: Metáfora do Cotidiano

Roberta Manuela Barros de Andrade1

As paixões, as emoções, os afetos possuem um lugar inegável na vida cotidiana, no que ela tem de concreto e singular. No entanto, constantemente, ao longo da modernidade, as subjetividades foram afastadas do campo de análise do social. Quando muito, toleradas em espaços bem delimitados como o da vida privada, mas cujos tentáculos não teriam grandes efeitos sobre o lado “sério da vida”. Enraízadas no cotidiano, na esfera do senso comum, tais subjetividades encontraram, entretanto, um lugar de destaque na telenovela. Nas , as sociabilidades se traduzem em sentimentos que permeiando o dia-a-dia estão sempre retornando à cena. Utilizando como pano de fundo o senso comum, as telenovelas possuem, em sua estrutura narrativa, algo similar à uma química das emoções que repercute em diferentes grupos sociais com distintos capitais simbólicos. No momento em que a cultura moderna se caracteriza pelo controle das emoções que se dissociam da vida social e passam a configurar a vida privada, as telenovelas trazem, contraditoriamente, à vida pública, as marcas de experiências e saberes acumulados na vida corrente. Esses saberes foram, é verdade, criticados, de modo constante, durante toda a modernidade. O senso comum, receptáculo de emoções e afetos em ebulição, participaria, em boa parte, do “regime noturno”, do “instante obscuro”, da “parte maldita” de que está impregnada o ser social. Concretizado na vida banal, concreta, cotidiana, natural, ele foi ora visto como intrinsecamente perverso, ora como necessariamente reacionário, “pura ideologia”, “debilidade popular”, “simples pré-texto do social”. O conhecimento técnico- científico, repousando em entidades abstratas, foi pouco a pouco desconectando-se da vida no que ela possui de desordenado, efervescente, caótico e nebuloso.2 No entanto, é preciso, como nos lembra Mafessoli (1998), fazer a distinção entre uma mera apreensão manipulada da realidade e uma sabedoria coloquial, com os pés no chão, que julga ou avalia esta realidade com argumentos que não se baseiam em coisa alguma, a não ser na “vida como um todo”. Enquanto sistema cultural esquematizado e

1. Graduada em Comunicação Social, mestre e doutoranda em Sociologia pela UFC. 2.Georg Simmel (1977), por exemplo, foi longamente estigmatizado por desejar ater-se ao concreto, ocupando-se de fenômenos considerados frívolos pelo saber estabelecido. Quer tratar-se de moda, amor, dinheiro, morte, Simmel empenhava-se em retornar às próprias coisas, ao solo nutriente das sociabilidades. Ele teve o mérito de perceber que a vida social repousa sobre o compartilhamento de emoções e afetos, coisas que são próprias do senso comum.

1 organizado de pensamento e ação, afirma Geertz (1995), o senso comum surge e se expande ao redor de um emarenhado de práticas herdadas, crenças aceitas, juízos habituais e emoções caóticas que formentam as interações sociais corriqueiras. Tal prerrogativa do senso comum ressalta o fato de que antes de qualquer racionalização existe uma vivência comum, uma experiência compartilhada. É sobre ela que é posta toda a sociabilidade, todo o estar junto fundamental que ao lado da racionalidade integra todos os aspectos passionais que estão também na base da interação humana. Esta ênfase posta sobre esta vivência é, creio, uma forma de reconhecer os elementos subjetivos como partes integrantes da história humana O senso comum abrange, na perspectiva em que trabalho, um território gigantesco das coisas que são consideradas como certas e inegáveis, um catálogo de realidades básicas que pertenceriam a todas as pessoas que possuíssem, sem cair em pleonasmos, bom senso (Geertz, 1995). Como os acontecimentos excepcionais, os grandes momentos que pontuam a vida dos indivíduos, são bem raros, pertencendo à ordem do extraordinário, a vida corrente parece se estruturar a partir de “pequenas coisas” das quais o hábito de assistir à telenovela é parte primordial. Pressinto, então, a necessidade de revisitar este senso comum a partir da mediação das telenovelas porque elas são, por excelência, a narrativa moderna que concebe as subjetividades como seu elemento central. No entanto, se as telenovelas possuem como insumos básicos uma reconstrução peculiar de um senso comum generalizado, as pessoas, ao re-semantizarem seus conteúdos, recorrem a um sistema cultural particular, localizado, datado e circunscrito que julgam serem o “óbvio a ser pensado”. E ao utilizarem este “bom senso” constróem, elas mesmas, uma peculiar teoria sobre o social. A partir das análises que fazem das personagens e dos temas que as tramas sugerem, os indivíduos elaboram suas próprias visões de mundo que refletem todas as tensões que formam a vida social. Parto aqui do pressuposto de que o bom senso não é de fato nem universal, nem generalizado, nem tampouco passível de “etiquetamento”. Quando as pessoas referem-se ao bom senso para justificarem o que julgam ser verdades tácitas sobre as personagens e o enredo de uma telenovela, elas estão reivindicando um estatuto próprio de complexidade às teorias de recepção correntes. É necessário, pois, acredito, procurar nos tons que as pessoas empregam para se referirem às experiências que se dramatizam nas telenovelas, no tipo de som que suas observações expressam, na visão de mundo que suas conclusões refletem, as diferenças nas elaborações deste “bom senso”.

2 Partindo dessas reflexões, tomo como objeto de estudo dessa questão a telenovela , exibida no horário das 20h da Rede Globo de Televisão a partir de 18 de janeiro de 1999 e cuja permanência no ar está prevista até setembro deste mesmo ano. Acompanho, assim, sua recepção em 10 famílias, com capitais econômicos, culturais e sociais diversificados. Para melhor desenvolver minha pesquisa, classifico estas famílias em dois grupos estruturalmente diferenciados que ocupam, paradoxalmente, posições subordinadas e dominantes na sociedade. A definição do meu objeto de estudo passa, então, pelo pressuposto de que as noções e premissas que configuram o senso comum são reelaboradas de maneira diferente por grupos sociais diversificados ainda que partam de um mesmo conteúdo cultural hegemônico. A hipótese de que o senso comum e suas elaborações são particularizados é trabalhada tanto em um recorte de classe, como de sexo, idade, etnia, religiosidade. No entanto, ressalto o universo de uma situação de classe por entender que este é um lugar privilegiado de criação e difusão de significações. Desta forma, os grupos que identifico como aqueles que ocupam posições dominantes dentro de um campo de interação são, na linguagem de Bourdieu (1996), aqueles potencialmente dotados de- ou que têm acesso privilegiado a- recursos ou capital de vários tipos. Já as posições subordinadas são aquelas que oferecem acesso mínimo a quantidades de capital de diferentes tipos. Defino esses grupos selecionados, então, como grupos que ocupam situações limites e algumas vezes até opostas na estrutura social em relação à posse e à possibilidade de posse de bens simbólicos, mas que têm como ponto em comum o acesso à televisão e, que também compartilham o hábito de assistir às telenovelas. Em ambos os casos se busca inter-relacionar as elaborações decorrentes das situações estruturadas em Suave Veneno com aspectos importantes tais como estilos de vida, condições de assistência à televisão, e relações estabelecidas em família e de vizinhança.3 Procuro contextualizar o universo doméstico dessas famílias na rede de sociabilidades dos bairros a que estas pessoas pertencem. A seleção de um bairro, implica, aqui, a especificação dessas famílias em condições de vida semelhantes quanto ao nível salarial, à sua habitação, às suas práticas culturais e às suas estratégias quotidianas.

3. Entendo, assim como Thompson (1995), Barbero (1988) e Oroszo (1990), que as mensagens televisivas não atuam no vazio. Estas estão vinculadas a interações e partilhas, numa rede de conhecimentos e de reconhecimentos recíprocos que se traduzem em um processo de elaboração discursiva.

3 Para isso, escolhi, para o primeiro grupo, um bairro da periferia de Fortaleza. As primeiras cinco famílias selecionadas pertencem ao Conjunto Zé Walter e se caracterizam por terem nascido no bairro ou por morarem nele há mais de 15 anos. Fixei, assim, essas pessoas no contexto social dos bairros onde estas se reconhecem enquanto membros de um grupo, criam espaços próprios que permitem a construção de experiências e vivências, laços de convivência e de solidariedade. Escolhi um bairro de periferia, no primeiro caso, porque neste, ao contrário dos bairros mais abastados, onde as formas de sociabilidade se estabelecem entre parentes e amigos dispersos na cidade, a rede de sociabilidade se estabelece entre parentes próximos espacialmente e vizinhos. Devo ressaltar ainda que tal rede de sociabilidade é, primordialmente, mediada pelos meios de comunicação de massa, mais especificamente pelas telenovelas que representam, ao menos parcialmente, os usos e gostos populares. grupo, que ocupa posições dominantes em relação ao capital simbólico, não corresponde, a priori, a uma característica geográfica. Pertencem a bairros distintos de Fortaleza mas que guardam em si características semelhantes pelo fato de não constituírem vínculos mais aprofundados de vizinhança e de terem um perfil econômico análogo . Em ambos os casos, a pesquisa não só inclui pessoas de ambos os sexos como possuidoras de capitais simbólicos distintos. São donas de casa, bancários, professores, funcionários públicos, costureiras, estilistas de moda, agentes administrativos, atendentes de hospital. Casados, solteiros e divorciados, com números de filhos variados, possuem grau de instrução diferenciados que vão desde a simples educação básica à universidade. Trata-se aqui, nos termos de Musil (1994), de homens e mulheres sem qualidades. A seleção dessa famílias foi feita de maneira aleatória através de indicações de vizinhos, familiares, colegas de trabalho, amigos e amigos de amigos. O único critério exigido foi possuírem hábitos de consumo que incluíssem o de assistir a telenovelas, além de terem, logicamente, disponibilidade para participar de uma pesquisa que perduraria durante mais de seis meses. Não me deterei aqui em todas as nuances dessa pesquisa que ainda está em andamento, mas ressalto algumas conclusões iniciais de meu estudo. Quero aqui discutir a própria noção desenvolvida por esta audiências do que é uma telenovela. Acredito que um importante veio de análise para a compreensão das re-elaborações do senso comum mediadas pela telenovela Suave Veneno passa pela noção de gênero. Tal noção é entendida aqui não como algo que esgote sua competência nem seu conhecimento no funcionamento

4 autista de sua eminência, mas como uma estética que requer a integração texto/leitor para só então existir. As audiências, de fato, quando assistem determinada telenovela sabem do que se trata, são inclusive capazes de conhecer traços específicos de seu funcionamento, classificando, qualificando e formando juízos críticos sobre sua essência. As pessoas sabem o que é uma telenovela porque sua experiência de espectadores costumazes lhes permite reconhecer suas regras e normas de configuração e é isto que lhes garante sua competência enquanto receptores.4 O que dá legitimidade às telenovelas são as vivências compartilhadas concretizadas no senso comum enquanto saber incorporado na experiência. As novelas são populares porque as pessoas dominam sua gramática. As audiências dominam sua gramática porque partem de um saber incorporado, transmitido de geração à geração, resquício de uma memória cultural, que é reatualizada pelo próprio hábito de se assistir à telenovela. “ Eu não sei nem o que é direito uma narrativa de uma novela, mas estou desde pequena assistindo a novelas, sempre gostei de viajar nas estórias das personagens, na estória de suas emoções. No meu entender, eu não sinto nela (em Glória Perez), o domínio da novela, não, eu acho que ela fica apostando no que vai dar. Ela pega um tema atual pra explorar, um mote. Se render bem, se não, ela volta por esquema do folhetim, do amor impossível. (Ana Paula, 32, funcionária pública) A partir dessas entrevistas preliminares pude perceber de que forma os informantes vão tecendo uma teia de significados que abarca as normas e regras que movem as telenovelas. Para eles, de uma forma geral, nas telenovelas, destaca-se uma retórica do excesso. Essa “extravagância emotiva” se impõe a partir de uma estrutura dramática que exibe descaradamente os sentimentos, o que exige a todo momento da audiência uma resposta em risos, prantos, suores, palpitações e estremecimentos, em tudo aquilo que configura o que chamamos de emoções. Telenovela? É isso, é um pouco da questão da emoção. De você reviver a emoção cotidiana, de você se vê em alguns personagens. Não que seja uma identificação porque eles são muito idealizados, estereotipados, mas você embarca também muito no momento. A coisa te atrai, um personagem te atrai, mas é por conta disso, do compromisso da estória

4. Os depoimentos a seguir que orientam essa discussão foram realizados em janeiro deste ano, alguns se alongaram até as duas primeiras semanas de estréia de Suave Veneno. Portanto, referências a novelas anteriores a estudada ou concomitantes a sua veiculação são constantes. O objetivo dessa fase inicial foi caracterizar Suave Veneno dentro de seus congêneres e não realizar elaborações por sobre seu enredo e personagens.

5 da novela com a estória da emoção. É por mais brega que se seja, você cai na coisa da emoção mesmo que às vezes carreguem nas tintas e que fique aquela coisa que a gente ri, mas no final o que vale é a reflexão que ela provoca e a emoção que ela causa.(Ana Paula, 32, funcionária pública) Para obterem tal efeito, as telenovelas dramatizam a vida cotidiana, com todos os seus problemas, conflitos, resoluções e comportamentos. É isto que lhes confere sua atualidade e veracidade. No entanto, as relações entre ficção e realidade estão repletas de contradições. Mas, é a tensão entre essas contradições que fornece as nuances do gênero, lhe dando concretude. O mais importante em uma telenovela é o enredo. Mas tem que ser enredos baseados na vida real. Quando eles desenvolvem e você vê que aquilo pode acontecer se tornam mais interessantes do que tudo inventado, tudo fictício, né? Eu gosto mais do enredo em que você vê que aquilo que está acontecendo na novela acontece realmente na vida real, por pior que seja, é uma acontecimento, é um fato que acontece na vida real. (Neide, 55, professora universitária) Mas, a exigência da realidade esbarra em certos limites. Se o critério de realidade é algo ressaltado na trama, seu controle tem uma importância vital para a conquista da audiência. Não se pode “carregar muito nas tintas”, os problemas sociais devem vir como pano de fundo, não como elemento central da trama. Aquela violência em Torre de Babel estava demais, era realidade demais e tudo junto -drogado, sapatão- eles resolveram assim colocar tudo junto. Aí, eles colocaram o drogado e já junto com o traficante, os dois fugindo. Acaba que ainda fica meio estranho pra gente. E aí tinha a família do Clementino, que era um preso, a Shirley manca, com um problema na perna e os outros dois completamente doidos, abobados, sem inteligência nenhuma e o outro Jamanta, coitado. Assim, era muito drama junto... não me interessava ver não, eu queria uma coisa mais leve. Tem que balancear, sabe, até porque fica muito caricatural pegar assim, o drogado, a sapatão, o presidiário, eu acho muito pesado, muita dose de realidade pra uma novela só. A gente já tá assistindo o Jornal Nacional e depois vai assistir só violência também na novela, não dá. (Ana Claudia, 25 anos, estilista de moda) Novela, no entender de sua audiência, não deve chocar. De acordo com Ana Paula, chocar é qualidade que pertence aos programas jornalísticos, quando a novela choca, ela simplesmente “não funciona”. Novela é narrativa que deve primar pela sutileza. No

6 entanto, há um destaque para sua importância enquanto espaço de reflexão, lugar de discussão sobre temas importantes da atualidade, ainda que a forma como as questões são trabalhadas possa não ser “a correta”. Há a possibilidade de você abordar vários temas, mesmo que não seja da melhor maneira, mesmo que não seja como deveria ser, mas levantar as questões, possibilitar uma discussão, uma reflexão, eu acho legal também. Eu vejo novela de um lado de uma pessoa, e pra ela é uma coisa e pra mim é outra, o que vale é a reflexão que ela provoca, que qualquer estória, que seja contável por uma novela, ou por uma peça, ou por um livro, o que vale é a reflexão que ela provoca e a emoção que ela causa.(Ana Paula, 32, funcionária pública) Mas, ao mesmo tempo que a telenovela deve “contar a realidade”, ela não pode prescindir de ser uma narrativa de ficção. Ficção que é, segundo os informantes, um hábito arraigado, que contraditoriamente, ao alienar as pessoas da vida real, fornece o distanciamento necessário a ela, ocasionando o espírito crítico em sua audiência. Os indivíduos ao compararem o cotidiano das telenovelas com as vivências de seu dia-a-dia, instituem uma particular forma de lidar com os problemas que assolam a vida corrente. Além de viciar, eu acho que a gente fica se iludindo nas novelas. É, iludindo, porque nas novelas é muito fácil, o pessoal está na pior e de repente, na novela, a menina vivia no interior lá nas brenhas, não sei nem o que ela fazia por lá, depois com menos de um ano, ela já era uma empresária. A Celeste, onde é que ela aprendeu tanta cultura assim em um ano, pelo amor de Deus? Aprendeu de tudo, de fazer projeto e tudo, como é que pode? Então, quer dizer a gente se ilude na novela, o povo é pobrezinho e de repente tá assim cheio da grana. É uma doce ilusão. Eu gosto porque a gente fica preocupada com a vida mentirosa das novelas , e aí a gente se esquece um pouco dos problemas da gente. Ai eu fico toda preocupada - amanhã será que fulano vai morrer e não sei o que mais que faz você esquecer um pouquinho de seus problemas, entrando nos problemas de mentira.(Maria Eugênia, 39 anos, agente administrativa) As telenovelas adquirem veracidade quando reproduzem as formas de interação do dia-a-dia, tais como a conversação, o conselho, a confidência. Estes rituais cotidianos dramatizados re-atualizam as “banalidades” que constituem o corpo social. Expressões do que o pensamento esclarecido nomeia como frivolidades, e que ao contrário, instituídas e instituintes de uma ordem social particular, parecem refletir o que tem de sólido a vida

7 social, as interações de longo prazo que asseguram o perdurar da sociedade. (Simmel, 1977) Tais “frivolidades”, presentes nos enredos das telenovelas, parecem refletir, para sua audiência, o que elas acreditam ser a “essência das coisas”. As tramas retratam, segundo Ana Paula, os conflitos eternos que moldam o ser humano e que são reatualizados a cada nova estória. Assim, ao mesmo tempo que são datadas e circunscritas, frutos de uma historicidade, são atemporais porque revelam realidades profundas do ser humano. Eu vejo essa novela agora, essa última, Por Amor. O que você faria por amor, né? Daria seu filho e não sei o que mais. Esta relação mãe e filha que é sempre muito difícil vem dos primórdios até hoje em dia, mas que é sempre atual .Maria Eduarda e a Helena aparecem sempre discutindo em cena o que faz parte de nossa realidade. Então quer dizer que não precisa ser novo pra ser atual, quer dizer, é um problema antigo mas que todo dia acontece. Então, o conflito é o mesmo, os motivos mudam. Ela abordou esta questão ética: até onde o amor justifica certas coisas? Coisas que a gente está o tempo todo lidando com isto nas menores e maiores decisões e essa estória eu acho mais profunda do que temas circunstanciais. (Ana Paula, 32, funcionária pública) O que revelam as telenovelas, a partir dos depoimentos de sua audiência, é o fato delas acionarem mecanismos de recomposição de memórias e de imaginários de diferentes grupos sociais que revivem e reatualizam distintas experiências estéticas. Através da dramatização da vida cotidiana, o senso comum reconstruído nas telenovelas restaura a experiência, repondo e resgatando matrizes culturais tradicionais ao mesmo tempo que construindo novas sensibilidades. Os depoimentos revelam a força dessas matrizes que se traduzem na utilização de recursos narrativos provindos do melodrama, do folhetim, do cordel. As novelas de teor extremamente folhetinesco são as prediletas de Zilda, 54, dona de casa. Eu achava que deviam fazer novela como faziam antigamente, ah, a Escrava Isaura, acho que aquilo ali é a novela que faz sucesso. Pérola Negra e Fascinação, isto sim é que é novela, se você começa a assistir não quer saber de outra. O que caracteriza as novelas citadas por Zilda é a presença do vilão ignóbil, da virgem seduzida, do herói injustiçado, todos convivendo num universo maniqueísta que distribui de maneira inequívoca justiça/ injustiça, fidelidade/infidelidade, amor/ ódio, atração/repulsão, conflito/harmonia. Esta divisão do mundo em antinomias também é ressalta por Ecir, 59, professora aposentada.

8 Ah, as novelas boas são as do canal 8. Maria Mercedes, Maria do Bairro. Maria do Bairo era excelente. É aquela em que a Talia contracenou com aquele baixinho. Ela era louca por ele, depois ela não queria mais ele porque ele estava atrás dela, menina, eu vibrava. Ela (a Talia) era catadora de lixo. Ela foi pra casa daquele ricaço e se apaixonou pelo filho dele. Mas, a outra, Maria Mercedes, eu não lembro, mas sempre tem um protetor, sempre aparece um velho que a protege, né? Que é rico. Nessa outra é também a mesma coisa, tinha um homem rico e tímido que ela também não conhecia e depois que conheceu passou a herança pra ela e depois ela passou a tomar de conta de um cassino, mas aí ela já estava apaixonada pelo jogador de futebol...” No entanto, se as heroínas, nas novelas mais “atualizadas” com as sensibilidades modernas não são tão ingênuas e desprotegidas, ao contrário, são lutadoras, fortes, valorosas, todas elas guardam uma característica em comum: são . As telenovelas contam e recontam, nos mais diferentes contextos, estórias de amor. Mas não de um amor qualquer, tem que ser um amor que custe a alcançar, manter, recuperar. É neste jogo de conquistas e seduções, de intrigas e ocultamentos que as telenovelas se desenvolvem. Agora, eu estou assistindo Suave Veneno, mas eu gosto mais de Meu Bem Querer, eu não sei se também porque Meu Bem Querer está mais velha. Lá tem o amor de Rebeca e de Antônio. Ah, eu acho lindo o amor deles dois, eles são tão legais e sofrem tanto pra realizar o amor deles, tem a malvada da Custódia que persegue todo mundo, ave maria, é bom demais, tem a Lívia também que pra ficar com o marido inventou até uma gravidez. ( Rita, 53, costureira). O amor, nas telenovelas, tem que ser mais forte que o tempo, a distância e as desgraças mais terríveis, devendo superar todos os obstáculos que possam ser encontrados nas diferenças econômicas, culturais, sociais. Trata-se de um amor impossível que se possibilita pela força do destino, pelo encontro de almas, amor que é onipresente, onipotente e onisciente. As novelas gostam de tratar aquela estória do amor impossível. Em Explode Coração era o caso da cigana e do empresário. Em outra novela era porque a pessoa era pobre e a outra era rica enquanto que nessa era cigana. Em outra podia ser porque uma pessoa era de uma religião e agora é de outra, então a telenovela só muda um pouco, mas sempre volta a estória do amor impossível como porto seguro. (Ana Paula, 32, funcionária pública)

9 Campedelli (1987) define a estrutura narrativa de uma telenovela como um novelo que vai se desenrolando, segundo trançamentos dramáticos, apresentados, aos poucos, como uma estória parcelada, onde cada pedaço tem seu próprio conflito a ser trabalhado. É preciso, diz ela, enredar, ligar, relacionar os fios desta história central, instituindo, por conseqüência, muitas outras paralelas. Esta bem elaborada definição acadêmica é reconstruída através do senso comum pela própria audiência. Por Amor, do Manoel Carlos, abordou inúmeros temas, sabe você pode criticar a opção dos personagens e tudo, mas acho que ele soube manter uma unidade porque eram vários núcleos, vários temas sendo debatidos com um central que era a estória da Helena e das trocas dos bebês e tudo e os outros derivando disso. (Ana Paula, 32, funcionária pública) É necessário, segundo Pallottini (1996), que a história básica, a coluna dorsal, o tronco central da árvore que a novela constitui, seja forte e tenha seiva suficiente para agüentar as tramas segundárias, os galhos emergentes, as ramas que conduzem os conflitos paralelos. Os informantes não só confirmam esta conceituação mas também possuem uma visão peculiar sobre a forma como esses conflitos paralelos devem ser trabalhados. Esse Lombardi, de e de muitas outras novelas, ele é muito engraçado, mas o que acontece é que ele não sabe desenvolver a estória, ao longo do caminho, ele se perde, ele mata alguns personagens. O texto dele é bom, o diálogo é riquíssimo, enfim, bem trabalhado, assim, uma coisa bem legal, mas ele perde no desenrolar da novela, ele mata os personagens, ele dá fim, sem um sentido lógico, não é porque eles morreram, eles simplesmente desaparecem, se anulam em detrimento de outros núcleos que se sobressaem. Então, ele tem um texto bom, ele tem um diálogo bom, mas ele não consegue manter isso. Já o Manoel Carlos, ele consegue. Ele dá o finalzinho de todos os núcleos da estória (Ana Paula, 32, funcionária pública). A ordem de legitimação dos julgamentos dos informantes passa ainda pelo recurso da metáfora. Segundo Mafessoli (1998), o senso comum se estrutura sobre duas premissas básicas - a metáfora e a intuição- que se mesclam e se complementam. De fato, as analogias são os procedimentos favoritos de todos os pensamentos intuitivos. Como não se pode falar do social a não ser por alusão, de forma indireta, a metáfora faz análises que possuem uma inegável densidade. Esta não indica de maneira unívoca o sentido das coisas, mas pode ajudar a perceber suas significações.

10 “As subtramas mal elaboradas de algumas novelas são como uma corrida de espermatozóides, vamos ver quem sobrevive, e acaba o que se vê, dois ou três núcleos se salvando e o resto se perde e você não tem mais notícias do que aconteceu com fulano de tal. Cadê aquele fulano que entrou no começo da novela que parecia ser importante e que perde o sentido? Sabe, é como que nem na vida, tem pessoas que a gente acha mais atraentes do que outras mas isto não quer disser que os outros morram para que aquela pessoa possa existir, que as outras não existam, muito pelo contrário. Isto está mais semelhante com a realidade, com uma novela mais próxima.” (Ana Paula, 32, funcionária pública) Na telenovela, não basta que as injustiças sejam reconhecidas, os culpados devem ser castigados. Essa reparação justiceira, oriunda do melodrama, é o que outorga e dá sentido a trama. Os protagonistas sofrem acidentes, dores imerecidas, perigos só para alcançar este desenlace final. Este triunfo da justiça indica a lógica das coisas que devem terminar no “local ao qual correspondem”. O Estênio mesmo assiste metade de Meu Bem Querer porque tem uma pessoa maldosa e a gente assiste e fica torcendo pra ter um castigo porque sempre o ruim recebe um castigo e o bom obtém recompensas, e isso faz a gente torcer. E em Meu bem Querer, tem a menina que é muito ruim que casou com o outro que é médico e agora quer se vingar dele e tem a parte daquela, como é que chama, a bruxa? A Custódia que é muito mal e está apaixonada pela prefeito e a parte da Verena que é também uma sofredora e que a gente fica torcendo. (Rita, 53, costureira). A dose de sofrimentos e injustiças perpetrados pelas intrigas do vilão é um dos mais eficientes mecanismos para desencadear sentimentos de raiva contra aquele que urde a intriga e solidariedade para com suas vítimas. É por que os maus sempre conseguem, aquela coisa, quando eles querem tramar, sempre dar certo e fica aquela coisa, ah é porque é novela. Os maus sempre tramam, planejam e dar certo, é impressionante, sabe, às vezes eu tenho é raiva. Geralmente tem os ruins que querem se sobressair sempre encima dos bonzinhos e toda vida dá certo e isto o que mais me aborrece na novela. Em Meu Bem Querer tem a Lívia, a Lívia é capaz de ficar com a tutela do menino, porque na hora vai disser que o filho que ela tá grávida é do Antônio, vai dar certo nem que no fim eles descubram, mas toda trama dela dar sempre certo, engraçado e os bonzinhos toda vida se lascam, é novela é assim. (Jaqueline, 39, atendente de hospital)

11 Já os pequenos e grandes climax das telenovelas são reconhecidos pelo público como “termômetros” da tensão emotiva, permitindo manter níveis de curiosidade constantes e fiéis. Mas, este recurso narrativo que se molda pelo mecanismo da ocultação e do segredo deve ser unificado pela história central que necessitará ter força, vitalidade e energia para despertar interesse, criar suspense e justificar a atenção da audiência. Esta Torre de Babel, tinha o drama de cada um mas tinha um ponto que chamava a atenção que era o negócio do suspense, descobrir quem explodiu o shopping e tal, eu acho que quando mistura esses dramas com algum suspense é interessante porque as pessoas ficam intrigadas e acaba prendendo a atenção, mas quando como é como essa agora das sete, Meu Bem Querer, que não tem nenhuma emoção forte e ao mesmo tempo não tem nenhuma trama que seja desvendada, eu acho que não tem muito sucesso. Eu acho que tem que ter alguma coisa pra ser desvendada, entendeu? A novela das sete é uma novelinha muito chata, não acontece nada , é aquele marasmo, assim, sem nenhuma coisa envolvente, não dá nem vontade de assistir. ( Ana Cláudia, 25, estilista de moda) Novela boa deve, de acordo com Neide, ter um enredo imprevisível porque existem umas que você já vai deduzindo muito rápido e aí perde a graça. No entanto, até mesmo a necessidade do surpreender tem que ter, para a audiência, uma certa lógica, uma certa coerência. Como em Torre de Babel, a Sandrinha que era avoada daquele jeito , mas eu não queria que ela tivesse sido a culpada, podia ter sido o pai do menino, podia ter sido só ele. É porque passou um tempo e todo mundo já tinha até gostado dela e no fim é ela que vai ser a culpada, podia até o Alexandre ter terminado com a Lúcia, mas pra mim, ao meu ver, não precisava ter ela sido a culpada, mesmo avoada, mas acho que é porque ela nunca perdoou o pai ter morto a mãe, mas se fosse eu, acho que não tinha deixado não. (Jaqueline, 38, atendente de hospital) Mas, ao mesmo tempo que se faz necessário, para a audiência, um suspense e uma imprevisibilidade constantes, parece importante também estar aí todos os dias, apreciando um jogo do qual já se conhecem as regras, assistindo a todos os movimentos, decisões e soluções que os atores executam do outro lado da tela para desembocar em um final que já sabe, muitas vezes, de antemão. “Porque novela é assim, previsível, né? Eu acho que é bem capaz deste romance ( entre D. Carlola e Seu Gato) dar certo, mas vai demorar um pedaço, eles vão se apresentar, vai acontecer alguma coisa, eles vão se separar, mas aí eles acabam

12 voltando...Isso é muito interessante, este acompanhar da telenovela. (Ana Cláudia, 25, estilista de moda) O recurso das chamadas “barrigas”, espichamentos da estória onde nada acontece de fato e a trama dá apenas voltas em redor de acontecimentos já apresentados ao público, é o que auxilia a fazer da telenovela um hábito arraigado no cotidiano. Este recurso narrativo se incorpora perfeitamente ao ritmo conturbado do dia-a-dia porque permite que possa haver perca de capítulos sem que se atrapalhe a compreensão da trama. O utilitarismo e a repetição, características, segundo Heller (1989), essenciais da vida corrente, se incorporam, assim, às estruturas narrativas da telenovela. “Na novela demora muito tempo pra acontecer algumas coisas, às vezes, passa de semanas e nada acontece e de repente, tudo se resolve em um capítulo. Dá até pra perder alguns capítulos, às vezes a gente tem compromisso, tá ocupado com outras coisas e ainda assim não embaralha a estória, dá pra saber o que está acontecendo. (Airton, 49, bancário) A lógica do Ibope também é claramente incorporada pelas audiências. E ainda tem aquela coisa da pesquisas de opinião, se a personagem emplacar, ela aparece que é um horror, se não emplacar, ninguém ver mais, se mata, se explode. Não foi assim com aquela novela do shopping que explodiu? O drogado e a sapatão foram pelos ares” (José, 42, funcionário público). Mas a verossimilhança é importante. A mudança de enredo ou de personalidade das personagens não deve ser feita aleatoriamente, é necessário que aja uma certa coerência interna. Não pode ter aquelas mudanças absurdas que você vê ou que você viu. Vamos supor a estória da Helena (Por Amor), você acompanhou um processo de mudança, ela mudou durante a estória toda. Ela era uma no começo da novela, antes de casar, mas quando ela casou, já mudou e tudo, aquela estória das trocas do bebê mexeu com ela. Então você vê a mudança na personagem mas você também vê o sentido dessa mudança. É diferente de você vê uma personagem mudar totalmente de rumo por causa de pesquisa de opinião. (Ana Paula, 32, funcionária pública) Em relação ao desenlace final aparece outra regra da telenovela: a do final feliz. Não se pode acompanhar durante meses uma telenovela sem a garantia de que os maus sejam castigados ou de que casal amante se reúna, sem esse ritual não há o “verdadeiro” encontro nem a estória se encerra como ela “deve ser encerrada”.

13 “Uma novela boa deve ter sofrimento, amor e um final feliz. Bem porque a novela pra ser boa a gente tem que vibrar mesmo, tem que sentir mesmo, tem que ter bastante sofrimento e amor também, como são as novelas da Talia, tem muito sofrimento, muito sofrimento e depois um final feliz.” (Ecir, 53, professora aposentada) No entanto, as pessoas fazem críticas a rapidez com que a é mostrada. A catarse, muitas vezes, não é suficientemente explorada. Ao mesmo tempo que a felicidade proporciona à audiência as alegrias do reconhecimento do já conhecido e o prazer do retorno ao esperado, ela contraditoriamente não concilia totalmente o espectador consigo mesmo. Uma vez terminada a trama, a audiência fica ainda com uma série de interrogações sem resposta. “Eu não gosto dos finais feliz porque são muito curtos. O bom só fica feliz no último dia. Por que não passa uma semana vivendo a bondade? A gente sofre, no começo nem tanto, mas depois no desfecho da novela vai aparecendo, aparecendo sofrimento e aí a gente vai vibrando, vibrando e pronto tudo se resolve mas aí acabou e só aparece um pinguinho do bem bom. Geralmente só é uma cena, nem é um capítulo todo, só uma cena e pronto terminou. Na minha opinião é pouco. Eu queria que tivesse ao menos uma semana de felicidade. Por exemplo, as vezes termina, pronto está grávida, mas ninguém vê aquele filho, fica só na imaginação da gente....” (Ecir, 53, professora aposentada) Concluindo, o senso comum é um importante repertório de conhecimento sobre o social, no entanto, sua análise é mais problemática e profunda do que parece a priori, muito semelhante àqueles objetos que de tão visíveis não conseguem ser vistos. Descobrir a lógica que está por detrás da “natureza das coisas”, das emoções, sentimentos e paixões que movem os telespectadores das telenovelas é um grande desafio que para nós, pode significar novas formas de examinar problemas antigos, principalmente aqueles que se relacionam com a forma com que a cultura é articulada, incorporada e transformada. Bibliografia BARBERO, J. M. De los Medios a las Mediaciones- Comunicacion, Cultura e Hegemonia, México, Gustavo Gili, 1988 BOURDIEU, P. Razões Práticas, Campinas, Papirus, 1996. CAMPEDELLI, S.Y. A telenovela, São Paulo, Ática, 1987. GEERTZ, C. O saber local, Petrópolis, Vozes, 1997 HELLER, A. O cotidiano e a história, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. MAFESSOLI, M. Elogio da razão sensível, Petrópolis, Vozes, 1998 OROZCO, G. G. Recepción televisiva- tres aproximaciones y una razón para su estudio. Universidad Ibero Americana, Cuardeno de Comunicación y praticas sociales, Lima, 1991.

14 PALLOTTINI, R. Minissérie ou telenovela in: Comunicação & Cultura, ano III, n.07, setembro/dezembro, Escola de Comunicação e Artes- USP, Editora Moderna, 1996 SIMMEL, G. Sociologia, Madri, Edições Castillas, 1977. THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna, Petrópolis, Vozes, 1995 MUSIL, R. O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Ed. Moderna, 1994

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