que visavam à interpretação de aspectos pouco compreensíveis em textos do patrimônio cultural da antiga Grécia. Nesse contexto, trata de atividades ligadas à erudição, que se representam na definição do termo Filologia como ‗amor à palavra‘ e filólogo como amante da palavra, como se denominavam os estudiosos da Biblioteca de Alexandria, no século III a.C., quando faziam a exegese dos textos, a partir da inserção de glosas e notas explicativas, a fim de facilitar a compreensão destes para os homens de seu tempo. Mesmo tendo sofrido modificações em seu campo de trabalho ao longo dos séculos, a Filologia sempre tomou como objeto de estudo o texto, tendo como objetivo último preservar e transmitir a memória (seja ela literária, histórica, linguística, cultural), o que se fez, ao longo do tempo, através da edição, da exegese, da hermenêutica e da organização ou disposição de textos. Ressalto que foi compreendendo esse conjunto de atividades ligadas à história, memória e preservação, à circulação e leitura de textos, que o termo filólogo fixou-se, inicialmente pelo erudito Heródoto (entre os séculos V e IV a.C.), considerado hoje o primeiro historiador de que se tem registro na tradição ocidental e, posteriormente, com Eratóstenes (século II a.C.), diretor da biblioteca de Alexandria. A noção de texto, por sua vez, bem como as tarefas filológicas, sofreram alterações ao longo da história de modo que o texto não é, para o filólogo, um fim em si mesmo. Ele é

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tomado para estudo como testemunho da sociedade e da cultura de uma época; para o estabelecimento de edições que busquem recuperar o patrimônio cultural escrito da humanidade; como fonte de dados linguísticos de diferentes períodos; ou como registros documentais necessários à construção de uma história literária. É em função da diversificação da noção de texto – admitido como testemunho da cultura pessoal ou social em um determinado contexto sócio-histórico – que se diversifica a práxis filológica, situada na interface com diversos estudos para a compreensão do seu objeto. Dessa forma, diferentes compreensões de texto suscitam teorias e práticas editoriais específicas. Na abordagem imanentista sob a qual se estabeleceu a teoria da edição crítica proposta por Karl Lachmann (1850), o texto seria uma abstração imaterial, arquetípica e, sobretudo, centrada na ideia de unicidade. Os testemunhos seriam fragmentos que auxiliariam o crítico na tarefa de reconstrução do arquétipo perdido. Joseph Bédier (1890), ainda que pautado em uma fenomenologia do texto, valorizando sua materialidade através do ―bom manuscrito‖, manteve-se como partidário da teoria da edição crítica, assim como Giorgio Pasquali (1934) e Gianfranco Contini (1982 [1937]). Ao publicar a Storia della tradizione e critica del testo, Pasquali (1934) buscou revalorizar a tradição textual como elemento substancial na crítica do texto, observando os testemunhos como indivíduos históricos, produtos de uma determinada configuração cultural que ―poseen uma específica fiosionomía cultural, razón por la cual la crítica del texto há de ir acompañada de la historia de la tradición‖27 (PÉREZ PRIEGO, 1997, p.36). Para Spaggiari e Perugi (2004), Pasquali (1934) construiu, dessa maneira, uma abertura para uma aproximação entre a Crítica Textual e a História Cultural, pois, na perspectiva de seu trabalho,

é preciso, de fato, estudar as vicissitudes do texto ao longo dos séculos, e examinar as modalidades da sua transmissão, porque o texto vive e opera no meio cultural no qual é lido, copiado, difundido; e cada manuscrito é um testemunho precioso da história da tradição (SPAGGIARI; PERUGI, 2004, p.41, grifo meu).

Em seu trabalho, Pasquali (1934) desenvolveu reflexões sobre o método lachmanniano apresentado por Paul Maas (1927) em seu manual Textkritik, e elaborou a diferença entre crítica do texto e história da tradição. Para o estudo das variantes textuais, Pasquali (1934) estabeleceu um critério geográfico, buscando distinguir transmissão vertical (cronológica) e horizontal (geográfica) dos textos, recensão fechada e recensão aberta, codices potiores e codices deteriores. Para Spaggiari e Perugi (2004), Pasquali foi um dos primeiros críticos a

27 Tradução livre: ―têm uma fisionomia cultural específica, razão pela qual a crítica do texto deve ser acompanhada pela história da tradição‖.

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dar relevo ao aspecto sociocultural dos textos, engajando-se no estudo da história da tradição e estabelecendo novos critérios para trabalhar com variantes de autor. O trabalho de Pasquali (1934) construiu um novo olhar sobre as variantes, que passaram a se distinguir entre variantes de copistas (evolutivas ou da tradição) de variantes autorais, na chamada crítica das variantes, cuja fundamentação teórica foi desenvolvida por Gianfranco Contini (1947), em Esercizî di lettura sopra autori contemporanei con un'appendice su testi non contemporanei. Ao desenvolver um estudo sobre o poema épico quinhentista Orlando Furioso, do italiano Ludovico Ariosto, em 1516, Contini (1937), em Come lavorava l‟Ariosto, construiu o que atualmente corresponde à Filologia de autor, realizando uma investigação de espólios autorais e identificando a presença de redações múltiplas. As contribuições de Pasquali (1934), com a história da tradição, e de Contini (1937), com a crítica das variantes, foram fundamentais para desestabilizar a noção de texto como obra imutável, única, fruto de uma inspiração divina. Uma vez que, a partir de Contini (1937), identifica-se a presença de variantes autorais, o texto passou a ser entendido como um trabalho, resultado de um processo criativo e laboroso (um ponto fundamental para a Crítica Genética), situado historicamente, culturalmente, socialmente e geograficamente (ideia construída por Pasquali que fundamenta a Sociologia dos Textos). Mesmo que o ―bom manuscrito‖ de Bédier, a história da tradição de Pasquali, e a crítica das variantes de Contini tenham promovido diversificações na concepção teórica de texto, a práxis filológica ainda se situava sob o paradigma da teoria da edição crítica, estabelecendo como resultado de pesquisa a edição de um texto único, acompanhado do aparato de variantes. De fato, o confronto teórico que promoveu o desenvolvimento de novas metodologias de edição ocorreu, principalmente, com base no trabalho com textos modernos28, entre representantes das escolas inglesa, estadunidense, alemã e francesa29, a

28A textualidade moderna, caracterizada pelas produções posteriores à invenção da imprensa, apresenta-se de maneira plural e registra múltiplas etapas da criação e circulação do texto. Noto que Contini (1937) estabeleceu a crítica das variantes ao estudar textos modernos, a partir dos quais conseguiu distinguir as variantes produzidas pelos tipógrafos e mediadores textuais e as variantes produzidas pelo autor, nos manuscritos submetidos à publicação. 29Destaco ainda, embora este trabalho não tenha dado o devido relevo, a escola eslava, com o desenvolvimento da Textologia, termo estabelecido por Tomachevski, em 1928, em O escritor e o livro: esboço de textologia, e aprofundado por Likatchev, em 1962. Considerada a ―ciência autônoma da história da obra‖ (GRÉSILLON, 2007 [1994], p.235), a textologia encontrou espaço no panorama dos estudos ocidentais sobre o texto a partir da publicação de Introduction à la Textologie: Vérification, Établissement, Édition des Textes, pelo francês Roger Laufer (1980). Para ele, ―a textologia cuida da boa utilização dos signos tipográficos: ela se aplica somente a textos já tipografados ou pelo menos pré-tipografados, isto é, compatíveis com o sistema. Ela é uma semiologia científica dos textos porque descarta a significação humana, filosófica, etc., em proveito do sentido operatório dos signos entendidos como fundadores do espaço da textualidade‖ (LAUFER, 1980, p.xiii).

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partir da refutação da abordagem intencionalista representada por Philip Gaskell (1972), Walter Greg (1973 [1950]), Fredson Bowers (1975) e Thomas Tanselle (1980 [1975]); das contribuições da escola alemã, com o aparato sinóptico proposto por Friedrich Beiβner em 1937 e com o modelo histórico-crítico apresentado por Hans Zeller (1975), que promoveu diversificações nas teorias de texto e práticas editoriais, como a Crítica Genética, na França, definida em 1966, por Louis Hay (1979) e, posteriormente, Jean Bellemin-Noël (1972), Almuth Grésillon (2007 [1994]) e Pierre-Marc de Biasi (2010 [2000]); e a teoria social de edição, construída por Jerome McGann (1983) e Donald McKenzie (2005 [1985]). Sob o amálgama do intencionalismo, compreendo três teorias: a teoria do copy-text, a teoria da intenção final, e a teoria social da edição. A primeira, que estabeleceu as bases dessa abordagem, foi definida pelo inglês Walter Greg (1973 [1950]), em The Rationale of Copy- Text, cujo termo foi usado pela primeira vez por McKerrow (1939), na sua teoria eclética da edição, proposta na Prolegomena for the Oxford Shakespeare. Nesse trabalho, McKerrow já apresentava as bases do intencionalismo (LOURENÇO, 2009, p.194), propondo que o editor seguisse as lições do texto de base (o copy-text) na preparação da edição. Em resposta ao trabalho de McKerrow (1939), Greg (1973[1950]) discordou do excesso de confiança depositado no copy-text e propôs uma distinção das variantes de transmissão entre accidentals (não intencionais) e substantives (modificações inseridas no texto com objetivo de modificá-lo). Greg qualificou o ecletismo de McKerrow como ―[…] an attempt to reduce textual criticism to a code of mechanical rules‖30 (GREG, 1973 [1950]). Ao refutar a teoria eclética pelo seu próprio caráter arbitrário, Greg concluiu que McKerrow ―[...] relapsed into heresy in the matter of the substantive readings‖ (GREG, 1973, 1950]), Fredson Bowers (1975), nos Essays in Bibliography, Text and Editing, dando continuidade ao trabalho empreendido por Greg, desenvolveu a teoria da intenção autoral final, situando a escolha do copy-text no testemunho que expressa a intenção final do autor. Sobre seu trabalho, afirma McGann (1983):

Greg never sought to interpret his rationale in therms of authoral intentions, this is precisely what Bowers would later propose. As a consequence, the theory of authorial intentions was formulated not merely as an explanation of the rationale of copy-text, but as a rule which would be asked to govern both the choice of the copy- text and the choice of the textual version as well31 (MCGANN, 1983, p. 28).

30 Tradução: ―[...] uma tentativa de reduzir a crítica textual a um código de regras mecânicas‖. 31 Tradução livre: ―Greg nunca buscou compreender sua Rationale em termos de intenções autorais, isto é exatamente o que Bowers proporia mais tarde. Como consequência, a teoria de intenções autorais foi formulada não simplesmente como uma explicação da razão do copy-text, mas como uma regra que seria solicitada para reger tanto a escolha do copy-text quanto a escolha da versão textual‖.

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O princípio sobre o qual se baseia a teoria do copy-text é o da escolha do texto de base, que deve refletir a intenção final expressa pelo autor, excluindo a ação dos diferentes mediadores que interferem no processo de publicação e circulação de um texto:

Caso o editor esteja na posse do manuscrito final e da primeira edição, a linha representada por Greg e por Bowers prescreve que o texto de base deve ser o manuscrito, e isto essencialmente por duas razões: 1) o manuscrito está obviamente isento de qualquer erro introduzido pelo tipógrafo e logo, eventualmente, não advertido pelo autor na fase de correção das provas; 2) o manuscrito conserva as variantes de forma, que vão perdidas muitas vezes na sequência das intervenções de outras pessoas (o compositor, o impressor e o revisor) (SPAGGIARI; PERUGI, 2004, p. 181).

Essa fórmula, porém, não deve ser considerada regra, uma vez que desconsidera conceitos como versão textual e autoridade múltipla, estabelecidos, respectivamente, por Hans Zeller (1975) e Philip Gaskell (1972), e incorporados ao trabalho de Thomas Tanselle (1975) que, de maneira mais profícua, representou e desenvolveu a teoria da intenção final autoral. Entendida como uma derivação da teoria da edição crítica, a teoria da intenção final aplica-se aos textos modernos, seguindo a prática de estabelecimento de um texto único, entendido como o texto representativo da última vontade do autor (registrada no copy-text), acompanhado do aparato de variantes. É importante notar que, nessa perspectiva, o método filológico começa a ser flexibilizado em função do texto que se estuda. Em Recent Editorial Discussion and the Central Questions of Editing, publicado na coletânea Studies in Bibliography, Thomas Tanselle (1980 [1975]), tensiona as definições de copy-text, especialmente em relação à pontuação e à ortografia, e repensa a escolha do texto de base das edições críticas ao afirmar que

The reason so much attention has focused on the choice of copy-text is not that it is a necessary first step in critical editing but that in most cases variants appearing to be indifferent do seem to occur, so that one needs a principle for favoring one text over another. Generally speaking, an editor has less to go on when judging variants in punctuation and spelling than when judging variants in wording, and for that reason the text chosen as copy-text often supplies most of the punctuation and spelling for the critical text. But the editor is free, of course, to make rational decisions regarding spelling and punctuation when the evidence permits; conversely, variants in wording can sometimes seem indifferent, and the impasse is resolved by adopting the copy-text reading. It is not logically necessary, therefore, to distinguish spelling and punctuation from wording in arriving at a rationale for selecting a copy-text, for a copy-text is simply the text most likely to provide an authorial reading (in spelling, punctuation, or wording) at points of variation where one cannot otherwise reach a decision. The way in which spelling and punctuation may sometimes usefully be segregated from wording results from the fact that persons involved in textual transmission have frequently regarded spelling and punctuation as

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elements that they could alter more freely, or be less careful about, than the words; in situations where this generalization can be thought to apply, therefore, it will be one of the factors involved in editorial decisions, As for a general rationale for choosing a copy-text, one can draw on testimony from all periods, as well as on common sense and everyday experience, to show that texts can be expected to deteriorate as they are transmitted. It follows, therefore, that a copy-text should be an early text — one as near to the au thor’s manuscript as possible, if not that manuscript itself — whenever the individual circumstances do not suggest a different text as the more reasonable choice. When they do, then by all means another text should be chosen: the purpose of the general guideline is not to restrict thought or to force particular situations into a common mold. One begins with the variants about which one can reason (from both external and internal evidence) and reach a conclusion; for any remaining variants, one must be guided by the trustworthiness — in general or in particular respects — that one can attach to each text. If this process leads to the choice of a later rather than an earlier text as more trustworthy, then one of course chooses the later text; accepting the general observation that texts deteriorate in transmission does not mean that individual decisions cannot constitute exceptions to the generalization (TANSELLE, 1980 [1975], p.64-65, grifos meus).32

Philip Gaskell (1972), ao buscar redefinir o campo de trabalho da Bibliografia material em A New Introduction to Bibliography, verificou, a partir da análise bibliográfica do processo de produção de livros, que o texto final pode corresponder a apenas mais uma fase do processo de redação. Dessa forma, em alguns casos, o manuscrito primeiro pode ser mais próximo da vontade autoral que o texto final, em que se percebe a possibilidade de submissão à ação de revisores e sujeitos diversos, atores sociais e culturais, configurando-se como produto de autoridade múltipla. Por isso, apesar de portar-se como historicista (LOURENÇO,

32 Tradução livre: ―A razão pela qual tanta atenção tem se concentrado na escolha do copy-text não é que ele seja um primeiro passo necessário na edição crítica, mas que, na maioria dos casos, variantes aparentemente indiferentes parecem ocorrer, de modo que é necessário um princípio para favorecer um texto sobre o outro. De um modo geral, um editor tem menos o que decidir quando julga variantes de pontuação e grafia do que quando julga variantes lexicais e, por essa razão, o texto escolhido como copy-text geralmente fornece mais de pontuação e grafia para o texto crítico. Mas o editor é livre, é claro, para tomar decisões racionais em relação à grafia e à pontuação quando a evidência permite; por outro lado, variantes lexicais podem às vezes parecer indiferentes, e o impasse é resolvido adotando-se a leitura do copy-text. Não é logicamente necessário, portanto, distinguir a grafia e a pontuação do léxico ao se chegar a uma justificativa para selecionar um copy-text, pois um copy-text é simplesmente o texto mais provável para fornecer uma leitura autoral (em grafia, pontuação ou léxico) em pontos de variação em que, de outra forma, não se pode tomar uma decisão. A maneira pela qual a grafia e a pontuação podem às vezes, de uma forma útil, serem separadas do léxico resulta do fato de que as pessoas envolvidas na transmissão textual têm frequentemente considerado a grafia e a pontuação como elementos que elas poderiam alterar mais livremente, ou serem menos cuidadosas do que seriam em relação às palavras; em situações em que se pode pensar que essa generalização se aplica, portanto, esse será um dos fatores envolvidos nas decisões editoriais. Para um raciocínio geral em relação à escolha de um copy-text, pode- se extrair testemunhos de todos os períodos, bem como de senso comum e experiência cotidiana, para mostrar que se pode esperar que os textos se deteriorem à medida que são transmitidos. Segue-se, portanto, que um copy- text deve ser um texto anterior - um tão próximo do manuscrito do autor quanto possível, se não o próprio manuscrito - sempre que as circunstâncias individuais não sugerirem um texto diferente como a escolha mais razoável. Quando isso ocorrer, então, outro texto deve ser escolhido: o objetivo da diretriz geral não é restringir o pensamento ou forçar situações particulares a um modelo comum. Começa-se com as variantes sobre as quais se pode raciocinar (a partir de evidências externas e internas) e chegar a uma conclusão; para as demais variantes, deve-se guiar pela confiabilidade - em sentido geral ou particular - que se pode incorporar a cada texto. Se esse processo levar à escolha de um texto posterior, em vez de um anterior, como mais confiável, então, é claro, escolhe-se o texto posterior; aceitar a observação geral de que os textos se deterioram na transmissão não significa que as decisões individuais não possam constituir exceções à generalização.‖

50

2009, p.213), Gaskell admitiu a correção da pontuação e grafia nos trabalhos de edição, e avaliou que, em termos cronológicos, a intenção ―última‖ (posterior) e a intenção ―definitiva‖ coincidem na maior parte das vezes. Porém, o ―original manuscrito‖ nem sempre será ―autógrafo‖, uma vez que é difícil identificar a vontade autoral em edições (póstumas ou não) organizadas por parentes e amigos do autor. Em A new approach to the Critical Constitution of Literary Texts, Hans Zeller, em 1975 afirmou que as fases de redação não seguem necessariamente uma ordem hierárquica, e cunhou o termo versão, sugerindo que ―[...] texts frequently exist in several versions no one of which can be said to constitute itself the ‗final‘ one‖33 (apud MCGANN, 1983, p. 32). Para Zeller, a cada nova versão, registra-se uma nova intenção, de modo que ―a regra da intenção final não pode ser seguida em todas as circunstâncias‖ (LOURENÇO, 2009, p.217). Os princípios estabelecidos por Zeller (1975) – as intenções autorais mudam, a depender do contexto, de modo a falar em versões – e Gaskell (1972) – diferentes agentes atuam no processo de produção e inserem elementos no texto ao longo do processo de transmissão – desconstruíram a ideia de texto como elemento estável e único, como propõem a Sociologia dos Textos e a Crítica Genética. Nessas duas perspectivas, o texto é estudado em sua variabilidade, como um processo, resultado de uma construção interpretativa, dinâmica, histórica e social, decorrente de uma mudança na noção de autoria que promoveu – além do estabelecimento dos dois campos de estudo supracitados – alterações na práxis editorial. Destarte, ao considerar a pluralidade de textos, entendo que, sob a influência da Crítica Genética, o autor passa a ser pensado em seus múltiplos papéis (escritor, leitor, crítico, revisor), ao passo que a Sociologia dos Textos contribuiu para uma redefinição metodológica que considerasse, na prática editorial, os diferentes agentes que afetam a materialidade do texto (além do autor, tem-se revisor, editor, diagramador, entre outros, de acordo com as especificidades do texto estudado). No caso dos textos teatrais produzidos no período da ditadura civil-militar, identifico a influência de múltiplos agentes, desde censores aos sujeitos envolvidos com a produção cênica: atores, cenógrafos, diretores, produtores, críticos e jornalistas, que interferem, direta ou indiretamente, na produção dos textos. Tendo seu marco inicial em 1966, a Crítica Genética desenvolveu-se a partir de Louis Hay, que iniciou o trabalho de análise dos manuscritos de Heine, adquiridos pela Biblioteca Nacional da França, e formou, em 1968, uma equipe de pesquisadores encarregada de

33 Tradução livre: ―[...] os textos existem frequentemente em várias versões, nenhuma das quais pode-se dizer que se constitui a versão final‖.

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classificar, explorar e editar a referida coleção (GRÉSILLON, 2007 [1994]). Apesar do marco em 1966, os autores já guardavam seus manuscritos muito antes de Heine. Victor Hugo, por exemplo, em 1881, deixou um Testamento Literário ―doando todos os seus manuscritos e tudo o que for encontrado, escrito ou desenhado por ele à Bibliothèque Nationale de Paris‖ (GRÉSILLON, 2007 [1994], p.119). O termo Crítica Genética, porém, só veio a existir em 1979, quando da publicação dos Essays de critique génétique (HAY, 1979). Apesar disso, somente em 1987, a UNESCO reconheceu os manuscritos modernos, objetos de estudo da gênese textual, como patrimônio cultural nacional. Em um primeiro momento, a Crítica Genética surgiu com a proposta de compreender a criação literária. Posteriormente, como aventou Daniel Ferrer (2002 [1999]), no manifesto A Crítica Genética do século XXI será transdisciplinar, transartística e transemiótica ou não existirá, novos objetos passaram a ser tomados para estudo, ocupando-se, atualmente, da criação de obras fílmicas, teatrais e plásticas, entre outras. Desse modo, buscando interpretar o processo de criação das obras literárias, construindo um percurso da gênese dos textos a partir dos manuscritos de trabalho legados pelos escritores, a Crítica Genética parte da ideia empreendida pela máxima proferida por Jacques Petit34, em 1975, de que ―o texto não existe‖ (HAY, 2002 [1985]) para afirmar que

[a] noção [de texto] é, com efeito, o resultado de uma evolução muito particular por sua dimensão histórica. Compreende um período de grande estabilidade que se inscreve numa longa duração e um período breve e recente de grandes mutações. (HAY, 2002 [1985], p.29).

Ao tratar da mudança de enfoque da noção de texto, Hay (2002 [1985]) recupera o conceito medieval de texto como tecido (do latim textus), evidenciando um processo, um trabalho de tessitura que, tal como a tela de Penélope, constrói-se em um eterno ir e vir (DUARTE, 2012). Segundo Hay (2002 [1985]), foi no século XVIII, quando também se desenvolvem políticas de proteção e preservação da propriedade intelectual, que o conceito de texto se estabilizou, mantendo-se inalterado por um longo período, até ser desestabilizado pela presença dos documentos de criação, indicadores de que

[...] não há mais fronteiras entre a criação em processo e seu resultado – a obra. O texto guardou todos os atributos formais do impresso, mas perdeu todas as qualidades substanciais: ele é ao mesmo tempo variante e invariante, definitivo e provisório, acabado e maleável ao infinito (LEBRAVE, 2003, p.91).

34 Afirma Louis Hay (2002 [1985]) que foi com esta expressão que Petit encerrou um debate no colóquio Les manuscrits: transcription, édition, signification, em Paris, 1975.

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A Crítica Genética busca, nessa perspectiva, compreender o manuscrito moderno como um objeto de tríplice aspecto: material, cultural e de conhecimento (GRÉSILLON, 2007 [1994]). Como objeto material, diferencia-se do objeto texto em seus próprios parâmetros materiais (suporte, instrumento, disposição no espaço gráfico e tipos e rituais de escrita). Como objeto cultural, é patrimônio, segundo a conferência da UNESCO de 1987, em carta assinada por mais de 30 países, o que o torna também objeto de especulação financeira, quando as bibliotecas iniciam uma corrida pelas coleções de manuscritos de escritores e quando surgem obras que narram a criação de outras obras. Por fim, sendo objeto de conhecimento, Gréssilon (2007 [1994]) considera que o manuscrito moderno deve-se construir também como objeto de diferentes disciplinas, especialmente a Crítica Genética, que, a seu ver, [...] instaura um novo olhar sobre a literatura. Seu objeto: os manuscritos literários, na medida em que portam o traço de uma dinâmica, a do texto em criação. Seu método: o desnudamento do corpo e do processo da escrita, acompanhado da construção de uma série de hipóteses sobre as operações escriturais. Sua intenção: a literatura como um fazer, como atividade, como movimento (GRÉSILLON, 2007 [1994], p.19).

Enquanto a Crítica Genética ocupava-se de construir uma ideia de texto como processo criativo, cuidando das etapas referentes à sua gênese, a Sociologia, campo que se estabeleceu no século XIX, incorporou o estudo das ―realidades del desarrollo, la estrutura y la función sociales35‖ (SPENCER apud MCKENZIE, 2005 [1985], p.32) à compreensão dos textos em seus aspectos material e social, resultando na perspectiva da Sociologia dos Textos difundida por Donald Francis McKenzie, em Bibliography and the Sociology of Texts. No âmbito da Crítica Textual, A Critique of Modern Textual Criticism, pode ser entendida como marco proposto por Jerome McGann (1983) para a formulação de uma teoria sociológica da edição, que surgiu da crítica à teoria intencionalista de Greg (1973 [1950]) e Bowers (1975), entendidos como idealistas (LOURENÇO, 2009). A teoria social da edição estabeleceu-se a partir da noção de texto como evento social. Tendo percebido os problemas da teoria no trabalho com as instabilidades textuais, McGann (1983) avaliou a necessidade de aplicar o princípio das relações sociais a uma nova forma de pensar as noções de autoria, texto e obra, entendendo que ―for an editor and textual critic the concept of authority has to be conceived in a more broadly social and cultural context‖ 36 (MCGANN, 1983, p.84).

35 Tradução livre: ―realidades do desenvolvimento, estrutura e funções sociais‖. 36 Tradução livre: ―para um editor e crítico textual, o conceito de autoria deve ser concebido em um contexto social e cultural‖.

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Nesse sentido, entendo a obra como um conjunto de textos de autoria de diferentes intervenientes, que não deve ser considerada desvinculada de um contexto histórico e cultural (LOURENÇO, 2009). Assim, ressalto que o trabalho do crítico textual sempre foi constituído de um estudo em perspectiva histórica cujo resultado é também um histórico, conforme assegura McGann (1983):

The critical edition is a historical edition, as we are often reminded. This means that (a) the method of investigating the text is carried out along historical lines, and (b) the actual edition will present, in its formatting operations, the evidence showing the historical development of the work from its originary moment to the present37 (MCGANN, 1983, p.90).

Na perspectiva sociológica da edição, as mudanças e as adaptações textuais são vistas como condições para que os textos possam ser lidos e inseridos em diferentes tempos e espaços, uma vez que, ―sean cuales sean sus metamorfoses, las diferentes formas materiales de um texto y las intenciones a las que sirven, los textos tienen que ver com personas, lugares y tempos específicos‖38 (MCKENZIE, 2005 [1985], p.74). Isso significa que reconhecer a relação entre materialidade e discursividade é pressuposto fundamental para a escolha de modelos editoriais que contemplem a materialidade do texto em perspectiva sócio-histórica. As formulações propostas por McGann (1983) são reforçadas por McKenzie (2005 [1985]) em Bibliography and the Sociology of texts, em que se identifica a Bibliografia Textual com a Sociologia dos Textos, a fim de evidenciar o caráter histórico e humano da produção textual e da própria Bibliografia, reaproximando-a da História Cultural. Dessa forma, considera-se o texto como produto cultural em constante mudança que existe em diferentes versões social e historicamente definidas. Mckenzie (2005 [1985]) parte da crítica a três teóricos da Bibliografia material para construir o seu modelo de Bibliografia como Sociologia dos Textos: Greg (1932), com a ideia de Bibliografia ―pura‖, cuja pureza da disciplina limitar-se-ia às suas ações concretas (MCKENZIE, 2005 [1985], p.28); Atkinson (1980), com a proposta de Bibliografia descritiva, relacionada à semiótica peirciana, que, para McKenzie (2005 [1985]), se fosse simplesmente icônica, só poderia produzir fac-símiles de versões distintas (p.28); e Bowers (1964), com a Bibliografia analítica, pautada na ideia de que ―las características materiales de

37 Tradução livre: ―a edição crítica é uma edição histórica, como somos frequentemente lembrados. Isto significa que (a) o método de investigação do texto é construído em linhas históricas e (b) a atual edição apresentará, nas suas operações de formatação, as evidências do desenvolvimento histórico do texto, do seu momento original até o presente‖. 38 Tradução livre: ―sejam quais forem suas metamorfoses, as diferentes formas materiais de um texto e as intenções a que servem, os textos têm a ver com pessoas, lugares e tempos específicos‖.

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un libro son ‗significantes en el orden y en el modo de sus formas, pero son indiferentes en significación simbólica‘‖39 (BOWERS apud MCKENZIE, 2005 [1985], p.28). O questionamento de McKenzie a respeito do modelo de Bibliografia apresentado por Bowers (1964) reside na ideia de que, ―si el medio siempre repercute sobre el mensaje, la bibliografía no puede excluir de sus propios fines la relación entre forma, función y significado simbólico‖40 (MCKENZIE, 2005 [1985], p.28). Entendida, portanto, como uma ―disciplina que estudia los textos como formas registradas, así como los processos de su transmisión, incluyendo su producción y su recepción‖41 (MCKENZIE, 2005 [1985], p.30, grifos meus), a Bibliografia Textual considera tais textos em todas as suas formas de registro material, e, entre os processos de transmissão, situam-se não apenas os de ordem técnica, mas também as ―motivaciones sociales, económicas y políticas de la edición, las razones por las que los textos fueron escritos y leídos como lo fueron, por qué fueron escritos de nuevo y rediseñados, o se dejó que muriesen‖42 (p.31). Desse modo, McKenzie (2005 [1985]) compreende o texto objeto material possuidor de caráter histórico, ou melhor, cuja materialidade evidencia sua própria história. Essa abordagem do texto como portador de materialidade histórica é um ponto sobre o qual compreendo a relação entre a teoria sociológica da edição e o segmento da História Cultural que tem por finalidade ―construir a história dos textos, das obras e das práticas culturais como uma história de dimensão dupla‖ (CHARTIER, 2010 [2007], p.34-35). Daí reside a ideia de McKenzie de que a aproximação da Bibliografia com a História Cultural resultaria na identificação daquela com a Sociologia dos Textos, que buscaria compreender as múltiplas realidades sociais às quais a imprensa serve; motivos e interações humanas que os textos carregam em sua produção, transmissão e consumo; o papel das instituições e suas estruturas complexas, e como afetam as formas do discurso social, passado e presente (MCKENZIE, 2005 [1985], p.32). Desse modo, a identificação da Bibliografia com a Sociologia dos Textos se justifica sobre três aspectos:

Al dirigir su atención hacia el objeto primario, el texto como forma registrada, define el punto de partida común para toda empresa histórica o crítica. Al abandonar la noción de bibliografía reduccionista y registrar todas las versiones sucesivas, la

39 Tradução livre: ―as características materiais de um livro são ‗significantes na ordem e no modo de suas formas, mas não são indiferentes em significação simbólica‘‖. 40 Tradução livre: ―se o meio sempre repercute sobre a mensagem, a bibliografia não pode excluir de seus próprios fins a relação entre forma, função e significado simbólico‖. 41 Tradução livre: ―disciplina que estuda os textos como formas registradas, assim como os processos de sua transmissão, incluindo produção e recepção‖. 42 Tradução livre: ―[...] motivações sociais, econômicas e políticas da edição, as razões pelas quais os textos foram escritos e lidos de novo e redesenhados, ou se deixou que morressem‖.

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bibliografía, simplesmente por su propia lógica global, su indiscriminada cobertura, testimonia el hecho de que nuevos lectores hacen, por supuesto, nuevos textos, y que sus nuevos significados son consecuencia de sus nuevas formas. Por tanto, se ha abandonado la pretensión de establecer una verdad que pudiese definirse por medio de una intención de autor y no como testimonio definido por su uso histórico. […] es una función bibliográfica muy simple registrar y mostrar su lectura – de hecho, a la luz de los intereses de una historia de cambio cultural, ponerla de manifiesto43 (MCKENZIE, 2005 [1985], p.46, grifos meus).

Ao ocupar-se do texto como um processo que envolve múltiplos sujeitos sociais, a teoria social da edição suscita uma práxis editorial que valoriza a variabilidade textual, buscando, ainda, preservar a historicidade de cada versão, abandonando a pretensão de verdade associada ao reflexo da intenção autoral que se pretendia alcançar com a edição crítica. Isso se verifica através da realização de edições que seguem o modelo sinóptico- crítico (em que se apresentam os múltiplos testemunhos lado a lado, em confronto); interpretativo (destacando cada testemunho isoladamente para editá-lo); e, se for o caso, genético (em que se evidencia o processo de criação). O desenvolvimento da Crítica Genética e da Sociologia dos Textos que aqui esbocei buscou ilustrar o processo de diversificação teórica iniciada no âmbito da Crítica Textual, a que se referiu Marquilhas (2010a). Observando a práxis editorial concernente a tais abordagens, David Kastan (2001), no estudar das obras de Shakespeare, diferenciou duas grandes tradições44 editoriais denominadas por ele platônica e pragmática, que se baseiam em concepções distintas a respeito de texto, obra e edição. Kastan (2001) propôs-se a realizar em seu trabalho Shakespeare and the book um confronto teórico entre a abordagem intencionalista, representada por Thomas Tanselle (1980 [1975]), e a teoria social da edição, trazida por Jerome McGann (1983). Kastan (2001) afirma que, na tradição platônica, o texto é uma essência imaterial que independe do suporte, já que a obra ―cannot exist in physical form‖45, os documentos sobreviventes sempre são ―imperfect guides to the work they attempt to transmit‖46

43 Tradução livre: Ao dirigir sua atenção ao objeto primário, o texto como forma registrada, define o ponto de partida comum para toda a empresa histórica ou crítica. Ao abandonar a noção de bibliografía reduccionista e registrar todas as versões sucessivas, a bibliografía, simplesmente por sua própria lógica global, sua indiscriminada cobertura, testemunha o fato de que novos leitores fazem, é claro, novos textos, e que seus novos significados são consequência de suas novas formas. Portanto, tem-se abandonado a pretensão de estabelecer uma verdade que pudesse definir-se por meio de uma intenção de autor e não como testemunho definido por seu uso histórico. [...] é uma função bibliográfica muito simples registrar e mostrar sua leitura – de fato, à luz dos interesses de uma história de mudança cultural, colocá-la em manifesto. 44 Neste caso, utilizo o termo tradição em referência ao vocábulo ‗tradition‘ utilizado por Kastan (2001). Destaco o cuidado para evitar confundir a expressão por ele usada ‗tradição editorial‘, entendida como tendência, com o conceito de tradição empregado na Crítica Textual, que se refere ao conjunto de testemunhos e fontes para estudo de um texto. 45 Tradução livre: ―não pode existir na forma física‖. 46 Tradução livre: ―guias imperfeitos para o trabalho que eles tentam transmitir‖.

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(KASTAN, 2001). Nesse ponto de vista, editar um texto seria buscar fixar ―o texto tal como seu autor redigiu, imaginou, desejou, sanando as feridas que lhe infligiram a transmissão manuscrita ou a composição tipográfica‖ (CHARTIER, 2010 [2007], p.41). Aos olhos de Kastan (2001), a contradição teórica que se estabelece nessa perspectiva de edição, em que se busca fixar em suporte material um texto idealizado pelo autor, ainda que essa prática seja um ―guia imperfeito‖, faria dela um empreendimento quixotesco, tendencioso e ideológico, conforme suas próprias palavras:

If, then, an author's intentions are not fully represented in or responsible for the printed book, the editorial commitment to their recovery might be recognized as quixotic — since the very condition that makes editing necessary, the absence of an authoritative text, means that at most what can be claimed for the edited text is that it is a plausible reconstruction of the authorially intended text, a text that never physically existed prior to the completion of the editorial labor. And such a commitment must be also seen as tendentious — since the very commitment to the reconstruction of the authorial text is ideological (I mean this literally not judgmentally) rather than inevitable, a reasonable but by no means necessary grant of authority to the intended text over the actual textual forms in which it is encountered. Neither of these are reasons not to edit with the aim of reconstructing the author's intended text — the author's intentions are of course a worthy, if elusive, object of study — though both are reasons to recognize that there must be alternative ways to conceive of the goals of editorial activity, ways in which the processes of materialization would not be understood as unwanted obstacles to the realization of the author's intention but as the necessary conditions of it47 (KASTAN, 2001, grifos meus).

A tradição pragmática, por sua vez, propõe que ―‗literary works do not know themselves, and cannot be known‘, writes McGann, ‗apart from their specific material modes of existence/resistance‘‖48 (KASTAN, 2001), o que significa dizer que o texto é um produto definido pelo suporte. É nesse ponto que, segundo a tradição pragmática de edição ―as múltiplas formas textuais em que uma obra foi publicada constituem seus diferentes estados

47 Tradução livre: ―Se, então, as intenções de um autor não estiverem totalmente representadas no livro impresso ou não forem por ele responsáveis, o compromisso editorial de sua recuperação pode ser reconhecido como quixotesco - uma vez que a própria condição que torna necessária a edição, a ausência de um texto autorizado (oficial), significa que, no máximo, o que se pode reivindicar para o texto editado é que é ele seja uma reconstrução plausível do texto autoralmente pretendido, um texto que nunca existiu fisicamente antes da conclusão do trabalho editorial. E esse compromisso também deve ser visto como tendencioso - uma vez que o próprio compromisso com a reconstrução do texto autoral é ideológico (digo isso literalmente e não como julgamento) e não inevitável, uma concessão razoável, mas não necessária, de autoridade ao texto pretendido sobre as formas textuais reais nas quais ele é encontrado. Nem essas são razões para não editar com o objetivo de reconstruir o texto pretendido do autor – as intenções do autor são, naturalmente, um objeto de estudo respeitável, embora ilusório – nem são razões para reconhecer que deve haver maneiras alternativas de imaginar os objetivos da atividade editorial, maneiras nas quais os processos de materialização não seriam entendidos como obstáculos indesejados à realização da intenção do autor, mas como as condições necessárias desta‖. 48 Tradução livre: ―‗as obras literárias não conhecem a si mesmas e não podem ser conhecidas‘, escreve McGann, ‗apartadas de seus modos materiais específicos de existência/resistência‘‖.

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históricos, que devem ser respeitados, editados e compreendidos em sua diversidade irredutível‖ (CHARTIER, 2010 [2007], p.41). Isso significa que, enquanto o problema da edição platônica estaria relacionado às escolhas editoriais que corresponderiam à vontade do autor ou a intenção final, o problema da edição pragmática residiria em fixar o texto:

Once one takes as one's goal not the isolation of authorial intentions from their enabling forms and circumstances but precisely the opposite - the location of the text within the network of social and institutional practices that have allowed it to be produced and read - it becomes more difficult to imagine the form such an edition would assume and the procedures by which one would edit. Indeed arguably it becomes more difficult to justify editing at all, since the unedited texts, even in their manifest error, are the most compelling witnesses to the complex conditions of their production. Editing can only obscure or distort some of the evidence provided by those early texts, erasing marks of the texts' historicity49 (KASTAN, 2001).

A preocupação em assegurar, na prática da edição, as marcas da historicidade do texto reitera a necessidade de produzir novos modelos editoriais que consigam abranger a pluralidade teórica e as particularidades de cada tradição textual. Cerquiglini (2007), de modo semelhante a Kastan (2001), distingue dois paradigmas teóricos da Filologia, denominados como Filologia Antiga (paradigma I) e Nova Filologia50 (paradigma II), para os quais ele apresenta o seguinte quadro teórico comparativo:

49 Tradução livre: ―Uma vez que se toma como objetivo não o isolamento das intenções autorais de suas formas e circunstâncias favoráveis, mas precisamente o oposto – a localização do texto dentro da rede de práticas sociais e institucionais que lhe permitiram ser produzido e lido – torna-se mais difícil imaginar a forma que essa edição assumiria e os procedimentos pelos quais seria editada. Sem dúvida, torna-se mais difícil justificar a edição, já que os textos não editados, mesmo em seu erro manifesto, são as testemunhas mais convincentes das complexas condições de sua produção. A edição só pode obscurecer ou distorcer algumas das evidências fornecidas por esses primeiros textos, apagando marcas da historicidade dos textos‖. 50 A expressão ―nova filologia‖ foi empregada por Michele Barbi, em La nuova filologia e l‟edizione dei nostri scrittori da Dante a Manzoni (1994[1938]). Nesse trabalho, Barbi propõe que se tome como objeto de estudo não apenas autores medievais, mas também modernos, marcando o desenvolvimento de um novo paradigma teórico-metodológico sobre o texto.

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Quadro 1 – Mudança de paradigma na Filologia51 Paradigme I Paradigme II Option critique Autorité textuelle Partage textuel Technologie Imprimerie Internet Métaphore Arbre Réseau Héros Auteur Scribe Amour Unicité Variance Objet Copie méprisée Réception positive Texte comme Essence verbale Matérialité du codex Principe Décontextualisation Contextualisation But Reconstruction Simulation Méthode Interventionnisme Comparaison Résultat Livre imprimé Hypertexte Relations ˆ : 1. Oralité ƒcriture comme résidu Dialectique Oral/ƒcrit 2. Théorie (Rien de spécial) "Surplus de sens" médiévale de l'écriture Fonte: CERQUIGLINI, 2007, grifos do autor.

Pela leitura do quadro acima, compreendo que a transição de paradigma teórico acompanha a mudança das tradições editorias estabelecidas por Kastan (2001), do platonismo ao pragmatismo, o que se evidencia na perspectiva de texto, no amor à variabilidade textual e na heroicização do escriba como sujeito histórico que modifica o texto e mantém-no em circulação na história. Há, sobretudo, uma mudança de princípios, que passa a valorizar a contextualização dos documentos, o que se faz a partir da comparação dos mesmos, evitando o intervencionismo característico do primeiro paradigma. Dessa forma, ocupando-se da variação histórica e da preservação da materialidade, o resultado do trabalho filológico passa a ser, no segundo paradigma, um produto hipertextual, envolvendo a multiplicidade documental que contextualiza o todo da obra. Faço a breve ressalva, antes de prosseguir a análise dos dois paradigmas propostos por Cerquiglini (2007), de que o hipertexto52 a que se

51 Tradução livre:

Paradigma I Paradigma II

Opção crítica Autoridade textual Texto compartilhado Tecnologia Casa de impressão Internet Metáfora Árvore Rede Herói Autor Escriba Amor Singularidade Variação Objeto Cópia desprezada Recepção positiva Texto Essência verbal Materialidade do códice Princípio Descontextualização Contextualização Meta Reconstrução Simulação Método Intervencionismo Comparação Resultado Livro impresso Hipertexto Relações: 1. Oralidade escritura como resíduo Dialética Oral/escrito 2. Teoria medieval da escritura (nada em especial) ―Excedente de significado‖

52 Retomarei a questão do hipertexto para aprofundá-la na seção seguinte, quando discutirei Humanidades Digitais.

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refere o quadro seria, provavelmente, o hipertexto digital, revolucionado pela era tecnológica e pela informática computadorizada, segundo o uso inicial do termo, estabelecido na década de 1960 por Theodor H. Nelson para referir-se ―a un tipo de texto electrónico, una tecnología informática radicalmente nueva y, al mismo tiempo, un modo de edición‖53 (LANDOW, 2011, p.14-15). Para Cerquiglini (2007):

La position des "nouveaux philologues" est d'ailleurs des plus simples, et, dans la perspective de l'histoire des sciences, très acceptable. Elle repose sur le raisonnement suivant : - une science telle que la philologie, qui combine théorie et pratique, porte en elle des concepts et notions formant un paradigme. Ce paradigme contient en particulier, de façon explicite ou implicite, une théorie, forcément datée, du texte et de la littérature (ce que nous appellerons option critique) ; il n'est pas étranger par ailleurs aux techniques d'information et de communication de son temps. - par suite, la philologie, comme toute science, est historiquement déterminée et doit accepter une analyse historique. - dans cette perspective, on peut soutenir qu'un nouveau paradigme est en formation. Ce qui en soi n'a rien de scandaleux54 (CERQUIGLINI, 2007).

Nesse ínterim, a transição de um paradigma epistemológico a outro, já estabelecido como Filologia por quase dois séculos, sustenta-se, sobretudo, no deslocamento da ideia de texto, antes compreendido sob a metáfora da árvore, através da qual se entendem os manuscritos como cópias de cópias, a serem classificadas e organizadas genealogicamente, a ponto de ser possível reconstruir seu tronco e raiz. Trata-se de um texto reduzido a ―une essence verbale, implique un principe de décontextualisation‖55 (CERQUIGLINI, 2007), ou seja, um objeto de trabalho desmaterializado e arquetípico, que se alcançava a partir de incessantes atividades de reconstituição, com base nos resíduos materiais legados pela tradição. O objeto de trabalho seria, assim, a cópia desprezada, considerada um resíduo, uma deterioração, uma adulteração do texto, uma vez que ―le premier paradigme reflète la pensée

53 Tradução livre: ―a um tipo de texto eletrônico, uma tecnologia informática radicalmente nova e, ao mesmo tempo, um modo de edição.‖ 54 Tradução livre: ―a posição dos ‗novos filólogos‘ é também mais simples, e, sob a perspectiva da história das ciências, muito aceitável. Ele repousa na seguinte fundamentação: - uma ciência como a filologia, que combina teoria e prática, traz consigo conceitos e noções, formando um paradigma. Este paradigma contém, em particular, explícita ou implicitamente, uma teoria, necessariamente datada, do texto e da literatura (o que chamamos de opção crítica); ele não é estranho às técnicas de informação e de comunicação de seu tempo. - consequentemente, a filologia, como qualquer ciência, é historicamente determinada e deve aceitar uma análise histórica. - sob essa perspectiva, pode-se argumentar que um novo paradigma está se formando. O que em si não é nada escandaloso.‖ 55 Tradução livre: ―uma essência verbal, implica um princípio de descontextualização‖.

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bourgeoise du XIX siècle: la faute d'un copiste se transmet d'une génération de manuscrit l'autre, telle la syphilis (on parle de manuscrits ‗contaminés‘). Copier est une déchéance‖56 (CERQUIGLINI, 2007). Nesse paradigma, a atividade do filólogo é considerada menor do que a práxis dos teóricos de literatura, como já afirmou Croce (1920). No paradigma da nova Filologia, porém, ―l'arborescence hiérarchisée succède le réseau, voire le rhizome‖57 (CERQUIGLINI, 2007), cujas interconexões desconstroem a ideia de texto como unidade. Além disso, o texto ―n'échappe pas la matérialité du codex; il est étudié, puis édité dans son contexte‖58 (CERQUIGLINI, 2007), o que significa que o objeto de trabalho já não é residual, mas sim um objeto histórico e historicizado pelo crítico, portador de valor cultural. A proposta de mudança paradigmática evidenciada por Cerquiglini (2007) sustenta-se na ideia de rizoma proposta por Deleuze e Guattari (2011 [1980]) como primeiro platô na introdução de sua ―teoria das multiplicidades‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2011 [1980], p.10), como os próprios definem o projeto construtivista a que intitularam Mil platôs. Entendendo um platô como ―uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2011 [1980], p.44), os autores estabelecem que ―um platô está sempre no meio, nem início nem fim‖ (p.44) para entender que um rizoma é feito de platôs que, por sua vez, correspondem a ―toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2011 [1980], p.44). Opondo-se deliberadamente aos métodos modernos que se desenvolvem em uma direção linear, binária, orientada pela metáfora da árvore, que se sustenta sobre uma raiz principal (pivotante) (p.20-21), Deleuze e Guattari (2011 [1980]) propõem um sistema- radícula, no qual

[...] a raiz principal abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se enxertar nela uma multiplicidade imediata e qualquer de raízes secundárias que deflagram um grande desenvolvimento (DELEUZE; GUATTARI, 2011 [1980], p.20).

Esse desenvolvimento, para os autores, seria sempre múltiplo, plano e não hierarquizante, isto é, não se acrescentaria às raízes uma dimensão superior, acima da terra (a

56 Tradução livre: ―o primeiro paradigma reflete o pensamento burguês do século XIX: o erro de um copista é passado de uma geração para outra do manuscrito, como a sífilis (fala-se de manuscritos ‗contaminados‘). Cópia é uma desqualificação‖. 57 Tradução livre: ―à arborescência hierarquizada sucedeu-se a rede ou rizoma‖. 58 Tradução livre: ―não escapa a materialidade do codex; é estudado e editado segundo seu contexto‖.

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árvore), de modo que a metáfora botânica rizomórfica estaria representada nos bulbos ou nos turbérculos. Para caracterizar os rizomas, os autores propõem seis princípios aproximativos, nos quais os dois primeiros seriam os princípios de conexão e heterogeneidade, em que ―qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2011 [1980], p.22); o terceiro princípio, da multiplicidade, indica que ―é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo‖ (p.23); o quarto princípio, de ruptura assignificante, afirma-se ―contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura‖ (p.25) e propõe que ―o rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas59‖ (p.25); os dois últimos princípios seriam, por fim, cartografia e decalcomania, segundo os quais o rizoma é mapa, e não decalque, pois ―um rizoma não pode ser justificado por nenhum outro modelo estrutural ou gerativo‖ (p.29), negando qualquer ideia de eixo genético, considerado pivotante. A análise do quadro proposto por Cerquiglini (2007) em relação ao primeiro platô estabelecido por Deleuze e Guattari (2011 [1980]) permite-me afirmar que a abordagem teórica da Nova Filologia aproxima-se dos princípios da teoria social da edição, que, segundo Lourenço (2009), passou a conceber o texto como objeto material e social, ―entidade polivocal, caracterizada por uma densidade resultante não apenas das manifestações recursivas da linguagem, mas da rede de intenções que vão construindo as suas formas finais‖ (LOURENÇO, 2009, p.188). Dessa forma, uma vez que o deslocamento da noção de texto promoveu a construção de um objeto plural, pautado na multiplicidade, a teoria da edição passou também a ―combinar teoria literária e bibliografia, hermenêutica e crítica textual‖ (LOURENÇO, 2009, p.188), reafirmando a prática editorial como uma atividade crítica em toda sua extensão, pois ―nenhuma constituição textual, nenhuma emenda seriam possíveis fora ou antes de uma compreensão total, de uma interpretação no sentido mais amplo e preciso do termo‖ (PICCHIO, 1979, p.211-212).

59 A respeito de tais linhas e da ruptura, comentam os autores que o rizoma compreende ―linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2017 [1980], p.25-26)

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Sob o paradigma da Nova Filologia, reitero a complexidade das atividades filológicas, que integram múltiplos estudos sobre o texto, buscando compreendê-lo em seu processo de transmissão, produção, circulação e recepção, valorizando-o como um objeto cultural, histórico e social, conforme aponta Lourenço (2009):

Para além de valorizar o papel do leitor, a perspectiva da teoria social da edição valoriza a materialidade dos textos no seu processo de produção e circulação, encarando a superfície da página, a organização do espaço, o alinhamento, a utilização de negrito e de itálico, a fonte e o estilo da letra como elementos textuais significativos. Aplicada às Humanidades, esta evolução teórica e a mudança de base tecnológica proporcionada pelo meio digital causaram uma alteração no estudo dos textos (LOURENÇO, 2009, p.188).

A Filologia hoje pode, então – seguindo as transformações sociais, históricas e tecnológicas que resultaram em um deslocamento das noções de humano, humanismo, texto e edição –, ser entendida como ―constelación de habilidades académicas orientadas a ocuparse del cuidado de textos históricos‖60 (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.14). Essa perspectiva teórica posiciona a Filologia no campo das práticas multidisciplinares e incorpora a ideia de McGann (1983, p.90), a respeito da perspectiva histórica do trabalho do crítico. Uma vez situada na dimensão histórica, aproximo a Filologia da História Cultural, ou, especificamente, da Nova História Cultural, situada nas práticas culturais de escrita e leitura. No âmbito dos textos teatrais censurados, objetos com os quais trabalho, entendo que as situações textuais suscitam tratamentos filológicos específicos, que diversificam a práxis editorial. No que tange à materialidade dos documentos que compõem o dossiê das peças censuradas de Roberto Athayde, identifico datiloscritos ou cópias de datiloscritos mimeografadas a álcool, a óleo, ou fotocopiadas, inscritas sobre papel ofício ou carta. Há ainda cópias de textos publicados em formato livro tamanho A5. Quando submetidos aos órgãos responsáveis pela censura prévia – condição obrigatória para a apresentação cênica, institucionalizada após 13 de dezembro de 196861, data em que foi decretado o Ato Institucional no5 – como a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do Departamento da Polícia Federal (DPF), ou a Superintendência Regional

60 Tradução livre: ―uma constelação de habilidades acadêmicas orientadas a ocupar-se do cuidado de textos históricos‖. 61 Embora a censura sempre exista, de formas diferenciadas, refiro-me aqui à censura prévia institucionalizada. Segundo Carlos Fico (2004), ―a censura explícita de temas estritamente políticos marcou períodos francamente ditatoriais, como o Estado Novo, de Getúlio Vargas (1937-1945) e a ditatura militar (1964-1985) [...] porém, é certo que, a partir de dezembro de 1968, com a edição do AI-5, houve uma intensificação da censura da imprensa, pois o decretum terribile permitia praticamente tudo. Desde então, a censura da imprensa sistematizou- se, tornou-se rotineira e passou a obedecer instruções especificamente emanadas dos altos escalões do poder‖ (FICO, 2004, p. 87).

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- DPF), os textos apresentam os carimbos designativos do órgão censor em tinta azul ou preta, acompanhado de rubrica manuscrita, normalmente posicionados à margem direita de todas as folhas. É comum tais textos apresentarem, ainda, carimbos da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), frequentemente destacados na primeira e na última folha do texto. Na documentação disponibilizada pelo Arquivo Nacional em Brasília, os textos são acompanhados de certificados, pareceres de censores e diversos ofícios de encaminhamento, relacionados aos trâmites censórios. Nesses documentos, registram-se impressões e leituras dos censores, assim como procedimentos técnicos, burocráticos e políticos que elucidam a historicidade dos textos e marcam a produção de uma época, conforme demonstrarei na terceira seção deste trabalho, em que produzo uma leitura do dossiê para estudar a história das práticas de escritura e de leitura dos textos teatrais censurados.

2.2 Nova História Cultural, Filologia e história das práticas de escritura

Neste ponto, julgo necessário compreender diferentes tendências da História Cultural para situar a abordagem que escolhi, orientada pela história das práticas culturais de escrita e de leitura. Acredito que foi por esse percurso que a Nova História Cultural enraizou-se no trabalho com os textos, compreendidos em sua multiplicidade. Proponho, então, um breve escorço histórico baseado em Peter Burke (2005), que distingue quatro fases da História Cultural que se entrelaçam. Para ele, a fase da tradição clássica da História Cultural teve como principais nomes Burckhardt (1860), Huizinga (2010 [1919]) e Young (1964 [1936]), cujos respectivos estudos62 ―concentravam-se na história dos clássicos, um ‗cânone‘ de obras primas da arte, literatura, filosofia, ciência e assim por diante‖ (BURKE, 2005, p.16), defendendo a tese de que o historiador pinta o retrato de uma época. Nessa fase, a principal tarefa dos historiadores consistiu em delimitar o campo de trabalho e os objetivos da História Cultural que, para Huizinga (2010 [1919]), consistiria em identificar padrões de cultura, a partir do estudo do que chamou de ―‗temas‘, ‗símbolos‘, ‗sentimentos‘ e ‗formas‘‖ (BURKE, 2005, p.19), impressos nas obras de literatura e arte. A segunda fase, identificada como história social da arte, começou na década de 1930 e teve grande contribuição de Max Weber (2009 [1904]), no campo da sociologia. Para Burke (2005), ao publicar A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber63 (2009

62 Destaco A cultura do Renascimento na Itália (BURCKHARDT, 1860); Outono da Idade Média (HUIZINGA, 1919) e Victorian England (YOUNG, 1936). 63 Burke (2005) destaca que a obra de Weber apresenta uma noção de cultura voltada para hábitos, valores, crenças e comportamentos sociais, diferente da ideia sobre a qual se baseavam os teóricos da primeira fase,

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[1904]) construiu uma ―explicação cultural para a mudança econômica‖ a partir do estudo do ―ethos ou sistema de valor protestante‖ (BURKE, 2005, p.20). Como terceira fase, Burke (2005) evidencia a história da cultura popular, que se desenvolveu a partir da grande diáspora da década de 1930, uma vez que muitos estudiosos da História Cultural eram judeus e levaram, principalmente para os Estados Unidos e para a Grã- Bretanha, o interesse pelo estudo da relação cultura/sociedade. Nesse período, desenvolvia-se nos Estados Unidos uma história das ideias, com Perry Miller (1983 [1939]) e Arthur Lovejoy (1940), enquanto na Grã-Bretanha fazia-se uma história intelectual e cultural ―fora dos departamentos de história‖ (BURKE, 2005, p.25), analisando a literatura, a pintura e outras expressões artísticas64. As três abordagens da História Cultural acima descritas apresentam insuficiências teórico-metodológicas que resultaram no desenvolvimento da Nova História Cultural. Nesse sentido, a primeira lacuna apontada por Burke (2005) sobre a abordagem clássica toma como exemplo o trabalho de Huizinga (2010 [1919]), que recorreu a poucas fontes literárias repetidas vezes para identificá-las como ―espelhos, reflexos não problemáticos de seu tempo‖ (BURKE, 2005, p.33), desconsiderando que a escolha de outras obras resultaria em um quadro de época extremamente diverso. O segundo problema, que também recai sobre a abordagem clássica, surge do debate marxista, que identifica a ausência de conteúdos de ordem econômica ou social nos estudos de Burckhardt e Huizinga. O terceiro paradoxo da História Cultural ocorre dentro da abordagem marxista, questionando a própria existência desse tipo de abordagem em torno da cultura:

Ser um historiador marxista da cultura é viver um paradoxo, se não uma contradição. Por que os marxistas deveriam se preocupar com o que Marx descartou, por considerar uma mera ―superestrutura‖? (BURKE, 2005, p.37)

relacionada às produções artísticas. Sob influência de Weber (1904), outros sociólogos trouxeram importantes contribuições para a História Cultural, como Nobert Elias (2004 [1939]) em O processo civilizador, e, sobretudo, Aby Warburg que, com interesse em estudos de filosofia, psicologia, antropologia e história cultural do ocidente, ambicionava contribuir para uma ―‗ciência da cultura‘ geral (Kulturwissenschaft), evitando o que chamou de ‗polícia de fronteira‘ nos limites entre as disciplinas acadêmicas‖ (BURKE, 2005, p.21). Em seus estudos, Warburg buscou analisar a tradição clássica, a fim de compreender, nas obras, gestos que representam emoções particulares (BURKE, 2005, p.22). Esse modelo de história cultural baseada na interpretação de obras influenciou diversos intelectuais, na filosofia, teoria literária e na própria História Cultural. 64 Nesse grupo, Burke (2005) destaca Eric Hobsbawm (que, sob o pseudônimo de Francis Newton, publicou a História social do jazz, em 1959) e Edward Thompson, em 1963, com A formação da classe operária inglesa. Burke (2005) atribui a Thompson a influência sobre historiadores franceses associados aos Annales, como Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt, e compreende que a preocupação com a história da cultura popular surgiu nesse momento histórico por razões internas – para suprir as ―deficiências de abordagens anteriores, especialmente à História Cultural, em que as pessoas comuns são deixadas de fora, e à história política e econômica, em que a cultura é deixada de lado‖ (BURKE, 2005, p.31) – e externas (coincidindo com a ascensão dos ―estudos culturais‖, na década de 1960, com Stuart Hall).

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Desse modo, Burke (2005) avalia que a tensão estabelecida entre economicismo e culturalismo65, decorrente das críticas ao trabalho de Thompson – que deixou de lado os aspectos econômicos, políticos e sociais que envolveram a formação da classe operária inglesa, atribuindo tudo ao plano das ideias, ou, como passou a ser chamado, ao culturalismo – promoveu uma crítica interna e culminou no desenvolvimento da ideia de hegemonia cultural, proposta por Antonio Gramsci, que passou a estudar as relações entre classes sociais, poder e cultura. Como resultado, duas linhas de estudo se desenvolvem: uma seria ―estudar as tradições culturais, e outra é tratar a cultura popular como ‗subculturas‘, parcial embora não inteiramente separadas ou autônomas‖ (BURKE, 2005, p.38). Tais linhas expressam o caráter polissêmico da ideia de cultura, sobre a qual se distinguem as principais abordagens da História Cultural. A tensão entre economicismo e culturalismo culminou, ainda, em dois problemas que se tornaram centrais para a História Cultural: o conceito de cultura e sua relação com a tradição66. A esse respeito, Burke (2005) afirma que a questão em torno do valor tradição situa-se na ideia de que ―os signos externos da tradição podem mascarar a inovação‖ (p.40), como foi evidenciado em A invenção das tradições (HOBSBAWM; RANGER, 1984). Nessa perspectiva, o legado é transformado ao longo da transmissão social e histórica, promovendo mudanças nas tradições. O último problema que Burke (2005) apresenta, dentro das três fases anteriormente especificadas, recai sobre a terceira abordagem da História Cultural e diz respeito, precisamente, às noções de cultura e cultura popular. Longe de ser um problema em si, tais conceitos se configuram em um eixo de tensões cujas definições delimitam espaços de atuação do historiador. Como já mencionado, o estudo da cultura popular prescinde da ideia de diversidade cultural/social/econômica, o que levaria a questão para outro patamar: sendo popular, o que é o povo?

Todos, ou apenas quem não é da elite? Neste último caso, estaremos empregando uma categoria residual e, como acontece muitas vezes em se tratando dessas categorias, corremos o risco de supor a homogeneidade dos excluídos. Talvez seja melhor seguir o exemplo de vários historiadores e teóricos recentes e pensar as culturas populares (ou, como os sociólogos costumam chamar, ―subculturas‖) no plural, urbana e rural, masculina e feminina, velha e jovem, e assim por diante. O termo ―subcultura‖ parece estar caindo em desuso, talvez porque esteja associado à delinquência ou porque, erradamente, tenha passado a significar mais posição

65 Burke (2005) afirma que muitos dos críticos de Thompson apontaram que seu estudo deixou de lado os aspectos econômicos, políticos e sociais que envolveram a formação da classe operária inglesa, atribuindo tudo ao plano das ideias, ou, como passou a ser chamado, culturalismo. 66 Aqui se discute o termo tradição como cultura, não sendo, portanto, o mesmo que a tradição textual estudada pela Crítica Textual.

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inferior em uma hierarquia cultural do que a parte de um todo. A pluralidade, contudo, continua em discussão (BURKE, 2005, p.41).

O ponto de discussão, que vai além das definições propostas, incide sobre o descentramento das hierarquias de poder. Dessa forma, a segregação cultural dentro de uma comunidade para assegurar as diferenças entre os grupos protegeria a permanência daquela cultura ou acentuaria a segregação social? Nesse caso, haveria várias culturas ou uma cultura plural? São esses questionamentos que aprofundam o problema da História Cultural, levando o pesquisador ao confronto com seu objeto teórico: o que é cultura? É a partir das definições de cultura que a História Cultural se diversificou e, ampliou seu campo de trabalho. Para Burke (2005),

O termo cultura costumava se referir às artes e às ciências. Depois, foi empregado para descrever seus equivalentes populares – música folclórica, medicina popular e assim por diante. Na última geração, a palavra passou a se referir a uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante) e práticas (conversar, ler, jogar) (BURKE, 2005, p.43).

Essa definição ampla de cultura, abrangendo os hábitos de uma civilização e uma história do cotidiano, lançou-se entre as décadas 1960 a 1990, com a virada cultural que promoveu o desenvolvimento dos estudos culturais. No campo da História Cultural, essa definição antropológica gerou uma cisão em duas correntes de trabalho, a Antropologia Histórica e a Nova História Cultural que, para Burke (2005), é uma resposta às questões históricas (micro-história, pós-colonialismo, feminismo), às teorias culturais e à expansão dos domínios da cultura (vertical: erudita e popular; e horizontal: além das artes e ciências). Para Roger Chartier 2010 [2007], o risco da ampliação da noção de cultura reside na dificuldade de situar e diferenciar a História Cultural de outras histórias67. Assim sendo, Chartier (2010 [2007]) distingue duas ―famílias‖ ou ―classes‖68 de significados para o termo cultura, buscando, a partir delas, construir a finalidade e objeto de trabalho da História Cultural. Desse modo, um grupo de significados de cultura busca entendê-la como sendo um ―padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida

67 Tais como: ―a história das ideias, a história da literatura, história da arte, a história da educação, a história dos meios de comunicação, a história das ciências, etc.‖ (CHARTIER, 2010 [2007], p.33). 68 Os termos ―família‖ e ―classe‖ de significados foram empregados por Chartier (2010 [2007], p.34), razão pelas quais optei por mantê-los.

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(GEERTZ, 1973, p. 89). Para Burke (2005) essa abordagem relaciona-se à antropologia simbólica. Nessa perspectiva, o estudo da História Cultural buscaria compreender as ―manifestações coletivas nas quais se enuncia, de maneira paroxística, um sistema cultural: rituais de violência, ritos e passagem ou festas carnavalescas‖ (CHARTIER, 2010 [2007], p.35). A segunda família de significados para cultura conduz ao trabalho da Nova História Cultural, que é o ponto em que situo esta pesquisa, centrada sobre ―a história dos textos, das obras e das práticas culturais como um história de dimensão dupla‖ (CHARTIER, 2010 [2007], p.34-35), integrando-se à Bibliografia e à Sociologia dos Textos. Nessa abordagem, pontuo como cultura a proposição de Chartier (2010 [2007]):

as obras e os gestos que, em uma sociedade dada, se subtraem às urgências do cotidiano e se submetem a um juízo estético ou intelectual e a que aponta as práticas comuns através das quais uma sociedade ou um indivíduo vivem e refletem sobre sua relação com o mundo, com os outros, ou com eles mesmos (CHARTIER, 2010 [2007], p.34-35).

Diferenciando-se da abordagem da Antropologia Histórica, de caráter simbólico e imaterial, a Nova História Cultural debruça-se sobre a materialidade dos objetos com os quais trabalha, realizando um estudo de cunho arqueológico. Ao pensar o texto como tais obras e gestos, identificando-o em seus aspectos materiais, culturais e históricos, Chartier (2010 [2007]) promove uma integração temática, suscitada pelo próprio objeto comum (o texto), entre Filologia, Sociologia dos Textos (apoiada na tradição bibliográfica) e História Cultural. Buscando compreender possibilidades e limites da História Cultural, Sandra Pesavento (2005) situa a virada nos estudos históricos ante a

[...] mudança nos anos 1970 ou mesmo um pouco antes, com a crise de maio de 1968, com a guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo, o surgimento da New Left, em termos de cultura, ou mesmo a derrocada dos sonhos de paz no mundo pós- guerra. Foi quando então se insinuou a hoje tão comentada crise dos paradigmas explicativos da realidade, ocasionando rupturas epistemológicas profundas que puseram em xeque os marcos conceituais dominantes na História (PESAVENTO, 2005, p. 8).

Para ela, as rupturas epistemológicas realizadas pela História Cultural que reorientaram o trabalho do historiador devem-se a uma mudança paradigmática que afetou os conceitos de representação, entendida como ―matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coerciva, bem como explicativa do real‖ por meio da qual ―indivíduos e grupos dão sentido ao mundo‖ (PESAVENTO, 2005, p. 39); imaginário,

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―sistema de ideias e imagens de representações coletivas que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo‖ (p. 43); narrativa, através do qual a História se classifica como ―narrativa ou discurso sobre o real‖ (p.48); ficção, que, imbricado à narrativa, aproxima História e Literatura pela ideia de que a ―História inventa o mundo, dentro de um horizonte de aproximação com a realidade, e a distância temporal entre a escritura da história e o objeto da narrativa potencializa essa ficção‖ (PESAVENTO, 2005, p.53); e sensibilidades, ―as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos‖ (PESAVENTO, 2005, p. 57). É compreendendo o reposicionamento de tais conceitos que Pesavento (2005) postula que

[...] representação e imaginário, o retorno da narrativa, a entrada em cena da ficção e a ideia das sensibilidades levam os historiadores a repensar não só as possibilidades de acesso ao passado, na reconfiguração de uma temporalidade, como colocam em evidência a escrita da história e a leitura dos textos (PESAVENTO, 2005, p. 59, grifos da autora).

Sob a perspectiva de evidenciar a escrita da história e a leitura dos textos, Pesavento (2005) destaca a importância do método, que constrói a História como ―ficção controlada pelo recurso ao extratexto, que é também registro e marca que revelam a exemplaridade do método seguido, a compor, estabelecer analogias, contrastar, superpor, anunciando nexos‖ (PESAVENTO, 2005, p. 67). Assim, a renovação das correntes da história (a primeira, do texto, escrita e leitura; a segunda, com o estudo do arquivo e das sensibilidades; a terceira, relativa ao estudo do político pelo cultural) que se traduzem em ―campos temáticos de pesquisa‖ (PESAVENTO, 2005, p. 80), caminha para a multiplicidade de objetos de estudo. Por conseguinte, essa diversificação suscita o recurso a diferentes fontes e estudos fronteiriços, podendo ser situados na relação com a Antropologia (pelo conceito de cultura), com a Literatura (pela relação texto histórico/texto literário), com a Arte (pela ideia de imagem), e com a Arquitetura/Urbanismo (pelo tema da cidade) (PESAVENTO, 2005). Conquanto a ampliação do campo da História Cultural tenha feito surgir alguns problemas de natureza teórico-metodológica, considero inegável a contribuição da Nova História Cultural para ―trazer à tona o indivíduo, como sujeito da História, recompondo histórias de vida, particularmente daqueles egressos das camadas populares‖ (PESAVENTO, 2005, p.118). Como me encaminho pela História Cultural das práticas de escritura e leitura, entendo, assim, que as configurações dos textos teatrais censurados – e particularmente, da dramaturgia

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censurada de Roberto Athayde – estudados em seu lugar histórico, cultural e político, e portadores de uma materialidade que os caracteriza, suscitam um tratamento filológico que possibilite a construção de sua própria história. A partir da leitura dos conjuntos documentais, compreendem-se diversos pontos da História Cultural das práticas de escritura (a máquina de escrever, as publicações em coletânea, a colagem de diversos textos, as citações), da produção cênica (as relações entre Roberto Athayde e Aderbal Freire Filho, diretor de muitos de seus textos, incluindo Os Desinibidos), da leitura e recepção de tais textos (a incidência do público intelectual, por parte da família e amigos do autor, dos jornalistas e críticos de teatro, e dos censores), das ideias que marcam um período histórico e um lugar (as personagens históricas e os conteúdos temáticos abordados nos textos). Os textos teatrais censurados, portanto, situam-se em um tempo, lugar e cultura bastante específicos, envolvendo diferentes sujeitos e procedimentos técnicos/burocráticos. Construir sua história e representá-la na edição exige que, diante da relação Filologia/História Cultural, eu pense esses textos diante de uma perspectiva construída nesse entrelugar teórico- metodológico. Desse modo, os aspectos que elucidei anteriormente a respeito da abordagem histórica do texto proposta por Gumbrecht (2007 [2003]) em sua definição de Filologia como práxis multidisciplinar resultaria em cinco poderes69 da Filologia (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.15), que se manifestam na diversidade das práticas: identificar fragmentos, utilizando-se de múltiplas técnicas (Paleografia, Diplomática, Codicologia, Bibliografia e outras) para compreender o caráter fragmentário de alguns textos; editar textos, elencando sua documentação para apresentá-los em sua pluralidade ou condensá-los em um texto único para a circulação; escrever comentários, a fim de preencher a brecha temporal entre os leitores do tempo presente e os leitores do tempo da produção do texto; historiar, ou seja, pensar historicamente períodos, línguas e culturas; e ensinar, fazendo uso dos textos e culturas no contexto institucional de ensino. Essa perspectiva da constelação apresentada por Gumbrecht (2007 [2003]) reafirma a abordagem interdisciplinar dos estudos filológicos, evidenciando seu aspecto arqueológico, ecdótico, hermenêutico, histórico e pedagógico. De acordo com Said (2007 [2004]), que compreende a Filologia no panorama dos estudos humanísticos contemporâneos, a Filologia consiste em atos de leitura que se realizam primeiro na recepção e depois na resistência, reposicionando o objeto na história e na tradição. Assim, as leituras filológicas realizam uma crítica democrática da tradição literária,

69 Destaco que, para Gumbrecht (2007 [2003], p.17), o vocábulo poder é entendido como potência (o que pode a Filologia), e não como instrumento coercitivo, como se apresenta em Foucault.

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buscando contextualizar o objeto e promover deslocamentos dele no eixo da história, uma vez que

[...] qualquer leitura que realizemos está situada num determinado tempo e lugar, assim como os escritos que encontramos no curso do estudo humanista estão localizados numa série de estruturas derivadas da tradição, da transmissão e variação dos textos, bem como das leituras e interpretações acumuladas (SAID, 2007 [2004], p.99, grifos meus).

Por isso, o estudo filológico deve buscar compreender o texto como um centro provisório, instável, que sofre sucessivos descentramentos no curso da história, a partir da ação de diferentes sujeitos que leem, interpretam, transmitem e modificam os escritos. Dessa forma, retornando à noção de Filologia defendida por Gumbrecht (2007 [2003]), reitero a ideia de que o ―texto histórico‖ é uma construção, um ato crítico do filólogo de reposicionamento do seu objeto, ou, em outras palavras:

Lo que hace histórico a um objeto – y no veo otra forma de alcanzar la historización – es la disposición del observador para superar la inercia primaria de suponer que sabe lo suficiente como para hacer buen uso, o al menos un uso adecuado, de los objetos que encuentra70 (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.71).

A Filologia, como disciplina histórica, em seu propósito de integrar os estudos de língua, texto e cultura para compreender aspectos relativos a uma sociedade, considera o texto (seu escopo de trabalho) como documento e como monumento, em seus aspectos material e discursivo. Para Chartier (2010 [2007]) a historicidade dos textos ―decorre do cruzamento entre as categorias de atribuição, designação e classificação dos discursos próprios de um tempo e de um lugar, e a sua materialidade, compreendida como a modalidade de sua inscrição na página ou de sua distribuição no objeto escrito‖ (CHARTIER, 2010 [2007], p.37). Na esteira do pensamento de Chartier (2010 [2007]), parto da ideia de que ―diferentes atores envolvidos com a publicação dão sentido aos textos que transmitem, imprimem e lêem‖ (CHARTIER, 2002, p.61), para realizar um estudo dos textos em seu processo de transmissão textual, considerando a produção, a circulação e a recepção. No ensaio A mediação editorial, Roger Chartier (2002) afirma que toda mediação editorial é também mediação cultural, pois

70 Tradução livre: ―O que torna histórico um objeto – e não vejo outra forma de alcançar a historiação – é a disposição do observador para recuperar a inércia primária de supor que sabe o suficiente como para fazer bom uso, ou ao menos um uso adequado, dos objetos que encontra‖.

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[o]s editores (ou seja, o livreiro ou o impressor que decide publicar uma obra, que publica um livro), sem necessariamente controlar a própria forma dos textos, entregues às preferências dos autores, dos copistas, dos corretores e dos compositores, desempenharam, contudo, um papel essencial na mediação cultural, inventando as fórmulas capazes de associar repertório textual e capacidade produtiva (CHARTIER, 2002, p.75).

É, pois, fundamental apresentar aqui o pensamento de Pierre Bourdieu (1996) que, ao propor uma sociologia do campo literário, compreende que a história política e econômica é indissociável da história da vida intelectual e artística das sociedades, de tal modo que as transformações no sistema de produção de bens simbólicos – compreendidos em oposição aos bens de mercado, uma vez que o valor simbólico (afetivo, estético) de um objeto é, em certa maneira, independente do seu valor de mercado (comercial, econômico) – altera a própria estrutura desses bens. Ao longo da história, tais transformações resultaram na formação do que Bourdieu (1996) designou como campo intelectual e artístico, que progrediu para uma ―autonomização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos‖ (BOURDIEU, 1996, p. 99). Assegura Bourdieu (1996, p.162) que:

[...] esse universo relativamente autônomo (o que significa dizer também, é claro, relativamente dependente, em especial com relação ao campo econômico e ao campo político) dá lugar a uma economia às avessas, fundada, em sua lógica específica, na natureza mesma dos bens simbólicos, realidades de dupla face, mercadorias e significações, cujo valor propriamente simbólico e o valor mercantil permanecem relativamente independentes. Ao fim do processo de especialização que levou ao aparecimento de uma produção cultural especialmente destinada ao mercado e, em parte como reação contra esta, de uma produção de obras ‗puras‘ e destinadas à apropriação simbólica, os campos de produção cultural organizam-se, de maneira muito geral, no estado presente, segundo um princípio de diferenciação que não é mais que a distância objetiva e subjetiva dos empreendimentos de produção cultural com relação ao mercado e à demanda expressa ou tácita, distribuindo-se as estratégias dos produtores entre dois limites que, de fato, jamais são atingidos, a subordinação total e cínica à demanda e a independência absoluta com respeito ao mercado e às suas exigências (BOURDIEU, 1996, p.162).

Para ele, a instauração do capitalismo industrial converte em objeto de consumo a arte e as relações sociais que medeiam sua produção, criando um mercado de bens simbólicos construído pelo campo do poder, ao qual se submete o campo literário. É por tal razão que a História Cultural não poderia desvincular arte, cultura, política e economia:

a lógica ‗econômica‘ das indústrias literárias e artísticas que, fazendo do comércio dos bens culturais um comércio como os outros, conferem prioridade à difusão, ao sucesso imediato e temporário, medido, por exemplo, pela tiragem, e contentam-se em ajustar-se à demanda preexistente da clientela (contudo, a vinculação desses empreendimentos ao campo assinala-se pelo fato de que apenas podem acumular os

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lucros econômicos de um empreendimento econômico ordinário e os lucros simbólicos assegurados aos empreendimentos intelectuais, recusando as formas mais grosseiras do mercantilismo e abstendo-se de declarar completamente seus fins interessados). Um empreendimento está tanto mais próximo do polo ‗comercial‘ quanto os produtos que oferece no mercado correspondem mais direta ou mais completamente a uma demanda preexistente, e em formas preestabelecidas (BOURDIEU, 1996, p.163, grifos meus).

Essa perspectiva possibilita-me a compreensão do caráter ambivalente da atividade editorial e do comércio livreiro, a partir do dilema moderno71 da cultura escrita, identificado por Chartier (2002, p.75) como ―o receio da perda e o medo do excesso‖, que aponta para a necessidade de criar instituições e práticas de preservação e transmissão da memória textual (coleta de textos antigos, edição de textos, edificação de bibliotecas, organização de catálogos, inventários e enciclopédias), ao mesmo tempo em que se constroem instrumentos de seleção, classificação e hierarquização dos textos. Dessa forma, os sujeitos que atuam no mercado livreiro desempenham uma dupla função na mediação cultural, literária, social, e, ainda, econômica:

De um lado, somente eles podem assegurar a constituição de um mercado dos textos e dos julgamentos. São eles uma condição necessária para que possa ser construída uma esfera pública literária e um uso crítico da razão. Mas, de outro, em virtude de suas próprias leis, a edição submete a circulação das obras a coerções e a finalidades que não são idênticas àquelas que governaram sua escrita (CHARTIER, 2002, p.76).

Percebendo que a organização de critérios de seleção definem os livros a serem publicados, a forma como são publicados e as finalidades de sua publicação, Chartier (2002) evidencia os múltiplos sujeitos e interesses envolvidos nesse processo, e integra História Cultural e Sociologia dos Textos para construir uma história da mediação editorial, o que se propõe a fazer em uma dupla trajetória: ―a dos textos, cujas significações mudam quando mudam as formas de sua feitura ou de sua paginação, a do público leitor, cuja composição social e cujas expectativas culturais se modificam quando se modificam as possibilidades de acesso à cultura impressa‖ (CHARTIER, 2002, p.76). Essa perspectiva abre espaço para a construção de um diálogo com a definição de Filologia apresentada por Marquilhas (2010b):

Estudo do texto escrito na perspectiva de sua produção material, da sua transmissão através do tempo e da sua edição. O que é essencial no texto que constitui o objecto da filologia é o seu registo em suporte material, ficando os textos orais excluídos das

71 Embora Chartier (2002, p.75) situe esse dilema no período que ele designou como primeira modernidade (entre o final do século XV e o início do século XIX), considero que essa tensão deixou rastros nas tendências do mercado livreiro do século XX.

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preocupações desta disciplina. O termo evoluiu de uma acepção muito lata, romântica sobretudo, que englobava estudos literários e linguísticos, para o conceito estrito de disciplina concentrada na recriação das coordenadas materiais e culturais que presidiram à fabricação e sobrevivência de um texto escrito. A orientação última é a de preparar a edição do texto, daí que a filologia culmine na crítica textual. Tem ainda, como disciplinas auxiliares, a codicologia, a bibliografia material, a manuscriptologia e a paleografia, segundo as quais se descreve e interpreta a dimensão material do texto: o livro, o documento e a letra que o enformam (MARQUILHAS, 2010b, verbete Filologia, grifo meu).

Ao buscar as ―coordenadas materiais e culturais que presidiram à fabricação e sobrevivência de um texto‖ (MARQUILHAS, 2010b), entendo que a abordagem evidenciada acima não apenas estabelece relação entre materialidade, historicidade e cultura dos textos, mas, principalmente, conduz à ideia de texto como fabricação, um trabalho, uma construção, ou, nos termos da Sociologia dos Textos, um ―proceso de construcción material‖72 (MCKENZIE, 2005 [1985], p.31). Essa perspectiva desloca os estudos filológicos da ideia de autoria, reconhecendo o texto como um elemento social. Em última análise, tais ―coordenadas materiais e culturais‖ são apresentadas por Chartier (2002) como mediação editorial e cultural que, no estudo dos textos literários, relacionam-se ao cânone e ao mercado de bens simbólicos e comerciais. A definição de Marquilhas (2010b) aponta-me para outra questão, que suscita reflexão. Ao afirmar que ―o que é essencial no texto que constitui o objecto da Filologia é o seu registo em suporte material, ficando os textos orais excluídos das preocupações desta disciplina‖, propõe, ainda que indiretamente, uma desmaterialização do texto oral73 e uma consequente restrição do objeto de estudo filológico. McKenzie (2005 [1985]), ao apresentar o objeto da Sociologia dos Textos, utilizou-se da expressão ―formas registradas‖ (MCKENZIE, 2005 [1985], p.3074), uma vez que tais formas perpetuam e garantem o que Marquilhas (2010b) chamou de ―a sobrevivência de um texto‖. McKenzie (2005 [1985]) afirma que textos são:

[...] los datos verbales, visuales, orales y numéricos em forma de mapas, impresos y música, archivos de registros sonoros, de películas, vídeos y la información

72 Tradução livre: ―processo de construção material‖. 73 Embora não seja este o foco do meu estudo, não poderia deixar de levantar essa questão, para a qual Paul Zumthor em A letra e a voz, (1993 [1987]) entende a materialidade dos textos orais a partir de seu caráter performático, envolvendo gesto, voz e cena. No campo dos estudos filológicos, Claire Blanche-Benveniste (1998), em Estudios lingüísticos sobre la relación entre oralidad y escritura, sinaliza a necessidade de se construírem critérios filológicos para a edição de textos orais, afirmando que estes mais seriam critérios de transcrição dos textos. Maximiano de Carvalho e Silva (1994, p.59), por sua vez, ao definir o conceito, o objeto e a finalidade da Crítica Textual, nota que o texto oral deve tornar-se objeto de análise filológica, uma vez que, se a Filologia intenta estudar a língua como elemento cultural e histórico, deve tomá-la não somente em sua modalidade mais tensa, formal, mas também em sua forma espontânea. 74 Cf. f.31, em que se comenta esta citação.

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computerizada; de hecho, todo desde la epigrafía a las últimas formas de discografia. No es posible ignorar el reto que suponen essas nuevas formas75 (MCKENZIE, 2005 [1985], p.31).

Para justificar a necessidade de ampliação e de materialização da noção de texto, McKenzie (2005 [1985]) recupera a origem latina do vocábulo. Do verbo texere, ―tecer‖, tem- se o substantivo tēxtŭs. Essa mudança, para McKenzie (1985, p.31), ―supone passar de acción de moldar um médio material a sistema conceptual, de tramar uma tela a tejido de palavras76‖, ou seja, deixa de ser a ação, o fazer-se, e passa a representar o resultado de uma ação. Em ambos os casos, evidencia-se o processo de construção material. Diante de tais considerações, entendo o trabalho filológico como ―resultado das ações de ler, interpretar e editar textos‖ (BORGES; SOUZA, 2012, p.27), por isso, convém situá-lo em sua complexidade, entendendo-o como testemunho, documento e monumento.

2.2.1 O texto como testemunho, documento, monumento

Le Goff (1990), ao caracterizar o objeto da história como documento/monumento, analisa que ―o que sobrevive não é um conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores‖ (LE GOFF, 1990, p.525, grifo meu). Aproximando essa ideia da perspectiva de Gumbrecht (2007 [2003], p.71), que compreende a historicidade de um texto como uma escolha crítica que parte da disposição do observador, destaco que Le Goff (1990, p.526, grifos do autor) afirma que os ―materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador‖. Como monumento, o texto é entendido como ―um legado à memória coletiva‖, uma herança de um momento histórico com potencial de perpetuar a recordação e, que, por tal motivo, carece de ser preservado. Le Goff (1990) recupera a raiz da palavra latina monumentum (mens, relativa à memória) para afirmar que ―o monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos‖ (LE GOFF, 1990, p.526, grifo do autor). Ligados ao poder de perpetuação das sociedades históricas, os monumentos

75 Tradução livre: ―os dados verbais, visuais, orais e numéricos em forma de mapas, impressos e música, arquivos de registros sonoros, de películas, vídeos e informação computadorizada. De fato, tudo desde a epigrafia às últimas formas de discografia. Não é possível ignorar o desafio que supõem essas novas formas‖. 76 Tradução livre: ―supõe passar da ação de modelar um meio material a um sistema conceitual, de tramar uma tela a tecido de palavras‖.

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estão relacionados à memória social de um povo, necessários para a construção e manutenção de sua identidade cultural. Para Le Goff (1990, p.525), tanto documentos quanto monumentos são tratados como ―materiais da memória coletiva e da história‖:

Enquanto conhecimento do passado, a história não teria sido possível se este último não tivesse deixado traços, monumentos, suportes da memória coletiva. Dantes, o historiador operava uma escolha entre os vestígios, privilegiando, em detrimento de outros, certos monumentos, em particular os escritos, nos quais, submetendo-os à crítica histórica, se baseava. Hoje o método seguido pelos historiadores sofreu uma mudança. Já não se trata de fazer uma seleção de monumentos, mas sim de considerar os documentos como monumentos, ou seja, colocá-los em série e tratá-los de modo quantitativo; e, para além disso, inseri-los nos conjuntos formados por outros monumentos: os vestígios da cultura material, os objetos de coleção, os tipos de habitação, a paisagem, os fósseis e, em particular, os restos ósseos dos animais e dos homens. Enfim, tendo em conta o fato de que todo o documento é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, trata-se de pôr à luz as condições de produção e de mostrar em que medida o documento é instrumento de um poder (LE GOFF, 1990, p.525, grifos do autor).

Como Le Goff (1990) deixa perceber, o tratamento documental dos registros históricos pressupõe uma mudança de postura do pesquisador e, principalmente, o desenvolvimento de uma atitude crítica. Nietzsche (2003 [1873]), ao caracterizar a função antiquário (que busca preservar e venerar elementos do passado, com respeito às antigas continuidades) da história monumental, problematizou seu aspecto historicista e saudosista, por buscar o reconhecimento da grandeza do passado em relação ao presente, promovendo, uma dissociação sistemática do sujeito histórico com o tempo em que vive. Assim, Nietzsche (2003 [1873]) assegurava que a história crítica (abordagem supra-histórica) marcava o sofrimento e a busca da libertação do homem pelo reconhecimento das injustiças do passado, o que se torna, posteriormente, na interpretação de Foucault (1979), o uso destruidor da verdade, o sacrifício do sujeito de conhecimento pela vontade de saber. O que propõe Foucault (1979), apoiado no conjunto da obra de Nietzsche, é que a genealogia se construa a partir das descontinuidades dos acontecimentos históricos, o que só poderia ser feito a partir de um estudo de natureza arqueológica, baseado na crítica dos documentos, tendo em vista que estes não são inócuos. Observe que não uso aqui o termo fato histórico, considerado, desde Nietzsche (2009 [1887]), como inacessível, pois, para ele, tudo o que se consegue resgatar de uma suposta verdade sobre o passado da humanidade é uma interpretação construída para assegurar o poder de um grupo hegemônico. Sobre esses pontos reside o problema da história: a vontade de verdade, a vontade de poder e usos que esse poder

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faz dos documentos para convertê-los em provas monumentais. É precisamente por entender que existem sujeitos e mecanismos de controle das narrativas que são produzidas e perpetuadas como memória social e coletiva que se estabelece a historiografia. Ao comparar a história com um corpo que adoece e se cura (FOUCAULT, 1979), se retira dela o status de ciência tomada como verdade incontestável (e, por conseguinte, confronta-se também o status de monumento dos materiais – textos – históricos), seguindo o que Nietzsche (2009 [1887]) propõe: toda verdade incriticável (inclusive as ciências modernas, com toda a sua necessidade de provar, construindo fatos incontestáveis), não liberta, mas aprisiona o homem. Diante dessa perspectiva, Nietzsche (2009 [1887]) afirma que as ciências não se opõem aos ideais ascéticos:

Sua pretensão [da moderna historiografia] mais nobre está em ser espelho; ela rejeita qualquer teleologia; nada mais deseja ―provar‖; desdenha fazer de juiz, vendo nisto o seu bom gosto – ela não afirma, e tampouco nega, ela constata, ―descreve‖... Tudo isso é ascético em alto grau; ao mesmo tempo, que não haja engano, é niilista em grau ainda mais elevado! (NIETZSCHE, 2009 [1887], p.134).

Em A genealogia da moral, Nietzsche (2009 [1887]) qualifica como demasiado humana a necessidade de um objetivo, de um ideal, e identifica que é com base nisso que se constroem as cadeias de pensamento, em específico o que ele denomina como ideais ascéticos, tão criticados por ele: para garantir a formação de rebanho, isto é, seguidores que validem o poder de uma autoridade específica. Os ideais ascéticos constituem-se em negações dos prazeres mundanos com vistas ao desenvolvimento espiritual, comum ao discurso religioso de tradição judaico-cristã. O ideal consiste em reverter para o homem sofredor a razão do seu próprio sofrimento e, assim, deslocar o alvo do ressentimento para o próprio homem (o que ocorre através da noção de que o homem é culpado pelo seu próprio sofrimento), a partir de um sistema tríplice de ações que se constroem na negação da vida: repúdio ao prazer, ódio de si mesmo, medo do desejo. Para Nietzsche (2009 [1887]), os ideais ascéticos originam a vontade do nada e a negação da condição humana, resultando em uma vida niilista. Em seu discurso, Nietzsche recusa o que ele considera ―a contemplatividade covarde, o lúbrico ‗eunuquismo‘ diante da história, o flerte com ideais ascéticos, a tartufesca equanimidade da impotência‖ (NIETZSCHE, 2009 [1887], p.135). Para ele, a história torna- se ascética ao adotar a postura contemplativa que não enfrenta os jogos de poder existentes na sociedade, e niilista, pois esse comportamento evidencia uma vontade do nada que negaria a condição de vida. A propósito, esse niilismo é taxado como consequência do ascetismo.

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Com base nessa perspectiva, seguindo o discurso da Segunda Consideração Intempestiva (NIETZSCHE, 2003 [1873]), Michel Foucault (1979) critica a história sob o ponto de vista supra-histórico, que recolhe a diversidade em uma totalidade bem fechada em si mesma e reduzida no tempo, o que ―constrói um ponto de apoio fora do tempo, [...] pretende tudo julgar segundo uma objetividade apocalíptica; mas é que ela supôs uma verdade eterna, uma alma que não morre, uma consciência sempre idêntica a si mesma‖ (FOUCAULT, 1979, p.18). A partir dessa análise, Foucault desenvolve a perspectiva de uma história crítica, construída a partir das micro-histórias (da sexualidade, da loucura), de caráter interpretativo, provisório, falível e múltiplo, pois, para ele,

[a] história "efetiva" se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apoia em nenhuma constância: nada no homem − nem mesmo seu corpo − é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o homem se apoia para se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite traçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto. É preciso despedaçar o que permitia o jogo consolante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa "reencontrar" e, sobretudo, não significa "reencontrar-nos". A história será "efetiva" na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo. Ela não deixará nada abaixo de si que teria a tranquilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade. E que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar (FOUCAULT, 1979, p.18).

Nesse ponto, Foucault propõe uma inversão do platonismo, abordando a história sob perspectivas múltiplas, com problematizações que procuram, na vontade de saber, as transformações das práticas discursivas. Para ele, mais do que a história tradicional, faz-se necessária a construção de uma arqueologia. Por isso, para a sistematização de sua história crítica, ele utiliza a arqueologia do saber, ―conhecimento dos princípios e condições de possibilidade dos saberes de uma determinada época‖ (OROPALLO, 2005, p.69), em conjunto com a genealogia do poder, ―um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, tornando-os capazes de oposição e luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico‖ (FOUCAULT, 1979, p.97). No campo das práticas de estudo sobre o texto, posso afirmar que a proposta de Foucault (FOUCAULT, 1979) é converter o texto, antes tido como monumento, em documento, promovendo sua dessacralização, confirmando um movimento já iniciado em fins do século XIX, por Fustel de Coulanges (LE GOFF, 1990, p.527). Le Goff (1990, p.527) destaca que a noção de documento (do latim documentum, derivado de docere, ―ensinar‖)

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difundiu-se na linguagem jurídica com o significado de ―prova‖ no século XVII e evoluiu para a ideia de ―testemunho histórico‖ no século XIX.

O documento que, para a escola histórica positivista do fim do século XIX e do início do século XX, será o fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica. A sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do monumento. Além do mais, afirma-se essencialmente como um testemunho escrito (LE GOFF, 1990, p.526-527, grifo do autor).

Ressalto que a escola moderna fala em fato histórico, identificando o documento com o texto (e limitando-se ao texto escrito) e notando que ele tende a configurar-se como prova histórica. Ainda assim, a conversão do objeto de pesquisa da história em documento suscita que ele não existe por si mesmo (como o monumento), mas que, como destaquei no excerto acima, é resultado de uma escolha, uma atitude crítica do historiador. Le Goff (1990) destaca que, na prática, o triunfo do documento sobre o monumento ocorreu apenas no século XX, ainda que se falasse em documento desde o século XVII, quando da publicação do De re diplomatica, de Don Jean Mabillon, ―fundamento da história ‗científica‘ que vai permitir a utilização crítica do documento e de certa maneira criá-lo, trata-se apenas ainda de monumento‖ (LE GOFF, 1990, p.527, grifos do autor), uma vez que – e isto eu proponho ao interpretar Le Goff (1990) à luz de Nietzsche (2003 [1873]) – o aspecto acrítico e contemplativo desse paradigma da história constrói um objeto que é tomado como verdade imutável e não enfrenta os jogos de poder. Foi, portanto, o século XX responsável pela ―revolução documental‖ e, citando novamente Coulanges, Le Goff (1990) afirma que o triunfo do documento sobre o monumento coincide com o do texto, convertendo-se em objeto da história, e destaca a obra L‟historie et ses méthodes, em cujo prefácio, Samaran, em 1961, afirma que ―não há história sem documentos‖ e ―há que tomar a palavra ‗documento‘ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira‖ (SAMARAN apud LE GOFF, 1990, p.531). Essa ideia de Samaran identifica-se à proposta de texto como forma registrada (MCKENZIE, 2005 [1985]) e constrói-se o documento como prova histórica. A partir desse alargamento da noção de documento vejo o que Le Goff (1990, p.531) destacou como revolução documental, na segunda metade do século XX, predominantemente nas décadas de 1960-1970, coincidindo (embora não pense ser essa uma coincidência, mas sim uma relação causa/efeito) com o período em que se estabelece a transição da noção de

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Homem para homem, construindo as bases das práticas do humanismo pautadas no descentramento das hierarquias de poder, e, também, no desenvolvimento da Crítica Genética e da Sociologia dos Textos:

Esta revolução é, ao mesmo tempo, quantitativa e qualitativa. O interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a história que avança depressa, a história política, diplomática, militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implícita dos documentos; por exemplo, coloca em primeiro plano, para a história moderna, o registro paroquial que conserva para a memória todos os homens. O registro paroquial, em que são assinalados, por paróquia, os nascimentos, os matrimônios e as mortes, marca a entrada na história das "massas dormentes" e inaugura a era da documentação de massa (LE GOFF, 1990, p.531).

Dessa maneira, observo que a revolução documental promove o desenvolvimento da história e, tendo ocorrido no período da revolução informática, faz surgir uma nova erudição, pautada em novas formas de armazenamento, classificação e estudo dos documentos, considerados em sua multiplicidade. É essa nova erudição que culminará na crítica do documento (FOUCAULT, 2008 [1969]) e na correlação documento/monumento (LE GOFF, 1990). Na condição de documento, o texto é entendido como prova histórica que, como tal, é construída pelo historiador a partir do exercício crítico de avaliação da sua autenticidade. No estabelecimento da relação entre documento e monumento a partir da questão do poder, ressalto que o valor histórico de um texto como documento a ser estudado e como monumento a ser preservado é estabelecido a partir da legitimação que um grupo social ou uma figura de autoridade estabelece para tal. Portanto,

o documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que no silêncio (LE GOFF, 1990, p. 537-538).

Embora eu esteja me baseando em Le Goff (1990), é pertinente informar que a identificação do documento com o monumento estabeleceu-se a partir de Zumthor (1960), quando publicou Document et monument - à propos des plus anciens textes de langue française, na Revue des Sciences Humaines. Distinguindo monumentos linguísticos de simples documentos (já que seu objeto se resumia a uma quantidade pequena de textos em francês antigo), Zumthor propõe-se a ―edificar‖77 os primeiros, notando a existência de

77 Utilizo aqui o termo com o sentido de monumentalizar, tornar concreto e elevado.

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tradições monumentais orais, a partir da constatação de que a escrita tende a ser monumentalizada e que a língua oral e vulgar também produz monumentos. Para Le Goff (1990, p.535), ―Zumthor descobria o que transforma o documento em monumento: a sua utilização pelo poder. Mas hesitava em transpor o fosso que consistia em reconhecer em todo o documento um monumento‖. Nesse contexto, a perspectiva arqueológica proposta por Foucault (2008 [1969]) desenvolve-se como resposta aos problemas da História. Para ele, realizar a crítica do documento é uma tarefa histórica, e os modos como essa crítica se desenvolve, bem como sua finalidade, especificam a perspectiva histórica que se partilha, pois,

[d]esde que existe uma disciplina como a história, temo-nos servido de documentos, interrogamo-los, interrogamo-nos a seu respeito; indagamos-lhes não apenas o que eles queriam dizer, mas se eles diziam a verdade, e com que direito podiam pretendê-lo, se eram sinceros ou falsificadores, bem informados ou ignorantes, autênticos ou alterados. Mas cada uma dessas questões e toda essa grande inquietude crítica apontavam para um mesmo fim: reconstituir, a partir do que dizem estes documentos – às vezes com meias-palavras –, o passado de onde emanam e que se dilui, agora, bem distante deles; o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio: seu rastro frágil, mas, por sorte, decifrável (FOUCAULT, 2008 [1969], p.7).

Devo evidenciar que, até aqui, falei em reconstituir o documento, deduzindo informações que nele não se encontram, tratando-o como um fragmento do passado e, como tal, uma ruína e um resíduo. Essa abordagem ecoa na perspectiva historicista da Filologia do século XIX, culminando na teoria da edição crítica lachmanniana, centrada na reconstrução do arquétipo, em restituir o texto à sua forma genuína, ou, nas palavras de Spina (1994, p. 83): deduzir do texto ―aquilo que nele não está‖, como ―sua autoria, a biografia do autor, a datação do texto, a sua posição na produção literária do autor e da época, bem como a sua avaliação estética‖. A esse respeito, pontuo a crítica de Moreira (2012), ao afirmar que

[é] preciso ainda questionar como se pode determinar a autoria de um texto se não houvesse nele marcas supostamente autorais que permitissem ao filólogo estabelecer o elo genético entre texto e autor. Nesse sentido, não tem cabimento, segundo nosso juízo, dizer que a filologia deduz do ―texto aquilo que nele não está‖, pois se não houvesse marcas, traços, a serem interpretados, não haveria como aplicar o procedimento do usus scribendi e, muito menos, relacionar o texto a um certo estilo epocal revelador de uma dada sensibilidade, tais como os preconizam os praticantes do método de Karl Lachamnn. Se o método de Karl Lachmann, ao menos para os lachmannianos, é espécie de regra canônica de composição historiográfica visante aos fins acima especificados conforme Segismundo Spina, ele, na medida em que prescreve a aplicação de princípios metódicos, produz o necessário e correlato enfraquecimento de qualquer potencialidade crítica, pois essa se vê obstada pela própria rigidez dogmática (MOREIRA, 2012, p.7).

81

Contra essa perspectiva de tratamento documental, Foucault (2008 [1969]) aponta para uma transformação na posição e nas práticas do historiador sobre o documento:

[...] a história, em sua forma tradicional, se dispunha a "memorizar" os monumentos do passado, transformá-los em documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam rastros deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos. Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento (FOUCAULT, 2008 [1969], p.8).

Para Foucault (2008 [1969]), cabe ao historiador a crítica do documento, a partir de seu inventário, organização e classificação. Dizendo isso, ele propõe um tratamento arquivístico aos documentos da memória:

trabalhá-lo [o documento] no interior e elaborá-lo: ela [a história] o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. [...] ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações. [...] ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental (livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.) que apresenta sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade, formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas (FOUCAULT, 2008 [1969], p.7-8).

Assim, entendo que realizar a crítica do documento significaria, para Foucault (2008 [1969]), organizá-lo em séries discursivas e dispô-lo à sociedade, para compor, a partir dele, micro-histórias, reconhecendo seu caráter provisório, duvidoso, local e descontínuo. No plano dos textos modernos e contemporâneos, tomá-los como documento implicaria considerá-los em sua multiplicidade de versões, fazendo falar os diferentes sujeitos que atuaram em seu processo de produção, circulação e recepção. Editar tais textos estaria, dessa forma, longe de buscar deduzir do texto ―aquilo que nele não está‖ (SPINA, 1994, p. 83), reconstituindo um arquétipo que se considera genuíno. Outrossim, toda edição evidencia uma leitura possível do conjunto documental estudado, resultante do exercício crítico do editor de textos. Na conjuntura das atividades filológicas, compreender o texto na tríplice abordagem testemunho- documento-monumento, como propõe Borges (2015, p.43), significa que:

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Pela ação do filólogo, o texto é tomado como testemunho, materializado em determinado suporte (manuscrito, datiloscrito, digitoscrito, impresso ou digital); como documento, é a prova que se tem dos fatos que marcaram dada sociedade, e, como monumento, transmite a outros a memória. Ao filólogo cabe, além da tarefa de ―guardar‖ o patrimônio escrito, artístico e cultural, agir na recuperação, restauração, conservação, edição e estudo de textos (testemunhos-documentos-monumentos). Não se trata apenas de uma ação para preservar documentos, mas de uma ação crítico-interpretativa do filólogo que propõe para os textos estudados novos sentidos, novas leituras, novas formas de ver o mundo (BORGES, 2015, p.43).

É nesse sentido que, aliada à História Cultural, a Crítica Textual tem sido campo para a organização de edições cada vez mais complexas, sejam em meio digital ou em papel, acompanhadas da organização e apresentação dos documentos em séries e dossiês, que possibilitam ao leitor o acesso às fontes utilizadas na edição.

2.3 Filologia de práxis e crítica filológica

Pelo exposto, observo o encaminhamento para uma práxis filológica voltada para a crítica interdisciplinar – como a que Borges (2015) propõe, ao fazer dialogar Crítica Textual, Crítica Genética e Sociologia dos Textos – do texto em seu tríplice aspecto. Considerando, então, a Crítica Textual como uma especificação da Filologia, tal como propôs Castro (1984), entendo que compreender o texto como processo é o caminho para a atualização da práxis filológica e desenvolvimento crítico:

A partir das diversas relações estabelecidas entre Crítica Textual e as novas abordagens de Crítica Literária, Sociologia da Arte e da Cultura, Psicanálise e História Cultural, contempla-se a renovação dos hábitos da ―velha‖ Filologia. Assim, pode-se entender a Crítica Textual (Filologia stricto sensu) como um feixe de práticas de leitura, interpretação e edição que, a um só tempo, consideram como objeto, de modo indissociável, língua, texto e cultura. Tem por objetivo a compreensão e estudo dos processos (i) de produção das práticas de cultura escrita; (ii) de transmissão histórica dos textos; (iii) de circulação social do texto; (iv) de recepção e reconfigurações que uma dada época constrói para o texto (BORGES; SOUZA, 2012, p.21, grifos dos autores).

Ressalto que a renovação da ―velha‖ Filologia propõe, em certa medida, um retorno às práticas humanísticas, sem, contudo, regressar ao modelo clássico e antropocêntrico, centrado na erudição canônica. Ao contrário, o que verifico é que, marcado pela insuficiência teórica, o paradigma moderno abre-se a um campo interdisciplinar. O retorno à Filologia reconfigura, então, sua práxis, de tal modo que não se trata de restauração, mas de novas possibilidades. Tal reflexão, proposta por De Man (1989) conduz ao questionamento em que medida seria esse, de fato, um retorno, ou uma reconstrução, já que as noções de texto (e também de autor,

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obra, edição), sobre as quais recai a análise filológica, foram modificadas e desestabilizadas no novo paradigma. Dessa forma, o que se afirma a respeito de ―la vieja diosa‖78 é que ―la filologia es la misma de siempre, pero ya no es la misma‖79 (TOVAR, 2004, p.465). Situada no campo das práticas interdisciplinares, a Filologia, hoje, nos dizeres de Gumbrecht (2007 [2003]), acumula possibilidades diversas de atuação. E essa potência (nos termos de Gumbrecht) emerge do seu diálogo com outros campos, o que possibilitou a diversificação de suas tarefas. É o que tem buscado mostrar diferentes adeptos da Nova Filologia, alguns dos quais cito aqui para ilustrar a pluralidade de potências, assegurando o lugar histórico, político e social do filólogo. Seguindo a abordagem histórica e considerando as práticas interdisciplinares acima mencionadas, a Filologia contribui ao desenvolvimento de uma história literária. É o que tem evidenciado Belem Clark de Lara (2003), ao propor uma Filologia Literária para o estabelecimento da(s) história(s) da literatura mexicana através da edição crítica e estudos teóricos, apoiando-se na proposta de ―revalorar nuestro patrimonio geográfico y cultural, afirmar nuestra identidad, y con todo ello, fortalecer la conciencia nacional‖80 (CLARK DE LARA, 2003, p.119). Para ela:

[...] se ha llegado a la definición de filología como: la ciencia que estudia la lengua y la literatura de los pueblos a partir de sus textos escritos, los cuales trata de reconstruir, fijar, interpretar y valorar en relación sincrónica y diacrónica con la época, la historia y la cultura de los países a los que pertencen. De ahí que los rescates filológicos proporcionan a la historia de la literatura textos genuinos en ediciones críticas de obras desconocidas, que han permitido subsanar faltantes en nuestras historias, y que se constituyen en aportaciones que en muchas ocasiones cambian las conceptuaciones y clasificaciones de las historias tradicionales y ofrecen nuevas lecturas y/o enfoques teóricos. De todo lo anterior se deriva que, a pesar de los intentos, la incumplida tarea de la o las historias de la literatura mexicana requiere sustentarse en la filología81 (CLARK DE LARA, 2003, p.128-129, grifo meu).

Para justificar a construção da história literária como tarefa filológica, Clark de Lara (2003) apoia-se na ideia de Filologia proposta por Vittore Branca, em 1977, que se baseia na

78 Tradução livre: ―a velha deusa‖. 79 Tradução livre: ―a Filologia é a mesma de sempre, porém, já não é a mesma‖. 80 Tradução livre: ―revalorizar nosso patrimônio geográfico e cultural, afirmar nossa identidade e, com tudo isso, fortalecer a consciência nacional‖. 81 Tradução livre: ―tem-se chegado à definição de filologia como: a ciência que estuda a língua e a literatura dos povos a partir de seus textos escritos, aos quais trata de reconstruir, fixar, interpretar e valorar em relação sincrônica e diacrônica com a época, a história e a cultura dos países a que pertencem. Daí que os resgates filológicos proporcionam à história da literatura textos genuínos em edições críticas de obras desconhecidas, que têm permitido suprir faltas em nossas histórias, e que se constituem em contribuições que, em muitas ocasiões, mudam as conceituações e classificações das histórias tradicionais e oferecem novas leituras e/ou enfoques teóricos. De todo o anterior, deriva-se que, apesar dos intentos, a irrealizada tarefa da ou das histórias da literatura mexicana requer sustentar-se na filologia‖.

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ecdótica e hermenêutica, que, para ela, corresponderia ao ―aparato histórico, lingüístico, exegético, que permite una plena y rigurosa interpretación, y que condiciona las valoraciones ideológicas, sociales y estéticas‖82 (CLARK DE LARA, 2003, p. 123). Desse modo, Clark de Lara (2003) entende que a edição crítica, produto da atividade filológica,

[…] lleva sus respectivas introducciones o estudios preliminares, donde encontramos el consabido apartado de hermenéutica, es decir, la interpretación y valoración objetiva del texto; parte importante en la que la filología literaria estudia diferentes aspectos de un texto, por ejemplo: la apreciación de lo propiamente literario; las relaciones de la obra literaria con las redes interdisciplinarias manifestadas en un contexto; o análisis de obras dentro de uno o varios marcos teóricos, entre otros83 (CLARK DE LARA, 2003, p.120).

Ressalto que a perspectiva da Filologia Literária, segundo Clark de Lara (2003), não se fecha em si mesma, mas dialoga com outras teorias, o que se evidencia nas extensas notas e comentários que caracterizam as edições realizadas sob sua coordenação. Seguindo orientação teórica diversa, Michelle Warren (2003) estabelece a noção de Pós-Filologia, propondo ―a philology consonant with postmodernism, which is to say a post- philology, [that] articulates instead the multifarious mediations of historical desires‖84 (WARREN, 2003, p.27). Compreendendo Pós-Filologia como movimento que se enreda com os estudos pós-modernos e pós-coloniais, Warren (2003) aponta a crise de identidade como ponto comum aos três movimentos. Para isso, afirma que

Etymologically, philology designates a potentially infinite range of activities conducted for ―the love of language‖. Disciplinarly, the range is only slightly less broad, and includes historical linguistics, textual editing, literary analysis, and the study of national cultures. In practice, usages that limit philology to a set of technical engagements function in tension with this virtually limitless epistemological potential. […] Philology thus mediates between the broadest understanding of text-based knowledge and the most specialized techniques for producing texts. Partly for this reason, it is at once ubiquitous and invisible85 (WARREN, 2003, p.20).

82 Tradução livre: ―aparato histórico, linguístico, exegético, que permite uma plena e rigorosa interpretação, e que condiciona as variações ideológicas, sociais e estéticas‖. 83 Tradução livre: ―leva suas respectivas introduções ou estudos preliminares, onde encontramos a seção habitual de hermenêutica, ou seja, de interpretação e de avaliação objetiva do texto; parte importante na qual a filologia literária estuda diferentes aspectos de um texto, por exemplo: a apreciação do propriamente literário; as relações da obra literária com as redes interdisciplinares expressas em um contexto; ou análise de obras dentro de um ou vários marcos teóricos, entre outros‖. 84 Tradução livre: ―uma filologia consoante com o pós-modernismo, ou seja, uma pós-filologia, [que], ao invés disso, articula as múltiplas mediações dos desejos históricos‖. 85 Tradução livre: ―Etimologicamente, a filologia designa uma gama potencialmente infinita de atividades conduzidas pelo "amor à linguagem". Do ponto de vista da disciplina, a escala é um pouco menos ampla, e inclui a linguística histórica, a edição textual, a análise literária e o estudo de culturas nacionais. Na prática, usos que limitam a filologia a um conjunto de compromissos técnicos funcionam em tensão com esse potencial epistemológico praticamente ilimitado. [...] A filologia media assim entre o entendimento mais amplo do

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Warren (2003) identifica a dificuldade de definição entre as tarefas filológicas com a noção de pós-modernidade, mais definida pelas suas características estéticas do que temporais (o confronto das relações lineares e hierárquicas, a desconfiança das ‗verdades‘, as dúvidas em relação à unidade e à autonomia do sujeito e das condições de conhecimento) (WARREN, 2003, p.20), e com o pós-colonialismo, na medida em que este ―[...] presents a double relationship to history: it indicates both a break with colonial pasts and an ongoing engagement with their legacies and renewals. And like postmodern, postcolonial refers to both historical and aesthetic conditions‖86 (WARREN, 2003, p.21). Dessa forma, ao realizarem uma crítica dos gestos totalizantes e universalizantes próprios da modernidade colonialista do século XIX,

[...] philological, postmodern, and postcolonial criticisms all share engagements with history, methods for confronting relationships between universals and particulars, and challenges to hegemony. Their disciplinary histories, moreover, are all linked to nineteenth-century European colonialisms, their presents to metropolitan academic institutions87(WARREN, 2003, p.23).

Nessa perspectiva, Warren (2003) aponta como características da pós-Filologia o deslocamento da busca pela origem (sustentada na valoração hierárquica e no julgamento das ―melhores edições‖) para o estudo das ―origens materiais‖88, estreitando o espaço entre materialidade textual e hermenêutica, e descartando a noção de ―versão autêntica‖, desmistificando o artefato texto. Além disso, Warren considera que a pós-Filologia, ao expor engajamentos ideológicos de edições e traduções, lida com complexas relações entre histórias literárias, linguísticas e políticas, propõe uma historiografia de múltiplas posições, valorizando a relação entre a mudança da linguagem e as manobras coloniais (WARREN, 2003). Isso implica uma série de práticas, uma vez que a Filologia significa o estudo de manuscritos, evidenciando o caráter construído da história e a condição textual do

conhecimento baseado em texto e as técnicas mais especializadas para produzir textos. Em parte por esta razão, é ao mesmo tempo onipresente e invisível‖. 86 Tradução livre: ―apresenta um duplo relacionamento com a história: indica tanto uma ruptura com os passados coloniais como um compromisso contínuo com seus legados e renovações. E, como o pós-moderno, o pós- colonial se refere a condições históricas e estéticas‖. 87 Tradução livre: ―[...] as críticas filológicas, pós-modernas e pós-coloniais compartilham compromissos com a história, métodos para confrontar relações entre universais e particulares, e desafios à hegemonia. Suas histórias disciplinares, além disso, estão todas ligadas aos colonialismos europeus do século XIX, seus presentes às instituições acadêmicas metropolitanas‖. 88 Verifica-se aqui uma aproximação com as ideias de Marquilhas (2010b) e Chartier (2002), ao buscarem analisar o processo de fabricação material dos textos, envolvendo pessoas, lugares e culturas.

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conhecimento, o que conduz à desconstrução da ideia do especialista como senhor do discurso e técnicas. Dessa maneira, Warren (2003) afirma que a pós-Filologia contempla a "textualidade marginal", pois entende que todos os textos têm algo a oferecer (inclusive os textos incompletos, mais recentes e mutilados), contribuindo para a reorganização das hierarquias que governam a interpretação das relações entre textos, imagens e outros elementos não-linguísticos, de modo que mesmo elementos em outras mídias passam a ser vistos como representações válidas da História Cultural. Relacionando Filologia à história política, destaco o estudo Uma Filologia Política: os tempos e as manobras das palavras (Florença, 1494-1530), de Jean-Claude Zancarini (2008). Ao analisar textos que remetem à escritura da política e da história de Florença, do fim do século XV até a queda da república em 1530 (período caracterizado pelas guerras da Itália), Zancarini (2008) define seu trabalho como uma Filologia Política, e explica:

[...] ―filologia‖ porque partimos de uma leitura (às vezes de uma tradução, forma particularmente rigorosa da leitura!) lenta e minuciosa que procura reestabelecer os laços, os ecos, os distanciamentos no interior de uma obra ou entre uma obra e outra; ―política‖, não somente porque nós escolhemos estudar um corpus de textos ligados a uma conjuntura política e militar precisa mas também porque, para nós, a abordagem crítica dos textos e a reflexão sobre o sentido das palavras utilizadas na linguagem têm um valor eminentemente político, qualquer que seja o período utilizado (ZANCARINI, 2008, p.11).

Partindo da ideia nietzschiana defendida por Ginzburg (2006) de Filologia como arte de ler lentamente, Zancarini constrói, com base nas tarefas filológicas de leitura e (re)interpretação de pensadores políticos a partir da língua empregada em seus textos, uma nova forma de fazer a história das ideias. A inovação de Zancarini consiste em reconstruir relações semânticas entre termos presentes nos textos, entendendo essas relações como relações políticas. Um dos termos estudados, considerado central na tradição florentina, é libertà, a respeito do qual Zancarini propõe-se a avaliar ―o que se ganha e o que se perde do sentido de uma palavra‖ (ZANCARINI, 2008, p.13). Dessa forma, avalia que o termo, cuja tradição remonta à transição do século XII ao século XIII, ―mistura a ideia de independência da cidade e a de uma forma de governo pelos cidadãos, forma que se opõe ao senhorio de um só‖ (ZANCARINI, 2008, p.13). Para compreender os usos políticos do termo, Zancarini (2008, p.14) buscará ―restituí-lo à conjuntura política precisa na qual é empregado‖, afirmando que ―no período que nós consideramos, a libertà florentina vai tomar um sentido novo por causa da criação do grande conselho em dezembro de 1494 [...]‖. Ao estudar a difusão da linguagem

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política em traduções, edições, reedições, Zancarini observa evoluções dessa língua em relação a usos anteriores. A mudança nos sentidos do vocábulo libertà, resultado de manobras linguísticas motivadas por interesses políticos, levam Zancarini (2008) a afirmar que a Filologia Política ―tende a colocar em evidência o sentido político dos usos linguageiros e lexicais, em uma conjuntura dada‖ (ZANCARINI, 2008, p.19). Em solo brasileiro, no campo temático do texto teatral censurado, Rosa Borges tem coordenado, desde 2006, um trabalho filológico inovador, tanto em termos relativos à teoria filológica, quanto em relação ao desenvolvimento de metodologias específicas para os objetos estudados pela Equipe Textos Teatrais Censurados – ETTC. Sob sua coordenação e orientação, realizaram-se algumas experiências exitosas de edições89 e estudos diversos, publicados como dissertações e teses, que evidenciam a progressão teórico-metodológica que me permitiu pensar o modelo de edição aqui proposto. Em doze anos de pesquisa, Borges estabeleceu lugares afins para a construção da memória do teatro da Bahia dos anos da ditadura civil-militar a partir da organização de documentos diversos relativos ao tema (textos teatrais, fotografias, certificados de censura, textos de jornais sobre o teatro da época, entrevistas com pessoas do teatro) (BORGES, 2012). Tais documentos recebem tratamento filológico que se configura na organização de acervos para a construção de um arquivo digital, edição dos textos teatrais e estudos transdisciplinares (quais sejam: Crítica Genética, Crítica Sociológica, História Cultural, Teoria e Crítica Literária, Arquívistica, ou Informática), baseados na ideia de que

[o] filólogo tem, então, o compromisso, através da pesquisa de fontes, primárias e documentais, e da edição de textos, de escrever a história da literatura produzida em determinada região, contribuindo para dar relevo à produção local, inserindo-a no panorama da Literatura Brasileira. Assim, pretende-se exercer tal prática, em relação aos autores e obras da Bahia, por meio da recuperação, preservação e edição das obras que constituem o patrimônio literário e cultural do povo baiano, que viveu sob os auspícios da ditadura (BORGES, 2012, p.62).

Todas essas diferentes práticas que aqui expus contribuem para a atualização da Nova Filologia, defendendo uma práxis de natureza disciplinar interativa, envolvendo estudos linguísticos, literários, políticos, compreendidos no contexto do discurso da pós-modernidade e do pós-colonialismo. Nessas diferentes perspectivas de estudo, situo a Crítica Filológica, entendida como uma ―atitude crítica de leitura concebida como um espaço de produção histórica, linguística, sócio-cultural e política‖ (BORGES; SOUZA, 2012, p.47). Esse

89 Apresentarei alguns modelos produzidos por pesquisadores do grupo na seção seguinte.

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posicionamento crítico da leitura é considerado por Said (2007 [2004]) como marca da práxis filológica dentro da perspectiva humanista, pois, para ele,

[o] humanismo diz respeito à leitura, diz respeito à perspectiva e, em nosso trabalho como humanistas, diz respeito às transições de um domínio, de uma área da experiência humana para outra. Diz também respeito à prática de outras identidades que não as dadas pela bandeira ou pela guerra nacional do momento. O desenvolvimento de uma identidade alternativa é o que fazemos quando lemos e quando ligamos partes do texto a outras partes, bem como quando passamos a expandir a área de atenção para incluir o alargamento de círculos de pertinência (SAID, 2007 [2004], p.105, grifos meus).

Seguindo essa abordagem, Said (2007 [2004]) recupera a ideia de Filologia como forma de ler textos, ou, na definição nietzschiana, a arte de ler lentamente. A partir dessa perspectiva, a crítica filológica busca ―compreender as inter-relações entre os conteúdos produzidos historicamente no texto e os mecanismos (linguístico-discursivos) produtores de significados no texto, ou melhor, pensar a leitura do texto por meio das coordenadas linguístico-discursivas, culturais, sócio-históricas e políticas nas quais o texto foi (re)inscrito e inseminado‖ (BORGES; SOUZA, 2012, p.48). Essa perspectiva integra as múltiplas abordagens filológicas, todas pautadas nos atos de leitura – recepção e resistência propostas por Said (2007 [2004]) – que fazem da crítica filológica um ―laboratório de produção de sentido‖ (BORGES; SOUZA, 2012, p.46-47). Dessa forma, reconhecer a produção de sentido como resultado de práticas de leitura que envolvem recepção e resistência pressupõe uma atividade de historicização do texto, exercendo um dos poderes da Filologia (GUMBRECHT, 2007 [2003]). Assegura Moreira (2012) que

[a] condição da escrita de uma crítica filológica historicamente pertinente é assegurar a consciência de uma diferença e distância entre nós mesmos e o passado, que pressupõe sempre o reconhecimento prévio de que nós mesmos somos históricos. Se se pode propor que o texto histórico e filológico ―deve ser visto como um ‗substituto‘ presente aqui e agora no lugar de um passado não presente‖ (ANKERSMIT, 2006, p. 95-114), essa substituição deve atender a determinadas condições de produção do saber histórico, pois esse passado não presente a ser apresentado textualmente a um leitorado contemporâneo pode dar uma ideia muito díspar das práticas letradas de que é parte a depender da historicização mais ou menos rigorosa das categorias que operacionalizarão sua produção. A historicização das categorias que operacionalizam a produção desse passado é determinante da representação do passado levada a efeito pelo historiador e pelo filólogo (MOREIRA, 2012, p.8, grifos do autor).

Ressalto que o cuidado ao representar o passado textualmente, contribuindo para a historicização dos textos, suscita uma consciência histórica, cosmopolita, ―pues cosmopolitas

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son aquellos que no se sienten completamente en casa en ninguna parte‖90 (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.71). A pré-condição de historiar é, assim, um desejo de dar um passo atrás da opinião pragmática que penetra a vida cotidiana, e trazer à mão objetos que não estavam presentes, torná-los visíveis e sagrados, restaurar alguma presença na ausência (identificar os fragmentos, nos dizeres do próprio Gumbrecht), como sugere Moreira (2012). Dessa exposição, entendo que a crítica filológica objetiva redefinir as relações dos sujeitos com a história a partir do estudo de textos. Deste ponto, seguirei da crítica filológica para o contexto das humanidades digitais, a fim de estabelecer critérios para a construção da hiperedição de Os Desinibidos, de Roberto Athayde. Nesse sentido, a diversificação da práxis editorial, promovida pela Crítica Genética, pela Sociologia dos Textos e pela Informática – como explorarei na próxima seção – atualiza métodos e modelos editoriais. No caso específico do dossiê Os Desinibidos, proponho-me a: a) classificar os documentos, organizando-os em séries, conforme procedimentos definidos por Borges et al (2016), e dispondo-os em meio digital; b) construir, a partir da leitura de tais documentos, uma história social do texto, considerando diversos agentes e procedimentos técnicos e políticos envolvidos; c) comparar os testemunhos da tradição direta, entendidos como versões, dispondo-os em uma hiperedição constando de edição sinóptico-crítica hipermídia e edição fac-similar.

90 Tradução livre: ―pois cosmopolitas são aqueles que não se sentem completamente em casa em nenhuma parte‖.

90

3 FILOLOGIA, ARQUIVO HIPERMÍDIA E HUMANIDADES DIGITAIS: A CAMINHO DE UMA HIPEREDIÇÃO PARA OS DESINIBIDOS

HyperEditing is what scholars will be doing for a long time. McGann (1997, p.43)

Busco, ao longo desta seção, compreender a práxis filológica no campo das Humanidades Digitais, a fim de destacar como a relação impresso/digital amplia o horizonte de trabalho da crítica textual. Para tanto, situo alguns conceitos que serão operacionalizados na minha prática, baseada em trabalhos anteriores ao meu, como McGann (2008), Barreiros (2015) e Mota (2017). Em seguida, insiro o arquivo hipermídia nas práticas da História Cultural, para integrá-lo à discussão filológica, propondo uma leitura do sujeito autor Roberto Athayde e do texto Os Desinibidos, com base nos documentos que compõem o dossiê estudado. Dessa leitura filológica do arquivo, esboçarei uma proposta de hiperedição como arquivo hipermídia, preservando os códigos inerentes à cultura analógica em que os documentos com os quais trabalho estão inseridos. Partindo da discussão já implementada na seção anterior – a respeito de uma mudança de paradigma na Filologia proposta por Cerquiglini (2007), que diferencia a Nova Filologia, entre outros aspectos, por propor como resultado de seu trabalho o hipertexto; bem como do lugar do filólogo como intelectual no campo das humanidades contemporâneas –, penso que seja necessário compreender o fazer filológico que aqui proponho em conformidade com a textualidade do tempo presente, com o advento da escrita digital. É a partir da revolução tecnológica/digital dos meios de comunicação que se pode falar de novas textualidades e disciplinas que delas se ocupam, construindo o campo das Humanidades Digitais, aqui entendidas, simultaneamente, como conjunto de práticas e como campo acadêmico. Para Paixão de Sousa (2011), a pluralidade semântica do termo é consequência das diversas iniciativas de pesquisa e centros ao redor do mundo que se identificam pelo nome Humanidades Digitais. No esforço de conferir sentido e unidade às suas práticas, pesquisadores da área redigiram o Manifesto for the Digital Humanities91, que se baseia no preceito de que ―a opção da sociedade pelo digital altera e questiona as condições de produção e divulgação dos conhecimentos‖ (DACOS, 2011), para conceber as Humanidades Digitais

91 O Manifesto for the Digital Humanities resultou de um encontro de pesquisadores do tema, intitulado THATCamp, realizado nos dias 18 e 19 de maio de 2010, em Paris, e teve sua primeira publicação em rede em 26 de março de 2011, por Marin Dacos, com traduções para diversos idiomas.

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como ―uma transdisciplina, portadora dos métodos, dos dispositivos e das perspectivas heurísticas ligadas ao digital no domínio das Ciências humanas e sociais‖ (DACOS, 2011). Diante da perspectiva transdisciplinar, Paixão de Sousa (2011) cita os parâmetros do Department of Digital Humanities, do King‟s College para afirmar que

[u]m dos lados dessa transdisciplinaridade é a incorporação dos saberes tradicionais às tecnologias computacionais; o lado oposto é a incursão dos saberes tradicionais no terreno do conhecimento tecnológico: não é possível a um geógrafo, a um historiador, a um filólogo, participar da criação de ferramentas como o HyperCities ou o TLG sem efetivamente compreender como elas funcionam. Não se trata de encomendar um banco de dados, uma plataforma, um desenho de visualização a um ―especialista em computação‖ – trata-se, efetivamente, de conceber classificações, indicadores e formas de leitura em conjunto com os profissionais da área da computação. Esses projetos demandam, assim, uma profunda intercompreensão entre esses pesquisadores, todos eles, neste movimento, tornando-se sujeitos da tecnologia – no caso dos humanistas, aprendendo, efetivamente, a ―pensar como seus computadores‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2011).

É nesse sentido que as Humanidades Digitais promovem uma autorreflexão92 a respeito das relações entre as tecnologias digitais e as ciências humanas (PAIXÃO DE SOUSA, 2011). Dessa maneira, posso afirmar que o estabelecimento desse campo de práticas justifica-se por reconhecer que o texto digital altera as relações sociais e os modos como a civilização se comunica, ou, indo além, ―computing change the way we acquire knowledge and experience affect‖93 (CHIOTIS apud PAIXÃO DE SOUSA, 2011). Isso significa que o meio digital não é mais apenas um suporte de escrita, mas afeta os modos de pensar, sentir, e relacionar-se, provocando uma profunda e irreversível transformação na civilização, o que justifica afirmar que ―the Digital Humanities are just the humanities of the present moment‖94. (REID apud PAIXÃO DE SOUSA, 2011). A esse respeito, destaco o segundo preceito do já referido Manifesto (DACOS, 2011), que postula que as Humanidades Digitais ―não negam o passado, apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, savoir-faire e conhecimento próprios dessas disciplinas, mobilizando simultaneamente os instrumentos e as perspectivas singulares do mundo digital‖ (DACOS, 2011). Em resumo, o desenvolvimento das Humanidades Digitais tem possibilitado o estabelecimento de novas práticas e novas formas de pensar os textos de tempos pretéritos, produzidos na era da cultura impressa e/ou manuscrita.

92 A esse respeito, Paixão de Sousa (2011) cita James Cummings: ―Humanidades Digitais é uma área acadêmica auto-reflexiva que analisa a aplicação da tecnologia digital aos campos de pesquisa em humanidades‖ (tradução livre). 93 Tradução livre: ―computadores mudam a forma como adquirimos conhecimento e experienciamos o afeto‖. 94 Tradução livre: ―as Humanidades Digitais são simplesmente as humanidades do tempo presente‖.

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Roger Chartier (1977), ao construir uma história dos textos, do livro e da leitura, inicia seu Le livre en revólutions (cuja tradução brasileira intitula-se A aventura do livro: do leitor ao navegador) com a seguinte exclamação, trazida por Jean Lebrun, nas suas conversações: ―apresentam-nos o texto eletrônico como uma revolução. A história do livro já viu outras!‖ (CHARTIER, 2009 [1977], p.7). A partir dessa provocação, Chartier tece uma reflexão que busca contrastar a produção e os gestos de leitura dos textos digitais com outros tempos da produção escrita. A respeito dos gestos de leitura e de escrita, esse autor esclarece que

[...] o leitor da tela assemelha-se ao leitor da Antiguidade: o texto que ele lê corre diante de seus olhos; e claro, ele não flui tal como o texto de um livro em rolo, que era preciso desdobrar horizontalmente, já que agora ele corre verticalmente. De um lado, ele é como o leitor medieval ou o leitor do livro impresso, que pode utilizar referências como a paginação, o índice, o recorte do texto. Ele é simultaneamente esses dois leitores. Ao mesmo tempo, é mais livre. O texto eletrônico lhe permite maior distância com relação ao escrito. Nesse sentido, a tela aparece como o ponto de chegada do movimento que separou o texto do corpo. O leitor do livro em forma de códex coloca-o diante de si sobre uma mesa, vira suas páginas ou então o segura quando o formato é menor e cabe nas mãos. O texto eletrônico torna possível uma relação muito mais distanciada, não corporal. O mesmo processo ocorre com quem escreve. Aquele que escreve na era da pena, de pato ou não, produz uma grafia diretamente ligada a seus gestos corporais. Com o computador, a mediação do teclado, que já existia com a máquina de escrever, mas que se amplia, instaura um afastamento entre o autor e seu texto. A nova posição de leitura, entendida num sentido puramente físico e corporal ou num sentido intelectual, e radicalmente original: ela junta, e de um modo que ainda se deveria estudar, técnicas, posturas, possibilidades que, na longa história da transmissão do escrito, permaneciam separadas (CHARTIER, 2009 [1977], p.13-14).

Devo dizer que, ao tempo de produção da análise de Chartier (2009 [1977]), a sociedade ainda não havia sido revolucionada pelos smartphones, tablets e telas com tecnologia touchscreen que, por serem sensíveis ao toque, possibilitam uma interação mais íntima entre o leitor e o texto eletrônico, reduzindo o distanciamento de que Chartier falava em 1977. Já a respeito dos processos de produção, edição e publicação, afirma que

[...] no mundo do texto eletrônico, tudo isso é uma coisa só. Um produtor de texto pode ser imediatamente o editor, no duplo sentido daquele que dá forma definitiva ao texto e daquele que o difunde diante de um público de leitores: graças à rede eletrônica, esta difusão é imediata. Daí, o abalo na separação entre tarefas e profissões que, no século XIX, depois da revolução industrial da imprensa, a cultura escrita provocou: os papéis do autor, do editor, do tipógrafo, do distribuidor, do livreiro, estavam então claramente separados. Com as redes eletrônicas, todas estas operações podem ser acumuladas e tomadas quase contemporâneas umas das outras. Sequências temporais que eram distintas, que supunham operações diferentes, que introduziam a duração, a distância, se aproximam. Atualmente, e na esfera da comunicação privada ou científica que a transformação vai mais longe: ela indica aquilo que poderia ser amanhã o conjunto da edição eletrônica (CHARTIER, 2009 [1977], p.16-17).

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A despeito de ser possível o acúmulo de funções na produção do texto digital – e as Humanidades Digitais dão abertura a isso quando propõem que o pesquisador saiba pensar com seu computador (PAIXÃO DE SOUSA, 2011) – Chartier (2009 [1977]) não poderia prever a diversidade de cursos95 e profissões96 que surgiriam da revolução informática. De fato, Chartier, no referido trabalho, ocupou-se especificamente do livro eletrônico, e, para ele, ―a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito, assim como nas maneiras de ler‖ (CHARTIER, 2009 [1977], p.13). Associado à ideia de livro, Chartier caracterizou a revolução trazida com o livro eletrônico a partir da comparação com as revoluções que se estabeleceram na história da leitura e da escrita com o volumen (destacando seu aspecto portátil, em relação às tabuas de escritura) e o códice, que possibilitava a leitura do texto com mãos livres, em comparação ao rolo, que ocupava as duas mãos no gesto de leitura de enrolar/desenrolar. Com isso, Chartier (2009 [1977]) compreende que a revolução eletrônica deve-se constituir como objeto de interesse da Crítica Textual, da história do livro e da escrita, incluindo os impressos. Nesse sentido, Paixão de Sousa (2013b) aponta caminhos para o desenvolvimento de uma Filologia digital, ou, nos termos de Crane, em 2008, e-Philology, para designar ―a filologia realizada por meio de ferramentas computacionais‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013b, p.114). Apontando projetos pioneiros na área, enfocando trabalhos de edição digital em língua portuguesa, Paixão de Sousa entende o texto digital como um texto descoporificado (aspecto que comentarei mais adiante), como uma nova forma de lógica (PAIXÃO DE SOUSA, 2013b, p.133) capaz de afetar a Filologia de diferentes maneiras, desde o novo objeto de estudo (o texto digital nativo) até a revolução metodológica e epistemológica, seguindo a perspectiva de Crane de que ―as ferramentas digitais disponíveis para o tratamento de textos fazem vislumbrar a criação de um espaço dinâmico para a vida intelectual que será tão diferente do precedente como a cultura oral é diferente da cultura escrita‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013b, p.136). No entanto, a autora é taxativa ao afirmar que ―ainda não abraçamos plenamente, por não as compreendermos, as potencialidades do novo meio‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013b,

95 Alguns cursos que se apresentam em guias de orientação vocacional são: Ciências da Computação, Engenharia da Computação, Sistemas de Informação, Tecnologia da Informação e Comunicação, e Jogos Digitais (DEARO, 2011). 96 Destacam-se variadas profissões na área de informática, tecnologia, mídias sociais e desenvolvimento de aplicativos, como programador, analista de sistemas, consultor de tecnologias de informação, engenheiro de software, especialista em sistema de informação, web designer, web master, desenvolvedor de sites, produtor executivo para web (INFORMÁTICA..., [201-]); e, na última década, com a tecnologia móvel e a popularização das redes sociais, outras profissões ainda surgiram, como gestor de mídias sociais, desenvolvedor de aplicativos móveis, entre outras.

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p.136) e segue a ideia de que ―‗os livros digitais‘ criados até hoje não passam de incunábulos: representam o último suspiro de uma tecnologia antiga – a tecnologia da difusão impressa, traduzida para um novo meio, o digital.‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013b, p.136). Essa analogia do livro digital ao incunábulo segue a perspectiva de Shillinsburg (2004 [2001], p.161), que constrói a seguinte crítica, a respeito das edições eletrônicas, tomando como contra-exemplo as edições publicadas pelo The Gutenberg Project:

Because electronic publishing is incunabular, energetic, and exciting, it is surrounded by hype, exaggeration, ignorance, and skepticism. Fantastic and disastrous projects have taken over equipment and energy worthy of better causes. The Gutenberg Project, for example, well on its way to provide 100,000 free electronic texts by the year 2000, occupies the time of scores of persons and space on innumerable computers but is the product of abysmal ignorance of the textual condition. Its texts are unreliable, for they are insufficiently proofread, inadequately marked for font and formatting, and they come from who knows where, their sources unrecorded. Its perpetrators apparently believe that any copy of a given title adequately represents the work, that all copies are equally representative of the work and infinitely interchangeable. Texts are assumed to consist of letters and punctuation in a series, regardless of font or format. In order to ensure that texts can be read by anyone anywhere, all formatting, font specifications, and special typographic effects are eliminated. The Gutenberg Project has been criticized and admonished for these fundamental flaws so frequently with little or no effect on its practice, that one no longer hesitates to declare it a textual junkyard. Valuable and undamaged items can be found in junkyards, but it takes a scavenger to find them97 (SHILLINSBURG, 2004 [2001], p.161).

Ressalto que, conquanto Chartier e Shillinsburg tenham-se referido ao texto e ao livro eletrônico, Paixão de Sousa (2013b) considera o texto digital. Embora haja uma tendência a tratar o digital e o eletrônico como sinônimos, considero essencial apontar as distinções do ponto de vista tecnológico e arquivístico que os conceitos sucitam. Enfocando o aspecto do documento, conforme o Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ,

[n]a literatura arquivística internacional, ainda é corrente o uso do termo ―documento eletrônico‖ como sinônimo de ―documento digital‖. Entretanto, do

97 Tradução livre: ―Como a publicação eletrônica é incunabular, energética e excitante, ela é cercada por excitação, exagero, ignorância e ceticismo. Projetos fantásticos e desastrosos tomaram conta de equipamentos e energia dignos de melhores causas. O Projeto Gutenberg, por exemplo, está a caminho de fornecer 100.000 textos eletrônicos gratuitos até o ano 2000, ocupa o tempo de dezenas de pessoas e de espaço em inúmeros computadores, mas é o produto de uma abismal ignorância da condição textual. Seus textos não são confiáveis, pois são insuficientemente revisados, inadequadamente marcados para fonte e formatação, e vêm de quem sabe onde, suas fontes não registradas. Seus perpetradores aparentemente acreditam que qualquer cópia de um dado título representa adequadamente o trabalho, que todas as cópias são igualmente representativas do trabalho e infinitamente intercambiáveis. Supõe-se que os textos consistam em letras e pontuação em uma série, independentemente da fonte ou formato. Para garantir que os textos possam ser lidos por qualquer pessoa em qualquer lugar, todas as formatações, especificações de fontes e efeitos tipográficos especiais são eliminados. O Projeto Gutenberg tem sido criticado e advertido por estas falhas fundamentais tão frequentemente com pouco ou nenhum efeito na sua prática, que já não hesita em declará-lo como um ferro-velho textual. Itens valiosos e não danificados podem ser encontrados em ferros-velhos, mas é preciso um limpador para encontrá-los.‖

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ponto de vista tecnológico, existe uma diferença entre os termos ―eletrônico‖ e ―digital‖. Um documento eletrônico é acessível e interpretável por meio de um equipamento eletrônico (aparelho de videocassete, filmadora, computador), podendo ser registrado e codificado em forma analógica ou em dígitos binários. Já um documento digital é um documento eletrônico caracterizado pela codificação em dígitos binários e acessado por meio de sistema computacional. Assim, todo documento digital é eletrônico, mas nem todo documento eletrônico é digital (CONARQ, [20--], grifo meu).

Como exemplo dessa distinção, o site apresenta como documentos eletrônicos filmes em VHS e músicas em fita cassete, que são produzidos e exigem um aparelho eletrônico específico para sua leitura. Tais exemplos não são, no entanto, digitais, pois não são produzidos em códigos binários, como ―texto em PDF, planilha de cálculo em Microsoft Excel, áudio em MP3, filme em AVI‖ (CONARQ, [20--]). A codificação e interpretação dos dígitos binários é um dos aspectos que diferenciam o texto digital de outras formas de textualidade. Para José Manuel Lucía Megías,

[s]e pueden entender los ―textos digitales‖ como capas de información, que, combinados, forman lo que percibimos como ―texto‖. Definiremos, entonces, el ―texto digital‖ como el texto cuyo proceso de difusión consiste en la codificación de la información por los lenguajes artificiales, y que se presenta materialmente como información lingüística codificada matemáticamente y representada con una forma de escritura humanamente legible98 (LUCÍA MEGÍAS, 2012, p.114).

Nessa perspectiva, Lucía Megías identifica uma dupla natureza do texto digital, na medida em que mantém, por um lado, a escritura já conhecida, ―la capa de información humana‖, e, por outro, ―se ha incorporado otra capa de información matemática, una serie de procesos lógicos [...] que hace funcionar el complejo entramado de operaciones que los ordenadores nos permiten realizar‖99 (LUCÍA MEGÍAS, 2012, p.114-115). Dessa dupla camada – humana/escritural e matemática/lógica – surge o texto digital como novo modelo de textualidade, ―llamado a revolucionar nuestros modos de aceder y difundir el conocimiento, como hasta ahora lo ha hecho con la información‖100 (LUCÍA MEGÍAS, 2012, p.117-118). O processamento artificial codificado e descodificado por computadores tem assegurado uma inovação revolucionária na história da textualidade, embora ainda haja muita,

98 Tradução livre: ―pode-se entender os ‗textos digitais‘ como camadas de informação, que, combinados, formam o que percebemos como ‗texto‘. Definiremos, então, o texto digital como o texto em que o processo de difusão consiste na codificação da informação para as línguas artificiais, e que se apresenta materialmente como informação linguística codificada matemática e representada com uma forma de escritura humanamente legível‖. 99 Tradução livre: ―a camada de informação humana‖, e, por outro, ―se incorporada outra camada de informação matemática, uma série de processos lógicos [...] que fazem funcionar o complexo entramado de operações que os ordenadores nos permitem realizar‖. 100 Tradução livre: ―chamado a revolucionar nossos modos de aceder e difundir o conhecimento, como até agora o tem feito com a informação‖.

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como característica das fases de transição (tal como a fase dos incunábulos, conforme a analogia de Shillinsburg), transferência da lógica da produção impressa para o universo digital.

Con las páginas, los archivos, el diseño de las letras, con esta apariencia de seguir haciendo el trabajo que era habitual en el mundo analógico nos sentimos cómodos en el universo digital. Tan cómodos que continuamos llamando con nombres inapropiados a determinadas realidades nuevas que la tecnología digital ha insertado en nuestras vidas. La página es un invento de la imprenta, la unidad de la página como unidad de lectura. […] La página, con sus paratextos particulares (cabeceras, numeración, notas a pie de página, anotaciones impresas en los márgenes, etc.), lo es porque es una unidad cerrada, inalterable, donde el texto allí difundido no puede modificar-se… pero a los nodos de información de los sitios web les seguimos llamando páginas, e incluso a los sitios mismos, en expresiones como ―Visite nuestra página‖101 (LUCÍA MEGÍAS, 2012, p.112).

Isso ocorre, para Lucía Megías, devido ao fato de os processadores de texto terem se desenvolvido de maneira que podem ser facilmente operados sem que o usuário compreenda a lógica de construção do texto digital. É essa precisamente a crítica que Shillinsburg (2004 [2001]) tece ao The Gutenberg Project, ao classificá-lo como incunabular, de modo que é necessário considerar a herança e continuidade do analógico na textualidade digital, a coexistência e influência recíproca dos modos distintos de produção e transmissão textual, uma vez que nos encontramos no limiar da mudança, como recomenda Barreiros (2015):

[...] evitam-se os mitos criados em torno de visões apocalípticas que anunciam o fim dos impressos, do livro, mais especificamente, ou atitudes visionárias que consideram a escrita digital superior em suas características. Os impressos convivem com a escrita digital e essa convivência poderá ser longa. Atualmente, existe uma influência recíproca entre esses dois modos de escrita que promove inovações das práticas de produção, circulação e apropriação dos textos (BARREIROS, 2015, p. 173).

Pondera Lucía Megías (2012) que o texto digital configura-se no hipertexto digital, produzido conforme a dupla natureza escritural/matemática e, portanto, não pode ser confundido com o texto digitalizado, que seria a reprodução no meio eletrônico de um documento impresso. Considerando tais questões a respeito do texto digital, verifico que compreendê-lo em sua materialidade é necessário, visto que ele assegura a localização da

101 Tradução livre: ―Com as páginas, os arquivos, o projeto das letras, com esta aparência de seguir fazendo o trabalho que era habitual no mundo analógico nos sentimos cômodos no universo digital. Tão cômodos que continuamos a chamar com os nomes inapropriados as realidades novas que a tecnologia digital tem inserido em nossas vidas. A página é um invento da imprensa, a unidade da página como unidade de leitura. [...] A página, com seus paratextos particulares (cabeçalho, numeração, anotações impressas em margens, etc.), e porque ela é uma unidade fechada, inalterável, onde o texto ali difundido não pode modificar-se... mas nós continuamos a chamar os sites de informação da web de páginas, e até mesmo os próprios sites, em expressões como ‗Visite nossa página‘‖.

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Filologia no campo das práticas das Humanidades Digitais. Nesse aspecto, partindo da ideia de que ―a difusão digital exige, ao menos, transformações profundas nas nossas perspectivas conceituais sobre o texto‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.20), Paixão de Sousa estabelece uma perspectiva de estudo material do texto digital (abordagem que, em 2013b, a autora redefine como texto descorporificado) e, diante disso, propõe-se a discutir as implicações epistemológicas dessa abordagem. Dessa maneira, ela estabelece um contraponto com o antiplatonismo da Codicologia e a Bibliografia Material, que entendem o texto como ―algo que se materializa nesse documento que você pode segurar nas suas mãos‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.20), ao afirmar que o texto digital se materializa em um ―documento que você não pode segurar nas suas mãos‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.21, grifo da autora). Em outro trabalho, Paixão de Sousa (2013b, p.129) faz alusão semelhante aos caracteres digitais com a declaração de Carter, em 1972, um dos fundadores da bibliografia material, de que ―type is something you can pick up and hold in your hands‖102. Isso significa, para Paixão de Sousa (2013a), que a lógica artificial de processamento da linguagem, que atravessa o sistema de códigos pré-determinados – a camada matemática, a que se referiu Lucía Megías (2012) –, resulta em uma descorporificação do texto digital, tema que ela desenvolve:

[...] o que visualizamos quando visualizamos um texto numa tela de computador são ilusões fabricadas por instruções computacionais, e, portanto, ilusões que podem ser re-fabricadas, re-codificadas, modificadas ao limite das necessidades de um editor. De fato, é essa possibilidade infinita, e fundamentalmente anti-linear, aberta pela codificação eletrônica do texto, que funda a ideia do hipertexto, imaginada já na década de 1960, pelo filósofo norte-americano Theodor H. Nelson (1965). A lógica da difusão digital tem portanto como característica central (e, na minha visão, como característica mais interessante) a desvinculação entre o texto lógico e seu suporte material. Ela descorporifica o texto. Ela permite que ―um texto‖ apareça como infinitos textos, de infinitas formas, em infinitos outros espaços, em infinitos tempos. Ela desvincula a representação dos caracteres (por exemplo) de qualquer limitação física – toda e qualquer forma pode ser representada, desde que seja logicamente prevista, pois as formas dos caracteres nesse caso não são mais que pontos distribuídos em uma matriz lógica, e não física (PAIXÃO DE SOUSA, 2013b, p.129, grifo da autora).

Para Paixão de Sousa (2013a, 2013b), a não linearidade do texto digital pode aproximá-lo da ideia de hipertexto, fazendo uso da metáfora de Borges (1944 [1941]), no conto El jardin de los senderos que se bifurcan: um labirinto. A autora entende o hipertexto como também um ―‗meta‟-texto, por envolver estrutura computacional que produz (múltiplas) representações textuais‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.25, grifos da autora) e sinaliza que

102 Tradução livre: ―texto datilografado é algo que você pode pegar e segurar em suas mãos.‖

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a ideia provinda do senso comum a respeito do hipertexto como ―texto interligado‖ insere-se no seu caráter não linear, que ela define como ―constituído por uma programação não- representacional intermediária que possibilita diferentes representações finais para o texto‖ (p.25). Tais representações se relacionam à forma como os hipertextos são produzidos e lidos:

o hipertexto, além de ser pensado para ser lido numa tela de computador (e não para ser impresso), é pensado para ser ―feito‖ em um ambiente de processamento, e ―lido‖ em outro (remoto) – em muitos outros (dinâmico). Na difusão remota do texto, o que se ―difunde‖, portanto, são as instruções para o sequenciamento de caracteres e sua visualização; a ―web‖ é um exemplo de sistema em que as instruções para a representação dos textos são compartilhadas entre diferentes máquinas, e o hipertexto é um exemplo de documento digital com representação fundamentalmente compartilhada – que tomaremos como formato de texto mais representativo de uma forma de difusão inédita, pois ―descorporificada‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p. 28-29, grifo meu).

Destarte, Paixão de Sousa conclui que o texto digital pode ser entendido como um documento descorporificado na medida em que envolve uma lógica computacional além do corpo humano para decodificação da informação, tendo em vista que ―o texto visualizado numa tela de computador não é um texto, mas sim a ‗codificação visual de um fluxo binário de informações‟, que só se realizam plenamente com a participação da interpretação humana‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.29-30). É por tal razão que a autora defende que, para compreender a materialidade do texto digital, é preciso ―abandonar os tradicionais conceitos de ‗instrumento‘ e ‗suporte‘, fundados no estudo material do códice e do livro impresso‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.30), diferenciando-se da análise promovida por Chartier (2009 [1977]). A descorporificação do texto digital é entendida pela sua ausência de suporte material, pois o texto não se registra no microprocessador, nem na tela do computador, ou mesmo na internet, e é isso o que caracteriza o documento digital como um ―objeto lógico, não físico‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.32). Essa propriedade do texto digital conduz a uma dificuldade de conceituação e, diante disso, Paixão de Sousa propõe que

o artefato mais característico do documento digital em rede é o hipertexto instanciado como ―website‖, já que é aí, tipicamente, que as representações do texto digital abrem-se à leitura. Um ―website‖, basicamente, é um conjunto de arquivos interligados em um mesmo endereço na rede, e sua dimensão de ―unidade‖ textual deriva de ser produzido com a intenção de unidade [...]. É nessa dimensão de unidade textual que podemos recortar, tenuamente, uma unidade ―artefato‖, identificando nesse tipo de publicação em rede o ponto de partida para refletir sobre as condições de produção e de leitura do texto digital. Mais especificamente, o artefato mais bem caracterizado do texto digital é o website pessoal, ou o ―blog‖, tipos ligados a mecanismos de confecção e publicação não-intermediada do texto (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.32-33).

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Entretanto, ao pautar os debates sobre materialidade digital na descorporificação do texto, Paixão de Sousa demonstra entender materialidade como sinônimo de massa, aproximando-se da dicotomia matéria versus energia, proposta pela física clássica, o que poderia ser entendido pela ideia de fisicalidade. A física moderna, porém, como demonstrou Einstein, entende que materialidade vai além da existência no tempo e no espaço, sendo medida pela massa, inércia e resistência (FROHMANN, 2006, p.22). Nesse sentido, Bernd Frohmann (2006), ao discutir O caráter social, material e público da informação, baseia-se no conceito foucaultiano de materialidade dos enunciados para pensar documentos digitais, distinguindo materialidade e fisicalidade. Frohmann (2006) produz uma leitura de A ordem do discurso e de A arqueologia do saber, de Michel Foucault, para aplicar as definições foucaultianas de enunciados na discussão sobre documentos para chegar à materialidade da informação. Para Frohmann, Foucault:

[...] discute o enunciado não do ponto de vista do que ele representa ou significa – portanto não do ponto de vista de sua informação – mas pela via de sua existência: como ele surge, as regras de sua transformação, ampliação, as conexões entre enunciados, e seu desvanecimento até deixar de existir (FROHMANN, 2006, p. 22).

Tais enunciados se pautariam em uma sequência de elementos linguísticos dotados de existência material. A respeito dos documentos digitais, Frohmann ainda relaciona aspectos de sua fisicalidade à sua materialização:

[...] Esse monte de enunciados digitais – documentos digitais – por sua leve fisicalidade, exerce força e poder através de sua materialidade de quase pura energia. As investigações de como a informação digital é materializada por meio de sua imersão em tecnologias de processamento de informação eletrônica levam diretamente às características públicas, sociais, políticas, econômicas e culturais da informação (FROHMANN, 2006, p.33).

É certo que o texto digital não pode ser ―tocado‖, nem medido em massa, como discutiu Paixão de Sousa (2013a), mas pode ser apreendido por outros órgãos do sentido, evidenciando uma produção de presença material. Entendo, a partir da discussão de Frohmann (2006), que o documento digital pode não ser avaliado em sua fisicalidade, mas isso não o impede de analisar sua materialidade, considerando suas fontes de energia e concluindo que sua materialidade agencia campos energéticos, ou melhor, campos de força: ―investigações sobre a materialização da informação através da documentação podem identificar os campos

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de força – institucional, tecnológico, político, económico e cultural – que configuram características públicas e sociais da informação em nosso tempo‖ (FROHMANN, 2006, p.33- 34). Dessa forma, compreenderei aqui, como simplificação teórica condizente com o meu trabalho de edição, o texto digital materializado como hipertexto registrado em website, segundo suas particularidades, como objeto filológico que estabelece relação dessa com as Humanidades Digitais. A partir disso, analiso como se opera a relação Filologia/Humanidades Digitais e quais seus efeitos na práxis filológica, enfocando o conceito de hiperedição como arquivo hipermídia, tratamento que proponho ao dossiê Os Desinibidos. Ressalto que essa perspectiva não se limita a pensar o digital apenas como suporte para apresentação de modelos editoriais já preexistentes ou como uma solução para os limites físicos que a página em papel apresenta diante do cotejo de testemunhos de uma tradição complexa, característica dos textos modernos. Tal postura, que limita a informática a uma ―herramienta destinada al establecimiento y elaboración de ediciones‖103 (MORRÁS, 2003) não explora a multiplicidade de funções que o digital possibilita. Nesse sentido, os avanços na informática têm evidenciado o que Morrás (2003) definiu como ―fractura que se aprecia entre dos universos filológicos‖104. Para ela, tem-se

la filología ―artesanal‖, en el que los editores realizan su trabajo utilizando el ordenador sólo en los estadios últimos de presentación del texto, a modo de máquina de escribir sofisticada; otro, el de la filología ―informática‖, en el que los teóricos del hipertexto proclamam el final de las ediciones críticas e incluso del libro impreso105 (MORRÁS, 2003).

Embora se apresentem, acima, duas abordagens extremistas, noto que, no primeiro caso, produz-se um incunábulo digital. No segundo caso, porém, não se trata de por o texto editado em rede, mas pensá-lo (em seus processos de criação, transmissão e recepção) em rede, o que não seria possível se não se modificasse a visão sobre o texto, ela própria revolucionada pelas possibilidades que o hipertexto oferece, ao fazer emergir ―uma nova configuração editorial, que tem como consequência a redefinição de papéis aparentemente fixos‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.35, grifo da autora), haja vista que, ―nessa forma de

103 Tradução livre: ―ferramenta para a criação e elaboração de edições‖. 104 Tradução livre: ―fratura que se observa entre dois universos filológicos‖. 105 Tradução livre: ―a filologia ‗artesanal‘, na qual os editores fazem o seu trabalho usando o computador apenas nos últimos estágios da apresentação do texto, como uma máquina de escrever sofisticada; outra, a da filologia ‗informática‘, em que os teóricos do hipertexto proclamam o fim das edições críticas e, inclusive, do livro impresso‖.

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produção do texto, os autores se apropriam ao mesmo tempo dos mecanismos de escrita, publicação e difusão do texto‖. O hipertexto, então, é visto como um impulso transformador da teoria filológica, indo além de sua percepção como ―encarnación informática de sus [dos ‗partidários de abolir las ediciones críticas‘106] posturas teóricas‖107 (MORRÁS, 2003). De fato,

La gravedad de semejante dejadez reside en que la aplicación de la informática a los estudios filológicos recorre caminos paralelos a ciertos cambios metodológicos y teóricos que están teniendo lugar en la crítica textual. En el plano de la filología, editores y teóricos de la edición han imaginado posibilidades que sólo pueden adquirir realidad mediante el uso de medios electrónicos y a su vez la informática ha llevado a cuestionarse de un modo renovado las características de una edición crítica y las maneras de abordar su estudio108 (MORRÁS, 2003).

Pensar digitalmente, isto é, utilizar a lógica digital para interpretar tradições textuais, e promover novas práticas editoriais a partir da informática, tem possibilitado uma renovação da práxis filológica. Nesse sentido, Paixão de Sousa (2016) distingue três formas de relacionar as Humanidades Digitais à Filologia: a primeira, que entende o digital como fonte de documentos, tem impacto nas digitalizações de materiais, especialmente nas produções de edições fac-similares; a segunda compreende o digital como ferramenta de trabalho, cujo impacto recai sobre o desenvolvimento tecnológico e científico, a partir de grupos de pesquisa/associações que constroem métodos e ferramentas (softwares) de trabalho; a terceira, por sua vez, propõe o digital como objeto de reflexão, uma etapa da história de difusão dos textos, o que se integra à História Cultural da escrita, da leitura e da circulação dos textos. O hipertexto digital, sendo interligado e não linear, tem possibilitado a construção de arquivos digitais hipermídias, que se configuram em uma rede de textos também, promovendo transformações na sociedade do saber, modificando o acesso às informações e construindo uma cultura digital, identificada pelos seguintes marcos comportamentais e opções políticas: ―[...] a interconectividade, a valorização do compartilhamento, a construção coletiva, o acesso livre‖ (PAIXÃO DE SOUSA, 2013a, p.43). É com base no paradigma editorial revolucionado

106 Morrás aponta Cerquiglini (1989) e Ross, em 1996, como preconizadores do fim das edições críticas, e destaca Landow (1995) como partidário do fim do livro impresso. 107 Tradução livre: ―encarnação informática de suas [dos ‗defensores da abolição das edições críticas‘] posturas teóricas‖. 108 Tradução livre: ―A gravidade de semelhante negligência é que a aplicação da informática para os estudos filológicos recorre a caminhos paralelos para certas mudanças metodológicas e teóricas que estão ocorrendo na crítica textual. Em termos de Filologia, editores e teóricos da edição têm imaginado possibilidades que só podem adquirir a realidade através de meios eletrónicos e, por sua vez, a informática tem levado a questionar-se em uma forma renovada as características de uma edição crítica e as formas de abordar seu estudo‖.

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pela cultura digital que basearei, ao final desta seção, minha proposta de hiperedição do dossiê do texto Os Desinibidos, sobre o qual proponho a leitura a seguir.

3.1 Uma leitura do arquivo: entre textos e documentos de censura

A organização, leitura, classificação e interpretação do conjunto documental que integra o dossiê Roberto Athayde possibilita a integração de múltiplas atividades críticas de âmbito interdisciplinar, fazendo dialogar a História Cultural, por ser o arquivo um lugar de memória109 (NORA, 1993) e a Filologia, por estudar o texto em sua materialidade, historicidade e pluralidade. Para Zilberman (2004), a pluralidade de elementos que as fontes primárias oferecem para estudo justifica o interesse de diversos campos por pesquisa por elas:

As fontes primárias [...] são concretas, materiais e palpáveis. Podem corresponder ao que restou do processo de criação, mas sinalizam sua existência e percurso; podem se mostrar na condição de sintomas, sinais ou rastros, porque se alojam no texto, no livro e no impresso. Indicam, por outro ângulo, os contextos de criação, produção material e leitura, ausentes no objeto-obra, mas determinantes de seu estatuto. Instituem séries temporais não-coincidentes, alterando concepções de história. E suscitam uma reflexão que necessariamente incorpora campos diferentes do conhecimento, uma vez que elas não se explicam por critérios de especificidade e valor (ZILBERMAN, 2004, p.15).

Eneida Maria de Souza (2003) pontua a desvalorização da pesquisa em fontes primárias pelas teorias críticas dos últimos anos e atribui às críticas filológica e genética uma revalorização desses estudos e produção de uma nova estética literária: a estética do manuscrito – projeto que Grésillon (2007[1994]) atribuiu à Crítica Genética –, que é documentado nos arquivos. Ela vai além, ao buscar compreender literatura como ―um grande arquivo, constituído das mais diversas fontes documentais, como a cultura oral, a letrada, a mitologia indígena, negra e mestiça, componentes de uma possível identidade que a cada dia se revela na sua complexidade‖ (SOUZA, 2003, p.11). Para Zilberman (2004), a teoria e a história da literatura têm des-historicizado o seu objeto de trabalho, ocupando-se da obra não como um trabalho, uma construção, um processo, mas como um objeto desmaterializado, um elemento imaterial, eterno e imutável. Nesse sentido, compreender a literatura como arquivo, na perspectiva de Souza (2003), significa

109 ―Lugares da memória‖ é um conceito da História Cultural, estabelecido por Pierre Nora (1993), que não somente indica um arquivo, posto que sua noção de lugar da memória é muito mais ampla e ―só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica‖.

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revalorizar não somente seu aspecto material, mas também plural, provisório e, nos termos de Derrida (2001 [1995]), suplementar. É contra a desmaterialização da literatura, e a consequente des-historicização dos textos, que Zilberman (2004, p.18) definiu fontes primárias como tudo o que precede a obra, de modo que qualquer experiência prévia do escritor pode ocupar o lugar da fonte. Assim, ―as fontes podem ser primárias se se estabelecer, a partir delas, uma história, caso o começo que demarcam obtenha algum impacto. Fontes podem ser chamadas de primárias se, depois delas, se constatarem as secundárias e outras‖ (ZILBERMAN, 2004, p.21). O arquivo constrói uma imagem do autor e da obra estudada, por isso, compreendê-lo como lugar de memória implica reconhecê-lo como um lugar onde se verifica a memória e, paradoxalmente, o esquecimento. Foucault (2005 [1969]) entende o arquivo como

[...] o jogo de regras que, numa cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento dos enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência paradoxal de acontecimentos e de coisas (FOUCAULT, 2005 [1969], p. 95, grifo meu).

Ressalto, na perspectiva de Foucault (2005 [1969], p.86), a descontinuidade da história, artificialmente sistematizada e organizada pela vontade de poder em uma estrutura periódica de construção imagética e, por isso, representativa, dos elementos que se desejam perpetuar. Considero importante notar que o arquivo é sempre um lugar de produção de imagem, uma representação do passado exterior ao elemento arquivado, e, por isso, uma representação de elemento, nunca o elemento em si. Essa exterioridade do arquivo é apresentada por Derrida (2001 [1995]), ao entendê-lo como

operação topográfica de uma técnica de consignação, constituição de uma instância e de um lugar de autoridade (o arconte, o akheion, isto é, frequentemente o Estado e até mesmo um Estado patriárquico ou fratriárquico), tal seria a condição do arquivo (DERRIDA, 2001 [1995], p.8, grifo meu).

Ressalto como o ato de arquivamento está sujeito à ação de uma autoridade – segundo Derrida (2001 [1995]), o arconte, autorizado pela operação de consignação, que realiza, sob uma espécie de vontade de poder (FOUCAULT, 2005 [1969]), a ação de arquivamento da imagem que ele deseja perpetuar do sujeito arquivado. Para Derrida (2001 [1995]), a ação dessa autoridade que recalca o arquivo consiste no mal de arquivo. Para Bordini (2012), o mal de arquivo é ocasionado pelo abuso da memória. Ainda assim, mesmo com o abuso e como mal, registra-se nos acervos a memória concreta, ainda que recalcada pelo sujeito arquivista, pois cada elemento do arquivo testemunha ―o universo

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simbólico de uma vida‖ (BORDINI, 2012, p.120). Os elementos de um arquivo documentam a memória de um indivíduo e, por tal razão, não se pode afirmar que exista um documento- verdade (LE GOFF, 1990), visto que este sempre está sujeito a uma conjuntura ―econômica, social, jurídica, política, cultural, espiritual‖ que devem ser estudadas como instrumentos de poder que cercam e condicionam os discursos peculiares a determinada época ou local. No âmbito da Crítica Textual, entende-se que

[...] torna-se decisivo o diálogo que é necessário estabelecer entre o arquivista e o editor, crítico e/ou interpretativo, franqueando-se o acesso às fontes e aos estudos que estas vão proporcionando, quer em sede de hermenêutica, quer em sede de antologia crítica, tendo em vista a coerência, se não excelência, da lição que se deseja disponibilizar (OLIVEIRA, 2007, p.377).

Para Borges (2012), seja qual for a perspectiva que se adote no estudo do texto, a pesquisa em arquivos, acervos e ―dispersões documentais‖ é indispensável ao trabalho filológico. Dessa maneira, se um filólogo propõe-se a editar o texto autoral, o acervo oferece- lhe dados para a comparação e interpretação dos testemunhos. Se, porém, for de seu interesse analisar a produção/circulação/transmissão/recepção dos textos, a pesquisa de fontes lhe traz material para a crítica de processos, pois evidencia as ―tradições textuais‖, os sujeitos envolvidos com a transformação da obra e os processos de produção e transmissão.

A pesquisa de fontes primárias fornece [...] subsídios necessários à fixação de formas de um determinado texto, resultado da leitura e interpretação do crítico textual, a partir da individualização e do estudo de cada testemunho. Não obstante, o estudo e a análise dos documentos depositados nesses acervos proverão o editor crítico de elementos para o conhecimento das vias e dos modos através dos quais cada objeto em questão foi (in)compreendido e (res)significado, como os espectadores/leitores de cada época leram tal texto e que sentidos foram nele incluídos e calados. O editor de textos, então, lança o seu olhar para os arquivos de maneira a deslindá-los a partir da leitura que empreende nos documentos ali encontrados (SOUZA et al, 2012, p.126-127).

No estudo de Os Desinibidos, os documentos dos censores (pareceres e relatórios), o programa do espetáculo, e algumas entrevistas com o autor, publicadas em meio eletrônico, possibilitaram-me datar, territorializar testemunhos e compreender elementos da cena que não são marcados no texto, como a bandeira do Flamengo em verde amarelo e os figurinos do espetáculo. Além disso, os textos de jornal e dos censores sobre a obra evidenciam leitura e recepção valorativa do texto, o que será essencial para a redefinição do lugar político, social e histórico de Os Desinibidos.

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3.1.1 Roberto Athayde, o dramaturgo: entre neuroses e ressurreições

Nascia no Rio de Janeiro, em 25 de novembro de 1949, Roberto José Austregésilo de Athayde. Filho caçula do casal Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde e Maria José de Athayde, Roberto Athayde viveu, desde a infância (Figura 1), um forte incentivo ao seu desenvolvimento intelectual, artístico e político.

Figura 1 – Roberto Athayde, no casarão do Cosme Velho, onde viveu em sua infância.

Fonte: RIBEIRO, 2007.

Seu pai, que ocupou a cadeira oito da Academia Brasileira de Letras - ABL, chegando a presidi-la de 1958 até sua morte, em 1993, imortalizou-se não somente como cronista e jornalista, mas pela sua militância política, através da qual representou o país como delegado do Brasil na III Assembleia da Organização das Nações Unidas, realizada em Paris, no ano de 1948, como parte da comissão que redigiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem e rendeu ao jurista e filósofo francês René Cassin um Nobel da Paz, em 1968. Na ocasião da premiação, o laureado Nobel afirmou, em seu discurso: ―quero dividir a honra desse prêmio com o grande pensador brasileiro Austregésilo de Athayde, que ao meu lado, durante três meses, contribuiu para o êxito da obra que estávamos realizando por incumbência da Organização das Nações Unidas‖ (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, [20--]). A produção jornalística de Austregésilo de Athayde tinha caráter revolucionário, militante e de denúncia, coadunando-se com sua visão política defensora da democracia liberal.

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A amizade com Chateubriand permitiu que combatessem juntos no Movimento Constitucionalista, uma tentativa frustrada de golpe de Estado para derrubar o governo provisório do presidente Getúlio Vargas, irrompido em 9 de julho de 1932. Preso por conspiração e forçado ao exílio na Europa em novembro do mesmo ano, Austregésilo começou a se tornar uma espécie de ativista contra as forças políticas que estavam por eclodir. Testemunhou in loco o crescimento assustador dos regimes fascista e nazista, responsáveis por uma série de perseguições a minorias étnico- sociais como judeus, comunistas, homossexuais e ciganos (AJONU, 2012).

A irmã mais velha de Roberto Athayde, Laura Constância Austregésilo de Athayde Sandroni, autora de livros literários infanto-juvenis, produziu, em um trabalho conjunto com seu marido, o imortal Cícero Sandroni, a extensa biografia de seu pai, intitulada Austregésilo de Athayde: o século de um liberal (SANDRONI; SANDRONI, 1994, 833p.), da qual destaco um trecho do prefácio produzido por Paulo Cabral de Araújo:

Defensor das ideias liberais, Athayde tinha como grande fonte inspiradora o pensamento do notável Rui Barbosa. Como a Águia de Haia, detestava as doutrinas do arbítrio, abominava as ditaduras de todo o gênero e acreditava na liberdade onipotente e criadora das nações robustas, na soberania do Direito e da Lei, na moderação e na tolerância, na tradição e no progresso, e na cultura da inteligência nacional para o desenvolvimento da nação (ARAÚJO, 1994, p.xiii).

Em muitas entrevistas concedidas, Roberto Athayde utilizou o termo ‗fleumática‘ (KAUFMANN, 2007) para caracterizar o ambiente de silêncio, isolamento e estudo no qual cresceu, sob o controle de seu pai. Ele não nega o desejo de sua infância de superar a obra do presidente da ABL.

Na mansão, ele lembra, seu pai ―era idolatrado como um Deus pela minha mãe‖. O caçula Athayde não chegou a tanto. Mas fala do velho como se ele fosse Machado de Assis, não exatamente pela maestria de Austregésilo – jornalista dos Diários Associados, colunista de O Cruzeiro – com a língua escrita. ―Sentia-me massacrado pelo seu imenso talento de orador, dom que positivamente não herdei‖, diz. Ainda hoje, ele vê no pai um homem adorável, conciliador, magnânimo, venerável, liberal e, sobretudo, prático. Lembra bem do conselho paterno que não seguiu: ―Roberto, meu filho, a inteligência não vale nada, o que vale é o bom-senso‖. Ah, se ele escutasse o que papai dizia… Mas não, a grandiosidade que via em Austregésilo só fez despertar a vocação megalômana do filho. ―Com relação à obra de meu pai, desde criança me sinto superior‖, afirma, sem modéstia (RIBEIRO, 2007, grifo do autor).

A austeridade do patriarca que tanto incomodava o jovem Roberto Athayde no ambiente doméstico também é notificada por sua irmã. Em depoimento publicado no Museu da Pessoa, Laura Sandroni diferencia a postura de seu pai no ambiente público e privado, alegando que Athayde era ―muito casmurro dentro de casa e muito alegre fora de casa. Era

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uma diferença grande vê-lo conversar com os amigos nos jantares, coquetéis e etc., e vê-lo sentado jantando ou almoçando com a gente‖ (SANDRONI, 2008, p.2). A respeito de Maria José de Athayde, nos poucos relatos biográficos em que foi citada, não há menções que pontuassem além do seu papel de mãe/esposa, exceto no depoimento de Sandroni (2008), em que, mesmo destacando a figura centralizadora e austera do pai na casa, ressalta que a mãe não se restringiu a coadjuvante datilógrafa do patriarca:

[...] ela foi dona de casa e secretária do meu pai, porque ela que datilografava, ele ditava os artigos. Ele escrevia uns cinco artigos por dia e isso tudo era ditado pra ela, e ela passava a manhã inteira na máquina. E era impressionante porque quando relia pra corrigir alguma coisa não tinha nada pra corrigir, era perfeito. Ele ditava como quem escreve pensando muito, eu nunca vi ninguém fazer isso. Mas a minha mãe tinha uma atuação também fora de casa, tipo benemerência. Aqui tem um hospital que ajuda as mães pobres, que são a Pro Matre, onde nasceu Fernando Henrique Cardoso, porque tem uma parte que você pode ir pagando, uma parte pequena, mas que pode ir pagando, e que inclusive ajuda a financiar a parte que é de auxílio às mães que não têm dinheiro. E existe até hoje (SANDRONI, 2008, p.2).

Considero o destaque ao engajamento social de sua mãe como mais do que necessário, uma vez que Maria José de Athayde tem sido invisibilizada em quase todas as biografias de Roberto e Austregésilo Athayde. De fato, algumas matérias de jornal que entrevistam Roberto indicam que a presença da tia, a poetisa Ana Amélia Carneiro de Mendonça, pode ter sido de maior influência na sua infância.

[...] Athayde lembra de brincar só com o neto da babá. Um tédio. Ele próprio preferia a casa da tia Ana Amélia Carneiro de Mendonça, mãe da crítica de teatro Barbara Heliodora, onde a fleuma dos Athayde dava lugar à exaltação, em saraus e debates apaixonados. Ele acha que vem daí sua atração pelo teatro. A prima-irmã que virou teatróloga não gosta dessa responsabilidade. Quando leu um dos textos inéditos do filho do tio Austregésilo, a crítica foi de uma sinceridade atroz: ―ela detestou a peça, me disse que aquilo não era nada, que eu estava doido por querer montar tal espetáculo‖. Barbara Heliodora não quer falar sobre o primo agora: ―Você me desculpe, ele é meu parente, prefiro não dizer nada‖. Elegância absolutamente dispensável, pois Roberto Athayde é PhD em espinafração (RIBEIRO, 2007).

Primeira mulher a se tornar membro de um tribunal eleitoral brasileiro (1934), e delegada do Brasil, de 1941 a 1943, na Comissão Interamericana de Mulheres, Ana Amélia Carneiro de Mendonça teve comprometimento social além das causas feministas, vindo a fundar a Casa do Estudante do Brasil e a Associação Brasileira de Estudantes (a fim de fornecer condições básicas de abrigo e alimentação aos estudantes de outros estados que se mudavam para o Rio de Janeiro para cursar o ensino superior), o que lhe rendeu uma praça e

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uma escola pública cariocas em seu nome. Publicou sete obras literárias, dentre elas, sua obra- prima Mal de amor, lançada em 1951 (ANA..., [20--]). Outra intelectual influente no círculo de convívio de Roberto Athayde foi sua prima Bárbara Heliodora, filha de Ana Amélia Carneiro de Mendonça, considerada uma das mais expressivas críticas teatrais e estudiosas do teatro na década de 1970 (UMA OU DUAS..., 1973, p.3). Referência no estudo da obra de Shakespeare, ela recebeu o título de Oficial da Ordre des Arts et des Lettres, da França, a Medalha Connecticut College, nos EUA, e a medalha João Ribeiro, da Academia Brasileira de Letras, pelos serviços prestados à cultura brasileira (2005). É Professora Titular aposentada da Universidade do Rio de Janeiro (UNI- RIO) e Professora Emérita da mesma Universidade (BRAGA, [20--]). Nesse círculo de intelectuais e artistas, cresceu Roberto Athayde, no Rio Janeiro, no Cosme Velho, entre as Laranjeiras e o Corcovado, habitando o Solar dos Abacaxis110 (Figura 2), mansão histórica tombada como patrimônio e convertido em Casarão Austregésilo de Athayde, em 2011, vindo a ser um centro cultural.

Figura 2 – Fachada da mansão onde viveu Roberto Athayde, o Solar dos Abacaxis.

Fonte: HENRIQUE, 2014.

Crescido no Solar dos Abacaxis, no Cosme Velho, Roberto Athayde, irmão de Antônio Vicente de Athayde (promovido ao cargo de diretor adjunto de operações comerciais da Rede Globo) e de Laura Constância Austregésilo de Athayde Sandroni, teve uma infância

110 Chalé neoclássico construído em 1843, que recebeu esse nome devido aos ornamentos em forma de abacaxis, forjados em ferro, na decoração das sacadas do primeiro andar.

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em que andava de bicicleta pela enorme e exótica varanda e pelo jardim com plantas imensas na mansão em que moravam, como afirmou sua irmã, sobre a casa:

[...] papai e mamãe fizeram uma enorme reforma, mas mantendo todas as características da casa, que era uma casa do início do século, que não é espacialmente bonita, mas é especialmente simpática, com uma varanda muito grande e um terreno enorme que vai até a rua dos fundos. Então eu fui pra lá com nove ou dez anos e meus irmãos, os dois, nasceram lá. E eu aproveitei o jardim mesmo sozinha. Eu andava de bicicleta, mas tinha uma companhia de bandeirantes funcionando lá, porque a minha mãe ofereceu o espaço do porão para que uma companhia de bandeirantes se criasse lá. E eu então não só freqüentava como várias colegas minhas de colégio moradoras aqui do Cosme Velho passaram a ser bandeirantes na minha própria casa. Então era o dia que eu aproveitava bem o jardim, porque os jogos que a chefe preparava ocupava o espaço todo; tinha o hasteamento da Bandeira no pé de jabuticaba e coisas assim. Depois eu fui chefe dessa mesma companhia durante muitos anos até casar. E meus irmãos aproveitaram mesmo, porque desde pequenininho, tendo nascido lá, pra eles aquele jardim foi uma maravilha. E eu depois que me casei fui morar no Largo do Boticário, que é outro lugar histórico, que fica aqui do lado. [...] E então eu quando fui tendo os filhos. Eu vinha para a casa dos meus pais, que era bem perto, empurrando carrinho e depois um no carrinho e outro na mão, pra brincar no jardim. E aí eu pude aproveitar mais ainda o jardim da casa; um laguinho que tinha que virou piscina pra eles, um laguinho pequeno (SANDRONI, 2008, p.2).

Vivendo em um lar caracterizado pela pouca intimidade com o pai, que, para Roberto Athayde, interessava-se mais com sua própria realização do que com as escolhas e com a vida privada dos filhos (KAUFMANN, 2007), o jovem Athayde empenhou-se em se construir como intelectual desde a infância, o que fica evidente na sua dificuldade em aceitar as organizações escolares de seu tempo:

Quando eu era criança eu tinha ideais muito elevados, queria escrever como meu pai, que era o Presidente da Academia, mas também como Machado de Assis, que estava acima dele, que era o fundador. Depois pensava: ‗quem está acima de Machado de Assis‘? Só Camões! Então, com dez, onze anos de idade o meu problema psicológico foi ficar obcecado por Camões e comecei a decorar Camões e aquilo virou em problema grave, pois eu era alienado na escola e fui expulso de três colégios; ao invés de estudar, eu recitava Os Lusíadas. Os professores achavam que eu estava ficando maluco, e de certa forma estava mesmo. Pois quando fui expulso do terceiro colégio, que eu achava uma chateação, meus pais desistiram de me educar, aí eu fiquei livre para estudar música, piano e línguas. Foi assim que pude escrever uma peça importante aos 21 anos de idade (KAUFMANN, 2007).

De fato, aos 15 anos, Roberto Athayde passou a receber aulas particulares, no casarão onde morava, de línguas estrangeiras e piano. Aos 17, foi estudar composição musical em Michigan, nos Estados Unidos, mas não concluiu o curso (UMA OU DUAS..., 1973). De lá,

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ingressou na Universidade de Sorbonne, na França, onde estudou literatura francesa. A língua inglesa foi sua primeira língua literária, através da qual escreveu contos e um romance111:

Estava completamente perdido, mas ―feliz por viver longe da influência do meu pai‖. Que ninguém se iluda: o seu amor pela figura paterna foi sempre maior do que a imensa vontade de sair da sombra de Austregésilo. Entre eles, jamais rolou qualquer tipo de conflito. ―Fiz tudo o que quis na vida, fui criado num ambiente inteiramente liberal, apesar de uma certa recusa de meus pais à intimidade‖, ele diz. Nunca houve qualquer conversa sobre sexo, drogas e rock‘n roll na mansão do Cosme Velho. ―Minha opção sexual não era questão para meu pai‖ (RIBEIRO, 2007).

De volta ao Brasil, em 1971, Roberto Athayde contava com vinte e um anos de idade quando se iniciou na escrita teatral. Em seis meses, escreveu O reacionário, Um visitante do alto, Manual de sobrevivência na selva, Apareceu a Margarida e No fundo do sítio, e, em seguida, interrompeu a produção até ver um texto seu nos palcos (ATHAYDE, 1973b). Foi com Apareceu a Margarida, em 1973, que Roberto Athayde alcançou fama internacional, tendo em vista que esse é um dos textos do teatro brasileiro de maior repercussão ao redor do mundo, com traduções em diversas línguas, muitas produzidas pelo próprio autor.

[...] ―Ele era um delirante, deitou nas glórias da Margarida, e não era para menos‖, avalia Aderbal. Marília Pêra ainda estava no palco, no Rio, e ele já falava nas montagens que faria em Paris e Nova York. ―O cara desmoralizou a megalomania‖, avalia Nelson Motta, que, casado com Marília, estreou na produção teatral com Apareceu a Margarida. Além disso, Athayde estava podendo. Só estreou em língua inglesa quando pôde impor sua tradução e a direção dele próprio, condições que todos os produtores sérios consideravam um disparate. A estréia se deu em 1976, quando um milionário escocês, interessado em se lançar no mundo artístico, bancou a montagem de sua peça em Toronto – que, no entanto, recebeu sua Margarida sem nenhum entusiasmo (RIBEIRO, 2007).

Para a crítica brasileira, porém, Apareceu a Margarida foi um sucesso sem precedentes, e chegou a ser considerado o primeiro trabalho brasileiro no gênero ‗teatro do absurdo‘112, como se lê em O Jornal (1971):

Roberto Austregésilo de Athayde [...] acaba de escrever uma peça, num gênero difícil: ‗O Teatro do Absurdo‘. A peça deverá ser encenada este mês. Luís de Lima, que tendo sido o lançador, no Brasil, do teatro de Ionesco, vai ser também o apresentador do primeiro autor brasileiro a abordar esse gênero avançado e

111 O romance, Jonathan‟s Friend, de conteúdo homoerótico, foi publicado apenas no ano 2000, pela XLibris Corporation, nos Estados Unidos, e está disponível em e-book. 112 Teatro do Absurdo é o nome dado à estética teatral que surgiu na Europa após a II Guerra Mundial. Com seu conceito sistematizado pelo crítico Martin Esslin, esta estética ―seria assim, um teatro pautado por uma visão irracional, e disparatada da realidade, [...] encerra uma nova atitude perante as artes, a filosofia, a religião, a política, a sociedade, enfim, uma nova atitude entre teatro e realidade‖ (CEIA, [201-], s.v. Teatro do Absurdo).

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surrealista. Empreitada de que o jovem escritor se desincumbirá galhardamente, temos certeza (UMA FLOR.., 1971).

Não foi o ator Luís de Lima quem lançou Apareceu a Margarida aos palcos, tendo em vista que ele sofreu um acidente de carro durante as gravações de Missão: Matar, quando contracenava com Tarcísio Meira, o que o deixou fora dos palcos por bastante tempo. Dessa forma, foi Marília Pêra quem primeiro interpretou a professora Margarida no Brasil e consagrou Roberto Athayde como dramaturgo com apenas 23 anos.

[...] Dona Margarida era a repressão em cena aberta. Só estreou sem cortes graças a uma artimanha do velho Athayde. ―No dia do ensaio geral para a Censura, meu pai reuniu na platéia meia dúzia de imortais, dos mais veneráveis e caquéticos.‖ Constrangidos com a recepção, os censores aprovaram a montagem, e até baixaram a classificação etária de 18 para 14 anos. Mas a repercussão do espetáculo na imprensa foi tão grandiloqüente que, duas semanas depois da estréia, a mesma censura tirou-a de cartaz (RIBEIRO, 2007).

O envolvimento de Apareceu a Margarida com a censura aumentou ainda mais o prestígio do público pela peça, que voltou a cartaz semanas após algumas negociações de Nelson Motta (produtor do espetáculo) com a censura, com muita pressão da crítica, já que inúmeros jornais não se furtaram de comentar o fato, a ponto de representantes dos órgãos censores prestarem esclarecimentos a respeito da retirada de cena. A respeito dessa questão, pontuo aqui o processo de alquimia simbólica (BOURDIEU, 1996) que envolve a consagração de Apareceu a Margarida como obra e de seu autor como intelectual:

A obra de arte como objeto sagrado e consagrado é o produto de um imenso trabalho de alquimia simbólica no qual colaboram, com a mesma convicção e com ganhos muito desiguais, todos os agentes engajados no campo de produção, isto é, os artistas e escritores obscuros assim como os ―mestres‖ consagrados, os críticos e os editores tanto quanto os autores, os clientes entusiastas não menos que os vendedores convictos (BOURDIEU, 1996, p.241, grifo meu).

A presença de Austregésilo Athayde e de outros membros da ABL na plateia, o nome de Marília Pêra, atriz já consagrada nacionalmente à época, a repercussão entre a crítica nos jornais e o incômodo causado pelo texto aos órgãos censores evidenciam uma multiplicidade de sujeitos que estão envolvidos na produção literária. Tais sujeitos dão sentido e regulamentam os atos criativos, contribuindo para a consagração do jovem Roberto Athayde entre o círculo de intelectuais, seguindo o que Pierre Bourdieu propôs como princípio de hierarquização interna ―[...] o grau de consagração específica, favorece os artistas (etc.) conhecidos e reconhecidos por seus pares e unicamente por eles (pelo menos na fase

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inicial de seu trabalho) e que devem, pelo menos negativamente, seu prestígio ao fato de que não concedem nada à demanda do "grande público" (BOURDIEU, 1996, p.247, grifo meu). Ao propor uma sociologia do campo literário, Bourdieu (1996) entende que a definição de literatura atravessa a leitura, uma vez que os múltiplos sujeitos participantes do campo literário produzem leituras valorativas, hierarquizantes da obra. É por isso que ―Bourdieu julga que a produção simbólica de uma obra de arte não pode ser reduzida à sua fabricação material pelo artista, mas deve incluir ‗todo o acompanhamento de comentários e de comentadores‘‖ (COMPAGNON, p. 218). No caso específico de Roberto Athayde, teve relevância o papel de seu pai, Austregésilo de Athayde (1973), que publicou uma crítica à retirada de cartaz da peça de seu filho (Figura 3), aumentando a pressão sobre os censores e alegando a falta de coerência dos órgãos censores, visto que o espetáculo havia sido previamente autorizado.

Figura 3 – Austregésilo Athayde comenta a incoerência da censura diante da retirada de cartaz da peça de seu filho.

Fonte: ATHAYDE, A., 1973.

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O espetáculo voltou a cartaz sob a condição de ter as menções ao Hino Nacional Brasileiro retiradas. O sucesso de Apareceu a Margarida marcou tanto a carreira do jovem dramaturgo que, segundo ele, outros de seus trabalhos foram impedidos de ter repercussão (KAUFMANN, 2007). De fato, o monólogo da professora autoritária é encenado em diversos teatros brasileiros até os dias atuais, como se observam nas notícias a seguir (Figuras 4 a 6).

Figura 4 – Notícia de apresentação de Apareceu a Margarida em 2017.

Fonte: MONÓLOGO..., 2017.

Figura 5 - Notícia de apresentação de Apareceu Figura 6 - Notícia de apresentação de Apareceu a Margarida em 2016. a Margarida em 2016.

Fonte: ESPETÁCULO..., 2016. Fonte: PLATEIA..., 2016.

Para Roberto Athayde, interessa-lhe que outros de seus trabalhos sejam montados (KAUFMANN, 2007). Sempre que isso ocorre, porém, o autor é referenciado pela sua obra- prima, como ocorreu no seu último trabalho de palco, Juliette castigada (e Justine

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recompensada) (Figuras 7 a 9). O texto, criado em 2002, sobre as duas personagens de maior destaque na obra de Marquês de Sade (1740-1814), foi a cartaz em 07 de outubro de 2015, no Teatro Maison de France, Rio de Janeiro. A trama do espetáculo traz as irmãs Justine e Juliette, personificações do bem e do mal, que despertam no século XXI, após 230 anos de hibernação, e ―observam o novo mundo pela janela e não o admiram, mas se chocam. Elas veem a face oculta do progresso: a degradação humana, a confusão de valores e a perda da capacidade de discernimento entre o bem e o mal‖ (REIS, 2015).

Figura 7 – Excerto de notícia sobre a encenação de Juliette castigada (e Justine recompensada).

Fonte: ROBERTO..., 2015.

Figura 8 – Excerto de notícia sobre a encenação de Juliette castigada (e Justine recompensada).

Fonte: REAPARECEU..., 2015.

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Figura 9 – Excerto de notícia sobre a encenação de Juliette castigada (e Justine recompensada).

Fonte: REIS, 2015.

Ressalto que as notícias de divulgação do espetáculo não deixaram de trazer informações, referências e sinopse de Apareceu a Margarida, que fazem o autor dizer-se ‗dragado‘ pela fama de um único texto.

―Fui estragado pela sorte.‖ A frase dita assim, fora de contexto, parece desvario. Mas, localizada na trajetória do dramaturgo Roberto Athayde, faz todo sentido. E serve de síntese à carreira do autor de ―Apareceu a margarida‖ (1973), um dos maiores sucessos do teatro brasileiro — e com mais de 300 encenações em 30 diferentes países. Hoje, aos 65 anos, ele diz que foi ―engolido pelo sucesso da Margarida‖. Athayde acabou vivendo mais tempo no ostracismo do que no sucesso, tão intenso quanto instantâneo: — Estourei aqui e no mundo, mas fui dragado. Ele tinha 23 anos quando sentiu na pele o arrepio de se tornar o jovem dramaturgo mais bem-sucedido do país. — Tive a sorte de começar assim, com a Marília Pêra numa performance arrebatadora, e com a direção do Aderbal [Freire-Filho]. Depois, atravessou uma década pontuada por quatro fracassos, até que, em 1986, foi elevado às alturas novamente com ―O mistério de Irma Vap‖ (1986). Athayde assinou a tradução e a adaptação do texto de Charles Ludlam. Com os inspirados Marco Nanini e Ney Latorraca em cena, sob a direção de Marília Pêra, a peça foi um dos maiores sucessos da história do teatro brasileiro: ficou 12 anos em cartaz. — Comercialmente, ―Irma Vap‖ foi maior do que ―Margarida‖. Ganhamos muito dinheiro. Mas e depois? ―Nada‖, ele diz, ―coisas que ninguém viu ou ouviu‖. Até agora, ele espera. Nesta quarta-feira, Athayde interrompe sua reclusão dramatúrgica e volta a ter um texto inédito encenado. Escrito em 2002, ―Juliette castigada (e Justine recompensada)‖ estreia no Teatro Maison de France com direção de Paula Sandroni e três atores em cena: Alexandre Slavieiro, Rosanne Mulholland e Betina Pons, a idealizadora do projeto que retoma a carreira de Athayde. — É um momento especial — diz ele. — Estou há 32 anos sem um texto inédito encenado (REIS, 2015).

O desabafo do autor deixa claro que sua carreira tem sido atravessada por picos de sucesso e ostracismo. Sua tradução e adaptação de O mistério de Irma Vap, na década de 1980, que permaneceu em cartaz por doze anos, rendeu-lhe o apartamento de três quartos em que vive hoje, no Leblon (RIBEIRO, 2007). Contudo, entre o sucesso de Apareceu a

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Margarida e O mistério de Irma Vap, sucederam-se quatro estreias de obras que foram consideradas ‗grandes infortúnios‘ (REIS, 2015): em 1974, Um visitante do alto e Manual de sobrevivência na selva, em 1983, Os Desinibidos e Crime e impunidade, todas dirigidas por Aderbal Freire Filho. Dessas quatro peças, Os Desinibidos é designada por Freire Filho, como informa Ribeiro (2007), como o maior dos fiascos das produções de Athayde:

Athayde passou seis anos sem escrever uma linha depois que virou cidadão do mundo na garupa da Margarida. De repente, às vésperas de completar 30 anos, se deu conta que ficara deslumbrado, e não conseguira dar continuidade à carreira no Brasil – e muito menos em Paris ou em Nova York. De suas 26 peças, nove foram montadas, só que, como ele reconhece, ―ninguém sabe, ninguém viu‖. Pior: quem viu não gostou. O próprio Aderbal Freire Filho lembra que, depois de Apareceu a Margarida, dirigiu três legítimos fiascos de Athayde.

O maior deles foi Os Desinibidos, de 1982, cuja sinopse oficial reza o seguinte: ―O professor Frustrafreud, o mais célebre dos lacanianos brasileiros, está de partida para o Havaí, onde tentará resolver o problema do incesto entre seus filhos e, por isso, é obrigado a cancelar consulta de um cliente importante. Mas sua esposa, dona Proteína, assume seu lugar para analisar o presidente do Flamengo‖. Fácil ver que não era um besteirol qualquer. ―Era a estréia de Vera Fischer no teatro, e seu figurino deixava um peito de fora o tempo todo‖, lembra Aderbal.

O diretor assume a culpa pelo fracasso: ―Éramos todos muito loucos naquela época‖. Ele desconfia, no entanto, que o sucesso colossal da estréia atrapalhou e ainda atrapalha o autor. Já Roberto Athayde tem certeza: ―Depois da Margarida, montar uma peça minha significa ser comparado com Marília e Aderbal, uma covardia‖. Modéstia do autor. ―Apareceu a Margarida é um clássico, uma obra de gênio‖, diz Marília Pêra. O que, supõe, complicou a carreira de Athayde: ―Ele começou pelo máximo‖.

De vez em quando, ele tem vontade de trucidar sua galinha dos ovos de ouro. ―A Margarida sou eu aos 21 anos, e já estou com 57, tenho outras 26 peças para mostrar.‖ Quando percebeu que ninguém queria montá-las, Athayde resolveu se divertir com outro projeto mirabolante (RIBEIRO, 2007).

Para Roberto Athayde, o insucesso de Os Desinibidos ocorreu na colagem, proposta por Aderbal Freire Filho, de três textos seus – O jardim da Fada Mangana; Os Desinibidos e „Stamos em pleno mar (adaptado de Divertissement para ambientes finos) –, o que gerou conflito entre o autor e o diretor, como escreve Santiago (1995):

Athayde diz que resolveu dirigir suas peças depois que se sentiu ―vitimado‖ por algumas montagens feitas por outros diretores de personalidade forte. ―Isso aconteceu justamente com quem melhor dirige as minhas peças, o Aderbal Freire, na montagem de ‗Os Desinibidos‘, com a Vera Fischer. Ele quis fazer uma colagem dos meus textos e ninguém entendeu nada‖, lembra (SANTIAGO, 1995).

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É importante notar que o trecho acima diz respeito à divulgação de outra peça sua, em que trabalhou como diretor: Praga de Madrinha, que entrou em cartaz em outubro de 1995, e teve inspiração no falecimento de seu pai, em 1993 (SANTIAGO, 1995). Explorando as contradições entre miscigenação e preconceito, Athayde comenta que Praga de Madrinha ―[...] é o retrato do Brasil, uma pessoa que, por sua experiência pessoal, deveria ser a favor da miscigenação, mas que ainda mantém um resquício do preconceito de que o branco continua sendo melhor que o negro‖ (SANTIAGO, 1995). Não foi essa a primeira vez que Roberto Athayde discutiu a questão racial em um trabalho seu. Divertissement para ambientes finos (1972), texto incorporado ao espetáculo Os Desinibidos, e a personagem Marinete caracterizam o perfil intelectual e polêmico do dramaturgo, cujos textos sempre exploram conteúdos densos, de natureza filosófica, antropológica, histórica, política, psicológica e/ou sociológica. De maneira expressa ou indireta, os textos de Athayde são carregados de referências literárias, artísticas, políticas e contextuais, o que já foi discutido em Correia (2013), com Apareceu a Margarida (o seu grande sucesso), e se mostra novamente com Os Desinibidos, considerado o grande fracasso desse dramaturgo cuja história se mostra um ir e vir de neuroses e ressurreições.

3.1.2 Os Desinibidos: texto, espetáculo e censura

Meu primeiro contato com Os Desinibidos ocorreu em 2011, quando realizei a pesquisa documental referente a Apareceu a Margarida. Ao encomendar ao Arquivo Nacional, em Brasília, cópias de toda a documentação referente a Roberto Athayde, proveniente de um contexto de censura prévia, recebi um material bastante expressivo do autor estudado, possibilitando compreender sua trajetória como dramaturgo através de sua produção. Sobre Os Desinibidos, o Arquivo Nacional – DF cedeu-me um conjunto composto de 84 folhas. Destas, 68 folhas correspondem ao texto datiloscrito da peça, as demais se dividem em relatórios, pareceres, certificados e ofícios de encaminhamento aos órgãos censores do Rio de Janeiro e de Brasília. O texto datiloscrito apresenta-se dividido em dois atos e três partes113 (ou cenas). No primeiro ato, tem-se a parte I, intitulada o Jardim da Fada Mangana, em que duas senhoras conversam, na sala de espera do Doutor Frustrafróide, sobre o Jardim da Fada Mangana, onde os sonhos e brinquedos da infância se perdem; e inicia-se a parte II, intitulada Os Desinibidos. A divisão entre os atos se faz após o Doutor Frustrafróide seguir viagem, de modo que, no

113 Utiliza-se o termo ‗partes‘ em conformidade com o registro presente no datiloscrito.

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segundo ato, o ator que o interpretou, Perry Salles, já aparece como Valdir Teixeira. A parte III leva o nome do primeiro verso do poema Navio Negreiro, de Castro Alves: „Stamos em pleno mar, em que a Princesa Isabel e o Conde Goubineau dialogam sobre a abolição a bordo de um navio negreiro. Um primeiro aspecto a se destacar no datiloscrito submetido à censura é a diferença entre o subtítulo indicado na capa e na folha de rosto datiloscrita:

Figura 10 – Capa do datiloscrito Os Desinibidos. Figura 11 – Folha de rosto do datiloscrito Os Desinibidos.

Fonte: ATHAYDE, 1982. Fonte: ATHAYDE, 1982.

Ao longo do texto, identifico que a escritura da segunda e terceira folhas da parte I – quando se inicia a primeira cena do espetáculo –, e das três últimas folhas, provém de máquina distinta do restante do texto, que aparenta ter sido datilografado em máquina eletrônica, caracterizando o testemunho disponível como um texto compósito em sua materialidade.

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Figura 12 – Trecho da F. 2.

Fonte: ATHAYDE, 1982.

Figura 13 – Trecho da F.4.

Fonte: ATHAYDE, 1982.

Também se destacam, em relação à materialidade do testemunho datiloscrito, corte do censor ao nome ‗Geisel‘ (f.33, parte II), conforme se indica em dois pareceres de censores sobre o texto; e uma emenda manuscrita, que substitui ‗raça humana‘ por ‗raça ariana‘, à f.1 da parte III, condizendo com a descrição a respeito de Conde Goubineau.

Figura 14 – Indicação de corte à palavra Geisel, na F.33 (parte II).

Fonte: ATHAYDE, 1982.

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Figuras 15 – Emenda manuscrita à F.1 (parte III)

Fonte: ATHAYDE, 1982.

Após buscar por publicações referentes à dramaturgia censurada de Roberto Athayde, consegui localizar, em sebo virtual, uma revista com o programa do espetáculo, em que constam nomes, textos e fotos de toda a equipe de produção, sendo esse um rico material para conhecer não apenas os envolvidos com a construção cênica, mas, principalmente, por conter depoimentos, críticas e textos que revelam como a obra foi pensada.

Figura 16 – Capa do programa do espetáculo.

Fonte: ATHAYDE, 1983.

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A caricatura na Figura 16 apresenta algumas das personagens de Os Desinibidos, todas com a face de Sigmund Freud, em referência ao conteúdo psicanalítico do texto. Identificam- se, assim, de pé, ao fundo da imagem: Valdir Teixeira, com a camisa do Flamengo; Proteína, cujo rosto está emoldurado em um quadro que, provavelmente, representa a Princesa Isabel; ao seu lado, o marido, Dr. Oliveira Frustrafróide, com rolos de papéis que provavelmente representam seus dados da pesquisa sobre a Teoria dos Incestos. Sentados no divã, veem-se os filhos do casal, Lúcia e Pedro, também chamados de desinibidos, que vivem no Havaí e mantêm entre si uma relação incestuosa, motivo de grande escândalo nacional. Ao centro, logo à frente, vê-se Marinete, a faxineira da casa, única personagem negra do espetáculo que, apesar de buscar sua ascensão social e acadêmica com a prometida formação como psicanalista pelo professor Frustrafróide, é ludibriada pelas promessas dele que a mantém como faxineira, sem pagar-lhe salário. Ao seu lado, a figura de um cão, que pode ser o pastor alemão castrado de Valdir Teixeira, Fiel, apelidado de Geisel, ou algum dos cães da família de Frustrafróide (Fileira, Bambanzinho ou a cadela Desinibida). Em posição de destaque e com um livro nas mãos, tem-se Frustrinha, filho do incesto, que sofre uma espécie rara de gigantismo, tendo quatro anos e sendo representado por um ator adulto, apresenta algum distúrbio mental, e passa quase toda a cena lendo e recitando poemas de Guerra Junqueiro, Bocage, Olavo Bilac, Castro Alves e Camões. Um dos elementos que chama a atenção a respeito do texto é sua amplitude, tanto em termos de extensão da obra (o espetáculo é dividido em dois atos e três partes, com cenários distintos), quanto em relação à qualidade cenográfica e ao número de personagens. São, ao todo, doze personagens, que, segundo o programa do espetáculo, estão divididas entre cinco atores que os interpretam, conforme o quadro e as figuras abaixo:

Quadro 2 – Personagens e atores de Os Desinibidos, segundo Athayde (1983b) PERSONAGENS ATORES Fada Mangana, Proteína, Princesa Isabel Vera Fischer Frustrafróide, Valdir Teixeira e Gobineau Perry Salles Velhinha e Frustrinha Ariel Coelho Marinete Marina Miranda Velhinha, João Mirabolão, Jurandir Cláudio Gaya Fonte: ATHAYDE, 1983b.

Seguindo a ordem de apresentação dos nomes dos atores acima, da esquerda para a direita, ilustro abaixo os respectivos, conforme programa do espetáculo:

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Figura 17 – Vera Fischer Figura 18 – Perry Salles

Fonte: ATHAYDE, 1983. Fonte: ATHAYDE, 1983.

Figura 19 – Ariel Coelho Figura 20 – Marina Miranda Figura 21 – Cláudio Gaya

Fonte: ATHAYDE, 1983. Fonte: ATHAYDE, 1983. Fonte: ATHAYDE, 1983.

Fica, assim, apresentado o elenco que participou da montagem de 1983, no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro:

Figura 22 – Ficha técnica do espetáculo Os Desinibidos.

Fonte: ATHAYDE, 1983.

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Das personagens descritas, duas representam figuras históricas: a Princesa Isabel, de personalidade controversa, responsável pela assinatura da Lei Áurea, em 1888, que aboliu o regime escravocrata brasileiro; o Conde Arthur de Goubineau, conhecido pelo seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), um dos trabalhos pioneiros em determinismo racial e eugenia, através do qual propagou a ideia de que o Brasil não alcançaria desenvolvimento por ter seu povo degenerado através da miscigenação. Além desses, também são realizadas, no texto, menções a diversas personalidades: Jacques Lacan, Pinochet, Geisel, D. Pedro I, D. Pedro II, Joana D‘Arc, Bernard Shaw, Beethoven, Erich Segal, Reich, Adler, Alexander Lowen, Zico. É o diretor Aberbal Freire Filho (conhecido à época como Aderbal Júnior), o mesmo que assumiu a direção de Apareceu a Margarida e outros textos de Roberto Athayde, quem apresenta uma sinopse do espetáculo na revista do programa, indicando alguns elementos da criação do texto que foram fundamentais para compreendê-lo. Destaco seu retrato (Figura 23) que, assim como o do ator Claudio Gaya (Figura 21), aparece posando diante de uma peça do cenário elaborado pelo prestigiado cenógrafo e figurinista Colmar Diniz, uma grande escultura do busto do psicanalista Jacques Lacan, referenciado inúmeras vezes em cena.

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Figura 23 – Aderbal Júnior comenta Os Desinibidos no programa do espetáculo.

Fonte: ATHAYDE, 1983.

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Logo nos parágrafos iniciais, Aderbal Júnior indica O Jardim da Fada Mangana e O homem da Lagoa Santa, duas obras de Roberto Athayde que foram incorporadas a Os Desinibidos. Na primeira, leem-se dois textos que influenciaram na criação do texto aqui estudado, a saber: Divertissement para ambientes finos (ATHAYDE, 1974, p.61-76), escrito em 1971, em que se apresenta a cena „Stamos em pleno mar, e O jardim da Fada Mangana de 1974 (ATHAYDE, 1974, p.119-130), no qual as personagens Fada Mangana e Dr. Frustrafróide são apresentadas. Em O homem da Lagoa Santa (ATHAYDE, 1979), há um conto intitulado O jovem burocrata e a senhora normal, no qual são registradas menções ao psicanalista Dr. Frustrafróide, entre as páginas 15 a 21.

Figura 24 – Capa de O jardim da Fada Mangana Figura 25 – Capa de O Homem da Lagoa Santa

Fonte: ATHAYDE, 1974. Fonte: ATHAYDE, 1979.

Além de tais obras, também localizei em sebos uma publicação de Os Desinibidos presente na obra Crime & Impunidade e outras peças (ATHAYDE, 1983a). O texto aqui estudado se encontra às páginas 127 a 224, entre Crime e Impunidade (p.9-126) e No fundo do sítio (p.225-264), e apresenta diferenças significativas em relação ao datiloscrito, como a supressão de duas cenas inteiras: o Jardim da Fada Mangana (a primeira parte do primeiro ato, no datiloscrito) e „Stamos em pleno mar (a terceira parte do segundo ato). De fato, no texto publicado não há referência alguma às cenas e personagens que dela faziam parte, de

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modo que apenas a segunda parte, referente a Os Desinibidos compõe o texto da publicação. Além dessas questões, o testemunho impresso ainda apresenta um novo subtítulo, diferente dos outros dois já propostos na capa e na folha de rosto do datiloscrito.

Figura 26 – Capa da publicação que Figura 27 – Primeira folha do Figura 28 – Lista de personagens e contém Os Desinibidos. texto publicado. indicação de cenário.

Fonte: ATHAYDE, 1983. Fonte: ATHAYDE, 1983. Fonte: ATHAYDE, 1983.

É importante destacar, diante dos processos de fabricação do livro em voga na década de 1980 no Brasil, que o texto acima apresenta indícios de haver sido submetido à mimeografia a óleo, uma vez que as folhas apresentam marcas em relevo provenientes da ação de prensar o papel sobre o aparelho. Outro aspecto técnico relativo à materialidade do texto é o fato de haver folhas de dimensões diferentes no corpo do livro, que também apresenta encadernação manual. No que se refere ao encaminhamento do datiloscrito de Os Desinibidos à Censura, comentado nesta seção, identifiquei 16 folhas de pareceres, certificados, relatórios e ofícios de encaminhamento, portadoras de historicidade que evidenciam procedimentos políticos, burocráticos e culturais, além de apresentarem atos de leitura sobre o texto.

3.1.3 Desinibidos, mas nem tanto: procedimentos da censura na fase “branda”

De acordo com Coriolano de Loyola Cabral Fagundes (1974), que atuou como censor durante todo o período da ditatura e foi o último diretor da Divisão de Censura da Policia Federal (KUSHNIR, 2004, p.107), no período final da ditadura militar brasileira, a Divisão de

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Censura de Diversões Públicas (DCDP) era um órgão central, responsável por ―planejar, coordenar, executar e controlar as atividades de censura de diversões públicas, em todo o território nacional‖ (FAGUNDES, 1974, p.85). Já as Divisões de Censura Federal (DPF) seriam ―órgãos descentralizados do sistema policial da União‖ (FAGUNDES, 1974, p.89). Segundo Fagundes (1974), embora a censura no Brasil tenha-se institucionalizado formalmente após o decreto do AI-5, essa é uma prática política desde o período colonial, tendo-se iniciado em 1808, com a nomeação de censores régios para impedir a circulação de conteúdos que contrariassem a religião, o governo e os bons costumes. A censura ao teatro, por sua vez, deve-se ao período imperial, com a criação do Conservatório Dramático Internacional, estabelecida pelo decreto no 425, assinado por Dom Pedro II (FAGUNDES, 1974, p.28). Após a proclamação da república, o governo assinou o decreto no 557, em 21 de julho de 1897, que, conforme Fagundes (1974) ―subordinou o exercício da censura e fiscalização dos espetáculos de diversões públicas à polícia‖ (FAGUNDES, 1974, p.28). Ao longo dos sucessivos governos e respectivos decretos, as práticas censórias foram, pouco a pouco, tornando-se institucionalizadas, de modo que Fagundes (1974, p.28-30) destaca algumas datas importantes, quais sejam: 1928, quando Washington Luiz fundou a Censura das Casas de Diversões; 1939, durante a ditadura getulista, com o Decreto-lei 1949, que criou o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP (revogado em 1945, após a queda de Getúlio Vargas); e, principalmente, 1946, quando José Linhares assinou, poucos meses antes da aprovação da Constituição do referido ano, o Decreto no 20.493, regulamentando o Serviço de Censura de Diversões Públicas, do Departamento Federal de Segurança Pública. Sobre o referido decreto, Fagundes (1974) assegura que ―embora parcialmente alterado e complementado por decretos mais recentes, ainda hoje [em 1974] é o Dec. 20.493 a coluna vertebral do organismo censório federal‖ (FAGUNDES, 1974, p.30). Fagundes esclarece que foi com Castello Branco, em 1964, que foi sancionada a Lei no 4.483, que assegura a responsabilidade do Departamento Federal de Segurança Pública – DFSP, no Distrito Federal, no que tange à ―[...] censura de diversões públicas, em especial a referente a filmes cinematográficos, quando transponham o âmbito de um Estado‖ (BRASIL, 1964 apud FAGUNDES, 1974, p.31). Apesar desse movimento de transferência do exercício da censura estadual para a polícia federal, a institucionalização da censura federal e a designação expressa de seu exercício sob responsabilidade da polícia federal passou a vigorar após a Constituição de 1967 (FAGUNDES, 1974, p.33), que centralizou as atividades censórias em Brasília.

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Ao tratar de aspectos técnicos relativos à dinâmica da censura brasileira aos meios de comunicação e à organização dos setores de censura, com base nos Decretos e Leis do período, Fagundes (1974) apontou como definições para censurar e diversão pública:

Censurar é examinar e classificar, dentro de determinada faixa etária, o espetáculo de diversão pública, visando proporcionar ao espectador entretenimento adequado à sua capacidade de compreensão, ao mesmo tempo protegendo-o contra impressões prejudiciais à sua formação intelectual, psíquica, moral e cívica. Diversão pública é a apresentação, com finalidade de entretenimento coletivo, de artista cênico, em atuação individual ou de elenco, como também a gravação, tanto sonora como de imagens, de espetáculos em geral (FAGUNDES, 1974, p.137).

Ressalto o aspecto moral e político da censura, evidenciado na ideia de proteção do espectador e suposta preocupação com sua formação intelectual, psíquica, moral e cívica. Em Censura e liberdade de expressão, Fagundes (1974) descreveu os mecanismos utilizados pelos censores para avaliar os documentos, e enfocou as práticas censórias, os conteúdos considerados subversivos, conforme citei também em Correia (2013). Fagundes (1974) apresentou a seguinte classificação de conteúdos a serem censurados, pautada em três grupos definidos pelos decretos coercitivos vigentes à época:

I) ATENTE CONTRA A SEGURANÇA NACIONAL, por conter, potencialmente: a) Incitamento contra o regime vigente; b) Ofensa à dignidade ou ao interesse nacional; c) Indução de desprestígio para as forças armadas; d) Instigação contra autoridade; e) Estímulo à luta de classe; f) Atentado à ordem pública; g) Incitamento de preconceitos étnicos; h) Prejuízo para as boas relações diplomáticas.

II) FIRA PRINCÍPIOS ÉTICOS, por constituir-se, em potencial, em: a) Ofensa ao decoro público; b) Divulgação ou indução aos maus costumes; c) Sugestão, ainda que velada, de uso de entorpecentes; d) Fator capaz de gerar angústia, por retratar a prática de ferocidade; e) Sugestivo à prática de crimes.

III) CONTRARIE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS, por representar, potencialmente: a) Ofensa a coletividades; ou b) Hostilização à religião (FAGUNDES, 1974, p.137).

A encenação pública do texto dependia de autorização do DPF/DCDP certificada em documento acompanhada de parecer de censores sobre o texto e sobre o ensaio geral da peça. A submissão dos textos aos órgãos censores ocorria ainda na fase de ensaios, para a aprovação prévia do texto do espetáculo. Nesse ínterim, a censura agia através de cortes a palavras e cenas ou restringindo a classificação do espetáculo, através da censura prévia;

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vetando-os ou retirando as peças de cartaz, por meio das práticas de proibição determinada, transmitidas aos produtores de teatro por escrito ou por telefone (FICO, 2004, p.90). Os cortes mutilavam palavras, expressões, falas de personagens, rubricas, figurinos, elementos cenográficos e cenas inteiras, e eram indicados, no texto, a caneta esferográfica ou hidrográfica azul, preta, ou vermelha, acompanhados de carimbo ‗CORTE‘ ou ‗COM CORTE‘ sobreposto ao trecho censurado. Não raramente ocorria de todo o conteúdo do texto ser vetado, ou a imensa quantidade de cortes prejudicar a coerência da narrativa desenvolvida, impossibilitando a encenação. Também podia ocorrer, como demonstrei com o estudo de Apareceu a Margarida114, de a obra previamente autorizada ser retirada de cartaz durante a temporada, acarretando em prejuízo para os produtores do espetáculo. O envio do texto para avaliação censória era feito endereçando os textos para a sede da DCDP, em Brasília. Tal procedimento contrariava a descentralização da censura, proposta pelo Decreto-lei no 200, de 25 de fevereiro de 1967 (FAGUNDES, 1974), anterior ao AI-5. Conforme demonstrei em 2013, ―a centralização da censura teatral em Brasília tornava o processo de produção do espetáculo lento, o que originou uma série de conflitos, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, consideradas os maiores núcleos de produção artística do Brasil‖ (CORREIA, 2013, f.163). De fato,

[...] a pretensão governamental de tudo controlar, [...] ampliava a carga de trabalho dos censores. Isso vinha desde a centralização, em Brasília, da censura ao teatro, feita a partir de 1969. Eles deviam censurar textos de peças teatrais, ensaios gerais, filmes, trailers, sinopses e capítulos de novelas, programas diversos de rádio e de televisão e, [...] livros e periódicos, fotos e cartazes publicitários (FICO, 2004, p. 98).

Pela leitura de Fagundes (1974), compreendo que o corpo técnico da censura começou a se tornar mais especializado depois do decreto do AI-5. Enquanto os técnicos contratados entre 1964-1968 não precisavam portar diploma de conclusão de curso superior, a Academia Nacional de Polícia passou a selecionar, durante o AI-5 apenas graduados em Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, que eram submetidos ao Curso de Formação em Técnico de Censura. Após a contratação, os funcionários ainda tinham a obrigatoriedade de participar de

114 Sobre a suspensão da temporada de Apareceu a Margarida, comentei, na minha dissertação que ―45 dias após a noite de estreia [...], policiais que assistiam ao espetáculo disfarçados de civis solicitaram o veto da peça, retirando-a de cartaz. [...] Segundo R[oberto] A[thayde], os censores só não chegaram a intervir violentamente durante a encenação porque ficaram impressionados com a quantidade de intelectuais, afetos de Austregésilo de Athayde, que ocupavam as cadeiras de convidados na plateia. A crítica teatral não se furtou a comentar a proibição do espetáculo, ocorrida em 13 de outubro de 1973‖ (CORREIA, 2013, f.165-166).

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[...] cursos periódicos de aperfeiçoamento e atualização profissional, específico de censura [...]. Esses cursos abrangem Introdução à Ciência Política; Introdução à Sociologia; Psicologia Evolutiva e Social; Legislação Especializada; História da Arte; História e Técnica de Teatro [...] (FAGUNDES, 1974, p.91).

Fico (2004) demonstra que tais cursos começaram a ser adotados no próprio ano de 1974 (mesmo ano em que Fagundes publicou Censura & liberdade de expressão).

Em 1974, para suprir a crescente demanda da censura, a Academia Nacional de Polícia promoveu um ―Curso de Transformação‖ para interessados em se tornar censores. Em sua fase final, já nos anos 1980, alguns seminários foram promovidos, para atualizar o pessoal e estabelecer diretrizes e propostas de reformulação. Mas não havia treinamento continuado dos censores, embora, de maneira episódica, alguns até fossem mandados ao exterior para cursos. Em meados dos anos 1970, vários censores antigos foram dispensados por não terem sido aprovados em processos seletivos internos. A falta de critérios era flagrante e, diversas vezes, os próprios censores reclamavam do problema, pois muitas decisões eram tomadas com base em ―subjetivismos e impressões pessoais‖ (FICO, 2004, p.97-98).

Embora o discurso de Fagundes, na condição de censor, objetive demonstrar a regularidade, qualificação e critérios das práticas da DCDP, Fico (2004) em Além do Golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar, evidencia a ausência de critérios e de coesão entre as práticas de diferentes censores, pautando-se na pesquisa em acervos documentais, que se tornou possível com a democratização do acesso a documentos sigilosos. A liberação de tais documentos, no entanto, não ocorreu em processo contínuo, como demonstrou Fico (2004), mas sim através de um ir e vir entre decretos, revogações e decisões judiciais nos governos de Itamar Franco (1992-1994), Fernando Henrique Cardoso (1995- 2004) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Apenas com a criação da Comissão Nacional da Verdade115 (CNV), instituída em 16 de maio de 2012 pela Lei no 12528/2011, sancionada no primeiro ano de gestão da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), documentos sigilosos

115 Segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014, p.20), a CNV atuou entre os anos 2012 e 2014, investigando abusos de poder e violação dos direitos humanos praticados entre 1946 e 1988. A CNV foi criada a partir do ato presidencial de 13 de janeiro de 2010, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu um grupo de trabalho para elaborar um projeto de lei, apresentado por ele em maio do mesmo ano ao Congresso Nacional. Nessa apresentação, o ex-presidente considerou que a CNV asseguraria ―o resgate da memória e da verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período anteriormente mencionado [1946-1988], contribuindo para o preenchimento das lacunas existentes na história de nosso país em relação a esse período e, ao mesmo tempo, para o fortalecimento dos valores democráticos‖ (BRASIL, 2014, p.20). Em seu discurso, o ex-presidente afirmou a importância de tal comissão, pois ―conhecendo inteiramente tudo o que se passou naquela fase lamentável de nossa vida republicana o Brasil construirá dispositivos seguros e um amplo compromisso consensual – entre todos os brasileiros – para que tais violações não se repitam nunca mais‖ (BRASIL, 2014, p.20). Informações sobre audiências públicas, documentos, fotografias, laudos periciais, relatórios de pesquisa, textos do colegiado e resultados de investigações sobre tortura em instalações militares encontram-se disponíveis na página Memórias Reveladas, pelo endereço eletrônico cnv.memoriasreveladas.gov.br.

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do período da ditadura de 1964-1985 passaram a ser recolhidos ao Arquivo Nacional, em Brasília, e tornaram-se disponíveis para consulta on-line em 2015 (BRASIL, 2016). De acordo com a página do Arquivo Nacional, onde se acessam os Acervos sobre a Ditadura Militar (1964-1985), os pesquisadores da CNV ―desenvolveram seus trabalhos com base nos acervos dos órgãos de informação do regime militar recolhidos ao Arquivo Nacional, entre outros‖ (BRASIL, 2016). Para a organização do dossiê de Os Desinibidos, baseei-me em documentação que ―deu entrada no Arquivo Nacional (AN) em cumprimento ao disposto no Decreto nº 5.584, de 18 de novembro de 2005, que dispunha sobre o recolhimento dos acervos dos extintos Conselho de Segurança Nacional (CSN), Comissão Geral de Investigações (CGI) e Serviço Nacional de Informações (SNI)‖ (BRASIL, 2016). Toda a documentação recolhida pelo AN entre 2007 e 2009 encontra-se disponível, em versão digitalizada, para consulta pública local na sede, no Rio de Janeiro, e na unidade do Distrito Federal. Além disso, o pesquisador também pode solicitar reprodução e envio do material, como fiz ao solicitar, ao Setor de Atendimento a Distância, cópias de toda a documentação referente às peças censuradas de Roberto Athayde. A respeito da documentação censória que acompanha o testemunho datiloscrito de Os Desinibidos, enviado à censura em 1982, apresento a primeira folha do material disponibilizado pelo Arquivo Nacional (Figura 29):

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Figura 29 – Capa do processo Os Desinibidos, registrado no Arquivo Nacional – DF.

Fonte: SERVIÇO..., 1983.

Na Figura 29, destaco informações referentes à catalogação (livro, página, registro) e armazenamento (numeração da caixa) do conjunto de documentos enviados para solicitação de liberação do texto, conforme Protocolo no 1923, do ano de 1983, dirigido à Divisão de

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Censura de Diversões Públicas – DCDP (1923/83/DCDP). Seguindo-se à folha anterior, outras três folhas, em que se registram cartas de solicitações de liberação do texto, encaminhadas à direção do DCDP, antecedem ao texto datiloscrito documentado no Arquivo Nacional e apresentam etapas do processo de autorização do espetáculo (Figuras 30 a 33).

Figura 30 – Ofício 94/83, encaminhamento de Figura 31 – Solicitação encaminhada pela Sociedade documentos para expedir certificado definitivo. Brasileira de Autores Teatrais (SBAT).

Fonte: SERVIÇO..., 1983. Fonte: SOCIEDADE..., 1982.

Figura 32 – Requerimento para fins de Figura 33 – Requerimento para fins de avaliação censória (anverso) avaliação censória (verso)

Fonte: GONÇALVES..., 1982. Fonte: GONÇALVES..., 1982.

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Em posição superior, à esquerda (Figura 30), apresento o ofício de encaminhamento de texto, pareceres e certificados, do Serviço de Censura de Diversões Públicas – SCDP do Rio de Janeiro à DCDP – DF, em 07 de março de 1983. À direita (Figura 31), tem-se carta de apresentação do texto à censura, pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT, em papel timbrado da SBAT, de 22 de dezembro de 1982. Em posição inferior (Figuras 32 e 33), pontuo o anverso e o verso de requerimento de exame do texto, encaminhado em três vias, conforme normas censórias, solicitado pelo produtor Oscar José Ferreira da Costa Gonçalves à direção da DCDP – RJ, em 28 de dezembro de 1982. O fato de esses documentos se apresentarem à frente do texto e dos certificados, pareceres e relatórios de censura, evidencia os trâmites legais sob os quais se baseavam as práticas censórias. De fato, Fagundes (1974) afirma que, a despeito do Decreto-lei no 200, de 25 de fevereiro de 1967, ter proposto a descentralização da censura, os órgãos regionais permaneceram enviando o texto, ainda na fase de ensaios, à sede da DCDP em Brasília, para registro, o que tornava o processo lento e burocrático, podendo acarretar prejuízos financeiros à produtora do espetáculo. No caso dos documentos acima, verifico, pela leitura completa do material proveniente do Arquivo Nacional, na observância das datas em que foi produzido, que as três vias encaminhadas em 28 de dezembro de 1982, pelo requerente Oscar Gonçalves (produtor do espetáculo) foram encaminhadas a três censores diferentes, resultando em três pareceres do texto, datados de 6, 10 e 18 de janeiro de 1983, cumprindo os trâmites legais do intinerário da censura. Os pareceres de leitura do texto, além de apresentarem uma síntese do conteúdo, também produziam interpretações de sentidos e propunham classificação etária e cortes, quando necessários, justificando-se tais atos.

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Figura 34 – Trecho de parecer 008, assinado por censor R.M.C.L. sobre o texto (F.2).

Fonte: R.M.C.L., 1983.

No excerto acima, pode ser verificado, no cabeçalho, a indicação de classificação etária prescrita para 18 anos, com indicação de cortes, e a justificativa da classificação, por haver ―linguagem vulgar e cenas de sexo‖. Além disso, os dois últimos parágrafos apresentam a notificação de corte à palavra Geisel, ―pela forma desrespeitosa que é usada no contexto, tendo em vista se tratar de palavra pouco conhecida, podendo levar o público a fazer uma associação com a figura de um ex-Presidente da República‖, e o veredito sobre o texto: liberação, com cortes, para maiores de 18 anos e condicionada ao Exame do Ensaio Geral. O segundo censor não procedeu aos cortes, mas indicou o texto como impróprio para menores de 18 anos, justificando a impropriedade ―em razão das cenas de sexo entre Valdir e Proteína‖ (R.M.F.M., 1983). O terceiro parecer, por sua vez, apresenta uma interpretação do texto e justifica cortes com trechos da legislação censória e do Código Penal:

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Figura 35 – Parecer 007, de censor M.M.M.M. sobre o texto (F1)

Fonte: M.M.M.M., 1983.

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Figuras 36 – Parecer 007, de censor M.M.M.M. sobre o texto (F.2)

Fonte: M.M.M.M., 1983.

Após ter sido avaliado pelos censores do Serviço de Censura de Diversões Públicas – SCDP do Rio de Janeiro, que produziram os pareceres ilustrados nas Figuras 35 e 36, Os Desinibidos foi submetido à avaliação do ensaio geral, o que ocorreu no dia 03 de fevereiro de

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1983, às 18h, no Teatro Clara Nunes, na Gávea, Rio de Janeiro, ao qual compareceram os mesmos censores R.M.F.M. e R.M.C.L., com exceção do censor M.M.M.M., substituído por L.B.F. Os três censores produziram um relatório único, de três folhas, datiloscrito, assinado e carimbado, com indicação de número de matrícula, pelos três técnicos de censura. O relatório descreve de maneira técnica e sucinta elementos da cena teatral, dividindo-se em: cenário, indumentária, iluminação, marcação, sonoplastia. A partir da observação do ensaio geral, um novo corte somou-se ao veto da menção a Geisel, já proposto por dois dos pareceristas do texto: a bandeira do Flamengo em cores da bandeira nacional, algo que, provavelmente, por se tratar do gesto cênico, não foi identificado na leitura do texto. Destaco, assim, a indicação do corte na Figura 37, amparado pela Lei no 5.700 de 1º de setembro de 1971, que ―dispõe sobre a Forma e a Apresentação dos Símbolos Nacionais, e dá outras Providências‖ (BRASIL, 1971), tanto no cabeçalho quanto no item marcação:

Figura 37 – Trecho da F.2 do Relatório de observação do ensaio geral.

Fonte: L.B.F.; R.M.C.L.; R.M.F.M., 1983.

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A despeito de os pareceres de avaliação do texto terem sugerido a observação do ensaio para verificação da viabilidade da cena de sexo entre Proteína e Valdir Teixeira, não houve veto a essa passagem ou sequer reconhecimento de que se tratava de uma cena de violência, pautada no estupro de vulnerável. Na Figura 37, é possível ler, no trecho referente à iluminação e no parágrafo que o antecede, referente à indumentária, que os atores utilizam ―meia-calça‖, simulando pele, dando a entender que se encontram de tapa sexo, ao passo que a iluminação cênica disfarça a cena em que ocorre o ato. Após as avaliações do texto e do ensaio, foi emitida uma certificação provisória (Figuras 38 e 39) em 07 de março de 1983, no Rio de Janeiro, conforme indica o carimbo no anverso do certificado, que incorpora as deliberações de corte indicados nos pareceres e no relatório de observação do ensaio geral.

Figura 38 – Certificado provisório emitido pela direção do DCDP-RJ (anverso).

Fonte: MINISTÉRIO..., 1983a.

Figura 39 – Certificado provisório emitido pela direção do DCDP-RJ (verso).

Fonte: MINISTÉRIO..., 1983a.

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O certificado definitivo (Figuras 40 e 41), porém, foi emitido apenas em 16 de março, em Brasília, tendo validade até 16 de março de 1988.

Figuras 40 – Certificado definitivo emitido pela direção do DCDP-RJ (anverso).

Fonte: MINISTÉRIO..., 1983b.

Figuras 41 – Certificado definitivo emitido pela direção do DCDP-RJ (verso).

Fonte: MINISTÉRIO..., 1983b.

Essa breve análise da documentação censória evidencia, pela observação das datas, quão burocráticos eram os trâmites para a liberação do texto. Ressalto que o incentivo de duas produtoras, Barraponto e Labirinto Produções Artísticas, não foi suficiente para que o processo censório ocorresse em menos de três meses (dezembro de 1982 a março de 1983, conforme datas dos documentos supracitados). A burocracia promovida pelo regime censório de fiscalização e coerção das produções teatrais, bem como a falta de investimento público efetivo em arte, cultura e lazer conduziram o teatro brasileiro dos anos 1970 e 1980 a uma

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profunda e, quase, silenciosa – por causa da repressão – crise. Nesse sentido, avalio que o momento político de abertura que caracterizou o início da década de 1980 possibilitou que alguns sujeitos envolvidos com a produção teatral denunciassem a crise e divulgassem soluções possíveis, como o fez o diretor de produção de Os Desinibidos, Marcos Vogel, no programa do espetáculo (Figura 42).

Figura 42 – Marcos Vogel comenta as dificuldades de produzir teatro no Brasil e o caráter coletivo da produção de um espetáculo.

Fonte: ATHAYDE, 1983.

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Ao homenagear a equipe de produção cênica, Vogel também mostrou que a autoria teatral vai além da criação do texto, destacando, nos parágrafos finais, a criação de outros sujeitos, em elementos que compuseram a cena de Os Desinibidos: música e sonoplastia, cenário, figurino, direção, entre outros. O conjunto documental que compõe o dossiê de Os Desinibidos evidencia, dessa forma, diferentes etapas da história do texto. A presença de duas personagens (a Fada Mangana e o Doutor Frustrafróide) em contos que precederam ao ano de elaboração de Os Desinibidos pode ser interpretada como elementos que, juntamente ao contexto histórico- social que se representa na obra, permitem o estudo da sua exogênese (BIASI, 2010 [2000]), ou crítica genética externa, como preferiu denominar Grésillon (2007 [1994]) para o estudo de documentos que auxiliam na produção textual. Da mesma forma, os diferentes testemunhos do texto (um datiloscrito submetido aos órgãos censores e uma publicação em livro) apresentam diferenças entre si que comprovam que a criação não se encerra na apresentação do texto, mas permanece ao longo de sua transmissão. A presença de uma cena inteira de Os Desinibidos em uma montagem dirigida Aderbal Freire Filho, por sua vez, evidencia a ação de outros sujeitos sobre o texto, a sua circulação social, o que também é percebido nos cortes promovidos pelos censores ao testemunho datiloscrito. A documentação censória expõe também diferentes trâmites burocráticos que mediaram a encenação/publicação do texto. Alguns desses, os relatórios de observação de ensaio geral, refletem a etapa de recepção do texto, produzindo modos de leitura e interpretação, bem como alguns textos de jornais que tratam da obra e a revista com o programa do espetáculo, a qual, além de apresentar fotos e textos sobre o elenco, divulga todos os membros da equipe de produção e registra textos de Roberto Athayde e Aderbal Freire Filho sobre a criação do texto e da cena. Pelo exame da tradição direta cotejada, observo que, das três cenas que se apresentam no testemunho datiloscrito, cada uma se apresenta (ou é mencionada) em mais de um testemunho, conforme Quadro 3:

Quadro 3 – Indicação de cenas e textos Testemunho Obra publicada O Obra publicada Obra publicada Datiloscrito Jardim da Fada O homem da Crime & Impunidade Os Desinibidos Mangana Lagoa Santa e outras peças (1982) Cenas (1974) (1979) (1983) O Jardim da Fada X X Mangana Os Desinibidos X X X „Stamos em pleno X X mar Fonte: a autora.

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Ressalto que, no processo de colagem em que se enxertaram trechos de O jardim da Fada Mangana no datiloscrito Os Desinibidos, o conteúdo correspondente a dois contos de O jardim da Fada Mangana (um conto que dá título ao livro e a Estória da Maria Ruinzinha) foram inseridos na primeira cena do espetáculo; outro conto foi inserido na cena Os Desinibidos (Um galo para esculápio, em que o personagem João Mirabolão Maracatu do Pelimpé relata sua primeira experiência masturbatória, trecho que foi expurgado da publicação em livro de Os Desinibidos); a terceira cena, por sua vez, apresenta trechos correspondentes ao conto Divertissement para ambientes finos e retoma, ao fim do espetáculo, versos presentes no conto O jardim da Fada Mangana. Já em relação à correspondência de trechos de O Homem da Lagoa Santa com o espetáculo, destaco, além do conto O jovem burocrata e a senhora normal em que se fala do personagem Frustrafróide, dois poemas que são recitados em cena: Introdução ao conceito do tempo, recitado na transição da cena Os Desinibidos para „Stamos em pleno mar, e Non erit finis, recitado ao final do espetáculo. Na versão publicada em livro de Os Desinibidos, nenhuma das partes correspondentes a O Homem da Lagoa Santa ou a O jardim da Fada Mangana é inserida no texto. Além dessas, outra publicação em livro de coletânea de textos de Roberto Athayde veio somar-se ao dossiê: Abracadabrante (2001), coletânea de poemas, ensaios e textos diversos sobre o tempo e os calendários, publicada na ocasião da mudança do milênio, apresenta dois poemas que estão também no datiloscrito Os Desinibidos: o primeiro, Algos, é um poema que o personagem Frustrinha, tanto no texto de 1982 quanto no texto de 1983, cria em cena, testando versos e rimas. O segundo, Introdução ao conceito do tempo, está presente também em O homem da Lagoa Santa. Dessa maneira, o dossiê estabelecido para edição digital de Os Desinibidos integra, em ordem cronológica: i. 4 contos presentes no livro O jardim da fada Mangana, a saber: Um galo para esculápio (p.33-37); Divertissement para ambientes finos (p.61-76); Estória da Maria Ruinzinha (p.87-90) e O jardim da Fada Mangana (p.119-130); ii. 1 conto e 2 poemas presentes na coletânea O homem da Lagoa Santa (1979): O jovem burocrata e a senhora normal (p.15-21); Introdução ao conceito do tempo (p.10-11) e Non erit finis (p.72); iii. 1 datiloscrito com cortes intitulado Os Desinibidos (1982, 68f.), disponibilizado pelo Arquivo Nacional - DF;

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iv. Certificados, pareceres e relatórios de censores, ofícios de encaminhamento de processos e outros documentos disponíveis no Arquivo Nacional, totalizando 16 folhas, com datas de dezembro de 1982 a março de 1983; v. 1 revista do programa do espetáculo (1983, 28f.), com apresentação e fotos do autor, do diretor, dos atores e toda a produção; vi. 1 publicação em livro, compondo a coletânea Crime & Impunidade e outras peças (1983), ocupando as páginas 127 a 224; vii. 2 poemas presentes no livro publicado Abracadabrante (2001): Algos (p.9) e Introdução ao conceito do tempo (p.29-31); viii. Textos de jornais com menções ao espetáculo Os Desinibidos.

É sobre o conjunto acima que realizei as atividades de leitura, interpretação, digitalização, catalogação, organização e edição, cujo modelo descreverei a seguir.

3.2 Construindo a proposta editorial: hiperedição como arquivo hipermídia

A organização do dossiê de Os Desinibidos sob forma de edição digital visa atender ao aspecto ―protéico‖ e à ―instabilidade‖ (MORRÁS, 2003, p.2) das realizações textuais, cujo

significado no puede ser fijado en el texto de la edición crítica, abstracción idealista en el sentido platónico, sino que se manifiesta en la serie (no en la suma) de documentos o versiones que han generado las intenciones cambiantes del autor y las sucesivas modificaciones lingüísticas y bibliográficas de la comunidad de recepción (lectores, copistas, impresores), contemplada también como productora de nuevos significados.116 (MORRÁS, 2003, p.2, grifo meu)

Para a autora, as obras literárias são proteicas porque se exibem em várias formas, o que faz delas objetos multiformes, polimorfos. Nessa situação, julgo necessário realizar uma transcrição sinóptico-crítica com o intento de reproduzir, ―lado a lado, as lições de pelo menos dois diferentes testemunhos, com o objectivo expresso de as comparar‖ (DUARTE, [1997-], verbete), acompanhada de comentários em notas e de fac-símiles dispostos em acervo digital indexado. O cotejo entre diferentes versões textuais, em confronto sinóptico, acompanhado de comentários sobre aspectos contextuais, torna essa edição crítica e também histórica; nela, buscando-se demonstrar pontos em que tais versões se aproximam ou se

116 Tradução livre: ―significado não pode ser fixado no texto da edição crítica, abstração idealista no sentido platônico, mas se manifesta na série (não na soma) de documentos ou versões que geraram as intenções de mudança do autor e as sucessivas modificações linguísticas e bibliográficas da comunidade de recepção (leitores, copistas, impressores), também considerada como produtora de novos significados.‖

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afastam, trazendo notas e comentários que visam esclarecer os textos em seus múltiplos aspectos (BORGES, 2012). Desse modo, a edição digital responde às necessidades teórico-práticas que o papel não consegue suprir, caracterizando-se, segundo Morrás (2003, p.3-4), por: integrar fac-símile e transcrição das versões textuais; apresentar a edição como produto de uma análise, ligada aos fac-símiles (processo que permitiu chegar a ela); oferecer ao leitor informações que o possibilitem avaliar a edição apresentada; desenvolver o aparato para que ele se torne história da transmissão textual e se estenda para além dos dados que se apresentavam de modo sintético no aparato crítico da edição em papel. A partir dessa perspectiva, a noção de hipertexto pode ser estendida para a prática editorial das hiperedições, que se apresentam em forma de arquivos hipermídias, pois

[n]ão alteram meramente o formato de apresentação, em absoluto, mas apresentam um texto que nasce com suas propriedades em leitura hipermidiática; são uma outra forma de ―ler‖ os nossos objetos de estudo, permitindo ao leitor que este faça suas escolhas dentro da edição, trazendo para o diálogo uma gama substancial e coerente de informações correlacionadas, disponíveis em ambiente eletrônico (LOSE, 2010, p.16, grifo meu).

Não se trata de pensar, como já explanei no início dessa seção, o digital como suporte de leitura, dispensando a edição, mas sim, considerando o arquivo nesse meio, percebendo que

[u]m arquivo de textos académicos não dispensa a ação editorial, que revela as relações intertextuais e contextualiza os textos através de comentários metatextuais, relativos não só ao texto individual, mas ao conjunto dos textos de uma obra, compreendendo as suas variações e contexto de publicação (LOURENÇO, 2009, p.298).

Os acervos digitais constroem novos gestos de leitura e evocam o estudo da produção, circulação e recepção de obras, que são fenômenos sociais, ou, como estabelece Barreiros (2015, p.179), ―a hipermídia é a síntese da revolução digital, no âmbito da escrita, porque institui uma nova lógica das práticas de produção, circulação e apropriação dos textos‖. A condição dinâmica, flexível e interativa, e a codificação eletrônica da hipermídia tece uma rede de dados orais, visuais, verbais e numéricos, registrados em diversas formas – conforme ideia de texto proposta por McKenzie (2005 [1985], p.31) – e interligados (o que se torna possível a partir de hiperlinks). É nesse ponto que Negroponte (1995) amplia a noção de hipertexto digital para compreender a hipermídia como

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[...] um desenvolvimento do hipertexto, designando a narrativa com alto grau de interconexão, a informação vinculada. [...] Pense na hipermídia como uma coletânea de mensagens elásticas que podem ser esticadas ou encolhidas de acordo com as ações do leitor. As ideias podem ser abertas ou analisadas com múltiplos niveis de detalhamento (NEGROPONTE, 1995, p. 66).

Sendo uma narrativa interconectada, entendo, portanto, que a hiperedição como arquivo hipermídia é resultado de uma produção de leituras sobre textualidades diversas que se interconectam no espaço digital de múltiplas maneiras. Cabe ao editor de hipermídia construir sua narrativa sobre os dados apresentados no arquivo, uma vez que

[o] editor de hipermídia mantém o controle sobre a estruturação da interface. Ele cria menus, ícones e o layout, aplica técnicas de design gráfico, ou seja, determina como tudo irá funcionar, desde a aparência às funções mais simples. Esse processo envolve etapas de criação e de edição ao mesmo tempo, porque os textos, as imagens e outras mídias não são inseridos aleatoriamente. Eles recebem tratamento técnico para torná-los mais atraentes e se encaixarem em determinados espaços. Um conjunto de textos digitais arquivados aleatoriamente não é um conteúdo hipermidiático, porque a principal característica da hipermídia é a construção de uma interface organizada/editada que integre os arquivos de modo interativo e navegável (BARREIROS, 2015, p.181).

Fica evidente, portanto, que ao propor uma hiperedição, preciso pensar em um arcabouço metodológico e técnico de organização e tratamento dos textos que compõem meu dossiê para, a partir disso, utilizar-me de diversas modalidades de edição convencionais (no caso de Os Desinibidos, a edição fac-similada digital e a edição sinóptico-crítica digital) transformadas pela textualidade digital. Como o próprio texto Os Desinibidos foi criado a partir de um processo de colagem de contos, poemas, textos teatrais e canções, a interconectividade entre os documentos do acervo que pretendo produzir fica ainda mais evidente e necessária, como também somente um ambiente hipermidiático me possibilitaria reunir o aparato de informações de que disponho (tendo em vista a impossibilidade de incluir um arquivo sonoro ou um vídeo em textos fixados em papel). De todo modo, o produto final do meu trabalho será resultante da minha forma de ler, conectar e produzir sentido sobre os textos do dossiê que selecionei para estudo. Nesse sentido, do esforço em produzir um trabalho coerente com as práticas editoriais que vêm sendo desenvolvidas por outros filólogos que se propuseram a construir hiperedições, tomei como modelos, principalmente, algumas práticas editoriais para destacar, entre os trabalhos mencionados abaixo, um avanço entre as práticas editoriais, de modo a utilizar potencialidades do digital e da web.

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Uma primeira prática que me interessa destacar seria a Eletronic variorum edition of the Quixote (EVE-DQ) (URBINA et al, 2005), realizada pelo Projeto Cervantes.

[…] La EVE-DQ no es una edición, o al menos no una edición en el sentido tradicional de la palabra. Estrictamente hablando es un programa, una herramienta, un proceso y una base de datos, o como se ha venido a denominar preferentemente por Jerome J. McGann y otros críticos, un archivo hipertextual o hiperedición. Archivo en cuanto se trata de una biblioteca o colección de facsímiles digitales y de textos electrónicos cotejados y anotados, almacenados y organizados en bases de datos relacionales, y accesibles a través de interfaces de edición y de composición. Así pues, y a pesar de que los métodos e instrumentos empleados en la trascripción electrónica de los textos incluidos en el archivo, los principios editoriales aplicados en la clasificación y análisis de variantes textuales, corresponden fundamentalmente a los de la crítica textual procedente de la tradición del ‗copy-text‘, los objetivos, métodos de trabajo y funcionamiento de la EVE-DQ corresponden, sin embargo, a los presupuestos del hipertexto enunciados por Landow así como a los principios y parámetros adelantados por Shillingsburg, McGann y Robinson, entre otros […]117 (URBINA et al, 2005, p.227, grifo meu).

A interface permite um ―editor virtual‖, isto é, a partir das variantes da editio princeps de 1605, o leitor pode ―construir‖ sua própria versão do texto, selecionando e combinando variantes das diferentes versões. Figura 43 – Interface da página inicial de A edição Figura 44 – A edição variorum eletrônica dO Quijote.

variorum eletrônica dO Quijote.

Fonte: URBINA et al, 2005. Fonte: URBINA et al, 2005.

117 Tradução livre: ―A EVE-DQ não é uma edição, ou pelo menos não uma edição no sentido tradicional da palavra. Estritamente falando, é um programa, uma ferramenta, um processo e um banco de dados, ou como passou a ser chamado, preferencialmente por Jerome J. McGann e outros críticos, por um arquivo hipertextual ou hipertexto. Arquivar como se fosse uma biblioteca ou coleção de fac-símiles digitais e textos eletrônicos coletados e anotados, armazenados e organizados em bancos de dados relacionais, e acessíveis através de interfaces de edição e composição. Assim, e apesar dos métodos e instrumentos utilizados na transcrição eletrônica dos textos incluídos no arquivo, os princípios editoriais aplicados na classificação e análise das variantes textuais correspondem fundamentalmente aos da crítica textual derivada da tradição do 'copy-text', os objetivos, métodos de trabalho e funcionamento da EVE-DQ, correspondem, no entanto, aos pressupostos do hipertexto enunciados por Landow, bem como aos princípios e parâmetros antecipados por Shillingsburg, McGann e Robinson, entre outros.‖

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Outro modelo de edição digital que se destaca é o trabalho sobre os manuscritos de Madame Bovary, de Flaubert, preparada pelo Centre Flaubert, na Université de Ruen, sob a coordenação de Yvan Leclerc (2009). A interface digital consta de apresentação, história da obra e do autor, lista de testemunhos com hiperlinks.

Figura 45 – Página inicial de Les manuscrits de Madame Bovary: édition intégrale sur le web.

Fonte: LECLERC et al, 2009.

Ao escolher o testemunho que se deseja ler, a página (Figura 45) é direcionada à transcrição do texto normalizada (Figura 46). É interessante notar que, ao mover o cursor pela página, os trechos aparecem em destaque amarelo, com a orientação ―clique aqui para visualizar a sequência 1‖ em hiperlink de primeiro nível.

Figura 46 – Visualização da transcrição do romance digital Madame Bovary em Les manuscrits de Madame Bovary: édition intégrale sur le web.

Fonte: LECLERC et al, 2009.

Ao clicar sobre o hiperlink, abre-se uma nova página, em que se vê o manuscrito de trabalho de Flaubert e a respectiva transcrição diplomática. A barra de ferramentas possibilita

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diversas formas de exibição (manuscrito ao lado da transcrição, acima da transcrição, somente manuscrito ou somente transcrição) (Figura 47).

Figura 47 - Fac-símile e transcrição diplomática de Madame Bovary: édition intégrale sur le web.

Fonte: LECLERC et al, 2009.

O trabalho sobre os manuscritos de Madame Bovary conseguiu combinar a proposta de edição como livro a ler e documento a estudar, estabelecida por Grésillon (2007 [1994]), disponibilizando fac-símile, transcrição diplomática, e texto normalizado para leitura. O arquivo hipermídia editado por Jerome J McGann etre 1993 e 2008 (Figura 48), em The complete writings and pictures of Dante Gabriel Rosseti: a hypermedia archive (MCGANN, 2008), fornece obras pictóricas e textuais do pintor, escritor, desenhista e tradutor inglês. Figura 48 – Interface do arquivo hipermídia The complete writings and pictures of Dante Gabriel Rosseti: a hypermedia archive.

Fonte: MCGANN, 2018.

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De acordo com a barra de menus disposta na linha superior da interface que apresento na Figura 48, o Arquivo Rossetti consta de seis abas. A imagem que reproduzi acima corresponde à tela inicial, Home, que contém um texto de apresentação geral do site, seguido de uma caixa de busca que vincula o arquivo ao NINES (Nineteenth-century Scholarship Online), ―an open source, distributed aggregation of peer-reviewed online scholarly work on nineteenth-century British and American literature and culture‖118 (MCGANN, 2008). Essa caixa possibilita que o leitor consulte os documentos do Arquivo Rossetti através do NINE. A segunda aba, about the archive, é composta por um texto intitulado Introduction to the Final Installment of the Rossetti Archive, em que são descritas as quatro etapas do projeto Arquivo Rossetti, bem como apresenta informações sobre navegação e sobre a parceria com o NINE. Na terceira aba, exhibits & objects, são indicadas as categorias de documentos, através de hiperlinks que conduzem à lista de materiais em ordem cronológica, além de apresentarem hiperlinks de documentos contextuais e de introdução biográfica e cronologia dos trabalhos. Nas figuras abaixo, apresento a referida aba, à esquerda, e à direita, o conteúdo que se abre (descrição, referência, fac-símile e comentário) ao clicar no hiperlink Poems. Figura 49 – Aba exhibits & objects. Figuras 50 – Hiperlink Poems.

Fonte: MCGANN (2008) Fonte: MCGANN (2008)

As demais abas da barra de menus, search engine, bibliography (and works cited) e nines, apresentam, respectivamente, ferramenta de busca para pesquisa documental no acervo;

118 Tradução livre: ―uma fonte aberta, agregação distribuída de trabalho acadêmico on-line revisado por especialistas em literatura e cultura britânica e americana do século XIX.‖

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lista de referências de trabalhos citados com índice alfabético em hiperlinks; informações sobre o consórcio com o projeto NINES. Oferecendo documentos codificados para pesquisa e análise estruturadas com base no corpus contextual de materiais, o Arquivo Rossetti

[…] aims to include high-quality digital images of every surviving documentary state of DGR's works: all the manuscripts, proofs, and original editions, as well as the drawings, paintings, and designs of various kinds, including his collaborative photographic and craft works. These primary materials are transacted with a substantial body of editorial commentary, notes, and glosses119 (MCGANN, 2008).

As diferentes edições que apresentei acima (URBINA, 2005; LECLERC, 2004 e MCGANN, 2008) configuram-se marcos do desenvolvimento da filologia na era digital. Orientados por diferentes perspectivas críticas – sociológica (URBINA, 2005), genética (LECLERC, 2004) e arquivística (MCGANN, 2008) –, tais propostas inscrevem seus objetos de trabalho (Don Quijote, os manuscritos de Madame Bovary e o conjunto de produções de Dante Gabriel Rossetti) na textualidade digital, conservando, em todos os casos, os códigos contextuais em que tais obras foram lavradas. No âmbito nacional, convém-me destacar o pioneirismo de edições em meio eletrônico e digitais, realizadas na pós-graduação da Universidade Federal da Bahia. A primeira delas, Arthur de Salles: esboços e rascunhos, tese de Alícia Duhá Lose (2004), embora não explorasse todas as potencialidades do digital, deu um passo essencial para o desenvolvimento de uma filologia digital ao utilizar o software Front Page, de uso doméstico, com tecnologia compatível com a internet, mesmo que não tenha sido disponibilizada on-line. Sua edição incorporou mídias de imagem e som e, segundo Magalhães e Lose (2016),

[t]rata-se de uma edição digital fechada, posto que não há relação das informações presentes no texto com a Web. A proposta apresentada pela autora era possibilitar ao leitor a multiplicidade de leitura os movimentos que o autor realizou para elaborar o texto e, paralelamente, proporcionar ao leitor a possibilidade de escolher os caminhos de acesso às informações apresentadas: os fac-símiles; a descrição dos manuscritos; um levantamento elaborado do vocabulário, da estrutura poética e das temáticas de uso do poeta; a biografia do autor; a obra mais divulgada dele: o Hino ao Senhor do Bonfim; e, por fim, uma lista de todos trabalhos executados pelo grupo de pesquisa da UFBA com o acervo do poeta (MAGALHÃES; LOSE, 2016, p.120- 121).

Ainda hoje, o trabalho de Lose (2004) é referência para diversas pesquisas na área, especialmente as que se realizam no Grupo de Pesquisa do Mosteiro de São Bento que, sob

119 Tradução livre: ―objetiva incluir imagens digitais de alta qualidade de cada estado documental sobrevivente das obras da DGR: todos os manuscritos, provas e edições originais, bem como os desenhos, pinturas e projetos de vários tipos, incluindo suas colaborações fotográficas e obras de artesanato. Estes materiais primários são transacionados com um conjunto substancial de comentários editoriais, notas e glosas.‖

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sua coordenação e orientação, tem preparado edições digitais dos Livros do Tombo, de sermões e de crônicas do referido mosteiro. Destaco a dissertação Fazendo filologia entre tags e dígitos binários: uma proposta de edição digital do Livro de Crônicas do Mosteiro de São Bento da Bahia, de Lívia Borges Magalhães (2013), considerada

[...] uma edição de navegação aberta, com diversos links unindo os registros históricos presentes no manuscrito com os registros historiográficos já encontrados na web. A proposta da edição era, primordialmente, permitir ao leitor da edição o acesso à multiplicidade de abreviaturas presentes no texto, mas, inseriu-se, também, imagens capazes de ilustrar o arcabouço cultural do manuscrito. O trabalho foi feito através da inserção de uma código java na head do site para, então, ordenar que, no body, quando o mouse passe por cima de uma informação ―linkada‖, ela apareça (primeira imagem da página interna), e quando o mouse saia de cima, ela suma (segunda imagem da página interna). (MAGALHÃES; LOSE, 2016, p.122)

Nesse mesmo contexto, diversas teses e dissertações foram produzidas sob orientação da Profa. Dra. Rosa Borges por integrantes da Equipe Textos Teatrais Censurados – ETTC, dentre as quais destaco algumas que, ao meu ver, evidenciam o processo de desenvolvimento do grupo de que faço parte. Assim sendo, a dissertação de Isabela Almeida (2011), Três fios do bordado de Jurema Penna: leituras filológicas de uma dramaturgia baiana, propôs uma edição interpretativa em meio digital de Auto da Barca do Rio das Lágrimas de Irati, de Jurema Penna, utilizando-se do recurso hiperlink para a disposição do aparato.

Figura 51 – Edição interpretativa em meio digital de Auto da Barca do Rio das Lágrimas de Irati, de Jurema Penna: interface da página inicial e destaque para aparato crítico e aparato de notas, em hiperlinks de primeiro e segundo nível, respectivamente.

Fonte: ALMEIDA, 2011.

Na Figura 51, evidencio a presença de dois níveis de hiperlinks: no primeiro, apresenta-se apenas uma caixa de texto quando o leitor passa o cursor sobre o trecho em negrito, indicando as intervenções editoriais; no segundo, o termo gatilho é apresentado em azul, e, quando clicado, abre-se uma nova aba com informações contextuais. Tendo

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incorporado mídias de imagem e som ao texto editado, a edição de Almeida (2011) utilizou do formato Web para apresentação do arquivo desenvolvido nos programas Front Page e Note Pad. Buscando conhecer outros suportes de apresentação da edição além da web, defendi, na minha dissertação O desabrochar de uma flor em tempos de repressão: edição e crítica filológica de Apareceu a Margarida de Roberto Athayde (2013), a edição sinóptica de Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde.

Figura 52 – Interface da edição sinóptica de Apareceu a Margarida em Prezi.

Fonte: CORREIA, 2013.

No conjunto de documentos que dispus em DVD room, apresentei em Flash Player a edição sinóptica preparada no software Prezi de sete testemunhos de Apareceu a Margarida

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em confronto, empregando o recurso do zoom. Além disso, também montei uma edição fac- similar, organizando os testemunhos da tradição direta cronologicamente, bem como montando outros dois conjuntos documentais referentes à tradição indireta: os processos censórios e um acervo com fotos da encenação, textos de jornais, programa do espetáculo e diário da direção (Figura 53).

Figura 53 – Interface da edição fac-similar de Apareceu a Margarida em Prezi.

Fonte: CORREIA, 2013.

Ainda no âmbito das produções da Equipe Textos Teatrais Censurados, Arivaldo Sacramento de Souza apresentou outro modo de expor versões textuais em confronto, na sua tese Nas tramas de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá: crítica filológica e estudo de sexualidades (2014).

Figura 54 – Interface do Arquivo Hipertextual de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá.

Fonte: SOUZA, 2014.

O trabalho de Souza (2014) já se identificava como arquivo hipertextual, apresentando-se em formato web e incorporando mídias de imagem e som à edição

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identificada como sinóptico-crítica, além da edição fac-similada. A edição por ele elaborada apresenta as transcrições lado a lado, em janelas com barras de rolagem independentes, como apresento na Figura 55.

Figura 55 – Confronto sinóptico-crítico na edição de Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá.

Fonte: SOUZA, 2014.

Até o momento em que encerro minha pesquisa, o último trabalho defendido por membros da Equipe Textos Teatrais Censurados foi Filologia e Arquivística em tempos digitais: o arquivo hipertextual e as edições de A Escolha ou O Desembestado de Ariovaldo Matos, tese de Mabel Meira Mota (2017), que aplicou princípios da Arquivologia aos documentos do dossiê estudado, editado filologicamente e organizado em arquivo hipertextual disponibilizado na Web.

Figura 56 – Interface do arquivo hipertextual de A Escolha ou O Desembestado.

Fonte: MOTA, 2017.

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A edição preparada por Mota (2017) apresentou fac-símiles acompanhados de transcrição e um rico acervo documental interligado ao texto a partir de diversos tipos de indexadores. A página inicial (Figura 56) apresenta uma barra de menus composta pelas abas início; o escritor; sobre a edição; edições; acervo; contato. A aba edição apresenta duas possibilidades: modo leitura (em que o leitor escolhe o testemunho que deseja ler e visualiza fac-símile e transcrição lado a lado) e modo de mediação (em que o leitor escolhe visualizar as edições fac-similar, sinóptica ou interpretativa). A aba acervo (Figura 57), por sua vez, apresenta a lista de itens cadastrados (documentos classificados arquivisticamente) precedida por filtros, que são ferramentas de busca e identificação.

Figura 57 – Aba acervo do arquivo hipertextual de A Escolha ou O Desembestado.

Fonte: MOTA, 2017.

As edições de Souza (2014) e Mota (2017) foram produzidas em um contexto de ampliação dos debates sobre Humanidades Digitais e Filologia na UFBA, uma discussão que se materializou especialmente em O pasquineiro da roça: edição dos panfletos de Eulálio Motta, tese de Patrício Barreiros (2013) sob orientação da Profa. Dra. Célia Marques Telles.

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Figura 58 – Interface da hiperedição O pasquineiro da roça.

Fonte: BARREIROS, 2013.

Ao apresentar uma hiperedição de 57 panfletos publicados por Eulálio Motta na cidade de Mundo Novo-BA, Barreiros (2013) desenvolveu um modelo de edição para internet, apresentando as transcrições dos textos, edição crítica, e documentos do acervo do escritor. A página inicial (Figura 58) apresenta uma barra de menus horizontal, constando as abas O Escritor, A Edição, O Acervo. Em Índice dos Panfletos, são disponibilizadas miniaturas dos fac-símiles dos panfletos em ordem cronológica e de modo dinâmico (se movem horizontalmente de acordo com o movimento do cursor). Acima do índice, à direita, há uma ferramenta de busca chamada Todos, na qual são listados todos os panfletos editados classificados por temas (religião, emancipação de Piritiba, ditadura militar, cotidiano, política partidária, poesia). Disponível on-line para navegação aberta, a hiperedição apresentada por Barreiros (2013), é caracterizada pela facilidade de navegação e apresentação dos documentos. Os modelos que apresentei aqui evidenciam o processo de amadurecimento e ampliação dos usos das potencialidades digitais, que partem do uso de ferramentas eletrônicas para facilitar a atividade do filólogo (especialmente na transcrição e cotejo das variantes), atravessam um longo período de edições artesanais que utilizam o digital apenas como suporte para fixar os textos e chegam à compreensão do hipertexto como resultado do trabalho filológico. Da ampliação da noção de hipertexto, surge a hiperedição, entendida como arquivo hipermídia. Partirei, portanto, dessas práticas para considerar o dossiê de Os Desinibidos, como arquivo hipertextual no formato .html, cujos critérios apresentarei na seção seguinte.

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4 UM DIVÃ PARA OS DESINIBIDOS: A HIPEREDIÇÃO

There will be no need a centralized library120. Peter Shillinsburg (1999, p.31)

Como precisei compreender alguns conceitos do campo psicanalítico a fim de realizar a leitura filológica – com a proposital redundância do termo – de Os Desinibidos, faço uso do termo divã como imagem para ilustrar o processo de ler textos vagarosamente que se constitui a práxis filológica condizente com o que acredito. Um divã, na condição de ―item de mobiliário amplamente associado à prática da psicanálise, [...] é um instrumento da clínica e faz parte de todo o processo existente entre o profissional e seu paciente, sendo uma figura chave de transição entre as diversas fases do processo analítico‖ (RIGONI, 2015). Em muitas correntes da clínica psicanalítica, é no divã que o paciente fala sobre si e expressa suas emoções e pensamentos, ou seja: o divã pode ser entendido como um instrumento ou símbolo de acomodação e escuta. Além disso, o divã possibilita a movimentação do analisando e a leitura gestual que produz sentidos. Quando digo, no título desta seção, que me proponho a por Os Desinibidos em divã, indico que me coloco à escuta sensível de recepção, contato e empatia necessários para interpretar o dossiê. Se, para a psicanálise freudiana, a clínica consistia em traduzir, interpretar, analisar o conteúdo psíquico a partir da associação livre de ideias, em Filologia, o primeiro movimento de preparação de edição é a recepção do texto. Said (2007 [2004]), como já citei na seção segunda, apontou dois movimentos: recepção e resistência, que acarretaria no reposicionamento do texto editado na tradição literária. Assim sendo, enquanto na terceira seção pus em evidência a multiplicidade documental em que consiste o dossiê que aqui estudo, nesta seção, conduzo-me a três questões específicas: que tratamento dar a tais documentos? Como lê-los, interpretá-los e oferecê-los à leitura digital sem descaracterizar os códigos contextuais dos objetos? É possível referir-me a Os Desinibidos como um texto e, assim, propor uma edição de texto? Tais questões orientaram-me pelas decisões editoriais que aqui exponho, buscando respondê-las em ordem inversa, visto que a natureza da terceira dúvida reconduziria as variáveis que me auxiliaram na decisão dos critérios de classificação documental e editoriais. Em primeira hipótese, eu poderia tratar Os Desinibidos como um texto teatral, um artefato, um artesanato tecido de outros tecidos-textos de múltiplos gêneros, como o conto O Jardim

120 Tradução livre: ―não haverá necessidade de uma biblioteca centralizada‖.

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da Fada Mangana, o conto teatral Divertissement para ambientes finos e poemas publicados em O homem da lagoa santa. Essa ideia, porém, tenderia à recondução do paradigma unicial dos textos, e poderia me colocar perigosamente na posição de tratar os contos e os poemas como testemunhos de Os Desinibidos, o que seria desconsiderar que O Jardim da Fada Mangana, Divertissement para ambientes finos e O homem da lagoa santa foram publicados anos antes de Os Desinibidos e eram textos que existiam independentemente da criação da peça em 1982. Como se não bastasse o anacronismo dessa hipótese de texto/testemunho, tal ideia me faria legitimar ou rechaçar a publicação de Os Desinibidos, de 1983, uma vez que ela não apresenta as cenas provenientes de O Jardim da Fada Mangana, Divertissement para ambientes finos e O homem da lagoa santa constantes no datiloscrito encenado. O caminho que me pareceu mais lógico e coerente com a micro-história cultural de Os Desinibidos – se assim eu puder referir-me ao que estou fazendo nesse ato interpretativo – foi, ainda sob a metáfora do divã, ouvir o dossiê, preservar os documentos individualmente. Assumindo as consequências dessa escolha, não me proponho a editar um texto, mas um dossiê, ou seja: um conjunto documental, um conjunto de textos que se harmonizam em torno de um eixo comum: o datiloscrito Os Desinibidos de 1982, que foi: a) produzido a partir de outros textos; b) encaminhado para censura e encenado; c) comentado em jornais e d) base para a publicação impressa homônima de 1983. Nesse sentido, os dois textos que se intitulam Os Desinibidos, o datiloscrito de 1982 e o impresso de 1983, serão considerados no trato editorial versões distintas, ao invés de testemunhos de um texto. Com essa perspectiva, adoto, assim como o fiz em 2013121, a ideia de que ―las versiones no son sólo distintas, sino que testemonian un conjunto preciso de significaciones en sucesivos momentos de la historia‖122 (MCKENZIE, 2005 [1985], p.53, grifos meus), o que implica afirmar que as versões são atos de leitura e produção e sentidos que se fazem em momentos históricos sucessivos. Preservar os códigos contextuais em que os documentos foram produzidos implicaria também preservar as versões isoladamente, sem hierarquizá-las, mas evidenciando as sucessivas alterações resultantes e produtoras de distintos atos de leitura. Considero, pois, duas versões de Os Desinibidos: o datiloscrito de 1982 (D82) e o impresso de 1983 (D83), e, sobre elas, realizo, principalmente, uma edição sinóptico-crítica hipermídia, que é uma das modalidades editoriais que irão compor a hiperedição. Ao expor

121 Remeto-me aqui à subseção intitulada Versão: um conceito sociológico, presente na minha dissertação de mestrado (CORREIA, 2013). 122 Tradução livre: ―as versões não somente são distintas, mas testemunham um conjunto preciso de significações em sucessivos momentos da história‖.

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cada versão lado a lado, contrasto as diferenças entre elas e, na condição de crítica, comento o texto com notas hipermídia que se propõem a elucidar conceitos, pessoas e outros textos citados em Os Desinibidos. Não me caberia, nessa modalidade, considerar os demais textos (contos e poemas) como versões a serem transcritas em confronto sinóptico, tendo em vista que tais textos foram retextualizados para compor a cena teatral em D82, ou seja: embora seja inegável que algumas partes do texto cênico tenham sido produzidas a partir de partes recortadas de um conto, tais partes foram adaptadas para integrar o texto cênico, de modo que não seria possível conceber um confronto sinóptico entre um conto e um texto teatral. Posto isso, considerei os demais textos que integram o dossiê em edição fac-similar, devidamente mencionados nos comentários inseridos da edição hipermídia, de modo a preservar a materialidade de cada objeto e estabelecer diálogo entre os documentos do dossiê e a edição. Consoante com essas determinações, busquei oferecer diferentes modelos editoriais em um arquivo hipermídia, a fim de abranger um público de leitores mais diversificado em uma interface de fácil manuseio. Nessa perspectiva, considerei os princípios gerais propostos por Peter Shillingsburg (1999123) para edições eletrônicas, dentre os quais o primeiro seria usability, ou usabilidade. Segundo esse princípio, ―the ideal standard of usability should be that the archive be as easily available as possible to all potential users who have a sufficiendy sophisticated computer system to take advantage of electronic scholarly editions124‖ (SHILLINGSBURG, 1999, p.30). A esse respeito, Shillingsburg discorre que, embora tenha pensado em disponibilizar a edição em diferentes formatos a serem processados em diferentes aparelhos (tais como CDs ou DVDs), concluiu que a disponibilidade do arquivo seria mais ampla caso o arquivo fosse compatível com qualquer software/sistema operacional que o usuário disponha, sem a necessidade de atualizações sucessivas. A opção pela rede apresenta, entre diversas vantagens expostas por Shillinsburg (1999, p.31), a possibilidade de as atualizações feitas no arquivo serem disponibilizadas aos usuários simultaneamente sem prejudicar a integridade do arquivo, protegida em um local único, ou seja, ―there will be no need a centralized library125‖ (SHILLINSBURG, 1999, p.31), uma vez que o editor poderá atualizar os dados localmente e disponibilizá-los em rede para todo o público. É dessa ideia que Shillingsburg (1999, p. 32) desenvolve o segundo princípio, transportability, que se configura na transportabilidade do arquivo, isto é: na ideia de que o

123 O texto Principles for Eletronic Archives, Scholarly Editions, and Tutorials, de 1993, foi atualizado em 1999 na publicação The Literary Text in the Digital Age (FINNERAN, 1999). 124 Tradução livre: ―o padrão ideal de usabilidade deve ser que o arquivo seja tão facilmente disponível quanto possível para todos os usuários em potencial que tenham um sistema de computador suficientemente sofisticado para aproveitar as edições eletrônicas acadêmicas‖. 125 Tradução livre: ―não haverá necessidade de uma biblioteca centralizada‖.

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arquivo possa ser movido e acessado em diferentes locais. A rede, a web, nesse sentido, possibilitaria o arquivo ser usado e transportado em diferentes aparelhos e navegadores. O terceiro princípio, archive specifications (especificações arquivísticas), refere-se ao design e ao armazenamento de dados das edições eletrônicas que, de acordo com Shillinbsburg (1999, p.33-34), devem: a) ser multimídia, integrando texto, imagem, som e cor; b) apresentar um design interativo; c) possibilitar contribuições de usuários (com comentários ou mesmo elaborações de versões de leitura) sem comprometer o arquivo de base; d) possibilitar impressão e citação (destacando-se questões referentes a direitos autorais, regras de acesso ou taxas de assinatura); e) construir referências cruzadas, links, com apresentação simultânea de variantes textuais, glossários, mapas e janelas intercambiáveis; f) ser intertextual; g) disponibilizar contextualidade e interpretações, ligados a materiais presentes em outras mídias, incluindo comentários críticos sobre o texto (SHILLINGSBURG, 1999, p.34). A esses princípios, Shillingsburg (1999, p.34) acrescenta security and order (segurança e ordem), que visa à proteção do arquivo original e identificação automática de cópias criadas por usuários; integrity (integridade), relacionada ao cuidado em manter uma cópia de origem de cada edição; expandability (expansibilidade), baseada na ideia de que o arquivo deve ser passível de expansão, ―by the archive owner or compiler as new materials and new links seem appropriate; and by users in a parallel commentary field or bulletin board126‖ (SHILLINGSNBURG, 1999, P.34); printability (passível de impressão); e user friendly (o que pode ser entendido como sistema de navegação amigável), isto é, capaz de orientar sessões de navegação e localizar o usuário, além de registrar o ponto em que ele interrompeu a leitura – para Shillingsburg (1999, p.35), essa ideia é análoga ao marcador de página utilizado nos impressos. Com base nesses princípios e nos recursos de que dispus, optei por seguir o modelo apresentado por Mota (2017), com vistas a estabelecer um padrão para os diferentes acervos de textos teatrais censurados preparados pela ETTC. Dessa forma, o dossiê e a edição hipermídia de Os Desinibidos integrará a hiperedição Roberto Athayde: dramaturgia censurada, que é um acervo digital e é um conjunto de edições de diferentes modalidades, a ser apresentado em rede, formato .html, de modo que poderá ser acessado em diferentes navegadores (Google Chrome, Internet Explorer, Mozilla Firefox, Opera Mobile e Safari).

126 Tradução livre: ―pelo dono do arquivo ou compilador, à medida que novos materiais e novos links pareçam apropriados; e por usuários em um campo de comentário paralelo ou quadro de avisos‖.

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Evidentemente, a apresentação do site127 poderá sofrer alterações a depender do uso de cada navegador, sistema operacional ou aparelho eletrônico, contudo, conforme assegurou Mota (2017, p.127-128), o Sistema Informatizado de Gerenciamento de Documentos (SIGD-RA) permanece inalterado para garantir a execução do princípio de integridade. Desse modo, compus o site com uma tela inicial em que se insere uma barra de menus com os seguintes itens:

i. Apresentação: funciona como um guia de navegação, apresentando o site como um todo e o projeto de pesquisa que lhe deu origem, e orienta o leitor sobre o funcionamento da página; ii. O autor: situa o leitor sobre a vida e a obra de Roberto Athayde, enfocando sua carreira dramatúrgica durante o golpe militar; iii. O acervo: apresenta os critérios de organização do conjunto documental empregados no site e expõe os dossiês estudados como links128, de modo que, ao clicar sobre eles, o usuário poderá acessar a documentação de cada dossiê isoladamente em modo de leitura, isto é, em página com uma apresentação descritiva do conjunto documental e links para as fichas catálogo e visualização dos documentos; iv. Consulta: direciona ao Sistema Informatizado de Gerenciamento de Documentos (SIGD-RA), ferramenta de busca para pesquisa de todos os documentos; v. Edições: apresenta ícones referentes às obras e, em cada uma delas, direciona o usuário às diferentes edições digitais realizadas; vi. Contato: expõe um espaço dialógico em modelo chat com vistas a acolher sugestões, avaliações, dúvidas, impressões e críticas sobre a edição, além de endereço eletrônico para contatar a editora responsável pelo projeto e créditos de elaboração do site.

Destaco, na lista acima, minha opção por apresentar o acervo pela descrição dos itens que integram os dossiês (o que corresponderia a um modo de leitura do acervo, através de um percurso de apresentação dos documentos estabelecido por mim) e pela ferramenta de pesquisa, através da qual o usuário fará sua própria busca, atravessando os dossiês, a partir de diferentes indexadores. Essa decisão surgiu da necessidade de me orientar pelo critério user friendly (SHILLINGSBURG, 1999), buscando apresentar os dados de modos diferentes, a fim

127 O desenvolvimento do site e do sistema de gerenciador de documentos foi realizado em diálogo com Syd Franco, Analista e Desenvolvedor de Sistemas. E-mail: [email protected]. 128 Para esta pesquisa, estudei apenas o dossiê de Os Desinibidos, ao passo que, em 2013, havia estudado o dossiê Apareceu a Margarida (CORREIA, 2013), de modo que ambos estão disponíveis no site.

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de facilitar a navegação do usuário. Além disso, seguindo critérios que se pauta em archive specifications, preocupei-me em elaborar uma interface convidativa e favorável à leitura, tomando como modelo as abas correspondentes à exibição dos itens do acervo e à consulta, apresentadas no Rosetti Archive (MCGANN, 2008). Nas figuras a seguir (Figuras 59 a 67), exemplifico como se apresenta a tela inicial do site e a barra de menus se apresenta em dois tipos de aparelhos e navegadores: na Figura 59, utilizo o navegador Google Chrome, apresentado em computador pessoal com sistema operacional Windows 10:

Figura 59 – Interface do acervo digital e hiperedição Roberto Athayde: dramaturgia censurada.

Fonte: A autora, com arte da designer gráfica Milla Carol.

Evidencio, na Figura 59, a barra de menus em posição superior da tela, com os ícones início, apresentação, o autor, o acervo, consulta, edições e contato. A tela inicial, cuja arte129 foi elaborada a partir da sobreposição e edição de imagens dos documentos que se encontram no próprio acervo do site (no caso na imagem acima, há a imagem do autor acompanhada de fotografias de Marília Pêra no papel de Apareceu a Margarida, e trecho com cortes do datiloscrito de Os Desinibidos), alterna-se com outras quatro telas em efeito dinâmico produzido por flash player. As telas que se alternam à tela inicial do site foram criadas a partir do mesmo processo da tela inicial, com imagens e citações de trechos de diferentes textos teatrais censurados de Roberto Athayde, conforme figuras a seguir:

129 Todas as telas foram produzidas especialmente para esta tese, por Milla Carol, designer gráfica. E-mail: [email protected].

164

Figuras 60 a 63 – Interface do acervo digital e hiperedição Roberto Athayde: dramaturgia censurada.

Fonte: A autora, arte da designer gráfica Milla Carol.

165

Ao abrir o site, disponibilizado no domínio www.acervorobertoathayde.com, o usuário contemplará as telas anteriores (Figuras 60 a 63) sem que precise clicar em nenhum local. Abaixo, evidencio como se apresenta a barra de menus do site no navegador Safari, utilizado em smartphone modelo Apple, com sistema operacional IOS. A imagem à esquerda (Figura 64) corresponde à tela inicial, com a barra de menus ocultada pelo ícone (no navegador Safari, apresenta-se sob o símbolo de três linhas, dispostas no ângulo superior direito, conforme destaque), enquanto que a tela à direita (Figura 65) é a que se apresenta após clicar sobre o ícone barra de menus, com arte escurecida para realçar o menu em exposição: Figura 64 – Interface de Roberto Athayde: Figura 65 – Barra de menus de Roberto Athayde: dramaturgia censurada em smartphone. dramaturgia censurada em smartphone.

Fonte: a autora. Fonte: a autora.

Com efeito, a apresentação em rede torna o arquivo portátil (seguindo o princípio de transportabilidade), de fácil leitura (seguindo o princípio de usabilidade). Abaixo, evidencio a tela Apresentação, em Google Chrome (à esquerda) e em Safari, utilizado em smartphone (à direita), com a tela em posição vertical:

Figura 66 – Tela Apresentação, em computador. Figura 67 – Tela Apresentação, em smartphone

Fonte: a autora. Fonte: a autora.

166

O recurso hiperlink é utilizado em todos os textos da barra de menus, seja para elucidar algum conceito, seja para apresentar conteúdo hipermídia, ou mesmo para conduzir o leitor a outro site ou a outro menu da hiperedição. Nas Figuras 68 e 69, demonstro como se apresentam alguns links hipermídia no texto do menu Sobre o autor:

Figura 68 – Uso de link hipermídia no texto como glossário.

Fonte: a autora.

Figura 69 – Uso de link hipermídia no texto como vídeo.

Fonte: a autora.

O menu O Acervo apresenta a possibilidade de ler os dossiês através de um percurso previamente estabelecido. Dessa forma, o usuário é conduzido ao seguinte texto (Figura 70):

Figura 70 – Menu O Acervo.

Fonte: a autora.

Abaixo do texto apresentado em O Acervo, estarão posicionados dois grandes ícones correspondentes aos dossiês já estudados: Apareceu a Margarida e Os Desinibidos (Figura

167

71). A fim de preservar os códigos contextuais de tais textos, optei por assegurar que a aparência desses ícones fosse, respectivamente, a capa do livro Apareceu a Margarida publicado em 1973, e a capa da revista do programa do espetáculo Os Desinibidos. Ao mover o cursor sobre o ícone, um breve texto sobre o dossiê se evidencia, assim como a opção visualizar dossiê. Na imagem abaixo, demonstro os dois ícones dos dossiês já estudados, com o cursor posicionado sobre o ícone Os Desinibidos. Ao clicar em visualizar dossiê, o usuário será direcionado a uma nova aba, onde disponibilizo um comentário sobre o dossiê, apresentando os documentos em links.

Figura 71 – Menu O Acervo, ícone de acesso ao dossiê Os Desinibidos.

Fonte: a autora.

O menu Edições (Figura 72) segue um modelo semelhante ao menu O Acervo, com ícones de aspecto semelhante, referentes às edições já realizadas:

Figura 72 – Menu Edições.

Fonte: a autora.

168

Ao passar o cursor sobre cada ícone, o usuário visualizará informações sobre os tipos de edições apresentadas para cada texto. Em saber mais, há links para informações sobre o texto específico, comentando o conjunto de versões utilizadas e para os critérios de edição utilizados. Em visualizar, há links que conduzem às apresentações das diferentes edições propriamente ditas (Figuras 73 e 74).

Figura 73 – Menu Edições, cursor sobre o ícone Apareceu a Margarida.

Fonte: a autora.

Figura 74 – Menu Edições, cursor sobre o ícone Os Desinibidos.

Fonte: a autora.

No caso de Apareceu a Margarida, disponibilizei as edições realizadas em 2013, nos links que direcionam o usuário ao site Prezi, no qual se encontram as referidas edições em rede, para amplo acesso. Para Os Desinibidos, apresentei links para a edição fac-similar, para a edição sinóptico-crítica hipermídia e, além dessas, acrescentei a edição sinóptico-crítica em

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modelo de impressão130, a fim de oferecer ao usuário a possibilidade de leitura de um texto passível de impressão, conforme o princípio printable, estabelecido por Shillingsburg (1999). O menu Consulta apresenta a ferramenta de pesquisa e acesso aos itens documentais (as peças) armazenados no Sistema Informatizado de Gerenciamento de Documentos (SIGD- RA) após as etapas de digitalização e indexação de cada peça individualmente, conforme o modelo proposto por Mota (2017). O último item da barra de menus é o menu Contato (Figura 75), que apresenta a possibilidade de interação do usuário com a página, como um chat, conforme evidencio na imagem abaixo:

Figura 75 – Menu Contato.

Fonte: a autora.

A estrutura utilizada para a hiperedição Roberto Athayde: dramaturgia censurada foi estabelecida com apoio de uma equipe técnica que utilizou o modelo estabelecido por Mota (2017), com ajustes condizentes com o dossiê que estudei. Assim, orientada pela arquitetura cliente-servidor, padrão de sistemas de informação na web, a hiperedição possibilitará que o cliente (a máquina com acesso à internet) interaja com o sistema, trocando informações através da internet (formulários, login e senha, ferramentas de busca, links). Na esteira do que propôs Mota (2017)131, Asp.Net e C# foram usadas como linguagem de programação back-end, ambas da Microsoft, como também o banco de dados SQL Server Express. A interface gráfica também foi estabelecida com as mesmas linguagens de programação front-end usadas por Mota (2017):

130 O referido modelo é o mesmo que apresento à última parte deste capítulo. 131 Para maiores detalhes sobre o conteúdo de programação aqui utilizado, recomendo leitura da tese de Mabel Meira Mota (2017), que propôs o modelo.

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[...] a linguagem de marcação de texto Hypertext Markup Language 5 (HTML 5); Cascading Style Sheets (CSS), folha de estilos composta em camadas usadas para configurações de aparência de controles HTML; e JavaScript, para movimentar as páginas criando scripts (comportamentos), uma vez que os controles, como botões e menus, apenas em HTLM 5 ficariam estáticos (MOTA, 2017, f.139).

Após essa breve exposição ilustrada da estrutura da hiperedição Roberto Athayde: dramaturgia censurada, pautada nos princípios gerais para edições eletrônicas estabelecidos por Shillingsburg (1999), enfoco, às subseções a seguir, o acervo e as edições, com vistas a explanar os critérios específicos e as etapas de constituição e organização do dossiê arquivístico de Os Desinibidos e de elaboração das edições fac-similar e sinóptico-crítica, cujo modelo de impressão é apresentado aqui.

4.1 O acervo: constituição do dossiê arquivístico de Os Desinibidos

Partindo da decisão em organizar os documentos que compõem o acervo Roberto Athayde: dramaturgia censurada em dossiês que se referem a cada texto teatral, compreendo dossiê como o ―conjunto de documentos relacionados entre si por assunto (ação, evento, pessoa, lugar, projeto), que constitui uma unidade de arquivamento‖ (BRASIL, 2005, p.80). Tais conjuntos, organizados por projetos cênicos (como o projeto Os Desinibidos), foram classificados por série, isto é, ―subdivisão do quadro de arranjo que corresponde a uma sequência de documentos relativos a uma mesma função, atividade, tipo documental ou assunto‖ (BRASIL, 2005, p.153), correspondentes a diferentes tipos documentais, tais como produção intelectual, publicação na imprensa e em diversas mídias, documentação censória e estudos. As séries, por sua vez, foram subdivididas em subséries, nas quais, por fim, se localizam os itens (ou peças), que são a ―menor unidade documental‖ (BRASIL, 2005, p.110), fisicamente ou intelectualmente indivisível. Para a classificação de séries e subséries, adotei, com as adaptações necessárias, a metodologia desenvolvida para o Arquivo Textos Teatrais Censurados – ATTC, proposta por Borges et al (2016), segundo a qual ―o material é arquivado por item, dentro de uma série, identificado por um código‖ (BORGES et al, 2016, f.5). Para este acervo, optei, entretanto, por organizar o material por dossiês correspondentes a um projeto (no caso, o texto teatral). A classificação em séries e subséries, ainda que seguindo a terminologia e a respectiva numeração codificadora da ATTC, será diferenciada porque é circunscrita ao dossiê correspondente ao projeto centralizado no texto teatral que escolhi editar.

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Na classificação estabelecida para a ATTC, o código se constrói a partir da identificação da série (em algarismos arábicos de dois dígitos), subsérie (letras), número do item (algarismos arábicos de quatro dígitos) e ano (abreviado nos dois últimos dígitos). No quadro abaixo, distinguem-se séries e subséries do ATTC:

Quadro 4 – Catalogação dos documentos dos acervos por SÉRIES 01 PRODUÇÃO INTELECTUAL 02 PUBLICAÇÕES NA 03 DOCUMENTAÇÃO IMPRENSA E EM DIVERSAS CENSÓRIA MÍDIAS 01a Texto teatral 02a Publicações sobre o autor e suas 03a Solicitação/Requerimento 01b Contos produções 03b Ofício 01c Romance 02b Publicações autorais (coluna 03c Texto teatral 01d Discurso teatral) 03d Parecer 01e Artigo 02c Divulgação dos espetáculos 03e Memorando 01f Texto autobiográfico 02d Entrevistas (com o autor e feitas 03f Radiograma 01g Prefácio, Texto de pelo autor) 03g Relatório apresentação, Programa 03h Ficha de protocolo 01h Poesia 03i Certificado de Censura 01i Canção (individual, coletiva) 03j Outros documentos (capa de 01j Depoimento (entrevistas) processo, registro do espetáculo) 01l Dossiê (projetos, relatórios, oficinas, programação de seminários, apostilas de aula) 04 ESBOÇOS, NOTAS E 05 DOCUMENTOS 06 CORRESPONDÊNCIA RASCUNHOS AUDIOVISUAIS E DIGITAIS 04a Datilografados e manuscritos 05a Fotografias 06a Cartas do autor em folhas soltas 05b Programa do espetáculo 06b Cartas ao autor 04b Notas manuscritas: lista de 05c Panfletos e Cartazes 06c Cartas de terceiros personagem, marcação cênica, 05e Gravações 06d Telegrama ficha técnica, rascunho do 05f Disco 06e Bilhete programa, lista de textos. 04c Cenário: desenho, caricatura 07MEMORABILIA 08 ADAPTAÇÕES E 09 ESTUDOS TRADUÇÕES 07a Certificados de premiações, 08a Literatura 09a Fortuna Crítica Prêmios 08b Televisão 09b Produções acadêmicas 07b Homenagens (espetáculos, 08c Cinema 09c Recepção do texto e eventos) 08d Dança espetáculo teatrais 08e Teatro

10 VARIA 10a Livros, revistas e folhetos ARQUIVO TEXTOS TEATRAIS CENSURADOS (Biblioteca) 10b Edital (concurso de peça TEXTOS TEATRAIS CENSURADOS-ILUFBA teatral) 10c Paratexto (texto do programa SISTEMA DE CATALOGAÇÃO POR SÉRIES da peça, texto da contracapa do disco) 10d Documentos de outras instituições (SBAT, Arquivo Nacional) e projetos do governo (MOBRAL) 10e Documentos administrativos Fonte: BORGES et al (2016).

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Dessa maneira, o ATTC compreende diferentes acervos, que são entendidos como conjuntos documentais centrados nos autores de textos teatrais censurados. Os dossiês são identificados primeiramente pelas iniciais do autor (RA, para Roberto Athayde), seguidas das iniciais do texto a que se referem (D, para Os Desinibidos).

Quadro 5 – Dossiês que compõem o Acervo Roberto Athayde Dossiê Título Ano Procedência Outros documentos RA.R O 2003 OP Estudos Reacionário RA.UV Um visitante 1973 COREG-AN- Documentação censória A do alto DF(DCDP) Estudos 2003 OP RA.MS Manual de 1973 COREG-AN- Documentação censória S sobrevivênci DF(DCDP) Estudos a na selva 2003 OP RA.AM Apareceu 1971 AP Publicações na Imprensa Margarida Documentação Censória 1973 COREG-AN- Esboços, Notas e Rascunhos DF(DCDP) Documentos Audiovisuais e digitais 1975 EXB Correspondência Memorabilia 1980 EXB Adaptações e Traduções Estudos 1983 EXB Varia

2003 OP RA.NF No fundo do 1983 OP Documentação censória S sítio Estudos 2003 OP RA.D Os 1982 COREG-AN- Publicações na Imprensa Desinibidos DF(DCDP) Documentação Censória Documentos Audiovisuais e 1983 OP digitais RA.CI Crime e 1983 OP Publicações na Imprensa Impunidade Documentação Censória Fonte: a autora.

Desse modo, considerando a tipologia documental de RA.D em vista da classificação proposta por Borges et al (2016), ilustro, no gráfico abaixo, quais séries e subséries (identificadas por pela ou número) se apresentam no dossiê Os Desinibidos:

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Gráfico 1 – Tipologias documentais de RA.D

Fonte: a autora, com base em Borges et al (2016).

No gráfico acima, evidencio que o tipo documental texto teatral corresponde a duas subséries distintas, podendo integrar a subsérie a da série 01, ou a subsérie c da série 03. Isso ocorre porque o texto teatral integra a documentação censória, não podendo ser desvinculado de sua procedência, nem replicado dentro do acervo. No dossiê Os Desinibidos, há uma versão publicada e outra versão datiloscrita, sendo apenas esta última enviada à censura. Nesse caso, o texto publicado integrará a série 01, e o texto datiloscrito integrará a série 03. É importante destacar que no próximo quadro, em que evidencio as séries e subséries com os itens e códigos, inseri uma notificação com o código numérico do item correspondente ao texto censurado, com vistas a informar sobre a existência de outro documento no acervo.

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Em que pese o projeto futuro de toda a documentação classificada vir a integrar o ATTC, devo ressaltar, entretanto, a individualidade de cada acervo, conforme os modos de criação dos autores e os estudos desenvolvidos pelo filólogo que se propõe a organizá-lo. Dessa forma, para RA.D, optei por classificar os documentos em séries e subséries relativas ao dossiê. O critério de organização e de elaboração do código atende à necessidade do Acervo Roberto Athayde, considerando-o em sua particularidade e disponibilidade em meio digital. Para o ATTC, entretanto, os itens foram organizados separadamente, considerando as séries e subséries centradas apenas no autor, de modo que o código que um item recebe no RA.D será diferente os mesmos itens aqui identificados por um código, quando disponibilizados no ATTC, terão outra identificação. Isso significa que o Sistema Informatizado de Gerenciamento de Documentos (SIGD- RA) segue um critério de classificação e ordenamento dos itens que se diferenciará do critério proposto por Borges et al (2016) para o ATTC, em virtude da proposta de entender o dossiê como rizoma – retomando a metáfora deleuziana já discutida na seção segunda, reitero que o rizoma, à semelhança de um vegetal tubérculo, é constituído de raízes que se afiliam a um bulbo (DELEUZE; GUATTARI, 2011 [1980], p.21). Nessa perspectiva, os dossiês são um intermezzo, e os documentos que deles fazem parte possuem infinitos e não hierárquicos pontos de conexão dentro ou fora do acervo, de modo que um item pode pertencer a duas séries no mesmo dossiê ou integrar dois dossiês diferentes. Assim sendo, o código de cada documento foi estabelecido pela identificação do dossiê (RA.D) somada à identificação da série, subsérie, número do item no dossiê, ano. Como resultado, estabeleci a seguinte organização, tomando por base os já referidos trabalhos de Borges et al (2016) e Mota (2017):

Quadro 6 – Ordenação dos documentos RA.D RA.D 01 SÉRIE PRODUÇÃO INTELECTUAL SUBSÉRIE NÚMERO ITEM CÓDIGO a) Texto 0001 ATHAYDE, Roberto. Os Desinibidos: comédia de RA.D01a0001-83 Teatral paradoxos. In: _____. Crime e Impunidade e outras (cf. RA.D03c0018-82) peças. Rio de Janeiro: Record, 1983. p.127-224. b) Conto 0002 ATHAYDE, Roberto. Divertissement para RA.D01b0002-71 ambientes finos. In: _____. O Jardim da Fada Mangana: contos. 2 ed. Rio de Janeiro: Brasília, 1974 [1971]. p.61-76. 0003 ATHAYDE, Roberto. Um galo para Esculápio RA.D01b0003-70 (romance inacabado). In: _____. O Jardim da Fada Mangana: contos. 2 ed. Rio de Janeiro: Brasília, 1974 [1970]. p.19-59.

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0004 ATHAYDE, Roberto. Estória da Maria Ruinzinha. RA.D01b0004-71 In: _____. O Jardim da Fada Mangana: contos. 2 ed. Rio de Janeiro: Brasília, 1974 [1971]. p.87-90. 0005 ATHAYDE, Roberto. O Jardim da Fada Mangana. RA.D1b0005-72 In: _____. O Jardim da Fada Mangana: contos. 2 ed. Rio de Janeiro: Brasília, 1974 [1972]. p.119- 130. h) Poema 0006 ATHAYDE, Roberto. Introdução ao conceito do RA01h0006-79T1 tempo. In: _____. O Homem da Lagoa Santa: romance com todas as formas. Rio de Janeiro: Record, 1979. p.10-11.

ATHAYDE, Roberto. Introdução ao conceito do RA.D01h0006-01T2 tempo. In: _____. Abracadabrante. Rio de Janeiro: Sans Souci, 2001. p.29-31. 0007 ATHAYDE, Roberto. Non erit finis. In: _____. O RA.D 01h0007-79 Homem da Lagoa Santa: romance com todas as formas. Rio de Janeiro: Record, 1979. p.72. 0008 ATHAYDE, Roberto. Algos. In: _____. RA.D01h008-01 Abracadabrante. Rio de Janeiro: Sans Souci, 2001. p.9. 02 SÉRIE PUBLICAÇÕES NA IMPRENSA E EM DIVERSAS MÍDIAS SUBSÉRIE NÚMERO ITEM CÓDIGO a) 0009 KLEINPAUL, Bianca. O reaparecimento de RA.D02a009-01 Publicações Roberto Athayde. O Globo, Rio de Janeiro, 05 set. sobre o autor 2001. Segundo Caderno, p.2. e suas Procedência: Acervo O Globo. produções 0010 REIS, Luiz Felipe. Autor de ‗Apareceu a RA.D02a0010-15 Margarida‘ estreia nova peça. O Globo, Rio de Janeiro, 04 out. 2015. Cultura, Teatro e Dança. Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2018. 0011 RIBEIRO, Alfredo. Reapareceu o Athayde. Revista RA.D02a0011-07 Piauí, São Paulo, n.11, ago. 2007. Seção Coisas de Teatro. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2018. 0012 SALEM, Helena. Roberto Athayde reaparece com RA.D02a0012-84 livro de três peças e um curta-metragem. O Globo, Rio de Janeiro, 03 jan. 1984. p.23. Procedência: Acervo O Globo. 0013 ● SANTIAGO, Carlos Henrique. Roberto Athayde se RA.D02a0013-95 inspira na morte do pai. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 out. 1995. Ilustrada. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2018. 03 SÉRIE DOCUMENTAÇÃO CENSÓRIA SUBSÉRIE NÚMERO ITEM CÓDIGO a) Solicitação 0014 SOLICITAÇÃO encaminhada pela SBAT ao RA.D03a0014-82

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ou SCDP/DPF/SR/RJ apresentando três cópias do requerimento texto para fins de censura. Rio de Janeiro, 22 dez. 1982. Carimbo da SBAT. 1f. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) 0015 REQUERIMENTO solicitando avaliação censória. RA.D03a0015-82 Rio de Janeiro, 28 dez. 1982. Assina Oscar José Ferreira da Costa Gonçalves. 1f (verso e anverso). Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) b) Ofício 0016 OFÍCIO 94/83 – SCDP/SR/DFP/RJ. [Rio de RA.D03b0016-83 Janeiro], 07 mar. 1983. Encaminhamento de pareceres e cópia do certificado provisório ao DCDP para fins de expedição do certificado definitivo. Exame requerido por Oscar José Ferreira da Costa Gonçalves. Assina H.G. (chefe SCDP/SR/RJ). 1f. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) 0017 OFÍCIO 458/83-SE/DCDP. [Brasília], 17 mar. RA.D03b0017-83 1983. Encaminha o Certificado de Censura. Indica cidade de destino, título e autoria da peça. Assina S.M.T.H. (diretora da DCDP). 1f. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) c) Texto 0018 ATHAYDE, Roberto. Os desinibidos [1982], 69fs. RA.D03c0018-82 Teatral Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) (cf. RA.D01a0001-83) d) Parecer 0019 PARECER n. 007. Rio de Janeiro, 18 jan. 1983. RA.D03d0019-83 Leitura de Texto. 2f. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) 0020 PARECER n. 008. Rio de Janeiro, 06 jan. 1983. RA.D03d0020-83 Leitura de Texto. 2f. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) 0021 PARECER n. 009. Rio de Janeiro, 10 jan. 1983. RA.D03d0021-83 Leitura de Texto. 1f. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) 0022 PARECER n. 010. Rio de Janeiro, 03 fev. 1983. 3f. RA.D03d0022-83 Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) h) Ficha de 0023 FICHA PROTOCOLO. Contém Título e Autor. 1) RA.D03h0023-83 Protocolo Arquivo; 2) s/ Programação; 3) Chefe da S.C.T.C.; 4) Serviço de Censura; 5) Diretor da D.C.D.P. 1f. Datas: 10 mar. 1983; 14 mar. 1983. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) i) Certificado 0024 CERTIFICADO DE CENSURA 033/83/RJ. RA.D03i0024-83 de Censura Censura Federal: Teatro, Rio de Janeiro, 07 mar. 1983. Validade: 07 maio 1983. Assinam H.G. (no anverso) e M.C.O.C. (no verso). [Provisório]. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) 0025 CERTIFICADO DE CENSURA 12.026. Censura RA.D03i0025-83 Federal: Teatro, Brasília, 16 mar. 1983. Validade: 16 mar. 1988. Assinam S.M.T.H. (no anverso) e N.O. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) j) Outros 0026 SERVIÇO Público Federal. [Capa do Processo]. RA.D03j0026-83 documentos Brasília, 1983. Contém identificação e armazenamento do processo, números de protocolo,

177

nome do autor, texto, classificação interna do arquivo. Suporte identificado do Serviço Público Federal. 1f. Procedência: COREG-AN-DF(DCDP) 05 SÉRIE DOCUMENTOS AUDIOVISUAIS E DIGITAIS SUBSÉRIE NÚMERO ITEM CÓDIGO b) Programa 0027 OS DESINIBIDOS de Roberto Athayde. RA.D05b0027-83 do espetáculo [Programa impresso]. Rio de Janeiro, Barra Ponto: 1983. 14f. Procedência: Biblioteca André Seffrin. Fonte: a autora.

Cada documento listado acima foi digitalizado separadamente e convertido em Portable Document Format (PDF), que é ―[...] um formato de arquivo usado para exibir e compartilhar documentos de maneira compatível, independentemente de software, hardware ou sistema operacional‖ (ADOBE, 2018). Logo, minha escolha pela disponibilização das peças em formato PDF justifica-se pela compatibilidade e transportabilidade que amplia o acesso ao acervo. Além disso, os PDFs também ―[...] podem conter links e botões, campos de formulário, áudio, vídeo e lógica de negócios. Eles também podem ser assinados eletronicamente [...]‖(ADOBE, 2018), o que atende ao princípio de segurança das informações disponibilizadas no arquivo. A conversão das peças digitalizadas em PDF foi feita através do software PDF Element 6 Pro, desenvolvido pela Wondershare (2017 [2003]). Através deste software, combinei imagens digitalizadas para compor um PDF de documentos com mais de uma lauda e submeti as duas versões do texto teatral ao Reconhecimento Óptico de Caracteres132 (Optical Character Recognition – OCR), ―[...] uma tecnologia que permite converter tipos diferentes de documentos, como papeis escaneados, arquivos em PDF e imagens capturadas com câmera digital em dados pesquisáveis e editáveis‖ (ABBY, 2018). Após as etapas de digitalização, conversão para PDF e classificação, cada documento recebeu uma ficha catálogo com o código do item no SGID-RA, descrição material e resumo. Tais fichas serão apresentadas à frente de cada documento, também em PDF, como uma espécie de capa dos mesmos. O modelo das fichas foi adaptado de Borges et al (2016) para o SIGD-RA, considerando as especificidades do acervo: as tipologias documentais, a identidade visual da hiperedição e a Cláusula Reserva, referente aos direitos de uso de imagem e de divulgação dos documentos do acervo. Nos exemplos a seguir, apresento duas fichas (Figuras 76 e 77): a primeira, do texto Os Desinibidos, versão datiloscrita encaminhada à censura; a segunda, de um dos textos de jornais sobre o autor:

132 Demonstrarei o uso do OCR mais adiante, ao apresentar as etapas da edição.

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Figura 76 – Ficha catálogo utilizada em SIGD_RA para a série documentação censória, subsérie texto teatral.

Fonte: a autora

179

Figura 77 – Ficha catálogo utilizada em SIGD_RA para a série publicações na imprensa e em diversas mídias, subsérie publicações sobre o autor e suas produções.

Fonte: a autora.

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Após o tratamento documental, orientei-me para a construção do SIGD-RA.D, para o qual o primeiro cuidado estabelecido foi em relação à segurança e proteção dos documentos. Dessa forma, somente usuários cadastrados, portadores de login (identificação do usuário) e senha para acesso exclusivo do usuário (Figura 78), específicos para o site, poderão acessar os documentos do SIGD-RA.D e as edições. Assim, ao clicar sobre o menu Consulta, na barra de menus, o usuário será direcionado ao seguinte formulário de acesso:

Figura 78 – Login e senha de acesso ao SIGD-RA.

Fonte: a autora.

Após seu primeiro acesso, o usuário poderá cadastrar seu nome e e-mail, para que o sistema armazene seu histórico de acesso de suas preferências de busca. Destaco, no ângulo superior direito da Figura 79, a informação de login que identifica o usuário do arquivo. Através do login, o usuário poderá acessar a documentação, construir e salvar suas preferências de consulta. Seu registro de histórico de navegação no SIGD-RA ficará armazenado nos filtros.

Figura 79 – Identificação do usuário para acesso ao sistema.

Fonte: a autora.

181

Feito o primeiro registro, o usuário poderá consultar os documentos do arquivo e visualizar as edições. No arquivo, o usuário poderá filtrar a busca dos itens pelo preenchimento de um ou mais dados do formulário disponibilizado na tela (nome do documento, autor, série, sub-séries, procedência, assunto):

Figura 80 – Interface de busca do SIGD-RA.

Fonte: a autora.

Além dessa possibilidade de consulta, o usuário também poderá clicar em Itens cadastrados e acessar a lista completa dos documentos.

4.2 As edições: critérios e apresentação

A fim de dar a ler as duas versões de Os Desinibidos (D82 e D83), preparei, além de edições fac-similares, uma edição sinóptico-crítica hipermídia (disponível no site) e em modelo de impressão (disponível no site e inserida aqui). Este modelo foi escolhido por possibilitar o confronto direto das lições divergentes entre versões (e, por isso, é sinóptica), assim como evidenciar uma mediação editorial com correções de gralhas de datilografia e comentários editoriais (e, por isso, é crítica). Tais comentários se apresentam de duas formas: no primeiro caso, como breves notas referentes às escolhas de edição e correspondência de trechos do texto com outros textos de Roberto Athayde que compõem o dossiê estudado; no segundo caso, como exegese de conteúdos presentes nas versões do texto, podendo ser conceitos referentes à psicanálise, tema evidenciado em Os Desinibidos, ou a outras teorias e estudos, além de comentários

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contextuais sobre fatos do período, pessoas, obras artísticas e instituições mencionados no texto. Ao remeter a conteúdos internos (no primeiro caso) e externos (no segundo caso) ao acervo, os comentários evidenciam minha leitura crítico-filológica sobre as versões de Os Desinibidos e sobre o dossiê como um todo. Através desse exercício hermenêutico, estabeleci uma edição composta de referências cruzadas – sob orientação do princípio cross references (SHILLINGSBURG, 1999) –, como filamentos de um rizoma, fazendo do texto editado um arquivo. Dessa forma, considerando que já havia digitalizado toda a documentação de RA.D e convertidos os itens ao formato PDF, isolei as versões D82 e D83 e utilizei o OCR pelo software PDF Element 6 Pro. O programa, que identifica o idioma e o tipo de caracteres gráficos, assim como o tamanho da fonte (no caso seguinte, Courier New, tamanho 10, como é possível observar na coluna à direita), apresenta a possibilidade de, após a leitura do OCR, apresentar uma imagem de texto pesquisável ou um texto editável (Figura 81):

Figura 81 – Opções de leitura do Reconhecimento Óptico de Caracteres (OCR).

Fonte: a autora.

Após selecionar a opção texto editável, obtive as transcrições de D82 e D83 em formado DOC, manipulável em programas de texto como o Word, do pacote Windows Office. Reconheço que o processamento do OCR funcionou com maior precisão em D83, proveniente da digitalização de livro impresso, do que em D82, proveniente de reprografia de datiloscrito submetida à digitalização por scanner. Isso ocorreu porque o OCR funciona identificando padrões visuais na imagem (pontos escuros, por exemplo) que se assemelham aos tipos gráficos (ABBY, 2018). Assim sendo, quando a imagem possui manchas provenientes da

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reprografia ou baixa resolução, como no caso de D82, a execução do OCR pode conter pequenos erros. A etapa seguinte à execução do OCR correspondeu à colação das versões, o que foi feito a partir do software Juxta Commons, desenvolvido pela empresa Performant Software Solutions e já utilizado por Almeida (2014), como interface de apresentação de edição, e por Mota (2017), apenas para comparação das versões. Assim como Mota (2017, p.138), notei que o resultado da comparação realizada pelo Juxta Commons gera uma edição lenta, em virtude da comparação ser processada no aparelho do leitor, e não no servidor. Em face desse problema, Mota (2017, f.138) optou por apresentar o cotejo em um módulo de visualização side-by-side view, que expõe as ―folhas‖ dos diferentes testemunhos transcritas lado a lado. Apesar de a escolha de Mota (2017) ter-lhe sido útil na edição de A Escolha ou O Desembestado, de Ariovaldo Matos, por preservar a individualidade dos testemunhos em transcrições distintas apresentadas lado a lado, não me pareceu oportuna para a edição sinóptico-crítica de Os Desinibidos, por alguns motivos: a) entre D82 e D83, há supressão de cenas inteiras, além de processos de expansão de conteúdo, de modo que não há correspondência direta entre folhas de D82 e D83; b) a apresentação em ―folhas‖ PDF, além de replicar a textualidade impressa no digital, exige que o leitor clique para visualizar folha a folha, para abrir o conteúdo da folha seguinte; c) a fragmentação em duas telas poderia limitar o uso de aparatos críticos. Ponderando essas questões, optei por repassar os dados obtidos pelo Juxta Commons a um documento único, a fim de preparar um quadro de transcrição e cotejo semelhante ao que desenvolvi em 2013, que, a despeito de integrar as duas versões, evidencia lado a lado cada parte variante no texto. A vantagem dessa opção é que, além de gerar um modelo printable com facilidade, é apresentada diretamente na tela, em uma tela única, de modo que o usuário poderá ler todo o texto, com as versões simultâneas, usando o botão de rolagem. Desse modo, foi possível a inserção de três tipos diferentes de links para referências cruzadas em diversas mídias e aparatos editoriais. Para a apresentação da edição sinóptico-crítica, orientei-me pelos seguintes critérios: a) Ortografia – Acentuar conforme as normas vigentes, procedendo à correção, quando necessário; – Usar devidamente as letras maiúsculas em nomes de pessoas, lugares e após a pontuação, conforme regra em gramáticas normativas da língua portuguesa, mantendo apenas os casos

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em que são utilizadas para dar destaque à expressão ou à indicação de personagens e movimentações nas rubricas; – Manter os usos de pra ou para, isso/isto, dessa/desta, a/à conforme se apresentam nas versões. b) Gralhas e erros normativos – Corrigir o que for comprovadamente erro, deslize ou contrassenso, exceto para os casos em que transgressões gráficas sejam marcas estilísticas; – Corrigir os erros de datilografia (D82) e de digitação (D83); c) Pontuação – Conservar a pontuação, em respeito à expressividade cênica. d) Opções tipográficas – Apresentar em itálico as palavras de ênfase no texto, conforme orientação tipográfica de D83; – Apresentar as informações da rubrica entre parênteses e em itálico; – Registrar nome de personagens em letras maiúsculas; – Utilizar travessão após o nome de personagens para indicar fala; – Expor as diferentes versões do texto lado a lado, compilando em mesmo quadro os trechos que se igualam. No modelo de impressão, apresentar linha vertical interna na cor cinza para separar limite entre as colunas referentes a cada versão; – Indicar as siglas D82 e D83, referentes às versões do texto, acima do início das transcrições; – Expor a ausência de trechos nas versões através de quadro em branco; – Indicar todas as correções e emendas mencionadas em a, b, c. No modelo hipermídia (Figura 82), utilizar o aparato em hiperlink de primeiro nível, através do recurso tooltips: ao deslizar o cursor sobre palavras em negrito, o usuário visualiza o trecho alterado, conforme critério estabelecido por Almeida (2011). No modelo de impressão (Figura 83), indicar emenda no aparato em coluna à direita.

185

Figura 82 – Edição sinóptico-crítica hipermídia (destaque para emenda em trecho e quadro em branco).

Fonte: a autora.

Figura 83 – Edição sinóptico-crítica em modelo de impressão (aparato à direita).

Fonte: a autora.

– Usar operadores habituais na prática filológica, conforme orientação de Carvalho (2001), para a descrição simplificada das intervenções realizadas nos textos datiloscritos indicando a existência de múltiplas versões em um testemunho material: < >/ \ Substituição por sobreposição < > Corte (Supressão) † Ilegível ms Manuscrito d Datiloscrito [ ↑] Acréscimo na entrelinha superior [ ↓] Acréscimo na entrelinha inferior | *| Leitura conjecturada – Apresentar comentários exegéticos e cortes estabelecidos pela censura em notas de rodapé, no caso do modelo de impressão, ou em hiperlinks de segundo nível, no modelo hipermídia.

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Neste último, o trecho que remete ao hiperlink apresenta-se na cor azul e, quando pressionado o cursor sobre o trecho, será aberta uma caixa sobreposta ao texto da tela (em cascata), que poderá conter diversas mídias (texto, imagem, vídeos ou links para outros sites):

Figura 84 – Nota com texto e imagem na edição sinóptico-crítica hipermídia.

Fonte: a autora.

– Identificar trechos correspondentes a outras produções intelectuais autorais (Figura 85) presentes do SIGD-RA. No modelo de impressão, adicionar coluna à direita na cor cinza, na extensão do trecho correspondente, fazendo as devidas indicações (Figura 83). No modelo hipermídia, utilizar sublinha pontilhada em todo o trecho e hiperlink de primeiro nível tooltips:

Figura 85 – Trecho correspondente a outras produções autorais presentes no SIGD-RA.

Fonte: a autora.

4.3 A edição sinóptico-crítica: modelo de impressão

Roberto Athayde

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D82 D83

VERA FISHER PERRY SALLES

os DESINIBIDOS

uma comédia de costumes escrita por ROBERTO ATHAYDE

dirigida por ADERBAL JUNIOR

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OS DESINIBIDOS

NEUROSE E RESSURREIÇÃO DE ROBERTO ATHAYDE

D83 não apresenta a 1ª Parte cena referente à 1ª O JARDIM DA FADA MANGANA Parte.

(Incômodos latidos na plateia. O professor Frustrafroide dorme no divã. No fundo do palco em penumbra os espectadores mais espertos percebem uma mulher. Ela pede silêncio).

VERA — Para não acordar o professor Frustrafroide.

(Vera recebe os espectadores. Um breve rito de iniciação).

VERA — Quando eu era pequena e andava de bicicleta por todos os Trecho produzido a caminhos da casa, havia um canteiro totalmente diferente dos outros. partir do conto O Era grande, denso e impenetrável. As plantas que cresciam neste Jardim da Fada Mangana (ATHAYDE, canteiro eram totalmente diferentes das outras plantas. Eram 1974, p.123 a 125) grandes, densas e impenetráveis. Desde que me entendo por gente D82: gran|de,*| que as coisas desapareciam nesse canteiro. O primeiro brinquedo que D82: to|tal*|mente eu me lembro de ter sumido no canteiro era um urso verde de imensa D82: impenetr|á*|veis. estimação. Houve um longo período de bolas de pingue-pongue. D82: iemnsa estimação D82: †† bolas Quero dizer, um período em que essas bolas eram as principais D82: e|ram*| vítimas da impenetrabilidade do canteiro.

FRUSTRAFROIDE — (fala dormindo) Vejo a necessidade de uma divagação botânica sobre essas plantas. 189

Trecho produzido a VERA — Até que um dia minha mãe produziu a seguinte revelação. partir do conto O Haveria no interior das folhagens uma Fada dominadora do jardim. A Jardim da Fada Mangana (ATHAYDE, Fada Mangana. A Fada Mangana era ao mesmo tempo uma fada boa 1974, p.123 a 125) e uma fada má. A sua bondade consistia num imenso poder protetor D82: |bon*|dade que ela exercia sobre as pessoas. A maldade da Fada se concentrava D82: pe|s*|soas numa única e trágica disposição, uma vez que um objeto ou uma D82: disposiç|ão*| D82: i|me*|diatamente pessoa se perdia naquele canteiro era imediatamente recolhido pelos poderes da Fada e nunca mais retornava à vida real.

(Os latidos aumentam).

Trecho produzido a VERA — Eu quero receber vocês aqui com muita consideração. Eu partir do conto O quero dizer com a consideração para quem fez aquilo que não é fácil Jardim da Fada Mangana (ATHAYDE, fazer. Vocês tão aqui e isso aqui é o Jardim da Fada Mangana. Eu sei 1974, p.119) o que vocês passaram e eu sei quem vocês são. Eu vejo vocês por D82: |pas*|saram todo lado. Faz tempo que vocês viajam. A única diferença é que agora vocês sabem onde estão. Vocês estão no Jardim da Fada D82: estã|o.*| Mangana. Vocês vieram até aqui e vocês nunca mais retornarão à vida real, igualzinha a que vocês tinham antes de vir para cá. Vocês D82: ant|es*| vão ser transformados no Jardim da Fada Mangana. Vocês já vieram D82: Man/x\ga† outras vezes ao Jardim da Fada Mangana. Só que vocês não sabiam que estavam vindo. Agora vocês sabem. E agora vocês estão aqui. É o fato de vocês estarem aqui que merece consideração. Vocês podiam estar roubando um cavalo neste momento... pra fugir não sei D82: |po*|diam D82: |on*|de pra onde. Mas aqui vocês vão ser transformados. Vocês estão D82: Ja|rdim*| perdidos no Jardim da Fada Mangana com Roberto Athayde, aluno D82: Atahyde do professor Frustrafroide em duas ocasiões: primeiro, durante os 190 largos anos que o professor passou como catedrático da D82: p|as*|sou Universidade Rural da cidade fluminense133 de †† às margens dos rios Piramambotava e Piramambotá, que, como as linhas paralelas de D82: ape|sar*| 134 Einstein , se encontram nos arredores daquela cidade apesar de Trecho produzido a serem paralelos; depois, na época em que o professor lecionava partir do conto O Jardim da Fada Criatividade na Faculdade de Letras do Flint Junior College, uma Mangana (ATHAYDE, sucursal da Universidade de Michigan135, que existe para educar os 1974, p.119) habitantes daquele Estado dos Estados Unidos cujas notas não foram D82: Cr|ia*|tividade suficientemente boas para entrar na matriz da Universidade que fica D82: <†>/s\ucursa em Ann Arbor, também em Michigan. E agora vocês estão aqui. Vocês chegaram na véspera do mistério. D82: †† mistério

(Os cachorros continuam latindo na plateia. Mas nem eles conseguem acordar o professor Frustrafroide, nem a empregada negra Marinete, que entrou no fim das boas-vindas ao público e

133Possível referência à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), localizada no município de Seropédica. Com pouco mais de 100 anos de história, a UFRRJ ―tem raízes na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária (Esamv), criada em 20 de outubro de 1910, pelo Decreto 8.319. Depois de ocupar diversos locais no estado do Rio e se reorganizar com diferentes nomes, a instituição passa a se chamar Universidade Rural em 1943. Em 1948, foi inaugurado o câmpus às margens da antiga Rodovia Rio-São Paulo (hoje BR-465), atual sede. A denominação Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) foi estabelecida em 1965‖ (RURAL..., 2017, p.5) 134 Nobel da Física em 1921, Albert Einstein (1879-1955) revolucionou as ciências com a teoria da relatividade, e com estudos sobre a equivalência massa-energia e sobre o movimento browniano. A respeito da relatividade nos estudos de gravitação, Einstein estabeleceu equações de campo, que identificam como a matéria produz gravidade e como esta última interfere na matéria. Neste aspecto, propõe outra abordagem ao quinto postulado de Euclides (330 a.C.), sobre linhas paralelas, fazendo-as compreender num universo esférico ou fechado ou num universo hiperbólico (diferentes do universo plano euclidiano), para os quais a presença de curvatura (gravidade) possibilitaria que retas paralelas se encontrassem no infinito. Einstein desenvolveu este estudo considerando o espaço-tempo quadridimensional em que se situa o universo: ―vivemos, diz Einstein, em um espaço-tempo quadridimensional. A geometria do espaço-tempo apresenta uma curvatura, e essa curvatura do espaço-tempo é a gravidade. Não ‗é uma manifestação da gravidade‘, ou ‗é causada pela gravidade‘, ou ‗causa gravidade‘. Não: a curvatura do espaço-tempo é a gravidade. A gravidade não é alguma força que afeta os objetos no espaço-tempo. A gravidade é, nada mais, nada menos, que a geometria curva do espaço-tempo. Em uma pequena região do espaço-tempo – isto é, em um referencial de flutuação livre localizado – você não percebe a gravidade porque a curvatura do espaço-tempo é desprezível em relação a pequenas regiões de espaço e de tempo. De maneira semelhante, uma pequena região sobre a superfície de nosso globo hipotético é essencialmente plana e obedece às leis da geometria euclidiana‖ (WOLFSON, 2005, p.245). 135 Fundada em 1956, a University of Michigan-Flint é um dos três campi da University of Michigan. Oferece ―mais de 120 cursos de graduação e 65 cursos de pós-graduação em artes liberais e várias áreas pré-profissionais e profissionais‖ (FLINT, [20--]). 191 sacode o professor.)

MARINETE — Professor! Acorda, professor! Chegou o grupo. Professor, a análise de grupo! Chegou o grupo. Professor, acorda! O grupo das duas velhinhas já está aí para a sessão. O grupo, professor! As duas velhinhas. Acorda, professor! (Desiste) Ah, não adianta D82: velhi|nhas.*| acordar mesmo. E vão discutir a mesma coisa mesmo. O professor D82: adianta já está cansado de saber. Tadinhas, o que elas querem é uma <††††††>/xxxxxx\ acordar reuniãozinha com chá, né nada de Lacan não. Vou mandar entrar. D82: E †† vão D82: sab|er.*| Nunca vi análise de grupo mais besta. (Com desprezo) Lacan... as D82: |La*|can pobrezinhas preferem biscoito. D82: |Com*|

(Marinete introduz em cena duas velhinhas que entram cantando.)

AS DUAS VELHINHAS — Senhora Fada Mangana Trecho produzido a partir do conto O Poderosa e preparada Jardim da Fada Ou muito a gente se engana Mangana (ATHAYDE, 1974, p.128) Ou aqui na sua morada Se encontra preso um amigo Correndo o maior perigo, Que estava sempre comigo No pé de jaboticaba.

(Elas sentam uma de cada lado do professor que continua dormindo no divã.)

(A CENA DAS DUAS VELHINHAS)

192

SOMBRA — Foi em 13, eu me lembro como se fosse hoje. Trecho produzido a partir do conto Estória da Maria Ruinzinha RUINZINHA — Não, foi em quatorze. (ATHAYDE, 1974, p.87 a 90)

SOMBRA — Em 13, no dia em que você completava doze anos. O dia em que a minha amiga Ruinzinha perdeu a virgindade. Eu me D82: Ruizinha lembro tanto quanto me lembro que você nasceu no próprio dia da

136 morte da Rainha Vitória , em 1901.

RUINZINHA — Quatorze. (romântica) Numa tarde fria e molhada D82: romântico daquelas em que os cobertores e o espaço que eles formam com os colchões parecem os únicos lugares aprazíveis sobre a terra.

SOMBRA — Foi em 13, eu me lembro como se fosse hoje.

RUINZINHA — Não, foi em quatorze.

SOMBRA — Foi em 13. No dia do seu aniversário. Eu me lembro do bolo, da festa, da mansão na Tijuca, do seu pai, o doutor Ruinzinho.

RUINZINHA — Quatorze. Eu me lembro do cocheiro. (Sonhadora)

O cocheiro.

SOMBRA — Claro que você lembra do cocheiro. Mas foi em 13. Trecho produzido a

136 Falecida em 22 de janeiro de 1901, a rainha inglesa, cujo reinado imortalizou-se como Era Vitoriana, herdou o trono aos dezoito anos e foi considerada responsável, junto ao seu marido, o príncipe Albert, por mudar a cultura em seu país e no exterior (HAWKSLEY, 2015), estabelecendo tradições e valores que se propagaram. 193

Você saiu da sala dizendo que ia buscar bolas coloridas que o partir do conto Estória da Maria Ruinzinha cocheiro do seu pai estava encarregado de encher. (ATHAYDE, 1974, p.87 a 90)

RUINZINHA — Fui correndo pro quarto dele no porão.

SOMBRA — Dali você já saiu descabaçada e preparada para a vida.

RUINZINHA — Em quatorze.

SOMBRA — Em 13, eu me lembro como se fosse hoje.

RUINZINHA — Quatorze.

SOMBRA — Me lembro até como você voltou perturbada do porão.

Até os convidados notaram a sua falta de alegria condizendo com as comemorações.

RUINZINHA — Tá vendo como você não se lembra bem, como a sua memória não é tão boa assim? Eu já estava preparada praquilo pelas minhas fantasias que reagi naturalmente aos acontecimentos do porão.

SOMBRA — Preparada pelas fantasias e pelas revistinhas de Trecho produzido a sacanagem. partir do conto Estória da Maria Ruinzinha (ATHAYDE, 1974, RUINZINHA — (romântica) Tanto que eu pude me comportar com p.87 a 90) a mesma alegria infantil, como se não tivesse descido tão baixo ao porão em busca de bolas coloridas. Pode perguntar a quem estava lá. 194

SOMBRA — Tá de porre, nêga? Tem mais ninguém daquele tempo vivo não. Ou você não se dá conta de que a festa foi em 1913?

RUINZINHA — Quatorze. Não duvide da palavra de uma 137 descendente do bispo Sardinha .

SOMBRA — Essa história de novo. Já disse que o bispo Sardinha não sobreviveu bastante para constituir família. Você insiste nessa história que o doutor Ruinzinho lhe contava para dar mais importância a sua família.

RUINZINHA — E eu também já lhe disse não sei quantas vezes que o histórico bispo comeu uma índia antes de ser comido pelos índios.

SOMBRA — Tá bom. Faz de conta que eu acredito. Mas o cabaço não.

RUINZINHA — Que cabaço? O do bispo.

Trecho produzido a SOMBRA — O seu, criatura. O cabaço você perdeu em 1913. partir do conto Estória da Maria Ruinzinha (ATHAYDE, 1974, 138 RUINZINHA — Quatorze. Tão certo como que você casou em 30 , p.87 a 90) com o dr. Aguafresca, deputado federal por Santa Catarina.

137 Dom Pero Fernandes Sardinha, nomeado o primeiro Bispo do Brasil em 1551, era considerado severo e radical, e ―inimizou-se com os jesuítas por serem esses religiosos mais tolerantes em relação aos costumes indígenas‖ (SENA, 2016). Em 1552, após desentender-se com o governador Dom Duarte da Costa, foi chamado de volta a Lisboa. O navio em que regressava, porém, naufragou no litoral de Alagoas e o bispo, que, junto a outros sobreviventes, conseguiu alcançar a praia, foi devorado pelos índios caetés (SENA 2016). 195

SOMBRA — Treze. Eu me lembro como se fosse hoje. Tão certo como você está cada dia mais doente e mais fraquinha.

RUINZINHA — Uma injustiça. Isso é uma injustiça. Tanta gente aí pra ficar doente e logo eu.

SOMBRA — Nada mais injusto.

RUINZINHA — Eu sei que é uma coisa grave, porém crônica. Já fui a três médicos e cada qual tem uma opinião inteiramente diferente da dos outros.

SOMBRA — O primeiro acha que é câncer no seio. O segundo acha que é câncer no ovário. O terceiro acha que é câncer. (pausa) Pra mim é uma bronquite. Trecho produzido a partir do conto Estória RUINZINHA — Ai que saudade do meu primeiro passeio. Em 1914. da Maria Ruinzinha (ATHAYDE, 1974, p.87 a 90) SOMBRA — Em 13, eu me lembro como se fosse hoje. 1913. (uma pausa longa)

RUINZINHA — (cantando) ―Ai, quanta saudade é morta139 ninguém dá jeito

138 Note-se que 1930 foi o ano que pôs termo à República Velha e estabeleceu o governo provisório de Getúlio Vargas, após a revolução que depôs o então presidente Washington Luís e impediu a posse do presidente governista eleito Júlio Prestes. 139 Citam-se aqui os versos finais da canção Sá Mariquinha, de autoria de Evenor de Pontes e Luís Assunção (1947), do conjunto cearense Quatro Ases e um Coringa. (INSTITUTO..., [201-]). 196

o jeito é calar!‖

(Marinete enxota as duas velhinhas.)

MARINETE — Pra fora. Xô. Chega. Pra fora. Acabou o tempo. Passa.

(Proteína tenta, quase simultaneamente, acalmar os cachorros da plateia. Os desinibidos.) OS DESINIBIDOS OS DESINIBIDOS NEUROSE RESSURREIÇÃO DE ROBERTO ATHAYDE Comédia de Paradoxos

2a. Parte OS DESINIBIDOS

PERSONAGENS

PROTEÍNA — A dona-de-casa que vira psicanalista. FRUSTRAFROIDE — Seu marido, o maior psicanalista brasileiro. D82: moram FRUSTRINHA — Neto excepcional de Proteína e Frustrafroide. Filho incestuoso do casal de filhos adolescentes de D82: O Frustrinha Proteína que mora no Havaí; o Frustrinha tem apenas quatro anos mas sofre de um tipo raro de gigantismo, podendo ser D82: apresentado por ator representado por ator ou atriz de qualquer idade. MARINETE — Empregada preta de Proteína. JURANDIR — O repórter. VALDIR — O presidente do Flamengo.

197

CENÁRIO

No centro do palco, bem em evidência, o divã psicanalítico dos Frustrafroide. Por trás, dominando o ambiente, um D82: evidência (s.v.); Frsutrafroides; grnade. retrato grande do recém-falecido psicanalista francês Professor Jacques LACAN140.

PRIMEIRO ATO PRIMEIRO ATO/Cena I

(Os latidos (Ainda no escuro começam-se a ouvir os latidos dos cachorros, vindos distintamente de algum alto- falante colocado atrás do público no fundo da sala ou bem no hall do teatro. Esses latidos aumentam num crescendo que culmina com a entrada de PROTEÍNA sob uma iluminação de crepúsculo matutino. Dormindo a sono solto sobre o divã no centro do palco está o Dr. FRUSTRAFROIDE)

PROTEÍNA — (Já bastante enervada com os latidos, falando ad spectatores pela janela imaginária com os cachorros latindo na rua) Desinibida! Desinibida! Já pra dentro! Pchh! Bambamzinho, Fileira!

140Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) foi um polêmico, controverso e significativo psicanalista francês cuja obra retomou o pensamento de Sigmund Freud para dar-lhe novo sentido a partir da construção de uma nova escola psicanalítica. Afirmando-se como intérprete dos princípios freudianos, Lacan promoveu cisões na Sociedade Psicanalítica de Paris, ao opor-se à Psicologia do Ego, então desenvolvida pelos pós-freudianos (ROUDINESCO, 1993). Suas formulações teóricas foram bastante influenciadas pelo antropólogo Lévi Strauss e pelo estruturalismo linguístico de F. Saussure, a partir de quem afirma que ―o inconsciente é estruturado pela linguagem‖ (PINTO, G. C, 1994). Linguística, filosofia e antropologia se relacionam nos estudos lacanianos, cujos principais conceitos são o imaginário, o simbólico e o real (os três planos complementares de expressão do indivíduo); tempo lógico (relativo às sessões de análise); gozo, desejo, liberdade, não-todo; estádio de espelho e, sobretudo, a teoria do nome do pai, ―pivô da doutrina lacaniana‖ (ROUDINESCO, 1993). Crescido em ambiente burguês, Lacan encontrou em sua vida pessoal e familiar, caracterizada por extravagâncias, subversão e anarquia, fundamento para o desenvolvimento de suas teses, conforme afirma E. Roudinesco no polêmico Jacques Lacan – Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (ROUDINESCO, 1993), trabalho desenvolvido sobre a vida e obra do psicanalista. No Brasil, a escola lacaniana encontrou terreno fértil para desenvolver-se nos idos de 1970, pois ―com o golpe militar na Argentina, em 1976, muitos psicanalistas migraram para o Brasil, ajudando a consolidar o movimento no país‖ (PINTO, M. C., 1994). 198

(Autoritária) Acaba com isso! (Os cachorros latem mais ainda; ainda mais;

PROTEÍNA tenta convencê-los pelo engodo e adota um tom suave) Bam, Bam, Bam, Bam... Vem, meus amores, todos pra dentro bonitinhos... Desinibida! Fileira! (ELA chama os cachorros ad libitum usando todo um repertório de ruídos que vão desde beijos até ameaças) Fileira!

Você vai apanhar! Vocês vão apanhar os três, hein! (ELA desiste de conter os cachorros e se volta para FRUSTRAFROIDE que dorme no divã) Frustra, a Desinibida nunca latiu assim, que será, hein, a essa hora... Acorda, querido. (ELA toca o marido querendo acordá-lo)Frustra! É hoje que o Valdir Teixeira141 vem, por favor, acorda, Frustra: eu estou me sentindo despreparada!

(FRUSTRAFROIDE se vira para o outro lado sempre dormindo) Frustra! Pensa na minha responsabilidade! Por favor!

(Os cachorros latem ainda mais alto; PROTEÍNA volta para a boca da cena, ad spectatores) Desinibida! Fileira! Bambam! Parem, por favor! Pshhhtz! D82 Prem (s.v.)

Desinibida!

Passa já pra dentro!

(ELA chama os cachorros novamente de várias formas até que finalmente desiste e volta a tentar acordar FRUS- TRAFROIDE) Frustra! Pelo amor de Deus: você viaja hoje, Frustra: o Valdir vai chegar e eu não manjo nada de

141 Embora aqui se identifique Valdir Teixeira como o presidente que levou o Flamengo ao título mundial, era Antonio Augusto Dunshee de Abranches o presidente do Clube de Regatas do Flamengo em 1981, substituindo Marcio Braga. O nome Valdir Teixeira pode ser uma referência a Ricardo Teixeira, que, casado com Lúcia Havelange na década de 1970, filha do então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), veio a tornar-se presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), no período de 1989 a 2012. Sem nenhuma experiência como dirigente, o torcedor declarado do Flamengo entrou no mundo do futebol pelas mãos do sogro e protetor João Havelange, que, entre 1974 e 1998 presidiu a Fédération Internationale de Football Association (FIFA) (EM 24..., 2016). 199 psicanálise, será que você não está entendendo? Como é que vai ser, hein? Me ajuda! Faz a Desinibida entrar, faz? Eu não aguento mais! Frustra! Acorda, é só hoje, eu tou pedindo, Frustra! D82 (Sem resultado, ELA desiste de acordar FRUSTRAFROIDE por bem. Irritada.)Ah, é? FURSTRAFROIDE D82 Ah (s.v.); (Gritando energicamente em direção à porta que dá para a cozinha) Marinete!

VOZ DE MARINETE — Senhora! D82 DA

PROTEÍNA — (Gritando para MARINETE) Pode trazer o Frustrinha que não tem outro jeito de acordar ele! (Ouve-se uma gargalhada estridente do FRUSTRINHA)

MARINETE — Sim, senhora, já vai! (Passam-se alguns segundos de expectativa. Os cachorros latem de novo com grande intensidade e PROTEÍNA volta à D82 Sim (s.v.) boca de cena olhando para o público como que tentando avistar os cachorros.) D83 cachorros) (s.p.)

PROTEÍNA — (Chamando os cachorros, ad spectatores) Desinibida!

Pssst, Pssse, pst, pshhht... Vem cá, branquinha, vem... D82 cá (s.v.) (Entra MARINETE empurrando o FRUSTRINHA carregado de tomos de enciclopédia e outros alfarrábios)

FRUSTRINHA — É o único jeito, vovó?

PROTEÍNA — Hoje é: pode começar a recitar.

(FRUSTRINHA se aproxima do divã onde FRUSTRAFROIDE dorme e, empilhando alguns livros, improvisa um palanque para recitar) 200

MARINETE — (Preocupada)A senhora já tentou chamar? Será que precisa mesmo?

PROTEÍNA — Precisa sim, Marinete. Eu já estou nervosa com essa cachorrada lá fora. Marinete, tenta fazer os cachorrinhos entrarem, tá? Eles gostam de você...

MARINETE — (Compenetrada) O Frustrinha tá tão calmo hoje... Tento, sim senhora.

(MARINETE vai à boca de cena para chamar os cachorros; o FRUSTRINHA sobe sobre os livros e empertiga-se todo para começar a recitar. Os cachorros latem ainda mais)

MARINETE — (Ad spectatores) Fileira! (MARINETE faz um ruído especialmente seu para chamar os cachorros) Bambamzinho! Desinibida!

FRUSTRINHA — (Começando a recitar pomposamente enquanto MARINETE continua ad libitum chamando os cachorros) ‗O Fiel‘, de Guerra Junqueiro.

PROTEÍNA — (Para MARINETE) Marinete, vai lá fora, vai... Pra não interromper o Frustrinha.

FRUSTRINHA — (Irritado com o barulho, ele tosse e recomeça) O Fiel. Na luz daquele olhar tão lânguido, tão doce142 Havia o que quer que fosse de um íntimo desgosto Era um cão ordinário, um pobre cão vadio Que não tinha coleira e não pagava imposto. Acostumado ao vento e acostumado ao frio

142 Os versos aqui citados correspondem ao trecho inicial do poema narrativo O Fiel (1877?), do poeta, jornalista e político português Abílio Manuel Guerra Junqueiro (1850- 1923). Com 151 versos, a narrativa envolve um cão desabrigado que é resgatado das ruas por um pobre artista e a ele torna-se fiel. Ao ter sua arte reconhecida, e vindo a alcançar status social e econômico, o artista passou a envergonhar-se da companhia do cão. Este, mesmo envelhecido e doente, permanecia-lhe fiel e servil. 201

À noite percorria os bairros da miséria À busca de um jantar...

FRUSTRAFROIDE — (Acordando) Chega, Proteína. Chega, chega, chega, chega, chega! Pode mandar seu neto prodígio parar. Já acordei e já estou embarcando pro Havaí. pro Havaí como você bem sabe.

PROTEÍNA — Pronto, Frustrinha, pode ir brincar. (Gritando) Marinete! Pode levar o Frustrinha! (Fleumática, para FRUSTRAFROIDE) A que horas é o seu avião?

FRUSTRAFROIDE — (Tranquilo) Eu quero ver se pego o das onze. Mas onze e meia ou meio-dia tudo bem... D83 onze meia

PROTEÍNA — (Irritada) Mas como assim? Desde quando tem avião pro Havaí de meia em meia hora?

FRUSTRAFROIDE — Pra São Paulo, Proteína. Eu vou pelo lado do Pacífico, primeiro pra São Paulo, depois faço escala em Santiago do Chile etc. Eu tenho um encontro importante lá.

143 FRUSTRINHA — (Já carregado novamente com os livros, solta uma gargalhada debiloide) É com o Pinochet ! D83 carregando

PROTEÍNA — Chega, Frustrinha, você já recitou. Agora pode ir brincar de decorar dicionário. (Para FRUSTRAFROIDE, suave) Vai amanhã, Frustra... Afinal os Desinibidos144 já estão lá há quatro anos, eles podem

143 Augusto Pinochet foi um general chileno responsável pelo golpe de Estado que depôs o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, e instaurou no Chile o regime ditatorial mais longo (1973-1990) e sangrento da história. Estima-se que ―[...] 40.018 pessoas foram vítimas de abusos contra os direitos humanos durante o regime de fato e 3.065 foram assassinadas ou desapareceram‖ (LONG, 2013). 202 esperar numa boa. Que diferença que faz? Assim você me orienta mais pro Valdir Teixeira. Pra eu poder analisar ele à altura do nome que você fez. Pensa só como eu estou despreparada...

FRUSTRAFROIDE — (Bonachão) Tem nada não. Mete os peitos... Sempre foi minha filosofia na psicanálise. Muito pelo contrário, o ímpeto do momento foi a minha maior inovação em termos de método, de técnica... (ELE começa a procurar algo numa valise Vuitton que se encontrava ao lado do divã) Sabe, aquilo que se encontra sem procurar, que se constitui a própria vivência como surpresa permanente, sabe?

D82, D83 sabendo (s.v.) PROTEÍNA — Tô sabendo, sim. Você desenvolveu isso naquela conferência sobre hum... sobre o quê mesmo? O que D82 que (s.a.) que você procurando, hein? está procurando, hein?

FRUSTRAFROIDE — Sobre a superioridade do homem tropical.145

PROTEÍNA — É o barbeador?

FRUSTRAFROIDE — É. Acho que tá aqui na valise Vuitton.

144 Provável remissão contrária à noção de inibição, que, em relação à meta ―qualifica uma pulsão que, sob o efeito de obstáculos externos ou internos, não atinge o seu modo direto de satisfação (ou meta) e encontra uma satisfação atenuada em atividades ou relações que podem ser consideradas como aproximações mais ou menos longínquas da meta primitiva‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.240). Conforme Zimerman (2001), ―Freud, em Inibições, sintomas e angústia (1926), afirma que se pode dar o nome de inibição a uma considerável limitação de uma função, quando causada por fatores psíquicos. Freud considera que determinada função do ego fica inibida na mesma proporção que adquire uma significação sexual‖ (ZIMERMAN, 2001, p.215). 145 A superioridade do homem tropical (MELO, 1967) é um tratado de antropologia do médico, professor e ensaísta imortal Antônio da Silva Melo (1886-1973), que ocupou a cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras em 1960. O referido trabalho foi marcado por uma abordagem considerada descolonizada (VASCONCELLOS, 2000), por ter o autor se insurgido contra as "presunções do homem civilizado", criticando severamente a industrialização moderna protagonizada pelo ―american way of life‖, e denunciando a Coca-Cola, símbolo do capitalismo estadunidense, como refrigerante venenoso. Apesar de seguir uma abordagem predominantemente farmacológica, seu livro adentra também uma polêmica em torno da construção estereotípica de hiperssexualização e virilidade de homens latino-americanos. 203

(PROTEÍNA se abaixa e procura debaixo do divã. Com algum esforço ela consegue pescar o barbeador elétrico)

PROTEÍNA — Tá aqui. (FRUSTRAFROIDE tira um espelho pequeno da valise e se prepara para se barbear com o barbeador que é com bateria) Mas agora, Frustra, você vai ser o marido perfeito que você é e vai me preparar um pouquinho pro Valdir, né?

FRUSTRAFROIDE — Eu acho que você não precisa mesmo.

FRUSTRAFROIDE — Há vinte anos casada comigo e ainda não entendeu a psicanálise? Ainda precisa ser preparada para um simples Valdir Teixeira? Por que isso?

PROTEÍNA — (Alarmada)

Escuta, Frustra. Toma esse barbeador: a bateria está carregada por que eu me lembrei de ligar ele na parede. Mas é toma lá dá cá. Eu te ajudo mas você me informa, pô.

Pra começo de conversa me diz uma coisa. Eu estou sabendo que castraram o cachorro dele, mas não dá pra entender. Como é que um homem, esse Valdir Teixeira, o sucesso em pessoa, presidente do clube de futebol mais querido da cidade, pode ter problema psicológico? E ainda por cima dizem que é um bonitão...

FRUSTRAFROIDE — (Testando o barbeador) D82, D83 Marinete Você acabou de dizer: castraram o cachorro dele146. Quantas pessoas você conhece que tiveram um cachorro castrado e

146 Remete-se aqui ao Complexo de Castração, descrito por Freud (1908), no ensaio Sobre as teorias sexuais da criança. Considerando o pênis como ―o órgão sexual auto- erótico primordial‖ a angústia de castração sustenta uma série de neuroses, e pode ser entendida como um ―complexo centrado na fantasia de castração, que proporciona uma resposta ao enigma que a diferença anatômica dos sexos (presença ou ausência de pênis) coloca para a criança. Essa diferença é atribuída à amputação do pênis na menina. A 204 não procuraram a psicanálise?

(Ouvem-se mais latidos e mais a voz de MARINETE na rua chamando os cachorros ad libitum)

PROTEÍNA — Olha, Frustra, eu estou consultando agora um psicanalista que é você pra conseguir castrar os cachorros147... Não é possível, essa Desinibida! Eu juro que vou mandar castrar ela, Frustra, enquanto você está no Havaí! (ELA vai para a boca de cena ad spectatores) Desinibida! Fileira!

FRUSTRAFROIDE — De jeito nenhum, Proteína. Você sabe que esse tipo de repressão148 em casa não tem nada a ver. estrutura e os efeitos do complexo de castração são diferentes no menino e na menina. O menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna em resposta às suas atividades sexuais, surgindo daí uma intensa angústia de castração. Na menina, a ausência do pênis é sentida como um dano sofrido que ela procura negar, compensar ou reparar. O complexo de castração está em estreita relação com o complexo de Édipo e, mais especialmente, com a função interditória e normativa‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982]). Segundo Kaufmann (1996 [1993], p.79), ―os retoques sucessivos de que o conceito de castração foi objeto refletiram as redistribuições teóricas mais gerais impressas em Freud e depois de Freud às orientações e conceitos fundamentais da psicanálise; estas, por fim, viram-se elas próprias solidárias de comentários interdisciplinares cada vez mais amplos, envolvendo a repressão do incesto, a evidenciação da fase fálica, a elaboração do princípio de realidade, a gênese do supereu‖. O primeiro caso clínico relacionado ao tema analisado por Freud foi de uma criança de quatro anos, o menino Hans, em 1990, através do qual sustenta que ―o menino não pode conceber qualquer ser humano sem pênis, sendo que a visão da mãe ou da irmã desprovida desse órgão gera imediatamente a fantasia de que, de fato, existe uma castração, a qual imagina ter sido cometida pelo pai‖ (ZIMERMAN, 2001, p.66). Alinhando os estudos freudianos à noção de simbólico, imaginário e real, Lacan (apud ZIMERMAN, 2001, p.66) chegou a outra interpretação da castração, que, para ele corresponderia a ―uma operação simbólica que se refere ao falo enquanto um objeto imaginário e não o real. O temor de castração é normatizante e estruturante para a criança, porquanto proíbe o incesto e faz a necessária cunha interditora na díade fusional que a criança estiver mantendo com a mãe. Além disso, afirma Lacan, a assunção da castração simbólica, por parte da criança, promove a ‗falta que cria o desejo‘, então não mais necessitando esse desejo de estar subordinado aos da mãe, ou submetido aos do pai‖ (ZIMERMAN, 2001, p.66). Note-se que, tanto para Freud quanto para Lacan, o complexo de castração é estruturante na formação da personalidade e no comportamento sexual do indivíduo. 147 Segundo C. Jung (1964), em O homem e seus símbolos, ―O cachorro representa a fidelidade, mas também a promiscuidade, desde que não mostra discriminação na escolha dos companheiros‖ (JUNG, 1964, p. 282). Dessa forma, ao mesmo tempo em que os cães ocupam o papel de guardas, de companheiros, de protetores e de vigilantes, também encarnam a voracidade em sua força instintiva, simbolizando potência sexual. 148 É possível que haja remissão à ideia de repressão, apontada por Chemama (1996, p.389) como ―proceso de apartamiento de las pulsiones, que ven negado su acceso a la consciência‖. Sendo uma tradução do termo alemão Verdrängung, não há consenso nos usos do termo, de modo que alguns autores consideram-no sinônimo de recalque (ou recalcamento), como o Kaufmann (1996 [1993]). Já Laplanche e Pontalis (2001 [1982]), indicam que o termo pode ser usado em sentido amplo ou estrito. Em sentido amplo, repressão seria a ―operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: ideia, afeto, etc. Neste sentido, o recalque seria uma modalidade especial de repressão‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.457). Em sentido restrito, a repressão ―designa certas operações do sentido A [amplo] diferentes do recalque: a) ou pelo caráter consciente da operação e pelo fato de o conteúdo reprimido se tornar simplesmente pré-consciente e não inconsciente; b) ou, no caso da repressão de um afeto, porque este não é transposto para o inconsciente mas inibido, ou mesmo suprimido; c) em certos textos franceses (e brasileiros) traduzidos do inglês, equivalente errado de Verdrängung (recalque)‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.457). Chemama (1996), por sua vez, distingue repressão originária de repressão 205

Deixa latir! Já dizia o Professor Lacan... (ELE começa a se barbear)

PROTEÍNA — Essas cadelas castradas numa boa iam ter outro comportamento, isso eu te garanto. Mas vai, explica o Valdir, tá?

Castraram o cachorro dele, isso já faz mais de dois meses, foi um escândalo nacional, até aí morreu Neves. Você acha que ele marcou a consulta ainda por causa do tal cachorro? Porque é um caso que todo mundo já sabe, deu no jornal, não tem nada de íntimo... Principalmente pra ele que deve ser um tipo acostumado a mandar.

Carência afetiva149 tá fora de cogitação, né? Com a torcida do Flamengo...

FRUSTRAFROIDE — (Se barbeando) É um símbolo150, Proteína, um arquétipo151 a castração. Aquilo se transforma num

propriamente dita, de modo que ―la represión originaria es el apartamiento de una significación que, en virtud de la castración, ve negada su asunción por lo conciente: la significación simbólica soportada por el falo, objeto imaginario. En el apres-coup, se da la intervención de la represión propiamente dicha, represión de las pulsiones oral, anal, escópica e invocante, es decir, de todas las pulsiones ligadas a los orificios reales del cuerpo. La represión originaria las arrastra tras sí, sexualizándolas. Exige su apartamiento‖ (CHEMAMA, 1996, p.389). Pode-se ler, em Chemama (1996, p.389-392) uma série de desdobramentos do termo, envolvendo classes de repressão, seus momentos lógicos, a repressão das incitações pulsionais, o sentido como causa da repressão, a função paterna na repressão. 149 O termo carência afetiva se apresenta nos diferentes dicionários consultados (CHEMAMA, 1996; EVANS, 2007 [1996]; LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982]; KAUFMANN, 1996 [1993]; ROUDINESCO; PLON, 1998 [1997]; ZIMERMAN, 2001), mas não se tem um verbete atribuído a ele ou a carência, exceto em Zimerman (2001), no qual carência consta como segundo fator de um esquema mnemônico por ele proposto, intitulado Equação 8 C, ao que chama de ―tentativa de sintetizar os fatores essenciais que, em algum grau e tipo de arranjo combinatório, estão presentes, com configurações distintas, em qualquer situação psicopatológica [...] cujos termos têm C como inicial e que estão em permanente interação: completude, carência, culpa, castigo, compulsão à repetição, código de valores introjetado, capacidade de atingir a posição depressiva‖ (ZIMERMAN, 2001, p.121). Nesse ínterim, carência afetiva seria um estado que surge em decorrência da frustração do desejo de total completude que o bebê teria de estar fundido com a mãe, ―como esse desejo de total completude é impossível de ser alcançado, diante das inevitáveis – e necessárias – frustrações por parte dos objetos provedores, sua majestade, o bebê, entra num estado de carência afetiva‖ (ZIMERMAN, 2001, p.121). 150 Chemama (1996) compreende símbolo como ―elemento de los intercambios y representaciones del ser humano, que tiene a primera vista una función de representación, pero que, fundamentalmente, es constitutivo de la realidad humana misma. El término símbolo presenta, en su sentido más general, una ambigüedad no desdeñable.‖ 206 problema sem a pessoa sentir e sem ter nada a ver com a realidade propriamente dita.

Eu não tenho dúvida que foi o cachorro, que ainda é o cachorro o problema dele.

PROTEÍNA — E a ameaça que ele fez?

FRUSTRAFROIDE — Que ameaça?

FRUSTRAFROIDE — Ora, a ameaça, Frustra. Saiu em tudo quanto é jornal que ele suspeitou de alguém do prédio e ameaçou matar o cara... De repente as pessoas cobram isso dele...

FRUSTRAFROIDE — (Bonachão) Diz que o cachorro era brabo, né? O que que é, hein? Doberman?

PROTEÍNA — Não. Ele tem uma cadela Doberman mas o que foi castrado é pastor alemão.

(CHEMAMA, 1996, p.410). Essa noção, entretanto, deve ser considerada diante da pluralidade semântica que abriga, conforme propuseram Laplanche e Pontalis (2001 [1982]) ao afirmarem que ―[...] as palavras simbólico, simbolizar, simbolização são tantas vezes utilizadas e em sentidos tão diversos, finalmente os problemas que dizem respeito ao pensamento simbólico, à criação e ao manejo dos símbolos dependem de tantas disciplinas (psicologia, linguística, epistemologia, história das religiões, etnologia, etc.), que existe especial dificuldade em querer delimitar um uso propriamente psicanalítico destes termos e em distinguir-lhes diversas acepções‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.482). 151 Embora se faça associação do arquétipo à ideia de símbolo, é necessário pontuar que arquétipo não é um conceito que se apresente na psicanálise freudiana, mas sim em diversas publicações da teoria de Carl Gustav Jung, como em Die Archetypen und das kollektive Unbewusste (JUNG, 1976). Segundo Kaufmann (1996 [1993], p.767) ―o inconsciente, para Jung, era complementar do consciente e composto por imagens que ele chamou de arquétipos. Distinguia um inconsciente pessoal, que reuniria conteúdos adquiridos e recalcados pelo indivíduo, e um inconsciente coletivo, que resultaria de conteúdos herdados que exprimiriam uma necessidade sobre a qual o inconsciente pessoal não tem controle. Instintos e arquétipos constituiriam o conjunto do inconsciente coletivo. O arquétipo, cuja expressão seria evidente nos mitos, nos contos, na literatura, circunscreve um tema que apareceria sempre e em toda parte, seu número seria ilimitado‖.

207

FRUSTRAFROIDE — Diz que mordia a torto e a direito, né?

PROTEÍNA — Parece que mordeu bastante gente do prédio dele. Teve até um processo contra ele, rolando há quatro anos...

FRUSTRAFROIDE — Quatro anos? O cachorro é velho então. Se já estava mordendo há quatro anos atrás...

PROTEÍNA — Eu entro numa que a ameaça de morte é que fundiu a dele.

FRUSTRAFROIDE — Deve ter sido da boca pra fora, claro. O suspeito é uma bicha, certo?

PROTEÍNA — É, mas não passou disso. O tal rapaz sumiu. A família explicou que ele é aeroviário e viajou de férias. Aliás pro Havaí também. Que loucura essa coisa de Havaí152, né? Será que foram os Desinibidos que lançaram a moda?

152 As ilhas sanduíche (chamadas de sandwich islands pelo capitão britânico James Cook, que aportou nas ilhas em 1778) integram o arquipélago do Havaí e foram anexadas desde 1900 como território estadunidense, após a invasão de tropas dos Estados Unidos que depuseram a rainha Liliuokalani e estabeleceram República do Havaí, com Sanford B. Dole como presidente. Em 1959, passaram a ser um dos 50 estados do Estados Unidos, e têm como capital sua maior cidade, Honolulu. Santiago (2012) analisa que os primeiros habitantes de que se tem notícia seriam navegantes polinésios, que estabeleceram uma dinastia em 1810, quando o rei local Kamehameha I unificou as ilhas. As tradições havaianas causaram choque cultural aos primeiros europeus que chegaram às ilhas, sobretudo porque a família real compreendia o incesto como privilégio divino, de modo que o príncipe Kamehameha III e sua irmã, Nahienaena, constituíam um casal. As práticas incestuosas na dinastia havaiana foram abordadas no filme Havaí, de George Roy Hill (1966), com Julie Andrews no elenco que contava a história de um casal de missionários ingleses encarregados de catequizar os povos havaianos. Estreado mundialmente em outubro de 1966, o drama épico foi considerado a maior bilheteria do ano, venceu dois Globos de Ouro e obteve sete indicações para Oscar, incluindo fotografia, que explorou bastante a paisagem do arquipélago, contribuindo para a ampliação dos lucros locais com o turismo. Seu sucesso rendeu-lhe uma continuação, em 1970: The Hawaiians que, no Brasil, obteve o título O Senhor das Ilhas. Santiago (2012) afirma que ―depois de elevado a estado, o Havaí moderniza-se 208

Só sei que há quatro anos atrás eu mal tinha ouvido falar na existência dessas benditas ilhas e aí começa... Os Desinibidos no Havaí, depois as suas três sobrinhas e agora você... Você tá mais que decidido, né?

FRUSTRAFROIDE — (Paciente) Eu tô me barbeando, Prote, pra pegar o avião. Dá pra notar? All right? (ELE assobia algumas notas enquanto PROTEÍNA vai nervosamente à boca de cena em reação a mais latidos dos cachorros)

FRUSTRAFROIDE — Deve ter sido o aeroviário mesmo.

PROTEÍNA — Por quê? Como é que você assume uma acusação assim, completamente sem base?

FRUSTRAFROIDE — Não é tão sem base assim. Você mesma disse que carência afetiva não é, pra quem chegou à presidência do Flamengo.

PROTEÍNA — Mas será que não é mesmo?

FRUSTRAFROIDE — Isso é o que você vai descobrir.

FRUSTRAFROIDE — Você tá me substituindo, Proteína. Não adianta eu ficar te explicando tudo. Em psicanálise a primeira regra é a vivência153 em primeira mão. Isso é a base da revolução que eu fiz nessa terra.

rapidamente através de uma economia baseada no turismo, que cresceu rapidamente. Em face da ameaça de completo desaparecimento que a cultura local vinha sofrendo, esforços vão sendo feitos desde a década de 70 para resgatar e a reafirmar a cultura havaiana local‖. 153 Possível referência à ideia de vivência de satisfação, que compõe o Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1895), e é considerada ―[...] a noção fundamental da problemática freudiana da satisfação; nela se veem articular o apaziguamento da necessidade e a realização de desejo” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998 [1982], p.531, 209

PROTEÍNA — E foi expulso da Associação...

FRUSTRAFROIDE — Mas o próprio Lacan não dissolveu a dele154? O que que tem? Ele não foi chamado de suicida? É D82 O quê que (c. a.); Ela não foi isso aí: eu vou pro Havaí. Meus filhos estão lá, são adolescentes, o episódio do incesto deles foi real, está aí o Frustrinha que não deixa a gente esquecer. Eles têm um problema, Proteína. De repente eu tenho de catar eles no Havaí de qualquer jeito. Como é que eu vou te explicar? Eu fiz uma descoberta nova na minha teoria dos incestos, tá? Importante mesmo. E D82 Importante, implicou numa abertura ética também. São meus filhos, não são? Fizeram uma coisa diferente...

tudo bem... só que...

PROTEÍNA — (Interrompendo) Fizeram uma coisa diferente? Você chama seu próprio neto excepcional de ‗coisa diferente‘?

FRUSTRAFROIDE — Não é isso, Prote. Lá vem você com o Frustrinha. Eu estou falando do incesto155 em si, dessa falta D82 sociedade. grifo dos autores). Segundo Laplanche e Pontalis (2001 [1982]), trata-se de um ―tipo de experiência originária postulada por Freud e que consiste no apaziguamento, no lactente, e graças a uma intervenção exterior, de uma tensão interna criada pela necessidade. A imagem do objeto satisfatório assume então um valor eletivo na constituição do desejo do sujeito. Ela poderá ser reinvestida na ausência do objeto real (satisfação alucinatória do desejo) e irá guiar sempre a busca ulterior do objeto satisfatório (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p. 530). A vivência de satisfação, continuam os autores: ―está ligada ao ‗estado de desamparo (Hilflosigkeit) original do ser humano.‘ O organismo não pode provocar a ação específica capaz de suprimir a tensão resultante do afluxo das excitações endógenas: esta ação necessita do auxílio de uma pessoa exterior (fornecimento de alimentação, por exemplo); o organismo pode então suprimir a tensão‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p. 531). 154 Segundo Roudinesco (1993), em 9 de janeiro de 1980, Lacan endereçou uma carta aos membros da escola que fundara em 1964 – a Escola Freudiana de Paris (EFP) –, comunicando sua dissolução, o que contribuiu para a dispersão e diversificação de seus estudos, através de seus pupilos. Na carta, publicada no jornal Le Monde, Lacan orientava os membros da EFP a manifestarem por escrito seu desejo de permanecer trabalhando com ele, caso houvesse (ROUDINESCO, 1993). Tendo recebido mais de mil cartas em uma semana, Lacan fundou, em 21 de fevereiro do mesmo ano, a Causa Freudiana. No seminário de Caracas, em julho, afirmou: "sejam lacanianos, se assim quiserem. Eu sou freudiano‖. 155 O incesto é um dos temas mais recorrentes desde o surgimento da psicanálise. Com Freud, através da noção de Complexo de Édipo, e com Lacan que, partindo do estudo de Lévi-Strauss (1949) sobre a proibição do incesto em diferentes culturas, buscou compreendê-lo à luz do seu conceito de função simbólica. Postulam Roudinesco e Plon (1998 [1997], p.372-373, grifo dos autores): ―chama-se incesto a uma relação sexual, sem coerção nem violação, entre parentes consanguíneos ou afins adultos (que tenham atingido a maioridade legal), no grau proibido pela lei que caracteriza cada sociedade: em geral, entre mãe e filho, pai e filha, irmão e irmã. Por extensão, a proibição pode estender-se às relações sexuais entre tio e sobrinha, tia e sobrinho, padrasto e enteada, madrasta e enteado, sogra e genro, sogro e nora. Na quase totalidade das sociedades conhecidas, à exceção de alguns casos, dentre eles os faraós do Egito ou a antiga nobreza havaiana, o incesto sempre foi severamente castigado e, mais tarde, proibido. Por 210 perante a sociedade,

da relação especificamente sexual entre nosso filho Pedro e nossa filha Lúcia... que veio justamente...

PROTEÍNA — (Interrompendo, ligeiramente indignada) Ah e não é o Frustrinha não, a consequência... a essência mesmo disso? Com quatro anos parece um velho, Frustra! Tá certo que tem o lado genético. Os dois médicos disseram logo de cara que ele ia crescer demais, mas não pode, Frustrafroide... Esse negócio de recitar... Ninguém me tira da cabeça que o caso dele é mais grave que o dos Desinibidos.

FRUSTRAFROIDE — (Estóico) Não chama eles de Desinibidos, Proteína. São nossos filhos!

Pra que essas brincadeiras?

PROTEÍNA — (Indignada) Brincadeira? Mas eles são surfistas, Frustra! Estão no Havaí há quatro anos! Abandonaram o Frustrinha recém-nascido em cima da gente! Se amando loucamente numa relação que todas as culturas condenam unanimemente. Entende, Frustrafroide? D83 Frustrafoide Todas, não tem uma cultura que aceite incesto de irmão com irmã: nem no Havaí! E você ainda tem pena!

isso é que tantas vezes é ocultado e sentido como uma tragédia por quem se entrega a ele. A proibição é a vertente negativa de uma regra positiva: a obrigação da exogamia. Nas sociedades democráticas do fim do século XX, aplica-se menos ao ato sexual incestuoso em si do que ao casamento. O ato é reprovado pela opinião pública e sempre vivido como uma tragédia proveniente da desrazão ou conducente à loucura ou ao suicídio, porém já não é punido como tal, caso não seja apresentada nenhuma queixa por um dos parceiros. As leis modernas, com efeito, não intervêm na vida sexual dos adultos maiores de idade. Punem apenas a pedofilia (incestuosa ou não), o estupro e o exibicionismo ou atentado ao pudor. Quanto ao casamento incestuoso, é proibido por lei em todos os países e nenhuma filiação é admissível para a criança nascida de uma relação dessa natureza: somente a mãe, nesse caso, pode reconhecer o filho, declarando-o de pai desconhecido. O fato de o incesto sempre ter sido proibido na maioria das sociedades, quer por um castigo corporal, quer por uma proibição legal, evidencia claramente o caráter universal do tabu. Nessas condições, qualquer discurso sobre o incesto apresenta-se, antes de mais nada, como uma reflexão sobre sua proibição e sobre a necessidade do fundamento ético desta, a fim de garantir a passagem da natureza para a cultura. [...] Se a proibição do incesto é uma necessidade estrutural inerente à passagem da natureza para a cultura, ela também é, do ponto de vista freudiano, a expressão necessária da culpa do homem por um desejo incestuoso recalcado‖. 211

FRUSTRAFROIDE — Não é pena, Proteína. Eu sou um psicanalista com uma obra, um nome, uma reputação. Eu passei os últimos quatro anos buscando a solução teórica, analítica, do incesto das crianças. dos meus próprios filhos. E finalmente eu cheguei a certas conclusões. Eu agora possuo uma teoria do incesto satisfatória e que me possibilita ir ao Havaí ao encontro das crianças.

PROTEÍNA — (Nervosa) Não são mais crianças, Frustra! Enquanto isso o Frustrinha aqui... Nem o próprio Frustrinha é mais criança. Quatro anos um monstrão daquele tamanho e recitando assim sem parar. Ele precisa mais da sua nova teoria que os Desinibidos lá...

FRUSTRAFROIDE — (Zangado) Olha aqui, você quer parar de chamar a Pedro e a Lúcia nossos filhos de Desinibidos!?

PROTEÍNA — (Zangada) Mas quem foi que botou o nome primeiro? Fui eu?

FRUSTRAFROIDE — (Furioso) Na cachorra, Proteína! Agora, por que chamar sua filha com o nome da cadela, só porque é mãe solteira...?

Pra que essa agressão a mais no festival de agressões?

PROTEÍNA — (Ainda zangada, como se fosse o mesmo assunto) PROTEÍNA — Não é por mal que eu falo isso, Frustra. Não é do jeito que você está falando, com 212

esse tom de voz. É um mínimo de senso das prioridades que eu quero dizer. Você se manda pro Havaí, dá alta de repente pra duas dúzias de pacientes, na maior: todo mundo curado! Os piores neuróticos mesmo que tá na cara que eram pra ficar a vida toda em análise e você proclama normais! Tudo solto aí pela rua. Mas o novo, só porque é o famoso Valdir Teixeira, você deixa estourar na minha mão! E se não der certo, Frustra?

E se o tal do Valdir não me engolir como psicanalista dele? E se ele não pagar as contas que você preparou para eu D82 tal Valdir ; engulir mandar para ele? D82 pra ; pra Você não tem a mínima ideia do que seja a cabeça desse cara. Nem o caso do cachorro você acompanhou direito no jornal. Como é que fica se não der certo?

FRUSTRAFROIDE — (Tranquilo) Eu por acaso tenho uma prioridade, Proteína. Que consiste em ir ao Havaí, encontrar meus filhos, estabelecer minhas novas conclusões junto a eles e possivelmente fazer um trabalho psicológico com eles. Por que não? Eles podem voltar, não podem? O Pedro tem vinte anos, Lúcia dezenove. Eles poderiam trabalhar, não? Criar um flanco de cooperação no mundo deles, não? Quer dizer, cooperação com o nosso mundo: entre eles eu não vou discutir. Eu pretendo conseguir isso, ou coisa que o valha. 213

FRUSTRADROIDE — (O barbeador falha) Droga!

(Ele remexe no barbeador para que funcione) Vai dar certo numa boa, Prote. O suspeito do Valdir, o cara que ele ameaçou é uma bicha, certo?

PROTEÍNA — Ele jurou que matava. Deve ser isso o problema dele.

PROTEÍNA — (Nervosa) O que é que eu faço, Frustra? D83 que que

FRUSTRAFROIDE — (Sem conseguir fazer funcionar o barbeador. Irritado) Eu é que pergunto: o que que eu faço dessa merda?

PROTEÍNA — Sabe o que me preocupa? Você inovou, você criou uma nova escola ou estilo de psicanálise. E entre essas D82 antesala inovações você estabeleceu, como Lacan, que não deve haver limitações precisas de tempo na sessão psicanalítica156: às vezes você despacha o paciente em dez, quinze minutos, outras vezes você se prolonga por duas, três horas. Você deixa o paciente esperar a tarde inteira na antessala. Muito bem, você é o gênio, são descobertas e invenções suas. Mas como é que eu vou me virar numa dessas? Será que chega o bom senso, a intuição feminina?

FRUSTRAFROIDE — (Conseguindo fazer funcionar o aparelho) Mas só é o bom senso e a intuição feminina. Aí você D82 enfatiso

156 Menciona-se aqui a ideia de tempo lógico, um conceito proposto por Lacan à clínica psicanalítica no texto O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (1945), segundo o qual a submissão do analista a um tempo de sessão pré-estabelecido o conduzia a uma certeza antecipada, comprometendo a análise clínica (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.715). Lacan propõe então que a duração da sessão seja orientada pelo conteúdo trazido pelo analisando: ―teoricamente, portanto, uma sessão pode durar uma hora, mas também um minuto – o que com frequência provoca críticas severas dos detratores do lacanismo. Uma insinuação comum é que os lacanianos se beneficiariam economicamente das sessões curtas e que suas agendas repletas não teriam lugar para um tempo lógico mais longo. A esse respeito, Oscar Cesarotto admite que, de fato, há psicanalistas que caem nessa tentação – embora este seja um problema ético que não elimina a validade conceitual do tempo lógico‖ (PINTO, 1994). Roudinesco (1993) não se furtou de destacar, sobre o próprio Lacan, que ―durante uns dez anos, de 1970 a 1980, ele recebeu uma média de dez pacientes por hora [...]. Ganhou portanto, graças à psicanálise, quatro milhões de francos anuais [...]. Ao morrer, [...] Lacan era riquíssimo: em ouro, em patrimônio, em dinheiro líquido, em coleções de livros, objetos de arte e quadros‖ (apud CARVALHO, 1994). 214 disse tudo. Eu não tenho dúvida que você vai tirar o Valdir de letra. Você sabe que eu enfatizo a espontaneidade, não? Você não se lembra do trecho sobre a dialética das intencionalidades, em fenomenologia... 157

PROTEÍNA — Na conferência sobre a superioridade do homem tropical?

FRUSTRAFROIDE — Isso! É isso aí! Viu como você sabe? Francamente, Proteína, eu estou indo sem a menor preocupação de dar certo ou não dar certo. Você tem uma base muito sólida...

PROTEÍNA — (Nervosa) O que que eu digo pra ele?

FRUSTRAFROIDE — Pra quem?

PROTEÍNA — Pro presidente do Flamengo, pro Valdir.

FRUSTRAFROIDE — (Ligeiramente impaciente) Ora, Proteína, é ele que fala, né? Você escuta. Você interpreta.

157 Com forte influência nas ciências e na filosofia contemporâneas, a fenomenologia formulada por Edmund Husserl no século XIX é uma ciência rigorosa (não exata) que se propõe a descrever os fenômenos da consciência (e não deduzi-los). Segundo Ewald et al (2008), ―ela se ocupa dos fenômenos vividos da consciência a partir de um conceito que é fundamental nesta tentativa de relançar a temática da percepção - a consciência intencional. O princípio da intencionalidade é que a consciência é sempre ‗consciência de alguma coisa‘, que ela só é consciência estando dirigida para um objeto. Bem como o objeto só pode ser definido em sua relação com a consciência, na medida em que ser objeto é sempre ser objeto para um sujeito. Poderemos falar então, já inspirados em Brentano, de uma existência intencional do objeto na consciência. Por sua vez, isto não quer dizer que o objeto está inserido na consciência como que dentro de um recipiente, mas que só há sentido de objeto para uma consciência, que nunca esgotaremos as possibilidades de sentido do objeto, que sua essência é sempre o termo de uma visada de significação e que sem tal visada não se poderia falar de objeto nem de uma essência de objeto. Isto significa que as essências não têm existência própria, que as essências não têm existência alguma fora do ato de consciência que as visa e do modo pelo qual ela os apreende na intuição. Sendo assim, se o objeto é sempre objeto para uma consciência, ele não será jamais objeto em si, mas objeto-percebido, pensado, experienciado. Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza, que num segundo momento entrariam em relação. Pelo contrário, consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que, podemos dizer, é co-originária. Se consciência é sempre consciência de algo e se o objeto é sempre objeto para consciência, é inconcebível que possamos sair dessa correlação, já que fora dela, não haveria consciência nem objeto. [...] A relação entre sujeito e objeto não é, então, uma relação entre duas realidades externas independentes, mas sim entre dois pólos correlativos da relação intencional na consciência. Perceber um objeto é intencioná-lo e torná- lo significativo. O chamado ego transcendental é visto, portanto, como o fundamento, a origem, de toda significação. Ele é doador de intenção e de significação. Logo, a fenomenologia husserliana pretendia liberar o nosso olhar para a análise do vivido, das experiências puramente vivenciais. E, esse vivido não poderia ser definido, mas apenas descrito‖. 215

PROTEÍNA — (Nervosa) Mas eu já interpretei tudo. Ele ameaçou o aeroviário de morte e sabe que não vai cumprir, só isso. O cachorro dele continua castrado, ele sabe que vai ficar assim para o resto da vida e... Ele deve se sentir revoltado, Frustra, contra isso. Que mais de interpretação eu posso dar?

FRUSTRAFROIDE — Mas não é agora que é pra você dar, Proteína. Será que você não sabe esperar não? Quando o Valdir Teixeira estiver deitado no divã você vai ver como você se inspira e interpreta numa boa. Calma no Brasil...158

PROTEÍNA — (Irritada) Calma no Brasil... Eu me virando pra atender um cliente seu, pra preservar o nome da família... e você no Havaí.

É muito fácil dizer calma no Brasil a pessoa estando no Havaí... claro!

FRUSTRAFROIDE — Calma, Proteína. Para de gritar. Eu vou pro Havaí, não adianta você entrar com repressão nem admoestação. Eu já te expliquei que é nada menos que uma descoberta científica que me levou a decidir essa viagem. Eu resolvi o problema da minha teoria dos incestos, Proteína. Será que você não entende a importância que isso tem pra mim?

(Nesse momento entra o FRUSTRINHA novamente carregado de livros e se aproxima da boca de cena preparando o palanque para recitar. Ao mesmo tempo os cachorros recomeçam a latir na fita e ouve-se também a voz de MARINETE

158 O bordão Calma no Brasil é título de uma marchinha carnavalesca de Antonio Nássara e Eratóstenes Frazão, lançada em julho de 1940, dois anos antes do Brasil declarar guerra aos países do eixo e quatro anos antes do envio da Força Expedicionária Brasileira para a Itália (HORTENCIO, 2016). Com o refrão cantado por Dircinha Batista ―Nós vivemos no melhor pedaço da terra / Calma no Brasil, que a Europa está em guerra‖, a marchinha retrata o Brasil como um país carnavalesco, festivo e pacífico. 216 tentando conter os latidos e fazer entrar os cachorros)

FRUSTRAFROIDE — O que aconteceu entre a D83 Havaí..., você Lúcia e o Pedro foi um trauma muito grande para nós, Proteína. Pra mim, pelo menos, não foi coisa que possa ficar de lado sem ser devidamente analisada. É preciso que eu publique uma teoria satisfatória dos incestos. Eu sinto que eu devo isso ao público mesmo, independente do problema das crianças... Uma vez que eu chegue ao Havaí... Você sabe que eu não mandei avisar nada a eles, certo, Proteína? Vai ser surpresa.

FRUSTRINHA — (Dramático, ad spectatores) Meu ser evaporei na lida insana159 D82 Ah cego (s.v.); ah mísero (s.v.) Do tropel de paixões que me arrastava Ah, cego eu cria, ah, mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana!

FRUSTRAFROIDE — (Sobre o Frustrinha) Para, Proteína! Pelo amor de Deus, meu último dia...

FRUSTRINHA — (Continuando) De que inúmeros sóis a mente ufana A existência falaz me não dourava Mas eis sucumbe a natureza escrava Ao mal que a vida em sua orgia dana

159 Os dois quartetos aqui citados correspondem a parte do soneto Meu ser evaporei na lida insana, de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), poeta lírico e satírico português de referência na escola árcade, em cuja vasta e diversa produção (idílios, odes, epigramas, canções, elegias, cantatas, cançonetas, epístolas) destacam-se os sonetos. Na peça aqui citada, o eu lírico lamenta e critica sua própria existência que, entregue ao hedonismo, perdeu, na mocidade, sua essência. 217

PROTEÍNA — (Severa, para o FRUSTRINHA) Chega. Frustrinha! Tá muito bom mas para porque seu avô vai viajar.

FRUSTRINHA — (Histérico) É Bocage, vovó!

PROTEÍNA — (Ocupada examinando o conteúdo da Valise Vuitton de FRUSTRAFROIDE) Que barato, né, Frustrinha? D82 né (s.v.) Mas seria melhor ainda se você contasse pra gente uma piada do Bocage...

FRUSTRINHA — Piada? (ELE ri histericamente)

FRUSTRAFROIDE — (Se barbeando apreensivamente) Não provoca, Proteína. Depois você vai ver o que vai acontecer...

FRUSTRINHA — (Ansioso) Diz ‗água meu netinho‘, vovó, por favor! Por favor, por favor, diz ‗água, meu netinho‘! D82 nem Diz, diz, diz, diz, diz!

PROTEÍNA — (Fazendo uma voz de bruxa sofrida) Água, meu netinho!

FRUSTRINHA — (Sádico) Azeite, vovozinha!160 (Enfático) De novo, vovó, pelo amor de Deus!

FRUSTRAFROIDE — (Irritado) Chega, Proteína. Vocês querem estragar minha viagem, hein?

PROTEÍNA — (Fazendo uma voz ainda mais patética) Água, meu netinho!

FRUSTRINHA — (Triunfante) Azeite, vovozinha! Azeite, vovozinha!

160 Em algumas versões da tradição oral de João e Maria, as duas crianças livram-se da velha senhora prendendo-a no forno e, enquanto ela suplica por água, as crianças ateiam-lhe azeite, que era utilizado como combustível. 218

(ELE explode numa gargalhada estridente e inicia um acesso de riso bastante convulsivo)

FRUSTRAFROIDE — (Para Proteína) Viu o que você foi fazer? Tem pena, Proteína. Você vai ter pelo menos três meses do Frustrinha só para você...

PROTEÍNA — (Severa, para o FRUSTRINHA) Agora chega, Frustrinha. Vai buscar o Aurélio, vai. (ELE ri convulsivamente)

FRUSTRAFROIDE — (Abanando a cabeça) É o fim da picada isso.

PROTEÍNA — Para, Frustrinha!

FRUSTRINHA — Azeite, vovozinha! Azeite, vovozinha!

FRUSTRAFROIDE — (Ele se aproxima ameaçadoramente do neto e o agarra) Quer saber de uma coisa? Vai rir na puta que o pariu!

(O FRUSTRINHA reage violentamente urrando e tentando se desvencilhar do avô, esperneando etc.)

PROTEÍNA — (Assustada com a cena) Para, Frustrafroide! Para, Frustrinha! Para com isso!

(O FRUSTRINHA, vendo-se dominado pelo avô, aplica-lhe forte mordida no braço)

FRUSTRAFROIDE — (Mordido, urrando) Aaaaiiih! Desgraçado! Anormal!

PROTEÍNA — (Histérica) Para, gente, de brigar!

FRUSTRAFROIDE — (Explodindo, para o FRUSTRINHA) Cachorro! 219

(Para PROTEÍNA, furioso) Ele me mordeu, porra! (Para o FRUSTRINHA, histérico) Se tu não fosse o estupor que tu é te quebrava logo os cornos! Mentecapto! (Perdendo completamente a cabeça e berrando na cara do FRUSTRINHA) Quer saber de uma coisa? Guerra Junqueiro é um poeta menor! Ouviu bem? E Bocage também! Poetas menores!!

FRUSTRINHA — (Aos uivos, chorando histericamente) Não! É mentira, vovó!

FRUSTRAFROIDE — Chama a Marinete, Proteína!

PROTEÍNA — (Nervosa, gritando) Marinete! (Ad spectatores) Marinete!

FRUSTRINHA — (Histérico) Socorro! Socorro!

MARINETE — (Entrando) Já vai! Nossa Senhora, Dona Proteína, o que que foi?

PROTEÍNA — (Severa, para o FRUSTRINHA) Você não deve morder seu avô nem por pensamento, viu?

FRUSTRINHA — (Aos urros) Socorro! Socorro!

FRUSTRAFROIDE — (Autoritário) Leva ele já daqui, Marinete! (MARINETE agarra o FRUSTRINHA e começa a arrastá-lo para fora de cena)

PROTEÍNA — (Apreensiva) Coitado, Frustrafroide: ele só tem quatro anos...

FRUSTRINHA — (Aos berros enquanto arrastado por MARINETE) D82 (trecho linear, sem estrutura em verso) Meu fim demando ao céu pela certeza161

161 Trecho de Camões, grande Camões, quão semelhante, outro soneto de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). 220

De que só terei paz na sepultura!

FRUSTRAFROIDE — Você tem que ser mais enérgica com ele, Proteína. Principalmente na minha ausência. Como é que vai ser você aqui sozinha com a Marinete pra tomar conta dessa besta, e trabalhando do jeito que você vai estar...

PROTEÍNA — Ah, é? Eu é que pergunto como é que vai ser! Como se você cooperasse alguma coisa na educação do Frustrinha. Psicanalista de merda você: só sabe dizer barbaridade! Como é que você vai dizer que o poeta lá não presta, Frustrafroide?! Você traumatizou o garoto!

FRUSTRAFROIDE — Olha, se eu traumatizei tá bem traumatizado. Nem vem com besteira pra cima de mim! Eu sou o maior psicanalista brasileiro: tô cagando e andando!

PROTEÍNA — (Fleumática) E o pior é que é verdade mesmo. E quanto mais você dá provas disso mais a sua reputação vai fazer jus ao contexto social... Você já soube da Marinete?

FRUSTRAFROIDE — (Mal-humorado) O quê? D82 que (s.a.)

PROTEÍNA — Ela agora quer um salário também. Ela veio me dizer que sem você aqui que o trato não pode ser mais o mesmo.

FRUSTRAFROIDE — (Indignado) O quê? Mas essa mulher perdeu o juízo ou o quê? Então ela não sabe que você está D82 que (s.a.) me substituindo, que você vai tratar os analisandos da mesma maneira, que tudo vai continuar exatamente da mesma forma?

PROTEÍNA — Eu disse pra ela. Mas ela respondeu que o aprendizado que ela estava fazendo com você é insubstituível e que o Frustrinha está crescendo cada vez mais e dando cada vez mais trabalho...

FRUSTRAFROIDE —Vai, chama ela. (Gritando) Marinete! Marinete! 221

PROTEÍNA — (Gritando) Marinete! Vem cá por favor que o Doutor Frustrafroide quer falar com você! (Para Frustrafroide) Ela disse que trabalhar em troca de treinamento psicanalítico é escravidão. (Entra MARINETE)

FRUSTRAFROIDE — Eu vou ser muito franco com você, Marinete: você não quer mais ser escrava?

MARINETE — (Apreensiva) Quero sim, senhor...

FRUSTRAFROIDE — Então? Que negócio é esse de exigir pagamento?

MARINETE — É o custo de vida, doutor. Não tá dando. O senhor sabe, o problema da inflação, a crise econômica...

FRUSTRAFROIDE — (Paciente) Tá certo. Então você me responde uma pergunta. De quanto foi a taxa inflacionária esse ano?

MARINETE — Cem por cento, doutor.

FRUSTRAFROIDE — Então? Você não tem salário, Marinete. Isso significa que você é dos poucos privilegiados que não são afetados pela inflação. Você não ganha nada, certo?

MARINETE — Eu não tenho nada na vida, doutor.

FRUSTRAFROIDE — O seu trabalho é pela troca direta dos conhecimentos que você está recebendo. O aprendizado e o treinamento que estão enriquecendo você. É o salário que aliena o proletário162, Marinete. Você ainda não leu isso?

162 Há uma referência parafrástica ao pensamento marxista nas menções de alienação, proletariado e trabalho, uma vez que a teoria da alienação é uma das mais centrais e complexas da obra de Karl Marx (1818-1883), vindo a figurar e a desenvolver-se ao longo de seus estudos (MARX, 2004 [1844]). Tendo analisado o contexto de produção 222

MARINETE — Ainda não senhor. D82 não (s.v.)

FRUSTRAFROIDE — Aqui você tem casa e comida. Você sabe o que isso significa?

MARINETE — Eu gostaria, o senhor não vai me levar a mal não, era de ter carteira assinada: como doméstica163! Eu acho que não quero mais ser psicanalista não senhor.

PROTEÍNA — Você quer abandonar o Frustrinha, Marinete?

MARINETE — Não, senhora. Eu quero ser doméstica. Eu queria ser babá dele em vez de terapeuta. E abrir uma D82 Não (s.v.) caderneta de poupança.

FRUSTRAFROIDE — (Insinuante) Você não se sentiria humilhada de ser uma simples empregada? Afinal de contas você é preta e... Você escapou da inflação, Marinete. Cem por cento de nada é zero: são as vantagens dessa forma de compensação direta que é a nossa cooperação. O seu aprendizado terapêutico e os cuidados que você dispensa ao Frustrinha.

PROTEÍNA — (Indignada) Não seja mal agradecida, Marinete! É um defeito que mancha a honra e o código do profissional. (Os cachorros recomeçam a latir mais alto do que nunca na fita)

industrial da Europa do século XIX, Marx entende a alienação como não reconhecimento do produto final do trabalho pelo trabalhador (comum no capitalismo industrial fordista), o que tem como consequência a submissão cada vez mais profunda do trabalhador ao sistema. 163 A Lei No 5.859, de 11 de dezembro de 1972, assinada pelo então presidente Médici, ―dispõe sobre a profissão de empregado doméstico e dá outras providências‖ (BRASIL, 1972), assegurando, conforme Art. 2º, Carteira de Trabalho e Previdência Social. Regulamentada após decreto em 1973, a lei passou a indicar que ―Na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado doméstico serão feitas, pelo respectivo empregador, as seguintes anotações: I - data de admissão. II - salário mensal ajustado. III - inicio e término das férias. IV - data da dispensa‖ (BRASIL, 1973). Em que pese a lei ter sido uma importante conquista para os direitos das trabalhadoras domésticas, ainda em 2016, tinham-se apenas 25,8% das empregadas domésticas ativas com carteira assinada (LAGÔA, 2016), o grave quadro de irregularidades só começou a se modificar lentamente a partir da Emenda Constitucional 72/2013 que instituiu multa ao empregador. 223

FRUSTRAFROIDE — Você não botou os cachorros pra dentro, Marinete? Vai botar, vai botar!

PROTEÍNA — (Sádica) Vai botar, Marinete!

FRUSTRAFROIDE — (Enérgico) Você não consegue sequer controlar três simples cachorrinhos e quer ser psicanalista! E ainda por cima me vem com esse negócio de carteira assinada. Ora, essa é muito boa: vai já buscar a Desinibida, o D82 Ora (s.v.) Bambamzinho e o Fileira!

PROTEÍNA — (Orgulhosa, dizendo o nome completo do cachorro) Fileira de Santo Cristo!

MARINETE — (Saindo) Sim, senhora. D82 Sim (s.v.)

FRUSTRAFROIDE — (Sádico, para MARINETE que ainda se encontra em cena) Escrava!

PROTEÍNA — (Sádica) Empregada! (MARINETE desaparece e os dois explodem numa gargalhada conivente)

FRUSTRAFROIDE — Eu posso contar com você, não, Proteína, para não acontecer nada na minha ausência? Nada, D82 não (s.v.) nadinha?!

PROTEÍNA — Nadinha, Frustra!

(ELES se abraçam) (ELES se abraçam enquanto as luzes diminuem até a obscuridade)

(Enquanto Frustrafroide e Proteína estão abraçados, Marinete começa a trazer a bagagem do professor para a sala. Um cliente 224 do professor, mais exatamente João Mirabolão Maracatu do

Pelimpé, deita no divã e começa a sua ''confissão". As atividades D82 Mirabolão. preparatórias para a viagem do professor continuam (s.parêntese) normalmente durante a sessão de análise de João Mirabolão.)

JOÃO MIRABOLÃO — Minha primeira experiência Trecho produzido a partir do conto Um galo masturbatória foi aos oito anos de idade num dia de Santo Antonio para esculápio trepando no pau de sebo no meio de incrível aglomerado. As (ATHAYDE, 1974, p.33-34) sensações agradáveis na minha virilha tiveram início tão logo eu ergui o pé do chão agarrando o enorme símbolo fálico para começar a trepar. Quando eu já estava mais ou menos no meio da D82 obstinacao ; forca escalada e meus órgãos copulatórios em plena atividade frictiva, a turba lá embaixo começou a se dar conta da minha obstinação muito embora ignorasse que força me impelia além da cobiça pela cédula que tremulava na ponta do mastro. "Aquele vai com vontade", ouvi em voz de velho em meio tom. Eu ia mais que com vontade e àquela altura já estava nuns três quartos do poste. ―Já ganhou! Já ganhou.‖ eram os gritos que agora enchiam o ar. Com efeito eu chegava ao cume da experiência, embora não possa chamar aquilo de vitória; a excitação também atingia o seu clímax, nada podia conter o orgasmo; no que eu arrebatei a cédula sexual e exultei nas fraquezas do êxtase, já estava despencando pau-de-sebo abaixo e mais uma fração de segundo esborrachando- me no chão. Acordei no dia seguinte num quarto branco e comprido. Minha solidão não durou muito pois logo comecei a ser visitado pela família em grupos de quatro ou cinco para não apinhar a enfermaria. Meu pai, percebendo que eu estava vivo no interior do chumaço, me passou ali mesmo uma severa 225 descompostura, apostrofando meus perplexos irmãos se eles eram capazes de tamanha molecagem, fazendo voz tremida e abanos de cabeça em sinal de capitulação ao Mal. O saldo daquela punheta de Santo Antonio tinha sido duas costelas quebradas, uma perna, um omoplata luxado, um joelho lixado e um desengonço geral. O principal argumento de papai era que o dinheiro ganho no pau-de- sebo não fora bastante para cobrir as despesas do acidente.

(Marinete depois de trazer todas as malas entra com a correspondência e sai arrastando o cliente. Proteína escovou um PRIMEIRO ATO/Cena II sobretudo do professor que a esta altura já está vestido para a viagem.) (O mesmo cenário. Vê-se a mais a bagagem do Professor FRUSTRAFROIDE pronta para a partida. Ela consiste numa mala preta grande, uma mala média de metal prateado e a valise Vuitton da cena anterior. PROTEÍNA está escovando o sobretudo de FRUSTRAFROIDE que remexe numa pasta de papéis. Entra MARINETE com a correspondência que acaba de chegar)

MARINETE — O correio, Dona Proteína. (Proteína examina o maço de cartas enquanto MARINETE sai de cena)

PROTEÍNA — (Achando uma carta) Eu sabia! Carta do Havaí! Hummm... D82 histéricamente (ELA abre a carta e lê para si mesma com avidez. Ri histericamente)

FRUSTRAFROIDE — Qual é a graça, Proteína? Não vai me dizer que eles estão voltando pra cá. . . D82 para

226

PROTEÍNA — Voltando? Quem? Os Desinibidos? (ELA tem um acesso de riso) É um verdadeiro ultimatum a carta, Frustra! Eles anunciam que se a gente não mandar mais dinheiro eles vão seguir viagem para a Indonésia...

FRUSTRAFROIDE — O quê? Você está brincando, Proteína! Você deve ter lido mal...

PROTEÍNA — Indonésia, sim senhor, Bali, Indonésia: tá aqui... Diz que lá é o único lugar onde dá pra viver com D82 para trezentos dólares por mês.

FRUSTRAFROIDE — (Fleumático) Eles dão prazo?

PROTEÍNA — Dão. Duas semanas de prazo. A contar do aniversário do Pedro. Quer dizer... (ELA conta nos dedos) Quinta, sexta, sábado... Você ainda tem dez dias para chegar lá.

FRUSTRAFROIDE — Bom, eu estou indo agora, Proteína. Não é exatamente esse o problema...

PROTEÍNA — Vê se você não atrasa no Chile, Frustra.

Senão quando você chegar lá eles vão estar na Indonésia. Aí é que eu quero ver.

FRUSTRAFROIDE — Não seja pessimista, Prote.

FRUSTRAFROIDE — (A campainha toca) Ih, Proteína, agora é que eu me lembrei: deve ser o jornalista

227 da Globo.164 do Globo.

Como é que vai ser? Acho que é melhor dizer que eu já fui, não? Adiar a entrevista...

PROTEÍNA — Não seja pessimista, Frustra.

MARINETE — (Entrando) Está aí o Jurandir, do Globo.

PROTEÍNA — Faz entrar, Marinete.

FRUSTRAFROIDE — Eu não quero me atrasar, hein? Se ele demorar com a entrevista você corta, tá?

PROTEÍNA — Ué, não é ponte aérea para São Paulo que você vai pegar? Se perder um você pega o outro, não?

FRUSTRAFROIDE — É porque você não conhece o Jurandir.

PROTEÍNA — Por quê? Como é que ele é?

FRUSTRAFROIDE — Você vai ver. (Entra JURANDIR de gravador a tiracolo. FRUSTRAFROIDE vai ao seu encontro) Como vai, Jurandir? Você está bom?

JURANDIR — (Ligeiramente afetado) Ah, curioso, doutor, hoje eu estou curioso demais: o senhor como vai? Deixa eu ir ligando logo o gravador que é para o senhor não ter nenhum tipo de álibi.

FRUSTRAFROIDE — Mas álibi não quer dizer isso, Jurandir...

164 É provável que se refira ao programa Globo Repórter (como indica a fala de Jurandir, mais adiante) ou à emissora Rede Globo de televisão, que transmite o programa desde 1973 até a data atual (GLOBO, 2017 [2010]). 228

JURANDIR — (Excitado, ligando o gravador) Pera aí, pera aí um segundinho só... Pronto, acho que está... (Aproximando o microfone de FRUSTRAFROIDE) Agora pode. O que que o senhor já ia declarando como álibi?

FRUSTRAFROIDE — (Apresentando PROTEÍNA) Minha mulher, Proteína.

JURANDIR — Ah, a senhora também, Madame! Muito prazer! Bom, eu não vou fazer segredo que quero colher material sobre o incesto dos seus filhos. (ELE aproxima o microfone da boca de PROTEÍNA)

PROTEÍNA — O senhor aceita um cafezinho?

JURANDIR — Foi um escândalo que marcou muito a opinião pública. Vocês admitem isso, não?

FRUSTRAFROIDE — Bom, eu estou seguindo para o Havaí dentro de alguns minutos e, se não me engano, era esse o motivo da entrevista: essa pausa na minha carreira psicanalítica.

JURANDIR — Sim, mas isso tem tudo a ver com o incesto na família de vocês, não é mesmo? Claro, fofoca também é D82 mesmo (s.v.) cultura, não é mesmo, dona Proteína? E os adolescentes que estiveram envolvidos no caso estão no Havaí, não é isso, esriverem ; por que doutor? (Ameaçador, para FRUSTRAFROIDE) O senhor, depois de quatro anos de distanciamento, vai ao encontro de (s.a.) seus filhos incestuosos: por quê?

PROTEÍNA — (Respondendo pelo marido) Bom, o incesto simboliza a sociedade permissiva, certo? Frustrafroide nunca bateu naquelas crianças, isso eu quero que fique bem claro.

JURANDIR — (Excitado, aproximando o microfone da boca de FRUSTRAFROIDE) Doutor Oliveira Frustrafroide: por D82 Porque?? quê?? Por quê??

FRUSTRAFROIDE — (Ligeiramente irritado) Faço uma pausa na minha carreira porque cheguei aos estágios superiores 229 em minha teoria dos incestos. Pretendo levar minhas conclusões ao Havaí.

JURANDIR — (Decidido) Há notícia de que o senhor estaria para ganhar um segundo neto incestuoso: o senhor daria a confirmação dessa informação e no caso afirmativo qual seria a sua reação ao segundo fruto da união proibida?

PROTEÍNA — É mentira! Não tem outro não senhor.

JURANDIR — (Paciente, para FRUSTRAFROIDE) Eu me refiro à possibilidade de caso afirmativo: qual seria a sua primeira reação, espontânea...

FRUSTRAFROIDE — Bom, eu...

PROTEÍNA — (Interrompendo) Frustrafroide parte hoje diretamente ao Havaí. É uma pausa na carreira dele como consequência de uma descoberta das mais importantes cientificamente falando, na teoria dos incestos justamente...

JURANDIR — (Para PROTEÍNA) A senhora acaba de declarar, e está gravado naturalmente, que o doutor Frustrafroide, abre aspas, ‗nunca bateu naquelas crianças‘. Está gravado, a senhora tem que admitir isso textualmente quer queira quer D82 aspas (s.v.) não queira. A senhora quer que eu volte a fita para ver? Para se ouvir a senhora mesma?

PROTEÍNA — Não precisa não.

JURANDIR — Agora, teria sido isso uma das causas do incesto propriamente dito, isto é, proveniente disso, ou a senhora mesma batia em seus filhos?

PROTEÍNA — Bom, eu diria que uma avaliação adequada da relação entre incesto entre irmão e irmã e a punição física 230 por parte dos genitores tem que ser no contexto da própria sociedade permissiva. O que vem a permitir essa sociedade permissiva? É esse o foco vivencial que... por assim dizer...

JURANDIR — (Interrompendo, para FRUSTRAFROIDE) Doutor Oliveira Frustrafroide, respondendo diretamente ao Globo Repórter: o senhor aprova a punição física dos filhos?

FRUSTRAFROIDE — (Bonachão) Bom, sob um certo aspecto é importante bater sim...

PROTEÍNA — É o próprio aspecto do foco vivencial! A economia emocional, a própria couraça caracterológica,165 ora! (Entra o FRUSTR1NHA carregando um imenso dicionário) Só a análise profunda desses condicionamentos que pode expor o eixo punição/incesto a nível dos genitores. É o reflexo da permissividade da cultura no seio da própria família.

FRUSTRINHA — (Que colocou o dicionário no chão e subiu sobre ele para recitar) 166 Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões que me arrastava

Ah, cego eu cria ah, mísero eu sonhava D82 Ah (s.v.); ah (s.v.) Em mim quase imortal a essência humana

De que inúmeros sóis a mente ufana A existência falaz me não dourava Mas eis sucumbe a natureza escrava

165 Abordam-se aqui alguns termos de diferentes correntes da psicanálise: o foco vivencial (que pode ser entendido como remissão à vivência de satisfação, comentada anteriormente), a economia emocional e a couraça caracterológica. Laplanche e Pontalis (2001 [1982], p.121) pontuam como econômico ―tudo o que se refere à hipótese de que os processos psíquicos consistem na circulação e repartição de uma energia quantificável (energia pulsional), isto é, suscetível de aumento, de diminuição, de equivalências‖, o que supõe uma quantificação relativa da carga energética investida em determinada reação afetiva. Já a couraça caracterológica é um termo proposto por Reich em 1933, quando publicou Análise do Caráter (REICH, 1933), postulando que ―como proteção contra os ameaçadores estímulos exteriores e interiores, o ego estrutura- se defensivamente de forma tão organizada, que, na situação analítica, ela pode adquirir a dimensão de uma verdadeira couraça resistencial. Em razão disso, REICH propôs alguns recursos técnicos para penetrar nas repressões inconscientes‖ (ZIMERMAN, 2001, p.64). 166 Cita-se novamente o soneto Meu ser evaporei na lida insana, de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). 231

Ao mal que a vida em sua orgia dana

JURANDIR — (Interrompendo, para PROTEÍNA) Mas que que é isso, minha senhora? A senhora preparou alguma coisa D82 qu^que pra seu famoso neto?

PROTEÍNA — (Numa reação atrasada, explodindo) Frustrinha! Cala a boca, já! Ora essa, filhinho, na frente do jorna- lista! Você já recitou essa antes!

FRUSTRAFROIDE — (Orgulhoso, para JURANDIR) Ele tem traços do avô. Eu próprio recitava bem como o diabo!

JURANDIR — (Malicioso) Ele deve mesmo ter todos os traços dos avós: pelos dois lados, não é?

PROTEÍNA — (Orgulhosa) Até o crescimento dele está melhorando!

FRUSTRAFROIDE — (Para o FRUSTRINHA) Muito bem, meu jovem! É Bocage, certo?

JURANDIR — (Simpático, para PROTEÍNA) Porque ele só tem quatro anos, não é? Que coisa, sô, crescer assim numa boa... e ainda por cima inteligente...

FRUSTRINHA — (Recomeçando) Camões, grande Camões, quão semelhante167 Acho teu fado ao meu quando os cotejo Igual cousa nos fez largando o Tejo Arrostar com sacrílego gigante

JURANDIR — (Interrompendo) Como é que começou, hein, dona Proteína, essa vocação dele para as letras? Porque a

167 Trata-se da primeira estrofe de um soneto de Bocage, em que o eu lírico assemelha-se a Camões na lida por cantar o povo português e na desesperança ante os desígnios da nação e de seu próprio destino. 232 senhora disse que não batia, não é?

PROTEÍNA — Bom, eu vou explicar ao senhor...

FRUSTRINHA — Como tu junto ao Ganges sussurrante168 Da penúria cruel no horror me vejo

PROTEÍNA — (Interrogando, PROTEÍNA — (Interrompendo, para o FRUSTRINHA) Espera aí um pouquinho, meu filho, que vovó está explicando tudo pro moço. (Para JURANDIR) Bem, pra começar, a partir da relação incestuosa de meus filhos, eu diria que...

JURANDIR — (Interrompendo) Que já é mais que do conhecimento dos nossos leitores, esse público amigo que nos considera e que nos honra com o seu patrocínio. Eu me lembro como se fosse ontem.

Foi o Josemar que fez a cobertura pra gente.

Foi o grande escândalo da década dos setenta: quanto a isso a senhora pode ficar tranquila...

FRUSTRINHA — Como tu gostos vãos que em vão desejo169

Também carpindo estou saudoso amante D82 carpinho

PROTEÍNA — (Sentimental) Ele é o filho dos meus filhos.

JURANDIR — (À parte) Isso não é mais um filho, isso é uma prosopopeia, pô.

168 Identificam-se, aqui, dois versos da segunda estrofe do soneto Camões, grande Camões, quão semelhante, de Bocage. 169 Terceiro e quarto versos da segunda estrofe de Camões, grande Camões, quão semelhante, de Bocage. 233

(Para PROTEÍNA, sorridente) Mas o crescimento que a senhora vinha comentando: foi diagnosticado logo após o nascimento pelos médicos ou foi uma surpresa para os pais?

FRUSTRAFROIDE — Bom, para os pais eu acho meio difícil, não? No Havaí, naquela distância estúpida nada pode ser mais surpresa, ou melhor, tudo fica sendo surpresa...

JURANDIR — (Surpreso pelo tom filosófico de FRUSTRAFROIDE; excitado) O que, doutor? Ah, não! Isso tem que ficar bem gravado!

(ELE aproxima o microfone da boca de FRUSTRAFROIDE)

O senhor poderia repetir? A surpresa de que mesmo? A surpresa dos filhos no Havaí... Com quê?

PROTEÍNA — Com a notícia do crescimento do Frustrinha.

JURANDIR — (Segurando o microfone perto da boca de FRUSTRAFROIDE mas falando para PROTEÍNA como se fosse o marido. Nervoso) O senhor poderia repetir? A surpresa de que mesmo? Ah, claro, dos filhos no Havaí, tudo bem... E... a doença dele, quer dizer, é um tipo de gigantismo, certo, dona Proteína? E os médicos? Eles atribuíram a doença, o estado dele, ao detalhe dos genitores serem irmão e irmã?

FRUSTRAFROIDE — Claro que atribuíram. Isso 234

não tem mistério nenhum.

FRUSTRAFROIDE — O que permaneceu inexplicado foi o lado psicológico, naturalmente, porque requeria uma teoria adequada dos incestos, não apenas coerente com o corpo doutrinário da psicanálise mas também adequada ao nosso meio ambiente peculiar: clima, cultura etc...170

FRUSTRINHA — (ELE se aproxima e recita para o microfone do gravador de JURANDIR)

O melro eu conheci-o171 Era negro, vibrante, luzidio Madrugador jovial Logo de manhã cedo Começava a soltar dentre as folhas do arvoredo Verdadeiras risadas de cristal

PROTEÍNA — (Interrompendo) Não eram ‗gargalhadas de cristal‘ não, meu anjo? Olha que o verso fica de pé quebrado...

(Contando as sílabas nos dedos) Ver-da-dei-ras gar-ga-lha-das de cris-tal... Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, D82 Um. nove, dez... onze! Onze sílabas?

JURANDIR — (Perplexo) Por que, dona Proteína? Doutor Oliveira Frustrafroide, em nome da rede Globo: por quê? D82 Por quê?, (c. v.) ; Doustor

170 Provável referência ao estudo do incesto sob perspectiva psicanalítica desenvolvido por Lacan, que tomou por base o trabalho do antropólogo Lévi-Strauss sobre o mesmo tema. Em Estruturas elementares do parentesco (LÉVI-STRAUSS, 1949), propõe-se que a universalização da proibição do incesto marca a transição da natureza à cultura, o que suscita uma reavaliação dos estudos das sociedades e um desmonte da noção de família, substituída pela ideia de parentesco (NOLL, 2017). É no contato com Lévi- Strauss, compreendendo a dimensão cultural e social do incesto, que Lacan encontrou a solução teórica, a partir da estrutura de linguagem, para reelaborar a teoria do Complexo de Édipo freudiano (ROUDINESCO, 1993). 171 Lêem-se aqui os versos iniciais de O Melro, um poema narrativo que compõe A velhice do Padre Eterno (1885), conjunto de poemas anticlericais de Guerra Junqueiro. Com 328 versos, o poema evidencia um abade que, para vingar-se de um melro que comia as sementes de seu plantio, aprisionou em uma gaiola o ninho com seus filhotes. A ave, em desespero, não tendo êxito em livrar suas crias do cárcere, e ouvindo o cura ameaçar de comê-los no jantar, envenenou a si mesma e a toda ninhada. Tal feito comoveu o clérigo, que, arrependido e deslumbrado com a perfeição da natureza, desfez-se da Bíblia, reclamando sua obsolescência. 235

FRUSTRAFROIDE — Conta bem que são dez.

FRUSTRINHA — (Insistente) E nisso o padre-cura titubeante172 Quase desfaleceu atônito de horror!

FRUSTRAFROIDE — (Para PROTEÍNA, impaciente, sobre o FRUSTRINHA) Agora basta, Proteína; eu disse a você... (Para JURANDIR) Infelizmente eu devo partir: imediatamente, o senhor vai me desculpar...

JURANDIR — (Ofendido) Mas é isso precisamente, doutor: a partida do senhor é que é o objetivo primordial da matéria! Para o Havaí, não é mesmo?

PROTEÍNA — (Cochichando alto para o FRUSTRINHA) Para com isso, menino! Vai lá pra fora, vai. Vai chamar a D82 Marinte Marinete. Vai... (O FRUSTRINHA sai)

FRUSTRAFROIDE — (Para JURANDIR, estóico) Olha, eu compreendo que você é um profissional. Eu vou explicar D82 estoico (s.a.) rápidamente (c. a.) tudo para você mas rapidamente porque eu realmente tenho que apanhar um avião às onze horas, estou de malas prontas Apnhar como você está vendo... Mas não tem mistério nenhum: no decorrer desses últimos anos eu consegui resolver minha teoria dos incestos cuja necessidade tinha sido evidenciada pelo nascimento de meu neto excepcional, o Frustrinha, que você já teve o prazer de conhecer. Agora já posso ir ao encontro dos meus filhos com uma teoria devidamente racional, apropriada para essa situação. O que poderia ser mais lógico ou mais simples do que isso? Um pai que vai ao encontro de seus filhos, como qualquer outro. O fato de eu ser um psicanalista de certo renome e, de certa forma...

JURANDIR — (Interrompendo, lisonjeiro) De certo renome não senhor: o senhor é apenas o maior psicanalista brasileiro de todos os tempos! Não sou eu que estou dizendo isso não, todo mundo sabe disso. O senhor já ultrapassou as fronteiras

172 Tratam-se de versos do poema O Melro, de Guerra Junqueiro (1885). 236 mesmo há muito tempo... da pátria... e... Inclusive...

FRUSTRAFROIDE — Realmente isso é tudo o que eu tenho, que eu posso dizer a você, esse aspecto mais natural ou subjetivo da coisa, sabe?

JURANDIR — (Malicioso) Mas e a teoria?

PROTEÍNA — (Interrompendo) Qual delas?

JURANDIR — Essa de agora, naturalmente. A própria, como dizer, teoria do Havaí, claro, por que não?

FRUSTRAFROIDE —(Estóico) O que que tem? Não vai ser por falta de título, nem pensar... Não tem nada escrito ainda: D82 quê (c.a.); nota-se isso é uma coisa que eu queria que você notasse bem...

JURANDIR — (Ofendido) Mas é o gravador! O senhor pode falar tudinho, o que o senhor quiser, que está gravado para todo o sempre. Notasse bem como assim, portanto? (ELE toma nas mãos o gravador carinhosamente como que para confirmar suas palavras enquanto FRUSTRAFROIDE continua)

FRUSTRAFROIDE — Em matéria de preto no branco, que é o que interessa, não tem nada. O livro nem tem título ainda! O que não me impede de revelar informalmente o conteúdo dele: justamente explicando que é a resolução existencial, que no meu caso é o mesmo que dizer psicanalítica, do incesto 237

ocorrido em minha família. Da mesma forma...

JURANDIR — (Interrompendo, histérico) O quê? Ah, não! Para, para, para, para, para! Corta tudo! Essa bosta não D83 O quê?? gravou! (ELE dá um tapa no gravador) Nadinha! O que mesmo que o senhor ia dizendo? Da teoria do Havaí, não é mesmo? Dona Proteína! (ELE começa a chorar e acaba se ajoelhando diante de PROTEÍNA) Eu não sei o que dizer! É D82 PORTEÍNA essa maldita tecnologia, dona Proteína! A gente não pode fazer mais nada sem depender! (Para FRUSTRAFROIDE) O senhor tem que me perdoar! Ai, minha Santa Margarida!

FRUSTRAFROIDE — (Profundamente encabulado) Não tem nada não. Não é o fim do mundo, meu amigo. Foi só um esboço mesmo que de uma forma ou de outra eu ia ter que reformular e...

JURANDIR — Uma entrevista autêntica, original, colhida no momento crítico, com o psicanalista Oliveira Frustrafroide: buáááá..... (ELE chora abundantemente)

PROTEÍNA — Não fica assim não, por favor! (Gritando) Marinete! Marinete! (Para JURANDIR) Eu vou ver um copo d‘água com açúcar pro senhor!

(ELA se dirige para o lado da porta da cozinha) Marinete!

FRUSTRAFROIDE — (Decidido, para JURANDIR) Olha, infelizmente não vai dar para eu tentar recapitular ou dizer mais nada pra você porque eu realmente tenho que estar no aeroporto dentro de cinquenta minutos.

JURANDIR — (Patético) Eu o acompanho! Não, 238

faço questão, faço questão fechada, doutor... Foi uma desgraça, num instante eu conserto!

JURANDIR — (ELE se precipita sobre o gravador. Extremamente nervoso) Ele não quebrou, isso eu posso lhe garantir: ele só parou, foi isso.

FRUSTRAFROIDE — (Ligeiramente irritado) O que não parou foi o tempo, meu caro Jurandir: são dez e meia da manhã!

(Entra PROTEÍNA com um copo d’água com açúcar na mão e é logo seguida por MARINETE)

MARINETE — (Que só agora aparece) O que que foi, dona Proteína?

PROTEÍNA — (Levando o copo a JURANDIR, irritada) Você não tá vendo, Marinete? Onde você estava, mulher, pelo amor de Deus!? (JURANDIR que examinava o gravador freneticamente bebe o copo d'água com açúcar para alívio geral) D82 frenéticamente (c.a.)

JURANDIR — (Sentimental) Muito obrigado, Dona Proteína.

(Subitamente frenético de novo, para FRUSTRAFROIDE) Eu vou ao aeroporto levar o senhor: no automóvel dá tempo! D82 Súbitamente (c. a.) Ah, pelo amor de Deus, eu sei que ele não pode estar quebrado, doutor Frustrafroide! Eu garanto pro senhor que ele não quebra mais! A ideia que eu perdi tudo o que o senhor chegou a declarar, a nos ensinar mesmo, a esse imenso público, nesse imenso Brasil, porque ela vai sair em todo o território, doutor, nacional: isto já ficou mais do que decidido! (ELE recomeça a mexer no gravador com frenesi)

MARINETE — (Prestativa) A senhora não quer que eu faça uma água com açúcar, dona Proteína, pra ele?

PROTEÍNA— (Irritada) Já dei, Marinete: por que que você acha que eu estava te chamando, hein?

239

FRUSTRAFROIDE — (Generoso, para JURANDIR) Eu prometo que, uma vez de volta do Havaí, eu lhe concedo a pri- meira entrevista: conto tudo em primeira mão!

MARINETE — Desculpe, dona Proteína. Vai precisar de mais alguma coisa?

JURANDIR — (Que de repente conseguiu fazer funcionar o gravador. Nervosíssimo) Pronto! Eureca! Ai de mim, doutor Frustrafroide, ah, se não fosse pelo senhor... Pronto, pronto, pronto: prontinho, doutor! Ele tá rodando de novo, registrando nossas vozes humildemente, imortalizando mesmo, o senhor eu quero dizer, cujas palavras são imortais de qualquer maneira, pela própria ciência representada...

FRUSTRAFROIDE — Eu realmente tenho que ir embora. (Para MARINETE que ia saindo de cena) Espera aí, Marinete! (Para JURANDIR) Eu estou à sua inteira disposição para a sua pergunta final porque, realmente, eu devo... sair, não vai ser possível dar continuação e...

JURANDIR — (Extremamente ansioso) Então sobre o Valdir Teixeira!

FRUSTRAFROIDE — (Sério, ligeiramente indignado) Infelizmente não vai ser possível não, Jurandir. Ou melhor, para não decepcionar você eu vou gravar uma declaração, mas vai ser uma frase só... (MARINETE, deduzindo que sua presença não é mais necessária, se dirige novamente para a cozinha)

FRUSTRAFROIDE — Pera aí, Marinete! Olha, não some agora não que eu estou saindo nesse minuto, tá bom?

PROTEÍNA — (Severa para MARINETE que voltou ao centro do palco) Marinete! Dá uma boa escovada rápida no sobretudo do doutor Frustrafroide! Tá aí

a escova. a escova! JURANDIR — (Nervoso) Mas o senhor, pelo amor de Deus, vai me permitir o seguinte:...

240

PROTEÍNA — (Interrompendo, fleumática) Você vai de ponte aérea, né, Frustra? Se não for onze e meia vai meio-dia... (FRUSTRAFROIDE lança um olhar de raiva para PROTEÍNA)

FRUSTRAFROIDE — (Com autoridade, para MARINETE) Marinete! Chama um táxi especial!

MARINETE — (Saindo rápida e compenetradamente)Sim senhor.

JURANDIR — (Patético) Ah, por favor, doutor, posso ir no táxi especial com o senhor? D82 Ah (s.v.)

É só hoje, doutor: o gravador tá uma uva, agora, joinha mesmo. Aí o senhor explica tudo, agora, eu só publico o que o senhor mandar: nada daquelas entrevistas semi-improvisadas, sabe, que o entrevistador toma nota nas coxas, sem nada...

FRUSTRAFROIDE — (Severo, para todos) Está tudo mais do que claro: eu estou partindo já para o Havaí. Adeus! Feliz Natal para vocês todos e um oitenta e dois cheio de lazeres e prosperidades incomparáveis!

JURANDIR — Mas que é isso doutor! Por caridade, o senhor prometeu uma declaração única mas decisiva que o senhor vai gravar na fita. O senhor acabou de dizer que era uma frase só mas pra não me decepcionar...

FRUSTRAFROIDE — (Consentindo para se livrar de JURANDIR, prosaico) Tá, tudo bem. Pode perguntar. Proteína! Tá tudo pronto? (Aproximando-se das malas) Uma, duas, a valise Vuitton. . . Passaporte, dinheiro, máquina fotográfica... Que mais?

PROTEÍNA — É melhor conferir tudo mais uma vez. Não custa nada.

JURANDIR — (Enfático) Olha, eu vou lhe fazer a pergunta mas, já que o senhor está com essa pressa toda, eu preferiria 241 que o senhor respondesse sim ou não.

FRUSTRAFROIDE — (Ocupado, tendo aberto

a mais grande a mala grande D82 grnade para conferir seu conteúdo; fleumático) Ah, você prefere sim ou não, é?

JURANDIR — (Expansivo, rindo) Quá, quá, quá, quá, quá, quá, quá... Como o senhor é espirituoso! Olha, eu confesso D83 quá quá quá quá quá (s.v.) que prefiro sim, mas eu acho injusto dizer isso sem o senhor saber o assunto da pergunta... D82 Olha (s.v.)

PROTEÍNA — (Desconfiada) E qual é o assunto da pergunta? (Para FRUSTRAFROIDE, prática) São as duas malas e a valise só, não é, Frustrafroide? (Examinando o sobretudo e dando palmadas nele para tirar o mofo) Esse sobretudo... Bom, eu não sei o que que você vai fazer de sobretudo no Havaí, aliás...

FRUSTRAFROIDE — (Impaciente) O sobretudo é pro Chile, Proteína.

JURANDIR — Bom, o negócio é o seguinte: eu quero saber, sim ou não, se o senhor está tratando do Valdir Teixeira, presidente do Flamengo, e se é verdade que, por motivo de viagem, o senhor vai passar o paciente famoso para os cuidados de sua mulher?

PROTEÍNA — (Lívida, furiosa) Mas o senhor sabe ser xereta, hein? (Aproximando-se de JURANDIR, violenta) O que que o senhor tem com isso, hein? Posso saber?

(FRUSTRAFROIDE intervém entre PROTEÍNA e JURANDIR, enquanto na trilha sonora os cachorros recomeçam a latir)

FRUSTRAFROIDE — Pera aí, gente! Eu não entendi bem a pergunta do Jurandir e não vejo motivo pra você se amofinar 242 assim, Proteína.

PROTEÍNA — (Furiosa, gritando) Marinete! Marinete!

FRUSTRAFROIDE — (Ligeiramente ameaçador, para JURANDIR) Que negócio é esse, meu amigo?

JURANDIR — (Estóico) O senhor vai me desculpar se eu fui um pouco brusco. (Para PROTEÍNA, humilde) Desculpe, sim, dona Proteína? Não foi por querer não. (Para FRUSTRAFROIDE) Sabe o que é, doutor? O senhor não vai me levar a D82 sim (s.v.) mal.. . Mas é que essa questão é que é o verdadeiro motivo da entrevista... .Não foi decisão minha não, doutor: eu por mim, pela minha ideia mesmo, o senhor sabe sobre o que eu queria fazer? Sobre a conferência do senhor, doutor! Sobre, como é mesmo?, sobre aquela da superioridade... hummm... justamente, do homem tropical! Claro! Isso veio de cima, doutor, a decisão! (ELE revira os olhos para o alto) Foi ordem, veio de cima mesmo, da cópula central, diretorial, global mesmo: eu sou um simples empregado!

FRUSTRAFROIDE — (Severo) Você faz o favor de se explicar, tá, Jurandir? O que que veio de cima?

JURANDIR — (Gaguejando) A or-dem... dou-do... tor! A... a... deci... são!

MARINETE — (Entrando, para FRUSTRAFROIDE) O táxi vai chegar daqui a Vinte Treze minutos, doutor Frustrafroide.

PROTEÍNA — (Severa, para MARINETE) Vai dar um jeito nesses cachorros, Marinete. Vai já por favor porque ninguém está aguentando mais. Prende a Desinibida no banheiro, tá?

JURANDIR — (Tentando mudar de assunto, para FRUSTRAFROIDE) Desinibida? Ah, a cadelinha se chama Desinibida, né? Que luxo? Que luxo! 243

FRUSTRAFROIDE — Eu sempre estive à total disposição da rede Globo, isso eu não escondo de ninguém. Minha carreira é a busca infatigável da transparência, da clareza junto ao público brasileiro. Em última análise o público de vocês é o próprio público analisando e portanto o público pagante, o povo brasileiro. Agora, você Jurandir é que tá meio enrolado com essa entrevista. Aliás, já era, como está se dizendo agora: quando eu voltar do Havaí com o máximo prazer...

PROTEÍNA — (Irritada) Não é nada disso que você tá falando, Frustrafroide. Será que você ainda não entendeu? É fofoca o que ele quer! Fofoca! É simplesmente contra o código de ética! Era só o que

faltava querer que um profissional vá falar do

paciente e a análise ainda nem começou!

JURANDIR — a senhora mesma disse que fofoca também é cultura!

FRUSTRAFROIDE — (Irritado) Foi você que disse isso, Jurandir. Que saco, pô!

JURANDIR — (Ofendido) Mas um momentinho, é ou não é conhecimento público? A imprensa é livre ou mais ou menos, afinal? Os senhores são pessoas públicas, seu paciente é presidente do clube campeão do mundo, o mais querido da cidade, o senhor é reconhecidamente e merecidamente, é claro, o maior psicanalista brasileiro. O Brasil vibrou com a vitória sobre o Cobreloa, depois com a vitória em Tóquio e logo depois o mesmo Brasil inteiro sofreu e estrebuchou com D83 Gobreloa a crueldade do destino quando castraram o cachorro do Valdir Teixeira! Como é que o senhor mesmo pode pretender limitar a informação do público?

244

FRUSTRAFROIDE — (Furioso) Se o Brasil vibrou e estrebuchou é problema dos historiadores: eu sou um psicanalista, meu filho! Estou aqui para interpretar a vida privada do cidadão: não tem nada que ver com opinião pública e muito menos com liberdade de imprensa! Se o Brasil inteiro sofreu porque castraram o cachorro é um problema político: não tem nada a ver com psicanálise não, entendeu?

JURANDIR — (Malicioso) O gravador está gravando tudo, doutor!

FRUSTRAFROIDE — (Explodindo) Desliga essa bosta antes que eu te dê uma porrada! D82 de (s.a.)

PROTEÍNA — (Indignada) É inacreditável a audácia e a falta total de consideração profissional!

JURANDIR — (Para FRUSTRAFROIDE, fleumático) E o senhor chegou a ter quantas sessões com o Valdir Teixeira?

FRUSTRAFROIDE — (Furioso) Nenhuma, porra! Chega! Acabou-se a entrevista! Eu já estou no Havaí, ouviu bem?

PROTEÍNA — (Indignada) Ponha-se daqui pra fora! Ora essa! (Entra MARINETE seguida pelo FRUSTRINHA carregando vários dicionários)

MARINETE — O táxi já chegou, doutor Frustrafroide. (Para PROTEÍNA) Não adianta, dona Proteína, não há meio de botar eles pra dentro: a Desinibida arreganhou os dentes... Pra mim: a senhora pode imaginar uma coisa dessas? Não pode, né?

FRUSTRAFROIDE — (Mais calmo) Já tá aí, Marinete? Melhor... Bom, mais uma vez vamos conferir tudo, certo?

Bagagem, dinheiro, passaporte... Proteína... D83 passaporte......

FRUSTRINHA — (Que se havia instalado sobre dois dicionários)

245

Era uma mosca azul asas de ouro e granada173 Filha da China ou do Indostão Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada Em certa noite de verão

E zumbia e voava e voava e zumbia Refulgindo ao clarão do sol E da lua melhor do que refulgiria Um brilhante do Grão Mongol...

JURANDIR — (Que se aproximara do FRUSTRINHA aplaudindo freneticamente) Bravo! Bravo!

(Cantando) Bravo, bravo, bravíssimo/ bra/vo/bra/vo/bra/ví/ssi/mo.. Bravo bravíssimo, bravo bravíssimo/ Bra/vo/bra/vo/bra/ví/ssi/mo... D82 /vi/ (s.a.)

PROTEÍNA — (Estupefata, para FRUSTRAFROIDE sobre JURANDIR) Você não vai fazer alguma coisa não, Frustra? D82 Estupefada Com esse cara aí você não vai conseguir embarcar, isso eu te garanto!

FRUSTRAFROIDE — Chega, Jurandir! Chega, Frustrinha! Vovô vai dar um passeio rapidinho no Havaí... (Nervoso, para PROTEÍNA que examina tudo) Tá tudo aí, querida? Bagagem...

PROTEÍNA — Dinheiro, passaporte, documentos, tudo... (Os cachorros latem mais do que nunca)

FRUSTRAFROIDE — Que coisa essa Desinibida, hein? Vê se consegue acostumar ela melhor, Proteína.

173 Tais versos correspondem ao trecho inicial do poema narrativo A Mosca Azul, de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Com 64 versos distribuídos em 16 quartetos, o poema A Mosca Azul, publicado na coletânea Poesias Completas (1901), versa sobre uma mosca azul que voava brilhante sob a luz do sol, atraindo a atenção de um poleá que se via rei de Cachemira. Este, possuindo a mosca, pôs-se a dissecá-la, a fim de compreender seu brilho e beleza. A mosca, porém, quando vista de perto, revelou-se fétida e nojenta, de modo que sua beleza não passara de ilusão. 246

PROTEÍNA — Tenta de novo, vai, Marinete. . . Me faz esse favor. Grita com eles mesmo, é o único jeito, tá?

MARINETE — Ah, dona Proteína, eu ia dizendo pra senhora justamente: o Fileira sumiu e... eu vou dar mais uma olhada... Pra mim a Desinibida tá no cio...

PROTEÍNA — (Apavorada) O quê? O meu Fileirinha do Santo Cristo sumiu? Marinete!! E agora é que você me diz! Ah, D82 Ah (s.v.) minha Nossa Senhora! (O FRUSTRINHA que brincava bem débil mental com JURAND1R de repente dá nele uma mordida, fazendo-o gritar)

MARINETE — (Dirigindo-se para o lado da cozinha) Eu vou ver de novo...

JURANDIR — (Histérico) Socorro! Ele me mordeu! Socorro! Tá saindo sangue!

FRUSTRAFROIDE — (Com autoridade para MARINETE) Marinete, vai levando isso aqui pro táxi, tá? (FRUSTRAFROIDE dá a MARINETE a mala prateada que ELA leva para fora)

PROTEÍNA — (Para JURANDIR, que geme, irritada) Para com esse escândalo! Que que tem? Ele já mordeu o avô também. Chega de problema! Vai fundo, Frustra! Você é que tá com a razão: se eu pudesse também embarcava pro Havaí no ato! (O FRUSTRINHA ri enquanto JURANDIR choraminga)

JURANDIR — Ai! A senhora vai me pagar! Eu vou botar tudo no jornal! Tudo!

PROTEÍNA — Pode botar. Se você pensa que alguém tá ligando está redondamente enganado. Nem te ligo, farinha de trigo! (Os latidos dos cachorros aumentam de novo enquanto o FRUSTRINHA come meleca e FRUSTRAFROIDE testa o peso da mala grande e JURANDIR continua se lamuriando ad libitum) 247

FRUSTRAFROIDE — Essa aqui tá com mais de vinte quilos sozinha... Vamos, vamos, vamos, Proteína: você traz o sobretudo e eu mando a Marinete voltar pra pegar a outra mala.

JURANDIR — (Prestativo) Eu ajudo o senhor, doutor. Faço questão. Estou mordido, estou sangrando mas mesmo assim faço questão de homenageá-lo em sua despedida. (FRUSTRAFROIDE ignora os préstimos de JURANDIR e, levando a valise Vuitton, sai de cena. PROTEÍNA termina apressadamente de conferir os documentos nos bolsos do sobretudo e sai atrás do marido, ambos ignorando D82 marido (s.v.) ostensivamente a presença de JURANDIR e do FRUSTRINHA)

JURANDIR — (Para o FRUSTRINHA que folheia prazerosamente o dicionário enquanto come meleca) D82 prazeirosamente Meus parabéns, meu jovem. Você tem um grande talento que não pode ser desperdiçado. Ciau, hein? Tchau, hein? D83 Tcháu

(JURANDIR vai sair quando entra MARINETE para apanhar a grande mala preta que ficou no meio do cenário. Na pressa, os dois quase se esbarram e, vendo que MARINETE deve levar a pesada mala, JURANDIR resolve ajudá-la. Saem os dois arrastando a mala de maneira ligeiramente desajeitada. O FRUSTRINHA, deixado só em cena, continua na mesma atividade durante uma longa pausa. Entra MARINETE)

MARINETE — (Simpática, para o FRUSTRINHA) Até que enfim vamos ter um pouco de sossego nessa casa, né, meu D82 né (s.v.) Dócilmente santo? (ELA arruma cuidadosamente alguma coisa que tenha ficado fora do lugar. Aproximando-se do FRUSTRINHA) quê Vamos brincar? Vamos brincar de desenho, seu exercício de arte... (ELA tira o dicionário das mãos do FRUSTRINHA diminuído (s.a.) carinhosamente) Chega de dicionário. Por hoje, tá? (Docilmente o FRUSTRINHA se deixa conduzir pela mão para fora do palco) São quatro quadros: e um garoto que o que que faz?

(As luzes, que já haviam diminuído desde as últimas falas, se apagam gradativamente)

FIM DO PRIMEIRO ATO 248

SEGUNDO ATO

(Quando as luzes se acendem sobre o mesmo cenário do primeiro ato o FRUSTRINHA está só em cena mas em posição D82 MESMO CENÁRIO do peculiar: sobre o divã psicanalítico dos avós mas de bunda para cima) PRIMEIRO ATO

FRUSTRINHA — (Recitando de maneira bastante débil mental sem alterar sua posição de bunda para cima)

Taratá, taratá, taratatá Então peço licença para somar

Ao dilema do êxtase delirante O último verso e as O problema do dia abracadabrante rimas consoantes aparecem no poema Não sei o que, não sei o que lá Algos (ATHAYDE, E a terra é só a eterna coadjuvante 2001, p.9).

(Entra MARINETE trazendo um espanador grande numa mão e na outra dois lençóis e uma colcha bem dobrados)

MARINETE — Sai daí, Frustrinha! Que a sua vó mandou fazer o divã...

FRUSTRINHA — (Sem se mover, desafiador) Não sei o que, não sei o que mais lá O último verso e as O problema do dia abracadabrante rimas consoantes E o dilema do êxtase delirante aparecem no poema Algos (ATHAYDE, Paritatí, tatí, tatitatá 2001, p.9). E a terra é só a eterna coadjuvante (MARINETE espana o FRUSTRINHA com o espanador abundantemente. Afinal ELA o empurra sempre com o espanador)

249

MARINETE — (Severa) Sai, Frustrinha, pra mim fazer logo esse divã.

FRUSTRINHA — (Pernóstico) Pra mim não: pra eu!

MARINETE — (Inflexível) Sai senão eu vou chamar sua vó, hein?

FRUSTRINHA — (Saindo do divã) Pra eu, pra eu, pra eu, pra eu, pra eu...

(MARINETE espana o divã cuidadosamente, depois começa a arrumá-lo com os lençóis que são de um rosa bem berrante)

FRUSTRINHA — (Atazanando MARINETE que trabalha) Escrava! Escrava! Escrava Marinete! (Sádico, trincando bem os dentes) Empregada! Empregada!

MARINETE — (Ameaçadora) Você para, hein, Frustrinha! D82 hein (s.v.)

FRUSTRINHA — (Recitando, deliciado) Antes fortes, antes bravos174 Hoje míseros escravos...

PROTEÍNA — (Entrando, bastante nervosa, sobre os lençóis) Deu bem, Marinete?

(Os lençóis que eram de casal tipo king size, ficaram enormes ao redor do divã) D82 divã?

MARINETE — Ficou meio grande, dona Proteína. Tudo bem?

174 Tratam-se de trechos do poema Navio Negreiro (1868), do poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871). Publicado após a Lei Euzébio de Queiroz, de 1850, que proibia o comércio escravocrata, e a Lei Nabuco Araújo, de 1854, que impedia o desembarque de navios negreiros em costas brasileiras, o poema épico dramático, de caráter libertário, é apresentado em seis partes e diferencia-se de outros textos publicados pela elite cultural romântica de seu tempo, por apresentar a figura do negro como herói e denunciar a condição desumana do tráfico escravocrata. 250

PROTEÍNA — Se der pra cobrir com a colcha, tudo bem. Experimenta. D82 colcha (s.v.) (MARINETE começa a colocar a imensa colcha vermelha-berrante com babados e rendas brancas sobre o divã. Severa para com MARINETE) E o travesseiro?

MARINETE — (Fleumática) O travesseiro?

PROTEÍNA — (Nervosa) Cadê o travesseiro, Marinete? Vai buscar ele, tá?

(Sai MARINETE em busca do travesseiro)

PROTEÍNA — (ELA cantarola nervosamente um pedaço de alguma canção romântica enquanto puxa as pontas da colcha para alisar bem. Para o FRUSTRINHA, fleumática) Por que você não recita alguma coisa pra gente, Frustrinha?

FRUSTRINHA — (Sem se fazer de rogado ELE empilha dois tomos de enciclopédia, sobe em cima e recita) Um encontro de algos semelhantes

Uma festa para anjos e serpentes Planeta, dia e hora abracadabrantes Os dois tercetos aparecem no poema Algos (ATHAYDE, O pai é um energúmeno demente 2001, p.9).

Filho de um energúmeno demente A terra só a eterna coadjuvante

PROTEÍNA — (Interrompendo) Marinete! (Gritando) Marinete!

MARINETE — (Entrando) Senhora! 251

PROTEÍNA — Achou o travesseiro?

MARINETE — Não senhora. (Pausa curta) Dona Proteína, é pra servir o quê? D82 que? (s.a.)

PROTEÍNA — Como não achou? Onde que ele está? Tá lá, Marinete! Dá uma procuradinha, tá? (Pausa curta) Como D82 Tá, servir o quê?

MARINETE — Durante a sessão psicanalítica: vai ser bebida ou cafezinho? D82 cafézinho?

PROTEÍNA — (Irritada) Como é que eu vou saber, Marinete, você me responde isso? O analisando é novo, como é que eu vou saber o gosto dele? (Nervosa) O que que tem de bebida? D82 quê

MARINETE — (Otimista) A garrafa de cinco litros de uísque ainda tem bastante, dona Proteína. D82 uisque (s.a.)

PROTEÍNA — Tem vodca? D82 vodka

MARINETE — Vodca? D82 vodka

PROTEÍNA — (Nervosa) É, vodca, Marinete. É o que está se bebendo agora. O que que o analisando vai pensar se de D82 vodka ; quê ; vodka ; anche be, (c. v.) repente não tem vodca em casa? Você enche bem a geladeira a geleira e deixa tudo na cozinha mesmo mas pronto para entrar em cena.

MARINETE — (Indiscreta) É o Valdir Teixeira?

252

PROTEÍNA — (Severa) Agora você não me leva a mal não, mas como é que você sabe?

MARINETE — (Humilde) Foi o doutor Frustrafroide que me deu uma lição sim senhora: sobre o caso dele. (Desembaraçada) A ameaça de morte passou a ser o escrito, a escritura do id175 dele, segundo a colocação de Lacan.

PROTEÍNA — (Irritada) Que ameaça de morte?

MARINETE — Ué, a senhora não sabe?

PROTEÍNA — (Indignada) Não sei o quê, Marinete? D83 que (s.a.)

MARINETE — Ué, deu no jornal, dona Proteína. Ele ameaçou de morte sim, publicamente, o aeroviário... D82 públicamente

PROTEÍNA — (Irritada) E daí? Você parece que nunca leu uma história de crime no jornal... É o que mais tem, Marinete, pra seu governo. MARINETE — O aeroviário foi pro Havaí também. Isso, aliás, foi a

única última notícia que eu li.

PROTEÍNA — Você anda muito alienada, Marinete. Essa parte assim mais teórica que sai no jornal não é da essência da psicanálise. Depois você se despede da gente, sai por aí fazendo terapia por conta própria e vai dizer que foi Frustrafroide que te ensinou um monte de besteira. A psicanálise também tem sua ética, Marinete. Tem instinto, tem sexo, tem

175 Consideram-se id, ego e superego como as três instâncias do aparelho psíquico, segundo Freud, que propõe o uso do termo id em O ego e o id (FREUD, 1923), como ―o polo pulsional da personalidade. Os seus conteúdos, expressão psíquica das pulsões, são inconscientes, por um lado hereditários e inatos e, por outro, recalcados e adquiridos. Do ponto de vista econômico, o id é, para Freud, o reservatório inicial da energia psíquica; do ponto de vista dinâmico, entra em conflito com o ego e o superego que, do ponto de vista genético, são suas diferenciações‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.219). 253 inconsciente mas também tem superego176, né? Você precisa prestar mais atenção nessas coisas.

MARINETE — (Sofisticada) A senhora acha que a ameaça foi inconsciente? Ou foi o superego que quis punir?

PROTEÍNA — Ah, sei lá, Marinete. Talvez tenha sido coisa da mulher dele. Que mais que você leu? Ele é casado, não?

MARINETE — (Excitada) Ele é divorciado, dona Proteína! Mas ele sai com uma estarlete da Globo, que eu vi na Amiga177. Eu vou dar uma procurada no travesseiro pra senhora.

PROTEÍNA — (Interessada, para MARINETE que se afasta) Como é que ela é? Tinha retrato?

MARINETE — (Saindo de cena) Tinha sim senhora!

PROTEÍNA — (Para o FRUSTRINHA que lia dicionário todo esse tempo) E você, filhote? Onde prefere ficar preso durante a sessão: no banheiro ou na dispensa?

FRUSTRINHA — (Ocupado lendo) Tanto faz, vovó.

PROTEÍNA — (Fleumática) Tem certeza? São lugares completamente diferentes com recursos também diversificados. (Entra MARINETE com um travesseiro pequeno de seda roxa com bastante rendinha em volta)

176 A respeito do superego, asseguram Laplanche e Pontalis (2001 [1982], p.497-498): ―uma das instâncias da personalidade tal como Freud a descreveu no quadro da sua segunda teoria do aparelho psíquico: o seu papel é assimilável ao de um juiz ou de um censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral, na auto-observação, na formação de ideias, funções do superego. Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do Complexo de Édipo; constitui-se por interiorização das exigências e das interdições parentais‖. O aspecto moral normativo corresponde à principal característica do superego, uma vez que ―se tomamos a noção de superego num sentido amplo e pouco diferenciado, [...] ela engloba as funções de interdição e de ideal. Se mantivermos, pelo menos como subestrutura particular, o ideal do ego, então o superego surgirá principalmente como uma instância que encarna uma lei e proíbe a sua transgressão‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p. 498). 177 Extinta em 1999, a Revista Amiga: TV Tudo era uma publicação semanal brasileira da Bloch Editores (1952-1999). Popular nas décadas de 1970-1980, apresentava resumos das telenovelas e bastidores da vida de celebridades. 254

MARINETE — É esse, dona Proteína? D82 esse (s.v.)

PROTEÍNA — Claro que é. Me dá ele aqui. (ELA alisa, apalpa e cheira o travesseiro; romântica) Vai preparar a geleira,

Marinete. (MARINETE faz menção de sair) Não, pera aí, Marinete. Será que falta mais alguma coisa? Você sabe que ele é um D82 né (s.v.) cliente importante, né, Marinete?

MARINETE — Principalmente depois do campeonato, né, dona Proteína? D82 né (s.v.)

PROTEÍNA — Ah, meu Deus! O Sul-Americano, o de Tóquio: campeão absoluto do mundo! A Taça Libertadores da D82 Ah (s.v.); Tóqui América, Marinete, imagina só isso... Libertas Quae Sera Tamen...178

MARINETE — (Cantarolando o hino do Flamengo) ‗...Flamengo sempre eu hei de ser / Vencer, vencer, vencer... Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer!‘179

PROTEÍNA — (Nervosa) Corre, Marinete, já tá na hora dele chegar. (MARINETE se dirige para a porta) Pera aí, pera aí, Marinete, eu acabei de me lembrar... essa luz... Será que está apropriada? Eu estou achando forte demais. (ELA se dirige para um abajur e o acende) Marinete, apaga aí pra ver como que fica só com o abajur. (MARINETE apaga a luz principal e o abajur só produz uma meia luz bastante romântica) Humm... será que agora não está escuro demais também não? Porque eu não quero inibir ele: você se lembra de alguma coisa em Lacan?

MARINETE — (Fleumática) Sobre iluminação? Hummm... deixa ver... acho que não... (Pausa curta) Mas tem uma

178 O dístico latino Libertas Quae Sera Tamen, foi retirado do diálogo entre Meliboeus e Tityrus, na primeira Écloga de Virgílio. Traduzido como ―liberdade ainda que tardia‖, foi utilizado como bandeira e lema dos inconfidentes mineiros (século XVIII), vindo a estampar a bandeira do estado de Minas Gerais, desde o século XIX até os dias atuais. 179Cita-se o trecho do hino popular do Clube de Regatas do Flamengo, de autoria de Lamartine de Azaredo e Babo, gravada na voz de Gilberto Alves, em 1945 (FLAMENGO, [20--]). Embora não seja o hino oficial do time, essa versão popularizou-se por cantar as glórias, e por lançar o bordão ―uma vez Flamengo, sempre Flamengo‖, que é como ela se identifica. 255 terapia americana que é no escuro180, até muito badalada, aliás.

PROTEÍNA — (Curiosa) O quê? Primal Scream181? D82 que (s.a.)

MARINETE — Não, não, é uma outra: na Califórnia, se não me engano. D82 Não (s.v.) Califórnia (s.v.)

PROTEÍNA — Deve ser aquela que o paciente fica dentro de um saco, não? Por isso é que é escuro... Acende a luz aí, D82 Porisso bem (s.v.) Marinete. Pensando bem, a claridade é melhor. É essencial para a objetividade. Tudo bem, tudo bem... Corre, Marinete, vê rápidamente a geleira logo que já está em cima da hora. (MARINETE se dirige rapidamente para a porta. PROTEÍNA a chama mais uma vez, ligeiramente histérica) Pera aí, volta aqui, Marinete, pelo amor de Deus: o Frustrinha! Você tem que ver o Frustrinha também... Antes...

MARINETE — Tudo bem, claro, dona Proteína. Deixa eu ver logo a geleira e a bebida. (Sai MARINETE. PROTEÍNA pega o espanador deixa do no chão por MARINETE e começa a espanar alguns detalhes do cenário cantarolando algumas notas de uma canção romântica)

MARINETE — (Entra e interrompe PROTEÍNA, bastante alarmada) Dona Proteína, não tem aquela bebida que a D82 PROTEÍNA (s.v.) senhora falou.

PROTEÍNA — (Alarmada) Que bebida, Marinete?

MARINETE — É... sei lá, Vodca... né? Mas tem uma garrafa de bebida de maracujá. Pode abrir? D83 Ê... D82 Vodka...,

180 Possível referência à terapia desenvolvida na década de 1960 pelo neurocientista e pscicoanalista John Lilly, da Califórnia. Pesquisando o que ocorre no cérebro na ausência de estímulos, Lilly criou o tanque de privação sensorial, ou tanque de flutuação, onde os pacientes permanecem flutuando por até duas horas em completa escuridão (KOTLER; WHEAL, 2017). 181 Terapia criada por Arthur Janov, autor de The Primal Scream (JANOV, 1970), best-seller de 1970 em que apresenta o método, e diretor do Primal Center, um centro de psicoterapia na Califórnia. Com a ―terapia do grito‖, o Dr. Janov, psicólogo e psicoterapeuta, PhD em psicologia pela Universidade da Califórnia, buscava recuperar traumas vinculados a dores reprimidas na infância e no parto. Entre seus pacientes, destacam-se John Lennon, Yoko Ono e Steve Jobs (EZABELLA, 2013). 256

PROTEÍNA — Pode, tudo bem. Não precisa abrir não, Marinete: se ele pedir, aí sim. D82 pedir (s.v.) A (s. crase) (À parte) Imagina se o professor Lacan visse isso: fruit de la passion! Prof.

MARINETE — (Compreendendo tudo) Lacan serviu alguma coisa a um paciente. Se não me engano foi uma chapã... um champã...

PROTEÍNA — Champagne francês? Nossa Senhora, aí só se fosse o presidente da república! (Ouve-se um toque forte da campainha imediatamente seguido de latidos dos cachorros com grande intensidade. O

FRUSTRINHA, até então distraído estudando o dicionário, se aproxima da boca de cena fitando o público como que D82estatando avistando os cachorros e logo começa a ter um verdadeiro acesso de riso)

PROTEÍNA — (Histérica) É ele, Marinete! É ele, ai, ai, ai, minhas encomendas! Vai rápido, Marinete, voa, vai encher a D82 vôa geleira e ver tudo o mais lá, tudo prontinho, tá? (MARINETE começa a sair correndo)

MARINETE — (Freando com agilidade) Dona Proteína! E a porta? É pra abrir? (Os cachorros uivam ainda mais na trilha sonora enquanto o FRUSTRINHA ri a bandeiras despregadas apontando para o público)

PROTEÍNA — Frustrinha! Acaba com isso: já! (Furiosa) Marinete, leva ele pro banheiro: agora! (O FRUSTRINHA continua a rir)

MARINETE — E a porta, dona Proteína? (Pegando o FRUSTRINHA pela mão) Vem, Frustrinha, vem brincar de D82 Vem (s.v.) banheiro, vem...

PROTEÍNA — (Transportada) Eu mesma abro, não tem problema nenhum: tá em Lacan também. O psicanalista pode

257 abrir a porta sim senhora, ele mesmo.182

MARINETE — (Conduzindo o FRUSTRINHA em direção à porta) Eu vou tentar prender os cachorros. A senhora não tem medo que a Desinibida morda ele não?

PROTEÍNA — (Lembrando-se, histérica) Ah, minha Nossa Senhora! O problema dele é o cachorro e agora essa cachorrada recebendo ele! (Descontrolada) Isso é uma merda, Marinete! (A campainha toca novamente mas desta vez formando um S.O.S. em código morse183; o FRUSTRINHA continua a rir enquanto MARINETE parece manter o sangue-frio)

MARINETE — (Objetiva) É ele sim, dona Proteína. Ele deve estar numa boa, afinal: pra tocar um S.O.S. assim numa D83 sangue-frio. hora dessa só com muito sangue frio.

PROTEÍNA — (Explodindo na cara do FRUSTRINHA) Leva ele, Marinete! (Para MARINETE, histérica) Você para de torturar sua avó! (Bem na hora em que está berrando entra VALDIR. Estupefata, para VALDIR) Quem é você?

VALDIR — A senhora vai me desculpar mas a porta estava aberta e... com os cachorros latindo eu achei que não dava para ouvir a campainha e... (Estendendo a mão para PROTEÍNA) Valdir Teixeira a seu serviço.

PROTEÍNA — (Apertando a mão de VALDIR) Olá. Bom, sou eu que vou estar a seu serviço se eu conseguir acabar com

182 No documentário Rendez vous chez Lacan (MILLER, 2011), produzido a partir de entrevistas com analisandos, alunos, familiares e amigos do professor, conta-se que Lacan buscava quebrar os padrões de rigidez, formalidade e seriedade instituídos por Freud em suas práticas. Um de seus analisandos informa, no documentário, que o psicanalista, com frequência, abria a porta para receber seus analisandos e esquecia-se de fechá-la atrás de si, de modo que as demais pessoas que se encontravam na antessala de espera ouviam todo o conteúdo do diálogo produzido na sessão de análise. 183 Usado na comunicação via telégrafo, o código morse é produzido a partir da combinação de pontos e traços, correspondentes às letras do alfabeto. O pedido de socorro universal é expresso pelas letras SOS, que podem significar ‗save our ship’ (salve nosso navio) ou ‗save our souls’ (salve nossas almas), e é de fácil memorização/digitação, uma vez que a letra S corresponde a três pontos ‗. . .‘ e a letra O se expressa em três traços ‗_ _ _‘. Desse modo, a mensagem de socorro foi ‗. . . _ _ _ . . .‘. Com a extinção do telégrafo, o código morse tem entrado em desuso, desde 1999. 258 essa cachorrada latindo...

VALDIR — (Chocado) Cachorrada?

PROTEÍNA — (Mudando de assunto, para MARINETE) Não dá pé ele aqui, Marinete. Frustrinha, diz boa tarde pro D82 boa-tarde moço pra você poder sair, tá?

FRUSTRINHA — (Empertigando-se todo)

Um encontro de algos semelhantes Uma festa para anjos e serpentes

Planeta, dia e hora abracadabrantes Os dois tercetos aparecem no poema Algos (ATHAYDE, O pai é um energúmeno demente 2001, p.9). Filho de um energúmeno demente

A terra só a eterna coadjuvante

PROTEÍNA — (Interrompendo) Acabou, meu amor? Olha, pode ir ao banheiro, tá? A Marinete leva você...

VALDIR — Eu estou aqui a serviço do Dr. Frustrafroide. Ele marcou três e meia: eu sou o novo cliente dele. (O FRUSTRINHA solta uma gargalhada)

PROTEÍNA — (Ignorando ostensivamente o FRUSTRINHA) Olha, é o seguinte, ele viajou e eu sou a suplente dele que vai tratar o senhor. (Para o FRUSTRINHA, paciente) Frustrinha, faz um favor? Vai com a Marinete, vai? Se você gosta de sua avó!

VALDIR — (Calmo) Eu tinha tratado uma sessão inicial com o Dr. Frustrafroide. Se ele está viajando eu acredito que houve algum engano...

259

PROTEÍNA — (Interrompendo, para MARINETE) Marinete, leva o Frustrinha, tá? Por favor... D83 tá?, (Os cachorros latem de novo)

MARINETE — (Saindo com o FRUSTRINHA pela mão) A senhora quer que eu tente prender a Desinibida?

PROTEÍNA — (Já de bom humor) Claro, e os Desinibidinhos também.

VALDIR — (Educado) A minha secretária talvez tenha se enganado de data. A senhora queira desculpar... (ELE faz menção de ir embora)

PROTEÍNA — (Decidida) Não, não, é aqui mesmo, é comigo mesma, o senhor pode me acompanhar por aqui...

(PROTEÍNA faz VALDIR se aproximar do divã elaboradamente como se para isso houvesse passado um caminho difícil ou atravessado muitos cômodos) Tá aqui: o divã psicanalítico do dr. Oliveira Frustrafroide... Meu marido, como você sabe, é o maior psicanalista brasileiro, certo? D82 cerro?

VALDIR — (Bonachão) Bom, como a senhora vê, eu o procurei, não é?

PROTEÍNA — Pode me chamar de você. Você sabe que em psicanálise tudo se sabe, não adianta transformar as pequenas convenções sociais em formalidades obstruindo tudo. (Didática, apontando para o grande retrato de Jacques LACAN) Aqui, naturalmente, o falecido professor Lacan. Frustrafroide foi o discípulo de quem ele mais se orgulhava em todos aqueles anos de seminário, na Sorbonne etc. D82 etc...

VALDIR — E você mesma estudou com Lacan?

PROTEÍNA — Estudei, estudei, como não... Estudei a fundo Lacan e minha orientação é claramente lacaniana o que, D82 Lacaniana ; Freudiana ; Lacanismo naturalmente, quer dizer freudiana ao mesmo tempo. Mas não estudei com Lacan, ainda muito melhor que isso: estudei com o próprio Frustrafroide que é o pioneiro do lacanismo no Brasil.

260

VALDIR — Mas o dr. Frustrafroide tem métodos originais, é ou não é?

PROTEÍNA — Também, também... Frustrafroide transcendeu o lacanismo inicial e iniciou seu próprio movimento. Mas D82 Lacanismo o frustrafroidismo não se concebe como escola.

VALDIR — E você é suplente dele em que sentido?

PROTEÍNA — (Simpática) Pode sentar, Valdir. Nós temos muito que conversar, não é? Agora que os Desinibidos pararam afinal de latir, vamos aproveitar a calma possível, plausível no caso.

VALDIR — (Já sentado no divã enquanto PROTEÍNA permanece de pé) Desinibidos? Desinibidos são os cachorros?

PROTEÍNA — (Sentando-se depois de puxar a poltrona com algum esforço para mais perto do divã) São os meus três cãezinhos: a Desinibida que é a maior e os dois brotinhos Fileira e Bambam. Você gosta de cachorro?

VALDIR — Bem eu... Eu tenho cachorro.

PROTEÍNA — (Inocente) Ah, tem é?

VALDIR — Escute aqui, a senhora, quer dizer, você, não me leva a mal não mas... você sabe quem eu sou? D82 você (s.v.)

PROTEÍNA — (Surpresa) Quem você é? Mas claro, por que não? Como é que eu não ia saber quem o Valdir Teixeira é?

VALDIR — (Ligeiramente acanhado) Bom, porque você de repente começou a falar, sabe como é...?

PROTEÍNA — (Interrompendo) Tudo bem, eu entendi já o que você quer dizer. Eu sei, soube pelos jornais, considerando que você é uma figura pública, um patrimônio cultural nosso, e como não...

261

VALDIR — (Interrompendo, ligeiramente nervoso) Entendeu o quê? D82 que (s.a.)

PROTEÍNA — (Compreensiva) Ora, por que não? Que você também tem cachorro, que houve o incidente do cachorro, que isso veio a ser objeto de publicidade e exageros e invencionices invencionice da imprensa. Eu tenho certeza que você já está mais do que acostumado com essas coisas. D82 coisas-

VALDIR — São coisas da vida pública justamente. Mas eu queria dizer a você, justamente, que esse aspecto... é o que menos me interessa. Como você disse eu acostumei, tô tirando isso de letra, sabe?

PROTEÍNA — (Levantando-se, simpática) Pode ficar à vontade, Valdir. O que que você quer tomar? D82 quê

VALDIR — Tomar?

PROTEÍNA — (Encaminhando-se para fora, para a cozinha) Eu vou ver o que que tem. D82 quê (VALDIR, ressabiado, se levanta e começa a explorar a sala com certa perplexidade)

PROTEÍNA — (Entrando e lançando um olhar reprovador para VALDIR, que o faz voltar rapidamente e se sentar no D82 quê divã) O que que você vai querer, hein?

VALDIR — Olha, eu acho que não vou querer nada não, tá?

PROTEÍNA — Tem uísque e tem uma batida de maracujá que está daqui, sabe? D82 uisque (s.a.)

VALDIR — Batida de maracujá? É... pode ser. Vai a batida.

PROTEÍNA — (Gritando para fora) Marinete! São duas batidas! (ELA volta a sentar na poltrona) Muito bem. Onde é que nós estávamos mesmo? A história do cachorro, certo? 262

VALDIR — Certo, mas o que eu queria mesmo explicar pra você, ô... Como é a sua graça?

PROTEÍNA — Proteína.

VALDIR — Proteína... É que eu estou com um problema de stress, sabe, uma espécie de uma estafa bem forte que ficou meia crônica. meio crônica.

PROTEÍNA — (Incentivadora) Uma stress crônica...

VALDIR — É, eu não estou gostando do efeito disso na minha produtividade. Você sabe que eu sou um profissional que se dedica integralmente, dia e noite, ao clube; tem dia de eu chegar em casa onze horas da noite e até mais... D82 noite (s.v.)

PROTEÍNA — (Objetiva) Como é o nome do cachorro?

VALDIR — Que cachorro?

PROTEÍNA — O seu cachorro et cétera et cétera e tal... o tal cachorro... D82 et cetera et cetera (s.a.)

VALDIR — Bom, eu tenho um casal.

PROTEÍNA — Que raça?

VALDIR — Ela é uma doberman. D82 Doberman.

PROTEÍNA — E ele? 263

VALDIR — (Ligeiramente acabrunhado) Pastor alemão.

PROTEÍNA — Como é o nome?

VALDIR — Da cadela?

PROTEÍNA — Não, do pastor alemão.

VALDIR — Do pastor alemão? Bom, o nome dele mesmo é Fiel mas depois pegou o apelido... de Geisel184! D82 (censura)

PROTEÍNA — Geisel? Fiel? Por quê? D82 (censura)

VALDIR — Você não conhece a piada? Que tem faro porque tem raça e é filho de pastor alemão?

PROTEÍNA — Conheço, conheço, Geisel eu sei a piada: mas por que Fiel185? D82 (censura) D82 porque

VALDIR — Olha, eu, pra falar a verdade, não sei dizer. Foi o meu pai que botou186.

184 Ernesto Beckmann Geisel foi um general que participou direta ou indiretamente de todas as etapas do golpe militar de 1964, chegando a ser um dos presidentes do Brasil ditatorial, governando entre 1974 e 1979, após a gestão Médici. Embora sua propaganda política fosse pautada na ideia de abertura lenta, gradual e segura à democracia – em que se incluíram o fim da censura prévia à imprensa, a permissão à propaganda política de oposição, o fim do AI-5 e a restauração do habeas corpus – é inegável que a gestão de Geisel sustentou o modelo político opressor. Filho de imigrantes alemães, Geisel foi apelidado de pastor alemão pelo seu perfil austero e pelo seu ―faro‖ na perseguição, extermínio e tortura (PINHO, 2014) desde 1964, quando, segundo Starling (apud NOSSA, 2013), omitiu denúncias de tortura em Pernambuco e deu início ao uso da tortura como instrumento de interrogatório. Sob seu governo, ocorreram a morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, em 1975, e a primeira greve de massa desde 1964, a dos metalúrgicos do ABC paulista, liderada por Luiz Inácio Lula da Silva, em 1978 (MEMÓRIAS..., [20--]). 185 Além do poema O Fiel, de Guerra Junqueiro, outra importante referência ao nome Fiel atribuído ao cão veio da dupla caipira Tonico e & Tinoco, com o poema Meu cachorro Fiel. Considerada uma das mais importantes duplas caipiras da história da música brasileira, por ter sido a primeira a se apresentar e ter sucesso de projeção nacional, os irmãos Perez fizeram , em 06 de junho de 1979, ―o que nenhum caipira havia sonhado: apresentam-se no Teatro Municipal de São Paulo, num show de três horas que reúne um público recorde de 2.500 pessoas. Da beira da tuia, celeiros centenários onde cantavam no passado, os irmãos Perez chegavam a um dos mais famosos teatros do mundo, que até então só abria suas portas para óperas, balés e concertos eruditos‖ (MENDES, 2016). 264

D82 Olha (s.v.) PROTEÍNA — O cachorro é do seu pai? Não é novo então... Quantos anos?

VALDIR — Deve ter uns oito pra nove anos já. Mas eu acho que essa stress esse stress que eu tenho não é bem o que você está pensando não. Tá certo que eu vim a procurar um especialista, fui logo ao melhor e, de maneira que... maneiras que...

PROTEÍNA — (Interrompendo) Quem foi que indicou Frustrafroide para você?

VALDIR — Foi um conhecido da minha noiva.

PROTEÍNA — Você disse que queria psicanalista e ele indicou.

VALDIR — Não, não, vamos com calma: eu falei da stress, do stress, da estafa que eu ando ultimamente. Porque, aliás, tem isso também, que ao mesmo tempo realmente eu sei muito bem o motivo disso tudo que está me levando já quase a um esgotamento mesmo. (Entra MARINETE com as duas batidas numa bandeja em copos pequenos. ELA serve primeiro VALDIR) (Desembaraçado, pegando o copo) Eu sei muito bem quem está por trás disso!

186Possível alusão à teoria do nome do pai, ou lei do pai (LACAN, 1953). Para Lacan, ao nomear o filho, o pai rompe a díade mãe/bebê. Segundo Zimerman (2001), ―Lacan mostrou que o Édipo freudiano podia ser pensado como uma passagem da natureza para a cultura. De acordo com essa perspectiva, o pai exerce uma função essencialmente simbólica, ou seja, ele nomeia, dá o seu nome, e, através desse ato, encarna a lei (daí que Nome-do-Pai também é conhecida como Lei-do-Pai) essencialmente pela linguagem, a qual estabelece uma ponte com a cultura. Assim, inicialmente Lacan definiu essa função com o nome de função do pai, depois, como função do pai simbólico, mais tarde, metáfora paterna e, finalmente, a partir do seu estudo do Caso Schreber, deu o nome definitivo de Nome-do-Pai, grafado com hífens. Nesse caso, segundo Lacan, como o filho porta o sobrenome do pai, ele o incorpora com o significante de um representante da lei, de modo que o pai se interpõe como figura privadora da díade com a mãe‖ (ZIMERMAN, 2001, p.291-292). 265

PROTEÍNA — (Incisiva) O aeroviário.

VALDIR — (Que quase engasga com a batida ao ouvir isso) O quê? De que que você está falando, hein? D82 quê

PROTEÍNA — (Para MARINETE, fleumática) Traz a garrafa e a geleira pra cá, Marinete, por favor, tá?

VALDIR — (Abismado) Que aeroviário? (Sai MARINETE)

PROTEÍNA — Ora, Valdir, pode abrir o jogo. Em psicanálise o mais importante é justamente essa franqueza que o paciente tem que ter com o analista.

VALDIR — Mas eu não disse nada. Foi você que falou isso de...

PROTEÍNA — (Interrompendo) Pois é, mas eu sei porque eu li na Amiga a história toda. Não adianta nada você querer D82 é (s.v.) esconder justamente num caso de uma celebridade como você, que já caiu no interesse público mesmo, nas revistas popularescas, pra não falar na própria torcida do Flamengo. Aliás nem fui eu que li, foi a Marinete, minha empregada. (Entra MARINETE imediatamente com a bandeja com a geleira e a garrafa de batida de maracujá) Não foi, Marinete?

MARINETE — (Fleumática) O que, dona Proteína?

PROTEÍNA — O caso do dr. Valdir na Amiga, com o aeroviário... et cétera e tal.

MARINETE — (Fazendo um risinho encabulado) Foi sim, dona Proteína.

PROTEÍNA — (Ainda para MARINETE, mudando de assunto) Você conseguiu prender a Desinibida e o Frustrinha no banheiro?

266

MARINETE — (Compenetrada) O Frustrinha sim, e o Bambam também. Mas a Desinibida e o Fileira não teve jeito.

PROTEÍNA — Vê se consegue pegar eles, tá, Marinete? E se tocar o telefone eu estou em sessão, pra deixar o nome, tá? D82 tá (s.v.)

MARINETE — Sim, senhora. D82 Sim (s.v.) (ELA se dirige para a cozinha)

PROTEÍNA — Obrigada, Marinete.

VALDIR — (Ligeiramente irritado) Eu não estou entendendo direito aonde que você quer chegar, você vai me desculpar mas eu vou ser franco com você. Não teria sentido mesmo eu chegar e...

PROTEÍNA — (Interrompendo, acusadora) Você ameaçou o aeroviário!

VALDIR — (Nervoso) Olha aqui, eu tenho minhas razões pra fazer o que eu faço, sempre fui bem sucedido em tudo o que D82 psicanalista (s.v.); quê ; quê eu fiz na vida, tá sabendo? Não vai ser você, só porque é psicanalista, que vai me dizer o que que é e o que que deixa de ser!

PROTEÍNA — (Severa) Meu amigo, não adianta ficar nervosinho não, isso é a regra número um em psicanálise. E outra D82 aí (apagamento) coisa, antes que eu me esqueça vai deitando logo nesse divã com a cabeça pro lado de cá. O fato de você ser quem você é, presidente do Flamengo e tudo isso, não justifica que você tenha tratamento excepcional em psicanálise. Vai, deita e fica olhando para o teto que aí você relaxa e começa a confessar tudo.

VALDIR — (Obedecendo acanhadamente) Olha, tá bom. Pronto, já estou deitado, seja tudo como manda o figurino. Uma vez eu experimento tudo. Agora, uma coisa eu lhe digo, ô... Proteína.

PROTEÍNA — (Interrompendo, simpática) Afinal de conta você está pagando pra isso, não? Eu sei que na sua posição D82 para ; para você tem pra pagar e isso é uma gota d‘água pra você... 267

VALDIR — Gota d‘água também não... Não vamos esquecer que os tempos são de crise. Olha, eu vou ser cem por cento franco com você: eu estou aqui por causa da minha noiva. Foi ela que falou, insistiu em acabou fazendo minha cabeça para eu procurar o seu marido.

PROTEÍNA — Tudo bem, mas isso que ela falou ou deixou de falar não tem importância não, Valdir. Eu queria que você, D82 você (s.v.) agora que você está mais relaxado, já mais em condições de aceitar o que você é, a sua verdadeira situação, que você me explicasse direitinho o caso do cachorro, do Fiel...

VALDIR — (Acabrunhado) O que que você quer saber?

PROTEÍNA — (Bem casual) Bom, tudo, né? Que tipo de relacionamento você tinha com ele?

VALDIR — (Perplexo) Quem? Com o Geisel?

PROTEÍNA — Justo, com o Fiel.

VALDIR — Mas ele é do meu pai. Eu disse isso pra você já.

PROTEÍNA — Mas e daí? Existem relações incestuosas também, não? (ELA solta um risinho)

VALDIR — (Confuso) Incestuosas? O que que você está querendo dizer, hein? D82 que

PROTEÍNA — Quem dá comida pro cachorro?

VALDIR — A babá.

PROTEÍNA — Babá? O cachorro tem babá? 268

VALDIR — Não, a babá da minha filhinha de quatro anos.

PROTEÍNA — (Insinuante) Ah... você tem noiva, tem filhinha de quatro anos, tem babá...

VALDIR — O meu pai tem um ciúme danado dos cachorros: é mais por causa dele que eu estou aqui, entende? Porque isso se transformou num problema pra ele, entende?

PROTEÍNA — (Incisiva) Agora, você não matou o aeroviário, de acordo com a ameaça que você fez, porque não teve coragem ou porque ele fugiu a tempo pro Havaí?

VALDIR — (Chocado) Eu acho que você não tem o direito de fazer essa pergunta.

PROTEÍNA — (Ligeiramente cínica) Não, você tem razão: eu estou aqui pra escutar. Você não querendo não precisa responder seja o que for que eu perguntar. São mesmo as suas associações livres187 o que me interessa, o que importa realmente para a sua cura. Pode associar livremente sem nem se tocar com pergunta nenhuma.

VALDIR — (Torturado) Eu passei uma noite em claro por causa disso. (Explodindo) Eu tenho certeza que foi ele, filho da puta!

PROTEÍNA — É verdade que o Fiel já tinha mordido o edifício inteiro? Ele era um cachorro brabo, certo ou errado?

VALDIR — Não, que nada, sô. Ele só mordia quem provocava. Um cachorro bem treinado, isso sim. Treinador alemão e tudo. Ótimo pedigree. Só mordeu quem tinha mesmo de ser mordido.

187 A técnica de associação livre de ideias foi estabelecida por Freud e, segundo Zimerman (2001), ―consistia no compromisso assumido pelo analisando de associar livremente as ideias que lhe surgissem espontaneamente na mente e verbalizá-las ao analista, independentemente de suas inibições para julgá-las importantes ou não. De certa forma, FREUD aplicou essa regra nos primórdios da psicanálise, desde 1894, quando usou consigo mesmo o método da livre associação em sua autoanálise, especialmente na decifração dos seus sonhos através das descobertas propiciadas pelas cadeias associativas‖ (ZIMERMAN, 2001, p.39). 269

PROTEÍNA — Bom, se é assim você podia mesmo então tomar uma atitude, cumprir mesmo a ameaça do jeito que você declarou.

VALDIR — (Angustiado) Dar um tiro naquele viado escroto? E depois? Se ficar provado que não tinha sido ele... a justiça... Você sabe como é a justiça nessa terra, né?

PROTEÍNA — (Encorajadora) Não foi ele que começou? Você não teve suas razões?

VALDIR — Claro, tá certo, isso não tem nem dúvida. Mas a morte assim, você sabe... E... Eu...

PROTEÍNA — (Interrompendo, simpática) Você não diz que ele é uma bicha? Ah, mata sim...

VALDIR — (Confessando) Olha, sabe o que é? É que eu não quero me envolver em mais publicidade. Eu prometi pra minha noiva. (PROTEÍNA toma a garrafa de batida, enche seu próprio copo e, em seguida, enche o de VALDIR. ELE, ao se virar para pegar o copo, dá uma olhada de relance para PROTEÍNA, sorve um gole e deita de novo)

PROTEÍNA — (Bebericando) Depois de ter jurado em público de pegar ele não fica nem bem você dar pra trás assim. Pensa no seu compromisso com a torcida do Flamengo, implícito mesmo em toda a sua atividade profissional.

VALDIR — É isso mesmo que eu queria entender melhor, Proteína. Qual a posição da análise nisso tudo?

PROTEÍNA — A posição é... mais existencial, sabe? Quer dizer, a ação determinada pela gestalt188 total mesmo da

188Segundo Engelmann (2002), o substantivo alemão Gestalt apresenta dois significados: (1) a forma; (2) uma entidade concreta que possui entre seus vários atributos a forma. Para os gestaltistas os organismos são compreendidos partindo-se inicialmente do todo e vendo como esse todo se relaciona com suas diversas partes. Ainda segundo esse autor, a teoria da gestalt difere-se de grande parte de outras teorias que julgam serem os elementos que se juntam na constituição de coisas ou organismos. 270 pessoa, sabe como é? (Pausa curta) O aeromoço tem cachorro?

VALDIR — Você vai perdoar a minha ignorância mas o que que é gestalt?

PROTEÍNA — Bom, humm, gestalt é meio intraduzível, alemão, sabe?

VALDIR — (Com desprezo) Ele tem um poodle, sabe, cachorrinho de madame...

PROTEÍNA — Como é que se chama o poodle dele?

VALDIR — (Hesitando) É... como é que é mesmo? Hummm...

PROTEÍNA — Sabe, gestalt quer dizer forma mas não é a mesma coisa não... Gestalt é mais completo, sabe como é?

VALDIR — Isso: Folia do Matagal189, é o nome do poodle. É o fim da picada, né? Botar uma viadagem dessa de nome no animal...

PROTEÍNA — (Concordando) É, então não tem jeito. Com um nome desses nem adiantaria você castrar...

VALDIR — (Assustado) Castrar? Mas quem falou em castrar?

PROTEÍNA — Você não ameaçou de matar o aeromoço?

189 Folia no Matagal é uma marchinha carnavalesca de conteúdo erótico de Eduardo Dusek, que foi lançada por Maria Alcina, em 1978, cantora então censurada em todo o território nacional. Considerada um ―furacão pós-tropicalista [...] naquele tempo, Alcina rompia com a estética comportamental, com sua voz de homem, maquiagem extravagante, roupas irreverentes e gestos carnavalescos. Num de seus shows na boate Number One, certa vez, um admirador lhe deu uma rosa durante a apresentação. Ela não teve dúvidas: devorou-a na frente do público e lambeu os beiços‖ (FAOUR, 2000). O sucesso de Folia no Matagal veio, portanto, em 1981, quando Ney Matogrosso a gravou, com seu timbre feminino e performance com paetês, plumas e batom, em um dos álbuns mais vendidos de sua carreira (GOMES, 2011). 271

VALDIR — (Com certa ingenuidade) Falei, eu estou pretendendo mesmo...

PROTEÍNA — Então?

PROTEÍNA — Eu pensei em sugerir de você castrar o cachorro dele também: olho por olho, dente por dente, ovos por ovos... Entendeu? Em vez de matar, que ia ser bem mais complicado de qualquer forma, pensa só, no dinheiro que você ia gastar de advogado...

VALDIR — (Chocado) Olha, eu não quero falar mais nesse negócio do cachorro não, tá? Assunto encerrado, fim de papo. Se você quer me analisar me analisa mas como eu sou, pô. Que que adianta você me analisar se não é direito como eu sou?

PROTEÍNA — (Ligeiramente agressiva) Quer dizer que você é o bom moço, né?

Aquele que não tem culpa, nasceu com o cu pra lua D82 cú lua, ou coisa que o valha e pensa que não precisa da psicanálise mas está aqui. Você está ficando meio defensivo já: isso em análise a gente chama de D82 grandissíssima ‗resistência‘190. Será que você não vê, Valdir? Isso tudo é uma grandessíssima defesa sua!

190 Resistência é um termo da psicanálise clínica utilizado primeiramente por Freud (1893) em relação à paciente Elisabeth von R., ―[...] usando a palavra original Widerstand. Em alemão, wider significa contra, como uma oposição ativa. Até então a resistência era considerada exclusivamente um obstáculo à análise, com uma força correspondente à da quantidade de energia com que as ideias e os sentimentos tinham sido recalcados e expulsos de suas associações. Assim, por longo tempo, o conceito de resistência, em psicanálise, foi empregado com um significado depreciativo, tal como Freud afirmou em A interpretação dos sonhos (1900), após dizer que as conceituações de resistência e de censura estavam intimamente relacionadas‖ (ZIMERMAN, 2001, p.364). 272

VALDIR — (Bastante irritado, ELE se ergue e fica sentado no divã) E não é pra me defender não?

(Os cachorros começam novamente a latir na trilha sonora. Primeiro os já familiares latidos vindos do lado do público e logo em seguida, como que respondendo, o latido lancinante do Bambam preso no banheiro. VALDIR, após escutar atentamente os latidos, continua ainda mais nervoso e zangado) Por quê? Não é pra me defender não? Você que é a analista vai ter que me explicar isso agora... D82 Por que? (s.a.)

PROTEÍNA — (Enfática) Não, pode se defender à vontade, criatura. Mas não adianta ficar nervoso quando eu estou D82 paysa interpretando você que é você mesmo que tem tudo a perder. E vai deitando de novo que senão não faz efeito e aí você vai dizer que não foi bem analisado. (ELE deita de novo) O que que você tá pensando, hein? Tá pensando que análise é papo de torcida de futebol, é? Tá redondamente enganado. (VALDIR, deitado, cobre a cara com as mãos em desânimo. Uma longa pausa. PROTEÍNA adota um tom bastante maternal) Não precisa falar do cachorro. Tudo bem. Fala da sua noiva. Dos problemas que você tem com ela.

VALDIR — Que problemas?

PROTEÍNA — Ué, ela não mandou você fazer análise? Alguma coisa não tá indo lá muito bem das pernas, não é? Existe D83 POTEÍNA alguma coisa que não está satisfazendo ela.

VALDIR — Ela me ama muito. Muito mesmo.

PROTEÍNA — Bom, realmente, mas eu já ouvi casos mais graves. Frustrafroide uma vez tratou um cliente que a mulher fazia mudar de cueca vinte vezes por dia, no mínimo.

VALDIR — (Pensativo, sem ter ouvido a última fala de PROTEÍNA) E eu tenho uma filhinha de quatro anos... que eu amo demais...

PROTEÍNA — (Entediada) Tudo bem, tudo bem. Mas... sabe, Valdir, na vida do homem o que conta mesmo é a vida profissional dele. No trabalho, a competição com os outros e o veredicto da sociedade. Não adianta nada você ficar com 273 essa lengalenga da noiva que gosta de você. Todo mundo tem esse tipo de problema, é normal isso. O que interessa é o seu relacionamento dentro do Flamengo, dentro do contexto e da conjuntura social que você construiu e pelos quais você tem que responder.

VALDIR — Bom, eu sou o chefe lá dentro, né, Proteína? Falou em Flamengo é comigo mesmo. Eu mando e desmando. D82 né (s.v.) Vai no grito, sabe como é?

PROTEÍNA — (Curiosa) E o Zico191? Como é que ele é, hein?

VALDIR — Sabe, eu vou te contar um caso mas só mesmo porque você é analista, você tem condições de compreender, senão não contava não. Bom, tem o restaurante com piscina da nossa nova sede; casa de chá et cetera totalmente separada da parte esportiva; de tardinha assim fica toda a parte mais tranquila da vida social, muita criança correndo, as senhoras com suas empregadas, fica aquele clima de confraternização...

PROTEÍNA — (Interrompendo, excitada) Isso, é isso aí, a sua confraternização com seus empregados, com os jogadores, D82 vestuário ; quando você entra no vestiário, por exemplo, como que você cumprimenta o Zico? Mas pode contar palavra por palavra cumprimente ; do mesmo. Porque isso é que se revela como a ‗vontade de poder‘ de Adler192: em psicanálise isso é crucial.

VALDIR — (Continuando) Claro, certo. Bom, aí eu cheguei, né, todo mundo viu, porque a minha Mercedes é branca, D82 né (s.v.) ; discreção sabe, e eu também não fiz questão de discrição não, sabe, porque às vezes eu entro pelo outro lado, quando eu não quero...

PROTEÍNA — Mercedes é a sua noiva?

191 Principal artilheiro do time do Flamengo de 1981, Arthur Antunes Coimbra, mais conhecido como Zico, é considerado por muitos como o maior jogador da história do clube (LIBERTADORES..., [20--]). 192 Considerado por Freud como seu pupilo, Alfred Adler (1870 – 1937) iniciou a sua própria escola de psicoterapia, conhecida como psicologia individual, centrada na importância da vontade consciente e da capacidade de cada indivíduo se encarregar de seu próprio destino. Para Adler (apud FADIMAN; FRAGER, 2008), a adaptação ao ambiente é a essência da vida, e a vontade de poder (expressão de Nietzsche utilizada por ele) é o motivador fundamental para essa adaptação. O seu postulado do complexo de inferioridade é considerado como uma de suas maiores contribuições para a psicologia. 274

VALDIR — Não, Mercedes é o meu carro, do ano, dirigida por um criolão uniformizado: tudo como manda o figurino.

Aí, onde é que eu tava mesmo? Ah, certo, no escritório! Eu mandei servir um uisquinho e... Claro, claro, a garota toda de D83 escritório Eu (s.p.) amarelo, né, que eu saquei há mais de dois meses mas a minha noiva conhece ela, isso é que é o xis do problema... ; garote

PROTEÍNA — Tudo bem, Valdir, eu já entendi. Mas análise é análise, você não vai querer que eu vá dar força pra você 193 D82 Adleriano ; faturar a garota de amarelo, né? E o Zico? E o Lico? E o Adílio? E o ponto de vista adleriano, dentro da vertente Lacaniana lacaniana da análise, naturalmente? É isso que você tem que entender! (PROTEÍNA aproxima ainda mais sua poltrona do divã)

VALDIR — (Virando a cabeça ressabiadamente para olhar PROTEÍNA) Bom, você quer ou não quer que eu continue? D82 super importante ; Foi o que aconteceu, eu não tenho culpa se foi assim que aconteceu. É superimportante pra mim isso... pagar

(Os cachorros latem novamente na trilha sonora com nova resposta do Bambam preso no banheiro e mais gargalhadas do FRUSTRINHA. Ouvem-se também os gritos da MARINETE tentando pegar a Desinibida do lado de fora e conter os excessos dos outros no banheiro.)

PROTEÍNA — (Maternal) Você tá com uma dificuldade meio chata, sabe, Valdir? Você vai ter que ter muita paciência D82 sabe (s.v.) comigo, pensar muito e aceitar aquilo que pode ser penoso mas vai acabar sendo pro seu bem.

VALDIR — Pro meu bem? E você já tem ideia de quanto tempo vai durar o tratamento mais ou menos?

PROTEÍNA — Ah, isso vai depender muito de você... Da sua cooperação. Do seu bom humor. Da sua boa vontade D82 as (s.c.) respondendo às perguntinhas todas. Você vai fazer um esforço, não vai?

193 Jogadores do time do Flamengo de 1981 que conquistou a Taça Libertadores da América e o Mundial Interclubes no Japão. Além do artilheiro Zico, Antônio Nunes, mais conhecido como Lico, atuava como meio ou atacante. Adílio de Oliveira Gonçalves marcou o segundo gol do Flamengo na vitória por 3 a 0 sobre o Liverpool, na final do Mundial de Clubes de 1981 (LIBERTADORES..., [20--]). 275

VALDIR — (Tímido) Bom, é... Você está muito bem colocada como profissional e... Eu teria todas as razões, eu imagino, né, pra tentar o melhor possível...

PROTEÍNA — Bom, tá certo, vamos tentar então...

PROTEÍNA — Nós dois, num esforço mútuo para romper as barreiras do inconsciente, estabelecer a revelação do id e inaugurar o processo criativo que vai levar à renovação do seu superego.

VALDIR — (Ligeiramente assustado) O que que é superego mesmo, hein?

PROTEÍNA — Basicamente é o seu pai mas também pode ser a sua mãe, dependendo da sensibilidade da criança.

VALDIR — Mas a minha mãe morreu.

PROTEÍNA — Ah é? Quando você tinha que idade?

VALDIR — Oito anos.

PROTEÍNA — (Sentimental) Oito anos? Ah, coitadinho, coitadinho! Você vai precisar mesmo de um superego: novinho em folha! Ah, eu vou dar um jeito nisso, pode deixar. Mas você vai ter que fazer direitinho como eu disser, tá?

VALDIR — (Intimidado) Tá, pode ser.

PROTEÍNA — (Depois de aproximar sua poltrona ainda mais do divã) Bom, a primeira coisa é você prometer que não olha pra mim porque não se faz em análise, sabe? Quer dizer, tem analista que faz mas não é uma coisa muito católica não, sabe, não pega bem. Você fica quietinho, quietinho no divã enquanto eu vou fazendo minhas perguntinhas. Entendeu? 276

VALDIR — Entendi. Mais ou menos, não é? Porque você também vai ter que me aceitar como eu sou porque senão eu D82 Entendi, viro bicho, hein?

PROTEÍNA — Mas justamente eu estou aqui, quer dizer, você está aqui para eu te mostrar quem você é: nas camadas mais profundas da sua personalidade. É um trabalho de descoberta, de escavação psicológica. E aí, é claro, é a sua personalidade em nível profundo que vai determinar o tipo de terapia adequado.

VALDIR — Tudo bem.

PROTEÍNA — (Encorajadora) Tudo bem? Bom, então agora você fecha os olhos que eu vou começar pela cabeça: uma massagenzinha reichiana194 das têmporas D82 Reichiana para relaxar a tensão.

VALDIR — (Ligeiramente nervoso) Ainda tem batida no meu copo?

PROTEÍNA — Eu boto mais pra você. (ELA enche o copo de VALDIR cantarolando algumas notas e dá a batida na boca dele que bebe com certa dificuldade pois mantém os olhos fechados segundo as instruções de PROTEÍNA) Isso. Isso, D82 Isso Isso. pronto. (Começando a massagear as têmporas de VALDIR) Agora você relaxa e pensa em alguma coisa bem suave, bem

194 Preocupado com o aspecto pragmático da clínica, W. Reich toma um caminho independente da psicanálise ao propor uso de técnicas corporais para o relaxamento das tensões, ligando a intervenção do corpo ao tratamento pela palavra no método que ele veio a chamar de orgonoterapia, no qual ―o corpo é definitivamente convidado a entrar na cena clínica [...] ocupa lugar de destaque a noção de sensação de órgão, entendida como a possibilidade de apreender a dinâmica do outro, seus movimentos emocionais, por meio das próprias sensações corporais, uma espécie de empatia corporal‖ (ALBERTINI, 2011). Para Zimerman (2011), Reich considerava que a neurose seria consequência de uma rigidez ou retração do organismo, a qual era necessário tratar por exercícios de descontração muscular a fim de fazer surgir o reflexo orgástico‖ (REICH, 2001, p.307-308). 277 agradável. (Pausa curta) Tá pensando?

VALDIR — Tô.

PROTEÍNA — (Sempre massageando) Sabe, é uma coisa já mais reichiana que eu estou fazendo, entende, já puxando D82 Reichiana pra bioenergética...195 (VALDIR faz um gemido de prazer) Ah, tá gostando né? Agora o pescoço.

VALDIR — (Sentindo dor) Ai! Ai, ai, ai!

PROTEÍNA — É a tensão, cara, D82 rensão viu só? viu? Isso significa que eu toquei no foco certo da tensão.

VALDIR — Mas é normal isso?

PROTEÍNA — Normal? É mais do que normal: todo mundo tem. Deixa eu te explicar um pouco de nomenclatura. (ELA continua sempre massageando) Tá ouvindo?

VALDIR — (Num gemido) Tô...

PROTEÍNA — Primeiro tem a couraça caracterológica, entendeu? É a estrutura das suas tensões, que na realidade são a própria história da sua vida psicológica escritinha na sua came! (ELA vai massageando VALDIR cada vez mais para baixo) Sabe como é? A repressão da sociedade faz você contrair os músculos em defesa própria. Aí aquela contração fica D82 beixo crônica e na realidade ela é mesmo a crônica da sua vida enquanto reação neuromuscular. Tá sabendo? E o pior é que esse sistema neuromuscular tem uma memória própria diretamente, inconscientemente, ligada ao cérebro, que guarda todo o traumatismo da repressão. Principalmente a nível infantil, correspondendo ao treinamento de higiene básica...

195 A Análise Bioenergética consiste em uma abordagem psicoterapêutica mente-corporal desenvolvida em 1975 por Alexander Lowen (BIOENERGÉTICA, 2011). 278

VALDIR — (Gemendo ligeiramente) Higiene? Básica?

PROTEÍNA — É sim senhor! Bioenergética, meu filho! Vinda diretamente por Alexander Lowen196 do grande manancial D82 Reichiano reichiano que, evidentemente, se abeberou em Freud!

VALDIR — (Curioso) E o Dr. Frustrafroide? Onde é que ele fica nessa? D83 Não consta o nome da personagem (VALDIR) PROTEÍNA — (Ligeiramente confusa) Bom... quer dizer... Ele é mais via Lacan, entende? Lacan é uma releitura de Freud patati patatá, mas aqui muito entre nós que ninguém nos ouça: (Apontando para o grande retrato de LACAN que domina D82 patatí ; não ouça o cenário) era um palhação, cara! Esnobe até não poder mais, louco de pedra, até que de repente, já velho septuagenário, aboliu a própria escola que ele criou, sabe como é? Uma espécie de suicídio profissional no coração da psicanálise! (ELA massageia o coração de VALDIR) Está sentindo o coração?

VALDIR — (Voluptuoso, gemebundo) Hummm! Huummm! (Curioso) Que coração? O coração da psicanálise? Ou o meu?

PROTEÍNA — (Já praticamente massageando as zonas erógenas de VALDIR) O seu! Claro que é o seu. Ou você não tem coração?

VALDIR — Bom, eu... Mas não aí...

PROTEÍNA — Ah, aqui também sim senhor. Eu acho que você tá meio por fora de anatomia, Valdir... Não é por nada

196 Tendo estudado com W. Reich, Alexander Lowen desenvolveu, em 1975, a Análise Bioenergética, ―uma técnica terapêutica que ajuda o indivíduo a reencontrar-se com o seu corpo, e a tirar o mais alto proveito possível da vida que há nele. Ela é uma aventura de autodescoberta. Difere de formas similares de exploração da natureza do ser por tentar e perseguir o objetivo de compreender a personalidade humana em termos de corpo humano. Segundo Lowen, os processos energéticos do corpo determinam o que acontece na mente, da mesma forma que determinam o que acontece no corpo‖ (BIOENERGÉTICA, 2011). Ao longo dos seus 60 anos de atuação, tendo vivido por quase 98 anos, Lowen buscou, conforme defende em sua autobiografia, ―curar a cisão mente-corpo‖ (LOWEN, 2007), o que propôs no conjunto de sua obra publicada, com exercícios corporais, estudo do orgasmo e da sexualidade e temas universais à luz da análise bioenergética. 279 não...

VALDIR — (Gemendo) Hummm. Ui, aaah... Proteína...

PROTEÍNA — (Parafraseando a canção popular) Ah, seu Valdir!197

(VALDIR começa a agarrar PROTEÍNA que, um pouco confusa mas extremamente excitada, retribui. Ao mesmo tempo os cachorros recomeçam a latir e continuam até o fim do ato sexual)

VALDIR — (Agarrando PROTEÍNA para cima do divã, extremamente excitado) Ah, essa Proteinazinha! Vem, D82

/P\roteinazinha vitamina, vem!

Me alimente, tá, Me alimenta, tá,

Proteinazinha vitaminada! Ah, todinha vitaminada, fazendo a terapia do papai, não é?

197 Caso famoso de censura foi o ocorrido com Seu Waldir, uma canção de amor estilo samba-rock do sexteto pernambucano Ave Sangria, gravada em 1974 na voz masculina do vocalista Marco Polo. Apesar de a letra não conteúdo erótico, político ou subversivo, tratando apenas de um amor não correspondido, a música foi entendida como apologia à homossexualidade, uma vez que era interpretada por um homem. Em 1981, fase mais branda da censura, Seu Waldir estourou nas rádios na voz de Ney Matogrosso, gravada no mesmo álbum que Folia no matagal. A censura a Seu Waldir é comentada na página eletrônica do Governo Federal, onde se lê que ―nos anos 1970, a simples desconfiança de que uma música fazia ‗apologia à homossexualidade‘ foi o suficiente para retirar do mercado – via censura oficial – o disco de uma jovem e promissora banda pernambucana de rock. O caso aconteceu com o sexteto Ave Sangria. Em 1974, o grupo lançou seu primeiro LP, que continha entre as faixas a canção Seu Waldir. Na letra, o vocalista Marco Polo canta ‗Seu Waldir, o senhor magoou meu coração‘ e relata a história de um amor não correspondido. ‗Sei que o senhor está gamadão em mim. Eu quero ser o seu brinquedo favorito. Seu apito, sua camisa de cetim‘. Não é raro compositores interpretarem papéis do outro sexo em suas composições. Chico Buarque, por exemplo, é conhecido por entender a alma feminina justamente por algumas de suas canções serem cantadas do ponto de vista de uma mulher. Seu Waldir não teve a mesma sorte. Em entrevista ao jornalista pernambucano José Teles, autor do livro ‗Do frevo ao manguebeat‘, Marco Polo contou a história da música. ‗Eu fiz Seu Waldir no Rio, antes de entrar na banda. Ela foi encomendada por Marília Pera para a trilha da peça A vida escrachada de Baby Stomponato, de Bráulio Pedroso, que acabou não aproveitando a música‘. Como Seu Waldir fez relativo sucesso no rádio naquele ano, acabou chamando a atenção. E muita gente não gostou do que ouviu. O Departamento de Censura da Polícia Federal não acreditou na explicação de Marco Polo, o LP foi proibido e os exemplares que ainda não tinham sido vendidos foram recolhidos das lojas. O LP do Ave Sangria foi relançado sem Seu Waldir. Em 1981, Ney Matogrosso relançou a música como lado B do compacto simples Folia no matagal‖ (BRASIL, 2015). 280

PROTEÍNA — (Transportada) Ah seu Valdir, você tá muito impaciente!

VALDIR — (Extremamente sensual mas ligeiramente agressivo) Ah, vai ter paciência, minha vitaminosa, que o papai D82 Huumm, aqui não tá pra paciente hoje não! Huummm, aaah, aih...

PROTEÍNA — Huum, gostosão! Tesãozinho da mamãe! D82 aaaaii ; estado

(VALDIR perde o controle e, em seu ardor, agarra a mão de PROTEÍNA forçando-a sobre seu órgão sexual. Quando isso acontece PROTEÍNA solta um grito lancinante e se torna completamente histérica, histeria que culminará com seu desmaio pouco depois) Socorro! Ah, Valdir... Valdirzinho, não faz assim! Ui, ui, aaaaiiih! (PROTEÍNA solta muitos gritinhos ad libitum e finalmente desmaia de excitação, caindo arreganhada sobre o divã. VALDIR arranca o que houver restado da roupa dela, termina de tirar a sua própria e mantém relações sexuais com PROTEÍNA desfalecida mesmo)

VALDIR — (Alucinado) Toma, Proteína! Toma, toma! Ah, minha vitaminazinha! D82 mina (Histérico, enquanto atinge o clímax) Mengo! Mengo! Mengo! Mengo! Mengo! repete (s.v.) ; pouco (ELE se desfaz exausto sobre PROTEÍNA mas ainda repete, bufando um pouco, as chamadas rituais de seu clube) Men- (s.v.) ; desapercebidamente go... Men... go...

(Os cachorros, que latiam caoticamente na trilha sonora, agora parecem arrefecer, diminuindo até parar. Entra MARINETE despercebidamente chamando a patroa e quando se depara com a cena dos corpos nus sobre o divã dá um D83 nús pulo de susto, tapa os olhos com as mãos e foge avoada para a cozinha)

MARINETE — Dona Proteína! Uaaaiihh!

(VALDIR como que desperta logo após a fuga de MARINETE e, com movimentos bastante rápidos, começa a se vestir. Começa a denotar certa preocupação com o desmaio de PROTEÍNA. A certa altura, quando já está de camisa, cuecas e 281 meias, ELE tenta despertá-la)

VALDIR — (Testando a temperatura de PROTEÍNA com a mão em seu pescoço e sua testa) Proteína! Acorda! Eiih, amizade! Acorda que a sessão já passou do tempo regulamentar...

PROTEÍNA — (Começando a voltar a si, melodramática) Onde estou?

VALDIR — (Compenetrado) Você tá aqui, tá tudo bem...

(À medida em que se dá conta do acontecido, PROTEÍNA começa a ter um acesso de riso ligeiramente histérico) D82 Á medida

PROTEÍNA — Ah, seu Valdir! Quá quá quá quá quá... Qui qui qui qui qui...

Qué qué qué qué qué... Qué qué qué...

(ELA tenta se levantar do divã e sente dores lancinantes em seus órgãos sexuais e adjacências) Ai! Aiiih... Socorro, o que que aconteceu?! (Furiosa) Desgraçado! Você me quebrou toda! (Ordenando raivosamente) Me dá aquela blusa ali que tá no chão! (VALDIR obedece humildemente. PROTEÍNA veste a blusa às pressas e, ainda seminua, se levanta sempre ge- mebunda e termina de se vestir) Cafajeste que você é! Grandessíssimo cafajeste, isso sim é que você é! Não podia ter D82 Grandissíssimo esperado não?

VALDIR — (Irritado) Cafajeste por quê? Não foi você que começou não? D82 por que (s.a.)

PROTEÍNA — (Indignada) Claro que foi: mas não pra desmaiar e perder tudo, né? Cê não podia ter um mínimo de consideração não? É cafajeste mesmo e do grosso: casca grossa!

VALDIR — (Extremamente irritado) Casca grossa é o caralho, tá sabendo? Quem que é a psicanalista aqui? Quem é que tá aqui pra explicar o que que é e o que que deixa de ser e de repente foi logo metendo a mão em mim? D82 quê ; quê

282

PROTEÍNA — (Furiosa) Meto a mão mesmo, tá sabendo você: meti a mão porque você é gostosão e eu faço o que eu D82 não (s.v.) quero! Não tô arrependida não, se é isso que você tá pensando! Estou doída, animal! Porque você não teve a hombridade de esperar! Se aproveitou do meu desmaio! Canalha rudimentar!

VALDIR — (Furioso) Rudimentar uma pinoia, babaca! Agora, que eu nunca vi psicanalista mais putinha lá isso não! Nem aqui nem na China!

PROTEÍNA — (Furiosa) Putinha é a puta que te pariu! Puta, sim, quando se trata de paciente infantilizado que nem você, D82 Puta (s.v.) com problema sério de identificação198!

VALDIR — (Violento) Caguei pra sua terapia! Identificação é o caralho!

PROTEÍNA — (Furiosa) Identificação sim senhor: homossexualismo latente! D82 homosexualismo

VALDIR — (Tentando se conter) Olha aqui, minha filha, se você tá querendo me ofender, me fazer perder a cabeça pra te dar uns tapas não vai custar nada, tá ouvindo? Eu vim aqui na maior boa vontade, por recomendação, não foi pra levar

198 Identificação é um dos conceitos de base de todo o pensamento freudiano e corresponde ao ―processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.226), de modo que este corresponderia ao principal mecanismo de criação da estrutura psíquica. Longe de ser um conceito estável, identificação é um termo que faz parte da linguagem comum e da filosofia, razão pela qual Laplanche e Pontalis (2001 [1982]), relendo Lalande, diferenciam dois sentidos do termo, a ―ação de identificar, isto é, de reconhecer como idêntico; ou pelo número – por exemplo, a ‗identificação de um criminoso‘ –, ou pela espécie – por exemplo, quando se reconhece um objeto como pertencente a certa categoria [...] ou ainda quando se reconhece uma categoria de fatos assimilável a outra [...]‖; e o ―ato pelo qual um indivíduo se torna idêntico a outro, ou pelo qual dois seres se tornam idênticos (em pensamento ou de fato, totalmente ou secundum quid‖ (LALANDE apud LAPLANCHE;PONTALIS, 2001 [1982, p.227). Note-se que os dois sentidos, utilizados por Freud, têm sido ramificados em numerosos estudos aplicados sobre a identificação, desde o emprego do termo para compreender a estrutura psíquica de homicidas, como o fez Anna Freud, até seu uso para diagnosticar psicopatologias. Lamentavelmente, na década de 1980, muitos pesquisadores da psicanálise ainda compreendiam o comportamento homossexual como portador de desvio psicopatológico, de tal forma que seu emprego, neste texto, pode se referir à ideia lacaniana de ―identificação que o indivíduo faz a partir do outro, se observada nos seus estudos sobre o espelho‖ (FARIAS, 1986, p.101), quando a criança, ainda bebê, se reconhece como um todo; ou também à teoria de Winnicott sobre a constituição da identidade sexual da criança, que compreende a falta da experiência homossexual com o pai como uma das etiologias da tendência homossexual masculina a partir da qual se percebem as ―identificações parentais e sua relação com as tendências hetero e homossexuais; mais especificamente, a necessidade do menino de um pacto homossexual com o pai na fase em que se iniciam os relacionamentos interpessoais‖ (DIAS, 2013, p.50). 283 desaforo pra casa não!

PROTEÍNA — Mas quem é que tá te dizendo desaforo, criatura? Se eu não tivesse simpatizado com você, você acha que eu teria... é... sabe como é, teria aplicado esse tipo de terapia assim mais direto? Você acha que eu teria?

VALDIR — E eu que vou saber o que que passa pela sua cabeça, Proteína, ora, pela madrugada, pô...

PROTEÍNA — Mas pera aí: teria ou não teria?

VALDIR — Teria o que, mulher? Sabe qual é? Eu não tô entendendo patavina da sua terapia e muito menos da sua cabeça. Esse negócio de você fazer massagem e depois desmaiar assim de repente como se eu...

PROTEÍNA — (Interrompendo) De repente, não! Eu desmaiei porque você exagerou, foi a excitação: é um trauma que eu tenho, problema meu, não vou dizer que é culpa sua:

PROTEÍNA — Mas você podia ter esperado, criatura!

VALDIR — (Confuso) Como assim? Esperado você desmaiar pra quê? D82 pra que? (s. a.)

284

PROTEÍNA — Esperado eu voltar a mim, ô mentecapto!

VALDIR — (Zangado, ameaçador) Olha, Proteína, se é pra baixar o nível você não me conhece, hein? D82 baixai

PROTEÍNA — (Enfática) Não é isso, Valdir: esperar pra eu poder sentir alguma coisa, né, ô engraçadinho?

Será que você ainda não entendeu? Só você que gozou199, ô amante primário! Garotão infantilizado!

VALDIR — Mas como é que você vai querer que eu...

PROTEÍNA — (Interrompendo) Que eu vá gozar se eu estou desmaiada como uma vaca prenhe, desacordada ali à sua inteira disposição? Um puta egoísmo, é o que isso significa: a sua imaturidade, que aliás tá na cara mesmo! É o machismo mesmo do homem brasileiro que tem que acabar!

199 Segundo Zimerman (2001), ―Lacan conferiu importante significação psicanalítica ao termo gozo, diferenciando-o de prazer (opõe-se a este, porque o prazer abaixaria as tensões psíquicas ao mais baixo nível possível) e de demanda, estando mais próximo deste. Embora Freud muito raramente tenha usado o termo gozo, é nele que Lacan se inspira, mais precisamente naquela constatação de Freud de que o bebê que é amamentado, mesmo depois de saciar sua necessidade orgânica, demora-se no seio da mãe, fazendo atos de sucção, agora movido por uma sensação de gratificação erógena. Lacan conclui que é o outro, a mãe ou seu substituto, quem confere um sentido à necessidade orgânica do bebê, de modo a ficar preso numa relação de comunicação, onde é remetido ao discurso do Outro‖ (ZIMERMAN, 2001, p.169). Roudinesco e Plon (1998 [1997]), pontuam que o termo só figura na obra de Freud ―nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: a propósito dos ‗invertidos‘ (homossexuais) que, em virtude de sua aversão pelo objeto do sexo oposto, não conseguem extrair ‗nenhum gozo‘ da relação com ele. Vamos reencontrar o termo no capítulo VI de seu ensaio Os chistes e sua relação com o inconsciente‖ (ROUDINESCO; PLON, 1998 [1997], p. 299). Asseguram os autores que é Lacan quem propõe um conceito ao gozo, ―inicialmente ligado ao prazer sexual, o conceito de gozo implica a ideia de uma transgressão da lei: desafio, submissão ou escárnio. O gozo, portanto, participa da perversão, teorizada por Lacan como um dos componentes estruturais do funcionamento psíquico, distinto das perversões sexuais. Posteriormente, o gozo foi repensado por Lacan no âmbito de uma teoria da identidade sexual, expressa em fórmulas da sexuação que levaram a distinguir o gozo fálico do gozo feminino (ou gozo dito suplementar)‖. 285

VALDIR — Mas pera aí, Proteína, fica calma e tenta me responder uma única pergunta, já que você é especialista em sexo e quer logo mandar na trepada dos outros...

PROTEÍNA — Não tô querendo mandar, não senhor! Não tô mesmo, não adianta você querer botar suas loucuras na minha boca porque eu nunca disse nada disso! Eu tô querendo é só o privilégio de estar acordada pelo menos! Entendeu? Você acha muito eu pedir isso? Estar acordada, estar lúcida pra poder saber o que está acontecendo! É demais isso para a sua inteligência?

VALDIR — (Ofendido) Já está me chamando de burro de novo! Tudo bem, eu sei que você é que é a grande intelectual, mas pode ficar sabendo que se eu fosse o burrão que você tá falando já tinha te dado uma porrada que mulher minha não fala desse jeito comigo não que eu não estou acostumado! Pode torrar o saco à vontade! Eu quero mais é que a sua garganta fique seca de tanto falar!

PROTEÍNA — Olha, falo mesmo, cara! Não vou aceitar repressão de paciente meu de nenhum tipo, seja o presidente do D82 car! Flamengo e nem que fosse o presidente da república! Falo pelos cotovelos e pronto! É isso aí! Você não é obrigado a continuar a análise. Está aqui porque quer, porque precisou do profissional: agora, se não tá satisfeito pode dar o fora que não vai fazer a mínima falta. Isso eu te garanto!

286

VALDIR — Mas, puxa, como você é exagerada!

PROTEÍNA — Ah eu é que sou exagerada? Você não sabe o que é reciprocidade não?

VALDIR — (Ingênuo) Reciprocidade?

PROTEÍNA — É.

Será que você não sabe que uma pessoa que desmaiou está com um problema médico: desmaiou, está dormindo fora de si, D82 una precisa de alguma coisa pra voltar a si!

VALDIR — Mas você voltou a si, não voltou?

PROTEÍNA — Voltei mas depois, né, ô adolescentezinho, depois que já tinha acontecido tudo e... D82 né o (s.v.) (s.a.)

VALDIR — (Estóico) E a culpa é minha...

PROTEÍNA — Não é culpa, Valdir! Quem é que está falando de culpa? Quem é que poderia estar falando de culpa quando se trata do ato mais nobre dentro do destino do ser humano?

VALDIR — Ah, agora virou filósofa, né? O ato mais nobre do destino... Vejam só, quem diria que é a mesma psicanalista há meia hora atrás: a maior fudegança em cima da porra do divã...

PROTEÍNA — (Fazendo certos movimentos e sentindo dores em suas áreas privadas) Ai! Você me machucou! Você não tem mesmo um pingo de consideração com a outra pessoa. Eu tô toda machucada, Valdir, por dentro! Ai! Aiih!

VALDIR — (Penalizado, se aproximando de PROTEÍNA) Não foi por querer não... 287

PROTEÍNA — (Ressentida) Não foi por querer... Foi por acaso, então... Você se distraiu e tchum...! D86 acaso (s.v.)

VALDIR — Não fala isso, Proteína. Também não foi distração não. Foi... uma espécie de... Sabe o que é? Foi a massagem. sua massagem. Aquele tipo novo de terapia que você começou a fazer, que você disse que vem... da Califórnia, não é isso?

PROTEÍNA — Valdir, não precisa se desculpar: eu gostei de você, fui eu que provoquei, eu tô pronta a assumir a responsabilidade. Mas o que me interessa é a consideração, o respeito mútuo e a delicadeza que vem da Califórnia também... (ELA choraminga)

VALDIR — (Afagando PROTEÍNA) Não fica assim, garotona... Onde é que foi que doeu?

PROTEÍNA — (Indicando a vagina, choramingando) Aqui...

VALDIR — (Afagando mais PROTEÍNA) Pronto, pronto, já passou... Já passou...

PROTEÍNA — Tudo bem. Eu não vou reclamar mais.

VALDIR — Pode reclamar, você tem todo o direito de reclamar. Eu sou mesmo um porco chauvinista... D82 chuvinista...

PROTEÍNA — Você é um cara legal, Valdir.

VALDIR — Quer saber de uma coisa? Agora que a análise já acabou eu posso até te dizer logo: foi por isso que a minha D82 porisso noiva me mandou aqui!

PROTEÍNA — (Desconfiada) Por isso o quê?

288

VALDIR — Esse problema que você tava dizendo. Aliás você é mesmo psicóloga: se lembra quando você falou em... o que mesmo? Sim, reciprocidade!

PROTEÍNA — Que que tem?

VALDIR — Ela também, entende? É disso mesmo que ela me acusa, que ela começou a fazer minha cabeça pra ir ao psicanalista, fazer análise et cétera.

PROTEÍNA — Te acusa de não ter, né?

VALDIR — De não ter?

PROTEÍNA — (Ligeiramente impaciente) Reciprocidade, Valdir: é o que você não tem, senão ela nem ia se tocar... Deixa isso pra lá.(Olhando no relógio de pulso) Nossa, já são quatro e meia!

VALDIR — Você tem outro cliente?

PROTEÍNA — Outro cliente? (ELA segura a barriga com a mão e dá um pequeno gemido) Ai! (Olhando para o divã em desordem) E esse divã, olha só! Eu vou dar um jeitinho nele. (ELA começa a arrumar o divã. Entra o FRUSTRINHA como no início da peça carregando alguns tomos de enciclopédia. Afetando bastante naturalidade, para o

FRUSTR1NHA) Tudo bem, Frustrinha? (VALDIR olha estupefato para o garoto excepcional que coloca os volumes no D82 estupefado chão e sobe em cima para recitar)

VALDIR — (Tentando ser simpático) Como é que é, garotão?

PROTEÍNA — (Ligeiramenta alarmada) Ih, lá vai ele!

FRUSTRINHA — (Recitando, dramático) 289

Nas cidades de agora como um bando de vândalos D82 banho Você e eu e nós catalogando No livro rubro-negro do destino Para os tipos de horror as espécies de escândalo

VALDIR — (Entusiasmado) Viu só, Proteína!? O livro rubro-negro do destino! Ele é Flamengo! Ele sabe das coisas, D82 coisas (s.v.) ; afinal!

PROTEÍNA — (Ocupada dobrando os lençóis e a colcha, fleumática) Eu se fosse você não tinha tanta certeza não. Antes D82 últimamente ; ele só recitava os clássicos, era uma beleza. Mas ultimamente os poemas dele andam meio herméticos... hermáticos

VALDIR — (Confuso) Hermético? Qual é, garotão? Ouviu o que a tua mãe disse?

PROTEÍNA — Mãe, não: vó. Eu sou a avó dele.

FRUSTRINHA — (Improvisando) Minha mãe é minha vó E isso frustre a quem frustre Meu antepassado ilustre É o Marquês de Rabicó

VALDIR — (Estupefato) Ah, agora é que eu tô vendo... Mas como é inteligente, Proteína! Só agora é que eu fiz a D82 Estupefado ligação... O famoso caso dos filhos do dr. Frustrafroide... Mas será possível, Proteína? Isso não foi há tanto tempo assim...

PROTEÍNA — (Explicando) Ele só tem quatro anos.

VALDIR — (Estupefato) Quatro anos... Mas... o guri é um gênio então, Proteína! Recitando assim com quatro anos, D82 Estupefado ; gurí desse tamanhão! E ninguém me tira da cabeça que ele é Flamengo! (Simpático, para o FRUSTRINHA) E aí, ô poeta, você 290

é ou não é Flamengo? (O FRUSTRINHA faz um riso mais ou menos débil mental mas VALDIR não desiste) Olha, repete essa música. (VALDIR canta a melodia do hino do Flamengo mas sem a letra, lá-lá-lá; o FRUSTRINHA repete pedaços esparsos)

MARINETE — (Entrando subitamente) Dona Proteína, a senhora desculpa eu interromper mas afinal eu consegui prender a Desinibida!

PROTEÍNA — (Entregando os lençóis dobrados para MARINETE) Até que enfim, Marinete! Toma! Pode guardar que hoje foi o último, tá?

MARINETE — Mas em compensação o Bambam fugiu, saiu correndo pra rua...

PROTEÍNA — (Irritada) E o Fileira? D82 fileira

MARINETE — (Prática) Está preso no banheiro com a Desinibida. (Ouvem-se os latidos finos e histéricos do Bambam vindos do lado do público)

VALDIR — (Incentivador, para o FRUSTRINHA que cantarola com ele todo esse tempo o hino do Flamengo) Isso! Tá certo! É isso mesmo, cara!

FRUSTRINHA — (Cantando, de maneira esquisita, mas cada vez melhor o hino do Flamengo) La-ri-lari, taratatá... ló-ló- ló-ló-lé...

VALDIR — Isso. E agora o estribilho: vencer, vencer, vencer: uma vez Flamengo, Flamengo até morrer!200

FRUSTRINHA — (Caoticamente) Vencer, vencer,

200 Cita-se novamente o hino popular do Clube de Regatas do Flamengo, versão de Lamartine de Azaredo e Babo, de 1945 (FLAMENGO, [20--]). 291

vencer. . . Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer.

VALDIR — (Entusiasmado, para PROTEÍNA) Viu só, Proteína? Seu neto é um prodígio mesmo! Flamenguista nato mesmo!

MARINETE — É pra levar o Frustrinha? A senhora desculpe, sim, mas quando eu abri a porta do banheiro pra botar a D82 correnso Desinibida e o Fileira, o Frustrinha e o Bambam fugiram correndo...

PROTEÍNA — (Confusa) Tudo bem, Marinete... Me faz um favor: leva sim, pode levar...

VALDIR e FRUSTRINHA — (Cantarolando ad libitum) ...Seja na terra... seja no mar... Flamengo sempre eu hei de ser... Vencer, vencer, vencer...

PROTEÍNA — Não, vai pegar o Bambam primeiro, Marinete! Faz favor, tá? Que ele é muito bobo pra ficar na rua assim sozinho. (Sai MARINETE)

VALDIR — Bem, VALDIR — Bom, eu vou embora, Proteína. Você está de parabéns: seu neto é um barato mesmo! Num instantinho aprendeu o hino. (ELE tira do bolso um livro de cheques) Deixa eu fazer um cheque pra você. De quanto é mesmo?

PROTEÍNA — (Fleumática) Olha, não é por nada não, eu não quis falar na frente da empregada mas aqui nós somos todos Fluminense, sabe?

VALDIR — (Estarrecido) Fluminense? Olha, Proteína, eu vim, eu não estou nada certo que análise seja exatamente o que eu preciso, gostaria de alguns dias pra pensar se eu vou continuar essa análise ou não. Sou bom pagador, vou fazer um cheque pra você. Agora, depois de tudo isso você me jogar na cara que é Fluminense eu acho um baixo nível muito grande. 292

PROTEÍNA — (Fleumática) O que que tem? Se você não soubesse agora ia acabar sabendo mesmo. D82 quê

VALDIR — (Para o FRUSTRINHA) É mentira o que ela tá dizendo, né, Frustrinha? Você pelo menos não é, certo? (Com a caneta e o cheque na mão, para PROTEÍNA) De quanto é, hein?

PROTEÍNA — Vinte mil...

(VALDIR escreve e assina o cheque enquanto o FRUSTRINHA ainda cantarola o hino do Flamengo)

VALDIR — (Entregando o cheque para PROTEÍNA) Tá aqui. Escuta, Proteína, você não se incomoda se eu te recomendar pra uns amigos, né? Tem uma pá de gente dentro daquele clube precisando de análise. Mesmo!

PROTEÍNA — (Fleumática) Tudo bem, pode mandar. Eu só não posso é te garantir que eu vou aceitar paciente novo para um trabalho continuado, né, em profundidade... Mas a sessão inicial pra conhecer a problemática do possível analisando, D82 para tudo bem...

VALDIR — (Expansivo, para o FRUSTRINHA) Até mais, atleta! E, olha aí, não esquece, hein: que você é Flamengo! Rubro-negro, feito você mesmo disse naquela letra que você fez... Como é mesmo? O destino rubro-negro, não sei o quê... Vai fundo, garotão! (VALDIR agarra o FRUSTRINHA expansivamente e o suspende no ar para se despedir)

FRUSTRINHA — (Cantarolando, ligeiramente debilóide) ...Seja na terra... seja no mar... Vencer, vencer... vencer...

VALDIR — (Depositando o FRUSTRINHA no chão, enfático) Falou? E não esquece, hein? E pode vir se apresentar diretamente pra mim lá no nosso clube quando você crescer... (Dando-se conta da gafe que cometeu) Quer dizer... quando você quiser... pra jogar bola, fazer natação, o que você quiser...

PROTEÍNA — (Simpática, para o FRUSTRINHA) Quando você tiver mais maduro e quiser fazer esporte... 293

VALDIR — (Para o FRUSTRINHA) Valeu, meu camarada? (Para PROTEÍNA, irônico) Quer dizer que você não sabe se está disponível pra tratamento em profundidade, certo? Nem que fosse o Zico, por exemplo? Você sabe, eu ando cada vez mais preocupado com a saúde mental dos meus craques. Hoje em dia a forma física só não é tudo. De repente, uma análise para complementar o equilíbrio da pessoa não é má ideia não.

PROTEÍNA — Tudo bem. Você é que sabe. Eu acho inteligente da sua parte se preocupar com o lado mental dos jogadores. Principalmente agora que vocês são campeões mundiais. Não pode deixar o sucesso virar a cabeça deles demais. Manda quem você quiser que eu tento tratar o melhor possível.

VALDIR — E quanto a mim...

PROTEÍNA — Quanto a você o quê?

VALDIR — (Ligeiramente encabulado) Bom... Qualquer coisa eu mando a minha secretária ligar pra você e... (Estendendo a mão para PROTEÍNA) Até logo, Proteína. Foi um prazer conhecê-la e... eu preciso pensar e...

PROTEÍNA — (Apertando a mão dele) Ciau, Tchau, Valdir. Tudo de bom pra você.

(Sai VALDIR) Eu te levo até a porta. (Saindo ambos para a porta. PROTEÍNA chamando em voz alta) Marinete! (Uma longa pausa durante a qual o FRUSTRINHA, só no palco, folheia o dicionário como de costume)

FRUSTRINHA — (Sem parar de folhear o dicionário; cantarolando o hino do Flamengo bastante distraído) La-ra-la-ra- 294 la-la... Seja na terra... seja no mar... Vencer, vencer, vencer... Tatatá ratatá, tatarataratá... D82 ratata (s.a.)

(FRUSTRINHA larga o dicionário e começa a dançar de maneira ligeiramente bizarra enquanto continua cantando o hino do Flamengo)

PROTEÍNA — (Chamando ) Marinete! Marinete!

MARINETE — Chamou, dona Proteína?

PROTEÍNA — Marinete, o Valdir.

MARINETE — O presidente do Flamengo, dona Proteína? O que é que tem ele.

PROTEÍNA — O Valdir. (Desconsolada) Ele me deixou na mão.

MARINETE — Quer que chame ele de novo? Eu boto os Desinibidos atrás dele e a gente ainda pega ele aí fora.

PROTEÍNA — Não adianta mais, Marinete. Agora ele já está longe. Já deve estar na concentração. Eu conheço esse tipo de analisando: vai correndo contar pra todo mundo. A análise,

Marinete. Esses cafajestes! D82 cafagestes MARINETE — Então o time todo vai vir? E a torcida? A galera também, dona Proteína? Será que a senhora deixa eu analisar o Adilio? 295

PROTEÍNA — Quem está precisando de análise agora sou eu, Marinete. O Valdir Teixeira é um machão. Não sabe que análise se resolve é ali, no divã, onze contra onze.

MARINETE — E que potência orgástica201 é a capacidade de D82 orgpastica ; quaiquer abandonar-se, livre de quaisquer inibições, ao fluxo de energia biológica.

PROTEÍNA — Ih, Marinete, isso é Reich. Não tá com nada.

Agora eu quero ver é se a potência orgástica dele espera pela minha potência orgástica e se a gente descarrega completamente a excitação sexual reprimida por meio de involuntárias e agradáveis convulsões do corpo JUNTOS. D82 agr/d\áveis

MARINETE — Então eu vou buscar ele lá na sede do Flamengo mesmo. Se ele estiver fazendo preleção os Desinibidos não querem nem saber. Entram em campo e tudo pra trazer o Valdir Teixeira pra senhora. Se a senhora quiser ainda trazem o Zico de quebra. E o Carpeggianni, e o Raul, e o Junior202, e o...

201 Segundo Roudinesco e Plon (1998 [1997]), ao ligar a palavra à intervenção no corpo, Reich ―apresentava a neurose como uma rigidez ou uma retração do organismo que era preciso tratar por exercícios de descontração muscular, a fim de fazer surgir o ‗reflexo orgástico‘‖ (ROUDINESCO; PLON, 1998 [1997], p.653). Sua ambição era ―construir e pôr em prática uma teoria orgástica do universo, com os meios tecnológicos da época‖ (ROUDINESCO; PLON, 1998 [1997], p.653). Reich foi duramente rechaçado por todos os círculos da psicanálise, que o diagnosticou como esquizofrênico, chegou a ser condenado por estelionato e terminou sua vida na prisão, onde ainda trabalhava em sua teoria orgástica. 202 Jogadores do time multicampeão do Flamengo no período de 1980/1982. Paulo Cezar Carpeggiani, que fazia parte do elenco como jogador, assumiu o cargo de técnico após a morte de Claudio Coutinho. Raul Plassmann atuava como goleiro. Leovegildo Lins da Gama Júnior, eleito em 1981 o 3º Maior Futebolista sulamericano do ano, é o jogador que mais vezes vestiu a camisa rubro-negra (LIBERTADORES, [20--]). 296

PROTEÍNA — Chega, Marinete, se é pros Desinibidos irem buscar alguém, eu quero que eles saiam correndo atrás do meu ego203. Pode morder e tudo. Contanto que tragam meu ego de volta, que esse merda desse presidente do Flamengo conseguiu mandar pras picas.

MARINETE — Essa aula o professor Furstrafroide já me deu. Deita no sofá, dona Proteína, que eu resolvo.

PROTEÍNA — Nas sessões com você o Frustrafroide espera por você, Marinete?

MARINETE — A senhora tá pensando o que? Que o negócio do professor Frustrafroide é futebol?

PROTEÍNA — (Chorosa) Então me ajuda, Marinete.

203 Laplanche e Pontalis (2001 [1982], p.125) consideram as duas teorias freudianas do aparelho psíquico (a primeira, referente aos sistemas inconsciente, pré-consciente- consciente) e a segunda, em que estabelece as três instâncias id, ego e superego, a partir das quais, com a ―virada‖ de 1920, o conceito de ego – também traduzido como eu –, passou a ser revestido de sentido estritamente psicanalítico, técnico. Dessa forma, distinguindo-se do id e do superego, o ego é entendido a partir de três pontos de vista: tópico, dinâmico e econômico, conforme sintetizam Laplanche e Pontalis (2001 [1982], p.124, grifo dos autores): ―do ponto de vista tópico, o ego está numa relação de dependência tanto para com as reivindicações do id, como para com os imperativos do superego e exigências da realidade. Embora se situe como mediador, encarregado dos interesses da totalidade da pessoa, a sua autonomia é apenas relativa. Do ponto de vista dinâmico, o ego representa eminentemente, no conflito neurótico, o polo defensivo da personalidade; põe em jogo uma série de mecanismos de defesa, estes motivados pela percepção de um afeto desagradável (sinal de angústia). Do ponto de vista econômico, o ego surge como um fator de ligação dos processos psíquicos; mas, nas operações defensivas, as tentativas de ligação da energia pulsional são contaminadas pelas características que especificam o processo primário: assumem um aspecto compulsivo, repetitivo, desreal‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.124, grifo dos autores). Assim, pontuam os autores que ―a teoria psicanalítica procura explicar a gênese do ego em dois registros relativamente heterogêneos, quer vendo nele um aparelho adaptativo, diferenciado a partir do id em contato com a realidade exterior, quer definindo-o como o produto de identificações que levam à formação no seio da pessoa de um objeto de amor investido pelo id. Relativamente à primeira teoria do aparelho psíquico, o ego é mais vasto do que o sistema pré-consciente-consciente, na medida em que as suas operações defensivas são em grande parte inconscientes‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001 [1982], p.124, grifo dos autores). 297

MARINETE — Deita aí, dona Proteína. Deita que eu vou fazer uma invocação poética pra gente chamar o seu ego no passado204. O mais remoto do seu ego.

PROTEÍNA — É Lacan isso, Marinete?

MARINETE — Não senhora, é Bilac205.

FRUSTRINHA — (Que tinha cantado e dançado enquanto isso, se interessa agora pela conversa das duas) É Bi-lacn, é bi-lacan, é bi-lacan...

PROTEÍNA — Para, Frustrinha, deixa a vovó ver se goza.

MARINETE — Para, menino, respeita a tua avó.

PROTEÍNA — E vê se traz também o ego remoto do Valdir, D82 ver Marinete, se não não vai adiantar de nada. O meu ego remoto

204 Menciona-se a Terapia de Vidas Passadas (TVP), também chamada de Terapia de Regresssão, que se desenvolveu em 1967, pelo psicólogo Morris Netherton, a partir do método que chamou de Hipnose Ativa. ―De acordo com essa abordagem, ao alterar seu estado de consciência, o paciente regressaria a um passado bem distante de sua vida atual, do qual não teria mais lembranças explícitas. Nas sessões de TVP, o paciente teria acesso a um local de sua mente que foi denominado como memória extra-cerebral. Netherton, após muitas pesquisas, concluiu que dessa forma, ao alcançar o cerne do problema e a origem dos traumas, o inconsciente liberaria conteúdos psíquicos que estavam bloqueados, através de um fenômeno psíquico que Freud chamava de ‗catarse‘. Netherton observou que depois da catarse, com a liberação da energia psíquica que estava retida, os pacientes experimentavam um intenso alívio e diminuição nos sintomas dos seus problemas, apresentando até a cura de doenças físicas e psicológicas. Juntamente com Morris Netherton, nomes como Hans Tendam, Roger Woolger e Edith Fiore também são referência na história da Terapia de Vidas Passadas‖ (HIPNOSE, 2017). 205 Refere-se ao poeta, jornalista e inspetor de ensino Olavo Bilac (1865-1918), ―um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, criou a cadeira nº. 15, que tem como patrono Gonçalves Dias‖ (ABL, [20--]). A relação entre Olavo Bilac e a Terapia de Vidas Passadas pode ser entendida a partir da polêmica obra de Francisco Cândido Xavier Parnaso de Além-Túmulo (XAVIER, 1932), uma coletânea de poemas inéditos, que se disse obtida através de transe hipnótico, com autoria atribuída a 56 autores luso- brasileiros póstumos, entre os quais Casimiro de Abreu, Castro Alves, Augusto dos Anjos e Olavo Bilac, a quem supõe a autoria de 10 sonetos. 298 sozinho também não vai resolver.

MARINETE — Deita, dona Proteína. (PROTEÍNA deita no divã, Marinete senta no sofá ao lado e começa a recitar enquanto o FRUSTFINHA sai cantando o hino do Flamengo. PROTEÍNA fica de quatro no divã e fica repetindo ‘pode entrar’, ‘pode entrar’, ‘pode entrar’ enquanto MARINETE recita.)

MARINETE — O passado é uma árvore de natal

Toda coberta de presentes O futuro é uma estrela cadente

O passado é como você quer

O presente é uma bolha de sabão Pousada na árvore de natal.

O passado é o presente do passado O presente é uma bolha de sabão

O passado é uma bolha de sabão Trecho produzido a partir do poema O presente é como você quer Introdução ao conceito Pousado na árvore de natal. do tempo (ATHAYDE, 1979, p.10-11; 2001, Toda coberta de presentes p.29-31 )

O passado na árvore de natal O presente na árvore de natal O futuro é uma estrela cadente 299

O futuro é o presente do futuro Mas o futuro é o passado do futuro O futuro é uma estrela delirante

O futuro é o futuro do futuro Pousado na árvore de natal Todo coberto de presentes

O futuro na árvore de natal O futuro é como você quer Todo coberto de presentes E o presente é uma bolha de sabão Pousada na árvore de natal E o futuro é uma bolha de sabão

O futuro é uma estrela decadente O passado é uma bolha de sabão O presente é o presente do presente

O presente é uma árvore de natal Pousado na árvore de natal O futuro é uma estrela cadente

(PROTEÍNA que durante a poesia ficou repetindo ‘pode entrar’, é substituída por FRUSTRINHA vestido com roupas femininas antigas, chapéu, etc. ELE senta no sofá e repete um D82 languidissimo (s.a.) languidíssimo ‘pode entrar’.) 300

FRUSTRINHA — Pode entrar.

Trecho produzido a VALDIR — (Agora vestido nas roupas do Conde de Gobineau) partir do conto Divertissement para Ah, Alteza, mil perdões pela maneira como eu bati na porta. Mas ambientes finos é que eu tenho uma notícia sem importância para lhe dar. (ATHAYDE, 1974, p.61 a 75).

FRUSTRINHA — Se é assim não precisa pedir desculpas. Eu D82 pedie adoro notícia sem importância. Principalmente depois do banho e eu acabo de tomar um banho maravilhoso.

VALDIR — E Vossa Alteza pensa que é por acaso que eu chego sempre quando Vossa Alteza já está de banho tomado?

FRUSTRINHA — Não tenho a menor ideia. Mas quer dizer que você sabe se as pessoas tomam banho neste navio e quando elas tomam banho.

VALDIR — Sei... (Os cachorros voltam a latir).

OS DESINIBIDOS NEUROSE E RESSURREIÇÃO DE ROBERTO ATHAYDE

301

3ª Parte ‘STAMOS EM PLENO MAR

(Mudança geral. Estamos a bordo de um navio em cruzeiro pelo D82: cruseiro Mediterrâneo. PROTEÍNA vestida como a Princesa Isabel substitui FRUSTRINHA e dança uma valsa com o Conde GOBINEAU. FRUSTRINHA é retirado de cena aos berros por MARINETE.)

MARINETE — Sai, Frustrinha, deixa sua avó com o Valdir Teixeira. Isso é coisa de gente grande, criança não pode se meter.

FRUSTRINHA — Me larga, merda, solta. Não é Valdir Teixeira 206 porra nenhuma. Esse aí é o Conde Gobineau , diplomata francês que serviu no Brasil durante o segundo Reinado e logrou D82: nehuma se fazer amigo de D. Pedro II. Nesse tempo o Flamengo nem existia. E depois o Conde Gobineau era famoso por seus livros de sociologia em que seus partidários viam provada a superioridade da raça ariana. Não era famoso por isso de ser presidente de time D82: [ariana↑ms] de futebol, ainda mais time de crioulo. Há quem aponte o conde entre os mais ilustres predecessores do nazismo.

206 Em 1869, Joseph Arthur de Gobineau, o Conde Gobineau, esteve no Brasil em missão diplomática, como ministro da França na corte brasileira. Em 1874, escreveu o artigo L’émigration au Brésil para o periódico francês Le Correspondant, no qual pressupõe a extinção da população brasileira em menos de duzentos anos, em virtude desta ser, em sua maioria, fruto da mestiçagem entre negros, índios e portugueses. Segundo Sousa (2013), no entanto, Gobineau é mais conhecido pela obra em quatro volumes Essai sur l’ inégalité des races humaines, em que explica a ascensão e queda de todas as grandes civilizações com base na questão étnica, entendendo que uma raça pura perde as suas qualidades ao misturar-se com outras (SOUSA, 2013). 302

MARINETE — Pode até ser esse Conde de Gobineau aí mesmo o presidente do Flamengo. Mas seja quem for vai resolver o problema da sua avó.

FRUSTRINHA — E essa aí é a Princesa Isabel207 não é nada de minha avó não. Você não conhece a Princesa Isabel, mal agradecida? Minha avó nada. É a tua vó, é a tua vó, é a tua vó...

(MARINETE sai arrastando o FRUSTRINHA. De fora ouve-se o grito dele)

FRUSTRINHA — (Gritando de fora) Eu é que sou o avô dela. Eu sou o Pedro Primeiro208. Diga ao povo que eu fico.

207 Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga tornou-se a sucessora do trono de D. Pedro II em virtude da morte, em 1847 e 1850, respectivamente, dos seus irmãos, D. Afonso Pedro e D. Pedro Afonso, sendo desde então preparada para se tornar Imperatriz do Brasil. Assumiu o trono brasileiro em três momentos: 1871 a 1872 (primeira regência), quando aprovou a Lei do Ventre Livre, 1876 a 1877 (segunda regência) e 1887 a 1888 (terceira regência), quando assinou o projeto do ministro da agricultura para a abolição incondicional da escravidão, a Lei Áurea. Em 1889, após a proclamação da república, deixou o Brasil, seguindo em exílio para a França. A historiografia moderna a representou muitas vezes como redentora, marcada por ser extremamente religiosa (BARMAN, 2012), que abraçou a causa da abolição principalmente porque a escravidão lhe parecia contrária às doutrinas da Igreja Católica. Seguindo essa perspectiva, consta na página eletrônica da Agência Católica de Informações (ACI, 2012) que o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro Dom Orani Tempesta recebeu, em 2011, o pedido de beatificação e canonização da princesa Isabel. Apesar da permanência de tal imagem propagandística, cartas e documentos inéditos dos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Museu Imperial, em Petrópolis, investigados pela historiadora Mary Del Priore (2013), comprovam que, para ela, temas políticos eram considerados entediantes, como se pode ler no livro O Castelo de Papel: uma história de Isabel de Bragança, princesa imperial do Brasil, e Gastão de Orléans, conde d’Eu (PRIORE, 2013). Os resultados da pesquisa empreendida pela historiadora têm evidenciado que a ―redentora‖ não foi senão uma mulher sem vocação ou interesse em questões políticas ou humanitárias, preocupada apenas com a família e a sustentação da realeza, que, a contragosto, assinou as leis para acalmar as tensões do império. 208 Dom Pedro de Alcântara (1798-1834) foi o primeiro imperador do Brasil, filho de Dom João e Carlota Joaquina, avô da Princesa Isabel. Nascido em Portugal, veio para o país ainda criança, com toda a família real, em 1808, na fuga das tropas napoleônicas. Tornou-se príncipe regente do Brasil em 1820, quando a família real regressou a Portugal. Considerado um intelectual de grande popularidade no Brasil, recusou a ordem emitida pela corte portuguesa que decretava seu regresso, declarando, em 9 de janeiro de 1822, data que se estabeleceu como o Dia do Fico: "como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto. Diga ao povo que fico". Em 7 de setembro de 1822, declarou rompimento definitivo com Portugal e foi proclamado Imperador. Como tal, outorgou a Primeira Constituição Brasileira (1824), que vigorou até o fim do império, em 1889. Um recente trabalho de Paulo Rezzutti (2015) debruçou-se sobre cartas e outros documentos inéditos do imperador para analisar sua visão política e idealismo. 303

(A princesa senta. Recomeça o diálogo, do Conde e da Princesa)

ALTEZA — Se você sabe tanto, então é possível que você possa Trecho produzido a partir do conto me dar uma explicação sobre os banhos tomados pelos Divertissement para passageiros. A água desse navio tem alguma coisa de saudável ambientes finos (ATHAYDE, 1974, que eu nunca tinha sentido antes. p.61 a 75).

GOBINEAU — Ah, é?! O que por exemplo?

ALTEZA — É difícil de explicar. Dá uma sensação de tranquilidade.

GOBINEAU — Seria salgada?

ALTEZA — Pois então não é salgada mesmo. Eu provei.

GOBINEAU — Água salgada incomoda durante a noite. A pessoa não consegue dormir. Fica coçando a noite inteira.

ALTEZA — É. (Pausa) Mas não dá alucinações, dá? D82: alucinacões

GOBINEAU — Que eu saiba não. Por quê? Vossa Alteza teve uma alucinação?

ALTEZA — Não, não é bem isso. Eu só não ando dormindo muito bem.

304

GOBINEAU — Mas o que é que Vossa Alteza sente? Coceira com alucinação? Só coceira? Só alucinação?

ALTEZA — (Novelesca) Ah, Conde, já que você se propõe falar no assunto talvez seja melhor eu lhe contar tudo!

GOBINEAU — Tudo?!

ALTEZA — Afinal de contas você foi sempre tão amigo de meu pai apesar de não ter se dado bem no Brasil...

GOBINEAU — (Nervoso) Fala pelo amor de Deus, Princesa. Foi coceira com alucinação?

ALTEZA — Não foi nada disso, Conde, foi só alucinação. Eu tenho ouvido vozes durante a noite. D82: à noite

GOBINEAU — Vozes?

ALTEZA — Gemidos. Gritos. Mas não qualquer gemido à toa ou D82: a-toa qualquer gritinho; gemidos e gritos humanos. Gritos pungentes, de cortar o coração.

GOBINEAU — Humm.

ALTEZA — Eu não sei mais o que fazer. Eu cheguei a comprar um livro de psicologia para ver se encontrava a solução. Eu vou lhe mostrar. (ALTEZA procura o livro numa gaveta) Se chama ―A 305

Cura dos Nervos209‖. É um livro de neurologia de grande reputação. Não adiantou absolutamente nada. Aí eu resolvi tentar outro livro. Só que a biblioteca de bordo não é muito grande. Aí eu resolvi tentar a ficção. Você sabe que Joana d‘Arc210 também ouvia vozes, não é? Eu peguei o St. Joan de Bernard Shaw211.

GOBINEAU — Eu vou ter que ser franco com Vossa Alteza. A amizade que nos une me impede de deixar que Vossa Alteza continue na crença dessas alucinações.

ALTEZA — Como assim? Em que a sua franqueza pode interferir nas minhas alucinações?

GOBINEAU — A minha franqueza pode simplesmente curar para sempre as alucinações de Vossa Alteza.

ALTEZA — Francamente, Conde, suas palavras me parecem perfeitamente absurdas.

209 Provável menção ao livro A cura dos nervosos: conselhos médicos, um tratado neurológico de autoria de Antônio Austregésilo (1918), como aparece novamente citado mais adiante (cf. f.112). Antônio Austregésilo foi um médico, professor e ensaísta pernambucano, tio-avô de Roberto Athayde (CORREIO..., 1960), e membro da Academia Brasileira de Letras, que integrou a equipe do professor Juliano Moreira, com quem aprofundou seus estudos de neurologia (ABL, 2016). 210 Joana d‘Arc (1412-1431) é considerada a mais importante heroína francesa (AMARAL, 2012, p.10). Atuou na Guerra dos Cem Anos, em que, vestida como homem, participou do exército e comandou tropas militares com êxito contra os ingleses. Foi queimada em praça pública como bruxa em 1431 e, somente em 1920, o Papa Bento XV promoveu a canonização de sua imagem. Ao longo da história, sua personalidade têm sido ressignificada de diversas formas na literatura, no teatro e no cinema. Frequentemente, nas narrativas historiográficas de que é personagem, conta-se que, quando criança, ouvia vozes que a incentivaram a lutar pela libertação da França dos invasores ingleses (AMARAL, 2012). 211 Saint Joan – A chronicle play in six scenes and an epilogue (1923) é uma peça teatral escrita pelo dramaturgo e romancista irlandês George Bernard Shaw (1856-1950). Segundo Zanirato (2011), a representação de Joana d‘Arc como santa na obra de Shaw aproxima a voz da personagem à voz do próprio autor, que a trata como intelectual de grande fibra moral e incompreendida pelas pessoas de seu tempo. 306

GOBINEAU — Absurda ou não é a verdade. Eu posso curar as alucinações de Vossa Alteza simplesmente lhe dizendo que não houve alucinação.

ALTEZA — (Irritada) Não houve alucinação? Como não houve alucinação? Pois eu estou lhe dizendo que tive alucinações. O que é que você pensa que as minhas alucinações são? Uma coisa fantástica, que não se sabe bem se aconteceu ou não? Está muito enganado, Senhor Conde. Minhas alucinações são tão reais quanto a sua impertinência de duvidar delas.

GOBINEAU — Mas é exatamente isso: a irrealidade das suas alucinações reside justamente no fato de serem excessivamente reais. Ou seja, para encurtar a discussão: eu também ouço as vozes que Vossa Alteza ouve, portanto elas não são alucinações mas sim a realidade.

ALTEZA — Quer dizer que as minhas alucinações são a realidade?

GOBINEAU — Infelizmente são, Alteza.

ALTEZA — Bom, então eu não preciso mais da Cura dos Nervosos. (Coloca o livro na gaveta)

GOBINEAU — Mas isso não quer dizer necessariamente que o problema deixe de existir.

307

ALTEZA — Não quer dizer? (Alteza tira o livro novamente da gaveta)

GOBINEAU — É. Nem por isso os gritos deixarão de ser ouvidos D82: porisso durante a noite. Na realidade o problema seria mais fácil de resolver se fosse uma alucinação de Vossa Alteza.

ALTEZA — Bem, Senhor Conde, uma vez que esses gritos e gemidos são reais, vamos esclarecer o assunto de uma vez por todas. Afinal se a gente faz um cruzeiro de férias pelo

Mediterrâneo é para se divertir e descansar e não para ficar ouvindo gritos histéricos durante a noite. Quem dá esses gritos e D82: moite por que motivo?

GOBINEAU — São os escravos.

ALTEZA — Escravos? (Pausa) Que escravos?

GOBINEAU — (Fleumático) Vossa Alteza não pode imaginar o quanto me dói ter que fazer essa declaração mas a verdade é que... nós estamos num navio negreiro.

ALTEZA — Navio negreiro? Num cruzeiro pelo Mediterrâneo?

GOBINEAU — Exatamente, Alteza. Os gritos e gemidos que têm perturbado o nosso sono ultimamente são os gritos e gemidos dos escravos agrilhoados no porão.

308

ALTEZA — Um navio negreiro um cruzeiro de férias pelo Mediterrâneo? Não é possível, Conde. Simplesmente não pode ser.

GOBINEAU — Eu também pensei isso quando me puseram ao corrente da situação. Primeiro, é claro, eu pensei como Vossa Alteza, que estava sendo vítima de alucinações. Depois um marinheiro me confirmou a notícia, depois um oficial, e afinal o próprio capitão. Ele reconheceu abertamente que o navio só é parcialmente turístico: metade turístico, metade negreiro, foram as palavras dele.

ALTEZA — (Chocada) Quer dizer que é verdade! O navio é metade negreiro!

GOBINEAU — Metade não, isso era modéstia do Capitão. Eu próprio depois fiz minhas investigações e verifiquei que o navio é praticamente todo negreiro. A parte turística é numericamente insignificante. Depois vem a parte dos serviços, que é a menos pitoresca de todas: é completamente burocratizada. Mas a grande parte, que ocupa mais de noventa por cento do navio é justamente o porão. É lá que ficam os escravos.

ALTEZA — Não é possível, Conde. Eles não podem ser escravos. D82: possível., (c.ponto) Eu acredito nas suas investigações até o ponto em que elas se chocam com a realidade histórica. Eu sou a primeira a reconhecer que há gritos e gemidos que vêm do porão pois se eu própria tive o sono perturbado por eles: mas daí a concluir que os emissores 309 desses gritos sejam escravos vai um abismo. Não duvido de que os gritos são emitidos por homens uma vez que são gritos humanos, mas não são escravos. E não são escravos por uma razão muito simples: eu mesma já aboli isso. (Pausa) E não foi sem sacrifício. Há historiadores que atribuem todos os males do Brasil a um dos meus decretos.

GOBINEAU — Ninguém mais do que eu está ciente desse fato. Vossa Alteza sabe qual foi o primeiro decreto assinado pelos cabeças da revolução que fez cair o Império212?

ALTEZA — Não.

GOBINEAU — Foi transformar a nona sinfonia de Beethoven213 num baião.

ALTEZA — Que falta de critério.

GOBINEAU — E falta de respeito.

ALTEZA — Falta de gosto.

212 O fim do Império no Brasil ocorreu em 1889, culminando com o retorno do imperador Dom Pedro II e sua família para a Europa. Seu reinado, já desgastado por diversos fatores, havia-se tornado uma monarquia parlamentar desde 1847, aumentando a insatisfação dos republicanos que, sob liderança do Marechal Deodoro da Fonseca derrubaram, em 15 de novembro de 1889, ministério de Ouro Preto e constituíram um governo provisório sob o comando do referido Marechal (PORTAL BRASIL, 2014 [2009]). 213 A Sinfonia n.° 9 em D menor,opus 125, também conhecida como Sinfonia Coral ou como Nona, foi a última sinfonia completa do compositor alemão Ludwig van Beethoven (1777-1827) e apresentada pela primeira vez em Viena, 7 de maio de 1824. É considerada uma das mais célebres e revolucionárias sinfonias, uma vez que foi a primeira a incluir voz humana, através do poema Ode à Alegria, de Friedrich von Schiller, transformada em música por Beethoven (WDL, 2018). 310

GOBINEAU — Falta de senso das prioridades. Mas isso, Alteza, infelizmente não muda em nada a situação que nós temos que enfrentar, ou seja, os gritos que atrapalham o nosso sono. Todos nós sabemos que Vossa Alteza teve a generosidade de abolir a escravatura ao custo da sua própria coroa. Por isso mesmo Vossa Alteza é reverenciada por todos: as crianças aprendem os feitos de Vossa Alteza nas escolas. (Pausa) Só que isso não impede que os passageiros que se encontram no porão do navio e que gritam durante a noite sejam escravos.

ALTEZA — Como não impede? É claro que impede. Se isso não impede, o que impede?

GOBINEAU — Que eu saiba, até agora nada.

ALTEZA — É claro que impede, Conde. Os passageiros do porão não são escravos, porque não há mais escravidão. Simplesmente isso.

GOBINEAU — No entanto, Alteza, de acordo com as minhas pesquisas nada distingue esses passageiros dos que andavam nos navios negreiros do tempo da escravidão. É como se o decreto de Vossa Alteza tivesse tido apenas o efeito de impedir que os navios sejam só negreiros, obrigando-os sempre a terem uns poucos camarotes para turista.

311

ALTEZA — Eu nunca disse que a situação desses passageiros era melhor nem pior que a dos escravos. Pode ser até pior. Isso não vem ao caso. O que afirmo com toda a certeza é que, seja como D82: o caso for, escravos é que eles não são. Eu já aboli isso. D82: não são são.

GOBINEAU — Eu estou começando a compreender o ponto de vista de Vossa Alteza: é uma questão de semântica. D82: Altez

ALTEZA — Exatamente. A semântica é uma ciência da maior importância. Eu tenho me interessado muito por linguística de uns tempos para cá. Eu trouxe até um livro muito bom que posso lhe emprestar quando terminar. (Tira da gaveta um enorme e empoeirado volume).

(A gaveta de onde ALTEZA tira os livros deve ter um caráter de D82: mágina cartola mágica, ou seja, o volume dos volumes retirados no decorrer do primeiro ato deve exceder em muito a expectativa da D82: um muito capacidade cúbica da gaveta)

GOBINEAU — Ah, eu conheço esse livro. É a Alma da D82: e-se

Linguística do Prof. Oliveira Frustrafroide. Não sei se Vossa D82: Línguística Alteza sabe que eu sou um amigo pessoal do Dr. Frustrafroide. Ele está agora escrevendo um novo livro que certamente interessará Vossa Alteza. É a Linguística da Alma. É ainda mais interessante que esse aí.

ALTEZA — Eu sempre fui fã de Frustrafroide. Já li todos os

312 livros dele exceto ―De Sideral em Sideral‖214 que é muito técnico. É horrível quando um teórico fica técnico.

GOBINEAU — Mas voltando ao ponto de vista de Vossa Alteza sobre o barulho durante a noite, eu acho que a nossa divergência é realmente semântica.

ALTEZA — Toda divergência profunda, Conde, tende a ser semântica. Infelizmente as palavras são o que melhor reflete o pensamento.

GOBINEAU — Vossa Alteza então acredita que é impossível dissociar as palavras dos pensamentos.

ALTEZA — Pelo menos dos bons pensamentos é. Os maus pensamentos geralmente não encontram palavras para serem expressados.

GOBINEAU — De tão maus?

ALTEZA — Não. De tão frequentes. Ninguém fala suficiente depressa para dar conta de todos os seus maus pensamentos.

GOBINEAU — O cinismo de Vossa Alteza é incoerente com o

214 Destaca-se que, no texto teatral Um visitante do alto, de Roberto Athayde (2003 [1973]), tem-se como personagem e autor de De Sideral em Sideral o astrônomo Antaris, em cuja apresentação lê-se: ―astrônomo e pesquisador de grande nomeada [sic.], da Universidade do Brasil. Membro fundador da Associação Brasileira pela Visão de Objetos Não Identificados. Em sua vasta obra destacam-se os volumes Introdução à história dos ventos e o conhecido e laureado De sideral em sideral, já traduzido em 24 idiomas pelos vários hemisférios‖ (ATHAYDE, 2003 [1973], p.45). 313 fato de Vossa Alteza se recusar a reconhecer a escravidão dos escravos.

ALTEZA — Não é a escravidão dos escravos que eu me recuso a reconhecer: são os escravos da escravidão. O meu decreto só aboliu a escravatura no sentido da escravidão dos escravos daquela referida escravidão. Eu reconheço que a filosofia que sustenta o sistema de senhores e escravos sobreviveu ao meu decreto como tem sobrevivido a muitos outros. Em outras palavras: eu não tenho nada contra a escravidão em si mas contra os escravos...

GOBINEAU — Então, pelo mesmo princípio, Vossa Alteza não é contra a pobreza mas sim contra os pobres.

ALTEZA — Exatamente. Não há pobreza sem pobres. É muito mais lógico ser contra os pobres, que passam, que ser contra a pobreza, que está sempre. É essa a teoria de Jesus Cristo215: combater os pobres preservando sempre a pobreza. O próprio Evangelho contém um exemplo célebre disso. Quer ver? (ALTEZA abre outra vez a gaveta e retira uma Bíblia. Folheia demoradamente sem conseguir encontrar a citação desejada) Não consigo achar! Mas está tudo aqui. (Coloca a Bíblia sobre a Linguística do Professor Frustrafroide)

215Possível menção crítica ao Sermão da Montanha ou Sermão do Monte, o mais importante texto do tratado moral que assentou as bases comuns das religiões de matriz cristã. Presente no Novo Testamento, o sermão encontra-se no Evangelho de Mateus (MATEUS, c.5-7) e disperso ao longo do Evangelho de Lucas. Ao fazer uma exortação à pobreza, Jesus Cristo promete aos pobres o reino dos céus, negando-o aos ricos. 314

GOBINEAU — É extremamente difícil distinguir a pobreza dos pobres. Qual dos dois seria mais merecedor da nossa hostilidade? É a mesma dificuldade de distinguir os escravos da escravidão ou os pensamentos das palavras.

ALTEZA — Se você próprio reconhece essas dificuldades por que insiste em classificar de escravos os passageiros da terceira classe deste navio?

GOBINEAU — Mas Alteza, não é propriamente terceira classe... Eles se encontram amarrados. Vossa Alteza fala como se cada um deles, por economia, tivesse comprado um bilhete de terceira classe em vez de segunda ou primeira. Eles foram obrigados a embarcar.

ALTEZA — Obrigados?

GOBINEAU — É. Eu disse e repito que nós estamos num navio D82: mixto misto: metade turístico, metade negreiro.

ALTEZA — Bom, suponho que seja assim, para onde vão esses negros?

GOBINEAU — Foi essa informação mesmo que eu tentei obter do Capitão.

ALTEZA — E conseguiu?

315

GOBINEAU — Ele é um homem muito reservado. Gosta de falar sobre tudo exceto sobre o navio. É claro que eu tentei puxar o assunto com a maior habilidade e diplomacia possíveis. Mas a informação que eu obtive foi mínima. Segundo o Capitão os negros agrilhoados no porão também estariam em cruzeiro de férias.

ALTEZA — Até que a ideia não é tão absurda quanto parece.

GOBINEAU — A ideia nunca me pareceu absurda.

ALTEZA — Como não pareceu? Você acha que eles estariam amarrados voluntariamente, como passatempo?

GOBINEAU — Claro que não – o fato de eles estarem em cruzeiro decorre do fato de o navio inteiro estar em cruzeiro. Em outras palavras: para onde está indo o navio? Para lugar nenhum. Trata-se apenas de passar o tempo. Os passageiros de terceira, exatamente como nós, não estão indo para lugar nenhum.

ALTEZA — Mas nem por isso eles estão aqui voluntariamente.

GOBINEAU — Mas claro que não. E Vossa Alteza pensa que nós estamos aqui voluntariamente? Logicamente, Alteza, só se pode considerar voluntária uma ação que pode ser interrompida a qualquer momento ao gosto do agente. Considerando que nós estamos em pleno mar, não há possibilidade de deixar o navio sem grande sacrifício. (Pausa) Seria mergulhar no desconhecido. 316

Nadar infinitamente... para onde? Talvez para a costa da África. E para isso é preciso muita coragem. Nada que demande coragem está ao alcance das pessoas mentalmente sãs. Vossa Alteza e eu não podemos sair do navio agora e voltar para Paris. Portanto nós só gozamos aqui de uma liberdade relativa.

ALTEZA — Nesse caso, só o Capitão tem a liberdade.

GOBINEAU — Nem o Capitão: a liberdade do Capitão é talvez ainda menor que a nossa. Se ele fizesse o navio voltar hoje para o ponto de partida em breve o navio sairia de novo com outro D82: brave Capitão. Ele seria prontamente substituído pela Companhia de Navegação.

ALTEZA — Então é a Companhia de Navegação quem tem a liberdade.

GOBINEAU — À primeira vista sim. Mas acontece que cada navio que sai se torna independente logo depois da saída. O destino desse navio é uma mistura dos desejos da Companhia com os do Capitão e dos passageiros de primeira classe e de segunda classe e de terceira classe.

ALTEZA — E quem tem a liberdade então?

GOBINEAU — Ninguém que eu conheça.

ALTEZA — Ainda bem. É melhor que alguns terem e outros não. 317

Isso seria uma injustiça.

GOBINEAU — Não é preciso ter liberdade para fazer injustiça.

ALTEZA — O que é preciso ter?

GOBINEAU — Paciência. A injustiça se faz por si só; basta ter paciência para observar.

ALTEZA — A grande qualidade do filósofo é então a paciência.

GOBINEAU — Justo. A paciência.

(ALTEZA abre a gaveta e tira mais um volume) D82: volume).

ALTEZA — Isso é um livro de filosofia. Diz que a grande qualidade do filósofo é o comedimento, a frugalidade, a disciplina.

GOBINEAU — Está inteiramente enganado o livro. Essas são as qualidades do fanático, justamente o contrário do filósofo. O homem objetivo é antes de mais nada um bon vivant. Só pode haver objetividade dentro do privilégio e das amenidades: só eles fornecem a coragem para enfrentar a crueldade do mundo.

ALTEZA — Nesse caso o filósofo bon vivant, se perder suas amenidades, perde também a coragem para enfrentar suas ideias.

GOBINEAU — Mudaria imediatamente de ideia. (pausa) 318

ALTEZA — Mas nada disso resolve o nosso problema. Essa noite eu vou tentar algodão nos ouvidos.

GOBINEAU — Eu não garanto que dê certo, Alteza. De noite, com o silêncio, os gritos e gemidos se fazem ouvir muito mais D82: silência alto. É uma coisa infernal. Mas não custa tentar o algodão. Do meu camarote se ouvem os gritos mesmo durante o dia. Eu teria que passar o tempo todo com algodão nos ouvidos.

ALTEZA — É horrível. O que é que vamos fazer?

GOBINEAU — O jeito é tentar se distrair. Eu estou vendo que Vossa Alteza trouxe bastante material para leitura de bordo.

(ALTEZA abre mais uma vez a gaveta e começa a tirar livros do seu interior)

ALTEZA — Love Story, de Erich Segal!216 Arsene Lupin contra Herlock Sholmes!217 La Vida-Color de Maria Larreta!

(O CONDE senta ao seu lado e começam a folhear juntos os D82: começa[mms] livros. Vão passando a literatura universal em revista desde os

216 Romance de Erich Segal (1970), considerado o livro mais vendido nos Estados Unidos e traduzido para 33 idiomas, sendo adaptado para o cinema no mesmo ano. No Brasil recebeu o título de ―Uma História de Amor‖. Estrelado por Ali MacGraw e Ryan O'Neil, "Love Story " venceu cinco Globos de Ouro e um Oscar. Seu enredo trata o envolvimento de um rapaz rico com uma garota pobre que sofre de doença terminal. 217 Romance policial de Maurice Leblanc, publicado em 1908. Constitui-se em uma coletânea de duas histórias, A Dama Loira e A Lâmpada Judaica, sobre as aventuras de Arsène Lupin, o ladrão francês sarcástico e ultra inteligente de Leblanc, e Herlock Sholmes, uma paródia do famoso detetive Sherlock Holmes, personagem londrino de Conan Doyle. 319 títulos clássicos até a literatura pornográfica. Simultaneamente vão se entregando a carícias e quando terminam essa viagem D82: literária estão nus e agarradinhos no divã. No auge da entr[ems↑]gando esculhambação os dois gritam) D82: gritam:

OS DOIS — Mengoooooooo...

(Recomeçam os latidos na plateia. MARINETE vem até a beira do palco e começa a gritar)

MARINETE — Pra fora, já pra fora. Passa, seus safados, fazendo safadeza no jardim da Fada Mangana. Passa, pra fora!

(O FRUSTRINHA sobe em cima dos dicionários e começa a falar)

FRUSTRINHA — Isso aqui é o Jardim da Fada Mangana. Agora o meu avô está no Havaí, procurando os meus pais e a minha avó é quem está substituindo ele no trono de maior psicanalista do D82: Brasil. Quem quiser achar alg† é só vir aqui, no jardim da Fada pessoas Mangana, onde vivem todas as pessoas que saíram do mundo <††††††>/xxxxxx\ que real.

(MARINETE, que tinha saído enxotando GOBINEAU e a PRINCESA ISABEL, volta † PROTEÍNA. PROTEÍNA traz um (Afinal entra PROTEÍNA seguida de MARINETE. telegrama que começa a abrir) PROTEÍNA está bastante excitada e tem na mão um telegrama que ela começa a abrir)

PROTEÍNA — Por que você PROTEÍNA — (Enfática, para MARINETE) Por que 320

que você não interrompeu, Marinete? Um telegrama assim pode ser uma coisa urgente! Principalmente a gente com filhos no estrangeiro...

MARINETE — Eu tentei, dona Proteína. Mas a senhora estava... quer dizer, eu pensei interromper a senhora para entregar mas aí eu me lembrei eu me lembrei que a senhora recomendou que estava em sessão, que não atendia o telefone...

PROTEÍNA — (Examinando o telegrama) Ai, meu Deus, claro, tinha que ser do Havaí. (Abrindo o telegrama) Graças a Deus que não é da Indonésia. (Lendo o telegrama, estarrecida, logo começa a rir de alegria quase histericamente)

Não, não é possível! Não! Não! Não é possível! Quá, quá, quá, quá, quá...

MARINETE — (Ligeiramente alarmada) O que, dona Proteína? O que que foi pelo amor de Deus?

PROTEÍNA — (Histérica, às gargalhadas) Frustrinha! Frustrinha! Você vai ganhar um irmãozinho!

MARINETE — (Apavorada) O que, dona Proteína? Não! Deve ter algum engano, dona Proteína! Não é possível não, dona Proteína!

PROTEÍNA — (Histérica, às gargalhadas) Que maravilha! Claro que é possível! É mais que o possível, Marinete: é inevitável! Frustrinha, você já entendeu?

FRUSTRINHA — (Começando a dançar de maneira ligeiramente bizarra; cantando o hino do Flamengo) Vencer, vencer, vencer... Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer! 321

PROTEÍNA — (Lendo o telegrama para todos em voz extremamente alta; ligeiramente histérica) ‗Lúcia grávida dois meses, stop, médicos garantem normalidade bebê, stop, adivinhem pai, stop, Pedro‘ Adivinhem pai! É ótimo, não?

Quá, quá, quá... Quá, quá, quá, quá, quá...

MARINETE — (Tentando fazer o FRUSTINHA parar de dançar; sem se conformar com as notícias, para PROTEÍNA) A senhora tem certeza? O endereço tá certo?

PROTEÍNA — (Histérica) O Jurandir tinha razão! Ah meu Deus, que horror,

A Globo não erra. Não era fofoca! Que maravilha! não era fofoca! Que maravilha! Quá, quá, quá, quá...

A fofoca tava certa! Frustrinha! O que que você prefere?

Irmãozinho ou irmãzinha? Irmãzinha ou irmãozinho?

(O FRUSTINHA, que continua dançando e cantando e arrastando MARINETE por um braço, agora agarra o braço de PROTEÍNA e tenta fazê-la dançar também).

FRUSTRINHA — (Caótico) Stop, stop, stop, stop... Seja na terra, seja no mar... Tua glória é lutar... Flamengo, Flamengo, campeão de terra e mar...

MARINETE — (Irritada, resistindo à loucura geral e à própria PROTEÍNA que dança alguns passos também) Para, Frustrinha! Dona Proteína, por favor!

(O FRUSTRINHA dançando esbarra em MARINETE e pisa no pé dela enquanto PROTEÍNA agora canta e dança) 322

PROTEÍNA — Irmãozinho ou irmãzinha, Frustrinha? Quá, quá, quá, quá, quá...

MARINETE — Ai! MARINETE — Ai! Aiiih! Você me machucou, diabo! Dona Proteína, pelo amor de Deus...

FRUSTRINHA — Stop, stop, stop... Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer... morrer!

(No meio da loucura geral, começa o breve rito de volta à (TODOS continuam ad libitum; os cachorros latem realidade. É uma espécie de dança em que os atores que estão em ad libitum também, enquanto as luzes diminuem até a cena e os outros, que entram para este final, procuram pisar firme obscuridade) no chão.)

TODOS — Cadê o chão? Cadê o chão? Cadê o chão?

(Cantam) Senhora Fada Mangana

Poderosa e preparada Ou muito a gente se engana Versos presentes no Ou aqui na sua morada conto O Jardim da Se encontra preso um amigo Fada Mangana (ATHAYDE, 1974, Correndo o maior perigo p.123 a 125) Que estava sempre comigo No pé de jabuticaba.

(Vera se dirige ao público do mesmo modo como começou o espetáculo) 323

VERA — E agora

Que tudo foi discutido e nada se discutiu Uns vão aos pulinhos pelos canteiros

De flor em flor E outros vão pra puta que os pariu

E os amantes vão pensando que são o azul do mar E os poetas pensando que são o menino Deus Versos do poema Non E os espectadores vão curtindo a minha mágoa erit finis (ATHAYDE, 1979, p.71) E eu perambulando pelos céus E os neutrinos vão voando para um lugar qualquer E os mares vão selecionando a água Pra fazer uma calmaria Pro veleiro que quiser E apesar de eu fazer um taratatá de trombeta anunciando o fim Olha agora que o espetáculo está começando.

FIM DO ESPETÁCULO

324

325

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOTAS PARA UMA FILOLOGIA POLÍTICA

E agora Que tudo foi discutido e nada se discutiu Uns vão aos pulinhos pelos canteiros De flor em flor E outros vão pra puta que os pariu E os amantes vão pensando que são o azul do mar E os poetas pensando que são o menino Deus E os espectadores vão curtindo a minha mágoa E eu perambulando pelos céus E os neutrinos vão voando para um lugar qualquer E os mares vão selecionando a água Pra fazer uma calmaria Pro veleiro que quiser E apesar de eu fazer um taratatá de trombeta anunciando o fim Olha agora que o espetáculo está começando. (ATHAYDE, 1979, p.72)

O já mencionado laboratório de produção de sentido (BORGES; SOUZA, 2012) que se estabelece no horizonte da crítica filológica atravessa, como afirmei no segundo capítulo, um conjunto de atividades hermenêuticas reconhecidas como filológicas. Partindo desse princípio, penso ser necessário destacar que, a despeito de os capítulos anteriores terem evidenciado, ainda que indiretamente, a construção teórico-metodológica que culminou nas escolhas editoriais e no aparato de notas inseridos na edição de Os Desinibidos, foi a partir da escrita deste último que pude repensar minha identidade crítica e atuação diante do dossiê estudado, encorajando-me a localizar-me no texto como sujeito discursivo que produz sentido, interpreta o dossiê e que, ao editar, oferece à leitura não o texto autoral, mas a sua (a minha) leitura acadêmica e (também) subjetiva daquilo que componho e entendo como/do dossiê. É por assegurar que produzir sentido é interpretar e que toda interpretação é mediada por instâncias subjetivas que pude entender e reposicionar-me no dossiê que aqui compus, li, comentei, interpretei e [re]apresentei na hiperedição realizada. Posto dessa forma, observo que a dicção ensaística que materializei nesta tese é coerente com a abordagem da escrita de si e da virada etnográfica que me permitem entender que a escrita ficcional de Athayde é, em certo ponto, discursiva e interpretativa, o que a faz autorreflexiva (KLINGER, 2012 [2007], p.14). Também assim o é a leitura que realizei e que disponibilizei em hiperedição. Reitero que me refiro aqui ao dossiê, ao invés do texto, já caracterizado como escopo da Filologia, porque o caso Os Desinibidos não me foi entendido como referente a um texto, mas a um conjunto de documentos que, como demonstrei na seção terceira, se vinculam pela ação de sujeitos envolvidos no processo de criação, transmissão, circulação e recepção, aos quais me incluo enquanto editora, crítica e leitora. Foi, pois, sobre o dossiê arquivístico que 326

construí a edição, a leitura das versões e os comentários, na observação de que, isolando o texto cênico ou o texto impresso, o resultado seria significativamente diferente. Considero necessário pontuar novamente o comentário de textos como prática filológica (GUMBRECHT, 2007 [2003]), na medida em que a provocação que delineou as escolhas editoriais e exegéticas surgiu do contundente parágrafo inicial de Hans Ulrich Gumbrecht no já citado The powers of Philology: dynamics of Textual Scholarship (2003), em que apresenta Ernst Robert Curtius, Leo Spitzer e Erich Auerbach como três nomes de destaque da filologia alemã que não ―[...] obtuvieron ningún logro mayor como editores de texto, o autores de un comentario histórico‖218 (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.13-14). É no flagrante do trabalho diversificado e reconhecido como filológico desses três nomes que Gumbrecht postula a constelação das práticas filológicas nas quais se insere escrever comentários. Afirmando ser plausível ―subordinar la tarea del comentarista a la del intérprete‖219 (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.53), Gumbrecht, pautado na sua concepção de filologia como disciplina histórica, entende interpretação como ―a identificação do significado de determinado artefato‖, ainda que tal identificação seja a ―projeção de um sentido que o intérprete tenha inventado‖. Gumbrecht segue diferenciando/relacionando comentário e interpretação, expondo que a função do comentário é mediar diferentes contextos culturais e que ―[...] ao fazê-lo, cumpre com uma função assessória em relação à interpretação‖ (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.53), de modo que o comentário provê um conhecimento suplementar. Nessa perspectiva, no aparato de notas da edição apresentada na seção quatro, destaquei 85 comentários que objetivaram não somente preencher o rasgo histórico (GUMBRECHT, 2007 [2003], p.15), mas também o hiato epistêmico, se consideradas as 31 notas com temas referentes à psicanálise e a outras abordagens psicoterapêuticas, além de 8 notas sobre outros conceitos, teorias ou estudos (como a fenomenologia, a vontade de poder, a teoria das linhas paralelas, e a superioridade do homem tropical). A essas duas categorias, adicionei notas de referências a poemas, músicas e outras obras literárias. A opção por distinguir poemas de outros gêneros literários ocorreu-me em virtude da quantidade de citações diretas de obras poéticas no texto, sempre declamadas pelo personagem Frustrinha, ao passo que os outros gêneros literários (especificamente romances e textos teatrais) são indiretamente citados ou têm apenas a menção ao título. São declamados trechos de 6

218Tradução livre: ―obtiveram nenhum logro maior como editores de texto, ou autores de comentário histórico.‖ 219 Tradução livre: ―subordinar a tarefa do comentarista à do intérprete.‖ 327

diferentes poemas de cânones literários do Brasil e de Portugal (Bocage, Guerra Junqueiro, Machado de Assis). As canções e sinfonia correspondem a 6 comentários (de Folia no Matagal à Nona Sinfonia de Beethoven); e ainda 20 notas referentes a pessoas, entre as quais incluí Jacques Lacan, largamente citado no texto. Como se pode observar, o texto é atravessado por uma grande quantidade de referências nas quais consiste não somente a comicidade de Os Desinibidos, mas a biblioteca do próprio Roberto Athayde, em seus momentos de neurose e ressurreição. Reconheço que a classificação dessas notas pode consistir em mera simplificação didática orientada por critério puramente arbitrário, uma vez que muitas delas podem ser alocadas em mais de uma categoria, como o quadro abaixo evidencia:

Quadro 7 – Temas das notas empregadas no aparato editorial PESSOA CONCEITO, OBRA ARTÍSTICA OBJETO, FATO TEORIA OU OU TEMA ESTUDO INSTITUIÇÃO

NOTA oesia

geral geral

à obra

p

música

psicoterapia psicoterapia

passado à obra à passado

contemporâneo

Psicanálise e/ou Psicanálise e/ou Psicanálise romance e teatro e romance 1 UFRRJ X 2 Linhas paralelas de Einstein X X 3 Flint College X 4 Rainha Vitória X X 5 Bispo Sardinha X X 6 O ano 1930 X 7 Citação: Sá Mariquinha X X 8 Jacques Lacan X X X 9 O presidente do Flamengo X X 10 Citação: O Fiel X X 11 Augusto Pinochet X X 12 Inibir/Desinibir X 13 A Superioridade do Homem Tropical X 14 Complexo de Castração X 15 Cachorro X 16 Repressão X 17 Carência afetiva X 18 Símbolo X 19 Arquétipo X 20 Havaí X 21 Vivência de satisfação X 22 Lacan dissolveu a EFP X X 23 Incesto X 24 Tempo lógico X 25 Fenomenologia e intencionalidades X 26 Calma no Brasil X X 27 Citação: Meu ser evaporei na lida insana X X 28 Citação: João e Maria X 29 Citação: Camões, grande Camões X X 30 Alienação do trabalho X 31 Profissão empregada doméstica X 32 Globo Repórter X 33 Economia vivencial e couraça caracterológica X 34 Citação: Meu ser evaporei na lida insana X X 328

35 Citação: Camões, grande Camões X X 36 Citação: Camões, grande Camões X X 37 Citação: Camões, grande Camões X 38 Incesto X 39 Citação: O melro X X 40 Citação: O melro X X 41 Citação: A mosca azul X X 42 Citação: Navio Negreiro X 43 Id X 44 Superego X 45 Revista Amiga X 46 Libertas Quae Sera Tamen X X 47 Hino do Flamengo X X 48 Terapia de privação sensorial X 49 The Primal Scream X 50 Sobre a recepção de analisandos X X X 51 Código Morse X 52 Ernesto Geisel X X 53 O cachorro Fiel X X 54 Teoria do nome do pai X 55 Associação livre de ideias X 56 Gestalt X 57 Folia no Matagal X X 58 Resistência X 59 Zico X X 60 Adler e a vontade de poder X X 61 Zico, Lico e Adílio X X 62 Reich X X 63 Análise Bioenergética X 64 Alexander Lowen X X 65 Citação: Seu Waldir X X 66 Identificação X 67 Gozo X 68 Hino do Flamengo X X 69 Potência orgástica X X 70 Carpeggiani, Raul, Júnior X X 71 Ego X 72 Terapia de Vidas Passadas X 73 Olavo Bilac X 74 Conde Goubineau X X X 75 Princesa Isabel X X 76 Dom Pedro I X X 77 A cura dos nervosos X 78 Joana d’Arc X X 79 Saint Joan 80 Fim do Império no Brasil X 81 Nona Sinfonia de Beethoven X X 82 De sideral em sideral X 83 Jesus Cristo e a pobreza X X 84 Love Story X X 85 Herlock Sholmes X X Fonte: a autora.

Nesse ínterim, verifico que o expectador que não partilha de tais leituras, ou mesmo que não compreende os termos de natureza psicológica, terá uma árdua tarefa ao tentar produzir sentido para o texto, por não fazer parte da comunidade interpretativa a quem Os Desinibidos se destina. Daí talvez a crítica posterior ao espetáculo, que pouco foi compreendido pelo público (SANTIAGO, 1995). 329

A respeito de uma comunidade interpretativa, Stanley Fish, que propôs o termo em 1978, afirmou que

Interpretative communities are made up of those whose share interpretive strategies not for reading (in the conventional sense) but for writing text, for constituting their properties and assigning their intention. In other words, these strategies exist prior to the act of reading and therefore determine the shape of what is read than, as is usually assumed, the other way around220 (FISH, 1980, p.171).

Para Fish, a inteligibilidade de um texto dependeria da circunscrição dos interlocutores em uma comunidade interpretativa previamente estabelecida, de modo que suas propriedades formais só podem ser identificadas por membros de tais comunidades. É nesse sentido que os partícipes da comunidade de interpretação dão forma aos enunciados e produzem, a partir deles, sentido. Seguindo essa lógica, a escrita athaydiana evidencia o sujeito inserido no ambiente intelectual burguês – em que o autor vive e reproduz na sua comédia de costumes – onde se produzem narrativas sobre si e representações de outridades que não participam do seleto grupo que compõe a comunidade interpretativa a que se destina Os Desinibidos. A análise dos textos confrontados e do dossiê como um todo, permitiu-me interpretar uma história cultural das práticas de escrita e circulação do texto teatral censurado, ou seja, produzir uma leitura de Os Desinibidos através dos comentários de edição que se basearam no meu lugar da crítica filológica que, como tal, inter-relaciona-se com outras epistemes que ampliam o conhecimento sobre o texto e sua comunidade interpretativa. Pensar dessa forma permitiu-me entender a Filologia como uma ética de leitura, como recomendou Edward Said (2007 [2004]), revisitado por Santos e Sacramento (2017), que propõem uma ―reflexão epistêmica e compromisso político específicos para história política de narrativas que não foram privilegiadas nem teoricamente, nem metodologicamente‖ (SANTOS; SACRAMENTO, 2017, p.130). O rompimento epistêmico provocado por Said visou à desconstrução do modus operandi do método filológico tradicional, que privilegia as narrativas canonizadas e perpetua imagens estáveis, primando ―pela reprodução e conservação de seus métodos, procedimentos e premissas, assegurando determinadas maneiras de circulação e sentido‖ (SANTOS; SACRAMENTO, 2017, p.133). É por essa razão que o programa proposto por Said para a leitura filológica não se trata de um método, mas de uma

220 Tradução livre: Comunidades interpretativas são constituídas por aqueles que compartilham estratégias interpretativas não para ler (no sentido convencional), mas para escrever texto, para compor suas propriedades e atribuir sua intenção. Em outras palavras, essas estratégias existem antes do ato da leitura e, portanto, determinam a forma do que é lido e não, como é comumente considerado, o inverso. 330

ética, a ser pensada na conjuntura cultural, política e histórica que atravessa as produções sobre as quais se debruça:

A leitura filológica é, portanto, uma ética, um modo de participação ativa e deliberada na esfera mundana textual, política, cultural, que situa necessariamente o crítico em relação às circunstâncias de produção de suas intervenções e o coloca em um campo aberto em que não há estabilidade previamente constituída para o empreendimento interpretativo. Assim, ao crítico cabe apenas uma ―profunda percepção subjetiva, para a qual não é possível nenhum substituto, nenhum livro guia ou fonte autorizada. Deve-se tomar a decisão por si mesmo e assumir a responsabilidade por ela‖ (SAID, 2007: 89). Isso não significa que não se deve usar nenhuma metodologia de pesquisa, ou que se deve rejeitar qualquer corpo de procedimentos organizado em busca de um objetivo. O que Said propõe é que qualquer escolha metodológica deve ser vista como tal: uma tomada de posição, uma interposição na esfera pública agônica da interpretação e não como um investimento desencarnado de produção de resultados (SANTOS; SACRAMENTO, 2017, p.135).

Desse modo, na tomada de posição subjetiva e política que aqui me impus, a leitura do dossiê apontou a presença marcante de traços autobiográficos de Roberto Athayde (a escrita de si) e um olhar sobre o outro culturalmente afastado (especificamente em relação às mulheres no texto, Proteína e Marinete). Longe da pretensão de esgotar as possibilidades de interpretação do texto, e ainda mais longe da pretensão de verdade interpretativa, ofereci uma leitura possível e provisória – sujeita a alterações, conforme amplio o conhecimento sobre a obra athaydiana – de um texto que, construído pela colagem de outros textos, foi apontado como hermético e de difícil entendimento pelo público (SANTIAGO, 1995). Uma prospecção futura conduzir-me-ia além da compreensão de elementos autobiográficos no texto, buscando entender como o autor se ficcionaliza e, a partir do seu lugar de fala, performatiza sua própria história, o que se antevê na apresentação que Roberto Athayde expôs no programa do espetáculo, ao afirmar que, após seis anos sem conseguir levar um texto novo aos palcos, no ostracismo, retornou a convite de Aderbal Júnior para escrever um texto sobre si, previamente idealizado no título Neurose e ressurreição de Roberto Athayde. Buscando compreender as produções de Athayde do início dos anos 1980, considerando que Os Desinibidos foi publicado em livro compondo uma coletânea ao lado de Crime e Impunidade, observo que, se Crime e Impunidade221 teve ―tudo o que a gente não gosta no viver urbano dos tempos que correm‖ (ATHAYDE, 1983), com personagens que ocupam posições profissionais relativas à vida pública (políticos, sociólogos, antropólogos e

221 O estudo crítico-filológico de Crime e Impunidade é desenvolvido por Nathan Queiroz, estudante de graduação em Letras da Universidade Federal da Bahia. 331

jornalistas) e com enredo inspirado no atentado do Rio Centro, posso afirmar, de forma análoga, que Os Desinibidos não se furtou de apresentar o que a gente não gosta no viver familiar, privado, e, sobretudo, psicológico, a julgar pelos personagens psicanalistas e pelo cenário em que se ambienta o espetáculo: a casa e o divã dos Frustrafróide. Ambos os textos tratam de promover uma catalogação dos ―tipos de horror‖ e sua respectivas ―espécies de escândalo‖ (ATHAYDE, 1982), como afirmou o próprio autor que, em Os Desinibidos, enfoca horrores de um ambiente familiar e as diferentes reações de escândalo às situações evidenciadas. Entendo que essa relação entre público/privado é estabelecida por Frustrafroide, o psicanalista (que, portanto, se ocupa da vida privada e íntima de seus pacientes), em diálogo com Jurandir, o jornalista (responsável pela publicização), a respeito das sessões de análise de Valdir Teixeira, personagem que representava o presidente do Flamengo:

[...] Se o Brasil vibrou e estrebuchou é problema dos historiadores: eu sou um psicanalista, meu filho! Estou aqui para interpretar a vida privada do cidadão: não tem nada que ver com opinião pública e muito menos com liberdade de imprensa! Se o Brasil inteiro sofreu porque castraram o cachorro é um problema político: não tem nada a ver com psicanálise não, entendeu? (ATHAYDE, 1983)

Aqui, o psicanalista coloca as questões públicas sob a responsabilidade dos historiadores e políticos (devo destacar que o cachorro castrado mencionado no texto é um pastor alemão chamado Geisel, tal qual o ditador que ocupou a presidência do Brasil, sendo esse, de fato, um problema de ordem política), enquanto seu papel seria compreender e interpretar a vida privada. Diante da mensagem furiosa do psicanalista, o jornalista expõe os ―microfones do confessionário‖, afirmando que a entrevista deles está sendo gravada, ou seja: há uma transposição do horror privado para o escândalo público em todo o espetáculo. As tragédias encenadas em Os Desinibidos – o incesto de Pedro e Lúcia; o gigantismo de Frustrinha; o charlatanismo oportunista de Frustrafróide; o exercício ilegal da profissão de Proteína; o estupro de vulnerável cometido por Valdir contra Proteína; o trabalho compulsório e o processo de escravização de Marinete que a submete à condição de mucama – repercutem de maneiras diferentes em cada personagem e deslocam-se da condição de absurdo para a naturalização corriqueira e cotidiana, adequando-se ao gênero comédia de costumes, que,

[...] seria, portanto, uma espécie de retomada de elementos da farsa, mas com ênfase na caricatura de tipos sociais e na crítica dos costumes. Embora não se coloque como um projeto político-cultural do tipo do Realismo (―Criticar para corrigir‖, dizia a geração de Eça de Queirós) e se proponha mais a ser uma diversão inocente para as famílias, uma vez que, no geral, não desafia a visão de mundo do espectador 332

pretendido, nem seus preconceitos mais arraigados, ela pode, de tempos em tempos, ser encarada como perigosa ou até mesmo subversiva por parte de poderes cuja estabilidade se veja ameaçada (DE PAULA, 2016, p.25).

Faço a leitura de que Os Desinibidos não se apresenta como um projeto político- cultural (como Roberto Athayde o fez em suas peças precoces, escritas na década de 1970, especialmente com a inédita O reacionário, em que as personagens discutem abertamente valores, posições políticas e existenciais), de modo que se põe em acordo com a definição do gênero que expus acima. O texto, porém, não deixa de apresentar uma impiedosa crítica à família tradicional burguesa, na medida em que o desenrolar da trama não apresenta um conteúdo moralizante ou transformador (os personagens não superam a condição que os incomoda, não crescem, tampouco utilizam suas dores como impulso de ação). Tomo como argumento para essa ideia o incesto de Pedro e Lúcia, cujos personagens não superam a condição de incestuosos, visto que o texto se encerra com a notícia de nova gravidez de Lúcia, o que sugere o caráter circular da trama que retorna ao ponto de partida (a repetição do escândalo). Enquanto o jornalista Jurandir vê a notícia com o oportunismo de quem vai aproveitá-la para um furo de reportagem lucrativo, a situação do incesto é tratada por Frustrafroide com frieza científica, a julgar pela ideia de que o psicanalista propõe tomar o caso como objeto de pesquisa e desenvolvimento teórico. A postura do patriarca Frustrafroide é, aliás, paradoxal: no espaço público, ele é o intelectual sensato, comprometido com a psicanálise, pai e avô que se importa com os seus; contudo, a reação de Frustrafroide, ante o rumor de uma nova gravidez dos filhos, é de fuga, o que fica evidente em sua partida imediata, logo após conceder uma entrevista desastrosa a um jornalista que lhe confronta com a possibilidade de uma nova gravidez dos filhos. Proteína, por sua vez, – nome que sugere uma despersonificação da mulher, que passa a ser coisa, nutriente, suplemento, alimento – embora mantenha a postura pública de naturalidade ante o incesto dos filhos, revela-se escandalizada, quando em diálogo privado com Frustrafroide, diz:

PROTEÍNA — (Indignada) Brincadeira? Mas eles são surfistas, Frustra! Estão no Havaí há quatro anos! Abandonaram o Frustrinha recém-nascido em cima da gente! Se amando loucamente numa relação que todas as culturas condenam unanimemente. Entende, Frustrafroide? Todas, não tem uma cultura que aceite incesto de irmão com irmã: nem no Havaí! E você ainda tem pena! (ATHAYDE, 1983)

A mãe, que passou a se referir aos filhos como Desinibidos, com evidente relação à cadela de sua casa, a Desinibida, vê-se impossibilitada de suportar nova notícia de gravidez de 333

Pedro e Lúcia. Assim, ante o recebimento do telegrama que confirma o boato, sua reação também é de fuga. Não se trata, porém, da mesma fuga física de Frustrafroide, mas de uma fuga de natureza psicológica, encenada no seu ataque de riso, histeria e loucura. Já Marinete vê a situação como uma tragédia e, diante da repetição do escândalo, a personagem entra em desespero e, como em todo o restante da trama, tenta cumprir o papel de gestão e controle da situação caótica. Considero possível afirmar que Marinete é a única personagem que se mantém consciente – ou, metaforicamente, ―pé no chão‖ – na observância do caos em que a família tradicional se encontra. Essa é uma leitura que faço da cena final do espetáculo, em que Marinete suplica em desespero para que Proteína e Frustrinha se acalmassem enquanto estes dançavam e pulavam em total descontrole. Marinete, que mantinha os pés firmes no chão, é pisada por Frustrinha, em seu transe inconsciente, entoando o hino futebolístico. No datiloscrito de 1982, essa cena se completa com a entrada dos demais atores e da equipe, aos gritos de ―cadê o chão?‖ e gestos em que as personagens ―procuram pisar firme no chão‖ (ATHAYDE, 1982), em um retorno evidente ao jardim da Fada Mangana (no conto que originou a cena, uma velhinha cega presa em cima de uma pedra aparece procurando o chão com sua bengala), a mente de Athayde. Duas personagens permanecem inconscientes ao caso do incesto: Frustrinha, inconsciente por sua condição patológica mental e infantil, incapaz de perceber a gravidade da situação; e Valdir Teixeira, inconsciente por alienação ou conveniência, que, embora já estivesse fora de cena na confirmação da segunda gravidez, manifestou-se indiferente à situação incestuosa quando conheceu Frustrinha, demonstrando, em diversos momentos do texto, que sua única preocupação era o futebol. Valdir, diga-se de passagem, pode ser entendido como uma representação da instituição do futebol como mecanismo alienante fortemente presente nos últimos anos do governo ditatorial. Sujeito à sua função social, seus sentimentos se confundem com o futebol em diversos momentos de sua presença em cena, especialmente quando seu gozo se configura em uma vitória sobre o outro, em uma violência contra Proteína, que se encontrava desmaiada. Outra personagem que não consegue superar sua condição no texto é Marinete, personagem que representa três minorias sociais: mulher, negra e periférica. Com sonho de se tornar psicanalista, aceitou trabalhar sob regime de troca de serviços, como babá de Frustrinha, enquanto receberia formação em psicanálise com o professor Frustrafroide. Entretanto, Marinete é subalternizada no enredo das mais diferentes formas e por todos os sujeitos cênicos, incluindo Frustrinha, sendo submetida à condição consciente de escravização. A posição que ocupa na casa é inferior a dos cães, o que fica evidente quando 334

Proteína a inferioriza, referindo-se ao cachorro pelo nome e sobrenome – o que Marinete não tem, porque, como ela mesma afirmou no texto, ela não tem nada. Nem registro de sobrenome. Essa condição submete Marinete a um processo de animalização que a escraviza de diferentes formas, seja pela exploração compulsória de sua força de trabalho, seja pela posse de seu corpo (o datiloscrito de 1982 evidencia que Marinete era explorada como mucama de Frustrafroide) e pela apropriação de seu intelecto, uma vez que ela aconselha Proteína sobre como lidar com o caso de Valdir Teixeira. Nesse sentido, o datiloscrito de 1982, ao se construir pela colagem de Divertissement para ambientes finos, produz um sentido histórico à personagem que está ausente em D83: a história do racismo colonizatório (político e científico, representados, respectivamente, pela Princesa Isabel e pelo Conde Goubineau) como fundador da estrutura de classes no Brasil do século XX, substituindo a dialética senhor/escravo pela dialética patrão/empregado sem, porém, alterar a estrutura racial em que essas categorias se estabelecem, como assegurou Sueli Carneiro (2017):

[...] Hoje está sendo possível confundir completamente o que seja a luta de classes, com todo um espectro social interessado em nublá-la completamente, inclusive com substituições de conceitos, negando a contradição patrão-empregado, a contradição clássica do capitalismo. Mas o conflito racial não dá para nublar. Ele permanece aqui hoje, estruturando a sociedade brasileira, organizando a própria estrutura de classes sociais. Porque no topo da pirâmide temos uma hegemonia absolutamente branca e nas bases uma maioria absolutamente negra. Então, raça estrutura classe no Brasil. Este problema está aí desde a abolição. Há um déficit de percepção das contradições da sociedade brasileira desde sempre. Porque foi possível construir o pensamento social brasileiro, seja à direita, com o mito da democracia racial, seja à esquerda, via luta de classes, que em comum obscureceu o valor da raça na estruturação das mazelas sociais, das desigualdades, das contradições desse país (CARNEIRO, 2017, p.15).

O próprio personagem Frustrafróide, em sua argumentação persuasiva (para não dizer cínica) para convencer Marinete de que a condição de escrava seria, para ela, melhor do que a condição de empregada assalariada, acrescenta à luta de classes a categoria racial, evidenciando a condição da mulher negra como sobrevivente de um sistema colonial escravagista e seu consequente ―destino social: extinção ou subalternidade. [...] A abolição foi isso. Vocês estão livres para apodrecer e morrer nas sarjetas desse país‖ (CARNEIRO, 2017, p.15-16). 335

Vale dizer que Marinete222 é uma representação de gênero, raça e classe que não correspondem ao lugar de fala de Roberto Athayde, homem branco de elite intelectual e econômica que cresceu sob cuidados de mulheres negras que trabalhavam para sua família, como demonstrei no ensaio biográfico na seção três. Esse rápido olhar crítico sobre as contradições da família tradicional burguesa retratada por Athayde em Os Desinibidos comprova-me a potência da produção intelectual de Roberto Athayde e a atualidade das discussões sociais por ele empreendidas no conjunto de sua dramaturgia censurada. Indo além do inadequado estigma de dramaturgo de uma peça só (para um autor plural com dezenas de publicações literárias, sendo 29 apenas na dramaturgia), sua lucidez e esforço em permanecer produzindo aos 69 anos evidenciam que o cânone e o mercado literário cercam e condicionam as práticas de produção, selecionando e perpetuando, muitas vezes, mais do mesmo produto. Um exemplo disso é que, enquanto concluo este texto, Apareceu a Margarida é mais uma vez encenada na França, com a tradução preparada pelo próprio autor, como ele próprio me informou por correspondência eletrônica (Figura 86):

Figura 86 – Correspondência eletrônica: Roberto Athayde informa sobre encenação de Apareceu a Margarida.

Fonte: ATHAYDE [2018].

222 Uma leitura mais cuidadosa e específica sobre a personagem Marinete, enfocando uma discussão a respeito das categorias de gênero, raça e classe na estrutura da sociedade brasileira pós-abolição vem sendo desenvolvida pela estudante de graduação pesquisadora Samira Soares, do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades da Universidade Federal da Bahia. 336

Deste lado do Atlântico, porém, entre os discretos objetos dos quais me ocupo nesta pesquisa, acredito que a hiperedição Roberto Athayde: dramaturgia censurada pode, enquanto arquivo, promover descentramentos sucessivos da história da literatura brasileira, sobretudo daquela produzida durante o golpe civil-militar de 1964-1984, para a qual faltam, na grande mídia, representações literárias e artísticas capazes de produzir letramentos políticos que nos impeçam de tentar repetir esse capítulo da história brasileira. A internet, nesse sentido, revolucionando a comunicação pelo digital e as formas de produção de textos e edições, têm cumprido um papel fundamental na democratização do acesso à informação, criando, através do hipertexto, novos gestos de leitura e circulação social de textos. Avançando para as linhas finais do meu estudo, consigo perceber que pesquisas científicas em Filologia, na dimensão das Humanidades Digitais que aqui propus, compreendendo tecnologia digital, ciências humanas e sociais sob perspectiva transdisciplinar, possuem, pois, um valor político e cultural, estabelecidos por uma ação e um efeito público. Assim, o filólogo age publicamente quando edita um texto, rompendo o silêncio da instituição da censura e revirando o arquivo para publicá-lo. Nas práticas filológicas desenvolvidas na Bahia, temos falado muito do texto como evento social e histórico, mas pouco o caracterizamos como evento político que tem relação com instituições, organizações, movimentos sociais e sujeitos enquanto categoria política. Compreender a produção literária (no caso específico, de textos teatrais) e a mediação editorial como gestos públicos que instituem a formação de uma comunidade interpretativa e de uma instância de legitimação literária que determinam quais e como os textos são produzidos, lidos, editados e transmitidos socialmente, implica reconhecimento da dimensão política da produção literária e da práxis filológica para propor uma Filologia engajada e coerente com o papel público de intelectuais nas novas bases do estudo e prática humanistas. Entre o silêncio dos arquivos e o assombro de uma repetição da ditadura na história brasileira, não poderia encerrar esta tese se não defendendo o estatuto político do filólogo, que se manifesta não somente na escolha dos textos a serem lidos, editados e estudados, mas, sobretudo, no enfoque engajado e crítico que suplanta o mito de uma teoria filológica pura e enfrenta os jogos de poder em que se inscrevem as produções literárias ao longo da história política e das dinâmicas sociais. REFERÊNCIAS

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